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Estudo de Caso Manuela Rocha Santos SET/2011 Página 1 Florbela Espanca à luz da Psicologia "A vida é sempre a mesma para todos: rede de ilusões e desenganos. O quadro é único, a moldura é que é diferente." (Florbela Espanca)

Florbela Espanca à Luz da Psicologia

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Estudo de Caso

Manuela Rocha Santos SET/2011 Página 1

Florbela Espanca à luz da Psicologia

"A vida é sempre a mesma para todos: rede de ilusões e

desenganos. O quadro é único, a moldura é que é diferente."

(Florbela Espanca)

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A vida e obra de Florbela Espanca têm sido objecto de estudo de

diversas personalidades, de cariz biográfico, métrico, interpretação da poesia,

ou outro.

Muito se tem dito e escrito acerca da sua sensibilidade, dos seus amores

e desamores, do seu narcisismo, do seu suposto donjuanismo, da sua libido…

Interessei-me, no entanto, por “conhecer” e analisar, através das várias

biografias e obra literária, a Florbela Espanca, pessoa. Quem é esta mulher?

Como se formou a sua personalidade? Quais os factores predisponentes para

que fosse como era? Quais os factores de manutenção que legitimam a sua

dor? Quais os factores precipitantes dos vários episódios neuróticos? Quais os

contextos em que tudo isso ocorreu?

Para tornar o tema mais aliciante e desafiante, resolvi “ressuscitar”

Florbela e trazê-la a uma consulta, meses antes da sua morte.

Assim, passo a elaborar um relatório ficcional que me permitiu tentar

responder às perguntas que inicialmente me havia colocado.

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Qualquer consulta de psicologia requer uma estrutura que, podendo

variar na forma, visa obter todos os dados possíveis relativos ao motivo da

consulta, sintomas e queixas do cliente, dificuldades do momento e história de

vida da pessoa em todos os contextos: família, escola, relações, trabalho e

sociedade.

Em termos de dados biográficos quando chega à consulta, Florbela

Espanca é uma poetisa, tem 35 anos, casada, sem filhos e com habilitações

literárias ao nível do ensino superior, habitando em Matosinhos.

Chegamos, assim, ao:

Motivo da Primeira Consulta

Florbela vem à consulta trazida por uma amiga, apresentando, há vários

anos, sintomas de: angústia, tristeza a maior parte do dia, melancolia,

cefaleias, sensação de vazio, fadiga constante, problemas de sono,

dificuldades de concentração, diminuição do interesse ou prazer em quase

todas as actividades, solidão e intenção de suicídio, que já foi tentado no ano

transacto (cujo factor precipitante foi a morte do irmão).

Esta sintomatologia, segundo a acompanhante, agravou-se muito com a

morte do único irmão, há cerca de um ano.

Florbela refere que recebe acompanhamento médico consecutivo há já

cerca de sete anos, tendo sido diagnosticada com uma neurose, afirmando que

sempre se sentiu assim.

Está medicada com Veronal.

Durante a consulta, apresenta humor deprimido e pouco contacto ocular.

A linguagem não verbal (ombros caídos, expressão facial de tristeza, pouca

actividade psicomotora) é compatível com o humor deprimido.

Em termos de:

Antecedentes Pessoais

Nasceu em Vila Viçosa, a 8 de Dezembro, sendo filha de Antónia Lobo,

“criada de servir” a quem o pai, João Espanca, põe casa e que, sendo casado

com outra senhora que não podia ter filhos, a registou como filha de pai

incógnito.

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A mãe biológica, que Florbela mal conheceu, constituiu uma relação

extra-conjugal que duraria cerca de sete anos.

Apesar de amamentada pela mãe durante alguns meses, Florbela foi

criada pela madrasta e pelo pai e considera que foi “uma criança triste”.

A mãe biológica faleceu quando ela tinha 8 anos, vítima de neurose,

segundo nos informa.

No que se refere ao seu percurso escolar menciona que, aos 5 anos,

começou a frequentar o ensino pré-primário e aos oito anos de idade escreveu

a sua primeira poesia – “A Vida e a Morte”.

Concluiu a instrução primária, prosseguindo os seus estudos no Liceu

André Gouveia, em Évora, após a morte da mãe (com vinte e nove anos), com

o chamado Curso Geral do Liceu, cujo sexto ano (próximo do 10º ano actual)

completou com 18 anos.

Entretanto, no ano anterior, começara a namorar, mas acaba por se

afastar deste relacionamento, em virtude de uma nova paixão. Após romper

com este novo relacionamento, reata o namoro com o primeiro namorado

casando com ele, pelo civil, aos 19 anos.

Aos 20 anos, apesar de algumas dificuldades económicas, o casal

muda-se para o Redondo, onde abre um colégio e lecciona. Numa festa do

colégio, Florbela recita, pela primeira vez, versos seus em público. No ano

seguinte, inicia o seu caderno “Trocando Olhares”, que completa ao longo de

cerca de um ano e meio. Com 22 anos a revista “Modas e Bordados” publica o

soneto “Crisântemos” e Florbela torna-se amiga da directora da revista, com

quem se corresponde.

Alguns meses depois, torna-se colaboradora do jornal “Notícias de

Évora”.

No ano seguinte, após ter regressado a Évora, completa o actual 11º

ano do Curso Complementar de Letras, com catorze valores. Apesar de querer

seguir essa área, mais tarde, acaba por vir a inscrever-se na Faculdade de

Direito da Universidade de Lisboa, o que a obriga a mudar-se para esta cidade,

onde começa a contactar com a vida boémia (conseguindo penetrar em alguns

círculos literários, passando a integrar-se numa aura literária característica da

época).

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Aos 25 anos escreveu o “Livro das Mágoas”, aos 29 anos publicou o

livro de “Sóror Saudade” e há dois anos (com 33 anos) produziu o livro

“Charneca em Flor”, ainda não publicado.

Tem traduzido romances franceses para a Livraria Civilização no Porto e

acabara de escrever o seu primeiro livro de contos “O Dominó Preto” quando o

seu irmão faleceu, o que a tornou “uma mulher ainda mais triste e desiludida” e

a inspirou para o livro dedicado ao irmão que está a escrever e que irá

denominar de “As Máscaras do Destino”.

Refere que se “refugia em sua casa para escrever e que, principalmente

após a morte do irmão, não sai nem convive com ninguém, achando-se muitas

vezes fisicamente doente”.

Passando para os:

Antecedentes Familiares/Ambiente Familiar

Florbela é filha ilegítima. A relação de adultério entre os seus

progenitores durou cerca de sete anos, daí resultando o nascimento de mais

uma criança, do sexo masculino, três anos mais novo do que Florbela, e que

também não foi reconhecido pelo pai.

Os irmãos foram ambos criados, Florbela desde o nascimento e o irmão

desde os cinco anos, pelo pai, fotógrafo e negociante, que viajava pelo mundo

em busca de imagens e de antiguidades e que se orgulhava de ter como

clientes as personalidades mais distintas desse tempo; e a madrasta, de

origem italiana, a quem Florbela se refere como tendo um porte esbelto e

temperamento conflituoso.

Refere uma forte ligação a um pai permissivo e que é descrito como um

sedutor que sempre procurava outras mulheres, “dado a aventuras”, e que

nunca perdoou a mãe biológica de Florbela e do irmão por ter “fugido” com

outra pessoa, altura em que o irmão passa também a viver com ela.

Após a partida da mãe biológica, o pai torna-se agressivo. A madrasta,

também sua madrinha de baptismo, é descrita como exigente embora também

lhe satisfizesse todos os caprichos. Salientou que o seu irmão foi sempre “a

pessoa mais importante da sua vida” com quem sentiu sempre muita

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proximidade, ao contrário do que aconteceu e acontece com a maioria das

pessoas (familiares e amigos).

Entre a infância e a puberdade Florbela conhece três “mães”. O pai,

após a morte da primeira mulher, casa com uma empregada, com quem, aliás,

já vivia maritalmente.

Considera que a morte prematura da mãe biológica, tendo Florbela

quase nove anos de idade, foi um marco muito negativo na sua curta

existência, referindo que aprendeu a reprimir as emoções e as lágrimas para

dar alento ao irmão que, tendo vivido com a progenitora até aos cinco anos,

sofria enormemente.

A fase de adolescência é descrita como triste, sensação de abandono (o

pai estava pouco em casa e a madrasta oscilava entre momentos mais

afectuosos e outros mais distantes) e solidão, “refugiando-se na escrita”.

Durante a sua adolescência teve três namorados, tendo criado uma relação

sentimental profunda com um deles, como o demonstram estas suas palavras:

“Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões e, como todos os corações

verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se o meu para sempre”.

Casou com 19 anos (tendo sido emancipada pelo pai para o poder

fazer). A relação com o primeiro marido, antigo colega de escola, “foi-se

desfazendo aos poucos”. Florbela dedicava muito tempo aos seus versos e à

cultura.

Na sequência de um aborto espontâneo, aos 25 anos, teve de se mudar

para Quelfes, perto de Olhão, onde “apresenta os primeiros sintomas sérios de

neurose”, segundo informação médica da altura. Pouco depois, o seu

casamento “desmoronou” e Florbela decidiu ir para Lisboa prosseguir o curso,

pedindo o divórcio, separando-se do marido, e passando a conhecer a rejeição

da sociedade (as suas atitudes, o divórcio, o seu carácter firme e determinado e

o facto de ser filha de pai incógnito, nunca mereceram a simpatia da sociedade

e a sua conduta moral foi alvo de dúvidas e críticas).

Com 25 anos publicou o “Livro de Mágoas”; tendo, posteriormente,

completado o terceiro ano de Direito. No ano seguinte iniciou a elaboração do

livro “Claustro das Quimeras” e, simultaneamente, passou a viver com um

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companheiro, com quem se casa, aos 27 anos, após o primeiro divórcio. O

segundo marido, com quem esteve casada apenas quatro anos, era alferes de

Artilharia da Guarda Republicana e Florbela descreve-o como severo, ciumento

e sem imaginação.

Dessa segunda relação escreve:

“Sofri todas as humilhações, suportei todas as brutalidades e grosserias, resignei-me a

viver no maior dos abandonos morais, na mais fria das indiferenças; mas um dia chegou

em que me lembrei que a vida passava, que a minha bela e ardente mocidade se

apagava, que eu estava a transformar-me na mais vulgar das mulheres, e por orgulho e

mais ainda por dignidade, olhei de frente, sem covardias nem franquezas, o que aquele

homem estava a fazer de minha vida, e resolvi liquidar tudo e simplesmente, sem um

remorso, sem a mais pequena mágoa. Estou a divorciar-me e para me casar novamente,

se a lei mo permitir, ou para viver assim, se a moralidade do Código o exige”.

De volta a Lisboa, já com 29 anos, vê publicado o “Livro de Sóror

Saudade”, mas tem de se mudar rapidamente para Gonça, perto de

Guimarães, para se tratar de um novo aborto espontâneo. Separou-se do

segundo marido, que pediu o divórcio, levando a que a sua família de origem

não lhe falasse durante dois anos, o que a abalou muito.

Com 31 anos, casa-se pela terceira vez com o seu médico, pessoa

sensível à sua escrita. Actualmente, vive com os sogros e marido em

Matosinhos, sendo que o sogro “está demente”.

Sobre a morte do irmão, em acidente por queda de hidroavião no rio

Tejo, já com 33 anos, escreve ela no prefácio do seu livro “As Máscaras do

Destino”:

“Terminei há pouco um livro de contos que tenciono publicar no próximo inverno, livro

que me deu muito trabalho e muita canseira, principalmente depois do formidável

choque da morte do meu estremecido irmão, do meu morto mais lembrado que nenhum

vivo.”

E em carta ao pai: “Morreu. Parece que morreu tudo, que ele não deixou cá ficar nada, parece que levou

tudo. A gente é muito forte, já que não endoidece nem morre depois dum pavor assim. “

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Pensa que o seu terceiro casamento estará prestes a desfazer-se e

escreve:

“Eu não sou ninguém!.../Quem me quiser/Há-de ser luz do sol em tardes quentes…/Há-de

ser outro e outro num momento!/Força viva, brutal, em movimento,/Astro arrastando

catadupas de astros!”.

Os sentimentos de desgosto, tristeza, desespero e insatisfação são tudo

o que a preenche, como se depreende do texto seguinte:

“Tenho a impressão nítida de ter vindo de longe cumprir a pena do crime de ter nascido.

(...) a minha dolorosa experiência ensinou-me que sou só, que por mais que a gente se

debruce sobre o mistério duma alma nunca o desvenda que as palavras nada exprimem

do que se quer dizer e que um grande amor de que a gente faz o sangue e os nervos e as

próprias palpitações da nossa própria vida, não passam duma pobre coisa banal e

incompleta, imperfeita e absurda, que nos deixa iguais, miseravelmente iguais ao que

éramos dantes, ao que continuaremos a ser. Então...para quê? “

Como:

Dificuldades actuais

Verbalizou :

- Ao nível emocional: a tristeza agravada, a sensação de vazio,

desespero, impotência e solidão, amargura, melancolia e desilusão.

Afirmando:

“Aos oito anos já fazia versos, já tinha insónias e já as coisas da vida me davam vontade de chorar.”

E “É esta a história da minha tristeza, história banal, como toda a história dos tristes.”

Estes sentimentos, ao longo da sua vida, puderam ainda ser

confirmados no soneto “Hora que Passa” em que diz o seguinte:

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“Vejo-me triste, abandonada, só/ bem como um cão sem dono e que o procura/ mais

pobre e desprezada do que Job/ a caminhar na via da amargura.”

Ou nos versos que se seguem:

“Eu sou a que no mundo anda perdida/ Sou a crucificada a dolorida/ e que o destino

amargo, triste e forte/ impele brutalmente para a morte/ alma de luto sempre

incompreendida/ sou aquela que passa e ninguém vê/ sou a que chamam triste sem o

ser/ sou talvez a visão que alguém sonhou/ alguém que veio ao mundo para me ver/ e

que nunca na vida me encontrou!”.

Assunção, não de um Eu sofredor, mas, de um Eu que é a própria

tristeza.

Ou nestes outros:

“Perdi os meus fantásticos castelos… Quis vencer, quis lutar, quis defende-los: Quebrei

as minhas lanças uma a uma!”.

Ou ainda:

“A minha Dor/ é um convento ideal/ Cheio de claustros, sombras, arcarias,/ Aonde a

pedra em convulsões sombrias/ Tem linhas dum requinte escultural. /Os sinos têm

dobres de agonias/ Ao gemer, comovidos, o seu mal…/ E todos têm sons de funeral/ Ao

bater horas, no correr dos dias…/A minha Dor é um convento. Há lírios/ Dum roxo

macerado de martírios,/ Tão belos como nunca os viu alguém!/ Nesse triste convento

aonde eu moro,/ Noites e dias rezo e grito e choro,/ E ninguém ouve… ninguém vê…

ninguém…”

O convento descrito parece ser o próprio mundo em que a poetisa vive.

Um mundo onde tudo é dor, que não a abandona nem a desilude.

A morte do irmão, segundo Florbela, apenas veio agravar o que sempre sentiu.

- Ao nível cognitivo: concentração diminuída, pensamentos recorrentes acerca da morte, tendo tentado o suicídio no ano transacto. No soneto “Pior Velhice” podem identificar-se outros pensamentos

acerca de si que não mencionou em consulta:

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“Sou velha e triste. Nunca o alvorecer/ Dum riso são andou na minha boca! / Gritando

que me acudam em voz rouca, / Eu, náufraga na vida, ando a morrer!”.

A crença de que é velha e triste.

Ou no poema “O que tu és”:

“És aquela que tudo entristece/ Irrita a amargura, tudo humilha/ Aquela a quem a mágoa

chamou filha/ a que aos homens e a Deus nada merece.”

A desvalorização e a frustração, acreditando que nada merece e não

vendo sentido em nada do que faça.

Ou ainda quando diz: “Até hoje, não há ninguém que de mim se tenha aproximado que não me tenha feito mal”.

Crença de que toda a gente lhe faz mal.

- Ao nível comportamental: choro, insónia, perda de peso, cefaleias,

consumo excessivo de tabaco (após a morte do irmão), astenia e apatia.

A única coisa que ainda faz é escrever.

- Ao nível social – isolamento social.

Florbela refere que, desde que se conhece, sempre foi triste e se sentiu

só.

O facto de não ter privado com a mãe biológica; o de nunca ter sido

reconhecida pelo pai, apesar de criada por ele; “de nunca se ter sentido

amada”; a falta de afectos desde tenra idade; a relação ambivalente com a

madrasta; o já se ter divorciado duas vezes; o não ter sido mãe; os abortos

espontâneos sofridos; a sua luta contra o autoritarismo masculino; o não ver a

sua escrita devidamente reconhecida e publicada; as críticas da sociedade à

sua poesia e à sua moral e a recente morte do irmão; para além do facto da

sua mãe biológica ter morrido com o mesmo problema que se diz que ela tem,

parecem resumir a história do seu problema actual “que sempre existiu” e que

apenas se agravou com a perda da pessoa e relação mais significativa para si,

o irmão.

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Refere que apenas vem à consulta pela insistência da sua amiga, não

acreditando ser possível qualquer mudança nos sentimentos e pensamentos

que traz consigo desde que nasceu e que fazem dela quem é.

Reforçou-se a sua capacidade de luta de alguns anos atrás, patente nos

versos que se seguem:

“Exaltação”

Viver!... Beber o vento e o sol!... Erguer

Ao Céu os corações a palpitar!

Deus fez os nossos braços para prender,

E a boca fez-se sangue para beijar!

A chama sempre rubra, ao alto, a arder!...

Asas sempre perdidas a pairar,

Mais alto para as estrelas desprender!...

A glória!...A fama!...O orgulho de criar!...

CHARNECA EM FLOR

Enche o meu peito, num encanto mago,

O frémito das coisas dolorosas...

Sob as urzes queimadas nascem rosas...

Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago

Em mim? Eu oiço bocas silenciosas

Murmurar-me as palavras misteriosas

Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,

Dispo a minha mortalha, o meu burel,

E já não sou, Amor, Soror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,

Boca a saber a sol, a fruto, a mel:

Sou a charneca rude a abrir em flor!

Neste último poema Florbela Espanca demonstra harmonia com o

mundo e ela própria (dispo a minha mortalha o meu burel…); procura esquecer

tudo que lhe fez mal na vida, desejando que onde haja cinzas, nasçam rosas, e

o que a fez chorar por muito tempo, seja apenas passado. A sua competência

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para a mudança foi reforçada, referindo-se-lhe que quem já conseguiu alguma

vez “apagar as lágrimas” dos olhos, poderá fazê-lo de novo.

Assegurou-se apoio incondicional e confiança na sua capacidade de

mudança.

Apresenta-se seguidamente a:

Discussão Diagnóstica

Segundo Florbela o seu diagnóstico médico é de neurose.

Efectivamente, a recolha de dados referentes à história do problema, à

história desenvolvimental e da sua vida pessoal e familiar parecem ser

consistentes com o quadro clínico de Perturbação Depressiva, recorrente,

grave (há um enorme défice do funcionamento pessoal e social) e com

características melancólicas, de acordo com os critérios definidos pela

Associação Psicológica Americana e que Florbela cumpre.

Para além disso, tendo em conta os parâmetros que se seguem:

1 - A definição de Perturbação de Personalidade – se refere a um

padrão estável de experiência interna e comportamento que se afasta

marcadamente do esperado para o indivíduo numa dada cultura, que esse

padrão é global e inflexível, estável ao longo do tempo e origina sofrimento ou

incapacidade;

2 - Que as manifestações das Perturbações de Personalidade são

frequentemente reconhecíveis na adolescência ou mais cedo, e continuam por

quase toda a vida adulta,

3 - Os critérios estabelecidos para o diagnóstico de uma Perturbação de

Personalidade; bem como

4 - Os dados obtidos através da entrevista e da escrita da cliente.

Parece-nos que, com a Perturbação Depressiva, Florbela deverá ter, em

simultâneo, um diagnóstico, compatível com uma Perturbação da

Personalidade, mais propriamente, Perturbação Estado Limite da

Personalidade.

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Este diagnóstico justifica-se se atendermos aos critérios definidos pela

Associação Psicológica Americana para esta Perturbação em que existe:

- Um padrão global de instabilidade nos relacionamentos interpessoais

(Florbela teve três namorados durante a adolescência, casou aos 19 anos e

divorciou-se duas vezes, referindo dificuldades relacionais com o actual

marido); auto-imagem e afectos (Florbela desvaloriza-se – “Eu sou a que no

mundo anda perdida/Eu sou a que na vida não tem norte” - constrói uma auto -

imagem a partir da solidão e da dor, ou “Agora vou andando e mendigando/Sem

que um olhar dos mundos infinitos/Veja passar o verme rastejando…” – revelando

sentimentos de inferioridade); impulsividade marcada (“Ó Mulher!...Como és

fraca e como és forte!/Como sabes ser doce e desgraçada!/… - mulher vista como um

ser cheio de contradições, vulnerável porque a sociedade não lhe permite

expressar-se e pune quem não se conforma. F.E., ao invés da submissão e

passividade, revolta-se e transgride valores – divórcios, abandonando o marido

para viver, só, em Lisboa, frequentando o curso de Direito, maioritariamente

masculino; revelando impulsos eróticos considerados imorais, através da sua

poesia como – “Anseio! Asas abertas! O que trago/Em mim? Eu oiço bocas

silenciosas/Murmurar-me as palavras misteriosas/Que perturbam meu ser como um

afago!/E, nesta febre ansiosa que me invade,/Dispo a minha mortalha, o meu burel,/E já

não sou, Amor, Soror Saudade.../Olhos a arder em êxtases de amor,/Boca a saber a sol, a

fruto, a mel:/Sou a charneca rude a abrir em flor!”); presente em diversos contextos

como indicado por 5 ou mais dos seguintes:

(1) Esforços desesperados para evitar o abandono real ou imaginado. (Há

uma busca constante do amor por parte de Florbela, o amor que nunca lhe foi

dado desde a infância – “Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar:

aqui...além.../Mais este e aquele, o outro e toda a gente..../Amar! Amar! E não amar

ninguém!)

(2) Padrão de relações interpessoais instáveis e intensas, caracterizado por

alternância entre extremos de idealização e de desvalorização. (como está

patente nos versos: “E nunca o encontrei!...Prince Charmant!/ Como audaz cavaleiro

em velhas lendas/Virá talvez nas névoas da manhã.”, ou em “Amar, Amar e não amar

ninguém”)

(3) Perturbação da identidade: instabilidade persistente e marcada da auto-

imagem ou do seu sentido de identidade. (“Num mundo de vaidades e pecados, sou

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mais um mau, sou mais um pecador” – eu masculino; ou “Sonho que sou alguém cá

deste mundo” – como se não existisse de facto)

(4) Impulsividade em, pelo menos, duas áreas que são potencialmente auto-

lesivas (por exemplo, gastos, sexo, abuso de substâncias, condução

negligente, voracidade alimentar – que ela exprime através da sensualidade e

erotismo presentes na sua poesia).

(5) Comportamentos, gestos ou ameaças recorrentes de suicídio, ou

comportamento auto - mutilante. (Tentativa de suicídio)

(6) Instabilidade afectiva devida a acentuada reactividade do humor (por

exemplo, episódios intensos de irritabilidade ou ansiedade, habitualmente

durando poucas horas e, só raramente, mais do que alguns dias). (Manifestada

em todos os relacionamentos).

(7) Sentimentos crónicos de vazio. (verbalizados em consulta)

(8) Raiva intensa e inapropriada ou dificuldades em controlá-la (por exemplo,

episódios frequentes de destempero, sentimentos constantes de raiva, brigas

recorrentes – manifestada em poemas como este “Sou como tu um cardo

desprezado/A urze que se pisa sob os pés, / Sou como tu um riso desgraçado! / Mas a

minha Tortura inda é maior:/Não ser poeta assim como tu és”- onde se revolta contra

uma sociedade que não a aceita como mulher escritora, uma sociedade

preconceituosa que não compreende a sua capacidade para transgredir regras

sociais, para, através da poesia, expelir os seus arrebatamentos sensuais,

exibindo erotismo).

(9) Ideação paranóide transitória reactiva ao stress ou sintomas dissociativos

graves (Obsessão pelas datas. Veja-se a data do primeiro casamento, que é a

mesma do seu nascimento, 8 de Dezembro, e a do suicídio, véspera do seu

aniversário, sendo enterrada igualmente a 8 de Dezembro).

Diversos autores têm procurado explicar a forma como as experiências

precoces na infância se transmitem ao longo da vida (working models (Bowlby,

1973); expectativas sobre o sujeito e sobre os outros (Sroufe, 1988); e

representações mentais.

Uma criança terá maiores probabilidades de desenvolver uma

representação positiva de si própria, na qual o seu Eu surge como valorizado e

merecedor de cuidados, quando as suas necessidades de proximidade

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emocional, de protecção e de segurança estão preenchidas existindo,

simultaneamente, suporte para uma exploração activa e autónoma do meio.

Contrariamente, quando as interacções precoces da infância são

caracterizadas por uma falta de adequação entre aquilo que são as

necessidades da criança e as respostas dadas pelas figuras cuidadoras, os

sujeitos poderão organizar modelos internos dinâmicos complementares em

que o Eu é visto como não desejado e sem valor e em que os outros são

perspectivados como indisponíveis, rejeitantes, ou abusadores (Bowlby, 1988;

Toth, Sheree, Cicchetti & Macfie, 2000).

As teorias que defendem os pressupostos acima denominam-se Teorias

da Vinculação. No presente estudo de caso, parecem de vital importância para

a compreensão do desenvolvimento da personalidade de Florbela que, na sua

infância, se viu criada por uma “mãe” adoptiva, sem conhecer durante vários

anos a mãe biológica e por um pai ausente e permissivo que não a reconheceu

como legítima. A madrasta tinha uma relação ambivalente com Florbela, ora

demonstrando-lhe afecto e satisfazendo todas as suas vontades, não lhe

estabelecendo limites, ora sendo exigente e distante.

A ausência da figura materna, que dá amor, contacto físico, segurança

que contribuem para a construção de um Eu forte e seguro, faz com que esta

criança organize modelos internos de abandono e rejeição que se vão

perpetuar ao longo de toda a sua vida e reflectir nas outras interrelações:

pessoais (com os maridos) e sociais (com a sociedade vigente). Também não

existia uma definição clara de limites. O ideal do Eu foi exacerbado, fazendo-a

procurar freneticamente o amor que nunca lhe foi dado. O pai esteve,

igualmente, ausente nos afectos, ao mesmo tempo que não a reconheceu

como filha. A tristeza instala-se desde muito cedo como se pode verificar

através do poema “A Vida e a Morte” que escreve aos oito anos de idade (data

da morte da progenitora).

Se atendermos à história de vida de Florbela Espanca e aos conceitos,

cientificamente comprovados, das teorias acima, é fácil compreender como se

formou a sua Personalidade perturbada.

Com o intuito de ajudar Florbela, faz-se a seguinte:

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Proposta de Intervenção Terapêutica

Vimos que a infância de Florbela é conturbada, cheia de abandonos e de

confusões nos afectos, de falta de limites, de excesso de responsabilização, de

emoções reprimidas, etc. O que deriva daqui? A construção de uma imagem

distorcida, de si, do mundo e dos outros, a construção de crenças que não

correspondem à realidade e que a conduzem a uma personalidade perturbada

e a levam à depressão.

O que, esquematicamente, poderia ser representado como segue:

Antes de intervir na perturbação da personalidade seria necessário

diminuir o sofrimento e os sintomas depressivos.

Assim, para a sintomatologia depressiva, foi proposto ajudar Florbela a

identificar e monitorizar os pensamentos automáticos negativos e a sua relação

com comportamentos e estados de ânimo (nomeadamente os que se referiam

à intenção suicida); a aprender a lidar com o luto do irmão; a pôr à prova e

validar os pressupostos subjacentes a pensamentos relacionados com humor

depressivo e auto - avaliações negativas; a gerar e praticar pensamentos

positivos alternativos; a programar actividades agradáveis; a programar tarefas

em casa; a elaborar um plano de compromisso para o desenvolvimento de

Experiência anterior real/Acontecimento (Abandono, falta afecto, ambivalência)

Formação de Suposições/Crenças Disfuncionais

(“Sou triste e velha”; “No mundo tudo é dor”; “Nada mereço”;

Ninguém ouve, ninguém vê” (a sua dor)

Incidente crítico - divórcios, abortos, morte do irmão…

Activação das Suposições/crenças – de abandono, de legitimidade da dor…

Pensamentos/Imagens mentais automáticas

Emoções – tristeza, melancolia, angústia…

Cognições – intenção suicida…

Comportamentos – tabagismo, tentativa de suicídio,

isolamento social...

Somatizações – dores de cabeça, insónias…

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actividades sociais e implementar um programa de treino de resolução de

problemas; a reflectir sobre os seus sentimentos e a verbalizá-los; etc.

A criação da aliança terapêutica, entre terapeuta/cliente, sofreu bastante

resistência por parte de Florbela, talvez, pela necessidade de aceitação

incondicional por parte da terapeuta, aceitação sobre a qual Florbela poderia

ter dúvidas e pelos esquemas de abandono que sempre a perseguiram.

Esta relação provavelmente nunca se consolidou, conforme veremos

mais adiante.

Sem se conseguir que Florbela altere as crenças, pensamentos e

comportamentos disfuncionais não se conseguirão resultados terapêuticos

positivos.

Florbela compareceu apenas a três sessões, para além das destinadas

à entrevista e à aplicação de testes, tendo procedido, no espaço de cerca de

dois meses, a mais três tentativas de suicídio, sendo a última das quais, fatal.

Ingeriu um frasco de “Veronal” e foi enterrada no dia do seu 36º aniversário

(informação que se veio a saber posteriormente).

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CONSIDERAÇÕES GERAIS

Florbela teve, de facto, todos os motivos para acreditar que “a dor” era a

única que permanecia e que nunca a desiludia.

Para que se compreenda melhor o que esteve subjacente à análise

psicológica efectuada, transcrevem-se, seguidamente, excertos dos livros “A

Vida Ignorada de Florbela Espanca”, de Maria Alexandrina, amiga de Florbela e

“Florbela Espanca” de Agustina Bessa Luís:

“Foi decerto este excesso de mimo, este receio infundado de contrariar a natureza

sensível mas dominadora de Florbela…” (Alexandrina, 1964, p. 27)

“Torna-se agressivo contra tudo e contra todos….A sua razão está aquecida por um

desgosto que o transtorna…” (Alexandrina, 1964, p.29) (A propósito do pai de

Florbela, após a “fuga” da mãe biológica com outra pessoa)

“Bem cedo aprende a esconder as lágrimas para dar alento ao irmão a quem amou com

maternal ternura” (Alexandrina, 1964, p. 35) (Aos 8 anos após a morte da mãe

biológica)

“Meiga mas impetuosa, honesta mas sensual, não foge à condição humana de ser

mulher, exigindo ao homem amado uma ternura igual à sua.” (Alexandrina, 1964, p. 42)

“Truz…truz…truz… Eu não tenho onde me acoite,/ Sou um pobre de longe, é quase

noite,/Terra, quero dormir, dá-me pousada!” (Florbela Espanca citada por Alexandrina,

1964, p. 190)

“No plano das sensações, Florbela é uma extravertida… Daí a sua necessidade em vestir

bem, em privar com gente distinta…” (Bessa-Luís, 1984, p. 12)

“O neurótico, se é um introvertido, liga-se firmemente a uma conduta fictícia. Essa

conduta fictícia é, para Florbela, a da amorosa.” (Bessa-Luís, 1984, p. 20)

“Donjuanismo. Era inevitável, com a atitude psicológica do pai a marcar-lhe a infância.

Florbela não esquece que a disponibilidade amorosa de João Espanca é o que ela mais

admira nele; constitui-se uma tremenda prova de independência e, portanto, de

interpretação da imunidade ao sofrimento.” (Bessa-Luís, 198, p. 31)

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“Durante toda a vida, há entre Florbela e o pai uma mensagem a que ela se acostuma

desde tenra idade. É uma mensagem de cólera… Ele dedica-se a negar essa hostilidade

perante os filhos… Tanto Bela como o irmão sabem que o pai vê neles os filhos da

traidora” (Bessa-Luís, 1984, p. 34) (Referindo-se à mãe biológica)

“Florbela precisa de sentir-se real no sofrimento que alimenta e que interminavelmente

ela deseja.” (Bessa-Luís, 1984, p. 48)

“O casamento está desfeito, a paixão não teve nunca companhia.” (Bessa-Luís, 1984, p.

53) (Refere-se ao primeiro casamento)

“O desencontro entre Bela e os homens parte daí: ela toma o sentimento por ideal, e

trata-se de uma obstinação apenas.” (Bessa-Luís, 1984 p. 65)

“É na liberdade moral e intelectual de Florbela que é preciso ir buscar a explicação da

sua insaciabilidade, da sua tristeza e do seu orgulho maltratado.” (Bessa-Luís, 1984, p.

75)

“As suas relações com os homens não estão exclusivamente dependentes duma libido

simplificadora. São relações sumamente egoístas, que se reportam à bem-aventurança

da primeira infância.” (Bessa-Luís, 1984, p. 79)

“Cada um dos casamentos de Florbela agrava o seu mal, produz um novo surto de

perversão que são os seus versos.” (Bessa-Luís, 1984, p. 92)

“O que mais impressiona em Florbela é a sua total submissão à imagem do pai… e, a par

disso, uma vida desgarrada de todo o constrangimento moral…” (Bessa-Luís, 1984, p.

102)

“O amor pela filha estaria sempre tocado da memória doentia daquela que um belo dia

saiu da sua casa para se juntar a outro homem.” (Bessa-Luís, 1984, p. 103) (Referindo-

se ao pai e à mãe biológica de Florbela)

“São sempre os que eu recordo que me esquecem…/Mas digo para mim: ‟não me

merecem…‟/E já não fico tão abandonada! /Sinto que valho mais pobrezinha:/Que

também é orgulho ser sozinha, /e também é nobreza não ter nada! (Espanca, citada por

Bessa-Luís, 1984, p. 103)

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“Florbela Espanca nasceu a 8 de Dezembro, casou pela primeira vez a 8 de Dezembro, e

morreu a 7 de Dezembro… A obsessão das datas é frequente nos tipos humanos

possuídos, no que se refere à imposição das realidades circundantes.” (Bessa-Luís,

1984, p. 105)

“Como sempre que a contrariam, mete-se na cama. Tem febre e intoleráveis dores de

cabeça; mas não lhe desagrada ver-se ao espelho, assim pálida e com olheiras…”

(Bessa-Luís, 1984, p.110)

“A apatia dos seus últimos anos culmina esse desejo obcecado de autopunição.

Casamento e divórcio são dois estados de crise da transferência do castigo e do prazer.”

(Bessa-Luís, 1984, p.119)

“Não é raro encontrar nos retratos de infância de Florbela a expressão de dureza própria

dos abandonados. „Queria tanto saber porque sou Eu!/ Quem me enjeitou neste caminho

escuro?/Queria tanto saber porque seguro/nas minhas mãos o bem que não é meu!‟

“(Bessa-Luís, 1984, p.121)

“Primeiro adoecia, quando se culpabilizava e queria ser amimada; depois traía, insultava

e…(Bessa-Luís, 1984, p. 122)

“A mãe Mariana era uma mulher mais opinosa do que justa, pronta para os gestos

impetuosos, desde que se tratasse de impor um modelo.” (Bessa-Luís, 1984, p.133)

“Bela escreveu a Julinha: “Eu sou insaciável; mal um desejo surge, mais outro desponta

em mim…” (Bessa-Luís, 1984, p. 151)

“Não creio que, em consciência, Bela se suicidasse, exceptuando um descontrolo de

todas as suas inibições. O suicídio é uma atitude activa, e foi isto o que ela sempre

evitou.” (Bessa-Luís, 1984, p.158) (Esta frase traduz a opinião da autora,

corroborada por outros estudiosos da vida de Florbela Espanca; no entanto, as

tentativas de suicídio foram reais. O último marido, médico, sempre afirmou

tratar-se de suicídio; mas a certidão de óbito refere edema pulmonar.)

“Mas a sua frase „Tenho imensa pena de lhe não poder dizer com verdade que sou feliz‟

descobre o panorama matrimonial que se repete: irascibilidade, desapego, frigidez,

deambulação.” (Bessa-Luís, 1984, p.174)

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REFLEXÃO FINAL

Ficaram respondidas as perguntas colocadas no início deste trabalho?

Ficamos a saber quem é Florbela Espanca?

É evidente que não. Esta é uma visão psicopatológica e todos os

diagnósticos são discutíveis, e também nos faltam dados.

A formação da sua personalidade é, igualmente, discutível. Há muitos

autores e muitas e diferentes teorias com possíveis explicações para a

formação da personalidade.

Mesmo assim, como se poderá explicar que uma criança de 8 anos

escreva um poema sobre “A Vida e a Morte”? É porque sofreu a perda da

mãe? Acontece o mesmo a imensas crianças. É um génio? É uma criança

sobredotada? Porque não supera a dor a vida inteira? Afinal é um génio ou

uma personalidade perturbada? Ou as duas coisas?

Como se verifica, não só não obtive as respostas que procurava, como

encontrei muitas mais perguntas. Convido, quem sabe mais do que eu, a

continuar a estudar esta mulher fascinante, sem dúvida muito à frente do seu

tempo, quiçá numa missão muito nobre que um véu de ignorância ou de

preconceito ainda não nos permitiu compreendê-la e fazer-lhe verdadeiramente

justiça.

O ser humano é de facto complexo e muito mais do que aparenta.

Para finalizar, deixo aqui um pequeno trecho que um “passarinho”,

chamado Florbela, me soprou ao ouvido:

“A beleza interna onde o Eu se esconde, essa sim, é poesia,

ensinamento impregnado de uma riqueza divinal onde nos perdemos para

encontrar a verdadeira identidade e razões de ser ou não ser?

O tendencial é julgar, esquecendo que quem julga também será julgado.

Mas isto é vida! Seja ela qual for… letrado, analfabeto, rei ou rainha, génio…o

importante é, aprender, para chegar à verdadeira evolução.”

Obrigada Florbela. Até qualquer dia…

Estudo de Caso

Manuela Rocha Santos SET/2011 Página 22

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