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LITERATURA DIGITAL: NARRATIVA HIPERTEXTUAL Bolsista de Iniciação Científica (2011-2012): Luy Braida Ribeiro Braga Orientador: Rogério de Souza Sérgio Ferreira Com o desenvolvimento das tecnologias da informação, nas sociedades modernas, o computador assumiu a liderança entre os meios de produção, edição e distribuição de textos. Além dos textos impressos, muitos são produzidos para serem lidos em meio eletrônico. No campo literário, obras desse tipo existem desde os anos 80, quando foram publicados os primeiros hipertextos literários, nos Estados Unidos, e proliferaram desde a difusão da internet, graças ao surgimento de portais literários e blogs. O computador se tornou um novo suporte literário, cujos principais traços distintivos são a velocidade do acesso às informações, a facilidade de conjugar mídias, devido à sua tradução em código binário, a localização rápida de fragmentos textuais; na internet, a publicação descentralizada, sem filtros editoriais, acadêmicos e jornalísticos, o rápido confronto do texto com outros textos e informações em diversas mídias, como vídeos e imagens, e a possibilidade de discutir o texto com outros leitores ao redor do mundo, inclusive com o próprio autor. Muitas vezes, a interface dessas obras não se diferencia tanto da forma impressa, sendo a especificidade do meio somente a agilidade de práticas que antecedem o computador e continuam a se realizar fora dele. Alguns estudiosos procuraram diferenciar essas obras que poderiam ser impressas de outras que usam recursos eletrônicos para alterar a execução de seus textos de maneiras que não poderiam ser reproduzidas no meio impresso. É nesse sentido que se estuda a categoria chamada de literatura eletrônica, a qual reúne uma variedade tão grande de textos que, para alguns, é impossível defini-la para além da exclusividade do suporte. A respeito da validade distintiva do termo “literatura digital”, também usado para essa categoria, o teórico Espen Aarseth (1999) afirma, em entrevista: “A não ser que fique claro para nós que isso só significa algo que, de alguma forma, é mediado por computador. Ser digital não significa muito em si mesmo; há tantos modos digitais de ser que isso nos diz muito pouco, em si mesmo. Existirem

Literatura digital: narrativa hipertextual

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LITERATURA DIGITAL: NARRATIVA HIPERTEXTUALBolsista de Iniciação Científica (2011-2012): Luy Braida

Ribeiro BragaOrientador: Rogério de Souza Sérgio Ferreira

Com o desenvolvimento das tecnologias da informação,nas sociedades modernas, o computador assumiu a liderançaentre os meios de produção, edição e distribuição detextos. Além dos textos impressos, muitos são produzidospara serem lidos em meio eletrônico. No campo literário,obras desse tipo existem desde os anos 80, quando forampublicados os primeiros hipertextos literários, nos EstadosUnidos, e proliferaram desde a difusão da internet, graçasao surgimento de portais literários e blogs. O computadorse tornou um novo suporte literário, cujos principaistraços distintivos são a velocidade do acesso àsinformações, a facilidade de conjugar mídias, devido à suatradução em código binário, a localização rápida defragmentos textuais; na internet, a publicaçãodescentralizada, sem filtros editoriais, acadêmicos ejornalísticos, o rápido confronto do texto com outrostextos e informações em diversas mídias, como vídeos eimagens, e a possibilidade de discutir o texto com outrosleitores ao redor do mundo, inclusive com o próprio autor.

Muitas vezes, a interface dessas obras não sediferencia tanto da forma impressa, sendo a especificidadedo meio somente a agilidade de práticas que antecedem ocomputador e continuam a se realizar fora dele. Algunsestudiosos procuraram diferenciar essas obras que poderiamser impressas de outras que usam recursos eletrônicos paraalterar a execução de seus textos de maneiras que nãopoderiam ser reproduzidas no meio impresso. É nesse sentidoque se estuda a categoria chamada de literatura eletrônica,a qual reúne uma variedade tão grande de textos que, paraalguns, é impossível defini-la para além da exclusividadedo suporte. A respeito da validade distintiva do termo“literatura digital”, também usado para essa categoria, oteórico Espen Aarseth (1999) afirma, em entrevista: “A nãoser que fique claro para nós que isso só significa algoque, de alguma forma, é mediado por computador. Ser digitalnão significa muito em si mesmo; há tantos modos digitaisde ser que isso nos diz muito pouco, em si mesmo. Existirem

obras digitais radicais significa que algumas obras sãomais radicais que outras, não que sejam mais digitais queoutras.”1 Ou seja, a classificação de uma obra literáriacomo eletrônica ou digital não significa nada além de tercomo suporte um computador – ou outro aparelho digital.Embora Aarseth acrescente que mesmo os recursosaudiovisuais e cinéticos não são exclusivos do meiodigital, usa um exemplo bastante limitado para demonstrá-lo: o de certos livros infantis que contêm som ou imagensque se mexem.

Pode-se, então, concluir que o meio digital, além depermitir a execução automática de certos procedimentos deleitura que poderiam, de fato, dar-se em meio impresso,ainda oferece vários tipos de transformação do texto econjugação com outras mídias que só são possíveis graças àcodificação da obra em um software; ou seja, à função deprogramação que se soma à do autor para produzir a obra. Àdefinição redutora de Espen Aarseth, então, junta-se aconclusão de N. Katherine Hayles (2007), compartilhadapelos estudos de outros teóricos: “Ao contrário de um livroimpresso, o texto eletrônico literalmente não pode seracessado sem o funcionamento do código. Críticos eestudiosos da arte e literatura digital deveriam, portanto,considerar apropriadamente o código fonte como parte daobra.”2 Essa conclusão, porém, não é suficiente paradiferenciar as obras que podem ser impressas das que não

1 AARSETH, Espen. Hypertext, Cybertext, Digital Literature, Medium: interview toRoberto Simanowski. Dichtung-digital: Journal für digitale Ästhetik,n. 7, 1999. Disponível em:[http://www.dichtung-digital.de/Interviews/Aarseth-16-Dez-99] Acesso:27/01/12. Texto original: “As long as we are clear that it only meanssomething that is, in some way, computer-mediated. Being digital doesnot signify much in itself; there are so many digital ways of being,that by itself it tells us very little. That there are radical digitalworks means that some works are more radical than others, not thatthey are more digital than others”. Essa e as demais citações emlíngua inglesa foram traduzidas por mim. 2 HAYLES, N. Katherine. Electronic literature: what is it? The ElectronicLiterature Organization, 2007. Disponível em:[http://eliterature.org/pad/elp.html] Acesso: 18/10/11. Textooriginal: “Unlike a print book, electronic text literally cannot beaccessed without running the code. Critics and scholars of digital artand literature should therefore properly consider the source code tobe part of the work”.

podem, nem implica em qualquer outra característica comumentre as que usam recursos exclusivos do meio.

Uma amostra da variedade da literatura eletrônica estánas duas coleções publicadas online (e em CD gratuito) pelaElectronic Literature Organization: o primeiro volume, em2006, e o segundo, em 2011. Além de índices por autor etítulo, há um índice por palavras-chave que classificatodas as obras das coleções por seus traços, inclusive osrecursos eletrônicos que utilizam. Entre os tipos detraços, há aspectos temáticos, como memórias e política,aspectos estilísticos e linguísticos, como apropriação detextos e narrativa, softwares e tipos de programas, comochatterbots e filmes textuais, e aspectos pragmáticos, comocolaboração de autores e interatividade. A variedade doíndice mostra que esses traços não servem para definir aliteratura eletrônica, nem mesmo para dividi-la em gêneros,pois dificilmente se encontram duas obras com o mesmoconjunto de traços. Assim como os sites informativos, redessociais, aplicativos e programas, as obras consideradasliterárias em meio eletrônico são feitas em diversasinterfaces e algoritmos, adicionando às mídias impressasmuitas outras ferramentas digitais para mostrar textos.

Ainda assim, algumas formas predominam entre essasobras, sendo tratadas em textos teóricos como se fossemgêneros textuais. N. Katherine Hayles, editora da primeiracoleção e membro da Electronic Literature Organization,descreve alguns desses gêneros em seu texto de introdução àliteratura eletrônica, Electronic literature: what is it? (2007),considerando o hipertexto como a forma “clássica”, queconsiste de divisões textuais chamadas de lexias,relacionadas automaticamente através de links, de forma quemais de uma ordenação entre elas seja possível. Outrosgêneros considerados são: a ficção em rede, que pode contero hipertexto, acrescentando recursos audiovisuais oucinéticos, inclusive transformações do texto; a ficçãointerativa, em que a ação do leitor influencia o desenrolarde uma história, possivelmente incluindo o acréscimo detexto ou colocando-o no papel de um dos personagens; asficções locativas, trabalhos que usam ferramentas como GPSde forma que só possam ser lidos em certas áreas do globo;instalações, que só podem ser lidas em ambientesespecíficos do globo; softwares gerativos, contendo

algoritmos que regulam a geração de um texto a partir deuma base de dados, seja apresentando todos os fragmentos emvárias combinações, ou uma combinação aleatória de algunsdeles; trabalhos em código, que tematizam a linguagemcomputacional ao expôr o código na interface, possivelmentemesclado à linguagem verbal; e poemas em Flash – um dossoftwares usados para criar animações, possivelmentedivididas como uma apresentação de slides, muitas vezespermitindo só uma ordem de visualização.

Enquanto essa exposição é útil por descrever asprincipais formas de literatura encontradas em meiodigital, sua terminologia carece de precisão, a começarpela validade da divisão em “gêneros” de fronteiras tãofluidas que a chamada ficção em rede, por exemplo, podeincluir hipertextos com ilustrações, transformaçõestextuais gerativas, além de ser lida em instalações. Ospróprios termos “ficção” e “poema” parecem ser usadosapenas devido à freqüência desses tipos, já que existempoemas em hipertexto e ficções em Flash – bem como umavariedade de combinações entre os dois. O termo “locativo”,que, nessa classificação, é tão periférico quanto“instalação” para descrever uma obra literária,restringindo-se ao local de recepção, acabou sendo ampliadocom o tempo, já que, no segundo volume da ElectronicLiterature Collection, descreve qualquer obra que usetecnologia locativa, inclusive mapas do Google.Naturalmente, o termo continua insuficiente para constituirum gênero, tratando-se antes de mais um recurso multimídiaque pode ser usado pelas obras em rede. “Interatividade” éoutro termo que mal pode constituir um gênero,frequentemente usado para caracterizar a simples escolha doleitor por qual link seguir em um hipertexto, impróprio paraespecificar se as ações do leitor alteram os eventos dahistória, se o leitor pode escrever seu próprio texto naobra – e se há restrições ao que pode escrever.

Além disso, nem o artigo de N. Katherine Hayles, nemos dois volumes da Electronic Literature Collection sepreocupam em distinguir entre literatura, arte digital ejogo, apenas refletindo a fluidez conceptual onipresentenas apresentações de obras desse tipo. O hibridismo entreessas categorias é desejável quando permite que uma obra

funcione bem em ambas, como é o caso de Entre ville3 (2006), deJ. R. Carpenter, em que um poema pode ser lido em umainterface de caderno, integrado a desenhos, fotos e vídeos,uma representação artística e literária da vida no bairroMile End, de Montréal. Algum nível de fusão entreliteratura e jogo está presente no próprio hipertexto;ainda mais em obras animadas em que o leitor assume umpapel de personagem – embora o exemplo mais citado, Façade4

(2005), de Michael Mateas e Andrew Stern, esteja muitoaquém de qualquer expectativa literária ou lúdica, falhandoem progressão e integração dos textos do leitor. Inúmerosjogos atribuem um papel central aos textos e histórias queos compõem, justificando certo grau de ambigüidade quanto asua classificação; porém, em termos pragmáticos, muitasvezes o objetivo predominante serve para diferenciar essascategorias. Conforme a divisão didática de MarkkuEskelinen5 (2004), a função primária do usuário de uma obraliterária é a interpretação; se em algumas obras ele tambémdeve configurar o texto, essa operação deve ser motivada,servindo à interpretação. Para esse teórico, certaliteratura experimental dificulta a ponto de impedir ainterpretação, ao passo que, em jogos e brinquedos, ainterpretação é uma função secundária, a serviço de outrasoperações do usuário. Levando em conta essa divisão, pormais esquemática que seja, é difícil considerar os chamados“jogos” presentes nas coleções como um tipo de literatura,muito menos os “brinquedos de palavras”, em que as palavrasdevem ser manipuladas em vez de lidas, assim como muitasoutras obras em que a função da linguagem verbal pareceapenas decorativa.

Eskelinen e outros ludólogos, ao argumentarem contra asubordinação dos jogos à literatura, contribuem para evitaro uso indiscriminado de termos literários em relação aos3 Disponível em[http://collection.eliterature.org/2/works/carpenter_entreville/index.html] Acesso: 20/10/11.4 Disponível para download em[http://collection.eliterature.org/2/works/mateas_facade.html] Acesso:20/10/11.5 ESKELINEN, Markku. Six problems in search of a solution: the challenge ofcybertext theory and ludology to literary theory. Dichtung-digital:Journal für digitale Ästhetik, n. 33, 2004. Disponível em: [http://dichtung-digital.mewi.unibas.ch/2004/3/Eskelinen/index.htm]Acesso: 01/11/11.

artefatos eletrônicos. Em seu artigo Six problems in search of asolution: the challenge of cybertext theory and ludology toliterary theory (2004), ele compara o objeto típico dateoria literária, o livro, às 575 outras alternativaspossíveis de se construir em meio digital, pelas diversascombinações de características variáveis. A questão sobre aviabilidade de se produzir literatura em todas essas formasnão é o foco dos ludólogos, mais interessados naspossibilidades de construção de jogos, simuladores einstrumentos para fins diversos. Essa mudança deperspectiva gerou certo esfriamento da teoria e produçãoliterária eletrônica, expresso em artigos de Nick Montfort6

(2000), Robert Coover7 (1999), Stuart Moulthrop8 (2004),entre outros, detectando a tendência “pós-narrativista” desubstituição do estudo do hipertexto pelo do cibertexto, umconceito mais abrangente, e deslocamento da ênfase dainterpretação para os jogos e brincadeiras eletrônicas.Mesmo os teóricos considerados “narrativistas”, como Marie-Laure Ryan9 (2000a; 2000b) e Janet Murray, passaram aestudar a possibilidade de aumento da capacidade imersivade narrativas construídas em realidade virtual, maissimuladoras do que interpretativas.

A mudança conceptual do hipertexto para o cibertextofoi uma valiosa contribuição teórica de Espen Aarseth, cujolivro Cybertext: perspectives on ergodic literature10 (1997)introduziu uma divisão categórica muito mais precisa do que

6 MONTFORT, Nick. Cybertext killed the hypertext star. Electronic Book Review,2000. Disponível em:[http://www.electronicbookreview.com/thread/electropoetics/cyberdebates] Acesso: 10/11/11.7 COOVER, Robert. Literary hypertext: the passing of the golden age.Atlanta, Georgia, 1999. Disponível em:[http://nickm.com/vox/golden_age.html] Acesso: 22/11/11.8 MOULTHROP, Stuart. From work to play. Electronic Book Review, 2004.Disponível em:[http://www.electronicbookreview.com/thread/firstperson/molecular]Acesso: 23/11/11.9 RYAN, Marie-Laure. Immersion and interactivity in hypertext. Dichtung-digital:Journal für digitale Ästhetik, n. 10, 2000. Disponível em: [http://dichtung-digital.mewi.unibas.ch/2000/Ryan/29-Maerz/index.htm]Acesso: 16/11/11.____. Narrative as puzzle: interview to Roberto Simanowski. Dichtung-digital: Journal für digitale Ästhetik, n. 10, 2000. Disponível em: [http://dichtung-digital.mewi.unibas.ch/Interviews/Ryan-29-Maerz-00/index.htm] Acesso: 06/12/11.

as suposições anteriores sobre a inovação da literaturadigital. Embora não caracterize toda a literatura digital,a propriedade textual definida por ele, o caráter ergódico,descreve os dois recursos eletrônicos que mais receberamatenção por seus efeitos literários: o hipertexto, quecondiciona a apresentação do texto às escolhas do leitor, eo gerativismo, que a condiciona às operações da máquina.Porém, essa propriedade não é exclusiva de obras digitais,tratando-se antes de um procedimento de uso de textosamplamente empregado desde o nascimento da escrita. Naintrodução de seu livro, Aarseth justifica a adoção doneologismo a partir de um termo da física derivado do gregoergon, trabalho, e hodos, caminho, para indicar o trabalhode construção física do objeto textual que se junta àfunção de interpretação do leitor. Já no capítuloTextonomy: a typology of textual communication, ele defineesse trabalho como a transformação entre dois níveis dotexto enquanto objeto: “séries [de sinais] como aparecempara os leitores e séries como existem no texto”11 (p. 62),chamando as primeiras de scriptons e as segundas de textons.Para que essa distinção não seja confundida com outrasdistinções, entre níveis de leitura ou entre código einterface eletrônica, o autor usa como ilustração uma obraimpressa experimental: “Em um livro como a máquina desonetos de Raymond Queneau, Cent mille milliards de poèmes (1961),em que o usuário dobra as linhas do livro para ‘compor’sonetos, há somente 140 textons, mas estes se combinam em100.000.000.000.000 scriptons possíveis”12 (p. 62). Ouseja, o texto ergódico se diferencia do não-ergódico poradmitir mais de uma combinação entre seus fragmentos –estes são chamados de textons, ao passo que cada combinaçãoé um scripton.

A combinação de textons, formando scriptons, é umprocedimento que pode ser regulado de muitas maneiras; esse

10 AARSETH, Espen. Cybertext: perspectives on ergodic literature.Baltimore, Maryland: The John Hopkins University Press, 1997.11 Texto original: “strings [of signs] as they appear to readers andstrings as they exist in the text”.12 Texto original: “In a book such as Raymond Queneau’s sonnetmachine Cent mille milliards de poèmes (Queneau 1961), where the user foldsthe lines in the book to ‘compose’ sonnets, there are only 140textons, but these combine into 100,000,000,000,000 possiblescriptons”.

conjunto de regras, ou mecanismo, é o que garante aidentificação do texto ergódico como uma unidade. Emprincípio, qualquer divisão de um texto (em linhas, emcapítulos, em parágrafos) facilita ao leitor a tarefa decombinar informações de maneira individual. Como narra JayDavid Bolter em seu livro Writing space: the computer,hypertext, and the history of writing13 (1991), o códicefoi uma das tecnologias de escrita inventadas parafacilitar ao estudioso a associação de um trecho textualcom quaisquer outros, lendo as páginas em diversas ordens.Para obras expositivas, filosóficas e científicas, nahistória da escrita foram criadas muitas maneiras defacilitar e guiar a leitura ergódica, como índices, notasde rodapé, notas marginais, remissões de uma página a outrae a ordem alfabética dos verbetes enciclopédicos, que tornasua estrutura de tópicos menos hierárquica. Sob essaperspectiva, a textualidade eletrônica foi mais umatecnologia que serviu para regular a leitura ergódica, como seu nível de algoritmos servindo como automatização deregras de formação de scriptons, permitindo-lhes maiorcomplexidade.

Essa tecnologia permitiu a execução de sete tipos derestrições, catalogadas por Aarseth. A determinação detornar o texto dinâmico, seja pela geração ilimitada descriptons (como em um chatterbot) ou a adição de textons pelousuário, se opõe à configuração estática, em que o númerode combinações é limitado pela fixidez dos textons. Outrapossível determinação é a de regras combinatórias,impedindo ou limitando a execução de procedimentosaleatórios de leitura; por outro lado, o meio eletrônicopermite aumentar a imprevisibilidade desses mesmosprocedimentos. A determinação da transiência diz respeitoao controle do tempo de exposição dos scriptons, quedificilmente se poderia executar por impresso14. Adeterminação de perspectiva força o usuário a assumir um

13 BOLTER, Jay David. Writing space: the computer, hypertext, and thehistory of writing. Hillsdale, New Jersey: Lawrence ErlbaumAssociates, 1991.14 A transiência impressa não é impossível, como mostram os exemplos dolivro de William Gibson, Agrippa (a book of the dead), publicado em 1992, eda antologia argentina El libro que no puede esperar, publicada em 2012, ambosimpressos com tinta fotossensível; o controle da extensão do tempo,porém, continua exclusividade do meio eletrônico.

papel no mundo de ações evocado pelo texto (nãonecessariamente fictício ou literário, a exemplo dasvisitas virtuais de museus). O acesso às lexias também podeser controlado, e o funcionamento dos links pode sercondicionado à visitação prévia de outras lexias, forçandoa restrição das possíveis seqüências textuais. Por fim, aatividade exigida do leitor admite grande variação, desdeescolhas obrigatoriamente aleatórias até um controle maisinformado da configuração dos scriptons, até ainterferência nos próprios textons ou algoritmos. São essassete variáveis que criam 576 possíveis combinações detraços, com um número expressivo de mídias alternativas aolivro que são exploradas em meio eletrônico em diversosusos.

Espen Aarseth diferenciou o hipertexto do cibertextobaseando-se nas funções ergódicas do usuário: enquanto otrabalho envolvido no primeiro é apenas de explorar um oumais dos possíveis scriptons, no segundo o usuário deve,além disso, reordenar ou criar novos textons. Ambos ostipos de textos existiam já antes dos computadores, mas nahistória da escrita foram usados principalmente para finsnão-literários; foram raros os exemplos de obras literáriasergódicas. Em seu livro Obra aberta: forma e indeterminaçãonas poéticas contemporâneas15 (2007 [1968]), Umberto Eco,além de tratar da abertura de interpretação e fruiçãoinerente à obra de arte e potencializada por certaspoéticas contemporâneas, já descrevia algumas obras de arteque poderiam ser chamadas de ergódicas. São obras musicais,plásticas e literárias caracterizadas por um componentecombinatório ou aleatório, justificando uma nomenclaturaespecífica: “induzindo-nos a reconhecer, no âmbito dasobras ‘abertas’, uma categoria mais restrita de obras que,por sua capacidade de assumir diversas estruturasimprevistas, fisicamente irrealizadas, poderíamos definircomo ‘obras em movimento’” (p. 50-51). À luz da teoria deAarseth, o termo escolhido por Eco não parece adequado, jáque uma variável do ergódico é justamente o seu caráterestático ou dinâmico, mas os exemplos mostram que eleestava tratando da mesma categoria.

15 ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticascontemporâneas. Trad. Giovanni Cutolo. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva,2007 [1968].

A textualidade ergódica, na literatura, porém, foigeralmente considerada experimental, já que se espera queos gêneros literários mantenham o caráter de unidade,diferentemente, por exemplo, de uma enciclopédia ou de umacoleção de provérbios. Uma coletânea de contos ou uma sériede histórias episódicas podem ser consideradas textosergódicos, mas não gêneros literários, a não ser que oeditor ou autor explicite uma proposta significativa para aordem escolhida. Esse problema também foi tratado por Ecoem seu livro, ao comparar as obras em movimento ao universoeinsteiniano, em que a indeterminação é um produto deprincípios fixados por um Deus que confere unidade ao todoe que “para a obra de arte [...] coincide com a obraordenadora do autor. Este [...] pode perfeitamente produzirem vista de um convite à liberdade interpretativa, à felizindeterminação dos resultados, à descontínuaimprevisibilidade das escolhas subtraídas à necessidade,mas esta possibilidade para a qual se abre a obra é tal no âmbitode um campo de relações” (p. 61-62). Sendo assim, mesmoque o autor de uma obra ergódica consiga rejeitar suafunção ordenadora, criando um mecanismo para que a escolhada primeira lexia à última seja totalmente aleatória, sefor uma obra literária, essa própria recusa serásignificativa.

Por outro lado, o conjunto gerado aleatoriamente nãoserá considerado uma obra literária, a não ser que mantenhauma “fisionomia de organismo” (p.63), como afirma Eco.Segundo o teórico, um dicionário, por exemplo, não é umaobra: “A abertura e o dinamismo de uma obra, ao contrário,consistem em tornar-se disponível a várias integrações,complementos produtivos concretos, canalizando-os a prioripara o jogo de uma vitalidade estrutural que a obra possui,embora inacabada, e que parece válida também em vista deresultados diversos e múltiplos” (p. 63). A textualidadeergódica não consiste necessariamente em extensão da“morte” do autor ou da liberdade do leitor, pois se trataapenas de uma categoria de recursos que um autor pode usarpara compor sua obra literária, possivelmente atualizandoas variações desejadas por ele e até restringindo as opçõesde subversão do leitor. A obra não-ergódica pode serescrita em um meio como o livro, em que o acesso a qualquerpágina é muito mais livre do que em certas obras ergódicas;

portanto, o que diferencia uma e outra não é aobrigatoriedade ou não de procedimentos de leitura, pois oleitor escolhe segui-los, em um caso ou outro. A diferençaé que, na obra não-ergódica, o autor propõe apenas umprocedimento – e, supostamente, garante a coerência internado scripton apresentado; ao passo que, na obra ergódica, oautor propõe, no mínimo, dois procedimentos, dois scriptonsa partir dos mesmos textons – e o leitor escolhe segui-losapostando na garantia de coerência interna. Em suma: atarefa de produzir literatura ergódica depende da criaçãode um conjunto motivado e coerente de textons eprocedimentos de combinação, uma garantia do autor de quesua máquina textual possa ser reconhecida como uma obra,quaisquer que sejam os scriptons.

Não por acaso, os experimentos com a literaturaergódica têm sido bastante raros e pouco conhecidos. Hámuitas motivações para o uso da variabilidade na obra, maso autor tem de lidar com a complexidade de sua execução,frente à expectativa básica de coerência que diferencia umgênero literário, como um poema, conto ou novela, de umdicionário ou coletânea. O ergódico é uma propriedadeinsuficiente para definir um gênero literário, tratando-seapenas de uma categoria de traços pragmáticos, mascertamente é suficiente para distinguir os gêneros queincluem essa propriedade daqueles que não a incluem.Poemas, contos, novelas não-ergódicos baseiam-se naexpectativa de coerência para apenas um scripton, enquantogêneros análogos a esses, porém ergódicos, precisam tambémde princípios combinatórios coerentes, para atender (oufrustrar significativamente) à expectativa de coerência emmais de um scripton. Esse acréscimo informacional pode sermotivado por uma poética de rejeição deliberada dacoerência, mas não necessariamente. O autor pode escolher oergódico para expôr aspectos convencionais ou arbitráriosda criação artística, desvencilhar a obra de suasmotivações inconscientes, delegar parte da autoria aoleitor, tornar partes e aspectos do texto mais ambíguos,ou, pelo contrário, direcionar a atenção do leitor paracertas relações e temas que perpassam seu texto.

A respeito da poética de Paul Valéry, Gérard Genette16

(1972) destaca sua atenção ao caráter combinatório de todacriação: “E Valéry sonha com um livro que, como modelo,denunciaria a convenção expondo em cada articulação a listadas virtualidades sacrificadas: ‘Talvez fosse interessantefazer uma vez uma obra que mostrasse, em cada um de seusnós, a diversidade que nesse ponto poderia surgir nopensamento, dentro da qual ele escolhe a seqüência única queserá dada no texto’” (p. 243-244). Não é difícil ver aí umadas principais motivações da obra ergódica. Também aoposição de Valéry à interpretação psicologista pareceantecipar o interesse pelo gerativismo eletrônico: “Não queo escritor esteja propriamente ausente de sua obra, mas[...] o autor só se torna autor quando deixa de ser homempara transformar-se naquela máquina literária, instrumentode operações e de modificações, a única que interessa aValéry. ‘Não se deve nunca passar da obra a um homem – masda obra à máscara e da máscara à máquina’” (p. 247). Oteórico da literatura gerativa Pedro Barbosa17 (1996)insere o uso de algoritmos para a geração aleatória natendência das poéticas modernas e contemporâneas devalorização do acaso. O uso da máquina seria uma tentativade simular a intuição, atingindo, porém, uma neutralidadeimpossível ao ser humano: “Mas a máquina, exactamente emvirtude da sua indiferença de máquina, será capaz, emcertos domínios, de nos auxiliar a ultrapassar as nossaspróprias limitações. A vantagem que ela tem sobre nós éprecisamente a de poder não ficar condicionada portradições lingüísticas, rotinas mentais, hábitosassociativos, preconceitos estéticos, inibições,recalcamentos e tabus de ordem psicanalítica ou mesmosocial” (p. 100). Ainda assim, o emprego da máquina ésomente metodológico, já que a geração depende de umrepertório limitado por escolhas humanas e, como descreve oteórico, muitas vezes inclui a posterior seleção humanadentre os resultados gerados automaticamente.

Um exemplo de uso do gerativismo aleatório é a obraPoemas no meio do caminho18 (2008), de Rui Torres. Trata-se de16 GENETTE, Gérard. A literatura como tal. In: ____. Figuras. Trad.Ivonne Floripes Mantoanelli. São Paulo: Perspectiva, 1972. 241-252.17 BARBOSA, Pedro. A ciberliteratura: criação literária e computador.Lisboa: Cosmos, 1996.18 TORRES, Rui. Poemas no meio do caminho. Telepoesis, 2008. Disponível em:

uma seqüência de oito poemas de apenas uma estrofe cada um,que pode ser lida em duas interfaces: horizontal evertical. A primeira é um panorama que pode ser percorridoem quatro direções, mostrando no centro cada estrofe comouma só linha, enquanto, acima e abaixo, variações de cadapoema são mostradas em outras linhas, por meio de umamudança automática dos substantivos, adjetivos, advérbios everbos. Apenas a estrutura sintática e gramatical de cadapoema se mantém, enquanto os itens lexicais mudam maisrápido do que o tempo de leitura de uma linha. O panoramainclui vídeos que são links para a execução de outrospanoramas. Assim, os poemas são dispostos em uma redehipermídia que ainda inclui falas sussurradas e músicas desuspense, também geradas aleatoriamente. Os poemas sãoambíguos, abstratos e, por vezes, metalingüísticos; emborasua versão central seja escolhida pelo autor, não implicaem um eu lírico, apenas justapõe conceitos. A atmosfera desuspense e abstração, evocada pelos gráficos e sons,corrobora a resistência das estrofes a uma interpretaçãocoerente: tem-se aqui o sentido mais amplo de obra aberta,em que a forma é suficientemente vaga para que cada leitorrelacione os fragmentos de texto como quiser. Além disso,porém, o recurso à variação rápida e aleatória das palavrasparece uma tentativa de forçar a exclusão da consciência deum autor implícito – mas só reforça a atmosfera deperplexidade e mistério criada pelo autor, pois a falta deum tempo para reflexão impede que o leitor atribua sentidoao texto. Assim sendo, a versão horizontal dos poemasproporciona uma experiência perturbadora da neutralidade damáquina, mostrando que a falta de integração da reflexão doleitor transforma palavras conhecidas em um códigoinescrutável.

A interface vertical, por outro lado, é uma obraaberta no sentido mais específico de integração do leitorcomo configurador dos scriptons, como se o autor tivessedeixado sua tarefa “no meio do caminho”. Embora ainda tenhamúsica e sussurros, a interface é simplificada, com o fundocinza e os oito poemas estáticos, dispostos em sequência nacoluna central. Assim como na versão horizontal, cada itemlexical pode ser substituído por um repertório devariantes, mas aqui a substituição é feita pelo leitor,

[http://telepoesis.net/caminho/index.html] Acesso: 05/10/11.

clicando nas palavras para que elas sejam automaticamentetrocadas pelas outras opções. Como não há uma ordem fixapara a apresentação das variantes, o componente aleatóriotambém está incluído nessa versão, mas de maneira quepossibilita ao leitor a geração de sentido, pois não hálimite de tempo para a configuração do texto. Assim, oleitor experimenta o papel de co-autor dos scriptonsfinais, já que há trilhões de textos possíveis – aquantidade exata de possibilidades é exposta abaixo de cadaestrofe, e muda a cada troca de palavras. Comoconfigurador, o leitor pode relacionar as palavras demaneira que façam sentido para ele; pode, inclusive,publicar sua versão automaticamente em um blog que é aterceira interface da obra. No entanto, sua experiência deautoria e de interpretação é claramente limitada pelorepertório e pelo algoritmo aleatório da obra, já que elenem tem acesso às listas de opções para escolher aspalavras. Sendo assim, embora a “fisionomia de organismo”dessa obra seja questionável – são poucas as regularidadesentre as oito estruturas sintáticas e a quantidadeestratosférica de poemas possíveis, publicadosindependentemente no blog – e experiência que elaproporciona é descritível: trata-se de uma simulação dalimitação e arbitrariedade inerente à criação estética,mostrando que o texto não depende unicamente da vontade doautor, como também de estruturas e repertórios disponíveisem sua mente em dado momento, além de fatores inconscientese circunstanciais.

O exemplo mostra que a principal contribuição dogerativismo para a literatura parece ser de ordemmetapoética. Ele explicita a parcela de acaso incluída naconcepção e na recepção de qualquer texto literário. Noentanto, sem a oportunidade de controle humano, esserecurso se limita à produção de textos caóticos,ocasionalmente curiosos pela rara geração de imagensinusitadas. Por isso, seu uso é mais produtivo como partedo processo de criação de textos líricos ou descritivos,mas não como fator determinante da produção de narrativas.Geradores de fábulas, como os apresentados por PedroBarbosa (1996), têm um interesse mais lingüístico e lúdicodo que literário. Estão, propriamente, entre aquelascategorias de textos que os ludólogos prefeririam não

subordinar aos padrões literários. Por outro lado, aestrutura em hipertexto, que força o leitor a escolher, emcertos pontos da leitura, entre mais de uma continuaçãopossível, embora amplamente utilizada para fins literários,pode ser tão problemática quanto os geradores. A supostaliberdade de que o leitor usufrui no hipertexto é limitadapela inevitável parcela do acaso também nessas escolhas, jáque ele não pode prever os resultados. Quanto menosindicações e sugestões do autor e maior a acessibilidadedas lexias, mais aleatória é a participação do leitor naconfiguração de um scripton, o que pode resultar em textosincoerentes, com alta carga cognitiva para o leitor, caso adiscrepância entre os textons seja muito grande. Por isso,sua eficácia como mídia narrativa depende de restriçõestextuais e maior controle do autor.

A imprevisibilidade provocada com geradores textuais éfrequentemente tomada como um traço do ergódico, inclusivena forma do hipertexto. Essa impressão se deve ao fato deque muitos autores publicam obras hipertextuais, inclusivenarrativas, cuja quantidade de scriptons possíveis é tãogrande, e a escolha do leitor tão aleatória, que se perdetoda a expectativa de coerência textual, restando somente arelação local entre cada duas lexias justapostas pelo link.Sem indicações do autor, restaria ao leitor esforçar-separa fazer sentido do texto fragmentário, mas essa tarefaperde o interesse quando a discrepância entre as lexias égrande demais. Por isso, teóricos do hipertexto como RobertCoover (1999), Roberto Simanowski19 (2000; 2002; 2007),Markku Eskelinen (2004), Marie-Laure Ryan (2000a; 2000b),Espen Aarseth (1997), entre outros, criticam certastentativas de produzir literatura ergódica. Coover sugere

19 SIMANOWSKI, Roberto. When literature goes multimedia: three Germanexamples. Dichtung-digital: Journal für digitale Ästhetik, n. 13,2000. Disponível em: [http://dichtung-digital.mewi.unibas.ch/2000/Simanowski/24-Aug/index.htm] Acesso: 23/11/11. ____. Hypertext: Merkmale, Forschung, Poetik. Dichtung-digital: Journalfür digitale Ästhetik, n. 24, 2002. Disponível em: [http://dichtung-digital.mewi.unibas.ch/2002/07-31-Simanowski.htm]Acesso: 01/09/11.____. What is and to what end do we read digital literature? Providence, RhodeIsland: Brown University, 2007. Disponível em: [http://dichtung-digital.mewi.unibas.ch/readingdigitalliterature/proceedings-Simanowski.htm] Acesso: 04/10/11.

que, especialmente com o uso da internet, de cibertextos ehipermídia, a ficção se beneficia menos do que a poesia: “Apoesia, de fato, prosperou neste novo meio, ainda mais quea ficção [...]. O modo narrativo, sendo um gesto literárioque tipicamente se move de A a B – a ‘proximidade’ dahistória – teve que lidar com a natureza paradoxalmentecontrária das redes multidirecionais da hiperficção, aopasso que o modo lírico, em que, tipicamente, um só assuntose torna o centro de muitas meditações periféricas,frequentemente achou essas redes muito compatíveis”20.Assim, embora ele considere que os primeiros hipertextosforam ficções bem-sucedidas, empregando a multilinearidadecomo recurso neo-realista análogo a memórias fragmentárias,reconhece que essa forma em rede, assim como outrosrecursos eletrônicos, atende melhor às expectativas dapoesia que da narrativa.

Simanowski (2000), em resposta ao texto de Coover,demonstra, por meio de exemplos de ficção alemã, que ahipermídia em si não é empecilho para a qualidadeliterária, mas que esta depende de um maior controle doautor sobre os scriptons possíveis. Ele termina definindoas tarefas do autor e do leitor desse tipo de literatura:“Pode haver substância por trás do espetáculo, a atração daestética técnica pode ser combinada com a atração dosignificado mais profundo. A tarefa do autor deveria ser defacilitar essa oscilação entre o nível técnico e osemântico. A tarefa do leitor é de pensar duas vezes, paracompreender e reconhecer a intenção do autor”21. Ou seja, oesforço esperado do leitor subentende uma intenção doautor, para quem o resultado da obra literária ergódica nãoprecisa ser imprevisível. Markku Eskelinen (2004), ao

20 Texto original: “Poetry has indeed prospered in this new medium,even more than fiction […]. The narrative mode, being a literarygesture that typically moves from A to B — the ‘nextness’ of story —has had to cope with the paradoxically contrary nature of themultidirectional webworks of hyperfiction, while the lyrical mode, inwhich typically a single subject becomes the center of many peripheralmeditations, has often found those webworks most congenial”.21 Texto original: “There can be substance behind spectacle, theattraction of technical aesthetics can be combined with the attractionof deeper meaning. The task of the author should be to facilitate thisoscillation between the technical and semantical level. The task ofthe reader is to think twice in order to comprehend and acknowledgethe author's intention”.

analisar as determinações variáveis catalogadas no livro deEspen Aarseth (1997), observa que a tentativa de produzirnarrativas nas centenas de mídias possíveis muitas vezesimplica em radical reformulação da narratividade, o quepode exceder a capacidade humana de compreensão e atenção:“Os artifícios narrativos mais ou menos hipotéticos queesboçamos antes poderiam facilmente ser usados paracomplicar e ‘desfamiliarizar’ o texto a todo extremo, masesse não é o único e, provavelmente, não é o melhor usodessas relativas novidades”22. Para que essas obras nãodeixem de ser narrativas, o uso de quebras das convençõesdeve ser claramente motivado, além de ser contrabalançadopela manutenção de algumas convenções e de unidadestemáticas, ou seja, deve ser controlado pelo autor.

A teórica da narrativa Marie-Laure Ryan faz críticassemelhantes aos excessos da narrativa ergódica em seuartigo Immersion and interactivity in hypertext (2000a), constatandoque o aumento da descontinuidade resulta em menornarrabilidade, pelo impedimento de três tipos de imersão:temporal, espacial e emocional. A bifurcação da história emmúltiplos desenvolvimentos paralelos, por exemplo, pode setornar irrelevante: “De dois a quatro finais diferentes,uma estrutura facilmente realizada por impresso, porexemplo, receberá séria consideração individual, e osvários resultados vão incentivar a comparação; sessenta equatro finais apenas transmitem a mensagem de que ‘hámuitos finais possíveis’, e cada um deles está perdido namultidão”23. Quanto à evocação de um espaço da história,muitos hipertextos se limitam a representar uma noção de“espaço pós-moderno”, forçando o leitor a vagar sem rumopor um mundo incoerente, com bruscas interrupções dehistórias, trocas de personagens e motivações. Quanto àimersão emocional, ela endossa uma crítica que atribui aJanet Murray, de que a ficção hipertextual, quando permite

22 Texto original: “The more or less hypothetical narrative devices wedrafted earlier could easily be used to complicate and defamiliarizethe text to every extreme, but that’s not the only and probably notthe best use of these relative novelties”. 23 Texto original: “Two to four different endings, a structure easilyrealized in print, will for instance receive serious individualconsideration, and the various outcomes will invite comparison; sixty-four endings only convey the message ‘there are lots of possibleendings,’ and each of them is lost in the crowd”.

que a história tenha várias continuações possíveis,favorece uma visão cômica da vida, afastando airrevogabilidade do tempo e da morte. Ryan critica apretensão das primeiras teorias do hipertexto literário, deque este fosse uma nova forma de romance, levando àprodução de obras excessivamente longas; são tão somenteromances dificultados pela fragmentação e desordem das suaspartes. A expectativa básica de um romance, de umaestrutura narrativa global, apenas gerou a frustração dosleitores, em vez de direcioná-los para as qualidadespoéticas e estilísticas de cada lexia. Segundo Ryan,portanto, em vez de narrativas longas, que não se comparamà qualidade de romances não-ergódicos, o hipertexto deveriase especializar em três caminhos concomitantes: a ênfase naindependência de cada lexia, contendo poemas, aforismos,anedotas e narrativas curtas; a integração multimídia,contribuindo para aumentar a imersividade, especialmenteespacial; e o hibridismo com a arte conceptual, favorecendoa metalinguagem. A imersividade espacial poderia servirpara contrabalançar os efeitos da fragmentação do texto; noentanto, a restrição do conteúdo das lexias a textospoéticos ou narrativos independentes equivale ao abandonoda possibilidade de produção de uma narrativa ergódica. Umacoletânea de contos não é uma narrativa; se cada lexia éuma obra auto-contida, cada uma é uma obra não-ergódica, emvez de textons de uma só obra literária.

Muitas obras eletrônicas são bem-sucedidas ao integraruma coletânea de contos, aforismos, anedotas ou poemas auma rede hipermídia; um exemplo é Like stars in a clear night sky24

(2006), de Sharif Ezzat, panorama de um céu noturno em quenove das estrelas brilhantes são ícones para curtos poemasprosaicos, com histórias de família e reflexões sobre avida, tendo ao fundo uma música tranquila. Outro exemplo,In absentia25 (2008), de J. R. Carpenter, chega perto derealizar o ideal hipertextual de Marie-Laure Ryan, queescreve em seu artigo: “Não consigo pensar em um modo maiseficiente de celebrar o espírito de um lugar do que umarede interativa bem delineada que combine imagens commúsica, poemas, pequenos textos em prosa, mapas e24 Disponível em[http://collection.eliterature.org/1/works/ezzat__like_stars_in_a_clear_night_sky.html] Acesso: 10/02/12. 25 Disponível em [http://luckysoap.com/inabsentia/] Acesso: 06/10/11.

documentos históricos”26. A interface dessa obra é umavista de satélite da cidade de Montréal, via Google Maps,apresentada em seis configurações diferentes de fotos eícones com pequenos textos em prosa, de diferentes autores,em inglês e francês; são episódios ficcionais e memoriaissobre as mudanças da vida no bairro de Mile End emdecorrência do processo de gentrificação. Assim, acoletânea “celebra o espírito de um lugar” refletindo sobreo impacto cultural e pessoal de decisões político-econômicas. Outra obra que explora a vinculação de pequenostextos a lugares específicos, reais e virtuais, é Logozoa27

(2006-2009), de Robert Kendall, cujo título é explicadologo na página inicial pela comparação de vários tipos deaforismos com organismos vivos. Os 379 “logozoa” escritospelo autor podiam ser baixados e impressos como adesivosque os leitores colavam em qualquer parte do mundo – fosseum ponto turístico, um canto qualquer que fizesse parte doseu cotidiano ou lugares virtuais – e fotografavam, com aintenção explicitada pelo autor de “infestar o literal commetáfora”. Essa coleção de 1153 fotografias textuais,formada entre 2006 e 2009 por diversas pessoas, inclusive opróprio autor, está reunida em uma parte do site chamadaLogozoo, dividida em “habitats” que são locais de diversascidades ao redor do mundo, incluindo também dois sites e oinferno de Dante Alighieri. Esses três exemplos de textosergódicos em meio eletrônico, embora promissores pelo bomuso da hipermídia, não são, porém, exemplos de narrativasfragmentadas e reordenáveis.

Para Espen Aarseth (1997), pode existir ficçãoergódica, mas não narrativa ergódica. Os exemplos dehipertextos narrativos não seriam propriamente narrativos,pois o ergódico seria para ele um terceiro modo derepresentação, paralelo à descrição e à narração: “emboracertamente haja narração (relação de eventos) no texto,isso não é o mesmo que uma narrativa”28 (p. 89). Ele chegaa essa conclusão ao analisar um dos primeiros hipertextos

26 Texto original: “I cannot think of a more efficient way to celebratethe spirit of a place than a well-designed interactive network thatcombines images with music, poems, short prose texts, maps, andhistorical documents”.27 Disponível em [http://logozoa.com/] Acesso: 11/10/11.28 Texto original: “although there certainly is narration (relation ofevents) in the text, that is not the same as a narrative”.

literários, Afternoon (1990), de Michael Joyce, não obstantecontinue a chamá-lo de romance hipertextual; segundo oteórico, essa obra usa o hipertexto para “alienar o leitor[…]. O hipertexto engajado rapidamente se transforma em umlabirinto denso, multicursal, e o leitor fica nem tãoperdido quanto capturado, aprisionado pelos caminhosrepetitivos, circulares e suas próprias escolhasimpotentes”29 (p. 91). A descrição mostra que o modelo dehipertexto analisado por Aarseth é caracterizado pela altaimprevisibilidade dos scriptons, formados por escolhas“impotentes” dos leitores, que sentem dificuldade deapreender o sentido do todo pela sensação de falta dealgumas partes, uma propriedade que ele chama de “aporiahipertextual” (p. 91). Por outro lado, durante a leitura,alguns detalhes inesperados podem esclarecer o sentido dotexto, constituindo uma epifania; assim, a dinâmica básicade um hipertexto seria a de um jogo de busca e encontro.Isso é suficiente para Aarseth identificar o ergódico comouma forma diversa da narrativa, marcada por uma“desfiguração desestabilizante” (p. 93) que impede o leitorde acessar uma narrativa coerente. Ele sugere, então, que ohipertexto é um “jogo de narração” (p. 94), embora não umaanti-narrativa, já que sua estrutura de aporia e epifania“gera narrativas quando experimentada” (p. 94). Por maisadequada que essa descrição seja ao modelo apresentado,porém, ela generaliza indevidamente a falta de controle doautor sobre a coerência dos scriptons sugeridos, traço quenão é essencial à narrativa ergódica. A produção de umtexto repetitivo e circular é antes uma decisão do autor doque uma determinação da mídia. Além disso, o caráterergódico de um texto é um aspecto pragmático que não secompara aos tipos de textos, narração e descrição; aoposição que ele faz desse procedimento de leitura à formanarrativa carece de uma análise do que constitui umanarrativa.

Em entrevista, Marie-Laure Ryan (2000b) explica que épossível haver narrativa ergódica, mas não em quaisquercondições. Em primeiro lugar, um hipertexto pode terdiferentes regras de leitura, estabelecidas por indicações29 Texto original: “alienate the reader [...]. The engaged hypertextquickly turns into a dense, multicursal labyrinth, and the readerbecomes not so much lost as caught, imprisoned by the repeating,circular paths and his own impotent choices”.

do autor ou pela estrutura da obra. Assim como ocorre com ocódice, o acesso ilimitado a todas as lexias de umhipertexto não significa que o procedimento de leitura deveser aleatório; assim como a ordem das páginas, notas derodapé, índices e outros recursos usados pelo autor de umlivro, no hipertexto o autor pode sugerir ou até determinaralguns percursos em detrimento de outros. Além disso, podesugerir que o scripton formado contenha todas as lexias, emmais de uma seqüência possível, ou que cada scriptonselecione uma parte dos textons disponíveis. Essa escolha,no caso da narrativa, implica em decidir se a mudança noscripton implica ou não em mudança da história. A básicadistinção teórica entre história e discurso remonta,segundo Tzvetan Todorov30 (2009 [1966]), à retóricaclássica, e foi retomada pelos formalistas russos peladistinção entre fabula e sujet. Como explica MichaelScheffel31 (2010), embora a extensão e as subdivisõesdessas categorias tenham variado bastante na teoria danarrativa, persistiu a divisão entre a história que anarrativa evoca imaginativamente, ou seja, eventos eexistentes, personagens e mudanças em um mundo possível, eo discurso apresentado ao leitor por alguma linguagem. Comoobserva Roberto Simanowski (2002), embora a narrativaergódica, evidentemente, permita a formação de mais de umdiscurso, muitas vezes não permite a evocação de mais deuma história, e assim grande parte da teoria literária seaplica tão bem a essas narrativas quanto às não-ergódicas.

A narrativa como categoria analítica ganhou atenção apartir dos estudos dos estruturalistas, que passaram a usá-la como denominador comum de uma variedade enorme demanifestações culturais. No primeiro parágrafo de suaIntrodução à análise estrutural da narrativa32 (2009 [1966]), RolandBarthes lista vários meios, códigos e gêneros de artefatos30 TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: BARTHES,Roland et al. Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia BarbosaPinto. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009 [1966]. 218-264. 31 SCHEFFEL, Michael. Narrative Constitution. In: HÜHN, Peter et al.(ed.). The living handbook of narratology. Hamburg: Hamburg University Press.Última modificação: 16/05/10. Disponívelem [hup.sub.uni-hamburg.de/lhn/index.php?title=Narrative Constitution&oldid=827] Acesso: 19/06/12. 32 BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In:____ [et al.]. Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia BarbosaPinto. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009 [1966]. 19-62.

e atividades em que se pode encontrar a narrativa,acrescentando afirmações abrangentes como “a narrativa estápresente em todos os tempos, em todos os lugares, em todasas sociedades [...]; a narrativa está aí, como a vida” (p.19). Com o prosseguimento dos estudos narratológicos, oconceito e o termo foram estendidos a quase todas asciências humanas, caracterizando, em seu sentido maisabrangente, um modo de pensar, como explica Marie-LaureRyan no artigo Narrativity and its modes as culture-transcendinganalytical categories33 (2010). Assim como a narração, na teorialiterária, se distingue da lírica, da descrição, dacaracterização, enquanto tipos de textos, também aconcepção da narrativa enquanto modo de pensar se opõe, porexemplo, à representação estática e à manipulação deabstrações. Ryan afirma que a narrativa “lidaexclusivamente com entidades concretas, que são chamadas depersonagens, eventos e cenários”34 (p. 312); por isso, suamanifestação mais primitiva é a representação mental davida, como as memórias, interpretações de eventos e ficçõesmentais. Por isso, curiosamente, embora tenha incluído aimagem estática entre as mídias narrativas possíveis,Barthes não incluiu a música instrumental. A análise de umacadeia sonora não-linguística como narrativa, de acordo comRyan35 (2012a), é uma extensão metafórica dessa categoria,baseada em semelhanças formais como sequencialidade eritmo, insuficientes para diferenciar a narrativa de outrasatividades mentais.

Assim, a mínima definição da narrativa é como umarepresentação metonímica da vida em seu aspecto concreto edinâmico, distinta de representações metafóricas, abstratasou estáticas, com variados graus de referência ao mundoreal. O subconjunto dos objetos semióticos que a evocam é ofoco da teoria da narrativa, representado por Ryan (2010)através de um diagrama em que esses objetos podem se33 RYAN, Marie-Laure. Narrativity and its modes as culture-transcending analyticalcategories. Japan Forum, 21(3), 2010. p. 307–323. Disponível em[http://users.frii.com/mlryan/japantext.pdf] Acesso: 02/08/12.34 Texto original: “deals exclusively with concrete entities, which arenamed characters, events and settings”.35 ____. Narration in Various Media. In: HÜHN, Peter et al. (ed.). Theliving handbook of narratology. Hamburg: Hamburg University Press. Últimamodificação: 13/01/12. Disponívelem [http://hup.sub.uni-hamburg.de/lhn/index.php/Narration_in_Various_Media] Acesso: 24/06/12.

situar, independentemente, nos campos da arte e dalinguagem. Além disso, essa teoria foi desenvolvida pelosestruturalistas através da análise da interseção entreesses campos, nos textos narrativos literários, sobinspiração da lingüística. Por isso, sua definição maisespecífica de uma narrativa é como um tipo de discurso queevoca uma história. Para Ryan (2010; 2012a), a linguagem éde fato o meio semiótico preferencial da narrativa, o únicocapaz de atender a todas as condições de identificação deuma história, enquanto outras mídias e artefatos contribuemapenas para atender a algumas delas. Essas condições nãosão todas necessárias para a classificação de um objetocomo narrativa, mas são hierarquizadas, definindosubconjuntos de histórias cada vez mais prototípicas. Porisso, além da categoria narrativa, os teóricos lidam hojecom a propriedade escalar da narratividade; quanto maisatende às condições esperadas para a construção mental deuma história, maior narratividade tem um objeto semiótico,como explica H. Porter Abbott36 (2011).

Segundo Ryan (2010), pressupondo a condição maisbásica de narratividade, que é a de evocar um espaço compersonagens, espera-se que a história apresentetransformações significativas e excepcionais nesse mundo.Os atributos de relevância e singularidade dos eventos deuma história definem a propriedade da narrabilidade, que adistingue de uma narração processual, de eventos comuns erepetitivos. Segundo Hühn (2011), a singularidade doseventos é essencial à noção de enredo, que Todorov37 (1970)define minimamente como a passagem de uma situação deequilíbrio a um desequilíbrio, seguido de um novoequilíbrio, ou seja, “um processo de degradação e umprocesso de melhora” (p. 88). No entanto, a identificaçãode relevância ou desequilíbrio varia em relação aos mundospossíveis que cada história evoca. Ryan38 (2012b) explica36 ABBOTT, H. Porter. Narrativity. In: HÜHN, Peter et al. (ed.). Theliving handbook of narratology. Hamburg: Hamburg University Press. Últimamodificação: 13/08/11. Disponívelem [http://hup.sub.uni-hamburg.de/lhn/index.php/Narrativity] Acesso:12/06/12.37 TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés.2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1970. 38 RYAN, Marie-Laure. Possible Worlds. In: HÜHN, Peter et al. (ed.). Theliving handbook of narratology. Hamburg: Hamburg University Press. Últimamodificação: 02/03/12. Disponível

que a teoria dos mundos possíveis concebe a realidade comoa soma do factual com o imaginável. Em uma história, omundo dos eventos atualizados é paralelo aos mundos deexpectativas, planos, crenças e desejos dos personagens, eo enredo consiste no contraste entre esses mundos, variávelao longo da história. Por isso, a narratividade aumenta sea história tiver uma dimensão mental, apresentando asreações emocionais de personagens inteligentes, ainda maisse alguns dos eventos forem ações intencionais, condiçõesque vinculam a narratividade ao uso da linguagem. Por fim,as condições mais específicas de reconhecimento de umahistória são: a causalidade conduzindo a uma resolução, ocaráter objetivo de alguns eventos no mundo da história eseu aspecto pragmático de interesse para o público. Essaúltima característica é descrita por Todorov como“suplemento, que fica fora da forma fechada” (p. 130) e “étambém uma falta” (p. 131) de toda narrativa, fazendoperpetuamente necessária sua inclusão e relação com outrasnarrativas e outros discursos.

Embora o foco na narratividade escalar seja umdesenvolvimento recente dos estudos da narrativa, aconcepção da narrativa como a predominância da narraçãosobre outros tipos de texto que a compõem já estavapresente nos formalistas russos, segundo Abbott (2011), e éestudada por Gérard Genette no artigo Fronteiras da narrativa39

(2009 [1966]). Nesse artigo, o teórico observa que “é maisfácil descrever sem narrar do que narrar sem descrever” (p.273) e conclui que a descrição, seja para a apresentação deespaços e objetos, seja para a caracterização depersonagens, ou alguma outra finalidade, não é umrompimento da narração, e sim um de seus aspectos. Tanto adescrição quanto a narração são usadas na narrativa pararepresentar estados simultâneos e sucessivos, sendo adiferença entre elas apenas de conteúdo. Por outro lado,Abbott cita a teoria de James Phelan, de que anarratividade seria um modo de dominância em contraste coma “liricalidade, em que o dominante é ‘uma emoção, umapercepção, uma atitude, uma crença’ ou alguma forma de

em [http://hup.sub.uni-hamburg.de/lhn/index.php/Possible_Worlds]Acesso: 25/06/12. 39 GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In: BARTHES, Roland et al.Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. 6ª ed.Petrópolis, RJ: Vozes, 2009 [1966]. 265-284.

meditação; e a caracterização, em que o dominante é arevelação de caráter”40, admitindo a possibilidade detextos híbridos, cuja identificação em um ou outro mododepende do foco do leitor. Assim, a narratividade de umtexto é maior quanto mais claramente seu aspecto lírico e acaracterização dos personagens são subordinados àconstrução do enredo.

A noção de enredo, embora freqüente na teoria danarrativa, não é uma dimensão bem delimitada desse objeto,não se restringindo a um componente da história ou dodiscurso; parece ser antes um princípio de organização queconfere unidade à obra, em ambos os níveis. Sua definição écomplicada pela variedade de descrições da constituiçãonarrativa na história da teoria literária. Michael Scheffel(2010) explica que a conhecida distinção de E. M. Forsterentre story (história) e plot (enredo) não corresponde àdistinção dos formalistas russos entre fabula e sujet; esta,por sua vez, é apenas uma parte da distinção dosestruturalistas entre histoire (história) e discours(discurso), que prevaleceu na narratologia. Embora ostermos russos tenham sido usados com diversos sentidospelos formalistas, popularizou-se a definição deTomachevskiy, da fabula como a cadeia causal e temporal deeventos e do sujet como a seqüência e conectividade em queos mesmos eventos são apresentados no texto. Forster, porsua vez, distingue a história do enredo somente peladiferença entre o encadeamento temporal e a relação decausalidade, ambos contidos na definição de fabula. Já oconceito estruturalista de história é ainda mais abrangenteque o da fabula, incluindo não somente a seleção de eventosrelacionados, como todo o mundo em que eles acontecem. Oconceito estruturalista de discurso também difere do sujetporque não se restringe à ordem de apresentação doseventos, mas inclui todos os aspectos do texto narrativo,como perspectiva, estilo, tipo textual, entre outros.

Forster usa como exemplo de enredo a seqüência “O reimorreu, e depois a rainha morreu de desgosto”41,assinalando que a referência ao desgosto da rainha é o quediferencia uma seqüência causal da mera seqüência temporal40 Texto original: “lyricality, in which the dominant is ‘an emotion, aperception, an attitude, a belief’ or some form of meditation;and portraiture, in which the dominant is the revelation of character”.41 Texto original: “The king died, and then the queen died of grief”.

das duas mortes. Essa causalidade, porém, é estabelecida,primeiramente, pelo acréscimo de um evento à história, opesar sentido pela rainha, e não pela ordem em que os trêseventos aparecem no texto. Se essa história mínima fossecontada como (1) “A rainha morreu porque estava sofrendomuito desde a morte do rei”, (2) “A rainha, por causa deseu grande sofrimento, acabou morrendo; sofria assim desdea morte do rei” ou (3) “O rei morreu, deixando a rainha comum enorme pesar, até que ela também morreu”, a causalidadeentre os eventos seria a mesma. Logo, a definição queForster expõe do enredo é insuficiente para analisar aconectividade estabelecida pelo discurso, tratando apenasda composição da seqüência da história pela seleção dealguns eventos em detrimento de outros.

Segundo Scheffel, outras descrições da constituição danarrativa foram feitas, chegando ao modelo mais sintético ecompleto de Wolf Schmid, desenvolvido no início dos anos de1980. O teórico divide a narrativa em quatro níveis decomposição: o primeiro, Geschehen, é o mundo de eventosimplicados, do qual se faz a seleção daquela série temporale causal que compõe a história, ou Geschichte; em seguida,vem o resultado da disposição dos eventos em uma ordemartificial, Erzählung, e, por fim, a sua representaçãosemiótica, Präsentation der Erzählung, o nível diretamenteacessível ao receptor. Essa divisão mostra que a composiçãomínima de uma narrativa literária vai muito além da escolhade uma história relevante em que se passa de um equilíbriopara um desequilíbrio, ou deste para um novo equilíbrio. Atransformação de eventos em história, sejam eles fictíciosou não, já é um trabalho semiótico do autor, mas, alémdisso, é necessário transformar a história em discurso. Se,para o leitor, tal discurso deve permitir o acesso àhistória que se forma mentalmente durante a leitura, tambémse espera que sua própria composição seja significativa.Por isso, Abbott (2011) cita a teoria de Marie-Laure Ryan,segundo a qual há uma narratividade da história e umanarratividade do discurso, cujos graus não sãoequivalentes, e a teoria de Frank Kermode, de que odiscurso necessariamente contém elementos não-narrativos.

A disjunção temporal é um dos fundamentos da própriadistinção entre os níveis da história e do discurso pelosformalistas russos e pelos estruturalistas. No artigo As

categorias da narrativa literária (2009 [1966]), Tzvetan Todorovconstata que o rompimento da ordem temporal dos eventos dahistória em sua representação discursiva é uma necessidade,mesmo que o autor procure minimizá-lo: “Na história, muitosacontecimentos podem-se desenrolar ao mesmo tempo; mas odiscurso deve obrigatoriamente colocá-los um em seguida aooutro; uma figura complexa encontra-se projetada sobre umalinha reta” (p. 242). Essa alteração é estudada porBenedito Nunes em O tempo na narrativa42 (1995), que expõealguns de seus tipos: a anacronia, inversão da ordem entreuma seqüência de eventos, consiste em analepse, a evocaçãode um momento anterior, e prolepse, de um momentoposterior; a anisocronia consiste na diferença develocidade da representação de eventos que teriam a mesmaduração no mundo da história, chamada de andamento, emcomparação com a música; a acronia é a possível omissão dareferência à ordem temporal e causal dos eventos; enfim, oseventos simultâneos devem ser representados em sucessão.Nunes conclui que o enredo é um ato de ordenação que“sintetiza duas dimensões discordantes da narrativa: aepisódica dos acontecimentos, requerendo a ordenaçãocronológica [...], e a configurante, não cronológica, fundadano discurso enquanto forma de expressão” (p. 76-77),criando no leitor a expectativa de chegar a uma conclusão.

Essa concepção de enredo aproxima-se daquela de Ryan(2012b): “uma rede complexa de relações entre o factual e onão-factual, o atual e o virtual”43, que depende da ordemdo discurso. Todorov (2009 [1966]) cita Lev Vygotsky, quecompara a sucessão de eventos no discurso narrativo à desons em uma melodia e de palavras em uma frase, paraconcluir que a mudança na ordem gera uma mudança de“significação emocional” (p. 242), exemplificada pelasdiversas impressões das narrativas de crime. Todorov dedicaum capítulo de As estruturas narrativas (1970) ao estudo dessasnarrativas, cuja tipologia em parte se define pela ordem deapresentação da história. Segundo o teórico, os principaisgêneros literários policiais são a narrativa de enigma e onoir: o primeiro gênero contém uma história de investigaçãoao longo da qual se descobre, fora da ordem temporal, a

42 NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995. 43 Texto original: “a complex network of relations between the factualand the non-factual, the actual and the virtual”.

história anterior, do crime; o segundo apresenta a históriada investigação junto com a do crime, contendo planos eameaças que podem ou não se concretizar. A diferença naapresentação do crime entre esses dois gêneros gera,segundo o teórico, “duas formas de interesse completamentediferentes. A primeira pode ser chamada de curiosidade; suacaminhada vai do efeito à causa [...]. A segunda forma é osuspense e aqui se vai da causa ao efeito” (p. 99). Sãodois tipos diferentes de contraste entre o atual e opossível, dois tipos de enredo que dependem da ordemartificial do discurso. Um dos exemplos mais conhecidos eradicais de inversão temporal é a narrativa do filmeMemento (2000), de Christopher Nolan, que funde os gênerosde enigma e noir, porque, embora a investigação se desenrolejunto com os crimes na história, a apresentaçãoretrospectiva dos eventos caminha dos efeitos às causas.

Outra abordagem da narratividade focada no discursoque Abbott (2011) cita é a de Thomas M. Leitch, segundo oqual as três habilidades narrativas básicas são “adiar opróprio desejo de gratificação; [...] fornecer conexõesentre o material que uma história apresenta; e a habilidadede perceber eventos discursivos como relacionadossignificativamente ao ponto principal de uma dada históriaou seqüência”44. Todorov (2009 [1966]) verifica ainda que anarrativa se baseia em uma “tendência à repetição, queconcerne à ação, aos personagens ou mesmo a detalhes dadescrição” (p. 223), e se manifesta como antítese, gradaçãoou paralelismo. Ele também descreve a narrativa como “aprojeção sintagmática de uma rede de relaçõesparadigmáticas” (p. 227), ou seja, uma rede de ligaçõesentre seus elementos, geralmente uma homologia, ouproporção de quatro elementos, o que ele exemplifica aoexpor de forma bidimensional os eventos de Les liaisonsdangereuses, de Choderlos de Laclos (1782), encontrando oparalelismo entre as seqüências da história. Por isso,qualquer narrativa com mais de uma seqüência de eventospode ligá-los no discurso por meio do encadeamento,alternância ou encaixamento, cada um privilegiando certasrelações em vez de outras. 44 Texto original: “defer one’s desire for gratification; […] supplyconnections among the material a story presents; and the ability toperceive discursive events as significantly related to the point of agiven story or sequence”.

A narratividade do discurso também se relaciona àsexpectativas de coerência narrativa, que, segundo MichaelToolan45 (2011), embora variem bastante, também podem serdescritas como condições para a realização de textos maisou menos prototípicos. Além da expectativa geral deunidade, que cada parte tenha um sentido em relação aotodo, espera-se que o discurso narrativo tenhacontinuidade, explícita ou implícita, ou seja, que sejapossível discernir os tópicos mantidos entre as mudanças deação, tempo, personagens, cenários, na seqüênciadiscursiva. Espera-se que os personagens continuemidentificáveis como as mesmas pessoas apesar das mudanças,uma pressuposição da manutenção de um mesmo nome ao longodo discurso. Recursos gramaticais e lexicais de coesãocontribuem para a continuidade, assim como a manutenção deesquemas conceptuais ativados; por outro lado, aexpressividade do discurso consiste justamente nasesperadas descontinuidades, como o discurso indireto livre,lirismo, metanarração, metaficção, ambigüidade, mudançasfreqüentes de tópicos, entre outros recursos que integramas expectativas narrativas. Essas rupturas desviam aatenção do leitor da história para a construção dodiscurso; as motivações podem ser muitas, como a reflexãometanarrativa ou metaficcional, a atenção ao estilo, aostemas, ao aspecto expositivo do texto, por exemplo. Porisso Barthes (2009 [1966]) divide os segmentos do textonarrativo em quatro classes: as funções distribucionais,que dependem de uma ordem, remetem às ações, sendo ascardinais as principais articulações da história, e ascatálises, ações que servem mais para preencher certo tempoentre as outras; já os índices são menos dependentes daordem, se dividindo entre as informações sobre o assituações da história ou os índices que remetem a temas,atmosferas ou sentimentos. A alternância e a freqüênciadesses tipos de segmentos criam diferentes graus denarratividade.

Essas teorias da narrativa, para Aarseth (1997), nãose aplicariam à ficção ergódica, segundo o seu modelo de45 TOOLAN, Michael. Coherence. In: HÜHN, Peter et al. (ed.). The livinghandbook of narratology. Hamburg: Hamburg University Press. Últimamodificação: 29/09/11. Disponívelem [http://hup.sub.uni-hamburg.de/lhn/index.php/Coherence] Acesso:01/06/12.

formação caótica de scriptons, segundo o qual essas obrasseriam caracterizadas pela retórica da “aporia” e da“epifania” (p. 91). No entanto, a forma ergódica nãoimplica em uma leitura caótica, nem é necessário que cadascripton corresponda a uma história diferente. Ryan (2010),em sua descrição da narrativa, acrescenta às variáveis dahistória e do discurso um nível pragmático de variáveis quedizem respeito à relação da obra com um contextolingüístico e extra-linguístico e com seus leitores.Segundo sua descrição, portanto, uma narrativa pode ter umuso somente “receptivo” ou “participatório” (p. 320) pelosleitores, o que corresponde à distinção do não-ergódico edo ergódico. Em entrevista, Ryan (2000b) explica que anarrativa hipertextual é possível se evoca apenas umahistória que, fragmentada nas lexias, deve ser construídapelo leitor como um quebra-cabeça. No entanto, ela criticaas tentativas de construir hipertextos que deveriam servirde matrizes para a construção de várias histórias; nessecaso, cada scripton conteria apenas uma parte do total detextons, e cada um corresponderia a uma história diferente,o que ela chama de “pensamento positivo: não se pode fazersentido narrativo de um conjunto de lexias escolhidoaleatoriamente, e não se começa do zero com cada sessão deleitura. Em vez disso, você guarda na memória o que leuantes, e tenta completar a figura que está emergindo em suamente”46.

Ryan admite a possibilidade da ordem aleatória deleitura do discurso, embora isso torne muito difícil obtero efeito de suspense, diminuindo a imersividade dahistória. Esse procedimento corresponde ao modelo deAarseth, mas não escapa à teoria da narrativa, apenasconsiste em um tipo de discurso de baixa narratividade,mais descontínuo quanto mais lexias tiver. Com a necessáriafalta de ordem temporal da história, predomina a progressãodos efeitos para as causas, guiando a leitura mais pelacuriosidade do que pelo suspense. Aumentar a narratividadedo discurso exige que o autor controle as possíveisdisposições das lexias nos scriptons, para atender às46 Texto original: “wishful thinking: you cannot make narrative senseout of a randomly chosen set of lexia, and you don't start fromscratch with every reading session. Rather, you keep in memory whatyou have read before, and you try to complete the picture that isemerging in your mind”.

expectativas de “coerência lógica e sequencialidadesignificativa […], em suma, um enredo bem formado”47; comonão seria possível garantir que todas as combinaçõesaleatórias de uma obra tivessem essas condições, isso exigeque o autor privilegie alguns percursos em detrimento deoutros, seja por meio de links ou outras indicações. Segundoesse modelo, então, a narratividade ergódica é possível, umrecurso a ser usado para que uma mesma história possa serlida em mais de um discurso, o que, naturalmente, exige doautor um mapeamento das relações entre os elementos de seutexto. Em sua entrevista, Ryan cita como exemplo dehipertexto imersivo a narrativa Twelve Blue48 (1996), deMichael Joyce, publicada gratuitamente online pela EastgateSystems, empresa que lançou os primeiros hipertextosliterários, nos Estados Unidos. Uma análise dessa obra e deum dos raros hipertextos literários já feitos no Brasil,Quem matou Clarah Averbuck49 (2009), publicado gratuitamenteonline pelo próprio autor, José Carlos Silvestre, demonstracomo a mídia hipertextual e a interface eletrônica podemser usadas para fins literários e estilísticos.

Ambos os hipertextos situam suas lexias em algum tipode seqüência numérica. A página inicial de Twelve Blue mostrauma figura contendo doze linhas horizontais, descontínuas esinuosas sobre um fundo azul marinho; sob essa figura, umalinha com links numerados, de um a oito. Eles correspondem auma divisão da figura em oito links verticais que não estãorepresentados visualmente, favorecendo uma escolhaaleatória; também justificam o subtítulo da obra: “story ineight bars” (história em oito barras). Por outro lado, umajanela lateral tem o link “begin” (iniciar), que direcionapara a mesma lexia que a barra um. Além dessa indicação, oautor oferece instruções explícitas em uma página de ajuda:o leitor pode seguir os links das janelas laterais de cadalexia para a história se desenrolar “obviamente”, ou podeseguir os links marcados no texto, com a advertência de que

47 Texto original: “logical coherence and meaningful sequentiality[...], in short, a well-formed plot”. 48 JOYCE, Michael. Twelve blue. Watertown, Massachusetts: EastgateSystems, 1996. Disponível em: [http://www.eastgate.com/TwelveBlue/]Acesso: 15/08/11. 49 SILVESTRE, José Carlos. Quem matou Clarah Averbuck? Um conto de mistério.Bogotissimo, 2009. Disponível em:[http://bogotissimo.com/mapas/clarah.htm] Acesso: 15/08/11.

esses “vão embora”. O autor também aconselha abrir em abasseparadas doze linhas para que sejam lidas juntas, comocasionais proximidades significativas. No entanto, ele nãoexplica que linhas são essas, e apenas pelo endereço daslexias o leitor pode saber que, com exceção das lexiasligadas à figura inicial, cada uma das outras tem uma duplanumeração, a primeira correspondendo a uma de oito barras,a segunda a uma de doze linhas. Ou seja, a estrutura daobra, muito apartada do padrão impresso, é bidimensional,exceto pela lexia inicial, que fica de fora do quadro,sendo a única lexia da barra um. É a partir dela, porém,que o leitor pode seguir o procedimento indicado, abrindoem doze abas as lexias da barra dois, para prosseguir emcada aba pelas lexias de cada linha.

A estrutura de Twelve Blue pode ser comparada a umarede, correspondendo à descrição que Jay David Bolter(1991) faz do hipertexto: “no lugar da hierarquia, temosuma escrita que é não só topical: podemos também chamá-la‘topográfica’ [...]. A escrita eletrônica é uma descriçãotanto visual quanto verbal. Não é a escrita de um lugar,mas a escrita com lugares, tópicos realizadosespacialmente. A escrita topográfica desafia a ideia de quea escrita deveria ser meramente a serva da linguagemfalada”50 (p. 25). Ou seja, o hipertexto é uma formatextual mais espacializada, mais distante das origens oraise temporais da literatura. Para Coover (1999), esta éjustamente a maior contribuição literária do computador: “asobreposição e fusão íntima de espacialidade etemporalidade imaginadas”51. O hipertexto pode sercomparado também à pintura enquanto mídia narrativa, que,diferentemente da história em quadrinhos, pode ter suahistória apreciada em diversas direções. Bolter cita váriosexemplos de imagens que se integram ao texto comosignificantes, desde as iluminuras medievais aos gráficos ediagramas modernos, citando o exemplo da figura alegórica

50 Texto original: “in place of hierarchy, we have a writing that isnot only topical: we might also call it ‘topographic’ […]. Electronicwriting is both a visual and verbal description. It is not the writingof a place, but rather writing with places, spatially realized topics.Topographic writing challenges the idea that writing should be merelythe servant of spoken language”. 51 Texto original: “the intimate layering and fusion of imaginedspatiality and temporality”.

na introdução da Scienza Nuova (1725) de Giambattista Vico,que “explica pacientemente em sua introdução que representaponto por ponto a substância de sua interpretação dahistória”52 (p. 73). A figura inicial de Twelve Blue tambémpode ser considerada alegórica, tanto por sua representaçãode metáforas da água, do rio e da costura, que permeiam otexto, quanto pela representação visual e digital da duplapaginação das lexias.

Porém, no caso dessa obra, não se pode dizer que nãoexista uma ordem canônica de leitura; duas ordens sãoprivilegiadas: a leitura de cada barra de uma vez,alternando a leitura entre as abas, ou a leitura de cadalinha de uma vez, seguindo os links laterais até o final,antes de passar a outra aba. Por isso, a história pode serlida em dois discursos coerentes e motivados. Quanto aoslinks internos, não são suficientes para formar históriasmenores; caso o leitor escolha seguir apenas essasligações, acaba chegando a alguma lexia final, sem links oucom um looping, tendo formado apenas uma justaposição decenas sem coesão. Por outro lado, a possibilidade deinterromper os percursos privilegiados com digressõesocasionadas pelas ligações internas multiplica as variaçõespossíveis do texto. Esse traço de baixa narratividadeconcorda com o estilo do texto, pois o uso do fluxo deconsciência, da metanarração e das figuras de linguagempredomina quase exclusivamente. No entanto, embora aacronia também seja muito freqüente, quando há referênciasque situem os eventos em ordem temporal, raramente elesaparecem invertidos no discurso, seja das barras ou linhas.Isso ajuda a integrar à leitura o interesse pelo progressoda ação ou de suas conseqüências psicológicas para ospersonagens.

A história também consiste em uma rede de personagensque se conhecem, habitantes de uma mesma cidade e de umamontanha próxima. O tema principal é a influência que asações de cada um têm na vida dos outros, bem como asmudanças e experiências que constituem seu mundo interior.Quase todas as cenas são narradas sob o ponto de vista dealgum dos personagens, mas frequentemente as referênciaspessoais são ambíguas ou elípticas. Isso também serve para

52 Texto original: “patiently explains in his introduction embodiespoint for point the substance of his interpretation of history”.

aumentar a curiosidade e a conexão entre as lexias atravésde repetições e semelhanças que servem para identificarsituações e personagens. A maioria das cenas consiste emreflexões, memórias, histórias inventadas ou diálogos deLisle, mãe de uma adolescente, Samantha; a consciência delaé que faz comparações e comentários sobre os outrospersonagens. Assim, algumas linhas sequer podem serconsideradas histórias, já que consistem unicamente em umasérie de fluxos de consciência dessa personagem. Sua linhamais narrativa, a sexta, é a que faz mais referência a umevento de grande impacto sobre a sua alma, o afogamentoacidental de um adolescente surdo, no rio que fica próximoda casa onde ela vive com a filha. Ela começa a sentirgrande compaixão pelo rapaz, lembrando-se de sua educaçãocatólica, o que traz memórias de infância e preocupaçõespelo destino de sua filha. O rapaz se transforma em símbolode pureza, alcançando um estado fantástico em outra linhade lexias pouco narrativas.

As linhas mais narrativas de Twelve Blue são a três, aquatro e a cinco. São essas linhas que demonstram acapacidade do hipertexto para contar uma históriaintricada, em que os destinos de quatro personagens secruzam em uma pousada na montanha. O leitor escolhe entreler essa história alternando entre os pontos de vista dospersonagens, ou seja, seguindo as barras, ou seguindo aslinhas e assim considerando uma perspectiva de cada vez. Noentanto, como na barra cinco, o centro dos eventos, há umainversão de perspectivas, a alternância prevalece mesmo naleitura que segue as linhas. A três começa apresentandoEleanore, uma mulher desequilibrada que vive na pousada eplaneja o assassinato do dono do lugar, Ed Stanko. Emboraela faça alusão à motivação do crime, vingança peloassassinato de seu bebê, esse primeiro crime não é narradoem outras lexias. Por outro lado, todas as lexias de Stankoo caracterizam como um homem mau, inclusive um encontroanterior com Javier, um médico que vai à pousada tentarrecuperar um retrato da avó. A linha cinco narra a viagemque este faz com a filha Tevet, em que acabam presenciandoos delírios da assassina depois de cometer seu crime.Nessas três seqüências, a estrutura hipertextual é usadapara que a justaposição de cenas resolva as ambigüidadesdas referências, indicando a parcela de responsabilidade de

Javier sobre o crime presenciado, devido ao seu erro dopassado. Depois do crime, as linhas três e quatro trocam deperspectiva entre a assassina e a vítima, marcando umamudança de atitude do narrador em relação aos personagens:mais compaixão por Ed Stanko e um retrato da falta deremorso de Eleanore.

A discrepância entre esse episódio narrativo e orestante da obra, que contém um excesso de fluxo deconsciência e ligações cujas motivações por vezes sãoobscuras, sugere que ela não foi concebida apenas comohipertexto narrativo, e sim como um híbrido de ficção elirismo. A continuidade das linhas é garantida pelo pontode vista do mesmo personagem em cada uma, mas a maioria nãocontém eventos ou descobertas. O principal recurso retóricoé a ambigüidade, que se aproveita das justaposições parasugerir semelhanças entre o interior dos personagens, como,por exemplo, o trauma pela perda da mãe na infância que uneuma nadadora profissional à menina que ela resgata do rio.A continuidade das barras não é homogênea; em algumasjunções, há explícitas repetições e paralelismos, mas, emoutras, a relação entre as lexias não é muito clara. Emtodo caso, a última linha serve de fecho para a obra, porapresentar os efeitos do diálogo com a mãe na adolescenteSamantha, que passa de uma garota fechada pela separaçãodos pais a uma pessoa mais aberta, iniciando uma amizadecom Tevet e planejando uma festa.

A obra Quem matou Clarah Averbuck é um exemplo de maiornarratividade em hipertexto. Também essa obra se constróipelas relações entre vários personagens em históriasparalelas e se aproveita da maior espacialização do texto,que, nesse caso, consiste em situar cada lexia em um pontode um mapa do centro da cidade de São Paulo e em um dosdias marcados em um calendário de junho de 2009. Cada diacorresponde a uma configuração de ícones sobre o mapa, emforma de peões coloridos de jogo de tabuleiro. A páginainicial classifica a obra como “um conto de mistério”,enquanto a interface é semelhante à de um jogo, sugerindo ohibridismo do hipertexto; no entanto, o mistério dahistória escapa às convenções de gêneros policiais, e ainteratividade ergódica não altera a história narrada,apenas o discurso. O aspecto temporal e espacial dahistória é imediatamente acessível pelo calendário e o mapa

do Google Maps, incluindo a obra entre as ficções locativase enfatizando seu caráter de comentário social. Por outrolado, esses recursos também evidenciam a seletividade dasinformações do texto em relação ao mundo da história, o quedificulta a imersão e chama a atenção para a tematização danecessidade cotidiana de supor a partir de bases limitadas,responsável por boa parte do “mistério” do subtítulo. Alexia inicial apresenta o enigma da morte de uma escritora,como é lido em um jornal por um pintor de paredes que não aconhecia, mas logo faz conjecturas grosseiras sobre ela. Nomesmo dia, em outro ponto da cidade, um blogueiro escrevementiras sobre ela na internet. No restante da obra, poucomais do que isso é revelado sobre o caso, mas as vidas deseis personagens casualmente relacionados ao incidente sãonarradas de forma fragmentária e misteriosa.

A curiosidade e o paralelismo dirigem o interesse daleitura mais do que o suspense, pela falta de uma ordemdiscursiva fixa. As lexias estão ordenadas temporalmentepelo calendário e, em alguns casos, pelo horário das cenas,mas na disposição de cada dia nenhuma ordem de leitura éprivilegiada, favorecendo a comparação entre quatro linhasnarrativas, marcadas pelas cores dos peões. As coresindicam a continuidade entre lexias que se referem aosmesmos personagens, em uma seqüência que faz ressaltar ocontraste entre as diversas identidades que eles assumem. Aalternância entre essas linhas na leitura de cada dia, semprivilegiar uma ou outra, ressalta a semelhança temática ea gradação entre os vários tipos de duplicidade psicológicaapresentados. Os peões verdes se referem ao blogueiroAfonso, que tem consciência da falsidade de sua identidadeconstruída na internet, mas se tornou dependente de suareputação virtual. Os vermelhos se referem à criminosaLiliane, dividida entre a necessidade orgulhosa deconfessar seus crimes e a falta de arrependimento por eles.Esses tipos extremos de divisão psicológica sãocontrastados com as formas mais sutis de dois grupos dejovens: Kátia, dos peões amarelos, participa com os amigosde festivais de cosplay, mas não se identifica muito comeles, levando uma vida mais introvertida, enquanto osamigos Thiago, Eduardo e Samantha mantêm sua relaçãoescondendo segredos e traições, embora acreditem que segostam e se perdoam.

A distribuição das lexias em mapa facilita a escolhado leitor entre ler ou não na ordem cronológica, o que nãointerfere na narratividade do discurso, porque o narradorlimita sua apreensão das cenas ao momento presente, semacumular conclusões derivadas de outras lexias. Desse modo,essa narrativa pode se realizar como aquele jogo de quebra-cabeça dos modelos teóricos do hipertexto, já que asinformações de uma cena complementam as da outra, emqualquer ordem. Isso não significa que a ocorrência deeventos seja baixa, mas estes são principalmente revelaçõespsicológicas para os personagens, cuja causalidade é difusae os efeitos indeterminados. Uma quinta categoria de lexiasé sinalizada pelos peões pretos, que funcionam como umamoldura ou um comentário metanarrativo; ao final, duaslexias pretas podem ser consideradas como o desenlace dahistória, mas são dois tipos bem diferentes de finais. Umadelas mostra que, a despeito das revelações individuais, ossegredos entre os amigos mantêm sua relação na mesmasituação do início; a outra contém indícios de umatransformação criativa para Kátia, em conseqüência dasinfluências narradas em outras lexias. Essa é a maiormudança ocorrida na história, mas a maneira como é narradapermite que seja lida fora da ordem cronológica, pois asreferências pessoais são ambíguas.

Esses dois exemplos demonstram que é possível haveralta narratividade na ficção ergódica, especialmente se aobra for limitada a uma história e poucos discursos,evitando a ordenação aleatória e a alta discrepância detópicos e esquemas cognitivos. Por outro lado, asmotivações para o uso dessa mídia são variadas, bem como ostipos de estruturas que se podem construir sob esseprincípio. É uma característica pragmática comconseqüências discursivas. Tanto Twelve Blue quanto Quemmatou Clarah Averbuck usam indicações para privilegiarordenações mais contínuas e ambos usam a mídia parafavorecer o paralelismo entre várias linhas narrativas, semsubordinar umas às outras. Ambos também fazem uso dohibridismo, aquele com a lírica, este com a caracterização.Embora a mídia ergódica não seja necessariamentemetaficcional, já que os hipertextos têm sido usadosamplamente, especialmente na internet, para narrarhistórias reais, é sempre uma mídia metanarrativa, segundo

a distinção de Neumann e Nünning53 (2012), pois chama aatenção para a construção do discurso. Por outro lado, amídia ergódica não é necessariamente anti-imersiva, comodemonstram os exemplos estudados. A escolha de diminuir aimersividade espacial ou emocional da história fica a cargodo autor, embora a seqüência temporal sempre tenha que sesujeitar a algum tipo de anacronia e a divisão em lexias oimpeça de fixar a coesão gramatical entre elas.

Em suma, a mídia não-ergódica continua sendopreferencial para aqueles que desejam aumentar a ilusãoestética da narrativa, fixar o discurso à ordem temporal dahistória ou potencializar o suspense. A escolha do ergódicodificultaria desnecessariamente a narração de uma históriasimples, figurativa, de investigação ou de formação decaráter, por exemplo. Sua escolha, naturalmente, deve sermotivada, seja por explicitar a rede conceptual dahistória, as relações entre os personagens e eventos, oupara manter a ambigüidade em alguns aspectos. Por outrolado, a escolha do computador não se limita à automatizaçãodo ergódico, incluindo a integração com imagens, sons eanimação que vale igualmente para a textualidade não-ergódica. Além disso, expressa uma sensibilidadecontemporânea em que o eletrônico se torna cada vez maisuma parte indispensável da interação humana com o mundo,favorecendo a descentralização da publicação e recepção deobras literárias, como prova o fato de que ambas as obrasestão disponíveis gratuitamente na internet.

53 NEUMANN, Birgit & NÜNNING, Ansgar. Metanarration and Metafiction.In: HÜHN, Peter et al. (ed.). The living handbook of narratology. Hamburg:Hamburg University Press. Última modificação: 28/01/12. Disponívelem [http://hup.sub.uni-hamburg.de/lhn/index.php/Metanarration_and_Metafiction] Acesso: 14/06/12.