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1 Fernando Pessoa, “poeta dramático”. Contextualização crítica de uma categoria interpretativa – Carla Gago Quando se fala de drama em Fernando Pessoa, pensa-se inevitavelmente no “drama-em- gente”, expressão cunhada por Teresa Rita Lopes 1 e que marcou toda uma fase dos Estudos pessoanos. Esta linha exegética que realça o carácter teatral dos jogos de desdobramento tende, contudo, a reduzir a questão do drama à heteronímia, pelo que o porquê de um autor como Pessoa, considerado fundamentalmente “poeta” pela crítica (e considerado pela crítica enquanto poeta), insistir, a partir de determinada altura, no “modo dramático”, é um campo ainda muito em aberto. A complexa problemática do “drama” é um nó central no pensamento estético pessoano, que ultrapassa em Pessoa a própria questão do género literário (raiando o pensamento utópico). Mas mesmo a ideia do “género literário” em Pessoa nunca chegou a ser alvo de uma análise mais profunda, pois a grelha interpretativa da Heteronímia e da sua obra em geral, baseada em conceitos dramáticos que o próprio Pessoa forneceu nos últimos anos da sua vida aos críticos (tal como o de “drama em gente”) 2 veio, paradoxalmente, dificultar o estudo desta questão. Por outro lado, o facto de, nas últimas décadas de regência teórica pós-moderna, no campo teórico dos géneros literários, o conceito de género ter sido muitas vezes considerado inoperante no plano metodológico e ineficaz em termos epistemológicos veio também contribuir para a falta de interesse neste campo. Mas para esta falta de contextualização do género dramático contribuiu, sobretudo, o facto de Pessoa ter sido visto muito tempo como “o homem que nunca existiu”, 3 ou seja, de no seu tempo ter vivido numa espécie de cápsula, o que, definitivamente, não foi o caso. Hoje sabemos que Pessoa viveu intensamente o seu tempo, que era um leitor fervoroso dos temas do seu tempo. Estudar as leituras de Fernando Pessoa é não só entrar na família intelectual de Pessoa e conhecer os autores com que privou tantos anos. É entrar na História das ideias dos séculos XIX e XX, pois é difícil referir um autor central para o pensamento histórico-filosófico ou científico desta época que não figure entre os volumes de Pessoa. A impressionante erudição de autor português de formação intelectual anglo-saxónica faz, com que esteja, também 1 Ver Maria Teresa Rita Lopes, Fernando Pessoa et le Drame symboliste: Heritage et Création. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 1977. 2 Com a tabela bibliográfica de 1928, Pessoa forneceu uma grelha interpretativa para a heteronímia baseada em conceitos dramáticos. 3 Título de um ensaio de Jorge de Sena de 1977, "Fernando Pessoa: the man who never was" (e que daria igualmente nome a um volume de estudos pessoanos organizado por George Monteiro, The man who never was. Essays on Fernando Pessoa, 1981).

Fernando Pessoa, “poeta dramático”. Contextualização crítica de uma categoria interpretativa

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Fernando Pessoa, “poeta dramático”.

Contextualização crítica de uma categoria interpretativa – Carla Gago

Quando se fala de drama em Fernando Pessoa, pensa-se inevitavelmente no “drama-em-

gente”, expressão cunhada por Teresa Rita Lopes1 e que marcou toda uma fase dos Estudos

pessoanos. Esta linha exegética que realça o carácter teatral dos jogos de desdobramento tende,

contudo, a reduzir a questão do drama à heteronímia, pelo que o porquê de um autor como

Pessoa, considerado fundamentalmente “poeta” pela crítica (e considerado pela crítica enquanto

poeta), insistir, a partir de determinada altura, no “modo dramático”, é um campo ainda muito

em aberto.

A complexa problemática do “drama” é um nó central no pensamento estético pessoano,

que ultrapassa em Pessoa a própria questão do género literário (raiando o pensamento utópico).

Mas mesmo a ideia do “género literário” em Pessoa nunca chegou a ser alvo de uma análise mais

profunda, pois a grelha interpretativa da Heteronímia e da sua obra em geral, baseada em

conceitos dramáticos que o próprio Pessoa forneceu nos últimos anos da sua vida aos críticos (tal

como o de “drama em gente”)2 veio, paradoxalmente, dificultar o estudo desta questão. Por

outro lado, o facto de, nas últimas décadas de regência teórica pós-moderna, no campo teórico

dos géneros literários, o conceito de género ter sido muitas vezes considerado inoperante no

plano metodológico e ineficaz em termos epistemológicos veio também contribuir para a falta de

interesse neste campo.

Mas para esta falta de contextualização do género dramático contribuiu, sobretudo, o

facto de Pessoa ter sido visto muito tempo como “o homem que nunca existiu”,3 ou seja, de no

seu tempo ter vivido numa espécie de cápsula, o que, definitivamente, não foi o caso. Hoje

sabemos que Pessoa viveu intensamente o seu tempo, que era um leitor fervoroso dos temas do

seu tempo. Estudar as leituras de Fernando Pessoa é não só entrar na família intelectual de

Pessoa e conhecer os autores com que privou tantos anos. É entrar na História das ideias dos

séculos XIX e XX, pois é difícil referir um autor central para o pensamento histórico-filosófico ou

científico desta época que não figure entre os volumes de Pessoa. A impressionante erudição de

autor português de formação intelectual anglo-saxónica faz, com que esteja, também

1 Ver Maria Teresa Rita Lopes, Fernando Pessoa et le Drame symboliste: Heritage et Création. Paris: Fondation Calouste

Gulbenkian, 1977. 2 Com a tabela bibliográfica de 1928, Pessoa forneceu uma grelha interpretativa para a heteronímia baseada em

conceitos dramáticos. 3 Título de um ensaio de Jorge de Sena de 1977, "Fernando Pessoa: the man who never was" (e que daria igualmente

nome a um volume de estudos pessoanos organizado por George Monteiro, The man who never was. Essays on Fernando Pessoa, 1981).

2

naturalmente, ao corrente das discussões mais importantes no espaço europeu em redor do

género dramático.

As referências ao género dramático são uma constante na literatura que encontramos na

biblioteca particular, não só por interesse específico de Pessoa no tema mas também pela

discussão em redor do género dramático ter sido central no seio do movimento modernista

europeu - tanto num contexto ideológico-histórico mais alargado, quer mais específico do

movimento de vanguardas. Este género gozava, aliás, de uma posição tal no fin-de-siècle e início

do século XX que alguns estudos mais recentes sublinham as tendências anti-teatrais da altura.4 É

o que se pode designar de “impulso anti-teatral”5 que leva Friedrich Nietzsche, em 1888, o ano

de nascimento de Pessoa, a verbalizar o que designa de “teatrocracia”:

Teatrocracia [Theatrokratie], a loucura de um credo na primacia do teatro, na legitimidade da ditadura do teatro sobre as artes, sobre a arte...

6

O próprio Nietzsche, para quem a concepção de drama é central na sua filosofia,7 vê o

teatro como uma força que impõe as suas regras sobre as outras artes, conduzindo à

“teatrocracia”.8 Estes discursos “anti-teatro” não devem ser entendidos, contudo, como um

quebrar com a instituição do teatro ou com posições que se querem fora do horizonte da

concepção do drama, mas sim com uma negação dos valores que se vinham estabelecendo à

época. Estas posições, mais ou menos difusas, sobre o género dramático, mostram, só por si, o

quanto esta questão era central no Modernismo.

4 A negação e rejeição inerentes ao termo “anti-teatralidade” não devem ser entendidas, contudo, como um quebrar

com a instituição do teatro ou com posições que se querem fora do horizonte da concepção do drama, mas sim com uma negação dos valores que se vinham estabelecendo à época. Relativamente aos discursos anti-teatrais, mais ou menos difusos, por parte de vários teóricos da literatura ver Alam Ackerman e Martin Puchner: "Introduction:Modernism and Anti-theatricality" in Against Theater.Creative Destructions on the Modernist Stage. Em Stage fright. Modernism, Anti-theatricality & Drama.Martin Pucher analisa ainda as tendências anti-teatrais em autores como Nietzsche, Walter Benjamin e Theodor W. Adorno em Stage fright. Modernism, Anti-theatricality & Drama.

5 "By analyzing an anti-theatrical impulse within the period of modernism, I do not wish to come up with one more

monolithic theory of modernism. (…) Navigating between a monolithic modernism and a happy plurality of modernisms, I argue that there exists a tradition within modernism that can be described in terms of its various forms of resisting the theater, but I readily acknowledge that there are modernisms that do oft fall into the category of anti-theatricalism. In fact I argue that the modernist anti-theatricalism finds its counterpart in a second tradition, which I call (pro)theatricalism." (Puchner: 2002, 2).

6 "Theatrokratie -, den Aberwitz eines Glaubens an den Vorrang des Theaters, an ein Recht auf Herrschaft des Theaters

über die Künste, über die Kunst…" (Nietzsche: 1999, 42). 7 Para o pensador germânico a “cultura trágica” necessitava de uma arte que fornecesse “conforto metafísico” e tal só

poderia ser fornecido pelo drama. 8 É de ter, contudo, em atenção que, subjacente a esta crítica de Nietzsche, está também a dissolução da amizade e a

polémica com Richard Wagner (1876-1878). De acordo com Nietzsche, esta teatrocracia é particularmente evidente em Wagner, que faz subjugar todas as artes (inclusive a música) à primazia da representação teatral e em particular dos actores, ou seja, Nietzsche critica, em última linha, o domínio do espectáculo.

3

O drama modernista apresenta-se, assim, como um campo com impulsos e

desenvolvimentos contraditórios,9 pois a sua herança é vasta e muitos são os caminhos do futuro

que se lhe apresentam. A reflexão crítica que vigora desde o fin-de-siècle não está só ligada aos

movimentos de vanguarda mas a um consequente desenvolvimento do drama nos diferentes

teatros europeus e um pôr em questão da natureza do género dramático.

Num autor como Fernando Pessoa que, mesmo não tendo na produção dramática o

grosso da sua produção literária, a questão do drama e do dramático ocupa, na sua poética, um

lugar central, a aproximação ao género dramático exige, necessariamente, uma reconstrução

histórico-conceptual. Pessoa vai herdar todo um aglomerado conceptual do século XIX que passa

por uma concepção idealista do género afecto à poética da primeira geração romântica alemã,

ainda antes da viragem para o século XIX (ou seja, quando o conceito do “moderno” nasce) e aos

seus avatares anglo-saxónicos (a tradição crítica do “Romantic criticism”).

Neste contexto, propormo-nos aqui, para além de uma breve contextualização histórica, à

apresentação de algumas leituras de Pessoa no âmbito de uma reconstrução histórico-conceptual

de alguns conceitos afins ao substrato teórico do género dramático. O conceito de “poeta

dramático”, por exemplo, foi mais usado pela exagese pessoana enquanto nó de interpretação da

obra de Pessoa do que pelo próprio autor (o que coloca, necessariamente, a questão dos

conteúdos objectivos). Não obstante o termo não aparecer muito mais do que meia dezena de

vezes no seu universo textual, esta é uma noção fundamental do pensamento pessoano, pelo que

se revela indispensável acordarmo-nos quanto à significação do termo. Ainda antes de se

consubstanciar com a grande questão da heteronímia nos anos 3010 (anulando-se, assim,

enquanto puro conceito teórico dos géneros literários), o termo surge também em textos mais

teóricos, tal como no célebre ensaio sobre a divisão de géneros:

Dividiu Aristóteles a poesia em lírica, elegíaca, épica e dramática. Como todas as classificações bem pensadas, é esta útil e clara; como todas as classificações, é falsa. Os géneros não se separam com tanta facilidade íntima, e, se analisarmos bem aquilo de que se compõem, verificaremos que da poesia lírica à dramática há uma gradação contínua.

11

9 Os estudos de Martin Puchner e outros estudiosos do género dramático referem que existem forças contraditórias no

Modernismo: se, por um lado, a vanguarda celebrava tudo o que era teatral, uma das tendências dominantes no movimento modernista caracterizava-se por uma posição contra o teatro, valorizando a poesia lírica e o romance (este último, mais aplicável ao espaço anglo-saxónico).

10 Ver carta a João Gaspar Simões de 11 de Dezembro de 1931.

11 Pessoa 1966: 106.

4

Para além da ideia bem definida em Pessoa de uma gradação de géneros12, o que Pessoa

torna bem claro nesta passagem é que, no estudo da classificação triconómica dos géneros

literários facilmente se chega à conclusão que a divisão triádica da Antiguidade greco-romana é

relativamente frágil. Efectivamente, a tríade clássica não possui nenhuma fundamentação

analítica, tendo que ser sempre entendida enquanto construção histórica.13 Como reforça Gérard

Genette, o princípio da divisão essencial da literatura em épico, lírico e drama não teve a sua

origem em Aristóteles nem sequer em Platão, tendo sido, sim, construído durante o século XVIII.

Aliás, Aristóteles deduz as suas categorias do corpus textual dos autores trágicos gregos mas sem

a intenção normativa e inductiva que a crítica posterior reclamará.14

A divisão por géneros é, assim, sempre o resultado da conjuntura literário-estética de

uma determinada época história. O mesmo se pode referir em relação à realidade trifásica

hipostasiada do final do século XVIII e início do XIX que se caracterizou por uma redifinição do

conhecimento, atingindo o seu zénite no sistema hegeliano numa busca de progressão

transcendente (Hegel aplica no domínio artístico os fundamentos dialécticos do seu sistema

Idealista de pensamento, estabelecendo uma escala de evolução, onde os géneros, as idades de

civilização e as artes estão em correspondência) como etapa na caminhada para o “espírito

absoluto”.

Relativamente ao pensamento trinitário dos géneros, Genette relembra um autor, hoje

caído em esquecimento, mas que marcou a história crítica literária do início do século XX,

principalmente através de Lyrisme, épopée, drame: une loi de l’histoire littéraire expliqué par

l’évolution générale de Ernst Bovet (1870-1941),15 cuja obra faz parte do acervo da biblioteca

particular de Fernando Pessoa. Genette refere que, tal como para os românticos alemães, para

Bovet os três “grandes géneros” não são simples formas mas “três modos essenciais de conceber

12

Esta ideia também tem, em Pessoa, as suas raízes numa concepção naturalista e evolucionista dos géneros literários. 13

Já Benedetto Croce se tinha insurgido, em finais do século XIX, contra o que denomina de “velha escola que acredita na realidade dos géneros literários”. Bovet, afirma, por sua vez: "Les genres, dit-il, sont des abstractions, non des réalités; ce sont des mots, utiles dans la pratique pour certains groupements passagers et plus ou moins arbitraries, mais des mots dépourvus de toute valeur scientifique" (Bovet 1911:10).

14 Outros autores apontam, ainda, para o facto de, a partir da Renascença – quando surgem as determinações

taxonómicas literárias tradicionais, ligadas geralmente a concepções normativas da literatura, que atigem o seu auge no século XVIII – a recepção de Aristóteles ter perdido a noção do quão provisório era o estudo deste autor e ter feito com que as descrições aristotélicas se transformassem em prescrições, ou seja, a qualidade que uma peça só seria garantida através destas normas ditas aristotélicas.

15 Ver imagem 1 do anexo.

5

a vida e o universo” e que correspondem a três idades de evolução.16 Também a “substância

dramática” pessoana de recorte idealista está num outro plano que não a prosa e a poesia,

indiciando uma superioridade do género, tal como na concepção de infinito de Schelling, na qual

o drama concilia o particular e o universal, o finito e o infinito.

Um outro volume da biblioteca particular de Fernando Pessoa relativo à questão do

Drama e que acusa muita marginalia é The lyrical dramas of Aeschylus de John Stuart Blackie17

(1809-1895). Tradutor de Ésquilo para inglês18 e intitulado na altura “Scotland’s greatest Greek

scholar”, Blackie, era amigo de Matthew Arnold, Robert Browning e Thomas Carlyle (outros

autores presentes na biblioteca de Pessoa) e um dos intelectuais mais influentes na Escócia do

século XIX. Já como o título do livro indica, Stuart Blackie remete, a partir da obra de Ésquilo, para

um conceito que envolve tanto o género lírico e dramático: o drama lírico. Aqui, é enfatizada a

questão da poesia nos dramas gregos, sendo Stuart Blackie de opinião que a tragédia é lírica e o

drama lírico trágico. Num tipo de análise que o autor considera como “aplicando os princípios da

crítica moderna de teatro” ao drama lírico antigo”, Stuart Blackie acrescenta que:

The Greeks […] were eminently a poetical people; the poetry of their drama, though not without its own simplicity, is, in respect of mere linguistic organism, of a highly decorated order; and by nothing is that decoration so marked as by a systematic attention to rhythm. I consider, therefore, that prose translations of the Greek dramatists will never satisfy the just demands of a cultivated taste, for the plain reason that they omit that element which is most characteristic of the manner of the original.

19

Stuart Blackie assinala que, pelo elemento rítmico da linguagem, as peças gregas devem

ser traduzidas não como se fossem prosa mas sim poesia, pois as traduções em prosa dos autores

gregos omitem o que o de mais característico existe no original: o ritmo. É o ritmo que é o mais

característico do género e que faz, segundo este autor, com que poetas possam ser filósofos mas

filósofos não possam ser poetas:

In one sense, and in the best sense, Plato and Richter and Jeremy Taylor are poets; in another sense, and in the best sense, Aeschylus and Dante and

16

"L’exemple choisi est celui de la littérature française, ici découpée en trois grandes ères, dont chacune se subdivise en trois périodes : l’obsession trinitaire est à son zénith. Mais par une première entorse à son système, Bovet n’a pas tenté de projeter le principe évolutif sur les ères, mais seulement sur les périodes." (Genette 1979: 61).

17 Ver imagem 2 do anexo.

18 John Stuart Blackie, conhecido em primeira linha enquanto germanista, introduziu vários filósofos alemães na Escócia

e foi também tradutor do alemão, tendo traduzido igualmente o Fausto de Goethe (1834), tradução esta que mereceu a aprovação de Carlyle, autor de eleição de Pessoa.

19 Blackie 1917: 2-3; ver imagens 3 e 4 do anexo.

6

Shakespeare are philosophers; but that which a poet as a poet has, and a philosopher as a philosopher has not is verse.

20

Esta acepção do género remete-nos, inevitavelmente, para a afirmação de Pessoa de que seria

um poeta movido pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas. Num dos ensaios do

volume, "On the Genius and Character of the Greek Tragedy", pode-se ainda ler:

The reader will have observed that the word TRAGEDY, which is generally associated with the works of Aeschylus, does not occur either in the general title-page of this translation, or in the special superscriptions of the separate pieces ; in the one place the designation « LYRICAL DRAMAS » being substituted, and in the other « LYRICO-DRAMATIC SPECTACLE. » This change of the common title, by which the productions are known in the book-world, was not made from mere affectation, or the desire of singularity, but from the serious consideration that « the world is governed by names » and that the word « tragedy » cannot be used in reference to a serious lyrico-dramatic exhibition on the ancient Greek stage, without importing a host of modern associations that will render all healthy sympathy with the Aeschylean drama, and all sound criticism, extremely difficult.

21

Stuart Blackie, em vez de utilizar o termo “tragédia” à qual estão associadas as obras de

Ésquilo, opta pela designação “dramas líricos” ou “espectáculo lírico-dramático”. De acordo com a

sua concepção de tradução, o conceito de tragédia não se adequa à exibição lírico-dramática no

palco da Grécia antiga, devendo esta ser compreendida à luz da sua época e não vista com “olhos

modernos”:

That those translators have erred who, whether from carelessness, or from ignorance, or from a desire to accommodate the ancient tragedy as much as possible to the modern.

22

Nesta passagem (sublinhada por Pessoa), a tragédia é considerada um tipo de poesia, cujo

carácter essencial tem que ser afirmado enquanto lírico, dada a acepção moderna dos termos

dramático e trágico. Esta ideia é desenvolvida mais à frente pelo autor, quando se propõe analisar

várias peças de Ésquilo para constatar que é o elemento lírico que predomina como forma.23

Outra ideia desenvolvida por Stuart Blackie é que, para os gregos, a base da tragédia é a canção (o

que geralmente é assumido unicamente para o género lírico) e que, assim, a lírica dramática e o

drama lírico não diferem entre si: "The main body and stamina are the same in each. The SONG is

20

Ibidem 2. 21

Ibidem 10; ver imagem 5 do anexo. 22

Ibidem 18; ver imagem 6 do anexo. 23

"We shall now examine one or two of the AEschylean pieces by a simple arithmetical process, and see how essentially the lyrical element predominates in their constructions." Ibidem 17.

7

the soul of both."24 Igualmente interessante é a ideia (que encontramos também em Pessoa) de

uma gradação destes géneros: "raise the dramatized ode, step by step, into the lyrical drama."25 A

designação “drama” é preterida a conceitos como “dramatized hymn” e “ode so essentially

dramatic”.

Nas posições de Stuart Blackie, que se encontram alinhadas com muita outra literatura

sobre a recepção da Antiguidade clássica greco-romana no Modernismo,26 podem-se ler, assim,

muitas das próprias concepções de Pessoa relativamente ao género dramático.

Um outro volume existente na biblioteca pessoal de Fernando Pessoa sobre Ésquilo (que

é também o inventor da máscara) é uma tradução para o francês de Henri Weil do Prometeu

agrilhoado,27 em cuja introdução se reafirma o carácter lírico da obra de Ésquilo e o autor é

designado “poeta” ou “poeta dramático”.

O conceito de "poeta dramático" e o de "drama lírico", que lhe está associado, são, assim,

muito mais latos do que o que geralmente se assume, não se restringindo a uma questão de

autor(es). Estes conceitos, tão difundidos à época, são o fruto de uma concepção híbrida dos

géneros literários e, sobretudo, de uma centralidade do estatuto do género dramático na Teoria

literária. Estes exemplos que rastreámos aqui não são só representativos de tendências críticas de

autores residentes na biblioteca particular de Fernando Pessoa mas de toda a escola crítica do

século XIX (principalmente anglo-saxónica mas não só), devendo ser considerados, por um lado,

enquanto traçado geneológico do pensamento pessoano relativo a aspectos mais directamente

atinentes aos géneros literários, mas, sobretudo, como a confirmação do vínculo, de natureza

epocológica, a uma determinada concepção do drama. Pessoa iria beber, naturalmente, às suas

24

Ibidem 16; ver imagem 7 do anexo. 25

"In the oldest times, says that biographer of the philosophers, the Chorus alone went through the dramatic exhibition (…) in tragedy; afterwards Thespis, to give rest to the Chorus, added one actor distinct from the singers, then Aeschylus added a second, and Sophocles a third; which gave to tragedy its complete development.” The reason mentioned here for the addition of the first actor by Thespis, is a very probable one. The convenience or ease of the singers contributed, along with the lively wit of the Greeks, and a due regard for the entertainment of the spectators, to raise the dramatized ode, step by step, into the lyrical drama." Ibidem 16.

26 Que não se pense, contudo, que este autor quer “recuperar” as formas da Antiguidade por as considerar as mais

importantes. Pelo contrário, na sua opinião, a tragédia grega comparada com a inglesa é bastante limitada: "yet he must certainly be strangely blinded by early classical prepossessions, if he fails to feel that, as a whole, a Greek tragedy, when set against the English composition of the same name, is exceedingly narrow in its conception, meagre in its furniture, monotonous in its character, unskilful in its execution, and not seldom feeble in its effort." Ibidem 11.

27 Ver imagem 8 do anexo. No total são três os volumes sobre Ésquilo na biblioteca particular de Fernando Pessoa: o já

referido The lyrical dramas of Aeschylus. Transl. John Stuart Blackie. 6th. ed. London [etc]. J.M. Dent & Sons, 1917,

que corresponde à referência 8-176 na BpFP; Prométhée enchainé, Eschyle. Text grec publié et annoté à l'usage des

classes par H. Weil. Paris: Librairie Hachette et Cie, 1884, referência CFP 8-177 na BpFP e Théatre d'Eschyle. Paris.

Flammarion, [19-?] da colecção “Les meilleurs auteurs classiques Français et étrangers”, referência 8-178. Este

último volume sobre Ésquilo é Théatre d'Eschyle, tradução das sete tragédias que nos ficaram do autor, não possui

qualquer anotação ou sublinhado.

8

leituras, o manancial necessário para reinterpretar e reinventar a questão do drama e do

dramático.

O género dramático, ou mais exactamente, uma determinada ideia do “drama” (com o

seu suplemento de utopia), vai enformar em Pessoa toda a sua produção literária (e não só

dramática). O que Manuel Gusmão designa de “modo dramático” não diz unicamente respeito a

uma praxis dramática ou a uma concepção do género dramático que abarca toda uma teoria dos

géneros literários, mas a uma ideia transversal a toda a poética pessoana. E esta ideia do drama é,

no fundo, o substrato comum a toda uma geração de autores modernistas - a sua família

intelectual.

Bibliografia

ACKERMAN, Alam/ PUCHNER, Martin. "Introduction: Modernism and Anti-theatricality” in Against

Theater.Creative Destructions on the Modernist Stage. Ed. A. Ackerman/ M. Puchner.

Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2006, pp. 1-17.

GENETTE, Gérard. Introduction à l’architexte. Paris: Seuil, 1979.

LOPES, Maria Teresa Rita. Fernando Pessoa et le Drame symboliste: Heritage et Création. Paris:

Fondation Calouste Gulbenkian, 1985 [1977].

NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Studienausgabe. KSA 6. Ed. Giorgio Colli/ Mazzino

Montinari. Berlin/ New York: Verlag de Gruyter, 1999 [1967-ff.].

PESSOA, Fernando. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, ed. de Georg Rudolf Lind e Jacinto

Prado Coelho. Lisboa, Ática, 1966.

PUCHNER, Martin. Stage fright. Modernism, Anti-theatricality & Drama. Baltimore: The Johns

Hopkins University Press, 2002.

Volumes citados da Biblioteca particular Fernando Pessoa

BOVET, Ernest. Lyrisme, Épopée, Drame. Une loi de l’histoire littéraire expliquée par l’évolution

générale. Paris, Lib. Armand Colin, 1911, cota BpFP 8-59.

ÉSQUILO. The lyrical dramas of Aeschylus. Transl. John Stuart Blackie. London, J.M. Dent & Sons,

1917, cota BpFP 8-176.

_____ Prométhée enchainé, Eschyle. Text grec publié et annoté à l'usage des classes par H. Weil.

Paris, Librairie Hachette et Cie, 1884, cota BpFP 8-177.

9

Imagem 1: Ernest Bovet, Lyrisme, Épopée, Drame. Une loi de l’histoire littéraire expliquée par

l’évolution générale. Paris, Lib. Armand Colin, 1911.

ANEXO

10

Imagem 2: The lyrical dramas of Aeschylus. Transl. John Stuart Blackie. London, J.M. Dent & Sons, 1917.

11

Imagem 3: The lyrical dramas of Aeschylus. Transl. John Stuart Blackie.

12

Imagem 4: The lyrical dramas of Aeschylus. Transl. John Stuart Blackie.

13

Imagem 5: The lyrical dramas of Aeschylus. Transl. John Stuart Blackie.

14

Imagem 6: The lyrical dramas of Aeschylus. Transl. John Stuart Blackie.

15

Imagem 7: The lyrical dramas of Aeschylus. Transl. John Stuart Blackie.

16

Imagem 8: Prométhée enchainé, Eschyle. Text grec publié et annoté à l'usage des classes par H. Weil.

Paris, Librairie Hachette et Cie, 1884.