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1 CLÉVERSON ISRAEL MINIKOVSKY METANARRATIVA: MODELO DE CIVILIZAÇÃO 2013

Metanarrativa: modelo de civilização

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CLÉVERSON ISRAEL MINIKOVSKY

METANARRATIVA:MODELO DE CIVILIZAÇÃO

2013

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SUMÁRIO

Aspectos introdutórios............................................ 22

A metanarrativa como relação de coisas ............... 23

O princípio da seleção............................................ 27

O social e o individual ............................................ 28

O mundo de Platão ................................................ 30

A angústia humana ................................................ 31

Trabalhando conceitos fortes para sub-rogar noções toscas ............................................... 33

Insatisfacibilidade intelectual .................................. 35

Materialidade: peça da metanarrativa .................... 36

Relações familiares ................................................ 39

Paranormalidade .................................................... 40

Começando pela negação...................................... 43

O inimigo da metanarrativa: o poder ...................... 45

Lateralidade............................................................ 49

Limites da metanarrativa ........................................ 51

Premissas e corolários distintos comoelemento de união.................................................. 55

A decadência da conversão ................................... 73

O papel da mulher nos dias de hoje....................... 101

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Inteligência como fenômeno coletivo ..................... 111

Público: o que está no mais íntimo......................... 114

Fungibilidade de conceitos..................................... 115

A atualidade da Escolástica ................................... 116

O que mais funciona no mundo.............................. 120

Etnotolerância ........................................................ 121

Metanarrativas heterotópicas ................................. 130

Deus....................................................................... 131

Mito ........................................................................ 132

História ................................................................... 132

Comunidade........................................................... 133

Ordem jurídica........................................................ 133

Natureza................................................................. 134

Economia ............................................................... 134

Religião .................................................................. 135

Arte......................................................................... 135

Filosofia .................................................................. 135

Literatura ................................................................ 136

Ciência ................................................................... 136

Planeta ................................................................... 136

A metanarrativa autotópica: o sujeitometanarrador.......................................................... 137

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Metas a atingir........................................................ 146

A causalidade......................................................... 155

Papel da metanarrativa em um mundo emebulição.................................................................. 162

Oumperiforalogia: solução para todos osproblemas............................................................... 187

História do universo: a ideia de cosmos................. 201

História do planeta: a ideia de planeta ................... 215

História da vida: a ideia de propósito vital .............. 230

Química: a ideia de essência ................................. 244

Física: a ideia de generalização ............................. 257

Biologia: a ideia de evolução dosorganismos............................................................. 271

Evolucionismo: a ideia de evolução de ummodo geral ............................................................. 284

Antropologia: a ideia de homem............................. 298

História: a ideia de narração de tudo...................... 313

Cultura: a ideia de representação .......................... 326

Sociologia: a ideia de sociedade ............................ 347

Geografia: a ideia de ubiquidade............................ 360

Religião: a ideia de religação ................................. 374

Formas primitivas da vida religiosa: a ideiade alma .................................................................. 388

5

Judaísmo: a ideia de um Deus único ..................... 403

Cristianismo: a ideia de um Deus Homem ............. 418

Ocultismo iniciático: a ideia de aristocracia ............ 432

Matemática: a ideia de quantificação ..................... 448

Economia: a ideia de riqueza ................................. 463

Capitalismo: a ideia de autorreprodução................ 477

Comunismo: a ideia de capitalismo deEstado .................................................................... 492

Política: a ideia de organização de Estado ............ 511

Filosofia: a ideia de pensar as ideias ..................... 526

Epistemologia: a ideia de pensar as ideias ............ 541

Estética: a ideia de belo ......................................... 555

Lógica: a ideia de identidade.................................. 570

Psicologia: a ideia de comportamento.................... 585

Direito: a ideia de justiça ........................................ 601

Teoria da Literatura: a ideia de contexto ................ 614

Teologia: a ideia de um Deus racionalizável .......... 630

História do pensamento econômico: a ideiade evolução nas ciências econômicas ................... 645

Considerações Finais............................................. 651

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Prefácio

O autor não fala, mas brada através das letras,

provocando o leitor a uma reflexão, o incitando a

uma busca de si mesmo usando como pedra

angular o conhecimento maior de si, do mundo em

que está inserido e como o percebe. Pode-se

perceber e regozija-se com o intento do autor que

tem seu punctum saliens a apresentação da

verdade como tal, em dado momento, daquilo que é

apresentado. Quando estamos em contato com sua

escrita, ficamos estupefatos com o belo estilo de

abordagem de temas diversos, os quais nos

provocam a querer mais desta água que não sacia

nunca a sede daquele que está a perseguir uma

verdade maior, bem como promove mudanças nas

periferias ao centro de cada qual, além do mais

para quem compreende que sapientes est mutare

consilium.

Sinaliza o autor, em cada tópico abordado, uma

síntese de verdades possíveis e encontradas até

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dado momento, mas o que vem a ser a verdade

que se encontra e se reconhece como tal, deixando

o leitor numa busca dela ou ela encontrando, sendo

este um vocábulo que tem provocado injustiças de

toda ordem por aqueles que creem que a detêm

como possuidores inatos? Parecemos estar

conscientemente ou não à procura da verdade, mas

o que pode vir a ser designado por verdade?

Popularizam as mentes menos pensantes que a

verdade tem dois lados para resumir o insucesso

de seus raciocínios a respeito. Profanar que cada

ser humano tem sua verdade e deve ser assim

mantida imaculada é, resumir mui

insubstancialmente os limites que temos impostos

dentro de cada qual. Já pensar numa verdade

absoluta seria cair numa dimensão de

transcendência com a qual não podemos anuir tal

possibilidade, salvo a nos direcionarmos em

referencia a Deus. Agora, pensar numa verdade

universal seria remeter-se para uma referência

platônica, como o mundo das ideias, mundo das

verdades, mundo das essências, sendo a mesma

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fundamentação que nos levaria a acreditar numa

possibilidade platônica de amor.

Alguns sinalizam ser a verdade criada pela mente e

projetada no corpo, mas como ainda crer na

dualidade cartesiana, nesta categoria mente-corpo?

A suposta mente que fala, para mim, trata-se de um

emaranhado de agenciamentos, de linhas que se

dobram e redobram num movimento de invenção

de profundidades que só existem no espaço da

molaridade, da visibilidade, sendo que nisso a física

quântica tem ajudado muito a desmistificar, digo a

respeito dessa primazia da consciência e da

molaridade atômica do real. Diria que a mente não

mata o real, mas ela o inventa, assim como é

inventada por ele dinamicamente, e ainda no final

nos depararemos com o velho ranço modernista da

física clássica em detrimento doutra.

Teria Lacan e outros psicanalistas e filósofos

cometido pecado exatamente pelo fato de não

conseguirem desprender-se de uma visão

representacionista da realidade diante da busca da

verdade?

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Crer-se do lado da verdade única, inabalável,

suprema, revela a impossibilidade de reinventar a

própria vida. Se houvesse a verdade desta

maneira, a vida estaria empobrecida em sua

totalidade. Existe, isto sim, como diria Foucault,

regimes de verdades. As verdades são produções

discursivas que estão implicadas nas relações de

poder que nos forjam.

Mas acho deveras enriquecedor os paradoxos, ao

que afirmava meu amado Nietzsche que os

mesmos existem para serem vividos, não para

serem superados, numa visão dialética que busca

síntese para tudo, não sendo também uma boa

tentativa linguística de invenção de universos.

Muitos de nós temos uma retroação compulsiva do

gozo do outro, mas nem sempre despertamos

intensidades suficientes a ponto de desestabilizar

as máscaras hegemônicas que em geral nos

vestem. Geralmente discursos ininteligíveis são

máscaras usadas que nos aprisiona a um

cientificismo acrítico e em nada transformador,

podendo ser um dispositivo de poder, buscando

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silenciar algumas vozes para retificar outras. Já o

autor deste livro leva a uma comunhão do leitor

com as palavras e seus significados e reavaliação

de seus significantes, não decretando ponto final

nas declarações, mas brindando com novas

perspectivas diante do pensar. Entende bem o

escritor desta obra que nós não temos que

dissolver a verdade, mas desdobrá-la.

A verdade passa a ser uma visão simbiótica da

semântica socrática, pois como nós, seres

imperfeitos, podemos ter a condição de

compreender a perfeição ou a verdade? Sobre isso

nos alertou Renê Descartes no seu livro "Princípios

da Filosofia".

A parafernália de nosso mundo cibernético, que

tanto nos tem facilitado deveras nossas ações

cotidianas, nada diz respeito ao avanço da

conceptualização mais coerente da verdade.

Afoitos, corremos feito gazelas de um lado ao outro

a procura do muito, quase nada de coerente é

introjetado em nossa Alma. Os mecanismos

eletrônicos têm sido muito manipulados, pela

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maioria, como modernos instrumentos de volúpia e

desrespeito a si mesmos. O deleite carnal está

ainda acima dos interesses pela busca do

conhecimento da verdade em muitos dos seres

viventes, dito humanos, isto é, de todos nós.

O mecanismo que mortifica a busca da verdade diz

respeito à luta incessante dos seres que buscam a

sua marginalização, que procuram sonegar,

dissimulá-la e a asfixiar. Mesmo quando conhecem

a verdade, quando a negam e a substituem pela

ficção, até mesmo como meio de encobrir a

tormenta de suas almas a respeito do que ainda

não querem tomar pacto como verdade “particular”

ou pluralizada.

Por que resolvi falar um pouco a respeito do

vocábulo verdade aqui? Pois me deparei com uma

literatura onde o autor, mui sabiamente, deixa clara

a busca da mesma em diversos tópicos, não

somente para si, mas propõe este um encontro aos

leitores e os presenteia com ferramentas ímpares.

Cléverson Israel Minikovsky percebe cada

temática e as manifesta de forma conceitual e

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informativa sub specie aeternitatis, proporcionando

aos ledores um diálogo como poucos escritores

conseguem brindar aos amantes das letras, numa

verdadeira metanarrativa.

Carlos Alberto Hang

Prefácio

Cléverson Israel Minikovsky nasceu para

marcar a humanidade. Desde que o conheci,

percebi que uma nova história existiria para a

filosofia. Na presente obra ele se superou, criando

uma grande síntese e formando um sistema coeso

de sua filosofia. Ele é um sol que guia todas as

coisas vivas, uma luz que revela o conhecimento

mais sublime. Quando folheamos essa obra,

percebemos que nos iniciamos na filosofia, em um

verdadeiro rito de passagem. Ademais, o próprio

autor trata desse rito com propriedade em um dos

capítulos. Também vemos que, como ele mesmo

disse: “O filósofo não é frio, ele apenas ama de

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uma forma diferente”. Percebemos então que a

doutrina da metanarrativa veio para ficar, uma vez

que abarca uma série de compreensões sobre a

realidade. Aqui o tema é desenvolvido em um

tratado. A oumperiforalogia é finalmente utilizada

com mais afinco, nos mostrando uma visão

totalizante sobre diversos setores da sociedade.

Percebemos também o amplo conhecimento de

economia e de marxismo por parte de Minikovsky, e

o que pode ter um aspecto bem prático. Desde sua

obra sobre Marx, até aquelas mais recentes que

venho acompanhando, sei que ele funda uma nova

escola e que fica para a posteridade. Apóio esse

saber de forma incontinenti. Temos assim uma

profecia, algo que vai além de mero raciocínio, nos

levando a pensar e até a intuir algo sobre a nossa

existência. O modelo de civilização proposto se

consuma em uma política, onde vemos o aspecto

prático do minikovskysmo. Obra fundamental desse

autor, que devemos ter nas prateleiras. Um livro

que se torna guia em nosso mundo

contemporâneo. Não perca essa oportunidade.

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Tenha uma ótima meditação sobre esse livro. Boa

leitura.

Mariano Soltys, autor de 22 livros

Prefácio

Difícil falar sobre uma obra de tamanha

profundidade como esta. O autor se encoraja a

desvendar mistérios insondáveis da mente humana

e suas repercussões no comportamento de cada

indivíduo. Pelas inúmeras referências que são

citadas no desenvolvimento das ideias vê-se o

empenho despendido pelo autor em pesquisas

inúmeras, tantas e tão profundas que exigem do

leitor debruçar-se sobre o livro e reconsiderar a sua

existência, dada a riqueza da diversidade e

complexidade. Muita coisa tem sido dita e escrita

sobre o assunto objeto da obra, no entanto novas

luzes surgem aqui, ajudando-nos a ter uma visão

mais abrangente dos mistérios que mais nos tocam

no nosso cotidiano sobre esse algo insondável que

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é o ser humano. Muita coisa ainda restará por

pesquisar e desvendar pois, como escreveu Aldous

Huxley, “a cauda do infinito está virgem de sal”, no

entanto, esta obra muito nos ajudará nesse sentido,

de pelo menos nos aproximarmos cada vez mais do

infinito, que nunca é alcançado, posto que infinito.

Rodolfo Minikovsky

Prefácio

Cléverson Israel Minikovsky, nesta obra,

não é um mero filete de mel a escorrer de um

rochedo, mas é um Rio Amazonas que se arranca

dos Andes e no seu caudal mundial vai abastecer o

Oceano e irrigar o Mar de Caribe; ele, nesta

Metanarrativa, é um Vesúvio que soterra

Herculano, Pompéia e Estábias numa só de suas

grandes erupções. Nele podemos navegar, escavar

e encontrar tesouros. É preciso buscar, agir,

encontrar.

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Nesta Metanarrativa Cléverson extrapola

tudo o que já se disse neste gênero. Toda esta obra

é uma pura transcendência. Quem a poderá captar

em toda sua profundidade, em toda sua cósmica

amplitude e toda sua universal dimensão é um

verdadeiro sábio. Certamente não é tarefa para

qualquer pessoa. Mas felizmente sempre há

espíritos iluminados que sabem filtrar os raios

solares e transformá-los num belo arco-íris, a

grande síntese de todas as cores. É este o livro.

Ser sábio é saber interpretar a

universalidade da sabedoria, é saber colher o

néctar de cada beleza espargida na Criação, é

conseguir de cada fato concreto existente arrolar as

causas e consequências numa só e grande

mentalidade espiritual capaz de, na zona dos

pensamentos - com uma inesgotável força mental,

guiar as emanações que do ser humano devem

extrapolar numa constante reestruturação de seu

espaço físico-mental-espiritual. É o que, sutilmente,

a Metanarrativa nos sugere com clara leveza e

profundo saber.

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Se o mundo hodierno está carente de

pensadores, há uma plêiade que surge qual Sol

brilhante a deixar seus rastros de luz e saber para

que do paradoxo mental contemporâneo surja

brilhante um novo paradigma de alegria, felicidade

e sólida prosperidade. É o que Minikovsky nos diz

em sua Metanarrativa: “A grande genialidade é

descobrir qual o serviço intelectual que necessita

ser feito”. É desse saber que hoje se está tão

carente. É como ele também afirma e pleiteia: “O

retorno da realidade a si mesma”.

Os pensamentos de Cléverson Israel

Minikovsky nesta Metanarrativa são realmente

profundos, curiosos e repletos de incentivos a

idéias criativas, interpretativas e construtivas, como:

“Até a ignorância é um tipo de cultura”; ou “O

genuíno metanarrador nunca está pronto”; ou ainda

“O erro mais crasso de todos é desnudar a coisa

em si”; ou veja ainda esta: “A metanarrativa é a

essência da natureza”.

Se alimentar-se corretamente é o segredo

de bem viver, ler a boa leitura é a chave do saber,

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esta Metanarrativa é um livro que faz pensar a todo

bom pensador, aumenta a sabedoria de quem já a

tem e traz prosperidade a todos que a buscam. É

um livro que deve ser lido, estudado, pesquisado

por qualquer pessoa que tem amor a si próprio,

aprecia a cultura e quer o progresso seu e de

todos.

Dr. José Kormann

PREFÁCIO

Eis mais um livro do Pensador São-

Bentense Cléverson Minikovsky.

É um trabalho largo, abrangente, com

pretensões de explicar a totalidade da vida. Livro

polêmico, porém respeitável.

Não é tarefa minha analisar e julgar a

forma, o estilo, a organização do livro e as posições

intelectuais do autor. Mas sim o conteúdo. E não

poderia deixar de parabenizá-lo, até porque seu

comportamento intelectual é raro entre pessoas

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com menos de 35 anos de idade.

Concordem ou não com a obra, o Brasil

seria muito melhor se tivesse ao menos uns trinta

por cento de pessoas acima dessa massa de

idiotas, mesmo com o crescimento dos protestos

nas ruas em 2013.

Diz o autor que o Pensador busca acima de

tudo o prestígio. Eu não concordo e citaria o próprio

autor, cujo potencial humanístico e gana intelectual,

produz porque sua própria alma exige, seu próprio

ser grita. Eu lembro quando Erich Fromm dizia

muito bem que o homem, principalmente o

intelectual jamais se contenta em "viver" como um

dado jogado de um copo. Ele quer fazer história. E

Cléverson é um intelectual até à medula.

Pessoalmente o que mais me realiza na

vida é a contribuição que dou -ou suponho dar - à

melhoria da vida humana - em geral, da história

antropológica, e o sentimento de estar cumprindo

um pacto com as forças transcendentais

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subjacentes nas interconexões fraternais,

libertárias, altruísticas, espiritualmente evolutivas. O

que mais me tem realizado na vida é ouvir um

incontável número de pessoas dizer-me que

escapou da depressão e do suicídio, por minha

causa: por ter lido alguma obra minha, assistido

alguma Palestra, umas aulas, ou recebido

orientações existenciais, espirituais.

Fora questões deste teor -não confundir

com autoajuda açucarada -pouquíssimas outras

dão sentido à vida de um Filósofo.

É de audácias, como as de Cléverson

Minikovsky que precisamos hoje. Audácia filosófica.

Enfim, Metanarrativa da Civilização é esta audácia.

A racionalidade do autor, saudavelmente se

contradiz quando destila argumentos quase em

transe. É crítico, mas consegue assim ser não

sendo amargo.

É uma Metralhadora intelectual, todavia -

no bom sentido - com muitas balas de borracha.

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Queremos dizer com isto, que não é niilista, não é

iconoclasta muito menos conformista. E para mim,

o inconformismo não desvairado é a principal

característica do Filósofo.

É volumosa a obra, repleta de ricas

referências, um baile de cultura intelectual.

Erudição incomum hoje.

Vale a pena ler a Metanarrativa de

Cléverson Minikovsky.

Fídias Teles

(Filósofo, Parapsicólogo, Cientista Social e Poeta)

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Aspectos introdutórios

A metanarrativa é aquilo que não se pode

transcender. Porque a metanarrativa já é uma

transcendência em relação à narrativa visível. A

metanarrativa é na noosfera o que o universo é no

mundo físico. Metanarrativa é a descrição dos

pontos e dos contrapontos. É a eterna vontade de

fazer prevalecer uns princípios em detrimento de

outros. A metanarrativa diz o que deve emergir e o

que deve sucumbir. Mas notemos bem: o bem e o

mal, o burguês e o proletário, o superego e o id

provêm do mesmo útero. É assim que para Hegel

no Eu Absoluto, Deus, está todo o bem e todo o

mal. Deus é bom e mau. De formas que satanás se

mostra mais um operacionalizador do mal do que a

sua gênese. É assim que o mesmo Deus a um só

tempo é o Deus dos Exércitos, exterminador, e é o

Deus Amor. Aliás, o próprio amor é dúbio. Porque

um ódio intenso é uma das formas possíveis de se

praticar e manifestar o amor. Não é por acaso que

os casos paradigmáticos de brutalidade se vejam

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envolvidos cônjuges. A metanarrativa é una e

plúrima. A contraposição de forças não representa

exterioridades recíprocas ou, no máximo, só

relativamente falando. A contradição é interna, é

dentro do mesmo ser. Neste sentido, a

metanarrativa é uma luta contra o inatingível,

peleja-se contra a própria natureza. Não há como

combater racionalmente a pobreza porque ela é

parte imbricada do mundo. Enquanto houver mundo

haverá pobreza. O próprio Cristo disse “pobres

entre vós sempre tereis”. Assim como a

sexualidade sempre se fará acompanhar de

repressões. Assim como, do ponto de vista ético,

sempre haverá conduta valorosa e vil, bem e mal,

fidelidade e infidelidade. Em suma, somos dúbios

porque a metanarrativa é dúbia. A compreensão do

mundo é síntese de contrários. Mas o processo de

síntese somos nós quem fazemos. Se eu sou bom

e me deparo com o mal, a síntese poderá ser o

bem se eu seguir o preceito evangélico de retribuir

o mal com o bem. A metanarrativa é como um

instrumento de fole que preciso abrir é fechar para

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que saia som do teclado. A metanarrativa é um

perene morrer e renascer. E o que é sofrimento do

ponto de vista individual quase nada representa do

ponto de vista coletivo ou universal. Embora o

centro de tudo seja Deus ele entra em nosso

sistema como metanarrativa heterotópica porque

entendemos que o homem seja autotópico. Ele é o

centro de tudo a partir da oumperiforalogia, porque

ela é humanismo, cuja premissa é o

antropocentrismo. Esperamos que o leitor aprecie a

obra e que reforce o time dos crentes humanistas

porque o próprio Deus é o primeiro grande

humanista. Nenhum outro gênero senão o humano

tem a feição de Deus. Nós homens somos os

prediletos do Onisciente. Somos metanarradores

porque a metanarratividade é a essência da

natureza divina. Que a graça e a paz de Nosso

Senhor Jesus Cristo esteja com todos, amém!

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A metanarrativa como relação de coisas

A antropologia cultural nos mostra que a vida do

homem gira sempre em torno das mesmas

instâncias, sejam elas, abstratas ou concretas:

alimentação, vestimenta, habitação, sexo, família,

produção de riqueza, troca, autoridade, poder,

divisão social do trabalho, costumes, repetição,

imitação, estética, conhecimento, idioma, crença,

culto aos mortos, segredo, comportamento e rito

iniciático. Não há como fugir disso. A metanarrativa

é uma abstração conquanto se mostre como a

consciência total de tudo, é a consciência máxima

do indivíduo e, o que agora defendemos, é não só a

idealidade que se extrai do mundo, mas as relações

entre as instâncias materiais. O que segura a

desenvoltura da metanarrativa é esse retorno da

realidade a si mesma. Materialmente falando é

possível evoluir. Todavia, por mais que evoluamos,

sempre giraremos em torno destes lugares comuns.

O livro do Eclesiástico fala que “não há nada de

novo debaixo deste Sol”. O filósofo britânico Alfred

26

North Whitehead, a respeito do mundo do

pensamento disse que toda a tradição filosófica não

passa de uma nota de rodapé às obras de Platão.

Vivemos no mundo do tudo pensado. A cada dia

que passa fica mais e mais difícil pensar algo novo.

Em nenhuma outra época se escreveu tanto como

na nossa. Mas o que hoje se escreve é uma

reedição com outras palavras daquilo que já foi dito

no passado. O grande desafio é dizer algo novo. Ao

mesmo tempo em que vemos um afunilamento da

tradição filosófica por conta do tudo dito, também

se percebe que o caminho mais viável para quem

quer se destacar em relação aos seus

semelhantes, ainda que seja um único milímetro é

através do pensamento. As universidades de

prestígio podem barrar o ingresso de outras

pessoas a seus quadros, pode inviabilizar a

obtenção de títulos, mas o pensar ninguém pode

impedir. O desafio do pensamento é sair da

circularidade. Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino

e Hegel constituem a base tétrica da filosofia, mas

muito há o que ser feito. A grande genialidade é

27

descobrir qual o serviço intelectual que necessita

ser feito.

O princípio da seleção

Chico Xavier dizia que não podemos mudar o

começo, mas ainda podemos fazer um novo fim. E

Sartre dizia que o que importa não é o que fizeram

de nós, mas o que nós fazemos com aquilo que

fizeram de nós. A metanarrativa é não só

consciência de vários pontos de vista, mas seleção.

Dentre vários caminhos viáveis eu elejo um e

abdico dos demais. Seleciono ser advogado e não

engenheiro, casado com uma caucasiana e não

mulata, ser organizado e não desleixado, ser

cristão e não ateu, e assim por diante. Eu, todavia,

nasço dentro de um contexto repleto de premissas.

Minhas escolhas são realizadas dentro de um misto

de discricionariedades, à medida que procuro

atender aos meus corolários e a partir de premissas

que me foram culturalmente impostas. É assim que

metanarrativa é síntese de liberdade e

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determinidade, explicação que em nosso ver daria

conta de superar a antinomia kantiana. É como se

minha vida fosse um comboio sobre trilhos e à

minha frente eu pudesse escolher trilhar o caminho

esquerdo ou direito.

O social e o individual

Podemos ter premissa individual e corolário

individual, em que prevalece a individualidade.

Podemos ter premissa individual e corolário

coletivo, em que prevalece a individualidade.

Podemos ter premissa coletiva e corolário individual

em que prevalece a individualidade. E, finalmente,

pode haver premissa coletiva e corolário coletivo,

único caso em que predomina a coletividade pura.

A coletividade faz morada na individualidade e a

individualidade faz morada na coletividade. O

filósofo, ainda encerrado no seu gabinete, é o mais

socializado de todos, haja vista que a forma

suprema de socialização é através do pensamento.

A cultura é estática e dinâmica, particular e

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universal, individual e coletiva. A particularidade se

refere a uma entidade comunitária e a

individualidade a uma só pessoa. O indivíduo só se

realiza pela coletividade. O escritor, todo ele sabe

muito bem o que é isso. Premissas e corolários são

categorias lógicas, são figuras de hermenêutica,

são valores e interesses. A complexificação da

sociedade gera ou aprofunda a divisão social do

trabalho e produz o especialista. O filósofo é

trabalhador intelectual, cuja especialidade a

generalidade. Na sociedade troca-se dinheiro por

afeto, sexo por cargo, proteção por amizade, título

por ideologia, e essa fungibilidade entre premissas

e corolários é espelhada na teoria pela fungibilidade

de conceitos. O político que é um angariador nato

de relacionamento troca isto por tudo o mais. O

homem de negócios troca dinheiro por tudo o mais.

O pensador quase sempre exerce uma atividade de

gente do povo para suprir a suas próprias

necessidades e presenteia a coletividade com o

pensamento acerca dela. O pensamento é um

sacerdócio: da humanidade recebemos e a ela

30

devolvemos. A paga do pensador, ao contrário do

que muitos leigos imaginam, não é o direito autoral,

mas o reconhecimento moral e o prestígio,nada

mais. A seleção, em linhas gerais, é abraçar aquele

corolário que perfunctoriamente agrada nosso

intelecto e, gradativamente ir desbravando as

partes dele novos corolários. A investigação

intelectual pode ser uma sístole, quando

repristinamente me volto para as sequências das

premissas, ou uma diástole, quando avanço para a

sequência dos corolários. Aliás, esta distinção é

meramente didática, porque há uma circularidade

entre premissa e corolário e deixamos isto claro

quando no primeiro tópico elencamos os temas

recorrentes na antropologia cultural que vem de si

para colmatarem a si.

O mundo de Platão

O que faz o homem conferir sentido à

circunstancialidade imanente de sua vida terrena é

a ideia de alma e de Deus. Não me lembro

31

exatamente das palavras que Fídias Teles costuma

empregar, mas, de acordo com este pensador, “a

alma seria uma entidade energética entronizada na

corporeidade que lhe dá vivacidade e inteligência e

que ao deixar este veículo, retira-se incólume, vez

que é imortal e indestrutível”. Perdoe-me o autor se

a paráfrase foi traiçoeira, a memória analógica tem

esse inconveniente. A ideia de um Deus eterno e

abstrato e de um princípio incorruptível no ser

humano é a motivação para que executemos com

esmero o nosso cotidiano. Se não visássemos à

transcendência nossa vida tornar-se-ia enfadonha e

enfastiosa. Diria mesmo que se algum progresso

fizemos no campo material ele é devido ao

vislumbramento do mundo espiritual.

A angústia humana

A angústia humana decorre da escassez do tempo

de nossa vida conjugada com a difícil decisão de

em que empregar esse tempo tão exíguo. A

angústia decorre também de não poder enxergar

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com clareza e distinção as premissas e os

corolários mais remotos. A angústia decorre ainda

de não ver com clareza o caminho entre aquilo que

eu sou hoje e aquilo que eu quero ser, ou entre o

estar e o querer chegar. Angústia é tensão. A

tensão é a prova do mundo espiritual, justamente

ele que em seu carrega porção dobrada de terra.

talvez essa pletora de gravidade seja o que lhe

inculca o desejo de ascensão traduzido no esforço

sistemático e perseverante do pensamento.

Angústia é a sensação de estreiteza e só se sente

estreito aquele que almeja ampliar seu espectro de

visão intelectual, a qual nominamos de

metanarrativa. a angústia é o gatilho que dispara o

pensamento e a atitude que faz de nós um

fracassado ou um herói. A angústia é, às vezes,

consequência da insegurança da seleção. Somos

obrigados a fazer escolhas sem que tenhamos

clareza das consequências de nossas decisões,

sem saber do inconveniente de uma via e do que

abrimos mão. O que alivia, em longo prazo, essa

angústia é, mais tarde, descobrir que todas as vias

33

oportunizam de modo diferente a consecução de

nossas pérolas da subjetividade. Mas entre o

instante em que nos lançamos em algo e a

consecução ainda que parcial do objetivo há um

meio de campo em que se vive um sacrifício sem

recompensa. O desespero pode sobrevir nessa

fase que é sempre mais longa do que gostaríamos

e somos tentados a abandonar as trincheiras. Todo

o restante irá depender da resistência nesse

momento de ofuscamento, confusão, ignorância,

turbulência, fraqueza e insegurança. É para este

tipo de circunstância que se presta a perspectiva do

sobrenatural. O sobrenatural está fora e dentro de

nós. O metanarrador é convidado a trazer no

campo da idealidade coisas à existência, para que

elas tornem-se reais também na concreção.

Trabalhando conceitos fortes para sub-rogar

noções toscas

Jacques Lacan trabalha quatro conceitos forjados

por Freud, para fazer deles o cerne da psicanálise.

34

São eles: pulsão, inconsciente, repetição e

transferência.

Princípio da lacuna: a metanarrativa é como uma

estrutura de aço que serve para sustentar as

paredes que em seguida serão erigidas. O

metanarrador não é movido por pulsão, mas por

necessidade. O universo tem horror ao vazio e a

inteligência segue a mesma linha. A inteligência é

porosa. É por isso que até a ignorância é um tipo

de cultura, ainda que cultura de má qualidade.

Busco bens culturais, culturais e espirituais para

colmatar as falhas de minha metanarrativa.

Princípio da tênue conexão: de acordo com este

princípio as premissas e os corolários são

conteúdos cabidos dentro de um ponto, por vezes,

o conteúdo já está lá, ele só precisa ser conectado

à grande trama de generalidades.

Princípio da repetição: certas premissas e certos

corolários funcionam como espelho a repetir a

mesma ideia, o mesmo valor e o mesmo interesse

de premissas e corolários primários.

35

Princípio da transferência: de acordo com este

princípio há uma fungibilidade do conteúdo material

da metanarrativa. beleza é conversível em

inteligência, inteligência é conversível em trabalho,

trabalho é conversível em amor, e assim por diante.

O estudo das sociedades ditas primitivas se presta

para poder compreender a nosso que é complexa.

Gaetano Mosca fala que na noite dos tempos os

dois grandes metanarradores era o caçador e o

ancião. Por óbvio, o caçador tem história para

contar, cerzida de alto teor emotivo e moral,

enquanto que o ancião tem grande memória em

razão do excesso de dias de vida. Um e outro, em

suma, mais expostos ao mundo da experiência.

Insatisfacibilidade intelectual

A busca por uma construção grandiosa e

harmônica intelectual, em outras palavras, a busca

por uma metanarrativa exauriente, pode ser

considerada como um processo de maturação.

36

Paradoxalmente o suposto da busca por adultícia é

um perene sentir de infantilidade. A infância do

homem é a mais longa de todas. É que a infância

se identifica com o período de aprendizagem.

Quanto mais estender-se a infância, mais se

ampliará o processo de aprendizagem. Daí que até

mesmo o ancião sábio carrega consigo um

sentimento infantil. Infância é a construção de

personalidade. Metanarrativa é essencialmente isto.

O sentimento de satisfação, de completude e de

adultícia é a horizontalidade. Infância é sair de si.

Mas crer que algum esforço, alguma evolução é o

todo possível é jogar oportunidade de burilamento

cultural janela a fora. O genuíno metanarrador

nunca está pronto. Deus, enquanto metanarrador é

metanarrativa há um só tempo, está se fazendo e

se refazendo continuamente. Foi o Cristo que disse

“deixai vir a mim as criancinhas” e “quem não for

como uma criança não poderá entrar no Reino dos

Céus”.

Materialidade: peça da metanarrativa

37

Platão é considerado por muitos o homem mais

inteligente do mundo por ter vislumbrado o mundo

das ideias. O mundo ideal de Platão, ao menos

para ele, é a grande narrativa. Mas pensamos que

a metanarrativa é não só a alma do mundo, mas o

próprio mundo. Aristóteles estava correto ao unir a

forma à matéria transformando tudo em substância.

A causa, seja ela eficiente ou final, é abstrata. O

Motor Imóvel de Aristóteles é um princípio

atemporal não espacial, material e virtual que tudo

arrasta para si. Causalidade e materialidade estão

entre si como abstração e concreção, são

antônimos que carecem da sua antípoda para

poder efetivar-se. A causa é imaterial e o nexo de

causalidade também é imaterial. Materiais são

apenas as mediações cabidas dentro do trânsito

chamado de nexo de causalidade. O método,

filosófico ou científico, é, via de regra, excludente,

afasta o maior número possível de variáveis para

atrelar certos efeitos a certas causas. Em verdade,

é contrassenso falar em método científico, todo

38

método é filosófico ainda que desenvolvido por um

cientista. O que se tem é um método filosófico

empregado nas ciências. A ciência não é tão

melhor que a filosofia, ela só tem mais propaganda.

Aliás, nós filósofos precisamos fazer parceria com

os propagandistas. Filosofia é propaganda e

propaganda de qualidade tem de ser filosófica.

Quando no princípio de tênue conexão eu falava de

um ponto já albergado em conteúdo, estava

claramente defendendo o inatismo. Mas há pontos

com os quais nascemos brindados inclusive no que

se refere a conteúdo, e há pontos que não passa

de uma plataforma aguardando por conteúdo. À

medida que o tempo vai passando vão sendo

disponibilizados pontos. Se não os preenchemos

com informação de qualidade, os preenchemos

com informação de má qualidade. É por isso que eu

digo que até mesmo que até mesmo a ignorância é

um tipo de cultura. O intelectual nada mais é aquele

que pelo esforço exige do próprio intelecto mais

pontos e mais conexões que o cérebro de uma

pessoa mediana consegue pôr em curso. Vivemos

39

no mundo do tudo pensado. Por isso que sob uma

ótica é melhor ser escritor do que filósofo: o filósofo

locomove-se por corredores estreitos. O escritor

não tem outra preocupação senão empolgar o

leitor, deixá-lo perplexo, ansioso, enfim, brinca com

as palavras, é um exibicionista de estilo. A

semântica, a fonética e o léxico são suas

ferramentas-brinquedos. É a escrita pela escrita. A

ciência, a filosofia e até mesmo a literatura são

metanarrativas artificiais a partir do instante em que

escolhem as peças que irão empregar na ereção do

castelo de conceitos.

Relações familiares

É no seio da família que começamos a construir

nossa metanarrativa. Mas não quero falar de todas

as relações familiares, apenas de duas. Freud

resgata a mitologia grega para criar o complexo de

Édipo e o complexo de Electra, respectivamente o

amor do menino pela mãe e o amor da menina pelo

pai. Mas existem duas situações pouco exploradas:

40

o amor da mãe pelo filho rivalizando com a nora,

duas mulheres amando o mesmo homem, e o amor

do pai pela filha, rivalizando com o genro, dois

homens amando a mesma mulher. É que

metanarrativa é posse. Aquilo que eu conheço

muito bem, ainda que não seja meu, eu o trato

como sendo minha possessão. Quem muito narra,

muito toma posse, narrar é apropriar-se. E eu nem

vou entrar na zona jurídica para traçar a diferença

entre propriedade e posse. Ou, que tem algo junto

de si inevitavelmente está sujeito a perda. Todo

aquele que possui pode ser expropriado.

Paranormalidade

Toda e qualquer evolução nada mais é do que um

nível crescente de paranormalidade. O primeiro

salto paranormal é a vida em que há o salto do

mineral para o orgânico. O pensamento é a free

way da paranormalidade em que ela cresce

geometricamente. O que Teilhard de Chardin

chamou de cosmogênese, biogênese, noogênese e

41

cristogênese são marcos de paranormalidade. A

vida e o pensamento não são ordinários e normais,

mas extraordinários e paranormais. A filosofia

enquanto algo não só se ocupa de

paranormalidade, mas ela mesma é paranormal.

Quanto maior o número de mediações interpostas

no trânsito do nexo de causalidade, menor a

paranormalidade quanto mais imediato a identidade

entre o pensado e o efetivo maior a

paranormalidade. A paranormalidade é um jeito de

ser da causalidade e vice-versa. O pouco progresso

realizado pela parapsicologia se deve ao fato de a

mesma não se dar conta de que há diferença entre

aparência e essência e que cabe à ciência

desvendar a essência das coisas e a relação do

seu objeto de estudo com o mundo fenomênico.

Todo o saber tem como uma das suas metas

explicar o nexo de causalidade de manifestações.

Infeliz a terminologia normalidade e

paranormalidade. Jamais será possível traçar uma

linha segura entre normalidade e paranormalidade.

Isto se deve ao fato de tanto uma quanto outra

42

chegarem ao intelecto pelos sentidos. É assim que

a clarividência trabalha com imagens que são

captadas pela visão, a clariaudiência é captada

pela audição e a levitação é a negação do tato. É

difícil conferir objetividade àquilo que nos é dado

pela subjetividade dos sentidos. Louvável é a

tentativa de se definir o objeto de estudo e existir

uma tábua de temas, mas o método não consegue

ultrapassar em muito a mera descrição.

Normalidade quer dizer conformidade com dadas

normas. Não há anomia no universo, o que existe

são normas diferenciadas para cada instância da

realidade. Grosso modo, poderia se dizer que

normalidade são aquelas truístas conexões de

parca expansão e que a paranormalidade se

intensifica a partir do extrapolamento daquela

circunscrição de obviedades, em direção às

premissas e corolários mais longínquos.

Paranormalidade é frequência. O alcance da

frequência decodifica sua força, intensidade e

natureza.

43

Começando pela negação

Marx é um grande pensador, mas é grande filósofo.

Não, ao menos, como frequentemente se concebe.

Ele começa o discurso pela negação. Em O Capital

começa destrinçando a mercadoria e a nega e

renega sistematicamente. Do ponto de vista lógico

eu tenho de no mínimo principiar pela afirmação

para só em seguida negar, mas Marx começa

negando. Marx constrói uma antinarrativa. Porque

quem narra organiza e harmoniza, mas ele se

ocupa das rachaduras irremediáveis do sistema,

não passíveis do sistema, não passíveis de

emenda. Freud, embora sendo crítico da sociedade

como Marx, apresenta as contrariedades do

indivíduo (e não do sistema) como objeto de

esquemas mentais dotados de autorregulação e

autocompensação. Para Freud só a psicose seria

capaz de arrebentar o dique das barreiras

psicológicas enquanto que para Marx, o

solapamento do modo capitalista de produção seria

inexorável e irreversível. Marx começa negando

44

porque é praxe colocarmos no princípio aquilo que

almejamos como teleologismo. Para Freud as

psicoses seriam administráveis. Para Marx

qualquer forma capitalista de produção e circulação

de riqueza seria transitória, pois eis que cavaria sua

própria cova. A função do metanarrador é

essencialmente afirmar. Se Vygotsky pensava que

a compreensão de um nível superior acarreta a

negação do nível anterior, somos mais próximos de

Wallon que entende que a integração do

superveniente não extingue o antecedente. O belo

do marxismo está em uma das características do

seu método que é a busca da totalidade. O

marxismo, portanto, necessariamente, quando bem

entendido conduz a alguma coisa fora do

marxismo. Ele gera a sua negação. O marxismo é

uma ferramenta teórica tão boa, que nos deixa

ágeis a ponto de jogarmos janela a fora aquilo que

até era nosso arrimo. Como toda outra forma de

inteligência, o marxismo perde a razão de ser

quando atinge a meta tencionada. O marxismo é

apenas uma das narrativas possíveis. Como toda

45

outra perspectiva, é um dado de mira. Mas a

oumperiforalogia quer ser a abstração de todos os

pontos de mira possíveis, inclusive marxismo,

psicanálise e todos os ismos possíveis. Este autor

que vos escreve não escreve com a mesma

minúcia como outros autores. Permito-me maior

liberdade. Mas se Marx chamou Elisée Reclus de

“escrevinhador”, digo ao finado Marx que, para

mim, ele não é nem um milímetro superior a Reclus

do ponto de vista puramente teórico.

O inimigo da metanarrativa: o poder

Quanto menos impactado pelo poder, mais

excelente o metanarrador. O poder inquina e vicia o

intérprete da realidade. O direito é, sim,

pensamento. Mas o juiz é como que menor do que

uma peça numa máquina. Ele está imbricado,

metido e cabido dentro de uma gigantesca

engrenagem. Hoje entendo melhor certas decisões

esdrúxulas. O magistrado é tão refém de aspectos

estruturais do Estado como as partes, ou, no caso

46

do direito penal, quase tão sojigado quanto o réu.

É-lhe cobrado mais do que um ser humano normal

é capaz de ofertar. Ao mesmo tempo que no campo

da aparência é dono de uma colossal

discricionariedade, é sujeito a pesadíssimos

condicionamentos. A eles as minhas reverências

por fazerem prevalecer a justiça não obstante o que

acima foi colocado. Tomo o exemplo dos

magistrados emprestado, porque também nós

estamos dentro de estrutura de poder. Toda

circunstancialidade é uma instância de poder.

Nossa metanarrativa sofre um terrível achatamento

em razão dos pobres postos. O poder existe para

contornar a ausência de narrativa. Quanto menos

racionalidade, mais poder. O objetivo do ser

humano é expandir a metanarrativa e minimizar as

estruturas do poder. Todo poder é irracional. O

poder se serve da racionalidade, mas a odeia. Tudo

depende daquilo que iremos eleger ou como

instrumento ou como fim. Racionalidade e poder se

autoimplicam enquanto instrumento e meta e se

autoaniquilam enquanto ambos postos como

47

finalidade. Não foi por acaso que a filosofia nasceu

na Grécia democrática: democracia é a um só

tempo antiteocracia e diluição do poder. Religião é

para ser praticada. Morte aos políticos cingidos de

túnicas sacerdotais. A democracia é o mais perfeito

modelo político. Melhor que a democracia só

mesmo o governo dos filósofos. Os governos

tirânicos fazem o povo fenecer na ignorância da

tirania. A parte mais importante de um projeto é a

que diz respeito à educação. Porque um povo

instruído dá conta de administrar e resolver todos

os seus problemas pragmáticos e civilizacionais. O

“pobre entre vós sempre tereis” está corretíssimo

dentro de uma cultura farisaica de enclausuramento

de informação e cultura. Onde todos são cultos não

há lugar para pobres. A oumperiforalogia procura

resgatar do Iluminismo a propagação universal das

luzes. Mas pretende fazer isto na prática e não só

no discurso. O Brasil há muito tempo pede um

partido que preconize a educação como o problema

mais estratégico de nossa sociedade. Os governos

tirânicos superfaturam o valor dos livros e aviltam

48

os salários dos professores. A cultura torna-se algo

caro e os seus apreciadores tornam-se miseráveis.

A ponto de o homem sentir vergonha de exibir

certos tipos de conhecimento. A moral do nosso

tempo, como muito bem observou Mariano Soltys, é

a moral do dinheiro. O rico ignorante é prestigiado e

o intelecto pobre é ridicularizado. A cultura não

deve ser encarada como luxo de quem já resolveu

o problema existencial econômico de sua vida, pelo

contrário, a cultura é a grande produtora de riqueza.

Cultura não é excrescência da economia de um

país, a economia que é a expressão material dessa

instância virtual que se chama cultura. O estar

dentro de um sistema a um só tempo dá a base a

partir da qual se principia a reflexão e se começa o

cerceamento com condicionamentos

epistemológicos. O direito é uma arte que resiste à

estandardização. Em meio a tantos milhares de

operadores jurídicos ainda remanescem alguns

poucos juristas. O direito é muito mais do que as

ciências jurídicas. Assim como a metanarrativa em

certos sentido é maior do que qualquer teoria

49

acerca da metanarrativa. O poder é sempre poder

de fato. Narrativa não é fato, é uma construção

intelectual em que a representação do fato está

cabida. Enquanto o pensamento busca o poder e

exclama “peguei”. O poder é critério de verdade. É

o Estado Soberano que diz que você é graduado

nisto ou naquilo, ou se você é doutor. E isto é válido

e verdadeiro ainda que o chefe da nação não seja

doutor ou mesmo que seja um semianalfabeto

ignorante como um onagro. O poder consiste em

dizer com o que devemos preencher nosso tempo.

O ser se realiza com o pensamento e ele só se

efetiva com a hora vaga. É o tempo ocioso que nos

diz quem nós somos. O homem que não tem tempo

vago é um escravo. Quando estamos no trabalho

experienciamos uma liberdade formal. Mas o tempo

livre é uma liberdade real.

Lateralidade

Cerca de 95% da população é destra e as demais

são canhotas e umas poucas ambidestras. Não

50

raro, o ambidestro é um canhoto que se adaptou a

um mundo feito para destros, mas isto não significa

que não exista ambidestria. Grandes

personalidades, como Leonardo da Vinci, foram

ambidestros. Não raro, um típico ambidestro fica

com dúvida de qual das mãos empregar na

realização de uma tarefa. As línguas ocidentais

foram desenvolvidas por e para destros, pois o

movimento é da esquerda para a direita. Trata-se

de uma inteligência analítica. Já os orientais

desenvolveram sua grafia diferente que externaliza

a inteligência de lateralidade direita (referimo-nos

ao hemisfério cerebral, lembrando que cada

hemisfério comanda o lado oposto do corpo num

arranjo de transversalidade). Este é o sentido da

linguagem ideogramática e das escritas que se

movimentam tanto da esquerda para a direita

quanto da direita para a esquerda aquando do

término da linha superior e da descensão à linha

inferior. A Bíblia em I Crônicas 12, 1-2 fala que os

guerreiros de Davi usavam arco e flecha com

ambas as mãos e atiravam pedras. A ambidestria

51

desencadeia um tipo de personalidade sendo a

recíproca inversa verdadeira, embora mais rara. O

treino é muito mais importante do que se imagina.

O usar as duas mãos é praticamente uma

fisioterapia. O cérebro é tão elastério que até

mesmo um ancião destro consegue escrever com a

esquerda se se empenhar.

Limites da metanarrativa

Toda metanarrativa é limitada pelo espaço e pelo

tempo. Pois o eu enquanto alguma coisa está

circundado por um dado entorno no curso de um

trânsito temporal. A reflexão filosófica é o hercúleo

esforço de extrapolar e transcender isto tudo.

Platão fez mais do que inaugurar o mundo abstrato

das ideias, ou, como querem seus discípulos,

desvendá-lo. Ele queria uma proposta de sociedade

e foi o que fez em A República. Aristóteles foi mais

do que um grande tratadista e organizador dos

conhecimentos. Ele foi o mentor do pan-helenismo

e Alexandre Magno, seu tutelado, o executor.

52

Aristóteles compilou o teor de 158 constituições de

cidades-estados. Quando se discute lógica,

metafísica, linguagem e epistemologia está

discussão só faz sentido enquanto aporte teórico a

embasar uma proposta de sociedade e

humanidade. Quando um Wittgenstein reduz a

gama de temas filosóficos, em verdade, está

admitindo que a sociedade em que ele vive é a

melhor e não comporta mais aprimoramento. O que

propomos é uma sociedade de letrados, cientistas,

teóricos e escritores. Não existe nada mais

estratégico do que cultura, idioma, educação,

ciência, tecnologia e conhecimento em geral. Só

aos doutores serão reservados cargos eletivos na

sociedade que propomos. Não existe nada mais

estratégico do que cultura, idioma, educação,

ciência, tecnologia e conhecimento em geral. Os

professores em todos os níveis deverão ser

doutores, inclusive os da educação infantil. A

transição da sociedade atual para a sociedade

almejada será realizada pela inteligência, elite que

organiza a militância, que mobiliza as massas. A

53

nova sociedade deverá ser minuciosamente

monitorada. Não só as lideranças deverão ser

monitoradas, mas todas as pessoas. O governo

deverá ser e ouvir o que acontece em todos os

recintos, mesmo os ocupados por pessoas comuns,

por mais privados que sejam. O Estado deverá

fazer com que as pessoas sejam maximamente

organizadas, pois é mais fácil controlar quem é

organizado. O novo modelo de civilização deverá

preconizar tendências analíticas, abstratas e

universalizantes ao estilo daquilo que melhor dele

se aproxima a racionalidade alemã. O montar uma

metanarrativa não é algo passivo e meramente

interpretativo. Posso, adrede, articular uma

metanarrativa como quem monta um projeto. Sou

livre para estabelecer premissas e corolários e sou

livre para, com elas e a partir delas, vislumbrar um

panorama inédito e superior a tudo o que foi

antecedente. O que pode ser pensado pode ser

realizado. Precisamos de pessoas que pensem o

novo projeto. Para Marx o teorizar até é um

trabalho, porém, improdutivo. Entendo de outra

54

maneira: o pensar é o trabalho por excelência. Ele,

mais que o trabalho braçal, multiplica valor. O ser

humano, se é o único bem que produz mais valor

do que aquele que nele está contido, isto se deve

em primeiríssimo lugar às suas faculdades mentais

e em menor medida ao trabalho físico. Quanto mais

intelectual o trabalho de um homem, mais ele tem

de ser valorizado. O que seria da revolução

industrial sem cientistas, técnicos, engenheiros e

administradores? Ora, bem, o trabalho dessa gente

é intelectual. O erro da modernidade foi proletarizar

os próprios corifeus da era da máquina. Quem

administra a estrutura merece suas prerrogativas,

mas quem pensa o processo não pode ser um

funcionário de gravata apenas. O fator número um

de economia são os recursos humanos. Elas é que

são as premissas e os corolários. É função da nova

sociedade, proporcionar-lhes a devida dignidade. E

isto inclui liberdade religiosa. Digo isto ainda que

intimamente tenha sido convencido da primazia

espiritual do cristianismo. O cristianismo, por falar

nele, é ótimo enquanto revolução pessoal, mas

55

projeto de sociedade tem de ser pensado por

filósofo. O filósofo tem como objetivo um dia dar as

mãos a todos os religiosos e, uníssonos, bradar a

palavra universal “aleluia” por conta de todas as

conquistas individuais e coletivas.

Premissas e corolários distintos como elemento de

união

As pessoas têm preconceitos diferentes e buscam

metas distintas. A praxe que daí decorre deve ser

convencer o outro a me ajudar na conquista das

minhas metas porque eu posso ajudá-lo nas metas

dele. O melhor de tudo é a preparação. Quando

possível, antes de dialogar com alguém já de

antemão devo conhecer os seus objetivos.

Habermas propôs uma ética do discurso falando da

importância da linguagem, da inevitabilidade da

ética mínima, da abertura ao diálogo, etc. O que

queremos dizer é que para uma premissa ser aceita

e para um corolário ser aceito como meta, eu

preciso passar ao largo deles. Tudo aquilo que é

56

publicizado é desacreditado. Deve-se fingir que não

se conhecem as premissas e os corolários alheios

ainda que se esteja ciente dos mesmos. Quando

você quiser defender um interesse seu deverá

convencer o interlocutor da vantagem do caminho

embora ocultando o destino. Quando o agente de

convencimento quiser contar com apoio alheio

deverá fazer isto apresentando para o outro as

vantagens que ele irá ter, no fundo, o maior

privilegiado de todos do ponto de vista individual. O

indivíduo só alcança seu objetivo particular quando

consegue convencer um grupo de que a vantagem

é para o grupo. Por outro lado, nenhum grupo

conseguirá salvaguardar seus interesses se não

segregar um expoente para capitanear a bandeira.

As políticas e, antes delas, as campanhas que dão

errado são aquelas que jogam abertamente. Na

dicção do Papa Paulo IV “o povo quer ser

enganado”. O pensamento está correto em que

pese a redação truncada como foi formulada. Um

projeto de sociedade é precedido por um programa

de governo. Neste programa de governo devem ser

57

dadas as diretrizes genericamente, mais do ponto

de vista procedimental do que teleológico. A elite

deve manter seus objetivos guardados a sete

chaves. Os objetivos, que chamamos de corolários,

devem ficar encerrados no âmbito dos presumidos

e subentendidos. Somente depois de o projeto

estar totalmente implantado é que as premissas e

os corolários poderão ser exibidos e carreados ao

reino dos explícitos e da consciência forte. Dialogar

de igual para igual abertamente expondo suas

metas, havendo transparência de todo lado é como

se cada um exibisse suas armas de guerra e os

mesmos servidos se vissem envergonhados pelo

seu aparato de pouca monta. As proposições

ulteriores precisam ser mediadas por proposições

mais chãs. No diálogo e no comportamento

sempre deve ser mantida a dubiedade dentro/fora e

essência/aparência. Os filósofos achavam que tudo

estaria resolvido no dia em que conseguíssemos

ultrapassar a aparência e atingir a essência.

Errado: a essência não está aí para ser apropriada

intelectualmente pela humanidade toda, ela existe

58

para ser objeto de busca, para mover o mundo do

trabalho, do pensamento e da emoção. O erro mais

crasso de todos é desnudar a coisa em si. E isto

vale para a sexualidade, no campo da religião para

o sagrado, no campo da economia e da política

para o interesse. A coisa em si existe para ser

manipulada pelos preparados e não para ser

compreendida. A coisa em si só se compreende

pelos seus efeitos. Coisa em si abarcando as

premissas e os corolários. É tendência natural do

ser humano querer receber mais do que doar. Mas

só viveremos numa sociedade em que cada um

mais oferta do que recebe quando conseguirmos o

consenso com o discurso perfunctório a serviço de

um metadiscurso, ou seja, uma metanarrativa.

Quando se fala em aparência já surge a ideia de

dualidade. Mas a zona lindeira que separa o público

do sigiloso é movediça. À medida que os objetivos

vão sendo alcançados amplia-se a gama de

proposições que tornam-se públicas e a

inteligentsia avança adiante em consciência em

direção às premissas e aos corolários mais

59

remotos. À medida que o subconjunto de premissas

e corolários do efetivo se ampliar, amplia-se de

igual modo o conjunto que abarca o primeiro que é

contenedor do tudo pensado. Quanto mais cresce o

campo do pensado. O pensado alavanca o efetivo e

o crescimento do efetivo força a ampliação do

pensado. A totalidade de tudo isto que

descrevemos é metanarrativa. Se para Kant os a

prioris estavam no indivíduo, para Habermas na

comunidade ideal, para mim os a prioris estão na

inteligentsia, conjunto real que mais se aproxima do

Eu Absoluto hegeliano. Enfim, a dualidade da qual

falávamos não é apenas o lado A e o lado B.

Porque em se tratando de premissas posso ir

avançando cada vez mais. Isto é possível porque

as novas experiências a todo instante me agraciam

com instâncias antes inexistentes que passam a ser

meu objetivo. O desbravamento das premissas e

corolários, portanto, não é apenas um processo

lógico, é empírico e experiencial ao mesmo tempo.

Metanarrativa é compreensão, mas também é

ingerência sobre a realidade. O desafio do

60

metanarrador é sair da contemplação e partir para a

ação. A solução dos problemas da humanidade não

se pulveriza com um bom mercado ou um bom

Estado embora tudo isto possa ajudar. Precisamos

de uma comunhão de metanarrativas. Para que

todas as propostas sejam unificadas numa só. E

quem irá incardinar todas as categorias possíveis e

imagináveis numa só, que é a educação, será a

inteligentsia. Porque somente a educação é capaz

de gerar uma terceira instância, a comunidade civil

agora esclarecida, além da solidariedade mecânica

do mercado e do paternalismo estatal. Habermas

concebe a sociedade civil organizada como

sindicatos, ONG’s, igrejas, clubes, etc. Na minha

acepção tais instâncias terão algum valor quando,

no mínimo, seus dirigentes forem grandes teóricos.

A sociedade deve ser hierarquizada de acordo com

o nível de intelecção de seus administrados. O

critério sempre foi o ter terras, dinheiro, ser nobre,

mas o melhor critério poucas vezes foi adotado: o

conhecimento. Um problema sério que talvez surja

daí seja o seguinte: se os teóricos serão as

61

autoridades da nova sociedade, como definir quem

terá de realizar trabalhos de relevo, como os

intelectuais, e trabalhos menos visados pelo novo

sistema? Simples: como todos serão doutores ao

longo de duas décadas será fácil definir quem tem

mais propensão para o trabalho e quem,

diferentemente, poderá decernir desvantagens ao

mundo teórico. Assim como eu tenho um

determinado gosto por certa casa e certo automóvel

porque meu capital gira em torno de US$

100.000,00, terei outra percepção se eu tiver

US$1.000.000,00. O mundo intelectual é assim:

quanto mais conheço, quanto mais ampla minha

visão de mundo, tanto mais procurarei ficar arrojado

intelectualmente. Projeto de sociedade é isso:

caminhar da imanência para a transcendência. Mas

quando o transcendente passa a ser imanente por

ter se consubstancializado, já antes desse evento

mesmo a inteligentsia deverá trasladar a baliza da

transcendência para mais adiante. Até porque se

imanência e transcendência coincidirem totalmente,

o indivíduo e a civilização perdem o sentido.

62

Sentido, aliás, nada mais é do que o movimento do

imediato para o remoto, o egresso do realizado,

conhecido e desencantado para o por fazer,

ignorado e místico. A inteligentsia é uma categoria

abstrata dentro da qual entrarão pessoas reais.

Mas, de antemão, não é possível fazer coincidir

com ela nenhuma instituição já existente, mas ela

trará prevalência nos setores de educação estando

aberta a pessoas de todos os meios sociais. O

único requisito é o conhecimento aprofundado da

realidade. Até mesmo porque, como diria René

Descartes, “a razão é o que há de mais bem

distribuído entre os homens” (em que pese a

opinião de Rousseau e de outros mais em

contrário). Há muita gente que passou pelos

bancos universitários, amadureceu o pensamento

crítico, e agora que está fora adquiriu experiência e

tem muito mais a colaborar. Depois que a

universidade abre a visão de mundo de uma

pessoa ela continua se expandindo mesmo que não

mais integre a universidade. Porque o ensino

superior mostra a mina de ouro e lhe dá a picareta

63

para continuar trabalhando. O mundo é uma grande

conversação. A tradição filosófica é um diálogo de

gigantes, um diálogo “intervivos” e, principalmente,

um diálogo entre respirantes e extintos. A filosofia é

o remédio contra o desperdício da experiência. Ela

é o feedback que demos conta de fazer com a

experiência de nossos ancestrais. A filosofia é a

arte de reconhecer que aquilo que não

conhecemos, o eterno reino dos presumidos e

subentendidos é o que impacta ainda que não

elucidado. A filosofia é o transpor o problema ad

infinitum e nunca solvê-lo. As premissas e os

corolários podem se encontrar em três situações:

luz, penumbra e escuridão. Penso que quando se

fala em Iluminismo a ideia é aumentar a luz

avançando sobre a penumbra e fazer com que a

escuridão fronteiriça seja um cafus e que “as vacas

pardas” de Hegel ganhem coloração sob o feixe do

holofote. Ao mesmo tempo em que o indivíduo fica

cada vez mais sobrecarregado pela apreensão da

sequência de processos elucidativos, maior

comodidade lhe é dada num mundo em que as

64

vigas mestras foram todas pensadas. A

metanarrativa é estrutural e material: isto se aplica

ao poder posto e ao discurso, entendido como

linguagem, que instrumentaliza e lhe dá vida. O

poder e a linguagem são a um só tempo pessoais e

impessoais. A assimilação das relações de poder e

de significado próprio da linguagem é a construção

da metanarrativa. A linguagem e o poder são

instâncias que nos deixam cambaleando porque

oscilam entre o muito próximo e o muito distante. A

linguagem é sintaxe, mas cada palavra em especial

possui um conteúdo, o poder também é assim. A

metanarrativa enquanto modelo de civilização não

quer, como certa ala do marxismo, ser

estruturalista, ela ocupa-se com a lógica de

estruturação e operacionalidade e também com os

valores entendidos no seu sentido mais amplo

possível. O mundo platônico das premissas e dos

corolários é piramidal e há uma gradação dentro

desta imaterialidade. Assim como há níveis no

mundo empírico, há níveis no mundo ideal. As

culturas semitas são tão voltadas para os níveis

65

elementares do mundo empírico que, para

compensar, dão um salto para o ápice do mundo

ideal tomando Deus para si. O que o mundo é e o

que ele seja é uma distância dentro da qual está

para ser ou o que nós queremos que ele seja é

uma distância dentro da qual está metida a

potencialidade. Do ponto de vista fático há infinitas

metanarrativas entre o efetivo e o ideal. Quando

falamos que filosofar é pensar os fundamentos da

realidade visando o bem da humanidade, dizemos

que precisamos conhecer para decidir. O

conhecimento deve ser universalizado, mas mesmo

neste campo há quem esteja na dianteira enquanto

que a grande maioria se empenha para tomar nota

do que já foi feito. Toda sociedade possui elite não

existe organização social sem elite. Seja esta elite

militar, demagógica, gerontocrática, plutocrática, e

por aí vai. O que se vê é que em nome de uma

estabilidade e sobretudo em nome da perpetuação

familiar nas instâncias de poder, mantém-se a

massa do povo numa nuvem de escolaridade,

situação material e espiritual suficiente o bastante

66

apenas para ela não perecer, mas ele não

transcende a linha do óbvio. Em nosso programa

tudo ocorre de diferente forma: a inteligentsia é

uma equipe de transição e, em que pese dever

existir uma elite pensante, ela pode ser outra,

desconexa da que lhe precedeu, desde que do

ponto de vista ideológico lhe seja superior. Talvez

não ocorra tal reviravolta justamente porque quem

se destaca um pouco em qualquer área que seja, é

guindado à condição de par ao lado de quem no

comando está. Assim, não há ruptura da estrutura

de poder, mas o conteúdo da estrutura é o que se

renova. Não por acaso que Steve Jobs disse que a

invenção mais genial da vida foi a morte. Assim

como cada indivíduo tem um espírito, e aqui

pretendo não usar qualquer categoria religiosa,

parece que também cada geração tem um espírito.

Isto importa em muito para a metanarrativa, pois é

como se a humanidade em um dado momento

caminhasse para o norte e, ato contínuo, decidisse

remar par ao leste. Muitas vezes a metanarrativa,

para avançar, tem de retroceder. É assim que dada

67

geração é obrigada a se empenhar no trabalho para

criar as bases materiais sobre as quais se dará a

grande emancipação espiritual e cultural. O estudo

é o princípio ativo espiritual que revoluciona o

mundo material. Numa sociedade de engenheiros,

empresários e de letrados de invejável formação,

brota prédios do chão e vicejam as letras. Que

pena que não mais se emprega a expressão “Belas

Letras”. Sim, digo “que pena” porque tão importante

quanto dizer algo é como dizê-lo, tão importante ou

mais importante do que declarar é declarar

belamente. Não que só os grandes autores devam

ter espaço, muitíssimo pelo contrário, pois eu

mesmo ainda não cheguei lá, mas assim o creio

chegarei, mas porque em nós podendo haver a

discricionariedade de eleger os padrões que

queremos seguir, coloquemos os grandes

paradigmas. Porque quanto mais remoto o

corolário, tão mais remoto o corolário, tão mais

longe caminharei no afã de apropinquar-me dele.

Como tudo o que é humano, um projeto de

civilização é um fenômeno cultural. Aí caímos no

68

problema de Boaz e Sausurre de que há culturas e

linguagens simplesmente diferentes, mas não

necessariamente inferiores ou superiores. Sim,

porque para os relativistas culturais sempre

insistem que giramos em torno de lugares comuns.

Mas para quem engendra em seu intelecto um

modelo inédito de sociedade, ainda que não exiba

algo novo debaixo deste Sol, traz uma

superioridade que consiste no modo de como estas

velhas e surradas coisas e instâncias estão

dispostas entre si. Não é por falta de riqueza no

mundo que há miseráveis, tampouco não é por falta

de quantidade de conhecimento que há ignorantes.

Embora tudo isto possa ser multiplicado. A questão

está no fracionamento e na participação menos

discrepante do cabedal de recursos financeiros e

culturais. As lideranças têm dificuldade de se

sensibilizar à situação dos liderados, adstrinjindo-se

a mais vigiá-los e puni-los do que ajudá-los. Na a

sensação no líder de que ele pagou determinado

preço para ser quem é e que quem tem a mesma

pretensão deve se submeter a idênticos critérios de

69

ascensão. Esta mentalidade é errada porque se

tivermos que fazer sempre as mesmas coisas para

sermos os mesmos, nunca conseguiremos

progredir. Isto em parte já é realidade, pois é mais

fácil ser bacharel hoje do que há 50 anos. O risco

de se falar em universalização do progresso são

basicamente dois: a) criar uma sociedade de ricos

ignorantes; b) criar uma sociedade de sábios

pobres. O progresso material deve ser reflexo do

progresso cultural e vice-versa, sem concessões.

Petróleo, minério, energia elétrica e toda sorte de

recurso energético deve ser o patrocinador da

máquina de educação e produção cultural. Na

sociedade do futuro a cultura será o motor do

sistema econômico como princípio e como fim. Não

se deve dar guarida ao discurso “de que adianta ter

cultura e faltar estrutura nos hospitais?”. Se o

diretor do hospital, o político e o paciente estiverem

bem calçados do ponto de vista cultural e imaterial

o problema deixa de existir. Os cursos mais

puxados, sem desmerecer todos os demais, são

medicina, direito e os de engenharia. Estes cursos

70

dão bem delineada a noção de como funcionam os

processos de compreensão de tudo o que é

sistêmico e humano: é preciso ter muita memória

no sentido de decorar muita informação para tê-la

de imediato por mais rápido que seja sua busca e é

preciso ter raciocínio principiológico. O raciocínio

pede informação. Só se raciocina a partir de dado

conteúdo. Ser experiente consiste em ter memória

mais cheia de coisas, mas também em saber o que

é mais importante neste processo ou diante de

determinado quadro sintomático. Construir

civilização é essencialmente isto: precisamos fazer

um levantamento de quais são nossos tropeços e,

inventariado isto, pensar nas melhores soluções

possíveis. Assim, construir civilização não consiste

apenas em empecilhos concretos que

gratuitamente se exibem para nós. A previsibilidade

é aquele tato que o jurista na qualidade de

legislador previne o efetivo. Civilização é vislumbrar

não só a reação à ação desvalorosa ou

problemática qualquer que seja sua natureza, mas,

antes de mais nada, animizar a margem da

71

hipótese de incidência do desvalor ou do problema.

Assim como o setor de prestação de serviços está

customizando, ela precisa ser impositiva. É ela

quem diz o que é importante. Apesar do valor dos

livros ditos “evangélicos” a crescente busca por

este tipo de material mostra que a razão na sua

pureza deixou ou está deixando de pautar nossa

conduta. A crença toma o lugar da racionalidade.

Numa sociedade em que tudo se consome, até

literatura filosófica, o filósofo que na maioria dos

sentidos é um ser humano como outro qualquer, se

vê enrascado nas malhas do mercado editorial.

Mais importante do que ser grande, ou, melhor, o

que torna um homem grande é a capacidade que

ele tem – e efetivamente acontece de fazer grandes

coisas acontecerem. Como o gol aos 47 minutos do

segundo tempo daquele que sem querer esbarra na

bola e põe fim ao campeonato. É claro que para

ocupar tal posição é necessário contar com a ajuda

daquelas premissas e daqueles corolários que de

certo modo estão fora do alcance do mais

esclarecido intelecto humano num nicho metafísico

72

virgem. Senão qual a flecha que, apesar de atirada

ao léu, atinge o coração do generalíssimo e as

tropas esmorecem ante o quinar de seu ponto de

referência? Uma flecha, neste sentido, é o que

define a supremacia da civilização A e a derrocada

da civilização B. É natural que vivamos uma crise

civilizatória neste momento. Não há quem nos sirva

de referencial. Hoje é a época da inteligência

compartilhada. Tudo aquilo que condensa um teor

de inteligência mais apurado do que o corriqueiro é

feito uma equipe. Mas a equipe é uma abstração,

até porque há quem egresse e quem ingresse na

equipe a todo momento. Não há mais os grandes

homens. Na verdade, o sistema atual, adrede, não

permite que eles se autoengendrem. Tudo está

diluído: o conhecimento, a inteligência, a

moralidade, a santidade. Ruíram os protótipos. Só o

conceito é total, não se admite que um homem real,

que um homem existente no mundo empírico se

preste de parâmetro de conduta. O recurso é

buscar tais modelos no passado. Pois os que

viveram em outras épocas não estão sujeitos à

73

mesma devassa de quem ainda respira. A mídia

não admite que um homem público revele apenas

força. A mídia quer vender a imagem de que somos

todos fracos e de que é a coisa mais normal do

mundo ser fraco. O que o cristianismo com sua

moral do rebanho de submissão fazia no passado,

hoje, o mesmo é feito pela telenovela de pior forma.

A teleliteratura com suas novelas de efeito

reforçativo de hábitos pouco louváveis laboram pela

desestruturação de um modo de soster inclusive os

meios de comunicação social. Tal qual homem

imprudente, assim são os empresários da

comunicação que cavam o próprio fosso.

A decadência da conversação

Está havendo uma decadência da conversação. As

pessoas perderam a capacidade de relacionar-se

dignamente e o retrocesso em certo sentido

começa e se reflete no diálogo. A palavra diálogo

se exibe bem no adjetivo que deriva dela,

“dialógica”. Ou seja, “dia” através de e “logos”

74

razão. Se o diálogo é uma travessia mediante a

qual chegamos num consenso, ainda que um mero

acordo intrumental e procedimental, isto significa

que o provisório exige condições como se perene

fosse. As pessoas se relacionam para satisfazer

seus interesses mais inéditos. E raramente as

premissas e os corolários mais remotos são

satisfeitos na vida de poucos indivíduos porque isto

exige firmeza de ânimo a longo prazo e

relacionamentos duradouros. O diálogo é exercício

de exibição e ocultamento. Devem-se exibir os

argumentos e ocultar a vantagem que a aplicação

da recomendação argumentativa acarreta. É

evidente que isto não é fácil, porque se o dialogante

raciocinar bem, descobrirá o que está implicitado.

Mas o argumentador só perde o jogo se se render

ao dialogante e confessar ser um interesseiro.

Mesmo que o dialogante enxergue com

objetividade sua meta, o argumentador deverá

jogar luz para outras consequências, ainda que

acessórios, e se esforçar para mostrar que, na

verdade, o que busca é o acessório e que o

75

acessório é principal e que o principal é o

acessório. A inversão é uma ferramenta

valiosíssima na argumentação. Tão importante

quanto ocultar o que tem de ser exibido, é o modo

como se oculta e como se exibe. As pessoas não

apenas perdoam ser enganadas, mas até

apreciam, desde que tudo seja feito com delicadeza

e civilidade. A mentira não pode ser encarada como

mentira, o melhor é que haja várias verdades e não

verdade e mentira. As perspectivas estremes da

coisa da emoção são versões. E uma versão é uma

verdade complementando as demais. Sim, porque

embora a última premissa e o último corolário tudo

albergue e tudo harmonize e concatene, as

premissas e os corolários medianos se excluem

reciprocamente e chegam a ser antípodas um em

relação ao outro. A conversação decaiu muito

porque passou por uma pauperização sintática e

semântica. Corriqueiramente pratica-se uma

linguagem carregada de libidinosidades e

expressões chulas. O discurso é mal estruturado e

os raciocínios são cada vez mais obnóxios. Não há

76

mais períodos longos. Tudo o que requer um

milímetro a mais de inteligência é rechaçado. E

ainda que a pergunta: por que ficou pobre a

semântica e a sintaxe? Isto é explicável pelos

critérios de eleição da mídia, sobretudo da mídia

televisiva e internáutica. Em certos sítios de

informação há espaço livre para as pessoas

expressarem suas opiniões. Vemos que os

comentários sérios são excluídos, preservando-se

os comentários de baixa classificação. Justamente

agora, que há uma maior liberdade de expressão,

ainda que esta liberdade comporte ressalvas, as

pessoas não sabem o que ser dito. É como eu sair

de uma cadeia e não saber o que fazer com minha

liberdade. Evidentemente que há centros de

excelência mesmo onde o dominante é o vulgar e o

banal. Em escolas onde existem profissionais da

educação comprometidos com determinados ideais

pedagógicos assistimos a produções culturais de

qualidade precoces. Em minha terra natal, São

Bento do Sul, há pessoas de tenra idade que já

podem exibir produções literárias belíssimas. Muito

77

se escreve sobre o impacto da alfabetização sobre

o alfabentizando, de todas as idades, mais

comumente, crianças. Mas o que impacta o

indivíduo impacta a civilização. Até porque por força

do Estado que converte este sagrado e legítimo

direito em compulsoriedade, é de se admitir que o

processo de alfabetização é coletivo e quase

universal. Sim, apesar do analfabetismo dos países

pobres, digo que a alfabetização é universal porque

sempre há uma elite letrada mesmo em terra de

povos ágrafos. Aprendemos palavras novas de

nosso próprio vernáculo até uma idade avançada.

O que faz presumir que dialogar bem é algo que

depende de experiência. O nível de experiência de

uma pessoa pode ser mensurada pela natureza do

teor de sua conversa. As civilizações de ponta são

as civilizações do diálogo desenvolvido. Quanto

mais os compatriotas de uma nação trocarem

ideias entre si, mais desenvolvido será o país em

todos os aspectos. Não é por acaso que a filosofia

hoje se ocupe de teoria do discurso, de linguagem

e que as tecnologias de ponta sejam as tecnologias

78

de informação e de comunicação. A riqueza de um

homem é medida pelo número de informações e

pelo banco de dados que ele detém. A informação

deixou de ser um canal de acesso ao dinheiro, ela é

dinheiro em estado puro. Vemos uma propagação

da língua vernacular sem precedentes. Mas ao

passo que se difundem expressões até então

desconhecidas, vemos que não no mesmo ritmo se

conhecem celebridades da língua. Passou a época

dos grandes autores. Nós, escritores, hoje estamos

em muitos, mas já não temos mais o gigantismo

dos antigos. Ampliou-se a cobertura, mas diluiu-se

a densidade dos pontos chaves. A estátua de

cabeça de ouro, peito de prata, abdômen de

bronze, pernas de ferro e ponta dos pés de barro

com a qual Nabucodonosor sonhou não é só a

diluição do poder político, é a diluição do próprio

saber. Eu nem questiono quem de nós hoje tem a

sabedoria de Daniel, mas quem tem o

conhecimento dos caldeus que rivalizavam com

Daniel? Em Gênesis vemos que também os

caldeus transformavam paus em serpentes. Ora,

79

quem é capaz de fazer isto hoje? Quem entre nós

tem a sabedoria egípcia da Moisés, ou quem, como

Paulo, teve um mestre como Gamaliel? A única

coisa que parece não diluir é a concentração de

riqueza nas mãos de uns poucos. Ainda que hoje

poucos andem a pé, pois podem financiar

automóvel, e que poucos sejam agregados,

conquanto o governo disponibilize linhas de crédito

para a habitação própria. Nas sociedades antigas

um só era poderoso e poucos eram sábios, todavia,

se aprouvesse ao a priori histórico fazer recair

sobre alguém o conhecimento, ele era

premiadíssimo. Se há alguma vantagem em diluir

mérito, conhecimento, dinheiro e poder isto se

resume que a arbitrariedade ou a morte do

indivíduo consiste na não desestabilização do

sistema. Todavia, de que aproveita um sistema

estável onde o máximo que o melhor dos cidadãos

irá conseguir é uma meia realização? A

Antiguidade, neste sentido, era muito superior. Só

na Antiguidade vemos o homem integral ou total.

No Renascimento também vemos algum destes

80

exemplos. Sim, digo isto, ainda que os totalmente

realizados estivessem calcados sobre uma imensa

maioria de insatisfeitos. Precisamos incentivar a

cobertura universal da democracia iluminista com

os superindivíduos da Antiguidade. Desde os mais

longínquos tempos, ou para usar uma expressão

feia, porém, mais apropriada, desde a noite dos

tempos há um contubérnio incestuoso entre

riqueza, religião e poder político e o conhecimento

não tem passado de um amálgama entre os três

elementos. Em nossa ótica não há como se

esquivar desta mancebia, exceto que o

conhecimento deverá ser promovido a uma posição

de maior destaque. Aliás, aposentaram a palavra

“sabedoria” para transformar tudo em

“conhecimento”, esse coiso morto e cheio de

regras. O conhecimento tomou o lugar da

sabedoria, o operador jurídico tomou o lugar do

jurista, as ciências da linguística tomaram o lugar

das Belas Letras. Tudo se tornou peça, um corpo

morto para ser dissecado para os amantes da

anatomia. Coisamente coisificamos aquilo que

81

sabidamente transcende a esfera da coseidade. Até

as Humanidades foram convertidas em Ciências

Humanas Este é o paradigma que se impôs e que

pretendo quebrar. Uma só ressalva faço: quando se

está a falar de direito penal, é de se cobrar

cientificidade máxima do processo penal. Porque

somente o processo penal enquanto ordenação de

realização organizada de atos abarcando inclusive

perícias, como laudo de exame cadavérico,

balística, fosfatase, luminol, DNA, etc, é capaz de

descer às minúcias sem as quais não se é

admissível dar brecha à condenação. Isto está

acima do livre convencimento do juiz monocrático

ou dos jurados. Flexibilizar autoria e materialidade é

abrir brecha seríssima por onde passam inocentes

do convívio livre com outras pessoas para serem

lançados ao ergástulo de população de má índole.

A convivência é assimilação, já dissemos que a

natureza tem horror ao vazio preferindo locupletar-

se de conteúdo, qualquer que seja ele a quedar na

vacuidade. Tão importante quanto rechear de

subjetividade aquilo que é objetivo, é empaturrar de

82

objetividade aquilo que é essencialmente inobjetivo.

Entrementes, não tiro o mérito do processo de

cientificização, ele logrou alguns êxitos e méritos. O

que me refiro é que não podemos ficar só nisto e

que esta não pode ser a única perspectiva. Todo

ramo de saber, qualquer que seja ele, pode ser, no

mínimo, vislumbrado pelas seguintes perspectivas:

lógico-matemática, filosófica, teológica, mística,

científica, literal e artística. É bem verdade que a

abordagem científica é a que põe em marcha a

maior série de resultados pragmáticos. Mas nem

por isso devemos abrir mão do paracientífico. A

ciência é um fenômeno recente na História da

Humanidade. Talvez tenhamos nos rendido

totalmente a ela porque ainda estamos curtindo e

nos regozijando com a afobação da vassoura nova

que varre bem. Ao invés de expropriarmos os

donos dos meios de produção, precisamos

disponibilizar os tais meios a quem quer que o

queira. Isto é totalmente possível. Foi isto o que se

fez com a profissão de advogado, por exemplo.

Hoje qualquer um pode ser advogado, basta cursar

83

o curso que é bastante encontradiço e ser aprovado

no exame da categoria. As carteiras de advogado,

portanto, não são mais monopólio de uns poucos e

nem por isso a advocacia perdeu seu valor.

Democratizar os meios de produção, produção de

tudo o que entra num processo produtivo, tudo

mesmo, é simplesmente, para não restar mais

dúvida, tornar os referidos meios tão baratos e tão

financiáveis que qualquer um ou a maioria possa

comprá-los. E não adianta fazer despencar o preço

se o cidadão comum a despeito da ímpar

oportunidade não tiver um mínimo suficiente de

capacidade de endividamento. Assim, aumentando-

se a renda de quem recebe renda e podendo seus

recebedores comprarem certos meios de produção,

quem já era dono dos mencionados meios auferirá

mais. De sorte que o modelo de sociedade diante

dos quais estamos acentua a diferença econômica.

Os cidadãos precisam estar mais próximos uns dos

outros. O Estado deve ser o monopolizador do

setor energético e investir fatia substancial do

superávit em educação. O Estado, todavia, a olhos

84

vistos no Brasil acentua a desigualdade social. Pois

entra na máquina do Estado os muito ricos ou os

seus representantes que manejam a administração

pública em favor dos interesses particulares

abonados. Assim, ou bem se implanta a lógica da

igualdade, ou bem se implanta a lógica da

desigualdade. No capitalismo os donos dos meios

de produção. No capitalismo poder econômico vira

poder político e no comunismo poder político vira

poder econômico. Predominantemente falando

porque tanto na esquerda quanto na direita trata-se

de vias que vão e que vem. No capitalismo o

sistema diz que o administrado é livre, mas não no

é, no comunismo se diz que todos são iguais, mas

não no são. Talvez nem a igualdade e nem a

liberdade tenham se concretizado pela ausência da

fraternidade. Do mesmo modo que a bandeira

nacional brasileira não cumpre os dizeres ordem e

progresso por falta de amor. A fraternidade e o

amor só podem advir de um Deus que a um só

tempo é amoroso e pai. Nada mais correto os

dizeres na cédula “Deus seja louvado”. O dinheiro é

85

de Deus antes mesmo do que do Estado que o

imprime ou dos cidadãos de determinada pátria. O

dinheiro é importância enquanto aparência a cobrir

uma essência traduzível em diligência, trabalho,

abnegação, persistência, constância,

empreendedorismo, sacrifício e uma gama de

muitas virtudes. O dinheiro do banditismo, da

prostituição e da corrupção se desvanece por

estarem ausentes os itens há pouco citados. O

problema de todo e qualquer sistema são as redes

de relacionamento. Este é um problema do

comunismo, do capitalismo, do cooperativismo, das

igrejas, do sindicalismo, dos partidos políticos e de

tudo o que se possa imaginar: o grupo que se

implanta como uma mancha bacteriana sobre a

superfície da água. Assim é a máfia da Itália e

assim tantos outros grupos na maioria dos países

do mundo, senão em todos. Só para os dominados

há a impressão de que somos tragados pela

estrutura do sistema. Só o Zé ninguém é entregue à

moagem, a lei foi feita para ele. Para quem é poder

de fato a estrutura é predominantemente vantagem

86

pessoal e poder de decidir sobre a vida alheia.

Todo e qualquer modelo de sociedade, por conta

destas organizações metapolíticas,

metaeconômicas e ultratudo, queda refém da

idiossincrasia das personalidades integrantes do

conjunto. O sistema pegando uma analogia

emprestada da medicina, é o esqueleto. Este grupo

que se apropria da máquina do Estado, da religião

e dos meios de produção da sociedade é a alma do

sistema. E a saúde do corpo, leia-se, a saúde da

sociedade é a soma da saúde esquelética e

almática. Assim, tão importante quanto o vigor e a

organização das estruturas é a virtude e a sã

intenção dos membros cuja soma se traduz na

totalidade dos operadores do sistema. O Cristo

disse que não se põe remendo novo em roupas

velhas e nem vinho novo em odres velhos. Ora, de

nada adianta um ser humano de qualidade à frente

de um sistema falido ou o melhor sistema na mão

de meliante. É preciso jungir um sistema de

qualidade a um ser humano de qualidade. Em

qualquer sociedade que alguém esteja inserido

87

sempre será importante a conversão. O argumento

que se instrumentaliza dialogicamente é o que pode

me fazer angariar recursos ainda que ninguém veja

em mim condições objetivas de solvabilidade no

caso de empréstimo. É a conversação que irá me

colocar no parlamento municipal. Toda e qualquer

sociedade, independente de sua estrutura é feita de

relacionamento e o relacionamento é comunicação.

Sendo entendida a comunicação não só como troca

de informação, mas de afeto e afeição. A

comunicação é a tentativa de ser os dois filhos ao

mesmo tempo e o modelo de civilização passa por

isso: ser o filho pródigo que tem a noção de que é

filho pródigo que tem a noção de que é filho e ter as

características do irmão mais velho que tem que

trabalhar. O comunismo empregou a pródiga

fruição e o capitalismo é uma sociedade de

empregados. Fica a questão: é melhor uma

sociedade onde todos trabalham e fruem ou é

melhor uma sociedade em que a maioria trabalha e

os mais espertos, habilidosos e impositivos fruem?

Aristóteles, em A Política convida o leitor à seguinte

88

reflexão: se há corpos robustos de pouca intelecção

e corpos frágeis de grande pensamento, não é

natural que estes últimos comandem os primeiros?

Trago à baila esta paráfrase porque o que temos

visto é que pessoas submetidas a idênticos

processos de aprendizagem têm aproveitamento e

desenvoltura muito diferentes. Qualquer que seja o

sistema há um lado positivo trazer as pessoas para

dentro da esfera de poder, dinheiro e ideologia: é

que em torno de cada liderança se forma um

cinturão de prosperidade, entendida esta no seu

sentido mais amplo. Quem é empoderado recebe a

capacidade de influenciar a vida das outras

pessoas. Mas se alguém de algum modo conseguir

influenciar positivamente a vida das pessoas,

dentro de algum tempo será premiado com todas

as vantagens e prebendas de quem está montado

na estrutura. Augusto Comte elege como critério

máximo de organização social a estabilidade. A

ciência substitui a religião, os cientistas o clero, a

ciência torna-se um credo com direito a catecismo e

culto a personalidades do pensamento e liturgia.

89

Comte é saudosista e não se conforma com as

mudanças repentinas da sociedade moderna. A

dormência medieval, talvez não se perceba isto, foi

uma exceção, porque a regra é a mudança

heraclítea, não só na natureza, mas, por

antonomásia no âmbito social. Sobre se vale à

pena pensar um modelo novo de sociedade ou se é

melhor cuidar da própria vida e dos próprios

projetos, digo que assim como a maioria cuida de

si, é louvável que uns poucos se empenhem em

cuidar de todos. Se quase todos são pura ação,

não há porque impedir que alguns sejam puro

pensamento. Quanto ao projeto de pan-helenismo

que deu certo, mas naufragou ou quanto ao projeto

americano ou comunista de sociedade, digo que só

porque as sociedades que conseguiram se

implementar e saíram do mero modelo, isto não tira

sua eficácia. A efetividade passageira apenas faz

reluzir a relatividade da teoria que lhe serve de

modelo. E que bom que é assim, porque sempre há

trabalho para os intelectuais. Assim como numa

empresa é preciso que haja quem pense a

90

totalidade da atividade empresarial e não

pontualmente produção, tributação, recursos

humanos, contabilidade, marketing, etc, também e

com muito maior razão alguém precisa pensar em

para onde estamos indo como sociedade e

civilização. Assim como um militar de baixa patente

cuida de assuntos pontuais, o general pensa a

guerra como um todo. Esta é a ideia de incumbir

alguém de cuidar dos problemas do bairro, do

município, da microrregião, da região, da

macrorregião, do Estado e da nação. O filósofo é o

pensador que cuida, dos interesses globais da

humanidade. É claro que mesmo em nível global

deve haver quem capitaneie o processo

civilizatório. Diria que o Brasil não pode ainda ser

este dirigente mundial porque ainda não sabe

cuidar de si mesmo e, quando souber

operacionalizar uma coisa, saberá realizar também

outra. E é justamente por isso que os Estados

Unidos fazem este papel apesar de serem gente

como a gente. Mesmo o intelectual reconhece que

a ação é mais importante do que o pensamento

91

para o sucesso de uma nação. O pensamento é o

sintoma e o produto de uma sociedade bem

sucedida. Mas para que o bom se torne excelente é

preciso sojigar o mundo do pragmático e do

empírico à depuração do teorético. A teoria

aprimora o já feito e sempre tem o condão de

estender a cobertura. Nada mais universalizante,

onímodo e imperialista do que o pensamento

filosófico. Filosofar é fazer algumas ideias, em tese

as melhores, suplantar as menos boas ou mais

fracas. O critério para se eleger um discurso, uma

linguagem ou um modelo de civilização como

melhor é o mesmo: funcionalidade, poder de

promoção de mudança e nível de felicidade do

maior número de pessoas possível. O que se vê é

que nos centros de pujança civilizatória é mais fácil

fazer o ideal tornar-se real. E que na periferia os

princípios são de difícil assimilação. Os filósofos

são remédio para os sãos e os doentes rechaçam o

que lhes é ministrado e que, para todos os efeitos

lhe faria bem imenso. É por isso que é necessário

uma elite civilizada nos lugares mais remotos do

92

planeta. Quantas e quantas independências se

tornaram uma marcha ré. Entre o tipo aculturado

num padrão de internacionalismo e o marchetado

no regionalismo tribal no exato dia de hoje pode-se

constatar uma diferença civilizatória de 10 mil anos.

O fato é que se pratica em muitos lugares, África e

Oceania para exemplificar, canibalismo. É de se

tolerar que se coma tudo o que se mexe, mas o

corpo humano é portador de uma dignidade não

relativizável. Nós podemos acelerar o processo

civilizatório nos rincões mais remotos, mas isto tem

um limite. O padrão da cultura internacional e o

padrão das comunidades interioranas dista tanto

um do outro, que não raro toda uma comunidade

sucumbe pela depressão coletiva aguda ou pela

prática reiterada do suicídio. Fica uma dúvida

terrível: trazer para o nosso contexto estas

comunidades ermas é lhes assegurar um direito ou

cometer um sacrilégio cultural? Antes que qualquer

teórico responda a esta pergunta, o que vemos é

que o padrão atual de cultura internacional se

impõe retumbantemente, sem esperar carta-

93

convite. Por outro lado, ainda que o caucasiano

internacionalizante já tenha colocado os pés em

todos os pontos do planeta, o que se vê é uma

resistência dos povos, das culturas e das etnias

minoritárias. Não era para menos, vez que é de

fácil assimilação todo o atávico conteúdo

civilizatório, para tomarmos três adjetivos

emprestados de um velho nome do rock brasileiro.

A civilização ou o movimento civilizatório é como

um trem de muitíssimo vagões: há de haver uma

locomotiva possante que pese todos as outras

unidades, mas uma coisa é ser a locomotiva, outra

coisa, é ser o primeiro vagão subsequente à

máquina e bem outra é ser o quinquagésimo e

último vagão. Todos vão passar pelo mesmo ponto,

mas em tempos diferentes. Quando surgiu o

movimento socialista utópico francês acompanhado

de tantas outras estrelas do anarquismo francês e

italiano, veio Marx com seu socialismo científico

para do alto da crista da onda capitanear um

espírito de época. Mas nos dias de hoje embora

nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas

94

vejamos com menor frequência aqueles níveis de

exploração próprios da Revolução Industrial, não

quer dizer que os aplicados ao pensamento não

possam sonhar com algo diferente do que se tem.

Quando se fala em sociedade alternativa não se

está a falar de socialismo. A questão toda não é ser

de esquerda ou de direita, mas em acreditar que

não é porque as coisas são de determinado modo

elas terão que continuar sendo assim. Podemos

enveredar por um caminho totalmente novo, ainda

não pensado, não nominado, não vislumbrado.

Planejamento é essencialmente ter um projeto

pronto e facilmente aplicável quando antes do que

se tem em mãos estiver prestes a ser descartado. A

antropologia nos mostra que nenhuma cultura se

apaga, ou, melhor, raramente isto acontece, mas

em geral umas culturas transmutam-se em outras.

O filósofo é aquele que preza um dirigismo nesta

transmutação. Pois se não podemos continuar

sendo o que somos, devemos, no mínimo, eleger

aquilo que queremos ser. O filósofo deve, pari

passu, ter parte com o administrador público que se

95

ocupa muito mais com procedimentos do que com

ideais. E quando digo isto não quero dizer que a

procedurística seja alheia ao filósofo. Porque o

procedimento é algo extremamente ideal e é

justamente isto o que nos deixam claro os juristas

que se aplicam à Teoria Geral do Processo. É que

o administrador se incumbe de fazer descender a

instrumentalidade noética à empiricidade chã opaca

e concreta. Na verdade, há várias classes de

filósofos e várias classes de administradores. Há

filósofos que acreditam que a filosofia se esgota em

si mesma, e esta, na maioria das vezes, é a

filosofia ensinada nas Pontifícias Universidades

Católicas, com certeza, para não fazer sombra ao

projeto cristão de organizar a sociedade, e há outro

que desejam não só interpretar a realidade, mas

transformá-la. Lembro-me aqui da 11ª tese

dedicada por Marx a Feuerbach. Os filósofos

revolucionários pregam a práxis. A despeito de tal

terminologia, ela não é exclusividade dos marxistas,

mas oriunda da língua grega, que significa união

entre teoria e prática. No sentido de que o homem

96

tem o poder de intevir e fazer infinitas ingerências

na realidade para guindar o ser ao dever ser. Os

administradores são de vários níveis. Não há como

ser diferente pela própria principiologia do poder.

Assim é que o administrador do mais relés escalão

é um fiscalizador e cobrador, enquanto que o

administrador de primeiro escalão é principiológico,

tal como os filósofos. Quando Platão fala do rei-

filósofo com certeza se refere a um agente

pensante que é habilidoso em múltiplas

competências. O que mais inviabiliza o implemento

de um projeto de civilização é a limitação de

competência dos operadores do sistema posto. A

divisão social do trabalho produz especialistas e a

maneira de contornar isto é através da formação

plúrima, chamada de polimatia e pelas redes de

relacionamento. É impressionante como o sistema

atual impõe em muitos sentidos a monoformação.

Talvez por medo de que o excesso de informação

concentre muito poder em um único indivíduo. O

mesmo pode ser dito em relação ao tempo: tudo

conspira para que não tenhamos tempo para nada.

97

Exatamente naquele instante de análise, de crítica

e de reflexão a televisão está ligada. Sequer é

possível reunir a família num mesmo cômodo, pois

um filho está no vídeo game e o outro na internet

quando alguém ainda se atreve a ter mais de um

filho. E se eu for telefóbico e radiofóbico, à minha

espreita existe um universo urbano a preencher a

pauta de meu tempo livre de não reflexão. Claro

que num ambiente desse a religião vê seu espaço

diminuído pela mesma razão que não mais se

reflete. A pós-modernidade é tão contraditória e ao

mesmo tempo coerente que, qualquer coisa que se

diga a respeito dela estará, inevitavelmente, ao

mesmo tempo, certo e errado. Num mundo onde

todo sonho se realiza, desde ser autor de muitos

livros ainda que a impressão seja sob demanda, e

aí eu posso ter a impressão de um único exemplar

se esta fora demanda, até ter seu próprio apê em

São Paulo, nem que seja de exatos 21 metros

quadrados. Nada mal, quiçá, para o padrão

japonês, mas novidade para o homo brasiliensis.

Como nos ensinaram os russos: para enviar uma

98

nave tripulada por três homens no espaço sideral,

vale até pôr três homens numa cápsula projetada

para no máximo dois. O atleta olímpico é uma

tremenda ficção e o melhor exemplo de nosso

tempo: nossos atletas batem recordes inéditos e

meteóricos justamente num tempo em que não

temos nem a terça parte da resistência de nossos

avós. É que o doping não constata aquilo que é

eminentemente humano ainda que produzido de

maneira mecânica e artificial. O doping é só para

não deixar as drogas mais fraudulentas virarem

moda. É como o carro de fórmula um que é guiado

em alguns aspectos pelo computador via remota e

o piloto não passa de um incômodo passageiro.

Qual, pois, o mérito de quem? Nossa pletora de

tecnologia nos está deixando fracos no ânimo. O

ditado diz que quando a cabeça não pensa o corpo

padece. Mas a nossa inteligência prática, a nossa

inteligência prática, a nossa cabeça está pensando

tanto, que descobrimos que é até bom deixar o

corpo apanhar um bocado. O problema da

natureza, e o nosso corpo é expressão da natureza

99

à qual me refiro, é que ela é absurdamente

econômica. Só a dificuldade é capaz de gerar a

força e a virtude. A dificuldade ou joga o sujeito no

lodo ou faz dele um herói. E olha que muito herói já

esteve no lodo! A tecnologia tem realizado os

nossos sonhos e o refinamento da burocracia é um

complemento ao que a tecnologia nos disponibiliza.

A burocracia, aliás, fomenta o desenvolvimento da

técnica quando eficiente em seus ofícios de

despacho e desembaraço, e a tecnologia, e grifo a

tecnologia da informação, fomenta a eficiência e a

celeridade da burocracia. O advogado é o burocrata

que está sendo cada vez mais onerado com os

processos tecnológicos. Toda vez que a tecnologia

da informação não efetiva seu escopo a não

realização do ato implica a responsabilização do

advogado e não do agente estatal ou do Estado. É

uma pena. Porque sendo o advogado o jurista mais

criativo, ele deveria se ver livre do tecnicismo

espezinhante para ter mais tempo de refletir acerca

das ações que estão sob sua fidúcia. De igual

maneira os títulos mais elevados que cobrariam no

100

passado dote artístico, conhecimento científico,

intelecção ou poder de argumentação esbarram em

vestíbulos burocráticos. Perece o talento em nome

do cotejo ao Estado Soberano. É recomendável

que sejam eliminados os excessivos critérios de

seleção, ainda que dando mais vez aos que

aspiram ao referido status sem que a decepção

seja maior na reta final. Isto porque a pletora de

documentos gera aquele frustrado músico que não

pôde fazer vibrar uma única corda de sua viola por

falta de um carimbo. Assim como tudo na vida, no

passado, era artesanal e agora é produzido em

série fabril taylorista, o mesmo se aplica à

metanarrativa. As velhas questões teóricas do

passado não foram respondidas. Antes que um

gênio desse conta delas elas perderam o sentido. É

como se preocupar em aprimorar a máquina

datilográfica quando computador que encerra muita

tecnologia está mais barato do que ela. O exemplo

é fraco, mas bom o suficiente para ilustrar o que

pretendíamos. E isto não vale apenas para o

âmbito da técnica, mas para o âmbito do

101

pensamento: não se aprofundam muito as questões

metafísicas e até a própria epistemologia perdeu

muito campo com a guinada filosófica centrando-se

sobre a linguagem. Não é por acaso que as

questões teóricas fora de moda são rotuladas como

“discutir o sexo dos anjos”, é que as entidades

angélicas já não recebem tanto a nossa atenção.

Digo isto apesar dos vários vai-e-vens dos surtos

esotéricos com direito não só a anjos, mas ainda a

fadas e duendes. É que a exacerbação da

racionalidade atrai o seu oposto que é a

superstição, a crendice e a mística.

O papel da mulher nos dias de hoje

Nenhum dos tempos que nos antecederam foi tão

feminista quanto o nosso. Não era para menos,

estamos na era da informação. Não foi por acaso

que o anjo apareceu para duas mulheres depois da

ressurreição de Cristo. A menina tem uma

habilidade linguística precoce em relação ao

menino. Isto é muito importante do ponto de vista

102

teórico porque a inteligência da mulher é diferente

da inteligência do homem. Não só o homem, mas

também a mulher produz metanarrativa, embora a

mulher seja mais intuicionista e menos

cerebrotônica do que o homem. O masculino é o

feminino são dois princípios complementares e o

machismo erra por deixar a figura feminina

apagada. O feminismo erra ao entender e pregar

que a fêmea tem de fazer o papel do macho, o que

é um equívoco. A fêmea tem de fazer o papel dela,

até porque o papel dela não é menos nobre. Os

geriatras costumam dizer que com o avançar da

idade o homem fica mais feminino e a mulher mais

masculina. É bem verdade: do ponto de vista não

só hormonal e orgânico, mas psicológico e noético

também. Simplesmente porque a idade nos traz

maturidade, sendo ela equilíbrio. Ora, equilíbrio é a

presença paritária de todos os ingredientes da

personalidade humana, inclusive daquilo que num

primeiro momento me representava oposição antes

da assimilação. O desafio para as mulheres é

exercer papéis que antes eram talvez não

103

prerrogativas, mas incumbência exclusiva dos

homens, sem remedar os cacoetes inerentes à

desenvoltura das tais. Talvez o que mais falte às

mulheres seja maturidade intelectual. Não é de se

tirar a razão de Schopenhauer quando este diz que

a mulher é um meio termo entre a criança e o

homem adulto. É que as maiores tradições

intelectuais da humanidade são construídas por

homens. Seja no campo da religião, da filosofia, da

ciência ou das artes. Aliás, neste último caso

vemos uma participação maior das mulheres.

Relativizando este perspectiva dizemos que assim

como a filosofia não é nem grega e nem não grega,

mas humana, da mesma forma, ela não é nem

masculina e nem feminina, mas humana. Ninguém

torna-se livre enquanto não desenvolver um

pensamento de liberdade e de libertação. Aliás,

Cristo diz que um cego não pode conduzir a outro

certo porque ambos cairão num buraco. Assim, da

mesma forma, as mulheres a ninguém podem

conceder emancipação enquanto elas mesmas

estiverem subsumidas a processos de alienação. O

104

homem e a mulher precisam acreditar que estão

prontos para a liberdade. Projeto de civilização de

verdade é aquele que emancipa o ser humano de

toda idade, de todo gênero e de toda cultura. A

cobertura deve ser a mais ampla possível caso não

possa ser universal. A metanarrativa feminina por

certo que é mais afetiva do que a masculina pela

natureza mesma da mulher. Deus é pai e não mãe.

Todavia, o próprio Cristo quis vir sob a pele de um

homem e não de uma mulher. Deus quer ser igual a

si mesmo: o Deus Pensado quer ser igual ao Deus

Pensante. Deus é pensamento. O pensamento é

afetivo e é por isso que se diz que Deus é amor. O

homem é imagem e semelhança de Deus e por isso

ele é imagem e semelhança de Deus e por isso ele

é um pensador, um metanarrador. Deus é a casa

da moeda das premissas e dos corolários e Ele

quer que busquemos as flores de cunha. O Deus

pensante está pronto em ato puro como ensina

Parmênides, Aristóteles e Tomás de Aquino e o

Deus Pensado está em processo de fazimento

como sugere Heráclito e Hegel e a união dos Dois

105

são os relógios perfeitamente sincronizados de

Leibniz. E eu arremato o dito de Leibniz. E eu

arremato o dito de Leibniz: um digital e outro

analógico. Se Deus é o consignatário das

premissas e dos corolários, satanás é a mente

maligna de Descartes. A mente é o campo de

batalha e satanás enquanto oposição à perfeição

do pensamento é uma anticategoria, um

desestruturador. O papel do inimigo é bloquear os

nexos de causalidade benignos e fazer conexões

errôneas para nos tirar da rota. Tudo é ideológico.

Satanás é ideológico. A própria natureza é

ideológica. O corpo da mulher é outdoor, é palco de

exposição e placar. As minhas pernas, por

exemplo, são tortíssimas. Sou o primeiro a ficar

cansado quando estamos de pé, parados, mas o

que resiste muito a uma longa caminhada. Minhas

pernas foram projetadas para subir morro e

aguentar frio extremo. Oscar Niemeyer se

notabilizou como arquiteto por captar estas

sutilezas. A engenharia tem sua emoção. Tudo

exsuda emoção. O filósofo não é frio, ele apenas

106

ama de uma maneira diferente. As metanarrativas

que mais tomam vulto possuem as seguintes

características: 1) explicam o passado; 2) predizem

o futuro; 3) ensinam e dão um sentido à vida; 4)

elas são afetivas; 5) explicam e procuram resolver a

beligerância. O judaísmo, o cristianismo, o

marxismo e as religiões em geral são as que mais

se aproximam deste conjunto de itens. Quanto mais

harmonioso e organizado o pensamento de um

homem mais próximo de Deus ele está. Daí a

importância do perdão: quem odeia é como um

homem que revolve o fundo do leito e fica com o

rio, a consciência, turva. O satanás é aquele que

turva a metanarrativa. As mulheres estão ganhando

espaço em nossa civilização porque o pensamento

é a emoção amadurecida. Assim quando tudo o

que era embrião agora maduro e quase senil está,

há necessidade de vir uma nova geração um

sentimento pueril e rejuvenescedor. A racionalidade

masculina nos deixou tão sobrecarregado que

sentimos a necessidade de devolver às mulheres o

que elas perderam há dez mil anos atrás com o

107

surgimento do patriarcado. O campo oxigena a

cidade e a fêmea oxigena o macho carrancudo. O

que se produziu na Alemanha depois de Hegel foi

uma involução. Não é só porque algo está

cronologicamente mais próximo de nossos dias que

o mais remoto lhe é necessariamente inferior.

Geralmente, aliás, depois do excelente vem a

decadência. O marxismo é decadência quando faz

a enormidade do pensamento se tornar detalhe.

Mas o marxismo é riquíssimo se partirmos do

suposto de que ser filósofo e economista é uma

coisa só. Para Marx a economia é o princípio

máximo de explicação da realidade como o é a

biologia para Darwin. Hegel a um só tempo encerra

com chave de ouro a modernidade filosófica e

inaugura os conturbados tempos filosóficos

contemporâneos. A contemporaneidade é a perda

da ideia de sistema e a crença da incontrolabilidade

da multidão de perspectivas. Na verdade, a

oumperiforalogia aceita a um só tempo Hegel e os

contemporâneos. Não queremos matar Hegel, pelo

contrário, queremos que cada habitante do mundo

108

seja um novo Hegel. Não se trata, pois, de enterrar

as metanarrativas, mas de fazer nascer tantos

metanarradores em cada rua, tantos quantos seus

residentes. Queremos que também a faixineira e o

gari tenham a sua “consciência absoluta” na

medida em que isto for possível. E as mulheres

estão incluídas neste convite. É nesse sentido que

a legislação eleitoral estabelece um número mínimo

de parlamentares mulheres. Elas não devem ser as

mais falantes só no interior doméstico, mas nas

instâncias públicas e diante dos microfones mais

cobiçados e ideologicamente sobrecarregados.

Nada mal unir Hegel a Habermas, no sentido de

que há uma humanidade toda e outra que nós,

enquanto comunidade politicamente organizada,

criamos e impomos a nós mesmos. A metanarrativa

ao modo hegeliano que independe de nós é o

castelo conceitual âncora que nos mantem

equilibrados e firmados sobre a relatividade

aquosa. Entre a metanarrativa dada e a que nós

forjamos há um jogo de forças e antiforças em que

pontos apoiados e apoiadores sustêm um ao outro

109

simultânea e reciprocamente. Assim é a

codependência masculino e feminino, ou, como

querem os orientais, ying e yang. Só pode o

Estagirita falar ou na matéria ou na forma, porque,

no fundo, existem as duas. Talvez o nosso grande

erro seja pensar que a racionalidade, de per si,

pertença ao mundo masculino, o que é uma

incorreção, pois houve época em que o escravo foi

equiparado a um animal ou a uma coisa. Uma

esquematologia metafísica, ainda que à moda

logicista de premissas e corolários, pairando acima

da realpolitik é algo tão necessário ao mundo

teórico como o é a Câmara Alta em relação à

Câmara Baixa, para compensar as depressões e os

ápices das maiorias eventuais. Perguntado de qual

das partes é a mais importante diria que todas as

partes são importantes ainda que não no mesmo

status, elegendo a categoria Deus como sendo a

máxima categoria. O mesmo vale para as

construções teóricas ao longo da tradição filosófica.

Pois ainda que algumas luzes cintilem mais que

outras, as chamas fortes não existiriam sem a

110

anterioridade das fracas. Pragmatismo à moda de

Pierce é um discurso vazio e até sem utilidade se

não se pensar em termos puramente teóricos, se

não se pensar nas premissas e nos corolários do

comportamento e num modelo de civilização. Uma

nova civilização é alcançada e estabelece um novo

padrão de pensamento e de comportamento. As

mulheres contribuem muito neste sentido: a uma

porque a cada dia que passa aumenta o número de

mulheres pensantes, a duas, porque a mulher gosta

de se caracterizar pelo comportamento que impõe a

si mesma. Entre Platão e Aristóteles fico com os

dois e é com este espírito que caso Hegel com

Habermas. Deus é um Deus que se comunica, Ele

é o Artífice da e pela Palavra, e, o que faz com que

sejamos homens e não feras é a linguagem.

Verdade é discurso, ética é discurso: mas é o

próprio Habermas quem admite a ética mínima para

começar a grande ética. Aristóteles colocou a forma

na coisa pastosa que é a matéria, porém, não teve

como dar conta de explicar a realidade de uma

maneira coerente senão admitindo o Motor Imóvel.

111

O Motor Imóvel é não espacial, não temporal, não

tem extensão, não é uma coisa ou uma esfera

como querem algum, pelo contrário, é uma

abstração, uma ideia, uma categoria, um princípio.

Ou seja, a Ideia de bem no cume do mundo das

ideias de Platão não muda nada do Motor Imóvel

de Aristóteles. Aristóteles quis, mas não conseguiu

reduzir tudo à imanência. Habermas peca, aliás, ao

querer reduzir tudo à imanência da comunidade

real. Ainda que ela seja compensada pela

comunidade ideal. Sim, é isto o que quero dizer: a

expressão “comunidade ideal” não é muito feliz

porque, embora a ideia estando correta, foi

nominada por uma expressão que não revela

devidamente sua natureza.

Inteligência como fenômeno coletivo

A inteligência nasce coletivamente. Quando um

grupo de hominídeos emite um determinado tipo de

grunhido diante de um determinado tipo de

circunstância, cada qual grave em sua memória o

112

som emitido por si mesmo e pelo outro. Logo, pela

maior frequência de um tipo de grunhido diante de

uma similar circunstâncialidade, vai sendo feita uma

coleção de grunhidos. A inteligência individual é

produto da inteligência coletiva. Primeiro existem os

grunhidos fora de mim e depois dentro. A

linguagem é sinestésica: vejo uma circunstância,

minhas cordas vocais produzem um determinado

tipo de reação e, a minha memória vai

armazenando esta série de sons. A linha nodal

ocorre quando a inteligência deixa de ser passiva e

começa a processar isto tudo. É por isso que

quanto mais socializada uma pessoa, maior sua

inteligência. Um grunhido só passa a ter um

significado interpessoal quando um indivíduo o

associa a alguma coisa diferente dele e outro

sujeito acata a injustificável associação. Cultura é

isso, nada mais do que isso. O brasileiro nada será

enquanto outros brasileiros não lhe reconhecerem

como algo. Dar credibilidade a si mesmo é o

segredo do sucesso das civilizações europeias. A

Europa sempre foi tão cheia de credibilidade que,

113

quando dela só restavam ruínas, duas

superpotências, os Estados Unidos da América e a

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

acreditaram nos escombros a ponto de a Europa

hoje ser o lugar mais rico do mundo novamente se

o que se considera é o nível geral de vida e não

apenas o PIB. Linguagem é depositar credibilidade.

Por isso que o inglês é a língua mais famosa do

mundo. Acatar um valor semântico ou um novo

valor semântico a algo é um exercício de

submissão. Numa sociedade em que todos são

vaidosos nenhum sequer recebe a coroa da glória.

No mundo cultural também é preciso que haja

liderança e ela nem precisa estar encastelada num

universidade ou no departamento de certificação da

qualidade dos cursos superiores. A linguagem

escrita em algum sentido é mais impositiva que a

linguagem falada. Porque uma vez no papel ela

dura e perdura. Eu posso gostar da palavra ou não,

mas ela está lá. A palavra escrita tem um nível de

capricho maior, via de regra, do que a linguagem

coloquial e isto ajuda na sua fixação. A linguagem

114

escrita, assim como a sua matriz, a linguagem

sonora, transforma seu criador. O homem age

sobre si mesmo pela linguagem. A linguagem

escrita tem uma cara de objetivamente posta. Ela

tem a desvantagem de uma certa rigidez quando o

hermeneuta tem pouca prática, mas, em

compensação, nada perde e tudo resgata o que é

exprimível.

Público: o que está no mais íntimo

O nosso intelecto não apenas está organizado em

premissas e corolários, mas ainda organiza-se em

camadas. Isto significa que as grandes sequências

de premissas e corolários são metafisicamente

organizadas por trechos de sequências que se

caracterizam por um espírito de grupo. O que

ocorre é que por vezes temos dificuldade de

transitarmos livremente de uma sequência à outra,

embora transitemos livremente dentro de uma

mesma sequência. As sequências mais periféricas

são próprias do ser social e não há praticamente

115

restrição de informação. As camadas do cerne

como ensina Jung também são coletivas: sendo o

externo e o interno públicos. Nossa privacidade

reside, pois, nas camadas intermediárias.

Justamente corroborando nessa tese sobre a

linguagem. O privado nada mais é do que a noção

proprioceptiva do público. O privado é aquilo que

não temos interesse de externar. Essa ideia de

camada está relacionada a uma perspectiva

diacrônica. De sorte tal que as camadas mais

periféricas recebem impressões mais tardonhas do

que as mais intensas. Os a priori ou os corolários e

as premissas do primeiro nível são prontos e inatos

enquanto que os a priori das segundas e

posteriores camadas vão sendo construídos pela

experiência como quer Piaget. Quando ocorre o

assentamento de a prioris nas camadas posteriores

isto não revoga o que está subposto nas camadas

mais basilares.

Fungibilidade de conceitos

116

Considero-me experiente quando do que se trata é

de teoria. Tenho visto que se produz teoria como se

produz a marca de uma mercadoria. Teoria nada

mais é do que um arranjo concatenado de

conceitos. Percebo que existem vários conceitos

para nominar as mesmas realidades. Também isto

é multiplicar os entes sem necessidade. Aliás, por

falar em escolástica passo a redigir o próximo

tópico.

A atualidade da Escolástica

As premissas e os corolários estão para outras

premissas e outros corolários como a potência está

para o ato. Permanentemente saímos da

potencialidade e vamos passando por uma perene

transição de atualização. No sentido de que o

movimento da consciência é ser cada vez mais, é

efetivar-se, é o querer pensar para o já pensado.

No sentido de que o ser e o pensar coincidem. Se

para Aristóteles o Motor Imóvel é causa final e para

Tomás de Aquino é causa eficiente, digo que os

117

dois estão corretíssimos porque a premissa máxima

e o corolário máximo se identificam porque o ponto

de partida e o de chegada é exatamente o mesmo.

Porque experiência é sair de si para voltar para si.

É uma lógica que se torna ilógica para resgatar a

logicidade. E só o movimento produz pensamento,

cultura e linguagem. O ser perfeito de Parmênides

nada produz. Os medievais fizeram um belíssimo

trabalho de lógica, sobretudo classificando as

várias espécies de silogismo. Mas a lógica de

Aristóteles, a dos medievais, a de Hegel e a de

Frege, na verdade, é uma só. A ideia de

substância, na verdade, é uma só. A ideia de

substância quer se reportar à coincidência entre o

ser e o ideal. Ainda que a substância seja um

mutatis mutantis, ainda que quando se fale em

substância nos reportemos ao ser e ao ente, ou,

como surrada e cacofonicamente dizemos, o ser do

ente. No sentido de que o particípio presente que é

ativo quer dizer que não apenas o ser é, mas, que

está sendo. A metafísica aristotélico-tomista ilustra

bem o que queremos aplicar ao comportamento:

118

que quem existe já se comporta de uma

determinada maneira, contudo, visa aprimorar sua

conduta para um patamar de uma determinada

maneira, contudo, visa aprimorar sua conduta para

um patamar superior. Ideia de bem, Motor Imóvel,

Ato Puro, Consciência Absoluta, Tupã, são as

perspectivas de uma só e indecomponível ideia.

Para nós a Premissa-Corolário, o Alfa-Ômega.

Cada vez que saímos de um trecho de frequência

englobando uma subsérie de premissas e

corolários e vamos para um supernível ou um

subnível, mudamos de um estado menor para um

maior ou de um maior para um menor. Cada linha

lindeira é a linha nodal que Althusser chamou de

ruptura epistemológica. É a acumulação

quantitativa que se transmuta na configuração

qualitativa da natureza daquilo que está em

processo. Compreendendo-se de modo absoluto

apenas uma coisa é possível compreender todas as

coisas. A filosofia pretende compreender esta

mesmidade que há entre umas e outras coisas.

Como diria Anaxágoras, tudo está em tudo. Tudo é

119

redutível ao ser. Respondendo-se à pergunta “o

que é o ser?” tudo estará respondido.

Respondendo-se à pergunta “o que é a

linguagem?” sabendo-se que é através dela que

referenciamos todos os seres, tudo estará

respondido. Na verdade, isto tudo foi respondido de

diversas maneiras, mas sempre há quem não se

satisfaça com a resposta e é por isso que a

discussão é transposta de umas premissas e

corolários e outras premissas e corolários. De todos

os lados do cristianismo católico o mais belo é o da

filosofia. Abstenho-me de acusar o mais ignóbil

porque só o lado belo das coisas é do meu

interesse. Por falar em filosofia cristã, digo que ela

e o marxismo são alvos de preconceito em relação

a uma espécie de máfia do pensamento. Em que

pese os erros históricos do cristianismo real e do

socialismo real, não podemos deixar de acolher

suas contribuições teóricas. Em relação ao modelo

societal cristão, o que vemos, é que quem não

pertencesse a nenhuma guilda, a nenhuma

confraria, estava fora do rol de prováveis cidadãos

120

de considerável projeção. Na sociedade medieva

isto fica mais claro, porém, em verdade, este é o

mesmíssimo problema de todos os tipos de

sociedade possíveis. Do ponto de vista teórico a

perspectiva liberal burguesa é a mais realista e a

mais idealista. Mas ela não vive o que prega. Neste

sentido podemos dizer que existe cristandade e

cristianismo, mercado e liberalismo, socialismo real

e socialismo científico. A efetividade está para a

idealidade como uma premissa qualquer, no interior

dos silogismos medianos está para o corolário

perfeito da respectiva metanarrativa. Quem sabe

não é encurtada esta diferença entre o ser e o

dever ser em razão da inaplicabilidade do conceito

ideal? Ora bem, então é de se mudar o tal conceito

para verificar se uma nova proposição alcance um

êxito sem precedentes no sentido de sintonizar o

empírico com o ideal. No dizer de Amartya Sen,

unir o niti ao nyaya, respectivamente a situação

ideal e a situação de fato.

O que mais funciona no mundo

121

O que mais dá dinheiro no mundo, ou o que se

encontra entre os negócios lucrativos são os

networks. Justamente porque assim como a

metanarrativa que é construída em nossa cabeça

também a rede de vendedores-compradores é em

forma de teia. Nenhum modelo supera isto e a

maior prova disso é o regime político do Egito cujos

maiores ícones traduzem o princípio de auto-

organização social, as pirâmides. Todavia, é um

sistema que solapa quando a cobertura se

aproxima de 100%. Claro: assim como as

metanarrativas que mais deram certo no mundo,

elas só funcionam bem quando estão inacabadas.

O crescimento vertiginoso é o trampolim para a

bancarrota e é exatamente por isso que o governo

chinês barra o aumento demográfico e desacelera a

própria economia.

Etnotolerância

122

A característica da metanarrativa aberta e da

metanarrativa fechada é que a primeira consegue

ler as circunvizinhas enquanto que a última não

consegue sair de si mesma. O metanarrador que

postula uma metanarrativa aberta deve, conforme

sua natureza, prestar deferência inclusive a quem é

arrogante e fechado. Ser ético é partir da premissa

de que a minha cultura e a minha metanarrativa

possui o mesmo status como o do outro. Ser ético é

partir da premissa de que os corolários próprios e

alheios são sempre conciliáveis. Isto não quer dizer

que nunca haverá truculência. Tanto na teoria

quanto na práxis. Porque a árvore do conhecimento

é resistente e é preciso agitá-la para que se possa

colher fruto. O conhecimento e a maneira como

tratamos as outras pessoas precisam ser

continuamente atualizadas. O Renascimento no

campo da cognição deve ser uma missiva que se

itera de quando em quando sistematicamente. O

Renascimento impôs um padrão epistemológico e é

justamente isto o que propomos. Há uma pars

destruens e uma pars construens. Devemos

123

relativizar o já posto e excessiva criteriosidade

próprios dos meios acadêmicos. Uma das maneiras

de evitar o conflito é aceitando as categorias do

outro. A filosofia brasileira é assimilação

interpretação, mas peca por lhe faltar o essencial.

De acordo com Gilles Deleuze, “filosofia é criação

de conceitos”. A nós, brasileiros, falta essa criação

de conceitos. Diria, aliás, que isso tem um lado

bom. Porque a primeira tarefa da criança é copiar e

repetir. Só quando ela chega à adultícia ela pode, a

partir de certos parâmetros, inovar. Mas o Brasil já

é adulto o suficiente para criar ideias novas. A única

razão pela qual a obra de Fídias Teles “Dimensões

da Angústia Humana” não é sucesso mundial, é

que lhe falta essa criação de conceitos. Todavia, os

aspectos narrativos, descritivos e problematizantes

são insuperáveis, faltou apenas a solução. Todavia,

é impossível ler a obra do autor e não admitir que o

ser humano é um ser absurdamente angustiado. A

criação de novos conceitos, de começo, é um óbice

ao consenso. Porque todo conceito precisa passar

por uma fase de credibilização. Mas a criação de

124

conceitos é um passo necessário ao entendimento

à medida que a linguagem de sempre resolve

apenas os velhos problemas, carecendo os novos

problemas de conceitos novos para serem

resolvidos. A comunicação precisa ser ao mesmo

tempo conservativa e resgatadora e criadora a fim

de que se possa avançar o processo universal de

esclarecimento. Porque a metanarrativa não é

apenas assimilação, mas suscitação perene do

inédito. O inédito é complemento necessário da

metanarrativa enquanto ela precisa entender-se a si

mesma como algo provisório e ao vivo. Descrever o

sujeito como sujeito é um empobrecimento. Porque

sujeito é aquele que está submetido a algo, está

enfiado, metido e incardinado. Já o termo indivíduo

é muito bom, mas Platão e o próprio Freud o

relativizam. Porque a metanarrativa é finita de

coisas públicas e privadas, embora não exatamente

inconscientes. Quando Habermas fala em

“dialogantes” chega mais próximo do que eu

pretendia. Mas embora o diálogo já seja em si uma

instância rica de sentido, não alcança o que

125

queremos expressar. Porque o metanarrador é

acima de tudo um ser intelectual em que o diálogo

é mecanismo, embora na prática corriqueiramente

funcionasse como um fim em si mesmo. Mas o

metanarrador não é de per si um dialongante. Pois

o metanarrador pode assumir o posto de

observador e ser epistemologicamente passivo. Em

verdade, o narrador só é narrador, o narrador só se

torna metanarrador quando assimilou elementos

que não foram carreados para o explícitos e a

consciência forte e quando a sugestão não foi

formulada na cônica posição de conjectura ou

hipótese. Quando o elemento assimilado não

clareado ou quando a sugestão não clareada não

tomaram corpo no discurso racional, não significa

que estão adormecendo no chamado inconsciente,

mas que são conscientes de restrito acesso.

Porque para uma premissa ser considerada

explícita o metanarrador deverá ter construído

acessos vários e bem pavimentados para o mesmo

destinatário ou para a mesma informação ou ideia

buscada. Não se deve encarar o intelecto como um

126

QG onde estaria abrigado o consciente e a periferia

enorme seria o subconsciente. O intelecto é como

um país com várias capitais coordenadas entre si.

E as premissas e os corolários que egressem dos

subentendidos e dos presumidos são as conexões

várias entre estes pontos e entre os pontos

principais e os próprios consequentes. A

assimilação, por vezes, trazendo para dentro do

intelecto algo inédito, cria um ponto novo a partir do

qual serão puxadas várias conexões como um

governo pujante acelera o crescimento econômico

de um país. A metanarrativa é a única figura que

tem a capacidade de decidir o que irá fazer consigo

mesma. Ela pode optar pelo gozo sem crescimento,

ou pode determinar pôr-se a serviço de si mesma

para crescer exponencialmente. Aliás,

metanarrador e metanarrativa estão para si como o

ser está para o ente, na falta de uma analogia

melhor, ou como o valor está para o preço,

pegando um gancho na economia. A literatura é a

expressão máxima da metanarratividade. Ela é a

metanarrativa em estado puro, em estado líquido e

127

fluídico. A literatura tem de ser o trajeto da

tolerância universal a partir da ótica segundo a qual

a humanidade nela retratada está além de todo e

qualquer etnocentrismo. Não há ponto de

concordância sem linha. Nada mais difícil do que

afinar entre si duas pessoas sem linha, refém de

sua subjetividade idiossincrática e anômica. Muito

mais fácil é dispor de maneira harmônica duas

linhas antípodas, porque a objetividade está na

idealidade, na metanarrativa e não no próprio

metanarrador. O ecletismo não é refutar tudo e nem

aceitar tudo indistintamente. O metanarrador

sempre é eclético. Trata-se de imprimir maior valor

a certas premissas e certos corolários, sem ter que

aniquilar as instâncias opositoras à satisfação de

seu ideal. Quando um tem a meta A e o outro B, e

A implica não B e B implica não A, os

metanarradores terão de fazer nas instâncias

pragmáticas aquilo que é de difícil concepção no

plano intelectual. O melhor caminho é sempre

negociar os consequentes de A em troca dos

consequentes de B e vice-versa. Quando dois

128

metanarradores se reportam um ao outro há um

trânsito de pensamentos, de interesses, de emoção

e de afeto. Muito errado é separar amizade de

interesse. É claro que não devemos deixar o nosso

negócio perecer em nome de uma amizade. Mas só

porque um metanarrador cobiça o interesse de

outro, não significa que entre eles não haja

amizade. Porque amizade é de graça e interesse

tem um custo. E na maior parte das vezes o pago

se faz acompanhar do não pago e vice-versa. Na

Bíblia a idolatria frequentemente é associada à

prostituição por razões óbvias: o Deus de Israel é

um Deus de relacionamento, um que Moisés

conversa tête-à-tête com Ele, mas o bezerro de

ouro não quer relacionamento, ele quer sacrifício

em nome de lã, leite e carne. A prostituição é a

troca de dinheiro por prazer. Mas a sexualidade

sadia é relacionamento em que os amantes se

fazem de oferta um ao outro. Não havia

relacionamento entre o bezerro de ouro e o povo

porque um objeto de metal é incapaz de visualizar o

mundo. O Deus de Israel é um Deus de

129

relacionamento porque ele é a Maior Metanarrativa

em relação à qual não pode haver outra maior.

Deus é relacionamento com Ele Próprio, a essência

d’Ele é o relacionar-se. E o ser humano, imagem e

semelhança de Deus, também é igualmente

propenso ao relacionamento.quando Sartre diz que

“o outro é um inferno” está corretíssimo. Céu e

inferno são idênticos: o que muda é o ponto de

mira. Inferno é metanarrativa fechada, intolerante e

terrorista e o céu é metanarrativa aberta, tolerante e

dialógica. O inferno é a relação entre dois

metanarradores em que cada um equaciona as

coisas eu-isso e o céu é a mesma relação

harmonizada em eu-tu, para lembrarmos de

Bubber. O isso não pensa e não representa o

mundo. O tu é um sujeito cheio de ideias,

representações de mundo, sentimento, valores e

interesses. O isso é fora de contexto em muitas das

vezes. O tu é sempre situado, ele é sempre ele, um

metanarrador calçado por determinada espécie de

sapato, como diria Ortega y Gasset. Onde a

neurologia enxerga 100 bilhões de neurônios e 100

130

trilhões de conexões nós vemos metanarrativa. pois

o metanarrador não é uma superplaca de memória

e processamento, ele é mais do que a soma disto

tudo.

Metanarrativas heterotópicas

A metanarrativa é contexto e ele está em todo e em

nenhum lugar. Ao longo da história da filosofia a

transcendentalidade tem mudado de lugar, o que

equivale dizer que a metanarrativa mudou de lugar.

Na verdade, em linhas gerais, há dois nichos da

transcendentalidade ou da metanarratividade: fora

do sujeito (heterotópicas, por exemplo, Deus,

substância, comunidade, religião, etc) ou dentro do

sujeito (autotópica, como querem Kant, Piaget,

Freud e Lacan). A escrita tem um poder

conservativo e multiplicador incrível, o que foi

majorado pela informática. E à medida que a

metanarrativa fora do sujeito cresce ele aumenta

absolutamente e diminui proporcionalmente.

Vivemos num mundo de estruturalismo

131

concorrentes em que o homem entra como o ser

que quebra isto tudo ou de plúrimas

transcendentalidades. O que narramos,

dominamos, o que está no reino dos presumidos e

subentendidos nos domina. Somos o que

pensamos e nos assalta o que com o qual nos

relacionamos remotamente. O brocardo de Lacan

“onde sou não penso e o que penso não sou” está

erradíssimo. Pelo contrário, somos o que

pensamos. A validade de uma assertiva depende

do número de premissas e corolários que estão

encadeados com ela. É assim que quando digo

“Cléverson é advogado” suscito centenas de

relações processuais. A consciência, leia-se, a

metanarrativa reside em si mesma, mas há,

paralela a isto, heterotopia da consciência.

Deus

Deus, dizem as Sagradas Escrituras, faz morada

em nós, mas é o que está fora de nós. No sentido

de que do ponto de vista conceitual é o que nos faz

132

a maior das oposições na situação de categoria

máxima. Em Platão Deus fica meio turvo. Ainda que

se diga que é a ideia de bem, temos que considerar

que o demiurgo também engendrou a ideia de bem.

Para Aristóteles Deus é uma categoria necessária

do ponto de vista lógico e conceitual. Não haveria

como explicar o movimento sem esta Abstração.

Para Hegel Deus é o todo. Do que, de certa forma,

não discordamos.

Mito

Levi Strauss teve o mérito de perceber que a

cultura do homem é repetitiva, atávica e cíclica. No

máximo há passagem de níveis sem emergir de um

intrínseco imanentismo. Estes elementos reiterados

e inarredáveis comuns a todas as culturas humanas

Strauss fez deles a prioris incontornáveis e mínimos

com o referido setor que isto também seja um

conjunto de esquemas transcendentais.

História

133

Foucault coloca os a priori de Kant fora do sujeito:

na História, entendida esta como relação de poder,

de vigilância, de punição e de micropoder. Não lhe

tiramos a razão, vez que a História é a disposição

de tudo dentro do curso do tempo e o todo é maior

que a soma das partes, é muito maior.

Comunidade

Habermas entende que as estruturas organizadoras

do pensamento não estão cabinas dentro do sujeito

cognoscente, mas a própria coletividade é regida

por estruturas inteligentes de organização da

experiência. Se Jung fala de inconsciente coletivo,

Habermas diz que existe inteligência coletiva, sim,

mas ela é consciente.

Ordem jurídica

Kelsen mostra com sua teoria pura do direito que,

diferente do que ensinou Marx, o direito não é um

134

subproduto do que quer que seja, mas ele tem vida

autônoma e própria de sorte que se pode dizer com

tranquilidade que uma ordem jurídica equivale a

uma ordem de civilização.

Natureza

Deus perdoa sempre, os homens, às vezes, a

natureza nunca. Isto mostra que embora

dominemos a natureza, ela não se nos submete por

completo. Quando em Gênesis Deus ordena que o

homem domine a natureza, em primeiro lugar isso

cabe à natureza mesma do próprio homem.

Economia

Em tempos de Revolução Industrial muitos gênios

começaram a pensar que a economia era o cerne

da realidade. Na verdade, a economia é produto da

vontade humana livre e consciente voltada para um

determinado fim, contudo, esta vontade a todo

instante esbarra em condições objetivas. O grau de

135

desenvolvimento das forças produtivas é um bom

exemplo das condições objetivas a que nos

referimos.

Religião

A religião é uma psicologia coletiva e o coletivo é

mais que a somatória das psicologias individuais.

Arte

A arte é uma transgressão. Ela é a expressão das

premissas e dos corolários remotos antes mesmo

que estes tenham adentrado para o interior do reino

dos explícitos e da consciência forte.

Filosofia

A filosofia é uma tradição intelectual milenar que

traga os maiores gênios para dentro dela mesma.

Trata-se de uma inteligência coletiva tão reforçativa

136

e tão reiterada e exauriente que não há como

colocar-se acima dela.

Literatura

A literatura é o modo belo de retratar o cotidiano e

como nós gostaríamos que ele fosse. A literatura é

a verbosidade por ela mesma, é a palavra em

estado puro. A realidade é só um pretexto, um

distante referencial para que uma linha discursiva

possa se desenvolver dentro dum plexo lexical.

Ciência

A ciência é o conhecimento do mundo objetal de

modo metódico, sistemático e criterioso. Com a

ajuda da mídia torna-se poderoso critério de

verdade e é respeitado pela população como

autoridade em questões de alta indagação

Planeta

137

O planeta também é um a priori na qualidade de

nosso habitat. Morar no planeta Terra implica se

submeter a certas temperaturas, a certa pressão, a

processos físicos e químicos. A gravidade nos é

imposta. A fauna e a flora nos carreiam para dentro

de um ecossistema.

A metanarrativa autotópica: o sujeito metanarrador

Para Lacan sujeito é diferente de indivíduo. Bem

observado, na forma dos seus próprios termos.

Pois indivíduo é não divisível enquanto o sujeito é

um plexo de id, ego e superego. Freud havia dito

que seríamos muito melhores se não quiséssemos

ser tão bons. Isso mostra a diferença entre o ideal

do eu e o eu ideal (metanarrador). Como é gostoso

ser metanarrador. Nietzsche diria que se Cristo se

tornou homem é sinal de que vale à pena ser

homem. A todo momento as consciência autotópica

troca energia com a consciência heterotópica. O

processo de assimilação e alienação se efetiva de

uma só vez. O exterior é plantado na minha

138

consciência e a minha consciência crava a marca

do eu na exterioridade. Conscientização e

brutalização são faces de uma mesma moeda. O

que muda é o fluxo ou o sentido do fluxo ontológico.

E, apesar da mudança, tudo fica equilibrado, é a lei

da entropia. Como em matemática em que passo

uma incógnita de um lado a outro do sinal de

igualdade. O que medeia a instância cognoscente

da cognoscível toma valor pelo número de vezes

que se presta de mediação. Fica, pois, resolvida,

em linhas gerais, a polissemia do termo

“metanarrativa”. O eu ou a metanarrativa autotópica

é algo de difícil compreensão. Aristóteles explica o

ser humano dizendo que ele é um composto de

alma vegetativa, sensitiva e intelectiva e que o

intelecto subdivide-se em intelecto agente e

paciente. Seria a alma imortal? Parece-nos que,

para o grande grego, apenas o intelecto agente

teria esta característica. Aristóteles diz que o

homem é um animal lógico. Mas a lógica é só um

dos aspectos da metanarrativa. O homem é mais

que lógico, é narrador e, mais que isto,

139

metanarrador. Para Aristóteles, portanto, há

diferença entre indivíduo e sujeito. De minha parte,

não rechaço o uso destes termos, mas prefiro usar

o termo “metanarrador”. A metanarratividade é o

significado e o que se presta de conteúdo a ser

simbolizado, é o significante. O metanarrador não

apenas narra como quem conta, mas cria a

metanarrativa elegendo um ideal simbólico e aquilo

que eu gostaria que fosse verdade acaba de fato se

tornando uma verdade. Lacan foi feliz ao falar em

pai real e pai imaginário. Nos primeiros tempos de

vida a figura das pessoas que nos são próximas

são muito importantes. A janela de Johari traz uma

grande verdade ao notar que há uma diferença

entre a) quem eu sou; b) o que os outros pensam o

que eu sou; c) o que eu imagino que os outros

pensam que eu sou. O homem é um ser

dependente. A metanarrativa dela depende da

exterioridade intelectual na qual está inserido assim

como afetiva e sexualmente depende do corpo da

mulher. A metanarrativa é a busca de uma

satisfação intelectual. E por isso que nunca ficamos

140

totalmente satisfeitos. Satisfação total é

antecâmara da morte. A criança insatisfeita sempre

será insatisfeita e o adolescente insatisfeito assim o

será até a velhice. E o sucesso lúdico que a criança

não teve e o sucesso sexual que o adolescente não

teve será substituído pela satisfação intelectual. A

soma de todas as metanarrativas heterotópicas e

da metanarrativa autotópica é aquilo que os

filósofos buscam, a coisa-em-si incognoscível ou a

REALIDADE. Isto significa que Deus e a instância

que está fora d’Ele gera um complexo em algum

sentido mais pobre do que Deus enquanto único

fator tomado como parte da composição. Em

síntese, a composição resta mais pobre do que um

só de seus ingredientes pegado isoladamente, seja

Ele, Deus. O homem entendido pela ótica do

homem sempre será menos do que a antropologia

teológica das Sagradas Escrituras. Uma

compreensão maximamente aprofundada do

homem de si por si e para si recai naquilo que

recaiu a psicanálise declinada por Lacan:

metafísica, simbolismo e esoterismo.

141

Paranormalidade é a capacidade que o

metanarrador possui de mudar a si mesmo, ou seja

aos próprios esquemas mentais. Se o pensamento

é paranormal ou não, digo que o pensamento

passivo e meramente decodificador é normal, mas

o pensamento proativo, retroativo e implicador de

transformação dos seus próprios fundamentos é

paranormal, sem sombras de dúvida. A grandeza

do metanarrador consiste ao mesmo tempo na

capacidade de ser fiel às regras e de quebrá-las.

Devemos quebrar as regras quando as sub-regras

de um determinado nível não dão mais conta de

pautar nosso pensamento e nossa conduta. A regra

é quebrada, portanto, não pelo seu

descumprimento. Porque cumprimento exauriente

de uma regra a satura e a invalida. Aí surge a

necessidade de adotar um código de normas mais

avançado. É neste sentido que Jesus Cristo diz que

não veio abolir a lei, mas aperfeiçoá-la. E aos

supostos exímios cumpridores da lei o Mestre

aconselha “dá tudo o que tens aos pobres e terás

um tesouro nos céus”. Todo sujeito é um

142

metanarrador e todo metanarrador é um sujeito. Daí

ser muitíssimo interessante o emprego da

pleonástica expressão “sujeito metanarrador” que

por simplificação chamamos apenas de

“metanarrador” estando implicitada no vocábulo a

ideia de sujeição ao entorno. O metanarrador se

desenvolve participando de fóruns e seminários.

Entendendo-se o fórum como instância privilegiada,

real ou virtual, de encontro de interessados por um

determinado tema para dirimir a res dúbia, ou seja,

apreciar elementos téticos e antitéticos. Já os

seminários são encontros que lançam desafios

intelectuais como semente no intelecto que permite

a eclosão da solução teórica. Os fóruns e

seminários são muito bons porque nada como a

inteligência coletiva burila tão bem a inteligência

individual. A própria palavra “forasteiro”, parenta de

“fórum”, traz em si a ideia de ubiquidade. Mas

fórum é busca de harmonização e o forasteiro é

visto como quem relativiza a harmonia. O

metanarrador padece quando não exercita aquilo

que faz com que ele seja ele mesmo, a

143

metanarratividade. Quando ele para de pensar, de

sofisticar suas representações de mundo, é como

um motor que começa a oxidar por falta de

funcionamento. Daí a importância da formação

permanente ao longo da vida. Uma civilização pode

ser medida pelo número de escritores, filósofos,

cientistas e doutores, eu creio nisso. A riqueza

material é reflexo da riqueza intelectual. O motor da

economia, da civilização e de tudo o que é utilidade

pragmático-existencial é a educação. A educação

deve ser um fator de promoção social. O letramento

é nada mais do que a narradorização daquele que

simplemente vê, mas não enxerga, escuta, mas

não ouve, decodifica labialmente, mas não

compreende. Há quem não entenda a narrativa,

este é um grande ignorante; há quem entenda a

narrativa, mas não, entretanto, a metanarrativa, ou

seja, é um intermediário com compreensão, mas

sem interpretação; e há quem entenda a narrativa e

a metanarrativa, este compreende e interpreta, isto

é, intelige o que é visível, e colhe o que oculto e

subentendido no texto e no contexto está. Só o

144

intérprete consegue agarrar o sentido da

metanarrativa. Não há diferença entre metanarrador

e intérprete, porque quem narra, narra a sua

interpretação. E quem interpreta só interpreta o que

já internalizou em si. Claro que falamos isto

genericamente, não sendo o mesmo válido para os

recortes da narrativa. Nada engana e confunde

mais do que a parte solta da totalidade. Daí o valor

da ideia de sujeição que veio a ser enriquecida

pelos epistemólogos da psicologia com a ideia de

interacionismo e construtivismo. A metanarrativa é

uma obra sem previsão de término. Trata-se de

uma construção permanente. A morte é a ruptura

do andamento do trabalho intelectual. Quiçá, para

que noutra ocasião comecemos tudo do zero com o

primor de uma transcendentalidade almática

treinada pelas vivências anteriores. A metanarrativa

autotópica é como a exibição de uma peça teatral

de que o treino já é uma apresentação. Marx nega

a existência do mundo espiritual justamente como

quem tira um passageiro de um avião e faz o

mesmo sentir a dureza do lombo da mula no plano

145

terrestre. A filosofia de uma maneira em geral faz

este grande condicional, seja ele, abstrair da

trascendência, para entender a imanência por ela

mesma. Esta não é uma postura errada, pois o

próprio infinito se fez finito para compreender a

finitude e mostrar que em algum sentido finito e

infinito são uma só e mesma coisa. Freud e Marx

foram muito bons no que fizeram, mas pararam no

meio do caminho. A psicanálise é ótima como

busca do sintoma e, não apenas isto, mas como

método catártico. Mas não oferece um método

positivo de organização mental. Da mesma forma

Marx critica a sociedade capitalista, mas não

escreve o que deseja, quem sabe, por medo de

cometer o mesmo erro dos socialistas utópicos.

Assim, estamos carentes de um planejamento

individual e coletivo, coisa que tentarei propor ao

longo dos meus livros. Por certo que tanto um

quanto noutro caso é importante o bem estar

individual e o coletivo. O bem estar individual não

pode sufocar o bem estar coletivo e o bem estar

coletivo não pode sufocar o bem estar individual.

146

Falando do indivíduo, sabemos que a atividade

sexual desempenha um papel de equilíbrio do

sistema nervoso que não pode ser completamente

substituído pela alimentação, excreção, micção ou

repouso. O sexo, para a maioria das pessoas é

insubstituível. O indivíduo deverá trabalhar tanto

que não sobrevenha a escassez de dinheiro e no

máximo aquilo que não comprometer suas reservas

energéticas para fruir sua felicidade. O poeta inglês

William Worsworth disse que o nascimento é o

começo de um sono e que vigília é o que antecede

o nascimento e sucede a morte. Interessantíssima

ideia. Daí que o esforço do metanarrador é tentar

pensar pensamentos próprios de vigília ainda que

esteja refém do sono.

Metas a atingir

Individualmente o metanarrador deve ter a meta de

fazer salientar seus conhecimentos ante os demais.

O Estado, no entanto, deve promover e fomentar a

educação para tornar as razões fracas em fortes.

147

Esse antagonismo de homogeneização coletiva e

heterogeneização individual deve ser uma

constante. Socialmente falando, a estrutura estatal

deveria possuir dois departamentos chaves, o de

fomento à inventividade e o de informação. O

objetivo do departamento de inventividade é a

inovação tecnológica que estabelece um patamar

de taxa de lucro muito maior que a taxa de mais-

valia. E o departamento de informação promove a

quebra de monopólio socializando a informação de

modo que se aproximem ao máximo a taxa de lucro

e as taxas de mais-valia. O departamento de

informações trabalhará tanto com informações

científicas quanto informações de mercado. A

função da oumperiforalogia é organizar a

inteligência individual e coletiva. O novo modelo de

sociedade a ser implantado passa pela fundação de

um Partido da Cultura e pela difusão da

oumperiforalogia. Para que nossas metanarrativas

sejam mais ricas precisamos tornar o mundo mais

belo, precisamos sonhar com o simbólico estético.

A oumperiforalogia está conectada à tradição

148

filosófica e reconhecemos a filosofia como a melhor

estratégia puramente humana para organizar a

civilização, inclusive os conhecimentos científicos.

Todo o sucesso do marxismo e da psicanálise

reside no fato de trabalhar categorias simples como

justiça social e sexualidade, enquanto a

oumperiforalogia fala de metanarrativa que é o

grande reconhecimento da dimensão intelectual do

ser humano. É de se esperar que a

oumperiforalogia tarde a se popularizar como o

marxismo e a psicanálise porque é uma minoria as

pessoas que sentem necessidade de locupletar sua

intelecção. O conhecimento tem sido usado como

meio e instrumento. Mas no futuro as pessoas não

quererão conhecer para exercer uma profissão,

mas simplesmente para saciar seu intelecto. Assim

como não se trabalha senão por dinheiro e se

copula por prazer e não para a reprodução. O

conhecimento deve de um lado manter seu

pragmatismo, mas deve cultivar esse lado de

deleite, alegria e satisfação. Se me disserem que a

minha teoria não revela nada sobre o mundo, direi

149

que, a rigor, nenhuma assertiva é significativa. E

que muitas vezes, senão em todas, as proposições

mais generalizantes são as mais significativas. O

que torna uma proposição útil é o sentido que ela

transmite ao receptor, independente de tudo aquilo

que foi dito pelos cientificistas e quejandos.

Wittgenstein falou acerca daquilo de que não se

podia falar e os verificacionistas defendem uma

teoria não passível de verificação. O próprio

pragmatismo não possui qualquer aplicação prática

imediatista. Este o problema das anti-filosofias. A

metanarrativa não esbarra nestes paradoxos pois

ela mesma vem a ser aquilo que propõe como

objetivo a ser alcançado. Ela, portanto, não apenas

promete, mas a própria formulação da promessa já

é o seu cumprimento. Porque o pensamento que

visa formular um sistema já está se movendo

dentro de um sistema. A grande limitação da

oumperiforalogia é trabalhar com a ideia de

sistema. Porque o sistema não transcende a si

mesmo. Quem sistematiza pensa grande, mas

sempre há algo maior que este grande. Daí o falar-

150

se em metanarrativa que é o reconhecimento dos

pressupostos extrassistêmicos do próprio sistema.

É assim que a metanarrativa pelo trabalho

intelectual de apropriação vai se expandindo. Como

uma célula que engole proteínas que passeiam do

lado de fora da membrana e que, de repente, passa

a servir de proteína a ser processada pelo núcleo.

Feliz é a nossa ideia de narrativa. Pois os filósofos

resolvem o problema descrevendo e narrando o

problema. Perspectivas filosóficas nada mais são

do que perspectivas de narrativa. O problema é

uma parte visível que pede a exibição dos

presumidos e subentendidos. Filosofar é fazer o

remoto se apropinquar, é dar nome àquilo que vibra

em torno dos conceitos que já existem. A filosofia

enquanto produtora de conceitos vem cumprindo

com propriedade e esmero o ônus do qual ficou

incumbida. Mas a tarefa nunca fica pronta e as

veredas tomadas não estão dando conta de

resgatar a humanidade das pessoas. A filosofia tem

pretendido criar um divisor de águas entre o que

pode ser discutido e o que não mais não é podido,

151

mas a beleza do debate consiste em explicar

velhos temas de novas maneiras ainda que elas

não atendam a determinados critérios de suposta

seriedade. Até porque o que há de mais sério na

vida não pode ser decomposto analiticamente e

nem conceituado com precisão. Metanarrativa é o

eterno trabalho de sísifo de deixar a pedra no topo

do morro ainda que previamente sabendo-se de

que tudo é em vão. O importante não é o resultado

do trabalho, mas o trabalho em si mesmo. Assim

como um procedimento cirúrgico de uma

enfermidade que se agrada e o médico que vê as

possibilidades de intervenção cada vez mais

restritas, assim como uma ação judicial que vai

exaurindo as medidas próprias das vias cognitivas

e adentra para a execução, temos que cuidar para

não estrangular a filosofia. Porque a filosofia não é

um processo ou procedimento que nasce, se

desenvolve e finda. O trabalho do filósofo é

infindável. É uma força e uma energia que se

renova a cada manhã. A filosofia é uma fênix que

ressurge das cinzas. E por mais que apareça uma

152

supergênio querendo resolver todas as grandes

questões da filosofia de uma vez por todas, nada

ficará encerrado. A filosofia é a sabedoria do

mundo mesmo quando o objeto da discussão é

Deus. Trata-se de um conhecimento que está em

constante mutação. Um conhecimento que não

transita em julgado, sempre comporta

questionamento, não se perfectibiliza jamais,

sempre está em eterna e perene busca. E não seria

justo ser diferente. Se os que nos precedem

tiverem o direito de fazer suas buscas, nós

poderemos fazer as nossas. Quando se fala em

“fim da História” não se fala em outra coisa senão

acerca da predominância de uma das

metanarrativas possíveis. É claro que a

metanarrativa enquanto categoria pensada toma

força quando na base material da reflexão o que se

encontra é o efetivo praticamente coincidindo com o

ideal. Mas a metanarrativa tem um valor em si

mesmo ainda que seja apenas uma representação

ou um plexo de representações na cabeça de um

só indivíduo. A única atitude que nega a

153

metanarratividade é o ódio à vida. A inércia também

atravanca o andamento do processo intelectivo.

Mas entre avanços e rés, o que se percebe é um

contínuo avanço do pensamento. É bem verdade

que pouco conhecimento. É bem verdade que

pouco conhecimento bem processado vale mais

que muito conhecimento não processado. Todavia,

só recebemos capacidade de processamento a

partir do momento em que se avolumam as

coleções de informações. Tudo concorre

automaticamente para a meta. Enquanto o

metanarrador a partir da sua própria meta narrativa

não se convencer de que foi algo no passado, não

terá vitória no presente. Porque é muito fácil

aceitarmos ser menos do que as outras pessoas,

difícil é aceitar ser menos do que o si mesmo.

Quanto mais bem montada no nosso intelecto

nossa vida passada e a vida de nossos ancestrais,

maior será a nossa pretensão no presente. O

homem é a medida de todas as coisas como diria

Protágoras e quem se vê gigante não tolera outra

coisa senão o gigantismo. Quem sempre parvo foi,

154

parvice alguma irá lhe espezinhar. Nós somos o

que os historiadores dizem que nós sempre fomos.

Daí a importância de se conhecer bem a história da

própria etnia, pois um estudo minucioso sempre

haverá de acusar belas façanhas. O homem é o

padrão que ele impõe a si mesmo. O alemão é

grande porque seu padrão de pensamento é

grandioso. Tal padrão temos chamado de

metanarrativa. O alemão tem a capacidade de

canalizar as paixões para os fins mais sublimes.

Ser grande é pensar grande. A abstração do

pensamento mensura o grau de universalização do

ideal daquele que sustenta o discurso. O mais

realista é o mais idealista. Aquele que se acha

realista por ser conforme o pessimismo é um tolo.

Não significa que devamos prescindir das

condições reais sobre as quais se apoia nossa vida.

É que temos que ter a capacidade de superar e

transcender isto tudo. Diz-me qual é tua filosofia

(metanarrativa) e eu te direi quem tu és. A

experiência é sempre experiência de ideias e não

de sensações. Porque a sensação pouca coisa

155

informa. A única coisa que informa é o juízo prévio

aplicado à prática e que resiste à sua mobilidade. É

por isso que as ideias ligadas à mobilidade e ao

transcurso do tempo são as que mais vingam, por

darem conta de não ser tragadas por aquilo que

pretendem explicar. A causalidade se encaixa nisto

também pelo fato de supor o que tem o poder de

relativizar quase tudo o que é escrito.

A causalidade

Toda civilização tem uma causa de existir. Assim,

um dos papeis centrais não só da filosofia, mas

também das outras humanidades, consiste em

apurar a formação, a ascensão e a manutenção

das grandes civilizações. Devem ser apuradas as

causas das quedas para poderem ser evitadas. Daí

que deve haver uma aliança entre História e

Filosofia da História. Aliás, Filosofia da História

deve ser uma disciplina que figure tanto em

Filosofia quanto em História, refiro-me aos cursos

de graduação. É certo que o amor à pátria, o amor

156

à pontualidade, ao trabalho, à família e a Deus

engrandece uma civilização. A decadência surge da

flexibilização dos costumes sexuais, do desrespeito

aos mais velhos e da apatia à religião e à filosofia.

O Estado deve fomentar as virtudes e punir vícios.

A primeira purga deve ocorrer dentro da estrutura

do próprio Estado. É preciso que cada cidadão

tenha a capacidade de encontrar seu próprio

fundamento em si mesmo. Porque somente o

homem pode reformar o próprio homem e tudo o

que dele provém, inclusive a estrutura estatal e

todas as demais estruturas. O que você espera do

outro precisa encontrar em si mesmo. Tudo o que

cada um precisa está em si mesmo. Capacidade,

força, energia, afeto e entusiasmo está em cada um

de nós. Além disso, em nossa infância são

construídos os níveis dos mais variados tipos.

Níveis de: tensão, estresse, atenção, afeto,

segurança, conforto, etc. Quem foi criado

rusticamente não se sente bem em muito conforto.

Quem não recebeu afeto fica constrangido e

enojado ao ter que dar ou receber mais afeto do

157

que o seu nível admite. O estresse é um dos

poucos que não deixa o metanarrador preparado

para ele mesmo. Muito estresse na infância pode

deixar o metanarrador mais exposto ao estresse na

adultícia do que outro que teve a infância mais

tranquila. Se uma criança for deixada a uma

situação artificiosa de abandono emocional, toda

vez que precisar de ajuda e suporte, será muito

independente, mas não queira que ela lhe dê afeto.

Porque não se tira oceanos de água de cisterna

seca. Até porque esta forma de energia, o ela do

afeto, não usada é indestrutível, é remanejada para

a atividade física ou intelectual ou para ambas. A

metanarrativa não tem outro fim e não tem outro

meio senão ela mesma de modo que o ser humano

não tem outro fim e outro meio senão a si mesmo.

O metanarrador enquanto tal não deve apenas

divagar para aumentar seus graus conscienciais,

deve pensar quais os conceitos ferramentas que

serão interpostos entre ele mesmo e o outro eu,

entre ele mesmo e o pensamento cristalizado nos

materiais para este fim, entre ele mesmo e a

158

natureza. O homem é a causa, o meio e o fim. Ele

também é mediação de si mesmo, mas quando

está na condição de mediação se serve de

aparatos para factibilizar o que pensa, assim como

o escritor depende da caneta para escrever. Ao

mesmo tempo que a economia dos meios agiliza a

consecução dos fins menos gente se vê envolvida

no processo não auferindo vantagem econômica e,

consequentemente, não podendo lograr seus

próprios fins. Vivemos numa época em que o saber

como vem sendo pauperizado. Onde no passado

havia uma carência hoje abundam profissionais e

as profissões mais loucas possíveis estão em alta.

A sociedade fabrica ou importa os homens do

conhecimento e o poder cego e burro relativiza

aquilo que mais teme. Essa dissociação entre

conhecimento e poder é extremamente perigosa.

Porque um homem sábio sem poder é uma

fortaleza à mercê de piratas e um homem poderoso

sem o treino do conhecimento é um arbitrário. As

instâncias de poder submetem as instâncias de

conhecimento, mas as instâncias de conhecimento

159

só em apoucada medida submetem as instâncias

de poder. É mais fácil ao poder fornecer o gabarito

da prova a quem lhe apraz do que conseguir a

assunção a um cargo de prestígio pela força do

intelecto. A oumperiforalogia pretende substituir a

sociedade da empatia pela sociedade de sistemas.

Porque a empatia faz dos ignorantes, brutos e

bestiais cobertos de poder, dinheiro e títulos e

reduz os verdadeiramente civilizados, os

sistêmicos, a empregados mal pagos dos primeiros.

Uma sociedade da empatia é uma sociedade

irracional assentada em fisionomias, que passa por

cima de toda e qualquer lógica, por cima de todo e

qualquer sistema. Os talentos são postos de lado e

a pessoa é avaliada pela subjetividade. A

sociedade da empatia é uma sociedade sem

parâmetros e geradora de uma tremenda

insegurança. Tritura os competentes para servir de

repasto aos sorridentes empáticos que babam o

sangue pelo conto da boca em sua terrível

antropofagia. A extroversão é colocada como

parâmetro máximo de aceitação social, pisando-se

160

a cabeça dos introvertidos que sempre foram os

verdadeiros resolvedores de problema. A

extroversão é uma linguagem de papagaio

enquanto que a verdadeira e acertada

representação é a metanarrativa que mora sempre

do lado de dentro. Sim, digo “sempre”, porque

mesmo quando me detenho sobre as

metanarrativas heterotópicas eu preciso sair do

meu interior e me deixar abduzir pelo interior delas.

A realidade externa é uma ilusão e a mais útil

função da ilusão é gerar demandas, nada mais do

que isto. A civilização da empatia traduz a crença

de que nenhum sistema é perfeito, mas

participamos em parte deste entendimento. O

sistema só não é perfeito porque sempre tomado

fechadamente. É preciso entender o sistema como

algo aberto que comporta elementos novos. Assim,

não se trata de romper com o sistema, mas de os

metanarradores se adequarem ao sistema e de

proceder com uma permanente reparação do

sistema. A extroversão lança assertivas e a

introversão as submete ao crivo da lógica e da

161

adequação. A causalidade da ascensão e queda

das civilizações é o temperamento dos líderes. Os

líderes não devem ser escolhidos apenas por

aclamação popular, mas devem ser melhores que

seus liderados. Um líder precisa desempenhar no

mundo social aquele mesmo papel que os pontos

imateriais apoiadores de si mesmos e de outros

tantos mais no reino das cordas. Porque o líder tem

o poder de dar a linha a quem está carente de ter

alguma linha em suas mãos mentais para poder se

agarrar com o intelecto. A causalidade é algo que,

de acordo com Sartre, nos dividimos entre nossa

liberdade de opção e as consequências de nossas

opções. Somos cativos de nossas opções. A

causalidade é circularidade, porque o agente

causante é o que suporta o efeito daquilo que

lançou fora de si. Vivemos dentro de círculos: para

sair de uma circularidade precisamos de alguma

forma ingressar em outra. Mas livrar-me de todos

os condicionais, para quem faz a experiência do

mundo sensitivo é simplesmente impossível. Cabe-

nos optar entre formas de escravidão e não entre

162

ser livre ou escravo. A liberdade consiste em ter

tempo livre para construir metanarrativa. Tudo o

mais não passa de balela. A causalidade é

transitividade. Como se ela fosse uma alternativa

entre os túneis navegáveis. A liberdade é o site de

busca dentro do qual optamos por abrir a página do

nosso gosto. Você pode abrir páginas mais belas,

mais informativas ou mais eróticas, mas o visar

sempre estará exibindo algo. Nada melhor para um

povo, para uma família e para um indivíduo do que

ter história. Quem não tem história não a valoriza

como a rapoza que diz “as uvas estão verdes”, mas

quem tem história deve fazer dela um leitmotiv

poderoso na consecução de metas para o futuro e

a confiança do agir no presente. Lembrando de que

história é algo necessariamente escrito. A tradução

puramente oral sempre sucumbe. O judaísmo com

certeza tirou a história do mundo tal como nos é

apresentada no Pentateuco da sabedoria egípcia

uma das pioneiras a empregar a escrita.

Papel da metanarrativa em um mundo em ebulição

163

Uma coisa é certa: o mundo foi um projeto perene e

bem sucedido de mudança e continua sendo isto.

Não há melhor receita para referenciação do que o

assimilar a história do pensamento. Assim como o

mundo material tem uma história, também – e muito

antes – o pensamento tem uma história. Fazer

metanarrativa é assentar fundamentos. Porque de

nada adianta eu estar a mil metros de altura num

arranha-céus e vislumbrar amplos horizontes, se

não vislumbro o fundamento que mantém esta

estrutura toda de pé. Porque a pletora de processos

de transformação desnorteia o sujeito, o que só

pode ser remediado pela compreensão da gênese

dos mesmos. A metanarrativa tem o condão de

estabelecer nexos etiológicos. Nunca foi tão

necessário ser um bom metanarrador como nos

dias da atualidade. O mundo de hoje é o mundo da

célere mudança e a mudança é o conteúdo objetal

da metanarrativa. Quem sabe agora conheceremos

qual o melhor ponto de vista, uma vez que as

ideologias estão a passar por uma têmpera que não

164

existiu em épocas precedentes. Em física a

ebulição é um dos processos mais utilizados para

extrair as impurezas de uma substância e separar

sua autêntica essência. Na verdade tudo o que se

escreve em filosofia é superado pelo tempo. As

únicas ideias em filosofia que resistem à ação do

tempo são aquela completamente abstratas e em

sua essência predominantemente lógicas. Ora, isto

significa que a filosofia não consegue sustentar

absolutamente nada além do óbvio. O único

conhecimento filosófico que perdura é o truísta e

apriorista. Nada do que é experiencial é

interpretado. O nível de generalização das

metanarrativas filosóficas não permitem uma

aplicação mais rápida. Isto significa que resta

plenamente justificável a pluriperspectividade da

contemporaneidade. Todas as ideias filosóficas, em

que pese, a inverificabilidade delas para se

certificar de que correspondem à realidade,

concordam totalmente consigo mesma. É esta a

concordância que atrai seguidores e simpatizantes.

É, em certo sentido, uma inteligência que explica a

165

si sem sair de si. É como se ao longo de séculos e

séculos ficássemos por meios sutis reafirmando

com Aristóteles o princípio da identidade, ou seja,

de que A é igual a A. A filosofia é o melhor

conhecimento que existe para mostrar que ela

mesma não leva a lugar nenhum e que está ao

alcance dela apenas engendrar ilusões bonitas e

agradáveis. Mas além de ela desmascarar a si

mesma, faz o mesmo com sua rival, a ciência. Diria

que a filosofia é importante porque os relatórios e

dossiês de nossa própria ignorância são

importantes. Se queremos fazer um levantamento

daquilo que sabemos, é mais fácil fazer uma

apuração do que não sabemos e nisto a filosofia é

mestra. A filosofia é o GPS perfeito que

esquadrinha o mapa dos caminhos e descaminhos

que levam a parte alguma. A filosofia é a

ferramenta mais útil para apontar os vícios dos

raciocínios e dos discursos dos outros. Ela é o

acúmulo grandessíssimo de aventuras intelectuais

mal sucedidas. A filosofia é um estelionatário

graduado em Direito no que se refere às manhas

166

das investigações teoréticas. Ela está recalcada,

sacudida e transbordante de ladinagem intelectual.

A filosofia não cai no golpe do bilhete premiado e

nem tampouco no golpe da barriga. Quando um

leigo fica espantado com a malícia de um sujeito

grosso modo inexperiente e que passa a maior

parte cerrado em seu gabinete se debruçando

sobre obras filosóficas, não desconfia que filosofia

é a formulação de generalidades acendrada não

por outra coisa senão pela própria prática.

Apropriar-se da prática alheia é a forma esperta de

economizar cabeçadas. Fazer filosofia ou qualquer

outra espécie de metanarrativa é avançar

premissas e corolários a dentro. E não há

necessidade de que tais premissas e tais corolários

tenham signficado fora de si, mas lhes basta o

significado intramental em relação ao qual é

conexão importante. A filosofia só faz sentido par si

mesma. Assim é com a metanarrativa: ela não sai

dela mesma, quando ela se expande é o exterior

que passa a ser interior, ganha corpo sem ter a

chance de sair da corporeidade. Enquanto o mundo

167

nos arranca de nós mesmos, a metanarrativa nos

dá o conforto de colocar o ponto de equilíbrio

dentro do nosso eu. O mundo ama o diferente

porque o diferente gera demanda. E demanda gera

lucro. A filosofia chegou nesta mesma fase no

mundo espiritual: ela precisa ser proativa, o

trabalho braçal já foi realizado pelos predecessores.

A filosofia não está mais aí para atender a

paradoxos existenciais, ela tem a missão de

desenvolver “produtos intelectuais” e fazer as

pessoas crerem de que elas precisam assimilar isto

sob pena de defazagem intelectual. A filosofia é

uma grande moda cujo grande escopo é o estar por

dentro da moda intelectual. Esta é a pretensa

vantagem que os filósofos contemporâneos lhes

fornecem: o estar a par das mais recentes

divagações das mentes tecnicamente mais bem

dotadas. O mercado editorial, instância chã e relés,

muitas vezes, senão na maioria, determina qual

será a ideologia dominante. Porque é mais fácil

propagar uma ideia fraca e rica do que uma ideia

boa e pobre. A filosofia há muito tempo está

168

endomingada. Depois do trabalho árduo tornou-se

uma pessoa do tipo bom vivã. Se nenhuma

novidade exsurgiu no mundo empírico, se o

cotidiano no qual estamos imersos não sair da

linearidade, é praticamente impossível haver uma

grande mudança de rota como aconteceu nos

séculos XIX e XX. Ao contrário do que se imagina,

a filosofia não está, pelas razões explicitadas,

passando por um momento de morbidez, ela fez o

trabalho bruto, porém, agora, dispõe de uma

tranquilidade sem precedentes para a livre reflexão.

Não há, como em épocas passadas, o peso

clerical, o ditador político, a pressão econômica, a

repressão em desfavor da sexualidade, de tal forma

que o filósofo já não vem a ser tanto refém do tema

em relação ao qual nem mesmo tinha liberdade de

escolha. Agora a filosofia vai se aproximar muito da

literatura. Ela vai ser não tanto, como outrora,

desfazedora de nós e paradoxos, mas será

narrativa, assim como a literatura. Ela saiu da fase

hard para ingressar na fase soft. E quanto mais

distância cronológica a humanidade guardar da

169

Segunda Guerra Mundial e do comunismo soviético

e europeu, mais pacífica e calma será a reflexão

filosófica. Não é de se surpreender que se fale

tanto em lógica e estética: os temas abstratos

apenas demonstram que a vida concreta pouco tem

esbarrado na reflexão filosófica. Quando um autor

começa a falar em metanarrativa justamente

quando há um consenso geral de que consciência e

conscientização filosófica são temas superados,

quer, na verdade, abarcar o pluralismo de

materialismo, idealismo, positivismo, darwinismo,

neomarxismo, psicanálise, relatividade, realismo,

hermenêutica e tantas outras neocorrentes, a fim

de unificar isto tudo numa única plataforma.

Metanarrativa é recolher o que se esfacelou e

dispor as ideias recolhidas harmoniosamente como

se fosse uma bricolagem intelectual. A

metanarrativa é fazer a filosofia se aproximar da

arte. Não no sentido de que se filosofe acerca da

arte, mas que a filosofia mesma seja uma arte.

Quando se propõe um novo modelo de civilização

calcada sobre a ideia de metanarrativa se quer

170

pregar um ideal artístico de civilização. A indústria

taylorizou quase tudo, inclusive a cultura e agora o

desafio é sair da produção em série e fazer um go

back aos tempos dos ofícios artesanais. A começar

pela produção da própria filosofia. Falar de um

tema filosófico não pode ser como desmontar um

motor. O artesão tem o foco na subjetividade, no

primor, na beleza. Ao artesão representa maior

regozijo uma excelente peça infungível do que

milhares de outras semelhantes, mas inautênticas.

A produção em série rouba grande parte da

autenticidade. Civilização bem sucedida é aquela

em que seus cidadãos fazem da sua atividade um

xou de suavidade, perfeição e beleza artística. Não

basta dar conta de resolver o problema, tem de ser

belo e aprazível. A filosofia é um ramo

especializado da literatura de meditar o homem e

sua cultura de uma maneira a prestigiar os autores

do passado. Quando chamo o ser humano de

metanarrador estou a afirmar que o ser humano

individual e coletivo são tipos de literatura. Viver

bem é escrever bem a própria vida. A vida é uma

171

exibição. A vida é uma narração instantânea,

sequer há chance de treino. O treino já está sendo

transmitido ao vivo. Quem é objeto da narração, o

próprio metanarrador, que está na pista de quem foi

e de quem vai, não consegue nem mesmo dar

conta do que supõe e do que persegue ao

protagonizar seu papel. Quem muito se aplica em

aprofundar seu conhecimento numa área logo

encontra o cânon invisível além do qual é

impossível ir e logo percebe que, em se tratando de

conhecimento, é melhor se expandir para os lados

do que para baixo. Importante também é articular o

que se sabe. Quantas e quantas pessoas sabem ler

em inglês, mas empalidecem no primeiro momento

em que são forçadas a travar um pequeno diálogo

com um anglófono. A fluência, em um idioma, como

o inglês, em um tema, como a filosofia, só se

adquire através de esforços extraordinários e

através da exposição maciça a estas realidades

culturais. O mundo em ebulição pede maneiras

novas de recolocar os velhos pontos lógicos no

vazio entre si. O filósofo é um desbravador de

172

novos discursos. Quando um discurso se desgasta

ele constrói outro para dizer exatamente as

mesmas coisas de outrora. É como, mais ou

menos, o uso de nomes para designar pessoas

mentalmente enfermas. No passado eram

chamadas de retardadas, idiotas, cretinas e

alienadas e hoje em dia fala-se em deficiente

mental, débil mental, pessoa portadora de problema

mental, excepcional e pessoas especiais. Quando o

termo se desgasta é engendrado outro. É assim

que já existe há muito tempo pessoas que sugerem

extirpar o termo “socialista” e usar outro para se

referir à mesma ideologia. Mas a ação do filósofo

não se refere a categorias, mas também com o que

se faz com tais categorias, ou seja, o discurso. É

como se ao longo de 25 séculos eu chamasse a

mesma pessoa por nomes diferentes, por

pseudônimos, ficando, entretanto, sempre velado o

seu verdadeiro nome. Ora, eis que o pseudônimo é

um papel, e o nome se refere à personalidade de

fato. Mas de tanto representar, o artista já não sabe

onde começa e onde termina o teatro e a vida real.

173

A coisa em mim foi tão bem construída, comportou

tantos discursos, que já não importa mais a coisa

em si. O mundo em ebulição é como a água na

chaleira, simbolicamente representando a filosofia,

em que a água saracoteia em seu interior, mas nela

sempre está contida. Assim é um projeto de

civilização: toda civilização, impreterivelmente, é

feita por pessoas, mas o modo como as pessoas

estão dispostas e se relacionam entre si é que faz

toda a diferença. Parmênides vê a água parada,

Heráclito vê a água em movimento, Tomás de

Aquino vê o Dono da chaleira, Marx observa o

preço da chaleira, para Hegel a chaleira é uma

ideia, para os materialistas nada existe além da

chaleira, para os filósofos da linguagem a palavra

“chaleira” é enfeitiçada e para os lógicos a chaleira

é igual a ela mesma. Na verdade, daria para

escrever um tratado acerca da chaleira tomando

emprestadas as ideias da tradição filosófica. Assim

como Aristóteles em sua Metafísica, explica sua

própria ideia, também usamos o petrecho de nosso

chimarrão para podermos nos expressar. Na

174

filosofia as ideias trocam de lugar em última

instância porque o próprio poder está circulando de

uma maneira diferente. Uma nova abordagem

filosófica tem de ter a dupla capacidade de dar

continuidade à tradição e de inovar. Mas o que se

vê é que a novidade é sempre uma aparência e que

a promessa de avanço faz as novas categorias

recaírem dentro das velhas. Os filósofos chamam

as premissas e os corolários pelos mais diversos

nomes e volta e meia opinam sobre o que é meio e

o que é fim. Enquanto que o linguajar coloquial

preocupa-se em nominar entes concretos,

enquanto que o cotidiano de uma pessoa média é

predominantemente feito disso, o linguajar filosófico

procura palpabilizar as abstrações mediante a

criação de nomes intersignificativos. Quanto mais

amplo o rol de entes relacionados mais distante é a

relação, quanto mais específica a relação, mais

próxima ela é. O mundo de hoje é o mundo das

conexões remotas. O que talvez não faço com meu

vizinho, faço com um homem de negócios de Hong

Kong ou Singapura. Várias cidades começam a

175

tomar o perfil de Nova Iorque e Munique: em

qualquer esquina me deparo com um indiano ou

coreano. Isto sinaliza a realização de um objetivo

econômico. A metanarrativa é a realização de um

objetivo intelectual. No mundo de vários interesses

parece que o bico da chaleira por onde flui vapor-

potência é o voltado para a consecução da pecúnia

mesmo. E quando digo isto não itero totalmente

Marx. Até porque a sociedade atual relativiza ao

máximo o valor do trabalho. Estamos saindo do

capitalismo industrial para retornarmos ao

capitalismo comercial. Nunca deu tanto dinheiro o

comprar e vender sem que se tenham em conta os

processos produtivos. O mundo nunca foi tão rico

como o é agora e a filosofia enquanto marco

assinalatório da desenvoltura civilizacional deve

exibir as mesmas e proporcionais dimensões. Em

tempos de economia diversificada, pensamento

diversificado. Em tempos de máfia econômica,

máfia do pensamento. O pensamento mais forte é

aquele defendido pela confraria ou pela tribo mais

forte. O que escrevo nasce velho e superado, mas

176

é sempre candente. Trata-se de uma

metatemporalidade. De tempos em tempos Marx é

assassinado. Nem nasci, mas já querem me matar.

Como fênix renascerei das cinzas. Nietzsche dizia

que o fim da tragédia assinala a passagem do

pensamento mítico para o lógico, e a logicização

coincidiria com a morte de Deus e do cristianismo.

Produzir filosofia é a maneira mais barata e mais

cara de conseguir status. As pessoas lutam por

dinheiro para conseguirem status. Eu consigo

status por aquilo que escrevo. E um fenômeno

recente da filosofia é a produção teórica filosófica

como caminho cujo objetivo exclusivo seja o status.

Enquanto que o marxismo se posiciona como

crítica a um capitalismo anárquico, a psicanálise

procura perscrutar o imperscrutável. E a inteligência

entra nisso como meio. Mas o papel da filosofia é

enaltecer a inteligência e a razão. Marx e Freud

fazem a razão ficar reduzida a produto. Ela é

senhora. Kierkegaard foi feliz ao perceber em Hegel

que a consciência individual tem o poder de romper

com a malha dos processos dialéticos. A crença em

177

Deus é uma atitude de enfrentamento à realidade

meramente natural. Nascemos ateus e só depois

de muita experiência intelectual nos tornamos

crentes. Os ateus e associados não fazem outra

coisa senão elevar o patamar em que nossa fé está

situada. O pastor que orienta seus fiéis a

queimarem livros não cristãos é um infantil. O

pastor deve recomendar o consumo permanente de

tais bens culturais. O que não pode acontecer é o

abandono das Sagradas Escrituras cuja leitura faz

as críticas próprias ao húmus do humanismo serem

postas em seus devidos lugares. A inteligência

grega era superior à atual. Porque era uma

inteligência que se ocupava da physis e do próprio

homem e agora se ocupa da crítica à mais eficiente

sociedade produtora dos bens indispensáveis à

vida, e da irracionalidade do ser humano. Trata-se

de duas perspectivas de negação do si mesmo. A

mentalidade grega é superior por credibilizar a si

própria. Está na hora de jogarmos a água benta

sobre o que construímos, sem, entretanto,

estarmos fechados para melhorias. É um

178

retrocesso escorarmo-nos sobre duas gigantescas

negações: negação do mundo espiritual e negação

do mundo racional. A oumperiforalogia quer

justamente afirmar uma forma de civilização

pautada no otimismo da espiritualidade e da

racionalidade. O materialismo e o inconsciente são

regiões a serem conquistadas e não tanto

compreendidas. Até porque tais instâncias são

nichos de ignorância e inércia. Moram no recôndito

dos presumidos e subentendidos. O mérito do

marxismo e da psicanálise é explicar o que até

então remanescia sem explicação. Mas dizer que o

valor e a sexualidade são eternas coisas em si

incognoscíveis não passa de romantismo. É certo

que somos epistemologicamente cerceados, mas

isto não deve dar margem a um misticismo

gnosiológico. Toda crítica é válida até onde nos

leva a compreender o que tanto critica.

Entrementes, a crítica deve ser uma propedêutica a

um ensino superior, mais sólido e mais consistente,

e não a derradeira lição. O fato de o capitalismo

não faxinar das bibliotecas e das universidades

179

livros e pessoas críticas e o fato de o inconsciente

ser explicado pelo consciente faz eu me perguntar

“porque tanta gente dá crédito a estas instâncias

parasitárias”? Sim, porque se o inconsciente

emerge no consciente então não faz sentido a

departamentalização lacaniana de ego, id e

superego. E se o pensamento crítico precisa de

recursos, cargos, estrutura e consumidores de

livros das sociedades capitalistas, é como o chupim

que nida no ninho do tico-tico. Nada mais fácil dizer

como deve ser dividida a riqueza depois que ela foi

produzida e nada mais fácil ver no adulto uma

vítima da criança mal resolvida. É agradável

chamar o aluno de “oprimido”. Mas não ocorre ao

“libertador” que a vitimização das pessoas gera o

espírito de rebanho, de passividade, de gado

carente de boiadeiro. Pedagogia de verdade é

aquela que forma espíritos livres e já transmite ar

de liberdade por tratar o aluno dignamente, não,

contudo, com coitadismo. Aliás, o culto à miséria é

o erro do cristianismo, do marxismo, da psicanálise

e do próprio Nietzsche. O próprio Nietzsche vê a

180

racionalidade e a tradição filosófica como opressão,

o que é um erro. Deus, a filosofia, a riqueza e a

sexualidade só são opressões quando não

tomamos posse do que é nosso. E tais conquistas

não são conexões, são campos bélicos tomados

pela garra, pela intrepidez e pela aceitação da vida

do jeito que ela é. Não se trata de romper com a

lógica capitalista, mas de planejar o capitalismo.

Não se trata de dizer que a racionalidade é a menor

das partes, mas que é a melhor parte com muita

promessa de ulteriores ampliações. Relativizamos o

que temos de melhor. Mas a ciência nos mostra

que é melhor aperfeiçoar o que já dominamos. Mas

a filosofia parece querer jogar na sucata o Estado,

a democracia, o direito, o mercado, o cristianismo,

não percebendo que é melhor levar adiante o

potencial destes instrumentais. Em ciência a

tecnologia alternativa na maioria esmagadora das

vezes é a exponenciação da racionalidade das

prístinas tecnologias. O pensamento filosófico é o

mesmo pensamento dos velhos gregos. E a política

burguesa é o restabelecimento do ideal

181

democrático grego. Dê-me a máquina a vapor e

farei o virabrequim do carro fórmula 1. O

enaltecimento da negação é a irrealização da

dialética que se consuma numa síntese.

Lembrando que a síntese pode ser a reafirmação

melhorada da tese. Oumperiforalogia é

planejamento social em escala mundial e é

planejamento individual em que o destinatário das

diretrizes é o comportamento. Todos os maiores

progressos que realizamos foi quando demos à

nossa razão o crédito que ela merecia. O fracasso

de certas perspectivas racionais advêm de fatores

irracionais que inquinavam a linha mestra. O

marxismo e a psicanálise inventam monstros

diabólicos em face dos quais canalizamos nosso

ódio, nossa impotência e nossa inaptidão. Essa

teratologia é a forma cômoda de dizer que as

regras não têm valor, que o mundo é

essencialmente injusto e que somos as grandes

vítimas. Gasta-se meia vida com autocomiseração

e a segunda metade lamentando de ter aproveitado

mal a primeira. Chega-se assim, à velhice, quando

182

então culpamos o governo pela baixa

aposentadoria ao invés de arcarmos com nossa

falta de irresignação conosco mesmos. Tudo para

salvaguardar nosso comodismo, nossa falta de

iniciativa. A única coisa aproveitável na psicanálise

é a conversação, coisa que a pessoa deveria de ter

a capacidade de fazer consigo própria, mas não faz

por deixar de empreender o que recomendamos:

metanarrativa, ou seja, a capacidade de a

inteligência organizar a si própria. A razão é

instrumental, inclusive um instrumento de organizar

a si mesma. As sociedades que nos precederam

foram firmadas na força das armas, na força dos

músculos, na força da ideologia religiosa, na força

da ideologia política, na força do dinheiro.

precisamos construir uma sociedade do

conhecimento. O grande cuidado, que não está

sendo tomado, é assegurar valorização não

obstante a popularização. Não podemos fazer do

acadêmico um pobre engravatado. É preciso

informar o público do que a sociedade precisa e

quem ela está pagando bem. Uma sociedade

183

consumidora de conhecimento é questão de vida

ou morte produzir conhecimento. Outra coisa

importante é trabalhar pelo domínio total e pleno de

uma área de conhecimento. Não podemos nos

contentar com superficialidades. É preferível

aprender poucas coisas e bem a passar a vista

sobre muitas. O ensino de idiomas é o melhor

exemplo disso: como é raro encontrar no Brasil

uma pessoa que tenha o perfeito entendimento de

um idioma estrangeiro. A sociedade do

conhecimento capacitará a comunidade a se auto-

organizar. A mãe de todos os erros é a ignorância.

O sistema capitalista não é intrinsecamente mau.

Ele só tem de ser incardinar à cabeça de obra que

hoje não passa de uma empregada maltratada.

Quanto à repressão sexual, diria que se trata de um

tema que perdeu o objeto, vez que o excesso que

se verifica hoje em dia nos meios de comunicação

social se move em sentido inverso, pois quase tudo

o que é libidinosificado. Marx não se deu conta de

que só é possível dividir riqueza se dividirmos,

antes disso, o conhecimento. Porque os meios de

184

produção são produzidos por pessoas de

conhecimento e toda acumulação monetária

esconde atrás de si uma acumulação de

conhecimento. A psicanálise é a crise sintomática

de que as pessoas não conhecem a si mesmas.

Freud, da sua maneira, resgata o “conhece-te a ti

mesmo” pitonisíaco-socrático. Socialismo é

socialização de conhecimento, em primeiro lugar.

Capitalismo é pôr o conhecimento a serviço da

matéria quando o que propomos é colocar a ateriaa

a favor do conhecimento. Não são os proletários do

mundo todo que precisam se unir, somos nós, os

homens do conhecimento. A história da

humanidade não é a história das lutas de classe, é

a história do emprego que temos dado àquilo que

conhecemos. Sabemos pouco e empregamos mal o

que sabemos. As ideias dominantes não são

aquelas ostentadas pela elite dominante, pelo

contrário, as ideias dominantes faz dos seus

artífices a elite da sociedade. O sexo e a morte não

são figuras distintas e opostas aos valores da

civilização, a civilização existe porque o ser

185

humano reproduz a si mesmo e planeja sua vida

com a ciência de que temos prazo, ainda que

indeterminado. Regrar não é negar, é assegurar o

perpetuamento da afirmação. Neurose, psicose,

regressão, são manifestações de quem não

submeteu o próprio eu ao jogo do seu intelecto.

Não basta conhecer, embora isto seja

imprescindível, é preciso submeter o eu a si

mesmo. A expansão da consciência deve ser

revertida em expansão do autodomínio. Ao invés de

querermos dominar aos outros devemos dominar a

nós mesmos. O divã do psicanalista e o movimento

sindical é lugar de gente que não quer sair da

situação de subordinado e deplora os ônus próprios

da subordinação. A sociedade do conhecimento

eleva os salários, pois será uma minoria os que

pedirão função a terceiros. Porque o possuidor de

conhecimento tem a capacidade de oferecer

produtos e serviços de qualidade que lhe

assegurem uma existência digna. Os primeiros

tempos da sociedade do conhecimento serão

assinalados pela predominância do contrato de

186

comandita em que um entrará com o fator capital e

o outro com o fator conhecimento. O fator trabalho

será valorizado como nunca fora antes, pois todos

quererão ser agentes econômicos, capitalistas ou

cientistas-tecnólogos e não simplesmente executor

operacional, como é a maioria da população de

hoje. O conhecimento tem sido satanizado por

desenvolver a técnica e despedir a mão de obra.

Na verdade, o conhecimento não é um facilitador e

multiplicador das forças produtivas. O

conhecimento também gera demanda. A prova

disso é que a população mundial tem aumentado,

as máquinas e outros petrechos ficam cada vez

mais sofisticados e aquilo que Marx chamou de

exército industrial de reserva vem encolhendo cada

vez mais de sorte que nos aproximamos da

sociedade do pleno emprego. O nível de

desemprego, diga-se de passagem, não mensura

apenas a capacidade de absorção da economia,

mas o estado de espírito coletivo. Porque todo

aquele que procura acha, e quem bate à porta logo

vê um interior a lhe acolher. Assim como as

187

premissas e os corolários desconhecidos não

mensuram apenas a estreiteza de liame pelo qual

estão unidos ao conjunto dos explícitos e da

consciência forte, mas o grau de esforço do

metanarrador em se apropriar deles.

Oumperiforalogia: solução para todos os problemas

Fazer metanarrativa é transpor as relações do

mundo material para o ideal. A única maneira de

resolver todos os problemas é fazendo com que

eles ascendam da imanência para a transcendência

da ideia. Porque na esfera do pensamento tudo é

resolvível. O pensamento é o nicho da resolução.

Assim, resolver qualquer coisa que seja implica

guindar o problema para o campo do intelecto para

que ali seja descomplicado e retorne redondo para

o mundo empírico. O pensamento é

essencialmente não oposição. Ele só se torna

oposição quando espelha as contradições do

mundo empírico. O mundo empírico é a mediação

da problematização de algo. Porque sem embargo

188

material não há embargo intelectual. A ciência é

uma maneira de o pensamento desfazer as aporias

empíricas de um modo sistemático. O método é

pensamento, é, pois, um pensamento que coloca

ordem ao próprio pensamento do pensamento

sobre si mesmo. Quando defendemos a ideia de

metanarratividade, estamos, em verdade,

defendendo a ideia de que assim como em ciência

se obtém vitória pela aplicação intencional e dirigida

do pensamento, o mesmo se mostra possível na

esfera existencial. Assim como toda a riqueza é

conversível em papel-moeda, todo quiproquó pode

ser reproduzido no campo das virtualidades para ali

ser destacado e retornar superado para o punctum

dolens de origem. O pensamento é esta ferramenta

de tudo resolver. Os problemas não resolvidos são

os problemas não pensados. As pessoas que

fazem do pensamento sua atividade mais

prazerosa, no fundo, as pessoas traduzem a

multidão de seus problemas. Todo o pensador é um

problemático, por antonomásia. O filósofo não é

forjado apesar do problema, mas por causa do

189

problema. O advogado sabe que o processo judicial

é o nicho simbólico onde os problemas das partes

serão tratados e, para o bem ou para o mal,

resolvidos. O pensamento é uma instância versátil,

volátil, policresta e insub-rogável de apreciação de

questões. Ele é a condenação ou é a absolvição

dependendo do que ele faz com ele mesmo. A

psicanálise nada mais faz do que deslocar o

problema da sexualidade para a compreensão da

sexualidade, que é mental. O sujeito é o que tem a

maior capacidade de apaziguar seus próprios

problemas, quando ele, ainda que

perfunctoriamente, se apropria dos imbróglios que o

afligem. O pensamento é mais do que uma rede de

neurônios e axônios. O pensamento é encantado.

E, se, como dizem os positivistas lógicos, a

linguagem passou por um encantamento, isto se

deve pelo fato de ela ser a consubstanciação do

pensamento desenvolvido. A parapsicologia

constata que o pensamento é o lócus privilegiado

de manifestações ingerenciais sobre o mundo

empírico de uma maneira radical: sem a mediação

190

do nosso corpo ou de outros instrumentos físicos

sobre terceira fisicalidade. O pensamento dá conta

de tudo, exceto de si mesmo. Isto não anula as

belas tentativas de explicação dignas de encômio.

A filosofia é o eterno retorno do pensamento sobre

si mesmo. Pensar sobre coisas, pessoas e animais

é um nível de pensamento cômodo. A transgressão

é quando o pensamento e o pensado coincidem. O

pensamento é a instância suprema cabida dentro

da empiricidade. Ele é mais, muito mais, do que

aquilo sobre o qual se apoia. Os materialistas só

conseguem afirmar o primado da matéria sobre o

pensamento através do pensamento. A discussão

idealismo versus materialismo nada mais é do que

o pensamento sendo juiz e parte. E quando se

afirma o materialismo é como se o pensamento

sentenciasse em desfavor de si mesmo. Só para

um leigo o idealismo filosófico é absurdo. Para

quem conseguiu inteirar-se da tradição filosófica

não há como não ser idealista. Filosofar é

reconhecer o primado do pensamento sobre todo o

mais. De cem posso deduzir vinte e ainda

191

remanescem oitenta, mas de vinte jamais poderei

extrair cem, esta é a relação entre pensamento e

matéria. Como extrair pensamento de um complexo

de carbono? Só se no carbono já havia sido

instilada uma porção de inteligência. Neste sentido,

os processos evolutivos nada mais são do que

processos depurativos, no sentido de extrair um

pensamento com um grau de cada vez maior.

Abstração é isto: o pensamento que agora não é

apenas produto, mas que se depura a si mesmo.

Quando se fala em metanarrativa, está a se falar

que o pensamento é a única de todas as outras

instâncias encontradiças no mundo empírico, que

tem a ímpar capacidade de transcender a si

mesmo, daí o prefixo meta anteposto à narrativa.

Temas a sensação de uma manietagem filosófica

justamente porque o meta, por paradoxal que seja,

não sai do cispensado. Comportamento é o modo

como o nosso corpo animado pela metanarrativa se

posiciona e se movimenta frente ao mundo. Assim

como esta ponte entre ideal e concreto que é o

comportamento é espelho do pensamento

192

produzido a partir do entorno, o determinante é o

pensamento. Porque as condições objetivas são o

estrado sobre o qual repousamos o pensamento

que quisermos. Como o pensamento é origem e

destino, o meio empírico não passa de matéria-

prima a ser processada. O pensamento é um

processador. Mais importante do que aquilo que se

processa é o processador. Porque se o

processador for ruim não consigo extrair ouro da

areia e, de outro lado, se o processador for bom

consigo transformar lixo em negócio rentável e

ecologicamente correto. O pensamento cresce

avançando e retrocedendo. A maneira de criar

conceitos geniais é paragonando os conceitos

novos com os antigos. Filosofia é exercício

contínuo de feedback. O filósofo é um ruminador. O

pensamento é como a repetição: cada vez que

percorre o mesmo trajeto aprimora a performance.

A reflexão filosófica é a trajetória de uma maratona

que volta e meia é perfectibilizada de uma maneira

totalmente inusitada. Experiência é a repetição,

mas o que interessa é o que se extrai da

193

experiência, a praxe mais eficiente e a melhor

abordagem. O pensamento é não só um meio de

resolução de problema, mas um marco de

importante vitória. Porque o pensamento de per si

deixa demonstrada a postura de espírito de quem

está compenetrado, desligado e focado em algo

intelectualmente segregado. O pôr-se em postura

de pensamento indica uma postura psíquica de

comedimento, equilíbrio e autodomínio. Aliás, a

autodisciplina é o requisito número um para a

composição de qualquer problema que seja.

Porque o pensamento só segue seu curso se

encontra um talvegue através do qual possa fluir

que, em última instância, é a temperança. Erro

crasso é querer resolver o problema fora de si.

Nada disso. O problema deve ser internalizado e

resolvido intelectualmente para que, pela segunda

vez, agora no mundo empírico, ele possa ser

resolvido. Os problemas da humanidade são

aqueles sofridos por pessoas que não pensam e

em relação aos quais os pensantes não enxergam

obtenção de vantagem em eventual empréstimo de

194

inteligência. O pensamento é algo crescente,

reforçativo e automelhorador. A inteligência é o

índice geral do que fazemos com os recursos

mentais, comumente chamados de pensamentos.

O fato de Freud ser mais popular do que Hegel

apenas mostra que a maioria das pessoas não

conseguiu sair da ordem fática basilar cuja

explicação é abarcada por uma teoria basilar. Hegel

ainda está para ser famoso. Ele ainda não

conseguiu se fazer entender. Mas um dia a

humanidade entenderá aos idealistas. A psicanálise

é explicada pelo hegelianismo, o afetivo é resolvido

pela hermenêutica da terapia dialógica. E o

hegelianismo é explicado pela psicanálise: eu

sublimo aquilo que me incomoda nos níveis

inferiores. Ambas as teorias estão corretas. Mas

Hegel não é monista, ele é generalista de tal modo

que a sexualidade é um dos aspectos do Eu

Absoluto. Quando se fala em metanarrativa está se

tentando trazer o idealismo para uma linguagem

mais próxima do homem culto médio, ao invés de

deixar certas categorias relegadas ao ostracismo. O

195

pensamento percorre vielas apertadas e de difícil

acesso; as agruras e os perplexos estão sempre

presentes. As Sagradas Escrituras dizem que

estreita é a porta e estreito é o caminho que conduz

à salvação e bem pavimentado e largo o caminho

que conduz à perdição. Isto quer dizer que a

maioria vai se perder e que uma minoria vai se

salvar. Ora, que caminho apertado é este senão o

caminho do pensamento? Claro que se está a falar

do pensamento. O que deve ficar claro é que o

pensamento não é algo divorciado da vida. Quando

uma pessoa despreza a tradição filosófica ela

simplesmente prova que nada entende nem da vida

e nem de filosofia. Quando Cristo fala de caminho

está a falar de mentalidade. Conversão é mudança

de rota, mudança de mentalidade, daí o termo

metanoia. A filosofia, de Descartes a Hegel, perfez

um crescendum. De Hegel para cá foi só

pauperização. O excelente é sempre sucedido de

algo que lhe é inferior. O sujeito, defende a

oumperiforalogia, deve ser um metanarrador. Isto

significa que ele deve ser o norteador de si mesmo.

196

Ele precisa aplicar a inteligência narradora da

realidade de modo a visar não só a realização de

objetivos imediatos e pragmáticos, mas também

questões existenciais, almáticas e metafísicas.

Depois de tirar o fator de hominização do homem, o

pensamento na sua pureza espiritual, Marx ainda

tem o atrevimento de falar em “homem total”.

Totalmente policiado e achacado pelos burocratas

de Estado, isto sim! Qualquer que seja a sociedade

em que ele viva ele carece e necessita de liberdade

de poder pensar e expressar este pensamento.

Ainda não nasceu a sociedade que eu defendo,

porque em nenhum metro quadrado do planeta há

absoluta liberdade de manifestação do

pensamento. Nas universidades brasileiras há uma

deliberada perseguição aos intelectuais e isto

começa já no primeiro ano de graduação, que

escrevam com mais elegância que seus pares. Não

se autoriza pensamento próprio. A criatividade é

completamente desestimulada. Há uma automática

repetição e o mais absurdo desprezo à experiência

pessoal do formando. Não ocorre à universidade

197

brasileira que tão importante quanto conhecer os

precursores é fazer conhecer a si mesmo. A

maneira de refrear a vontade própria de um povo é

refreando a desenvoltura do pensamento filosófico.

Quando a elite de cá é serviçal da elite de lá os

filósofos são coibidos em sua produção. Os heróis

morrem e levam consigo seus livros. Não se

autoriza colocar o pensamento sob as luzes da

arribalta. Um metanarrador profissional é sempre

muito perigoso. Nenhum metanarrador profissional

bem compreendido é perigoso. Ele só é perigoso

quando maltratada é sua obra. Perigoso é o que se

faz com os escritos filosóficos alheios. Porque a

plena, ou quase isto, compreensão de um filósofo

traz consigo a intrínseca relativização do filósofo.

Nada mais perigoso do que a aura de gênio que os

propagadores da filosofia opõem sobre a cabeça

dum pensador. Com isto não quero de modo algum

tirar o mérito dos propaladores filosóficos, porque

também nós filósofos precisamos ter os

marqueteiros a nosso favor. Na esfera judicial são

usuais os prazos. No direito para quase tudo há

198

prazo. Na filosofia também existem prazos, mas

eles não são peremptórios. Facilmente podemos

localizar na História da Filosofia o ursprung de uma

categoria. Mas a contemporaneidade está

assistindo a um revolver de categorias antigas. Sim,

porque muitos conceitos de músculos intelectuais

vigorosos foram aposentados precocemente. Há

quem diga que O Capital de Marx foi publicado já

ideologicamente vencido... e, no entanto,

acotovelam-se marxistas ao meu entorno. Marx

disse que, na 11ª tese sobre Feuerbach, “os

filósofos interpretaram o mundo de diferentes

maneiras, mas o que importa é transformá-lo”. Ora,

o mundo transformou-se a todo momento. Pois até

quem fica silente transforma o mundo, ainda que

seja de uma das piores maneiras. O que Marx não

enxerga é que também ele é um abstratíssimo

teórico antes de agitador político e social. Se for

para transformar a realidade para trocar de mãos a

chave do ergástulo então pouca coisa mudou.

Precisamos viver em uma sociedade que preconize

a liberdade e o preparo para ela, o conhecimento.

199

Só onde há liberdade há aprendizagem e só onde

há aprendizagem há liberdade. É preciso que

qualquer que seja o desempenho de um indivíduo

ele não desfaleça e qualquer iniciativa além do

óbvio seja premiada. Garantismo social e

meritocracia não se excluem, mas se

complementam. Metanarrativa que tudo contempla,

tudo considera. Todos os aspectos são

importantes. O fato de em determinado contexto

histórico um se destacar não deve dar ensejo à

aniquilação teórica dos demais. A nova sociedade

será a democracia realizada pela comunidade ideal:

a comunidade dos pensadores. De todos os

matizes, de liberais a comunistas e anarquistas.

Porque só o ponto de vista da diversidade é o

verdadeiro e melhor ponto de vista. Nunca se leu

tanto a Nietzsche e as igrejas neopentecostais

crescem a todo vapor. Esta é a sociedade líquida. A

pós-Modernidade é o resgatamento de tudo ao

mesmo tempo. Quando trabalhamos com a

categoria de metanarrativa simplesmente queremos

decernir ordem a esta sopa eclética de ideias que

200

xiitamente avocam a verdade para cada uma de si

mesma. Nunca em toda História do Pensamento

Filosófico foi tão oportuno e tão conveniente falar

de metanarrativa. porque não existe nada mais

rachado do que duas racionalidades. Todavia,

numa sociedade de multiplíssimas racionalidades,

fica fácil falar em unidade. Quando o torrão de

barro é reduzido a pó, basta instilar nele uma

porção de água e com esta matéria-prima é

possível fazer uma peça única, super-resistente e

indivisível até prova em contrário. O que escrevo

acima é tão verdadeiro e tão perceptível que o que

se percebe é que a pós-Modernidade com todas as

suas fissuras e alas foi provocada em nome da

consecução de uma unidade calcada na cisão de

quem se fosse coeso poderia lhe fazer frente.

Novamente vemos a Igreja Católica Alemã

insatisfeita. E se a Igreja rachar de novo haverá

uma terceira força cristã, nem luterana e em

católica romana. O que escrevemos é

exemplificativo e o mesmo ocorre com mais

201

frequência com partidos políticos e outros ramos da

sociedade civil organizada.

História do universo: a ideia de cosmos

Não foi por acaso que a filosofia grega pré-

socrática comece tratando da ideia de cosmos e de

physis. Porque do ponto de vista físico esta, de

longe, é a mais importante de todas as questões.

Estamos engavetados, marchetados dentro desta

enormíssima engrenagem que se chama universo.

Fazemos todo o esforço possível de compreender

esta nossa casa, grandessíssima e complexíssima.

Como sempre, nos vemos reféns de nosso

pequeno alcance epistemológico. Somos cerceados

por nós mesmos. Talvez seja a partir desta

constatação que os sofistas, representados por

Protágoras, diriam “o homem é a medida de todas

as coisas”. E ocorre uma reviravolta investigatória

tirando o foco da natureza que nos é exterior para

nos centrarmos sobre nós mesmos. A reflexão

sobre o cosmos sempre será a reflexão última.

202

Porque somos poeira estelar. No universo está

nosso começo e nosso fim. A pergunta “donde veio

o universo” se respondida, faz restarem

respondidas uma série de outras questões. Em que

pese a desenvoltura da cosmologia científica,

astronomia e astronáutica, a cosmologia filosófica

sempre será importante e a crítica que fazemos à

filosofia da linguagem, à lógica e ao pragmatismo é

o passar ao largo destas questões. Parece-nos que

a maneira mais cômoda de explicar o universo é

colocando-o dentro de uma programação

matemática. Isto nos traz um conforto intelectual

muito grande. Todavia, os inconvenientes deste

método já foram apontados em nossa obra “A

Árvore do Conhecimento”. Não há razão plausível

de que as categorias lógico-matemáticas

empregadas pela nossa razão guardem algum tipo

de correspondência metafísica com o que nos

rodeia. Por mais que os telescópios viajem no

universo sempre estaremos apenas tentando

arranhar a película do nosso habitat. Os filósofos

não deveriam se acomodar e transferir este

203

megaproblema teórico aos cientistas. Até mesmo

porque, em se tratando de cosmos, não se pode

dizer que os cientistas estejam em muito melhor

situação do que nós filósofos. Eratóstenes é a

grande prova de que a imaginação calcada em

algumas observações simples pode nos dar grande

conhecimento. Pois se a distância entre Siena e

Alexandria é de 800 quilômetros e uma barra de

igual altura num e noutro ponto fazem sombras

diferentes de modo que a baliza de Alexandria

projete uma sombra 7% maior, então é de se

deduzir que esta trajetória de 800 quilômetros

corresponde à quinquagésima parte do globo

(360:7=50). Assim, 800 vezes 50 igual a 40.000,

circunferência aproximada de nosso planeta.

Cálculos incríveis no século XX foram realizados

pelos astrônomos em razão da intermitência

luminosa dos corpos celestes. É dessa criatividade

que precisamos para construir conhecimento. O ser

humano está transido entre o giga e o nano âmbito.

Ambos os extremos lhe são estranhos embora

nada esteja separado de nós. Diríamos com

204

Anaxágoras, de acordo com o qual tudo está em

tudo, que o conhecimento exauriente da menor das

partículas acarretaria o conhecimento do todo.

Assim como a sequência genética contida em cada

célula contém o organismo inteiro, existe em cada

partícula a sequência do universo inteiro. Na menor

das partículas estão encerradas todas as premissas

e todos os corolários. O metanarrador é essa

mônada de Leibniz que espelha da melhor ou pior

maneira o universo inteiro. O universo é a

disposição de não se sabe o que para fazer

oposição ao nosso intelecto e com isto ser

engendrada a nossa consciência. Consciência é

limitação. O universo traduz o paradoxo no qual a

nossa razão está posta: ela busca autoampliação

quando a infinitude, amplidão máxima, é a sua

aniquilação. Ao contrário do que disse Sartre, de

que a consciência é um nada querendo ser alguma

coisa, a consciência é alguma coisa querendo ser

nada. Quanto mais ela se expande, mais se realiza,

e a realização máxima é a autoderrocada. A

consciência é como a planta parasitária que

205

estrangula aqueloutra que lhe serve de suporte e

ambas fenecem. Consciência é relação e a

suprema afirma de um polo extingue o polo

antípoda e a relação deixa de existir. O universo é

essa vibração dançante que nos dá o ritmo e o

gingado. A maior razão pela qual falamos menos do

cosmos é que nos preocupamos demais conosco

mesmos. O ser humano é vidrado em si. Como

contemplar as estrelas se a todo momento sou

provocado pelo meu semelhante? É que do ponto

de vista espacial e temporal os que estão ao meu

entorno esbarram em mim com mais facilidade. Do

ponto de vista prático é melhor mesmo o homem

ocupar-se de si. Porque é tecnicamente mais fácil

agir sobre si mesmo para obter melhores resultados

do que tentar alterar as macroordens que sequer

compreendemos e que bem provavelmente jamais

teremos ingerência sobre ela. A grande sabedoria

do homem é ter a capacidade de se organizar para

melhor poder suportar e usufruir os movimentos da

natureza entendida e estendida esta para a

natureza bruta. O universo mostra a sua natureza

206

quando é agitado. E nós que somos parte disto

tudo também tendemos à inércia e mostramos

nossa natureza quando somos colocados sob

pressão. O ser humano é a essência do universo, é

a matéria-prima que exibe um maior grau de

desintoxicação daquela porção opaca bruta. Platão

disse que o corpo é o cárcere da alma e

concordamos com ele. Porque Aristóteles estava

certíssimo ao conceber o intelecto agente como

enteléquia, ou seja, ato puro. Discordamos do

Estagirita que a potencialidade esteja agregada à

matéria, porque no mundo puramente espiritual. O

fato de a evolução se dar no plano da matéria, ou,

no caso do ser humano, em um mundo partilhado

em duas dimensões numa só, significa tão somente

que a evolução está nos seus primórdios. Deus

evolui. Quiçá, a própria exteriorização de Deus em

algo palpável, o cosmos, sirva apenas de

mediação. Deus é onisciente, mas a própria

onisciência é evolutiva. E assim como as coisas do

espírito humano estão acima das coisas do corpo

humano, também Deus é maior que o universo,

207

com a diferença de que em se tratando dele a

paralaxe é ainda mais abissal. Deus criou o

universo porque quer fazer morada, o Jardim do

Éden tem esta conotação. Quando o Povo de Deus

atravessava o deserto o arraial com o santuário era

a morada e as tendas eram moradas. Na Terra

Prometida não havia outro propósito senão fazer

morada. No Templo erigido por Salomão o objetivo

era fazer morada. No ventre do peixe Jonas fez

morada. No corpo de Cristo o Deus Homem faz

morada na humanidade. No Pentecostes o Espírito

Santo faz morada nos corações. A Igreja é a Nova

Arca de Noé onde se faz morada. Em Apocalipse

se fala na Jerusalém Celestial, ou seja, morada,

morada... O expandir e contrair do universo, um big

bang infinito de idas e vindas, de expansão e

contração, é como o coração que bate em nosso

tempo. Precisamos estar antenados para as

frequências e subfrequências. A morada é lugar de

aconchego e intimidade. Não construímos moradas

para nos proteger das intempéries atmosféricas,

pelo contrário, Deus proporcionou intempéries para

208

nos dar um ótimo pretexto para fazermos morada.

Os moluscos carregam sua casa consigo e os

pássaros são verdadeiros engenheiros. Como diria

Marx, a diferença entre a melhor abelha e o pior

arquiteto é que este último projeta antes de realizar.

Deus é arquiteto e, o homem, sendo sua imagem e

semelhanças, também é arquiteto. Mas o homem

arquiteta em primeiro lugar em seu próprio espírito

em que as premissas são os fundamentos e os

corolários as coberturas. A morada física de

concreto e ferro é só a mais simbólica moradia. A

atividade laboral é uma morada, a convivência

familiar é uma morada, a comunhão dos santos é

uma morada. O céu e o inferno são essencialmente

morada, em que há respectivamente, harmonia e

desarmonia, companhia e solidão, luz e trevas. O

universo tem, pois, este propósito. É interessante

como o homem se sente sozinho no universo.

Porque usamos indistintamente as expressões

“cosmicização”, “universalização”, “mundialização”

e “globalização”. Quando sabemos que do ponto de

vista físico há uma diferença grotesca entre mundo

209

e universo. A grande questão que se coloca é

porque Deus faria um universo tão grande e

majestoso para autorizar vida inteligente apenas

neste pontinho azul? Uma boa resposta seria dizer

que Deus é tão rico que pode ser pródigo e outra é

supor que de fato estejamos acompanhados. Assim

como as altíssimas catedrais se prestam para a

finalidade de o fiel sentir-se pequeno, colocando

par a par a extensão do próprio corpo com as

medidas do prédio santo, Deus também fez o

universo amplíssimo para que encontrássemos o

nosso devido lugar. Há cerca de 8.000 anos

começamos a, de fato, governar a Terra. E apenas

as últimas 2.500 começamos a nos voltar

reflexivamente para o nosso próprio papel. Dominar

o universo passa em primeiro lugar em dominarmos

nosso próprio pequeno universo. Porque somente

as culturas materialmente organizadas geram

excedentes de alimento, de riqueza, de trabalho

acumulado para presentear os mais felizes com

tempo ocioso para olhar para o alto e dizer

maravilhas acerca do que nos encanta. Quem

210

ocupa todo o seu tempo ou a maior parte do seu

tempo com sua própria manutenção não pode

perquirir sobre as coisas do universo e sequer ser

filósofo. Mas esta é ao mesmo tempo uma vitória

coletiva e individual. Porque é o contexto que

arranja a mesa do sábio e o indivíduo de sorte que

pode banquetear-se necessita ser dotado de

talentos todo especiais. As sete mil estrelas que

enxergamos a olho nu não estão acima de nossa

cabeça por acaso. Cada uma delas tem um

propósito. E assim como o planeta Terra reúne

todas as condições para ser habitado por seres

humanos, as estrelas podem ser morada de outros

seres menos exigentes do que a nossa carne como

as entidades angelicais. O fato de menos de 1% da

matéria do universo ser luminosa nos faz saber que

possivelmente esta é a proporção entre nós

humanos, dos que brilham e dos que não brilham.

Agora, por que Deus quis fazer brilhar alguns e

outros simplesmente refletir o brilho de terceiros, é

explicável pela parábola dos jardineiros em que o

que trabalhou só uma hora recebeu o mesmo que o

211

outro que trabalhou o dia todo. A parábola dos

talentos em que aquele que tem dez minas recebe

mais uma também traduz isto. Tudo tem uma idade

e o universo também tem uma. É certo que se

concebermos o big bang como um eterno retorno

admitiremos a eternidade do mundo físico. Mas

ainda assim não é apropriado falar de idade do

mundo porque a cada princípio de expansão

inaugura-se novamente a ordem do tempo. O

universo tem esta característica singular de fazer

com que aquilo que é mais incipiente seja o mais

velho. Porque ser velho é fazer com que se

resguarde os elementos básicos sempre agregando

a complexidade crescente. Comte observou bem

que “generalidade crescente, complexidade

decrescente”. Só esqueceu de carrear a terceira

categoria, o tempo, porque não há como falar em

complexidade abdicando-se do transcurso do

tempo. O homem é o caminho através do qual

Deus tem sua intimidade com o universo. Porque o

anseio do universo é ser compreendido e o do

homem compreender. Deus se regozija em

212

esconder e o homem em descobrir. O espírito gosta

de fazer caber o universo dentro de padrões e, o

universo, na sua feminilidade, gosta de se fazer

inapreensível. A fêmea tema a mensuração, seus

contornos são a fuga do ângulo reto. Einstein foi

feliz ao notar que uma supernave espacial que

viajasse longamente em linha reta perfaria curvas.

A geometria de Euclides é apenas uma das

possíveis e nem se mostra a melhor para

representar expressões numéricas de grande

magnitude. A cultura judaico-cristã é a que mais

nos coloca em contato direto com o cosmos

embora os rabinos não sejam meditativos do

mesmo modo como os filósofos pagãos gregos. Na

Bíblia o Sol para e até retrocede para irradiar uma

batalha para o Povo de Deus vencer. O menino-

Deus é visitado por reis magos conduzidos por uma

estrela. E o interessante é que as parábolas de

Jesus falam de coisas parvas para dar grande

ensinamento. Diferente daquela sabedoria que fala

de coisas grandes e ensina pouco. Justamente

talvez porque cumprindo o “uns aos outros” que

213

aparece 52 vezes no Novo Testamento, estaremos

cumprindo não só o nosso próprio propósito

existencial, mas o dos corpos celestes também.

Quando o apocalipse fala que no final dos tempos a

terça parte das estrelas será varrida do céu

incardina toda a ordem universal em função de um

escopo escatológico. Claro, tal perspectiva se

choca com a ciência para a qual o gênero humano

é uma insignificante nota de rodapé e coloca o

homem no centro do universo todo o mais girando

em torno dele. Isto quer dizer que mesmo que o

universo esteja de costas para o gênero humano,

assim como esteve para os dinossauros, Deus não

está de costas para nós. Deus é pessoa-

pensamento-amor e se preocupa conosco. Porque

Deus faria do homem um metanarrador para, por

exemplo, interromper de repentemente a narrativa

com um choque meteórico? Seríamos nós um

potencial alvo de um acidente cósmico? Se é que

de acordo com esta perspectiva ao avesso faz

sentido falar em “acidente”. A palavra universo vem

do étimo “unus versus alius” ou seja, um contra o

214

outro. Isto significa que falar em universo é falar em

beligerância. A belicosidade é a regra do mundo

espiritual. É ela que promove crescimento. Não há

crescimento na tranquilidade. Heráclito e Hegel

falavam exatamente disso. Os marxistas admitem a

contradição e a dialética e negam o mundo

espiritual. Como se vê de cara, é uma grosseria

teórica. Como admitir que a matéria é regida por

leis que fazem a natureza pelejar contra si mesma

senão admitindo que sobre um substrato há um

princípio ativo espiritual? Dialética é princípio e não

existe princípio material. A matéria é o que sofre ou

comporta a efetividade principiológica. Mas negar

Deus e admitir a ação de princípios imateriais e

absolutamente virtuais é admitir ad hoc um mundo

espiritual negando a ideia central da qual origina-se

a categorialidade abstrata. Marx se diz materialista

e recheia sua obra máxima, O Capital, de

abstração. Como quer fazer acontecer o socialismo

científico embasando um projeto de civilização no

pensamento abstrato se, segundo ele, o homem é

cérebro, músculos e nervos? Como pode um ser

215

que é aquilo que come (Feuerbach) precisar de

ideologia para ter pão em sua mesa no café da

manhã? Ou como pode uma sexualidade truncada

ser curada no divã, uma via distinta da sexualidade

em si mesma? A própria palavra “matéria” é uma

abstração. E não só o termo “materialidade”.

Porque matéria não existe, ela é uma ideia, uma

abstração. Pelo que inferimos que o universo

também ele é pensamento. A palavra “universo” é

uma abstração. O universo enquanto se contrapõe

ao gênero humano faz ele existir e também o

homem faz o universo existir. Porque Berkeley é

feliz ao dizer que “ser é ser percebido”. Universo

sem vida inteligente é, do ponto de vista lógico,

uma nulidade metafísica como se fosse o vácuo e o

nada absoluto.

História do Planeta: a ideia de planeta

A Terra é um tição incandescente que esfriou. Se

não houver outras variáveis, a tendência é que ela

se torne cada vez mais fria até que se torne

216

inabitável. Como o resfriamento ocorre de fora para

dentro, no exterior há a litosfera sobre a qual se

apoia a película chamada biosfera, e no centro do

globo há níquel incandescente. Evidentemente, que

a temperatura do planeta não está linearmente

descendo uma ladeira. Pois há ondulações de frio e

calor. Pois numerosas são as variáveis e as

glaciações e o aparecimento de desertos como o

do Saara são provas disso. Assim, o gênero

humano por longo tempo terá, no transcurso de

suas gerações submeter-se a ondas de calor

estafante e enregelar pelo frio inóspito. De acordo,

portanto, com Montesquieu, os ordenamentos

jurídicos terão idas e vindas, pois na conformidade

do Espírito das Leis, tudo isso é ingrediente

legiferante. A circunferência da Terra e a

velocidade com que ela gira em torno de si mesma

condiciona totalmente nossa vida. É a dialética de

noite e dia, repousar e ação. E ainda que a energia

elétrica relativize a noite, o certo é que o relógio

biológico é praticamente o mesmo de nossos

ancestrais trogloditas. Somos o planeta azula em

217

razão da grande quantidade de água nos oceanos,

mas um dos riscos que corremos é de carência dos

recursos hídricos. A tecnologia está tentando

contornar isto com a dessalinização. Outro fator

que condiciona a nossa vida é a pressão

barométrica e o índice de oxigenação da atmosfera.

Há total diferença para o organismo humano de ser

serrano ou litorâneo. A altitude está relacionada à

temperatura também. Pois alguns lugares mais

afastados dos polos são mais frios, em razão da

altitude, do que outros mais próximos, porém,

depressivos. Por causa da massa do planeta

estamos sujeitos a uma determinada força

gravitacional. Newton teve o mérito de representá-

la matematicamente. Em nossa obra A Árvore do

Conhecimento questionamos a fórmula de Newton.

Pois, por exemplo, quando encosto o prumo na

parede de um edifício e libero bastante barbante,

ele faz curva em direção à parede. Isto significa que

a gravidade em direção ao solo é afetada por outra

gravidade em direção ao prédio. Assim, há pontos

de energia fora das massas, e esses pontos co-

218

laboram tanto quanto as massas. É esse princípio

de relação que precisa ser embutido numa fórmula

perfeita. A deriva dos continentes esfacelando a

pangeia é outro fenômeno que deve ser

amplamente considerado conquanto se mostre em

processo. A costa da América continua se

distanciando da costa da África. O capitalismo e o

desenvolvimento dos transportes de pessoas gerou

e gera os movimentos migratórios. São

características das centrais civilizacionais a

mestiçagem, o internacionalismo, o sincretismo de

ideologias e mais elastério de pensamento e formas

de conceber a vida. A alta densidade demográfica

nestes polos também faz com que o indivíduo seja

apagado ante a grandiosidade do social. É mais

característica a aparição de gênios e de outras

grandes personalidades nestes nichos urbanos. O

planeta é este substrato, este palco privilegiado

onde tudo corre e ocorre. O planeta sempre será

nosso QG ainda que possamos nos deslocar no

futuro para outros planetas. Com um caça

ultrassônico posso perfazer uma viagem de tempo

219

zero e até de tempo negativo se me mover em

sentido antihorário. Do ponto de vista social, depois

que o planeta tornou-se uma “aldeia global” pelos

meios de comunicação de transmissão

instantânea, deveríamos forçar a comunhão dos

povos pela elevação do padrão material e cultural

dos chamados países de terceiro mundo. Em época

de universalização da informática e dos serviços

financeiros, deveria ocorrer também a

universalização do IDH dos países de primeiro

mundo. E isto será fruto de esforços concorrentes

dos ajudadores e dos ajudados. Assim como os

bárbaros germânicos de ontem hoje são sinônimos

de civilidade o mesmo é possível fazer no

continente africano pela culturalização planejada,

intencional, programada e fiscalizada. Se Jucelino

Kubichek fez o Brasil crescer 50 anos em 5,

podemos fazer a África crescer 5 séculos em 50

anos. Porque o homem constrói pontes, elevados,

estradas e túneis, mas, via de regra, conforma-se à

topografia, porém, não precisa e nem deve

conformar-se à falta de infraestrutura e à falta de

220

saneamento básico. É incrível como somos

irresponsáveis para com nossos descendentes e

nossa própria casa: nossos descendentes vão

dispor do mesmo espaço e das mesmas condições

em que nós entregarmos o planeta a eles. E

precisamos educar ecologicamente nossos filhos já

pensando nos netos e nos bisnetos. O planeta e a

humanidade mantêm entre si uma relação atávica.

Ao mudarmos as características do mundo em que

vivemos os segundos imediatamente afetados

somos nós mesmos. Fazer mal ao planeta Terra é

como puxar o gatilho com o cano apontado para

nós mesmos. A biosfera é a parte mais importante

ainda que a menor das partes onde as espécies

dominantes ou recessivas se desenvolvem. Ela é a

menina dos olhos. A característica marcante da

biosfera é funcionar circularmente em

ecossistemas. Assim, o que inquina qualquer

fragmento da cadeia vital inquina a totalidade do

ambiente. É certo que a gradação de impacto vai se

amainando da mesma forma que as ondas na

borda do lago são menores do que aquelas do

221

centro em que a pedra foi arremessada. A todo

instante, ou melhor, perenemente, já no ventre de

nossa mãe ou ainda antes disso estamos sofrendo

o efeito bumerangue da civilização. Sartre disse

que não importa o que fizeram conosco, mas aquilo

que nós fazemos com o que fizeram de nós. Se não

é possível instrumentalizar a mudança em nossa

própria geração, então temos de ter o bom senso

de fazer o melhor se realizar para as próximas

gerações. Devemos primar pela renovabilidade dos

recursos e lembrar que não apenas hoje, mas

amanhã e sempre a vida deve ser praticável no

planeta. O conforto dos países ricos deixa atrás de

si uma onerosa “hipoteca”, para tomar emprestada

uma expressão de certa encíclica, social e

ecológica. Só alguns usufruem de conforto, mas o

preço ambiental é rateado com toda a humanidade.

É importante que nos relacionemos com o planeta

não só como base física ubiquidade e

circunstancialidade, mas que tenhamos um laço

afetivo com ele. Do mesmo modo que o país em

que nascemos é nossa pátria em prol da qual

222

somos capazes até de dar a vida, também o

planeta deve repercutir da mesma forma sobre nós,

como a pátria universal de todos os povos. O amor

ao planeta não se limita a uma categoria plena de

imperatividade por necessidade fática e física.

Porque ainda podemos golpear muitíssimo o

planeta e a vida continuará praticável. A questão,

destarte, não está exatamente posta entre vida e

não vida, mas em qualidade e longevidade de vida.

Além disso, o cuidado com o planeta está ligado a

uma questão de paisagismo. Como é agradável

morar em um ambiente livre de ruído e de poluição

atmosférica e visual. Somos muito aquilo que

vemos com maior frequência. Dificilmente se tem

uma bela alma inserta num ambiente repleto de

coisas rotas. As ciências antigas, das quais pouco

se fala quando paragonadas com as ditas

modernas, trazem uma abordagem riquíssima

acerca do significante esotérico do nosso planeta.

Este tipo de literatura embora por vezes acrítico

não pode ficar em descrédito por conta de

generalizações apressuradas. Porque reconhecer

223

ao nosso planeta algum sentido místico e

suprarracional nada mais é do que admitir o

primado do sutil sobre o tosco, do espiritual sobre o

material. Trata-se de um nível superior, mais

elevado e mais profundo que é perceptível e

apreensível apenas aos espíritos mais arrojados.

Pertencer a este planeta é pertencer antes de mais

nada a uma determinada ordem espiritual.

Entendida a palavra ordem como organização,

código de normas, status e estatura ôntica. O

planeta é um senhor de meia idade. Dizem, faz não

dois, mas setenta e dois movimentos diferentes. E,

quanto à rotação, há quem diga que está em ritmo

de frenagem a ponto de um dia parar e, como

barbante, começar a perfazer o movimento inverso.

Newton explica que, pela lei da inércia, um planeta

ou outro corpo faz um movimento perene se não

houver resistência do que quer que seja. Em Jó

26,7 lemos “Deus suspende a Terra sobre o nada”.

O próprio Tomás de Aquino na Summa Theologica

deixa claro que a Terra é redonda. A Terra tem uma

vibração própria, vibração esta que é alterada pela

224

irradiação desmesurada de raios eletromagnéticos.

A gravidade da Terra é relativamente fraca, pois

posso catar um prego do chão com um ímã, o que

prova que meu objeto imantado tem mais força

sobre o prego do que toda a massa do Planeta. Os

faquires, não todos, mas o mais treinados, praticam

a arte da levitação que é a suspensão da força

gravitacional. Somos tão sensíveis que não

podemos, sem equipamentos especiais, subir o

Everest ou descer a maior depressão abissal.

Basicamente, é a mesma lógica que faz um avião

decolar e uma pedra de granizo fica suspensa

numa nuvem: a pressão vertical do ar de baixo para

cima. E a água, o granizo, o Sol, o vento são

fatores que agem sobre a superfície da Terra. Terra

agricultável nada mais é do que rocha decomposta

pelos fatores acima expostos. Nada degrada tanto

como o choque térmico. Para o planeta é

indifernete ser fulminado por um relâmpago, pois a

energia que está no céu antes esteve na litosfera.

Assim como a idade do universo é muito maior do

que a idade do planeta, a idade do planeta e muito

225

maior do que tudo o que nele há e nós entramos

em cena no último segundo. Numa escala projetada

em milhões de anos, guardadas as proporções.

Não cremos que o planeta seja perfurado como um

queijo e que como imaginou Júlio Verne em Viagem

ao Centro da Terra, seja possível encontrar uma

civilização que more no escuro. Todavia, no interior

da Terra há lençóis freáticos e petróleo em grande

quantidade. Há rios subterrâneos mais caudalosos

que os que correm do lado de fora. Crê-se, mas

não se sabe com certeza se os elementos da tabela

periódica são os mesmos do planeta e dos confins

do universo. Não raro, topamos com pessoas que

conhecem dezenas de países, o que era uma

extrema raridade no passado. Da roda ao avião

foram poucos dias. A civilização domina o

planeta. Mas a tecnologia vem sendo relativizada

e complementada pela tecnologia não . O

transporte físico, sobretudo o de mensagem, vem

sendo substituído pelo transporte etéreo, virtual.

Satélites e cabos de fibra ótica unem os

continentes. O planeta é alvo de diversas ciências

226

humanas e não humanas e a geografia será uma

delas que abordaremos adiante. Juridicamente

falando a Terra pertence aos mais fortes. A

Amazônia brasileira por um fio de cabelo ainda é

reconhecida como solo brasileiro. Mas quando se

trata de particulares, o direito ainda fica mais

restrito, pois o ar e o subsolo são de propriedade é

uma ficção. Pois ao mesmo tempo em que tudo tem

dono, seja o Estado ou um particular, nada tem

dono. O latifúndio é a maneira de repartir a terra de

modo com o capitalismo clássico. De um lado uma

grande porção de terra improdutiva e, de outro,

lavradores sem terra. O modo como partilhamos a

terra aponta o modo como nos relacionamos com

ela e conosco mesmos. Teologicamente falando,

pegando emprestada a dicção de Manolo Del Olmo,

a Terra é o único ponto no universo onde a vontade

de Deus pode não se realizar e, isto, pelo fato de o

Criador ter nos dado livre-arbítrio. O mal é um sair

da ordem natural e para que o bem seja

restabelecido é preciso uma vez mais sair do

normal. Na verdade, conhecemos muito pouco

227

onde vivemos e até agora não demos uma

explicação razoável de porque os Oceanos

Atlântico e Pacífico não estão no mesmo nível. A

Terra com suas plataformas continentais possui

dimensão finita e a espécie humana, como todas as

demais espécies, fica sujeita a esta finitude. Daí

que o controle de natalidade precisa ser imposto

pelo Estado ou, de outra maneira, torne-se um

hábito cultural ter apenas um ou dois filhos em

razão da dificuldade de estabelecer-se social,

espacial e economicamente. O grande problema é

que o nível de ordenação estrutural, social, político

e cultural não acompanha o crescimento

populacional. E além disso, para cada cidade, com

determinada população, frota de carros e chaminés

é preciso que haja um espaço natural intocado ao

correspondente, para poder absorver isto tudo. Ou

seja, se todos produzíssemos lixo e poluição como

os norte-americanos, só para exemplificar, o

planeta já teria ido à falência. Este tópico é

importante quando sinaliza que toda metanarrativa

depende de processos físicos e planetários

228

anteriores, vez que o ideal, na dimensão espiritual

chamada empírica, depende sempre e

necessariamente de um substrato material. Do

ponto de vista da ufologia há quem diga que somos

observados, nós, terráqueos, e a Terra, nosso

planeta, por outras civilizações de outros planetas.

E que só não fomos fulminados e extinguidos

porque nossos baixos níveis de quociente de

inteligência, do ponto de vista dos alienígenas não

representa um perigo para quem quer que seja. O

máximo que conseguimos fazer foi impactar o dia

com 0,06 segundos a mais por termos deslocado a

Terra do eixo em 2 centímetros elevando a 175

metros de água acima do nível do mar na represa

chinesa de Três Gargantas. Aliás, o único conjunto

arquitetônico visível a olho nu da Lua é a muralha

da China. Como observou Engels em O Papel do

Trabalho na Transformação do Macaco em Homem

desde que começamos a nos proliferar como um

bando de macacos famintos e vorazes, o ambiente

se viu achacado pela procura de alimentos e pela

adubação de terra com nossas fezes. O homem é

229

uma das poucas espécies que consegue

desequilibrar o meio ambiente. E mesma as outras

espécies que aniquilam suas rivais, foram

irresponsavelmente manejadas pelo homem que

colocou matrizes em ambientes indefesos a elas. A

Terra com seus maremotos, abalos sísmicos,

erupções vulcânicas, tornados e variações de

temperatura violentas tem sido hospitaleira para

conosco. O que seriam das ideologias

(metanarrativas) se não fosse esse torrão bruto e

opaco sobre o qual nos calcamos e do qual tiramos

nossa subsistência. Todas as ciências e todos os

conhecimentos ou versam sobre Deus, ou sobre o

homem e suas atividades ou sobre a Terra. Não há

como fugir disso. O próprio homem é o feixe que

junge o maior número possível de saberes. O

grande projeto do homem é conhecer a si mesmo.

E ele dá espaço a uma infinidade de saberes

justamente por participar de dois mundos, por ser o

canal entre o telúrico e o celestial. Não é todo

planeta que possui clima temperado, possui

atmosfera, fica a uma distância ideal de uma estrela

230

e possui água em abundância. Morando num lugar

desse é possível não só amar, trabalhar, estudar,

fazer política, crer em religião, filosofar, mas ainda

ter discípulos, fazer marketing, correr atrás de

vaidades, status, prestígio, autoridade, fama e

moral. Como diria Schopenhauer, “o mundo é

representação”. Mais importante do que em que

mundo vivo, é qual o mundo em que imagino viver.

O mundo que nos cerca é reflexo da relação cordial

e cerebral que travamos com ele. Assim, pois, se o

mundo vai mal é porque nossa vibração mental vai

mal.

História da vida: a ideia de propósito vital

Perguntado se creio em biogênese ou abiogênese,

entendidas estas respectivamente como a ideia de

acordo com a qual os seres vivos emergem

espontaneamente da matéria em estado contínuo e

como impossibilidade de a vida emergir de per si

das estruturas carbônicas, não fico com nenhuma.

Porque em dadas circunstâncias bem específicas a

231

matéria pode se complexificar para se tornar

matéria viva, no entanto, hoje as condições

fisioquímicas já não mais conseguem favorecer

este laboratório natural. Deus pôde ter intervido na

matéria para o surgimento da vida, mas é

suficientemente Inteligente para programar a

matéria para que ela mesma se encarregue disso.

O surgimento da vida foi querido por Deus desde a

eternidade. Carbono, nitrogênio, oxigênio e

hidrogênio sob dada pressão barométrica,

processos de eletrólise e fotólise são, sim, capazes

de se tornar algo mais do que elementos brutos. O

difícil é a primeira entidade unicelular. A partir deste

referencial a meiose e a variabilidade fazem todo o

resto. A vida, assim como o planeta no qual ela é

engendrada, tem um propósito. A discussão de

cientistas e teólogos em cima da discussão

casualidade versus propósito é sempre mal

colocada. Porque fenomenicamente os cientistas

estão corretos e uma certa cegueira e anomia

conduzem a vida. Mas por detrás da desordem

existe uma ordem que tenciona atingir uma série de

232

escopos. A variabilidade genética e sua capacidade

de adaptação ao meio são chaves explicativas

sérias o suficiente para descrever o elo de evolução

vital. O que defendemos é que a vontade não é

algo necessariamente intrínseca à inteligência. Na

irracionalidade também há vontade. Trata-se de

uma vontade que a duras penas se submete aos

processos que regem a matéria. O desafio da vida

inteligente cabida na matéria é ter de submeter leis

superiores a leis inferiores. A encarnação de Cristo

é essencialmente isto. O fato de uma ecatombe do

tipo K-T aniquilar com os dinossauros, conjunto de

espécies dominantes no planeta é totalmente

aceitável. O ser humano, como sugere a ficção

científica expressa sua produção cinematográfica

Armagedon, reuniria totais condições técnicas de

detonar um meteoro e salvar a si por si. O

surgimento de vida na Terra é o primeiro grande

sintoma de paranormalidade. A vida animal e

vegetal são oriundas de uma plataforma vital. A

vida vegetal tira sua energia do mundo mineral e a

vida animal é autofágica e tira sua vida do reino

233

vegetal ou do próprio mundo animal. O carnívoro

fica no topo da cadeia e por isso, em certo sentido,

é o mais exposto. Mas engolir pacotes prontos e

densos de energia traz uma comodidade. O

mamífero é uma tecnologia inteligente da natureza

na medida em que gera uma pletora de energia

para as crias mesmo quando não haveria outro

recurso alimentar de modo mais imediato. Há

vantagem e desvantagens em ser um animal de

sangue quente. A grande vantagem é podermos

estar ativos em todas as estações do ano e

disponibilizar para o nosso cérebro tudo o que ele

precisa apesar das oscilações do ambiente. A

desvantagem é que se formos pegos de maneira

brusca por uma reviravolta climática talvez não

tenhamos tempo hábil para nos precaver. O ter

uma temperatura em torno dos 36 ou 37 graus

Celsius é uma das primeiras grandes oposições ao

entorno. No sentido de que relutamos para manter

uma constância dentro de um ambiente

inconstante. O próprio fato de o ser humano não ter

um número definido de cromossomos nos mostra o

234

quão real é a variabilidade. A genética é a grande

chave do ser humano. O ser humano é um código.

Deus usa deste código para nos conhecer e

conduzir. A filosofia não pode passar ao largo

disso. Como diria Bacon de Verulam “um pouco de

filosofia afasta de Deus, muita o traz de volta “. E

como percebeu Schopenhauer, o homem é um

animal tão cerebrotônico que até a posição da

cabeça influi no ato de pensar: inclinada para

frente, quase horizontal. Isto ele escreve em

Parerga e Paralipomena (Ornatos e

Complementos). O que comemos repercute

diretamente sobre o que somos. Nosso alimento é,

em regra, um composto que também está

cromossomicamente estruturado. Daí o risco de se

ingerir, de acordo com alguns, alimentos

geneticamente modificados. A vida é um arranjo de

proteínas. Os vegetarianos, pois, que me

desculpem. A vida tem objetivo: conhecer a si

própria e fazer morada, além de ser moradia. O

propósito da vida é se apropriar das premissas e

dos corolários presumidos e subentendidos e trazê-

235

los para o reino dos explícitos e da consciência

forte. A reprodução sexuada foi a invenção mais

genial da vida. Sim, dizemos isto porque há

espécies hermafroditas que exercem papel ativo e

passivo podendo, um único indivíduo, fecundar a si

mesmo. A reprodução sexuada é quebra de um

código e a um só passo a renovação do mesmo. No

sentido de que a configuração da nova vida é

atualizada de tal sorte que a inovação burla os

agentes estranhos que não tem o mesmo

dinamismo. A mudança de sexo de alguns

indivíduos da população visa trazer compensações.

Pois é negativo para a espécie que haja

discrepância entre o número de machos e fêmeas.

Talvez o movimento de sociedade da diversidade

sexual cumpra esta finalidade embrionária em

todas as espécies. A diferença é que o ser humano,

diferente dos outros animais, tem personalidade.

Isto significa que outra hipótese, a do

condicionamento social, pode falar até mais alto do

que as necessidades procriativas. A vida procura

caminhos. É assim que o presidiário recebe visita

236

íntima e do lado de fora logo tem uma criança

recebendo auxílio reclusão. A vida pretende cobrir o

planeta. Nas depressões oceânicas os peixes

abissais, no alto das montanhas a águia, nos

lugares gelados focas, ocasião em que o filhote

nasce e a diferença entre a temperatura do útero da

mãe e do ambiente é de mais de 100 graus Celsius.

No telhado das casas o musgo, em toda greta uma

erva recalcitrante. A vida pode oscilar entre os

serenos quatro mil anos da sequoia ou os dez

violentos anos do leão africano. A casa de luxo vira

tapera e a figueira da praça da capital do meu

Estado paira feliz sobre a cabeça dos catarinas. Ao

longo dos sessenta anos do elefante e dos dois

anos do rato o número de batidos do coração de

um e de outro perfectibiliza quase que a mesma

expressão numérica. O propósito vital, neste caso,

seria expressar esta linguagem em diferentes

ritmos de frequência. A vida usa os mais velhos

como modelo. É assim que elefantes que estão

acostumados a conviverem com duas gerações

mais velhas se suicidam quando seus ancestrais

237

são chacinados. Ouço, agora, do meu sócio, que

uma senhora de 71 anos passa no exame da OAB

e que um personal trainer de 70 anos leciona e

assessora algunos de 102. Bem, penso que esta

volatilidade intelectual e esta resiliência é o que tem

feito do ser humano a espécie dominante do

planeta. Em um grupo de macacos em que um

toma a iniciativa de lavar a batata na água do mar

os seus colegas jovens copiam a conduta, mas os

mais velhos preferem comer batata com terra. A

vida é essencialmente informação. Mas trata-se de

uma informação ou de um conjunto de informações

transmitidos inconscientemente no caso de nossos

inferiores. No homem a informação é explícita, ao

menos parte dela. Freud complementa Darwin, no

sentido de que tudo é genética e a sexualidade é o

canal pelo qual é veiculado o material genético,

base de todo processo evolutivo. A psicologia de

Freud é uma psicologia para o cérebro de um

animal racional, mas o homem é bem mais do que

um superanimal. A vida é um pêndulo que oscila

entre desejo e tédio, realização e frustração, prazer

238

e sofrimento. Como diria Viktor Frankl, o sofrimento

deixa de ser sofrimento quando ganha sentido. O

próprio prazer também ele parece almejar algum

sentido. A vida é tomada pela ideia de processo e

processamento. Ela é processo no sentido de que o

sínolo de espermatozoide e óvulo, aí vem a

infância, a adolescência, juventude e adultícia,

velhice e morte. E é processamento na medida em

que somos a vida inteira bombardeados por

informações. Além disso, processamos e no interior

de nosso corpo funciona um plexo tão complexo de

enigmas, hormônios, combustão de calorias,

assimilação e eliminação que nem toda a ciência do

mundo seria capaz de explicar. O homem é o

pináculo da evolução na condição de quem tomou

consciência de si, sendo este “si” síntese de tudo o

que lhe precedeu. Mas poucas inteligências

transcendem o trivial e o banal. A reflexão filosófica

é esforço intencional e pensado de o homem

hominizar-se. A filosofia é o “lucidis intervallis”. Se

até o dia de hoje, como assinalou Freud, a

consciência é a ponta do iceberg enquanto que o

239

subconsciente é gigantesco, passaremos por uma

inversão: o pensamento será esmagadoramente

maior do que o não pensamento. Será invertida a

ampulheta. Se, como se quer, o consciente está na

razão inversa do subconsciente, será cambiada a

proporcionalidade porque o mundo espiritual se

afirma às expensas da negação do mundo material

e vice-versa. Se o universo se caracteriza por ora

gravidade infinita e extensão zero e ora por

extensão máxima e gravidade zero, filosoficamente

nos sentimos autorizar a lei que segue: o universo

da mesma forma oscila entre o pensamento infinito

e a concreção zero e a brutalidade máxima e a

consciência zero. O que vem a ser, pois, a

oumperiforalogia? É a disciplina que explica a

metanarratividade, ou seja, a passagem do não

pensamento para o mundo crescente do

pensamento. De toda forma, estamos, por isso, a

um só tempo, a trabalhar com linearidade a menor

alcance e a longo alcance com eterno retorno. O

que temos dito é que a consciência não se deixa

afetar pela não consciência senão antes acolher

240

uma impressão remota e abrigá-la sob o alpendre

da consciência. A este processo chamamos de

aprendizagem e dele se ocupam várias disciplinas,

inclusive a pedagogia. Nada mais dolorido do que a

aprendizagem ou, o que é o mesmo, a

conscientização. É mais ou menos, ou até pior,

como transformar pedra bruta em pó. É como livrar

a cebola de todas as suas camadas até não restar

outra coisa senão a ideia de cebola. A tensão não é

como queria Freud, pulsão sexual versus ímpeto

civilizatório, mas é entre pensamento e não

pensamento. O coito é o pensamento traduzido em

linguagem somática e, se dele ressaltar concepção,

o nascituro é soma que visa adquirir capacidade

pensante. Esta é a didática que defendemos. Existe

passagem do não pensamento para o pensamento

e do pensamento para o não pensamento. Mas

enquanto o não pensamento estiver guardado

sabe-se lá onde, id ou superego, em nada percute

sem que ao menos tenha o intelecto lhe reservado

um tratamento consciente, ainda que perfunctório.

Assim como o pensamento é enriquecido via

241

assimilação de dados brutos e depurados pela

abstração, o pensamento se lança sobre o

desconhecido mesmo sabendo da insegurança que

isso gera. Mas não faz isto de qualquer maneira,

mas de modo estratégico, seguindo a lógica do

método científico. A inteligência é adrede dirigida

para a construção do conhecimento. Claro, a vida

vem a ser não só a base de toda inteligência que se

emprega nas ciências, mas ela própria torna-se

objeto empírico e ideal de estudo. O empirismo

relegamos aos cientistas e da idealidade tentamos

dar conta aqui neste espaço. A vida é como o curso

de um rio. Mas enquanto todos os rios deságuam

no oceano, a vida emerge do oceano e se

esparrama por toda a face da Terra. O

denominador comum é o fluxo. A vida é fluxo.

Neste sentido Heráclito foi brilhante com o seu

“tudo flui”. A morte não é exatamente a interrupção

do fluxo, mas a transposição do fluxo para uma

superior transição. Tudo é, de um lado, material e,

de outro, espiritual. E assim como a matéria evolui

dos aminoácidos até chegar ao homo sapiens

242

sapiens, algo paralelo ocorre com o mundo

espiritual. Cristo é claro “quem crê em mim

ressuscitará”. Isto está no Evangelho segundo João

em que perguntam a João (o Batista agora e não o

Evangelista) “tu és Elias?” em uma alusão

claríssima à reencarnação. Assim é de se admitir

que ressureição e reencarnação são dois conceitos

que além de não se chocarem, se complementam.

O propósito da vida, neste sentido, é propiciar uma

câmara de alta pressurização para que o espírito

nela cabido possa evoluir para novamente

ascender ao status de onde caiu. Tenho percebido

que a vida é essencialmente emoção e inteligência

para o ser humano, a inteligência é emocional. E

que, em linhas gerais a minha inteligência é como

eu me trato e as minhas emoções é como as

pessoas em tratam. E sou avaliado mais pelas

emoções do que pelos pensamentos. As pessoas

me avaliam pelo modo como elas me tratam,

destarte. Isto significa que, como lecionou Jesus

Cristo, devemos retribuir o mal com o bem se

quisermos tornar nossa vida praticável. A vida é um

243

descobrir e desvelar de princípios. Eles nos são

passados indiretamente, sempre por mediações. A

mediação, por isso mesmo, também é um princípio.

O crescimento consiste em cumprir o honrar o que

desconhecemos. E quanto mais conhecemos, mais

cumprimos, e quanto mais cumprimos, mais

obedecemos. Essa é a característica da verdade:

você tem de se submeter a ela e não adianta dar

cabeçadas em colunas de aço. O que contradiz a

verdade, isto sim, precisa ser submetido ao controle

do homem. É este governo do mundo que Deus dá

ao homem. A vida é ruah, vento, sopro. Ainda que

existam microorganismos anaeróbicos. E assim

como a proliferação desmesurada de

microorganismos aeróbicos torna a água inabitável

pela carência de oxigenação, a pletora de oxigênio

é inapropriada para os peixes que estão

acostumados com menores taxas de oxigenação.

Há plena concordância entre filosofia, ciência e

religião no que se refere à criação da vida, o que

muda é o estilo de descrever processos. A filosofia

é dissertativa, a ciência é informativa e a religião

244

narrativa. Todas as versões estão corretas a partir

do seu próprio ponto de vista. Posso informar

jornalisticamente que houve incêndio na quadra B

da cidade, posso apurar causas metafísicas da

manifestação ígnea e procurar os fundamentos

teológicos do episódio a partir das páginas das

Sagradas Escrituras e a afirmação de um ou de

outro ponto de vista não significa a imediata

inocorrência do inegável, o incêndio. Tentar, por

vezes, montar um todo harmônico e partir de

modos diferentes de abordagem calcadas em

premissas distintas é o mesmo, ou talvez até mais

absurdo, querer construir um belo prédio com

palha, concreto, madeira e gelo prescindindo do

contexto em que a casa será erigida.

Química: a ideia de essência

O atomismo surge na Grécia Antiga com teoria

metafísica. Leucipo cria que se quebrássemos um

objeto em menores partes chegaríamos a uma

partícula indivisível invisível. Demócrito foi o grande

245

sistematizador do atomismo. Aristóteles com sua

física qualitativa nega a ideia de átomo. Aristóteles

acolhe a teoria de Empédocles usada na medicina

por Hipócrates segundo a qual tudo é mescla de

quatro princípios: ar, fogo, água e terra. problema

sério foi o da quintessência que Aristóteles chamou

de éter. Daí que vem a palavra “eternidade”, pois o

tal elemento seria incorruptível. Tudo é químico em

certo sentido. Mesmo que haja um mundo

transcendente em relação ao mundo transcendente

em relação ao mundo químico livre de sua

influência, certo é que o homem está sujeito aos

princípios da química. A química é, em traços

largos, dividida em orgânica e inorgânica. No que

se refere à vida, ela é orgânica enquanto sendo

uma estrutura carbônica. Conhece-se hoje mais de

10 milhões de estruturas de carbono. Só uma

estrutura de carbono conseguiu desenvolver o

pensamento, esta mesma que escreve estas linhas,

exemplar do gênero humano. A química foi

precedida pela alquimia. A alquimia visava,

basicamente, a duas coisas, transformar qualquer

246

coisa em ouro e descobrir a fórmula dos humores

do ser humano. É possível sintetizar hoje em

laboratório, alegria, tristeza, euforia, depressão,

calma, ira e assim por diante. Os atletas olímpicos,

em que pese a generalização precipitada, refletem

o poder das drogas. Há uma gama variada de

drogas e de técnicas não perceptíveis no

antidoping. E o que milagrosamente se opera no

físico se opera de igual modo no quesito

inteligência. É claro que eu consigo potencializar

muito mais força naquele que por si só já é forte. O

mesmo vale para a inteligência. Ou seja, ainda que

este seja o segredo dos filósofos isto não anula o

mérito dos pensadores referidos, pois eles são os

atletas do pensamento. Vivemos no tempo da

energia nuclear. A Segunda Grande Guerra

mostrou o poder de destruição do hélio e do urânio

quando utilizados para fins bélicos. Algumas ilhas

do Pacífico têm servido como campos de teste das

grandes potências militares que detêm a tecnologia

nuclear. Chernobill foi o alerta para o nosso pouco

cuidado com aquilo que é deveras sério e perigoso.

247

A química estuda ácidos, bases e sais, produz

combustíveis, plásticos, vidros, perfumes,

detergentes, solventes, e ainda se debruça sobre

processos fisioquímicos como eletrólise, fotólise, e

pirólise. A própria vida é uma grande química: os

animais queimam oxigênio e produzem gás

carbônico e as plantas consomem gás carbônico e

liberam oxigênio. A maneira que o desenvolvimento

social humano encontrou para desmentir a teoria,

em princípio correta, de Malthus, foi aprimorado o

conhecimento químico aplicado em agronomia. Boa

parte das empresas mais ricas do mundo trabalham

com produtos químicos e possuem seus próprios

laboratórios de pesquisa. A saúde humana é cada

dia mais e mais cliente dos laboratórios fármacos. A

química vem dando conta de responder a uma

pergunta que a filosofia não deu conta de

responder: o que é uma essência ou, em outros

termos, o que faz com que uma coisa seja ela

mesma e não outra? Neste diapasão, o que

caracteriza a natureza áurea do ouro? A química

me diz Fe S2. E o mais curioso disto é que a

248

química não me informa isto pela observação

empírica, mas por dedução. A tabela periódica de

Mendeleiev é uma grande abstração. Porque, em

verdade, não conhecemos um único átomo. Apenas

imaginamos como seja o átomo. A teoria quântica é

o genial retrato da nossa ignorância atômica. Não

deve ser por acaso que em tantos intelectuais

sejam vidrados em cafeína e outros quantos em

nicotina. Porque um ritmo diferenciado de

pensamento espelha um metabolismo químico

neural diferenciado. O sintético cada vez mais

substitui o natural. O que eu questiono é até que

ponto o organismo consegue absorver o sintético.

Hoje muito se fala em produtos orgânicos depois

que a humanidade já ficou se intoxicando por

décadas. O DDT que rendeu o prêmio Nobel

também rendeu A Primavera Silenciosa. A química

é como os poderes de um bruxo que colocamos em

marcha e depois perdemos o controle sobre ele. Da

pedra de sabão de vísceras animais, gordura, cinza

e soda cáustica até os hidrantes rejuvenescedores

foi um pulo. Quem sabe a química, mais do que já

249

fez, esticará ainda mais nossa expectativa de vida e

melhorará o padrão de qualidade de nosso

cotidiano. Desde que éramos trogloditas já

sofríamos os nefastos efeitos do mau uso da

química: o fogo de nossa caverna nos intoxicava

com a fumaça o que nos vitimava de enfisema

pulmonar e o excesso de carne obstruía nossas

artérias de lipídios. Os índios sempre foram

grandes conhecedores dos princípios ativos das

plantas, donde, em última instância, tiramos nossa

indústria. Desde barbitúricos, laxantes, calmantes,

anestésicos, anticoncepcionais, cicatrizantes e

assim por diante. O colonizador europeu, ao

colonizar a América, destruiu não só os povos

daqui, mas também esta sabedoria de grande

utilidade. Feuerbach que dizia que “o homem é

aquilo que ele come”. E eu arremato: também, o

homem é aquilo que ele bebe. Engels fala que o

acréscimo de inteligência do homem se deu pelo

implemento da dieta de carne, rica em proteína. A

qualidade de um ser humano se mede pela

qualidade de sua alimentação enquanto o cardápio

250

preconize ou exclua certos elementos químicos. O

cangaço ficava semanas e até meses na caatinga

porque levava na guaiaca carne em pó de charque,

farelo de pão moído e rapadura, ou seja, proteína,

carboidrato e glicose. A água era extraída das

bromélias. Sobre o beber questiono a eficácia da

fluoretação e sua suposta característica

anticariogênica. É preciso, antes de mais nada,

pesquisar a influência do flúor sobre o humor das

pessoas. Um coquetel de drogas ministrado a uma

pessoa sem o seu conhecimento pode, associada a

fatores psicológicos estressantes, desencadear

inclusive esquizofrenia. O ciclo hormonal da mulher

que faz dela uma montanha russa emocional não é

outra coisa senão um ciclo químico. Pouco

estudada é a relação entre o químico e o não

químico. Porque uma dose ministrada a alguém

pode deixá-lo abatido, mas sempre fica uma

pequena resistência. Este arbítrio metaquímico

precisa ser considerado. No mesmo sentido são

aquelas manifestações capazes de produzir uma

nuvem química no cérebro sem necessidade de

251

instilação de fora para dentro. Há uma luta entre o

químico e o psicológico. O químico afeta o

psicológico e o psicológico afeta o químico. Mas o

psicológico de algum modo extrapola o químico,

como demonstra a parapsicologia, da mesma forma

que passa por cima de leis físicas. Nossa mente é

mais que nosso cérebro. A mente é atingida pelos

processos químicos cerebrais e se mostra uma

entidade física enquanto membro irradiador de

frequência. Sentimos nosso cérebro mudar de

frequência ao falar de morte, ao ver uma cena

pornográfica, ao resolvermos uma equação.

Quando produzimos endorfina nos sentimos bem e

é por isso que praticamos esporte. Já a sensação

de risco produz adrenalina. Somos um corpo

exposto ao ambiente. A temperatura é um fator

físico e o frio e o calor fazem nosso cérebro

produzir no seu interior químicas diferentes. Daí a

procedência do que Montesquieu falou acerca do

espírito dos povos, da topografia e do clima. A

recíproca inversa é verdadeira: como observa René

Descartes no Discurso sobre o Método, o feno em

252

fermentação, que nada mais é do que um processo

químico produz calor. O chinês comedor de arroz e

bebedor de chá é sereno como o amido e o

tranquilizante sob infusão vegetal. Já o argentino

comedor de churrasco e bebedor de chimarrão é

alvoroçado com a toxina e a cafeína. Tão

importante quanto aquilo que ingerimos é aquilo

que eliminamos. A propósito, o bombardeio

midiático que sofremos todos os dias nos impacta

inclusive quimicamente e não só psicologicamente

a ponto de vergar a personalidade e exaurir os

órgãos reprodutores. Fomos programados pelas

glaciações para buscar o alimento calórico.

Todavia, deixamos de ser caçadores e

despendemos menos energia e o planeta já não

mais é achacado pelo frio. Schopenhauer diz que o

homem é naturalmente negro e que o ser humano

branco é uma aberração da natureza. Concordo de

certa forma com ele. Mas digo que a própria

melanina é uma reação do organismo a fatores

físicos e químicos: insolação intensa e consumo de

betacaroteno. O que vem a ser o ser humano? Um

253

conjunto de cálcio, ferro, água, fosfato e outros

elementos mais? Por certo que não. Porque tão

importante ou até mais importante do que uma

coisa é feita, é como os elementos integrantes

deste algo estão dispostos entre si. E eu não paro

por aí. O homem é mais do que essa especial

forma de organizar estes elementos químicos, é um

ser cultural. E não apenas isto, ele é mais do que

cultura, é metafísico e depois do metafísico vem o

insondável. Que é mais do que o esotérico, que é

mais do que o parapsicológico, que é mais do que a

taumaturgia. A química enquanto ciência é refém

daquilo mesma o que ela é: uma ciência. Nesta

qualidade não pode transcender o próprio método e

a própria linguagem. Da mesma forma, o universo é

mais do que os fenômenos químicos que nele

ocorrem. Seria simplista demais reduzir o universo

à tabela periódica. O que Darwin fez na biologia

alguém precisa fazer na química. Porque os

próprios elementos que se nos são apresentados

como entes estáticos, prontos e imutáveis são

frutos de processos evolutivos em que num início

254

recôndito havia não mais que um único elemento. A

lei da química é a lei de todo o resto:

complexificação crescente. Didaticamente, pode-se,

daí, fazer coro a Comte “complexificação crescente

generalização decrescente, generalização

crescente, complexificação decrescente”. Agora, se

novos elementos estão sendo engendrados em

galáxias ermas do universo ou o estágio evolutivo

químico só propicia trabalhar com aquilo que em

outro estágio já fora forjado é outra história. Da

mesma foram que não é todo dia que um primata

torna-se homem, não é todo dia que surge um

elemento químico novo. A ideia de um protótipo

único domina todas as disciplinas e em linguística

Umberto Eco propõe um único idioma que daria

origem aos mais de sete mil idiomas e dialetos. A

inteligência está tão ligada à física e à química que

os cientistas da computação esbarram em unidades

espaciais quando o assunto é ship de

computadores em número de moléculas. A

inteligência humana também é refém da

capacidade cúbica craniana e dos fenômenos

255

químicos indribláveis do cérebro. A inteligência, a

base física e química que nos trouxe até aqui é a

mesma que não nos deixa ir adiante. Neste sentido,

ou também neste, é que Platão falou que o corpo é

o cárcere da alma. Não obstante isto, talvez a

barreira que nos impede de avançar mais no

mundo empírico é a mesma que nos habilita a

ascender a um outro plano, completamente

espiritual. E, uma vez guindados à condição de

seres puramente espirituais como os anjos, livres

da coima química, poderemos continuar subindo os

degraus rumo à evolução infinita que as religiões

costumam chamar de paraíso. Na verdade, a

química é o motor de tudo o que existe enquanto

causa eficiente e final. Porque toda ação carece de

um impulso químico. E quando batalhamos por

dinheiro, sexo, prestígio, cargos e títulos o fazemos

pelo fato de essas conquistas desencadearem

determinadas reações químicas de satisfação em

nosso cérebro. O drogadito é o que provoca em si

mesmo a sensação de prazer lançando mão da

mediação errada. E o fato de os toxicômanos em

256

geral descerem ao fundo do poço só mostra que o

prazer sem responsabilidade não passa de uma

amarga ilusão. Em certos gibis para adolescentes

de ficção científica é mostrada uma realidade futura

em que todas as pessoas usam frequentemente

droga. Quem sabe a ficção não irá mesmo se tornar

verdade? Há quem diga que em 2030 todas as

pessoas sofrerão de depressão. Não creio nisso,

mas é uma grande verdade admitir que o número

de depressivos vem crescendo. Descobrimos a

química do sexo, mas não a do amor. Esta tem de

partir de dentro. Alfred Nobel teve o mérito de usar

a química para promover cultura. A Academia

Sueca destina parte dos royalties da dinamite para

premiar escritores, físicos, químicos, médicos,

economistas e homens de paz. O futuro da química

a encaminha para a informática. Hoje existem

softwares em que posso simular no meu PC

reações químicas sem temer o risco de explosão ou

queima de um inflamável. A impressão 3D me

permite confeccionar peças com perfeição

industrial. Não ocorreu talvez ainda que uma

257

inteligência mal intencionada possa fazer uma arma

em 3D. A química a um só tempo foi o ramo de

conhecimento que mais se expandiu e que continua

sendo ainda um dos mais promissores. Certo sábio

disse que se eu tiver conhecimento total de uma

das partes, por menor que seja, conhecerei todo o

resto. E a química passa por isto. Conhecimentos

químicos eram usados desde a pré-História, o que

fica bem caracterizado pela cerâmica e pela idade

do ferro e só muitos milênios depois é que ela

despontaria como ciência. A homeopatia, técnica

que consiste em diluir uma essência num solvente

primando pelo efeito ativo e abstraindo o efeito

colateral, deveria ser mais empregada num mundo

em que quase tudo tem um efeito colateral

indesejado.

Física: a ideia de generalização

O primeiro grande sistematizador da Física foi o

tratadista Aristóteles com suas categorias de

substância, ente e ser, essência, ato e potência,

258

matéria e forma, motor imóvel conseguiu de alguma

forma explicar o movimento total do universo.

Quanto às esferas que fugiam do seu controle, dizia

que elas eram guiadas por deuses, o que os

escolásticos diriam que eram dirigidas por

inteligências (anjos). A física de Aristóteles foi

transformada em teologia pelos intelectuais cristãos

da mesma forma como ocorrem à perspectiva do

mito da caverna de Platão. Galileu Galilei provou

que Aristóteles estava errado no que se referia à

queda dos corpos e provou ainda que a Lua não

era uma esfera perfeita de éter, mas que nela

haviam montanhas de sete mil metros de altura.

Copérnico enfrentou o geocentrismo aristotélico-

tomista e propôs o heliocentrismo. Kepler explicou

o movimento oval dos planetas. Newton

racionalizou matematicamente a lei da inércia e da

gravitação geral dos corpos. Uma plêiade de físicos

elaborou a teoria quântica das nanomedidas da

física. Einstein elaborou a teoria da relatividade

tirando o nosso chão de espaço e tempo. E uma

série de autores falaram do big bang. Hawking teria

259

tido o mérito de explicar a história do tempo

matematicamente. A física se ocupa com os

fenômenos relacionados à eletricidade, ao

movimento, ao magnetismo, à radiação, à luz, ao

som, e à relação entre estes fatores. As mudanças

de estado da matéria que pode ser líquida, gasosa,

sólida ou gel também são estudadas. A física se

ocupa do micro e do macro. Gosta de matematizar.

A teoria das cordas nada mais é do que uma

geometrização e aritmetização do universo. A

física, pela natureza mesma do seu objeto, é uma

disciplina altamente teórica. Com as descobertas

newtonianas a física começou a referendar todas

as outras disciplinas e a servir de modelo. O

mecanicismo de Descartes foi acolhido pelos

cientistas e pelos filósofos e gerou problemas como

o do determinismo. A física festejada pelos

intelectuais gerou o materialismo, o ateísmo e o

endeusamento do homem. A matéria é uma

abstração e como tal sempre foi alvo de reflexão

filosófica. Para o materialismo dialético a matéria

está sujeita à dialética em que se move

260

indefinidamente dentro de uma trilogia de tese,

antítese e síntese. O mérito do diamat foi

preconizar a fungibilidade das forças físicas embora

a URSS não reconhecesse a relatividade. Matéria

nada mais é do que energia condensada. Energia

não se perde, se transforma, pois é indestrutível. A

alma humana é esta entidade energética que além

de não se destruir também ainda resguarda sua

identidade e individualidade. O universo é

essencialmente desequilíbrio. A soma de todas as

forças do universo é igual a zero. Entropia e

neguentropia são dois lados de uma mesma

moeda. Costuma-se dizer que o grande problema

da física de Aristóteles é que ela era qualitativa e o

padrão que vingou foi o quantitativo. Mas eu

ressalvo que o número é tão humano quanto o

descrever. Porque descrição é linguagem. Certos,

portanto, os positivistas lógicos para os quais a

ciência é uma linguagem bem construída. Mas

linguagem é padrão do homem e não sabemos se o

é da matéria. E nada nos autoriza supor que

nossos esquemas mentais, como demonstrou Kant,

261

corresponda aos esquemas da matéria. A física

gosta de estabelecer conexões causais, mas como

ficou demonstrado pela filosofia, a causalidade é

uma abstração, uma construção intelectual. É difícil

saber onde termina a contiguidade e onde começa

a causalidade. Como apontou Kant, pensar

causalmente é um atributo do ser humano e

projetamos nas coisas concretas nossas

idiossincrasias. Correta é a distinção de Aristóteles

entre física e metafísica. Porque há algo que está

além da física, o mundo físico é o epifenômeno de

uma vibração espiritual. Ele não se esgota em si

mesmo. O que os filósofos sempre tentaram e

nunca conseguiram foi esse lançar-se além. A física

está para a metafísica assim como a aparência está

para a essência. As ciências não se ocupam de

nenhum objeto de intelecção que não seja também

objeto empírico. A física, assim como as outras

ciências, é metodologicamente materialista. Mas

nada autoriza quem quer que seja saltar do

materialismo metodológico para o materialismo

metafísico. A física é a máxima generalização em

262

que tudo é abstratamente reduzido a corpo. Só

duas instâncias são ainda mais abstratas do que a

física: a matemática, em que tudo é reduzido a

número e a filosofia, em que tudo é reduzido à ideia

de ser. O ser humano está inserido num meio físico

e o mesmo é uma entidade física, um corpo. Temos

altura, massa e peso. Descartes, Hobbes e

Helvetius viam o corpo humano como uma máquina

em que os olhos eram lentes focais, o coração uma

bomba, os rins filtros, o estômago processador,

braços e pernas alavancas, os pulmões foles e a

circulação sanguínea um sistema de dutos como

quis Harvey. Os reducionismos chegam a ser

comuns. Assim é que para o físico faz do homem

uma supermáquina e o biólogo um supermacaco.

Os gregos eram não apenas cultores do intelecto,

mas também do corpo. Diziam os romanos “mens

sana in corpore sano”. Hoje é do nosso

conhecimento uma planta rara que faz os músculos

crescerem 700%. O mundo físico é um grande

laboratório. As chamadas superligas como as

esmeraldas e os diamantes são estruturas

263

carbônicas que são submetidas pela natureza a

altíssima pressão do que são resultado. A

sabedoria do ser humano consiste em usar as leis

da física a seu favor, ciência é isto. O que faz o

avião voar, por exemplo, ele que é um cilindro com

asas mais pesado do que o ar, é a maior pressão

de baixo para cima do que a pressão de cima para

baixo. E estas forças aerodinâmicas são captadas

pela estratégico formato das asas e das turbinas. O

que faz, por exemplo, um transatlântico de milhares

de toneladas flutuar sobre a água do mar é o maior

peso da água do que o da nave num determinado

espaço cúbico disputado entre o corpo da

embarcação e as águas oceânicas. Além disso,

deve-se considerar que a água marinha é salobra,

o que modifica a densidade da água. As obras de

engenharia, seja civil, militar, elétrica, hidráulica,

mecânica, naval, aeronáutica, da informática, são

espécies de física prática. As leis da física exigem

que nós nos submetamos a elas e a nós. A ciência

não só não é incompatível com as Sagradas

Escrituras, mas ainda se mostram como seu fiel

264

cumprimento, é o “dominar a natureza”. O mundo

físico é o mundo da mobilidade. São Bento do Sul

no passado foi e ainda hoje o é um importante polo

moveleiro. A madeira trai a drena digital a toda

oscilação de temperatura e umidade. Ainda que em

um determinado museu da Europa haja

simbolicamente o metro e o quilo padrão num

objeto material, sabemos das limitações

epistemológicas a que estamos sujeitos. Pois o

metro padrão pode contrair ou dilatar com a

temperatura e o próprio peso não está alheio a isto,

pois oscila de acordo com a pressão do seu

entorno. Daí que A é igual a A somente no campo

da lógica, pois no mundo empírico, na real, uma

coisa é diferente dela mesma. A Segunda Grande

Guerra nos trouxe um desenvolvimento prático da

física sem precedentes. Ali foi pensado o primeiro

computador que, num primeiro momento, ocupava

um prédio inteiro. As comunicações sem fio se

desenvolveram. O telégrafo foi substituído pelo

telefone. O rádio é desta época. Hoje somos

ininterruptamente atravessados por ondas de rádio.

265

Não sabemos até que ponto isto sobrecarrega

nosso organismo. Certo mesmo é que frequência é

eletricidade na atmosfera, hoje usamos calçadas o

tempo todo e debaixo dos nossos pés sempre há

concreto. Isto significa que estamos

demasiadamente energizados e não temos mais a

chance de descarregar esta tensão para o colo com

o qual perdemos o contato. Certo é que o próprio

planeta tem uma dada frequência a qual está sendo

modificada pelo nosso aparato tecnológico. Os

problemas centrais da humanidade comporta o

problema energético. Porque as jazidas petrolíferas

são infinitas e porque nem toda topografia permite a

construção de hidrelétricas. Além disso, há uma

tendência mundial de não se optar pela energia

nuclear. As energias solar e eólica são opções,

porém trata-se de tecnologia cara. Quem sabe a

solução seja produzir células fotovoltaicas mais

baratas. O gás também é uma opção para

processamento e aproveitamento de material

orgânico em biodigestores. Como o nosso planeta é

o planeta azul a saída será o uso da água para

266

combustão. Em primeiro lugar teremos de

dessalinizá-la e em seguida empregá-la em

processos de quebra de moléculas. Porque embora

usemos a água para apagar o fogo ela é composta

de dois gases altamente inflamáveis, oxigênio e

hidrogênio (H2O). O desafio dos governos

capitalistas sempre foi encurtar tempo-espaço e faz

isto com infraestrutura de transporte e

comunicação. É que o modo de produção

capitalista para poder alienar suas mercadorias

carece de facilitação de despacho de bens e

pessoas. A ferrovia cumpriu, num primeiro

momento, com primor esta meta. Hoje os governos

têm priorizado as rodovias porque for fás ou por

nefas, assim como a moradia, a indústria

automobilística é um dos carros-chefes da

economia. O mundo físico está sofrendo um

encolhimento. Sim, porque hoje posso ter um tablet

com centenas ou até milhares de livros sem ter que

destinar com exclusividade um cômodo da minha

casa para estes bens culturais. Da mesma forma, o

mundo virtual me permite treinar num simulador de

267

voo sem que se corra o risco de derrubar um avião

caríssimo e repleto de vidas. O físico vai cedendo

seu espaço para o virtual. Com um bom sistema de

som em minha casa, com multiplicidade de

autofalantes, posso obter um superestéreo e ter

uma orquestra dentro de minha casa. Da viagem de

Fernão de Magalhães ao confortável iate, do 14 bis

ao supersônico, dos dois metros de caixa ao celular

com rádio, internet, câmara e filmadora foram

poucos os minutos transcorridos, sim, digo minutos.

Isto assinala a velocidade da mudança do modo

com que nos relacionemos com o mundo físico em

que estamos engavetados. Diria que graças ao fato

de termos modificado o mundo físico que nos

rodeia poupamos nosso próprio físico. Porque se a

expectativa de vida hoje é maior isto se deve

também ao fato de pouparmos nossa corporeidade

daquilo que nossos ancestrais estavam sujeitos. O

fato é que fisicamente despendemos muito menos

joules do que nossos avós. Na contramão disso,

pagamos para frequentar academias para exercitar

o organismo para que não se atrofie. Como diria

268

Lamarck “tudo o que não se usa se atrofia”. O

mundo da física é regido por uma dualidade que no

oriente é chamada de ying e yang. É assim que o

mundo nanofísico posso falar em massa negativa

enquanto ela apenas seja uma força oposta à carga

positiva de um elétron que nada mais é do que um

pacotinho de massa, se me é permitido usar o

diminutivo. No plano do micro o mundo está em

ebulição. Os átomos pululam. Só uma passada de

vista grosseira é capaz de ver algo estático. E

assim como na biologia há a chamada variabilidade

genética, no mundo físico há o princípio da

indeterminidade, o que desafia a visão newtoniana

de mundo. Todavia, por cálculos matriciais e

probabilísticos o que se vê é um fio condutor

centrado a partir de jogos de compensação. Claro

que tudo isto é muito teórico porque jamais em

tempo algum podemos observar um átomo tal como

ele é, pois ao projetarmos luz sobre ele aceleramos

a velocidade das partículas subatômicas que

gravitam em torno do núcleo de massa, o que

chamamos de efeito Heisenberg. A ressurreição de

269

Cristo, assim como tantos outros milagres, como a

multiplicação dos pães, o andar sobre as águas, a

pesca milagrosa, desafiam respectivamente a

noção que temos de tanatologia, conservação de

matéria, pressão e probabilidade. Páscoa é este

“passar por cima”. Deus não é um legislador refém

das próprias leis. É certo que o Deus homem teve

de se submeter às mesmas intempéries que nós,

mas fê-lo por opção o que para nós é uma

imposição. A física é uma disciplina cômoda, bem

desejável aos apaixonados por paixões calmas.

Menor truculência do que a da física só mesmo a

matemática, o paraíso das tautologias. A física é o

primeiro nível de conjecturação e distanciamento da

realidade e as ciências humanas são as últimas em

que eu faria questão de colocar psicologia, filosofia

e antropologia. De acordo com Comte, sociologia. À

medida que vamos nos distanciando do óbvio, e

nem do que é óbvio temos certeza, vamos

construindo discursos de menor consistência. O

ganho disso é a oportunidade de transferir a

subjetividade para aquilo que se escreve em que a

270

teosofia vem a ser o máximo, sobretudo pelo

sincretismo que envolve. O mundo físico desafia o

pensamento dogmático e o pensamento cético: ao

dogmático se furta de permitir incursões

gnosiológicas exaurientes e ao cético convida a dar

com a cabeça contra a parede se a dúvida é das

radicais. Nada resiste ao mundo físico: nem a

dogmática e nem a zetética. O mundo físico é um

excelente mestre, a valsa do planeta executável em

24 horas é a prova disso. Tudo que se executa com

perfeição é resultado de repetição. E se eu jogar da

mesma maneira um seixo morro abaixo um milhão

de vezes, se eu for preciso, terei um milhão de

resultados idênticos. No mundo profissional vemos

excelentes profissionais pela habitualidade com que

se empenham em dadas empreitadas.

Precisamente no meu caso, a minha atividade de

filósofo preconiza o pensamento e é tão ou mais

trabalhoso aparar as arestas do pensamento do

que abaular uma pedra de rio que vai se movendo

sentido nascente-foz. O mundo físico, portanto, é o

271

nosso grande mestre. Repetitio est mater

studiorum.

Biologia: a ideia de evolução dos organismos

Herbert Spencer, como veremos no próximo tópico,

foi um dos maiores teóricos do evolucionismo. O

evolucionismo científico, se é que se pode admitir

que haja alguma cientificidade na ideia de

evolução. As pernas e o pescoço compridos da

girafa chamaram a atenção de Larmarck. Lamarck

entendia que o esforço repetitivo de esticar o

pescoço faria o referido órgão alongar-se e que

este caractere adquirido seria transmitido às

gerações subsequentes. Darwin não admite que um

caractere adquirido possa ser transmitido

geneticamente aos pósteros. Deveras, se amputo

meu dedo isto não fará eu ter um filho sem dedo.

Mas o uso reiterado de alimentos pode sim mudar a

rota das coisas. Além do que, o uso de um recurso

de cobertura quase que total da população, como o

computador, bem provavelmente afeta nossa

272

genética. O mesmo eu digo em relação às drogas.

Para mim, ambos Lamarck e Darwin estão corretos.

Admito a transmissão aos descendentes de

caracteres adquiridos e admito a variabilidade

genética casada com a seletividade do meio.

Todavia, parece-me forçoso presumir o

aniquilamento físico de todos os portadores de

determinado gen inútil ou danoso para acreditar

que só assim ele é excluído da população. Mas o

que escrevi para a física escrevo para a biologia:

nem todos os caracteres adquiridos do mundo e

transmitidos aos descendentes, nenhuma loteria e

indeterminidade genética e nenhum critério

ambiental, ainda que juntos, dariam conta de

explicar a evolução das espécies. Porque cascos,

chifres, couraças, presas, penas, bicos, escamas,

veneno, eletricidade, espinhos, músculos, caudas e

inteligência adviriam de um único lugar por

diferenciação e complexificação? A evolução é um

plano. A evolução foi quista por Deus. a evolução

com todas as espécies que ela comporta é uma

orquestra e o Maestro é Deus. Claro que não

273

podemos minimizar e menosprezar o valor das

teorias biológicas. A favor dos argumentos de

Darwin está o hibridismo que advoga pela

relatividade do conceito de espécie e pela unidade

da ideia de vida. A engenharia genética vai mais

adiante: não apenas relativiza a espécie, mas

também o gênero. Daí a nomeclatura

“transgênicos”. É assim que colocando em

determinado gen de dada espécie de aranha na

sequência genética de caprino leiteiro podemos

aumentar a produção de leite e ver sinais como que

teias de aranha desenhadas na úbere da matriz.

Mendel foi o inaugurador da genética com suas

experiências com ervilhas. A Bíblia recomenda não

misturar espécies de animais e de plantas

diferentes. Sistematicamente desrespeitamos este

mandamento proibitivo. A Dolly é o insofismável

indício de que poderíamos reproduzir um indivíduo

a partir dele mesmo, burlando a reprodução

sexuada. O próprio Marx em O Capital fala da

desenvoltura da pecuária e da agronomia de seu

tempo em que o processo produtivo natural é

274

acelerado a fim de satisfazer um sistema

econômico que maximiza a velocidade da

circulação do capital. O ser humano pode e deve

acreditar na transcendência ao mesmo passo que

deve acolher a teoria da evolução dos organismos.

Como diria João Paulo II “a teoria da evolução é

mais que uma teoria”. E a grande prova disso são

os órgãos vestigiais como o cóxis, a barba, a

apêndice e os sisos no fundo da arcada dentária. O

homem enquanto organismo e mente, enquanto

portador de uma dupla natureza, animal e angelical,

não precisa ter vergonha de admitir que seu corpo

veio da natureza assim como a alma veio de Deus,

até porque Deus tem apreço pela sua criação, isto

é, pela natureza. As lideranças religiosas sabem

que a evolução dos organismos é uma verdade

incontornável, mas sabem que seus fieis, não estão

preparados para isto tudo. A ideia de que oxigênio,

hidrogênio, carbono e nitrogênio sob eletrólise,

pirólise e fotólise se torne aminoácido, o qual se

torna uma entidade unicelular, que por meiose

torna-se pluricelular, que passa a se tornar uma

275

protovida, que se desdobra em vegetal e animal, eu

esta vida animal passa a se tornar sexuada, e

agora já falo peixes pré-Históricos, que se

transmutam em anfíbios, que se tornam répteis,

que, por sua vez se tornam aves e mamíferos, que

alguns destes mamíferos se tornam primatas do

qual surgem aproximadamente seis ou sete

espécies humanas da qual só sobrevive o homo

sapiens sapiens subdividido em quatro raças:

branca, negra, amarela e vermelha, é, em linhas

gerais, a ideia da evolução dos organismos. A

teoria da evolução dos organismos é a chave

explicativa que desvenda toda a semelhança, a

diferença e o parentesco entre todas as espécies

de vida na Terra de modo que a taxonomia deixa

de ser uma mera técnica de classificação e passa a

ser na biologia aquilo que a tabela periódica é na

química. Por razões políticas se ridiculariza

Lombroso e se deprecia a frenologia. Ora, não é

pouco plausível a ideia de se associar o biótipo com

o perfil psicológico de um indivíduo. Racismo pode

e deve ser crime em todos os países civilizados do

276

mundo. O que não pode ser crime é a liberdade de

produzir ciência. São visíveis maiores índices de

genialidade entre brancos e judeus como grandes

esportistas entre afros. Cremos que a equação

massa cerebral versus massa corporal não pode

ser menosprezada. A capacidade cúbica craniana

predispõe intelectualmente seu portador assim

como ter dois metros e vinte predispõe para o

basquete. Mas nem todo bem dotado na estatura

consegue se identificar no esporte. Aliás, posso ter

uma voz possante e não gostar de cantar. Isto

significa que o fator genético em si mesmo é um

determinante, porém, não é um determinismo.

Estarei sujeito a uma condição orgânica sem que

ela me induza inexoravelmente a um determinado

rumo profissional, social ou existencial. Claro que a

soma de fatores gera tendências praticamente

irreversíveis. Assim é com o sujeito pernalta, magro

e musculoso que se aplica ao atletismo e assim é o

obeso que não se autodisciplina em sua dieta. Em

outro lugar escrevi que “a obesidade é o sucesso

do homem enquanto animal e seu fracasso

277

enquanto ser pensante”. E eu mesmo tenho um

pequeno fracasso nesta área. Mas pesquisas

recentes contraditam suas anteriores e

pesquisadores ingleses creem que um pequeno

sobrepeso é fator de longevidade, ao contrário do

que se imaginava. De certa forma toda

infraestrutura é prolongamento daqueles bens que

visam abrigar nosso organismo. Nisto se encaixa

obviamente vestuário, alimentação, habitação e

transporte e todo o resto que indiretamente se

possa imaginar. A cultura rompe com isto, pois nem

sempre satisfaz uma necessidade do corpo, mas do

intelecto enquanto algo paralelo, todavia, separado

do corpo. De maneira imediata nosso corpo pede

bebida, comida, micção, excreção, sono e sexo.

Mas para ele conseguir isto tudo precisa sair da

inércia. Os imperativos categóricos da civilização

nos compungem a lutar pelas mediações que nos

oportunizam alcançar estes escopos. Neste sentido

o clima rigoroso é fator chave desencadeante de

dispêndio de energia. Se a natureza não nos cobre,

não cobramos de nós mesmos. O judeu é a grande

278

prova da teoria da evolução dos organismos e dos

intelectos: judeu fraco não resiste, só o forte dribla

a dificuldade que lhe é imposta. O judeu torna-se

judeu pela superação. Sua história o obriga a ser

diligente, metódico, disciplinado e arrojado. É assim

que a seleção faz de um povo de escravos

marginalizado tornar-se elite e governo. Este é o

significado que se atribui ao aforismo de Bial “vá a

Paris mas sai antes de amolecer e vá a Londres e

retorna antes de endurecer”. O movimento

civilizacional entre deserto e oásis explicado por Ibn

Kaldun reside na mesma premissa. No livro do

Gênesis vemos que os patriarcas viviam quase mil

anos, do que Matusalém é o protótipo. Talvez os

patriarcas fossem uma raça diferente de humanos e

a paulatina queda da expectativa de vida se

explique pela hibridização entre os longevos e os

comuns. Quanto maior a mestiçagem com os

humanos menor a expectativa de vida. Precisamos

selecionar bem o que ingerimos se quisermos

aumentar bem nossa expectativa de vida. A

seleção natural fez de nós buscadores de calorias,

279

de proteína, de gordura e de glicose, em outras

palavras, fez de nós carnívoros e frugais. Mas par

que, afinal de contas, sairmos empaturrados da

churrascaria se só judiamos nosso organismo com

um material de difícil digestão e o grande esforço

que nos resta é a boleia hidráulica? Em relação à

glicose é ainda pior: como os açúcares das frutas

se faziam acompanhar de vitaminas buscávamos o

doce. Agora abusamos do açúcar refinado que nos

causa diabetes e exaure o pâncreas e de brinde

não traz consigo nenhuma vitamina sequer.

Polarizamos o cardápio entre o salgado e o doce.

Nossa língua está cada vez mais distante da

riqueza de valores da floresta. A humanidade em

breve despertará para o que voltamos as costas. A

própria carne ficou restrita a poucos animais

domésticos e não reproduzimos em cativeiro outros

animais exóticos. As maiores tecnologias do

planeta copiam a tecnologia natural dos

organismos. É assim que o sonar imita o morcego,

o infravermelho a coruja, o submarino os mamíferos

aquáticos, a armadura a tartaruga, o sensor de

280

calor e o ultrassom as cobras, o infrassom o

elefante, os helicópteros os holometábolos, a asa

delta a águia, e assim por diante. os pássaros pré-

Históricos tinham, a princípio, dois pares de asas e

só depois se tornaram dípteros. Nosso organismo é

frágil, nosso couro delicado, mandíbula fraca, baixa

audição e visão, força física restrita. Em

compensação desenvolvemos a linguagem,

caminhamos eretos, temos polegar opositor,

memória extraordinária, sobretudo para os que a

treinam e raciocínio lógico. Temos a vantagem de

sermos onívoros a ponto de comer quase tudo o

que se mexe, plantas, pescados, gafanhotos e

outros insetos, barro, sangue, leite, ovos, frutos,

tubérculos, sementes, dentre outros. O apetite

voraz que faz de nós a espécie dominante do

planeta é a barreira que faz a morte se precipitar

sobre o indivíduo. Investimos em variedade, sem

tomar o mesmo cuidado no que se refere à

qualidade. Engels assinala que o homem primitivo

antes de assentar comunidade fixa ao solo era um

consumidor de carniça. Como observam os

281

antropólogos, se você for a uma tribo indígena e

rejeitar degustar uma larva xilófaga ainda se

contorcendo, isto, do ponto de vista cultural é

cerimonial, é um insulto. É curioso como o corpo

ainda é um referencial para a escolha do par. Nem

vou me dedicar descrever o tipo de mulher que os

homens preferem, por desnecessário. Mas as

mulheres gostam, em geral, de homens altos,

magros, claros, porém, bronzeados e musculosos.

Não se dando conta de que este tipo de padrão de

homem não se traduz num sujeito abonado,

estabelecido, ajuizado, de prestígio político, culto

ou poderoso. Dizem que a infidelidade é genética,

mas isto torna o ser humano desculpável, porque,

como dissemos, a um limite a partir do qual nós

damos o comando a nós mesmos. Claro, se a

variabilidade existe, a tendência é não só que

continue existindo, mas que se torne cada vez

maior. A raça negra, por ser a mais antiga, é a que

possui a maior variabilidade dentre as demais

raças. O oriental é o de menor variabilidade, ainda

que se diga que a raça mais recente seja a

282

caucasiana. Isto significa que a miscigenação pode

fazer surgir uma nova raça. Isto está a acontecer no

Brasil, na Rússia, na China, na Índia e na Austrália.

Este rol é exemplificativo e não taxativo. A própria

Europa já não tema mesma composição de outrora.

Os autóctones apresentam baixa expansão

demográfica e de outro tanto a imigração aumenta

em que pese os esforços xenofóbicos. A mesma

França que se fecha aos estrangeiros ainda que

francófonos como os argelinos é a mesma França

da Legião Estrangeira. Darci Ribeiro e Terça-Feira

Lobsang Rampa falam da raça morena. E haverá

um dia em que o trânsito de pessoas será tão

intenso e o amálgama dos povos tão comum que a

genética de uma vez por todas se divorciará da

geografia. A expectativa de vida de um organismo

condiciona o espaço social que ele irá ocupar. Sim,

isto se ele se manter ativo o tempo todo. Todos os

governos do mundo são gerontocráticos o que

confirma o que estou a falar. Interessante também

é que questões da mais alta indagação e da mais

alta importância estão atreladas à duração do

283

organismo. Sim, porque qualquer que seja a

religião há um uníssono de que esta vida no corpo

é teste para sermos aprovados e galgarmos um

espaço especial, um galardão no mundo espiritual.

Como um episódio relativamente banal, a falência

de um organismo biofisioquímico pode percutir em

esfera de maior brio? De um lado tem-se a

afirmação científica de que a miscigenação é boa

por estar em conformidade com a lógica da

reprodução sexuada e, de outro lado, vemos uma

sociedade milenar como a egípcia praticando

durante séculos e séculos incesto e mesmo as

monarquias europeias durante toda Idade Média

casavam e davam-se em casamento entre si. O

Projeto Genoma um dia será estendido a toda

humanidade e num chip instalado em nosso próprio

corpo uma leitora poderá saber quem somos nós

do ponto de vista genético. Isto, acoplado à

sociedade de vigilância total dará vez à sociedade

de supercontrole como queriam Bentham e John

Stuart Mill com seu panóptico. As cartas estarão

todas marcadas desde o começo e a previsibilidade

284

será quase total. Não sabemos até que ponto vale

à pena uma eugenia programada, pois tão

importante quanto satisfazer demandas é gerar

demandas. O que seria dos magistrados que

ocupam a titularidade em varas criminais,

promotores e advogados? O setor que mais

emprega dentre vários outros é o setor público.

Ora, a máquina burocrática estatal só se justifica

diante de demandas.

Evolucionismo: a ideia de evolução de um modo em

geral

O evolucionismo nasce dentro da filosofia.

Aristóteles, por exemplo, fala que há mudança e

evolução é essencialmente mudança, porém, nega

a evolução. Sim, é isto mesmo. Porque o

movimento de um ser para o Estagirita está

condicionado à sua essência. A essência de cada

ser é imutável como as ideias platônicas. Parece

que o primeiro grande evolucionista foi Hegel.

Porque para Hegel não só a criação, mas o próprio

285

Deus está em constante evolução. Esta ideia já

estava contida de certa forma em Spinoza. A ideia

de evolução surge no seio da filosofia e só depois é

estendida às ciências. Como a ideia vingou muito

bem na biologia, principalmente através de Darwin,

houve uma biologização das demais ciências. É

assim que a sociologia e a antropologia passam a

falar em sociedades primitivas e sociedades

desenvolvidas. Boaz, depois, pregaria o relativismo

cultural na antropologia. Em economia e em política

se fala em países de primeiro, segundo e terceiro

mundos. Comte classificaria os estágios das

mentalidades em religioso ou teológico, metafísico

ou filosófico, e positivo ou científico. Martin

Heidegger falaria das três etapas da ascensão

moral do ser humano: estético, moral e religioso.

Nietzsche preconiza a fase do camelo, do leão e do

menino livre. O materialismo dialético explica a

evolução do mundo natural e o materialismo

histórico a evolução do mundo social. Teilhard de

Chardin falaria em cosmogênese, biogênese,

noogênese e cristogênese. Alan Kardec fala da

286

evolução dos espíritos em sete etapas em que o

estágio final, alcançada pela metempsicose seria o

espírito luz. Para Hegel a evolução ocorre pela

alienação e pelo resgate entre tese, antítese e

síntese, em que o Eu Absoluto através da dialética

toma cada vez mais liberdade e cada vez mais

consciência. As ciências da religião traçam uma

linha evolutiva como animismo, politeísmo e

manismo, totemismo, adoração à entidade do mal,

adoração à entidade do bem, Deus Guerra, Deus

amor. Assim como a paleontologia mostra a

evolução dos espécimes animais e vegetais, a

arqueologia mostra a evolução da cultura humana e

hoje é muito apreciada a arqueologia industrial. Em

tudo é possível verificar evolução, inclusive nos

costumes, se é que a mudança comportamental

das últimas décadas pode ser considerada uma

evolução. Isto traz para dentro do debate uma outra

ideia, a de involução. Involução em todos os

sentidos, orgânica e até cultural. Porque somos tão

vacinados e tão medicados que o fraco não mais

sucumbe ao ambiente. É cultural porque filosófica e

287

politicamente está tão difundida a ideia de

tolerância para a qual nada pode ser rechaçado ou

aniquilado. Inexistem critérios de excludência ou

qualquer seletividade. Sartre não se debruçou

sobre o tema da evolução, mas disse que a

existência precede a essência. Logo, meu nível de

evolução não ficaria atado a uma essência fixa.

Diferentes das rationes seminales de Agostinho

para as quais tudo desde o princípio foi plantado

por Deus na matéria. Temos visto que em parte a

evolução é aprimoramento do velho e é, também,

algo totalmente novo. É assim que o virabrequim de

uma carro de fórmula um tem um parentesco com

uma engrenagem de trem que, grosso modo,

trabalha da mesma maneira. A NASA tem se

empenhado a algum tempo em desenvolver

engrenagens não circulares. A evolução é acúmulo

de experiência. A filosofia é uma das maiores

mestras em condensar experiência. Evolução

traduz uma leitura historiológica de ascensão linear

e clareamento de tudo pela razão. A evolução é fria

e tenaz. Ao contrário do romantismo que é bucólico,

288

poético e saudosista. A evolução é como a troca

constante do IP de um microcomputador. Certas

formigas são habitadas em seus corpos por fungos.

Por milhões de anos o fungo se modifica para

resistir ao sistema imunológico da formiga e a

imunidade da formiga e altera para evitar ser

vitimada pelo fungo. E todos ganham com isso

conquanto estes fungos sejam imprescindíveis para

a fermentação das folhas de estoque no interior do

ninho. A evolução é feita de tendências. E toda

tendência é volante, podendo adquirir mobilidade

para este ou para aquele lado. É complicado falar

em evolução intelectual. Porque não é de todo

necessariamente correto dizer que as ideias mais

recentes são mais sofisticadas do que as mais

distantes no tempo. A contemporaneidade é a

grande prova disso, pois há espaço para todas as

tendências. Já foi sinal de sofisticação dizer-se

socialista, mas hoje não há consenso de que a

visão de pensamento crítico seja mais adequada do

que a postura liberal burguesa. É assim que hoje se

percebe que nem em todos os quesitos a geração y

289

é mais sofisticada do que a x. A própria juventude

querendo sobrepujar os pais se faz adepta de

tribalismos que podem ser classificados como

barbárie e primitividade. O comportamento

individual e coletivo dos menos letrados e mais

pobres é mais dinâmico do que dos mais ricos e

mais cultos. Embora os primeiros comumente

sejam massa de manobra dos últimos. O

ingrediente chave da evolução é a morte, uma das

maiores, senão a maior, invenção da vida. Porque o

velho às vezes engessa de tal forma o novo, que

ele precisa morrer para que o consequente nasça.

Dizemos que a Língua Portuguesa é um Latim

evoluído, mas costumamos dizer que o crioulo de

Guiné-Bissau é uma infantilização linguística.

Todavia, não vejo nativo racional para classificar

algo como avanço ou retrocesso senão a

prosperidade dos praticantes de um idioma. Já ouvi

um descendente de alemães dizer que o holandês

é um alemão mal falado. Ora, por que não posso

dizer que o alemão é um holandês mal falado

senão levando em consideração o prestígio destas

290

culturas? A xícara vem do Oriente e lá ela não tinha

alça. Ou seja, eu teria que esperar a cerâmica

esfriar para tocar o recipiente com a ponta dos

dedos. Mas o que os ocidentais fizemos?

Colocamos uma alça para poder pegar a xícara

ainda quente sem se pensar no preço que nosso

sistema digestivo teria e tem que pagar por isso.

Não temos a paciência de esperar o resfriamento. A

evolução é da espécie justamente porque dentro da

espécie e, falamos agora não só de biologia, há

uma complementariedade. Embora a personalidade

marqueteira e exploradora ou a receptiva acrítica

individualmente sejam improdutivas, elas cooperam

com o contexto. Existe na natureza e na sociedade

uma complementariedade entre produtivos e

improdutivos. Diria, aliás, que os cargos mais

importantes da sociedade, em sua maioria, são

improdutivos. A tabela de Quesnay mostra a

movimentação de riqueza entre estas classes. Em

momentos diferentes de nossas vidas percebemos

que ora precisamos de alguém bronco porém

eficiente para resolver um problema e, noutra

291

ocasião, de alguém de conversa mole mas de bom

coração que nos dê um consolo. Escrevo livros,

dentre infinitos outros motivos, porque hoje em dia

se vive a ditadura dos extrovertidos, mas eles

evolução alguma teriam galgado se não fosse a

técnica, a ciência e o conhecimento dos

introvertidos. Os introvertidos precisam colocar os

extrovertidos no seu devido lugar. Difícil é a vida de

um analítico no Brasil. Sou tão repudiado em minha

própria terra como um brasileiro o é na Europa. E a

causa da repulsa nem é o biótipo, pois nos trópicos

há gente de todas as cores, mas a mentalidade, a

postura intelectual e os caracteres psicológicos.

Muitas das vezes, portanto, de nada adianta ter

várias vantagens tipológicas se se está inserto no

ambiente errado. A ideia de evolução reflete as

mudanças na cultura como a Renascença, a

Reforma Protestante e a Revolução Francesa que

faz da sociedade medieval saturada e estagnada

servir de adubo para a burguesia nascente para

quem o trabalho livre torna-se um valor. Enquanto

para os medievais o tempo presente não passava

292

de uma dispensação de menor importância quando

comparada com a volta triunfante de Cristo, os

modernos decidiram antecipar os deleites da vida

espiritual já para este mundo, que deixa de ser um

vale de lágrimas para ser um lugar de ação. O

progresso material que fizemos na Revolução

Industrial foi projetado para todas as áreas de

atividade humana, inclusive para o conhecimento.

Aliás, o conhecimento no século XIX entra como

causa e consequência a um só tempo. Em tempos

de rápidas transformações sociais é impossível

furtar-se à ideia de evolução. O conhecimento

passa a ser descrição de processos evolutivos. A

geologia é essencialmente isto. Hegel foi genial ao

criar o conceito de linha nodal. A China dos nossos

dias é grande prova de que o acúmulo de

mudanças quantitativas se transmuta em acúmulo

de mudanças qualitativas. A evolução que faremos

daqui para frente será consequência das leis

naturais. Dormimos menos por causa da energia

artificial e transamos em qualquer dia e horário

desde que brote o desejo. Quando trogloditas a

293

fêmea só aquiescia ao coito quando nos dias

férteis. O cristianismo é fator de evolução por causa

disto: recomenda que amemos os que não nos são

desagradáveis e ensina a perdoar as ofensas. O

que a natureza poderia ter feito em evolução por

nós, em linhas gerais, ela já fez. A evolução agora

não passa mais pela natureza, mas pela sua

negação. Porque a natureza nos impõe fuga ou

revide na agressão, mas o traço de maturidade

evolutiva consiste em manter a cabeça fria nestes

momentos. A natureza nos empurra para a

satisfação enquanto que o suportar a privação é

fator determinante de sucesso. Ser evoluído é ter a

capacidade de ajudar quando o ajudante mesmo

ele deveria ser receptor de ajuda. Ser evoluído é

dar para os outros o que nós não temos para nós

mesmos. Ser líder é ter esse sobrenatural, esse

paranormal, de manter a calma quando todos já

perderam a paciência. O não conhecimento é tão

importante quanto o conhecimento para a evolução.

Porque a evolução requer que erremos. Porque

sempre erramos de um modo novo e só por isso

294

encontramos soluções. As próprias artes marciais

não evoluiriam se não fossem os neófitos. Um faixa

preta prefere lutar com um faixa preta a ter de lutar

com um faixa branca. Porque o faixa branca pode

não ganhar a luta, mas movimentando-se de modo

estropiado dá serviço e machuca seu oponente. O

desafio do mundo atual é dar conta de absorver a

evolução tecnológica, cultural e social sem perder

de vista o sentido disto tudo. Porque somos tão

cabidos no fazer e na operacionalidade que

perdemos o traquejo daquilo que não nos cobra

procedurística ou método, mas conversão,

convivência e partilhamento existencial. Está tão

difícil para o sujeito expressar-se dentro de sua

própria casa com sua família em que a televisão

para mais ligada do que desligada, que a religião

acaba sendo o nicho onde temos nossa família por

opção e lá sim podemos nos abrir. Do ponto de

vista relacional involuímos. A vantagem de

levarmos o outro menos a sério e a própria vida

menos a sério é que já não temos a predisposição

de esfolarmos nosso corpo em nome disto ou

295

daquilo. O indivíduo passa a ser mais do que toda

sua gama de relacionamentos. A decepção de

todas as pessoas que com ele se relacionam não

chega a ser motivo de decisão radicais. Isto denota

grande evolução. Porque um ser evoluído é

fundamento de si próprio. Só o pouco ou menos

evoluído precisa se escorar em terceiros. Estamos

vivendo um tempo em que não temos mais uma

ideia acerca de determinada pessoa simplesmente

pelo partido político que ela integra ou a religião

que ela professa. Não se acredita mais que

determinado ponto de vista seja sinônimo de

superioridade intelectual de quem ostenta aquele

ponto de vista. Na esquerda e na direita há

intelectuais e ignorantes da mesma forma que

encontro bons e maus homens entre crentes e

ateus. A criança deixa de ser um anjo ou um

animalzinho cruel pelo simples fato de criança ser.

A nossa época será conhecida pelas posteriores

por desconstruir as ideias preconcebidas. Raça já

não mais é referencial situacional de que posição o

indivíduo ocupa na comunidade, pois vemos negros

296

ministros e brancos pobres. Aliás, não é só o negro

que mora na periferia urbana. A evolução é um a

priori. Porque nascemos dentro de processos

evolutivos que não escolhemos. E somos tão

condicionados a isto que não conseguimos

vislumbrar um estilo de vida menos dinâmico. Dar

continuidade aos processos evolutivos nos dias de

hoje não é nada de extraordinário, mas algo

natural. Aliás, costumo dizer que em nossa

sociedade precisamos pensar e fazer o

extraordinário para termos o básico. Nesse sentido,

a dificultação para termos o básico é fator de

evolução. Toda vez que somos forçados a

fazermos um espaço maior para obtermos as

mesmas coisas que antes tínhamos com menos

esforço, somos obrigados a evoluir. É incrível como

que por vezes somos embaraçados ao máximo

para levarmos a cabo algo simplíssimo de se fazer.

Somos desafiados cada vez mais a fazermos um

número maior de coisas num dado tempo e o que

mais nos falta é tempo. Como diria Benjamin

Franklin “tempo é dinheiro”. Diferente é a

297

mentalidade de dois amigos índios que ajustam

pescar no início da tarde e quando o segundo se

dirige ao primeiro o encontra dormindo e se põe a

dormir da mesma forma esperando que o colega

desperte espontaneamente. A evolução exige o

encarceramento do ser em processo evolutivo, mas

ao fim lhe premia com liberdade. Se, portanto, a

evolução faz algum sentido é pela liberdade que ela

nos outorga. Como desde que os gregos passaram

a perquirir pela physis estamos teorizando, deveria

haver uma liberdade mais ampla de emitir opiniões.

Não digo, contudo, que a liberdade de ação e

comportamento deva ser tão grande como a

liberdade de opinião. Porque toda vez que

externamos uma ideia ajudamos nossos consortes

a amadurecer e, se tivermos sorte, poderemos

obter geniais feedbacks de nossos circundantes e

desta maneira também nós evoluirmos. A evolução

é tensão. Níveis mais altos de evolução requerem

níveis maiores de resiliência para darem conta de

maiores tensões. Quando o ser cabido dentro da

tensão não consegue absorver toda ela, ele muda

298

de rota ou sucumbe e de uma ou de outra maneira

deixa um espaço desocupado para um forte ocupá-

lo. E por falar em força, não é nem o mais forte,

nem o mais rápido e nem o mais inteligente que

prospera, mas o mais adaptável.

Antropologia: a ideia de homem

Na sua obra “O Desprezo do Mundo” o papa

Inocêncio III refere-se ao homem da seguinte

forma: “Anda pesquisando ervas e árvores; estas,

porém, produzem flores, folhas e frutas, e tu

produzes de ti; lêndeas, piolhos e vermes; elas

lançam de seu interior azeite, vinho e bálsamo, e tu

do teu corpo, saliva, urina, excrementos”. Diria que

a antropologia teológica católica ainda há um certo

otimismo, mas para o protestantismo o pecado

adâmico deixou a natureza humana totalmente

corrompida. O homem é fruto de processos

paralelos naturais e espirituais. O homem é um

conceito e como conceito está posto como um

arranjo no interior da metanarrativa do sujeito

299

pensante. Ou seja, o homem é o que ele pensa de

si mesmo enquanto que todas as outras coisas são

aquilo que o homem pensa a respeito delas. O

homem é lúdico, é portador de linguagem, é

religioso, é afetivo, é lógico e racional, é o lobo de

si mesmo, como querem Plauto e Hobbes. Platão

disse que o homem é um bípede sem penas e

Voltaire disse que ele é um animal preto que possui

lã sobre a cabeça e é mais fraco do que outros

animais que têm o mesmo tamanho que ele. Para

Maquiavel o homem é pragmático e antiético. Para

Teilhard de Chardin ele é um fenômeno. Para

Heidegger um dasein. Para Hegel, uma pequena

tese cabida dentro do Eu Absoluto. Para Descartes

o homem é a efêmera certeza do cogito, hic et

nunc. Para Darwin ele é um superprimata. Para

Freud, um ser sexuado. Para Nietzsche, um animal

doente. Para Sartre ele é um inferno. Para Platão e

Agostinho o homem é um ser dividido entre dois

mundos. Para Tomás de Aquino o homem é uma

substância. Para os economistas ele é um ser que

busca satisfazer-se através de valores de uso que

300

possuem valor de troca. Para os atomistas o home

é um ajuntamento de átomos. Para Pitágoras o

homem é número. Para a química ele é um

composto de carbono. Para a física ele é um corpo.

Para a biologia ele é um organismo que nasce,

cresce, reproduz-se e morre. Para a antropologia

cultural ele é um ser étnico. Para a psicologia ele é

um plexo de conhecimento, afeto e sexualidade.

Para as Sagradas Escrituras ele é um ser inferior

aos anjos, porém, imagem e semelhança de Deus.

para o budismo ele é um ser oprimido pelo desejo

que oscila entre o desejo e o tédio. Para o

hinduísmo ele é uma fagulha divina. Essa é a

perspectiva dos panteísmos. Para o direito ele é

sujeito de direitos e deveres. Para a sociologia ele é

um ator social. Para Vico ele é um ser histórico.

Para a pedagogia ele é um ser em formação. para

Bubber ele é um tu e não um isso. Para Levinas ele

é um alter ego. Para um psicopata o outro é degrau

e mediação descartável. Para a medicina legal ele

é objeto de estudo e paciente. Para o comerciante

ele é cliente. Para o profissional liberal ela é

301

recebedor de prestação de serviços. Para o

cooperativista ele é colaborador. Para Protágoras

ele é a medida de todas as coisas. Para o líder

religioso ele é fiel. Para os meios de comunicação

social ele é audiência. Para o sistema ele é uma

peça. Para Adler ele é um ser sedento de poder.

Para Carnegie um ser sensível, ilógico e

inconsequente. Para John Stuart Mill ele é um ser

livre. Para Foucault ele é um ser vigiado. Para Jung

ele é um ser que partilha arquétipos coletivos. Para

a teoria quântica ele é o elo entre dois mundos, o

do nano e o do macro. Para a cientologia ele é um

ser ferido que precisa buscar o estado clean. Para

Kardec ele é um ser cármico. Para Eckhardt ele é

um ser místico. Para pontes de Miranda um ser que

consegue corrigir-se. Para o adventismo ele é um

ser que aguarda a segunda vinda de Cristo à Terra.

para a ufologia ele é um terráqueo. Para o rufião

ele é mercadoria e objeto de deleite. Para Fídias

Teles ele é boêmio e angustiado. Para Mariano

Soltys ele é panlógico. Ele é ainda um ser técnico.

Ele é artista. Ele é relacional e, como quer Ortega y

302

Gasset, ele é ele mesmo e os seus sapatos, ou

seja, circunstancial. Para Unamuno ele é um ser

que se humaniza pelo sofrimento. Para Kafka ele é

insignificante como um inseto. Para Schelling ele

cria a realidade, para Fichte ele é produto da

realidade. Para Feuerbach ele é o que ele come.

Para Reclus ele é produto da geografia. Para a

ecologia ele é um fator desencadeante de

equilíbrio. Para Malthus ele é uma raça que se

multiplica mais rapidamente do que os recursos da

Terra. Para Pascal ele é um caniço pensante. Para

Lacan nós somos o nosso inconsciente. Para o

administrador o homem é um recurso humano.

Para o governo ele é um administrado. Para a

monarquia ele é súdito. Sob diversas óticas,

religiosa, filosófica, econômica e política, ele é um

ônus. Para o computador ele é um dono burro. Para

a literatura ele é matéria-prima temática. Para o

cético é um ser incognoscível. Para Croce ele é

consciência. Para Wittgenstein ele é um ser do qual

não se pode falar. Para Rousseau ele é um ser

socialmente corrompido mas, a princípio bom. Para

303

a seicho-no-ie cada um é aquilo que pensa. Para

Pecotche ele é um ser em evolução mental. Para

Habermas ele é um ser discursivo, comunicativo e

ético. Aristóteles ainda diz que ele é um animal

gregário. Muitas outras definições de homem

poderíamos dar. Para a oumperiforalogia ele é um

ser intelectual, um metanarrador. O homem é

aquele que continuamente está a pontuar questões

em seu intelecto trazendo dos presumidos e

subentendidos premissas e corolários fixando-os no

reino dos explícitos e da consciência forte. Para

Franklin ele é um construtor de ferramentas. Ou

seja, podemos definir o homem por aquilo que ele

faz e uma das definições de homem é “homo

faber”. O homem é um fenômeno tão amplo e tão

complexo que somos incapazes de num apertado

conceito fazer ele restar cabido lá dentro. O homem

tem uma longa história: uma história de resultado

de processos e outra de promotor de processos.

Ele é o ser que coloca em marcha e sofre as

consequências dos processos desencadeados por

ele próprio. Como diria Marx em O 18 Brumário de

304

Luís Bonaparte “cada vez mais os vivos são

comandados pelos mortos”. Sim, porque aquilo que

já foi culturalmente construído já é tão imenso que

condiciona pesadamente o que vamos construir

doravante. O homem se tornou pujante com a

agricultura, deixa de ficar sujeito aos reveses da

caça e do nomadismo. Depois passa a ser

fabricante e a terceira onda, para usar uma

expressão de Toffler, é a informática. A informática

é a exponenciação da escrita no sentido de

armazenar, reproduzir e transmitir informações. O

domínio do fogo e da roda também foram muito

importantes. O homem fuma não só para instilar

fumaça prazenteira nos pulmões, mas porque se

maravilha em manipular algo incandescente. A

tecnologia (da roda) é a da carroça, to trem, do

automóvel, do avião, da máquina de parte de tudo

aquilo que se movimenta. É a roda dos geradores

da hidrelétrica que faz girar uma série de outras

rodas. O homem descobriu no Éden que estava nu

e produz não apenas roupa, mas ainda moda. Tudo

passa a ser estilo de vida, até mesmo a

305

indumentária que usamos. Pecamos e somos

condenados a trabalhar, comer nosso pão com o

suor de nosso rosto, e um dos primeiros trabalhos é

confeccionar o vestuário. A folha de figueira

também simboliza o avental. Como diz o brocardo

popular “quem não vive para servir não serve para

viver”. O homem hominiza e antropologiza tudo que

está à sua volta. Ele adora projetar. O homem é

imaginativo. Ele imagina com tanta convicção que

acredita em suas ilusões. É por isso mesmo que

acaba acontecendo aquilo que tanto desejamos. O

homem, além de Deus, é o único que tem a

capacidade de prometer e jurar, justamente porque

de outra feita tem a capacidade de ser inadimplente

e mentiroso. O ser humano é um ser que crê. Ao

nosso alcance não está decidir crer ou não crer,

mas crer em quê. Para Aristóteles a essência do

homem é sua alma. Questão controvertida é se o

homem tem ou não uma alma e se ela é imortal. A

filosofia da mente tem se manifestado de que a

mente é diferente do cérebro; mas não sabemos se

essa mente é nossa alma. Ao que parece, sim. A

306

alma é uma unidade energética que habita o corpo

humano e que se retira do mesmo quando ele vai à

falência, característica de tudo o que é material,

que tem prazo de validade. Todavia, a alma sendo

energia é imortal porque a energia é indestrutível. A

alma está para o corpo como o magnetismo está

para o corpo imantado e a corrente elétrica para o

duto condutor. Foi assim que Jesus devolveu

mobilidade ao corpo de Lázaro determinando que o

hálito vital para ele retornasse. Temos e somos um

corpo, mas este corpo não nos pertence, é só

emprestado, a vida não nos pertence. Tudo nos é

dado: a vida, o corpo, os pais, os amigos, a

formação, a profissão, nossos bens, somos postos

como administradores disto tudo e quando sairmos

do mundo empírico teremos de prestar contas disso

tudo. À pergunta o que ou quem é o homem

respondemos que ele é alguém que produz

conhecimento-ideologia. A metanarrativa não é só

conhecimento de mundo. Porque ela supõe e

pospõe categorias que se admitem, mas que não

se demonstram. E o conhecimento é esse discurso

307

que acontece a partir dele mesmo e só se

ultrapassa quanto às consequências, mas não

guarda a menor chance de justificativa teórica. A

episteme grega só se justifica na metafísica de

Aristóteles e talvez nem ali. Pois na sua perspectiva

política a escravidão é uma categoria tão natural

quanto ato e potência. Não existe conhecimento

não ideológico. Porque ainda que a matemática,

como se costuma dizer, em si mesma seja objetiva,

o certo é que também os números são

manipuláveis. Não há conhecimento

desinteressado. A própria filosofia é criação de

conceitos a partir de interesses. A própria teoria

econômica é ciência de primeiro escalão para

socialistas e ideologia para os liberais. O homem é

ideólogo. É criador de disciplinas, ciências e

conhecimentos. Todo conhecimento é ideologia e

quanto mais qualificado o conhecimento, mais

ideologizado. Feliz é Platão com seu mito da

caverna. O conhecimento é esse reflexo na parede

de um lado iluminado pelo sol e soprado pelo vento

que projeta ebulição de luzes e sombras ao que

308

costumamos chamar de fenômeno. O nosso

conhecimento dista tanto da realidade quanto as

sombras distam da realidade física opaca. O

homem é um ser que crê. Enquanto o liderado crê o

líder é o que se faz crer. Mas o líder é o que mais

crê. Ele crê em si mesmo e sobretudo nos

princípios que ele professa. Qualquer conjunto de

princípios que não seja muito absurdo funciona na

prática se for crido, vivido e aplicado. O homem é

um ser que representa e pensa a representação.

Pensar é embaralhar e combinar figuras. É claro

que a arte do pensamento é abstrata quando o

metanarrador é perito e profissional. O pensamento

é o que norteia a ação. Quem muito age e não

separa tempo para o pensamento precisa ser

pensado por outrem assim como o pensador é

trabalhado por aqueles a quem dirige seu discurso.

Os povos mais ativos do mundo são os que mais

pensam. A inércia da ação apenas é reflexo da

inércia do pensamento. O pensamento nasce do

pensamento e o pensamento equaciona a

problematização. Diria que a inteligência é o

309

resultado de circunstâncias férreas e ígneas. Não

há genialidade sem tensão. É bem verdade que

muitos são os opressos, mas nem tantos são os

gênios. Isto mostra apenas que as circunstâncias

são importantes, mas é necessário que haja algum

tipo de predisposição interna, seja ela genética,

espiritual ou ambas. A política e a religião são

ideologias determinantes quando do que se trata é

organização social e teleologismo. Política e

religião são metanarrativas. É curioso que haja um

curso para a política, seja ele, Ciências Políticas e

outro para a religião, seja ele, Ciências da religião.

Mas não há um curso que trate ambas as duas

coisas a partir daquilo que as unem num único

gênero, Ciências das Metanarrativas. Sim, porque

deveria haver uma disciplina diferente da Teoria da

Literatura, muito embora contando com a ajuda

dela, e, a nosso ver, este papel cabe a filosofia. Se

temos um objeto de estudo sem disciplina e uma

disciplina que perdeu o objeto de estudo, nada

melhor do que casar o noivo com a noiva. Estudar

metanarrativa é como estudar o fruto para conhecer

310

a árvore. No evangelho está escrito que é pelo fruto

que se conhece a árvore. Se se quer conhecer o

homem, é preciso estudar o que ele produz, é pela

metanarrativa que se conhece o metanarrador. A

epistemologia foi uma extraordinária percepção do

homem de si mesmo. Mas ela não está dando

conta de explicar o conhecimento. É assim que se

deve criar uma nova disciplina, como queremos, ou

expandir os debates realizados pelos

epistemólogos. Diria que os epistemólogos estão

embebidos da dúvida metódica de Cartésio.

Deveríamos por alguns instantes deixar de dizer o

que não podemos conhecer, ou em não sendo

nosso pensamento conhecimento, dizer o que vem

as ser nosso pensamento. O homem é pensamento

e se existem pensamentos presumidos e outros

expressos isso se deve também à velocidade do

pensamento. Quando estou a enxugar uma xícara e

ela despenca da minha mão e eu consigo resgatá-

la ainda antes que chegue ao chão antes que

houvesse um golpe de vista e uma mão ágil, houve

um pensamento. Diferente disso é o pensamento

311

profundo que se protrai no tempo porque exige uma

compreensão profunda. Além disso, as conexões

profundas são revisitadas periodicamente. Outra

questão importante é a do nada mental. Nas

mulheres se vê isto com pouca frequência, mas

certos homens praticam todo dia. O homem sente

necessidade de se desligar. De tirar um tempo para

nada fazer e deixar a cabeça ocupada com

absolutamente nada. Na verdade esta é uma

técnica de acomodação de informações, o que em

computação é chamado de desfragmentação.

Quem nunca tomou um chimarrão sozinho para se

introspectar e amainar a agitação mental em busca

de equilíbrio. A mente é como uma câmara de

equilíbrio. A mente é como uma câmara hermética

em que pululam partículas: as partículas não

podem nem estar aceleradas demais e nem em

estado inercial. O ritmo da mente é apenas um dos

ritmos dentro de um todo maior que comporta maior

número de execuções. Nossa inteligência é, em

linhas gerais, fazer conexões. E aí fica a pergunta:

porque não fazemos mais conexões se é

312

exatamente isto o que nos cobra nossa vida pós-

moderna? Primeiro porque o próprio organismo

impôs uma barreira a si mesmo como forma de não

abalar a comunidade de indivíduos. Porque se

houver jovens intelectualmente muito arrojados

sobrepujarão os mais velhos empoderados, o que

acarretará instabilidade social. E a outra razão é

que se o cérebro se permite conectar em maior

velocidade, logo começará a fazer conexões

clandestinas, ou seja, errôneas. Enquanto que a

natureza é o reino das conexões inconscientes o

homem é o reino das conexões conscientes. E o

fato de o homem estar saindo do obscurantismo

para as luzes apenas revela que ele está saindo da

natureza para adentrar em si mesmo, que é uma

antítese ao mundo natural. O homem se opõe

através do seu polegar opositor à natureza e a

postura e a engenharia corporal assuma a forma de

oposição intelectual. O homem produz lixo e

consome energia. Faltam recursos energéticos e

abunda o lixo. A saída é converter lixo em energia.

A grande inteligência do homem será a logística

313

reversa. Ou seja, precisamos colocar nossa

inteligência para algo que é bem mais do que a

logística simples. Inteligência é essencialmente

procedimento.

História: a ideia de narração de tudo

De certo ponto de vista sou obrigado a concordar

com o ilustre historiador José Kormann: “a História

é a mais difícil de todas as ciências”. Abraham

Lincolm foi alvejado diante de 1.500 pessoas num

anfiteatro e diante da polícia não foi possível reunir

sequer duas versões em linhas gerais compatíveis.

Marx e Engels escreveram na Ideologia Alemã,

mas depois riscaram por ser demasiado polêmica a

frase “não conhecemos outra ciência senão a

História”. História é narração. O primeiro grande

historiador sistemático foi Heródoto que entendia

que a História é pedagógica e descreveu o

desenrolar da Guerra entre Atenas e Esparta. Os

gregos e romanos foram grandes historiadores e os

judeus também dentre os quais destacamos o

314

nome de Flávio Josefo. Uma vez que a História

começa com a invenção da escrita há uns 6.000

anos, nunca é demais afirmar que as culturas mais

bem servidas de historiadores são as masoréticas.

As oralidade esbarra na capacidade limitada de

memorização do intelecto humano. Alguns autores

narram fragmentos de História e outros mais

ousados pretendem dar conta do fenômeno como

um todo como Cesare Cantu com seu Tratado de

História Universal. A humanidade enquanto

civilização conta com uns 8.000 anos de idade

embora em Jerusalém tenham sido encontrados

túmulos de aproximadamente 70.000 anos. A

História do homem começa na Mesopotâmia, no

Mediterrâneo, zona de confluência daquilo que

mais tarde seriam três continentes, Europa, Ásia e

África. Na região há pouco referida tribos das mais

diversas origens étnicas se miscigenariam do ponto

de vista genético, cultural, linguístico e religioso. Ali

começam as primeiras cidades e os primeiros

ordenamentos jurídicos. Da convivialidade brota o

regramento. Em diferentes lugares do mundo se

315

veem focos de civilização: no Japão, na China, na

América Central e Norte da América Latina, no

Oriente Médio, na Península Itálica, na Grécia e no

Egito. O Egito, depois de milhares de anos como

civilização de ponta do planeta perde seu posto

para a Grécia que se apropria da tradição órfica e,

mais tarde, os intelectuais gregos, dentre os quais

destacaríamos Tales de Mileto, Pitágoras,

Arquimedes, Hipócrates, Sócrates, Platão,

Aristóteles, Eróstrato, Ésquilo, dentre tantos outros

senão assimilados pela cultura militarista romana.

Os romanos eram grandes juristas. Entre eles

vemos grandes oradores e literatos, dentre os quais

destacamos Cícero, chamado por Júlio César de

“ornamento da cultura latina”, mas eram de

medianos para fracos em filosofia. Marco Aurélio

imperador foi destaque do estoicismo. O Império

Romano foi um sistema civilizacional de expansão

territorial. Essa expansão territorial levava adiante a

língua latina, estradas, obra de infraestrutura,

tornava os ricos cada vez mais ricos, gerava

inflação e fazia do Imperador Romano um pop star,

316

adorado como deus. O Império Romano Ocidental

em 476 d. C. já cristianizado pro Constantino é

invadido e começa a época medieval de

esfacelamento e feudalização. O feudo é o grande

Império Romano sem fronteiras agora cindido em

pequenas unidades políticas autônomas. Em 1453

é derrubado pelos turcos o Império Romano

Oriental de língua grega e começa a época

Moderna. A transição da Idade Média para a Idade

Moderna traduz muita coisa. A desbarbarização dos

bárbaros e a desnecessidade de muros e valas em

torno das unidades agrícolas e o desenvolvimento

das forças produtivas. No final da Idade Média há o

desenvolvimento da manufatura e o aparecimento

dos burgos. O feudo que antes representava

segurança agora é um óbice à desenvoltura da

economia. É criado o Estado Nacional que cria a

ideia de nação assentada num vernáculo comum,

geralmente o dialeto mais empregado. O

Renascimento resgata o espírito filosófico grego

depois de séculos de vivência de um cristianismo

bom em si, mas vivido por gente tosca. A América é

317

descoberta. Na Alemanha Lutero diz que os

cristianismo romano é apenas um dos modos de se

viver cristianismo e nem é o melhor. Traduz a

vulgata de Jerônimo para o alemão. Na França a

monarquia é deposta e substituída em 1789 pela

República, sistema democrático e político que

preconiza as liberdades individuais. No século XIX

na Inglaterra surge o capitalismo industrial fazendo-

se prevalecer sobre o capitalismo comercial. A

Inglaterra torna-se a grande potência mundial. Há

Sol no Império Britânico 24 horas por dia. O mundo,

com o advento do capitalismo industrial, assiste a

uma multiplicação de saberes ciências sem

precedentes. Com a complexificação da sociedade

o homem sente profundo desejo de conhecer a si

próprio. A Revolução Francesa assinala a época

das primeiras grandes conquistas sociais. A

nobreza, a monarquia e o clero são colocados em

segundo plano e se proclama o direito da

burguesia, o terceiro estado. O socialismo científicoi

nasce como teoria e visão de mundo a contemplar

o quarto estado ou o proletariado. O globo passa a

318

ser disputado por duas grandes ideologias. E eis

que tanto a racionalidade burguesa quanto a

proletária fracassam. Fukuyama chega a falar em

“fim da História”. Na verdade, a História continua

até porque a política é apenas uma das dimensões

da História. Quando cada economia nacional tenta

se afirmar na Europa e no mundo como potência

ocorre a Primeira Guerra Mundial de 1914 a 1918.

A Alemanha faz surgir a Segunda Grande Guerra

em função do descontentamento com o tratado de

Versalhes. Ela se desencadeia de 1939 a 1945. De

maneira especial a partir da Segunda Guerra

vemos um despertar tecnológico sem precedentes.

O pós-guerra acaba se tornando a época do pós

tudo. Tudo o que poderia ter ocorrido ocorreu. O

preço que a humanidade pagou em Duas Grandes

Guerras foi salgado, mas hoje se vive um clima de

emancipação sem precedentes. Ainda hoje o

mundo continua cindido entre direita e esquerda e

há quem diga que o Well Fare State na Europa é o

New Deal foi o melhor modelo de civilização que

existiu até hoje. Vivemos a época da cultura e da

319

informação. Hoje se consome cultura. Nenhuma

outra época foi tão pródiga quanto as nossas em

gerar necessidades antes inexistentes. Ao lado da

História dos fatos há a História das ideias que em

alguma medida reflete os primeiros. Nas artes

vemos o cubismo, em que Pablo Picasso aparece

como expoente, futurismo, dadaísmo, realismo,

surrealismo e diversas outras tendências. A filosofia

passa a trabalhar a linguagem, o idealismo, o

fisicalismo, o pragmatismo, o neopositivismo,

dentre outros. Na literatura se vê uma fungibilidade

entre o mundo dos livros e o do cinema. Em todas

as rádios do mundo são tocas músicas em inglês.

Na música erudita o que se vê é a quebra da

harmonia como ela era entendida em outras

épocas. A briga entre EUA e URSS dá ensejo a

programas nucleares e espaciais. O homem vai à

Lua embora haja contestadores. Quando em 1989

cai o muro de Berlim e em 1991 a Perestroika dá

errado, abre-se campo para aplicar no mundo

inteiro e também aqui na América Latina o ideário

dos Chicago’s Boys, capitaneados por Friedmann.

320

O inglês firma-se como idioma das relações

comerciais, inclusive entre países não anglófonos,

no diapasão de Breton Woods. O petróleo é cotado

em dólar, o que significa que para os EUA apenas

emitir papel moeda. O mundo torna-se, como disse

McLuhan, “uma aldeia global”. Como diriam os

brasileiros, nossa época é de globalização ou,

como querem os franceses ou Chesnais

“mudialização”. As transações financeiras tornam-

se cada vez mais voláteis, o mundo está dentro do

meu micro e funciona 24 horas por dia. O mundo

organiza-se em blocos econômicos e o mais forte

deles é a União Europeia e o mais promissor os

Tigres Asiáticos. Surge a sigla BRIC: Brasil, Rússia,

Índia e China, as economias mais emergentes. O

mundo é bombardeado por informações, tudo serve

de pretexto midiático. Trilhões de informações por

dia são lançados para dentro do Google, maior de

todos os sites de busca. Cresce o mundo virtual na

rede mundial de computadores e encolhe o mundo

empírico sobre o qual ele se escora. Matrix deixa

de ser produção cinematográfica para ser nossa

321

vida. Ocorre uma pletora de literatura. O Brasil se

torna um dos maiores produtores de livro do

mundo. O sistema financeiro brasileiro alia-se ao

mais prestigiado partido de esquerda para

promover inclusão social, universalizar o ensino

superior, promover a diversidade racial e sexual e

popularizar bens que antes só estavam ao alcance

das elites. Em quase todos os países do mundo,

senão em todos, encontramos máfias. Mas não só

para vender armas ou drogas ou mercadorias

piratas, mas produtos que eu e você adquirimos. As

guildas da Idade Média agora são obrigadas a atuar

na ilegalidade e a Itália que o diga. O Estado cresce

com todo gigantismo possível e todos querem fincar

na bandeira dentro dele. Surgem não apenas fatos

históricos novos, mas novas historiografias. Eric

Hobsbawn explica o século XX através do

materialismo histórico. Analles procura retratar

temas históricos como a vida familiar e privada.

Valoriza-se a oralidade. O positivismo histórico dos

grandes personagens é relativizado. Arquivos

ultrassecretos do DOPS são colocados em domínio

322

público. O poder da economia rivaliza com o

político. O Estado fica forte para promover guerra

de um tipo de capitalismo e agora que o mercado

nacional interno fica pequeno o Estado é

minimizado. Pela primeira vez na História da Igreja

Católica um Papa do Continente Americano torna-

se chefe da Igreja, o argentino Francisco.

Tendências apontam que em poucos anos

evangélicos serão maioria no mundo. A Europa

recebe cada vez mais imigrantes. Neste momento o

maior genocídio em andamento é no Sudão em que

uma tribo aniquila sua rival como uma atividade

fabril de execução sumária, mais precisamente em

Darfur. Na Oceania ainda se pratica antropofagia e

50% da população mundial não recebeu ou emitiu

uma chamada telefônica. A Índia é o país com o

maior número de anglófonos do mundo, e ainda há

cerca de 6.000 pessoas que falam sânscrito. Em

Damão, Diu e Goa fala-se língua portuguesa. Está

em andamento um acordo ortográfico dos países

lusófonos, mas não está fácil aparar as arestas. A

cada dois minutos é publicado um livro. O Brasil

323

hoje forma 10.000 doutores por ano. Popularizou-se

no Brasil a casa própria, o automóvel particular, o

computador, a internet, o celular e não raro as

pessoas tem acesso a algemas de canais de

televisão. O jornal é ingrediente matinal das

famílias há quem assine vários periódicos. A

depressão se apresenta como o transtorno mais

crescente e as doenças de caráter mental são as

que mais sobem nas estatísticas. As metrópoles

estão refreando e as cidades de médio porte estão

sendo as preferidas das grandes empresas. Diminui

cada vez mais as diferenças de gênero e cresce o

número de entidades familiares chefiadas por

mulheres. Cresce o número de divórcios e o

casamento já não mais é considerado como

indispensável para a comunhão de vida entre duas

pessoas. Cai a taxa de natalidade no Brasil e

aumenta a expectativa de vida e há quem anuncie

a inviabilidade da previdência social. O campo está

cada vez mais urbanizado, pois a tecnologia via

satélite faz chegar lá todo tipo de informação e

estão sendo pavimentados os acessos

324

asfalticamente onde antes só havia barro e

pedregulho. A rede elétrica sobre quase 100% do

território nacional. Do ponto de vista cultural diria

que pelas telenovelas da Rede Globo todo o Brasil

está passando por uma carioquização e

copacabanização. O interior cresce, mas o eixo

Rio-São Paulo em quase tudo se torna cada vez

mais referência. Mesmo sem o apoio

governamental as rádios comunitárias promovem a

reforma agrária da informação e da atmosfera. Ao

lado do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, os

meios de comunicação social tornou-se o quarto

poder. Hoje é possível a um menino paupérrimo

sair de um vilarejo africano e doutorar-se em

Harvard. Aliás, o homem mais poderoso do planeta,

Barack Obama, é negro. A frota de veículos

cresceu tanto que até mesmo em cidades com 50

mil habitantes há rush. O advogado se torna figura

comum e cidades com 20 mil habitantes tem seu

próprio curso de direito. Hoje existem editoras que

trabalham sob demanda e quem quer que queira

publicar um livro pode fazê-lo sem grandes óbices.

325

O que no passado, correr o mundo inteiro, por

exemplo, era objeto de literatura hoje é factível se

os pais são de classe média. Hoje é possível fazer

uso de medicação psiquiátrica continuada sem que

isso implique um déficit somático, intelectual ou

sexual. A História é a Historia de nossos acertos e

do preço que tivermos que pagar. A História é a

versão dos vencedores. Há quem diga que a

Revolução Francesa matou mais em uma semana

do que o Tribunal da Inquisição em 1.000 anos. De

todo modo, de acordo com a Filosofia da História,

tudo passa a fazer sentido quando é descoberto um

propósito da marcha civilizacional. A História é a

disciplina mais ampla em seus aspectos

introdutórios comporta um histórico de si mesma.

Tudo é História. O homem é um narrador e quem

narra, narra História. Pensar em narrativa como

metanarrativa é só pegar a História da Comuna de

Paris que recebe mais de dez vieses diferentes de

acordo com o ponto de vista anarquista, socialista,

burguês, conservador, eclesiástico e assim por

326

diante. A História não é só o que vemos, mas em

grande medida, aquilo que queremos ver.

Cultura: a ideia de representação

96% dos idiomas do planeta são falados por 4% da

população mundial. Isto significa que o mandarim é

falado por mais de 1 bilhão de pessoas e, dos

7.000 idiomas, 500 são falados por menos de 100

pessoas. Cultura é isto: em primeiro lugar o

mandarim, o híndi é o segundo, seguido pelo

inglês, pelo espanhol, pelo árabe e aí vem nossa

língua portuguesa seguida pelo bengalês, pelo

russo, pelo francês e em décimo lugar o japonês. A

globalização fortalece as línguas fortes e

enfraquece as fracas. É importante dizer que as

línguas não são sinônimas. Porque homesickness

não é o mesmo que saudades assim como

sombrero não é o mesmo que chapéu, assim como

netz não é o mesmo que puçal. O homem é um ser

cultural. Tudo é cultura. A geografia da cultura

também é interessante porque posso nascer numa

327

Suécia onde a cultura é generalizada, no Brasil em

que alguns são cultos e outros nem tanto ou no

Zimbabwe onde todos estão privados dos bens

culturais. Hoje em dia a cultura está sendo vista

como mais um setor da economia, o que é bom por

um lado nem tanto por outro. A mercantilização da

cultura faz com que ela passe a receber patrocínio

daquele que é seu destinatário e juridicamente

consumidor, ficando por essa razão mesma refém

dos seus apreciadores. O autor que se preocupa

demasiadamente com seu público não consegue

viver com perfeição o seu papel de produtor

cultural. Em sociedade capitalista a cultura começa

pelo fim, ou seja, por quem visa atender. O

americano é expert em vender cultura. São os

maiores produtores culturais do mundo do ponto de

vista quantitativo. E também são os maiores

consumidores. A diferença entre o Brasil e os

Estados Unidos é que no primeiro há uma

preocupação com publicação enquanto que os

ianques estão mais avançados: eles não só

publicam, mas propagam, o que é sobremaneira

328

importante. Como o mercado editorial anglófono é

mais amplo, cai o preço da edição o que fomenta a

venda e a venda permite edições maiores, que dilui

dentro de si as despesas fixas. De todo modo,

nunca esteve tão fácil adquirir uma impressora off

set ainda que continue sendo um meio de produção

gráfica nas mãos de relativamente poucas pessoas.

No Brasil de hoje até pessoas mais pobres

externam o desejo de ver o filho cursando um curso

superior e projetado socialmente com uma

profissão de valor. Isto significa que a cultura é

também techne, é conjunto de ferramentas ideais e

concretas que nos permite cumprir uma função

operacional no seio da comunidade em que

residimos. Mas a cultura não é só isto. Ela é aquele

geist, aquele ornamento que nos presenteia com

nossa identidade sem a qual ficaríamos sem

referencial. A etnopsiquiatria é a noção de que as

manifestações psíquicas patológicas decorrem da

avulsão do interior da cultura autóctone do

indivíduo, o que o torna desnorteado. A noção do

desequilíbrio químico é colocado num plano mais

329

profundo, o cultural. Os críticos que mais combatem

e o fordismo e o taylorismo muitas vezes são os

maiores beneficiados por estas compreensões.

Sim, dizemos isto porque estamos reproduzindo em

série aquilo que num primeiro momento era labor

artesanal. O sistema fabril tem a capacidade de

transpor os limites materiais que emperram a

difusão da cultura. A internet vem a ser a

relativização do direito autoral econômico e

esperamos que não haja nenhum retrocesso neste

sentido. Em nossa ótica o direito moral é o mais

importante e os legistas deveriam passar por cima

dos interesses pecuniários privados em nome do

interesse público. Hoje a cultura escrita sobrepuja

em muito a cultura não escrita a ponto de deixá-la

empoeirada e perder de sua concorrente mais

veloz. Costumo sonhar com 36. Ou seja 3 + 6 = 9

ou 3 x 6 = 18 em que 1+ 8 = 9. 9 é o número da

solidariedade e da fraternidade. A nona letra do

alfabeto é o “i”. Em minha assinatura o “i” de Israel

é a letra de maior destaque. O “i” significa talento

artístico popular. É o número das massas populares

330

e dos extremos. Eu nada escreveria se não tivesse

certeza de um dia ser um escritor muito popular. A

maior cultura de um homem é o conhecimento que

ele tem do próprio vernáculo. Porque conhecer

nada mais é do que conhecer conceitos e os

conceitos são ideias cabidas dentro de palavras.

Ou seja, tudo se resume em conhecer a maior

diversidade possível de palavras e o seu

significado. A cultura se manifesta através do

comportamento e no pensamento, mas como

comportamento é reflexo do pensamento, então

tudo é pensamento. O pensamento é como uma

coleção de tintas: faço telas toscas se minha

aquarela tem poucas cores. É como erguer um

edifício com pouca quantidade e pouca variedade

de materiais: ficará um cômodo apertado e sem

graça. O pensamento se alimenta de vocabulário e

ele se conquista pela leitura seguida do emprego

ativo daquilo que foi inteligido aliunde como leitor. O

vocabulário depende não só de leitura, mas do

número de circunstâncias empíricas em que nos

vemos envoltos. O acréscimo numérico de

331

experiências tende a se dirigir para a diversidade.

Assim, quanto mais experiente uma pessoa, mais

vocabulário ela terá agregado. A leitura faz conosco

esta mágica: nos habilitamos a exibir uma

experiência que em verdade não temos. A escrita

são modos de driblar a inexperiência. Quem

assume o compromisso consigo próprio de

escrever livros ou é articulista de um jornal é

forçado em razão das contingências a se

manifestar sobre temas não muito íntimos e isto

cobra estudo e assimilação de categorias e

palavras novas. A cultura de um modo geral e mais

especificamente a língua é este contínuo treino que

em algum sentido já é a versão final do discurso.

Tudo é treino e com a cultura não é diferente. Diria

que ainda estou a treinar minha escrita e há quem

só consiga se tornar um grande escritor lá pelo

quinquagésimo livro. A quantidade demandada de

papel para jornal é um dos índices das

organizações internacionais para aferir o grau de

aculturação de um povo. O jornal faz tão parte de

nossa mesa como o café da manhã e a carteira de

332

cigarros. Aliás, o fumar também é um hábito

cultural, prova de que nem tudo o que é cultural é

bom. Se preparássemos a mortalha como o faziam

os povos indígenas da América Central, local de

origem do tabagismo, não nos intoxicaríamos tanto.

Mas com nossa caucasiana inteligência

conseguimos inserir mais de 4.700 substâncias

tóxicas no diminuto cilindro. Quanto ao narguilé, há

quem diga que equivale a fumar cem cigarros.

Todas as grandes mudanças do mundo passam por

mudanças culturais. A cultura determina a própria

ascensão ou queda. Para uma comunidade em que

a ideia de procriação e filiação é mal vista a

tendência é que tal cultura desapareça. Hoje as

telenovelas são um fenômeno mundial e boa parte

da população do globo tira horas por dia

absorvendo os valores veiculados neste teatro de

baixa qualidade a ponto de a referida exibição

diminuir a natalidade, aumentar o número de

divórcios, fomentar o anseio de projeção social a

qualquer preço, além de outros fatores. Tudo o que

é mais importante é atingido pela mídia: os

333

relacionamentos, a sexualidade, a vida matrimonial

e familiar, o estudo, a profissão e o comportamento

de uma maneira geral. O rebanho precisa de

heróis. E os nossos heróis são fracos, corruptos,

lascivos, extrovertidos, e mais, exibicionistas e

pusilânimes. Vive-se nos meios de comunicação

social uma verdadeira ordem antiespartana. O

único valor espartano que ainda é apregoado é o

da homossexualidade, o que colide frontalmente

com nossos valores judaico-cristãos. A infidelidade

conjugal cuja conduta tipificada foi extrusa do

Código Penal Brasileiro é sugerida pela mídia como

comportamento altamente tolerável. Diria que no

Brasil as pessoas tem menos cultura do que na

Europa, por exemplo, embora também no Velho

Mundo vejamos pessoas padecendo de ignorância

crônica, porque aqui em nossa pátria amada é mais

difícil fazer um curso superior do que em outros

lugares. Se a pessoa tem família acaba havendo

um achaque muito grande por conta do cônjuge

como a demanda de tempo e dinheiro que isto

implica. Quando se pega o diploma na mão nem se

334

ri e nem se chora, embora a vontade seja

efetivamente de chorar, e se toma a consciência de

que a luta foi tão renhida que não se tem motivos

para comemorações, o formando sai da

universidade como aquela res que conseguiu

escapar do matadouro e agora está brutalmente

machucada. É difícil assimilar cultura nos dias de

hoje, sobretudo a erudita, porque aquisição de

cultura depende de tempo e tempo é o que menos

nós temos. Os enlatados como internet e televisão

não deixam que compulsemos um livro de 850

páginas ou ouçamos uma sinfonia. É

impressionante como as pessoas leem a Bíblia e

não a compreendem. Da mesma maneira o mesmo

ocorre em relação à cultura de um modo em geral:

vendo não enxergamos e escutando não ouvimos.

Freud escreveu sobre ato falho e o ato falho é um

mecanismo de defesa da personalidade. Premissas

e corolários no reino dos presumidos e

subentendidos se esquivam do processo de

elucidação. É assim que busco uma resposta para

uma situação e, como diz o provérbio popular “não

335

se enxerga um pau diante do nariz”. A cultura é

esse negócio enfeitiçado que se esconde da

maioria como que por mandinga. A persistência é a

chave que abre esta prisão. E quando certas

pessoas leem minhas obras não acreditam que um

jovem senhor simples e rústico como eu seja autor,

mas um plagiário. A minha simplicidade todos

enxergam, mas a quantidade astronômica de horas

que apliquei ao estudo apenas um ou outro vê. O

grande produto cultural de nosso tempo é o

roteirista de cinema e de novela televisionada.

Vendem-se muito mais revistas do que livros e os

que vendem muitos livros devem parte disso às

revistas. Nossa época é a época do hipertexto. E

hipertexto não é um conceito da informática e sim

da literatura. Esse prefixoide “hiper” se refere à

multiplicidade de meios que o texto nos

disponibiliza: texto, foto, áudio, vídeo, etc...

Paradoxalmente, esta época do hipertexto assiste a

um movimento editorial sem precedentes. Nunca

foram vendidos tantos livros como agora. Assim

como nunca foram postadas tantas cartas nos

336

correios como na época do e-mail. Os produtores

culturais também estão engrossando suas fileiras.

O escritor está deixando de ser uma figura distante

para se apropriar cada vez mais do público. Esta

sensação de escritor estar entre nós e, aliás, ser

um dos nossos tira o glamour, e as pessoas que

não desenvolvem a mesma atividade tendem a

banalizar aquilo que sob pretexto algum poderia ser

banalizado. Não é a pessoa cinza que tem de

banalizar a pessoa especial, é o escritor que

dignifica seu próximo e comparsa. Se até Jesus

Cristo teve de ouvir “este não é o filho do

carpinteiro?” o que devo dizer a respeito de mim

mesmo? Assim como o médico, o juiz, o

empresário e o banqueiro nasceram sem dentes,

pelados e carecas e vieram a ser algo através de

processos, também o escritor não nasce escritor,

mas torna-se dia-a-dia cada vez mais escritor.

Diferentemente da técnica e de outros avanços da

humanidade para os quais os gênios inventivos

acabam passando por despercebidos, no campo

das letras o nome do escritor ou do filósofo é

337

bastante destacado. Uma das razões pelas quais

decidi enveredar por este caminho. Isto é não só

uma tradição, um costume e uma praxe, mas, diria,

uma necessidade. Sim, porque a subjetividade está

entrelaçada àquela universalidade kantiana

centrada no sujeito. O universal e o individual são

águas que jorram exatamente da mesma fonte e

não há como compreender uma sem a outra. A

cultura é algo que está diretamente relacionado ao

tempo. O tempo é um importante mensurador de

aculturação e é por isso mesmo que nas culturas

em geral e sobretudo nas mais fortes os velhos são

respeitados pelo conhecimento que suposta ou

efetivamente têm. Não há culturas erradas ou

corretas, porque não temos alcance gnosiológico

para separar o certo do duvidoso, existem culturas

que funcionam melhor e outras capengam. O jeito

europeu de conduzir a própria vida do qual eu

destacaria as culturas alemã e inglesa é o que

melhor funciona em qualquer lugar do mundo.

Trata-se de uma maneira tão melhor de enfrentar

as situações concretas da vida que tudo o que dela

338

difere se lhe submete. A cultura é um conjunto de

pessoas, coisas, bens e riquezas entre si além

daquela alma que anima isto tudo, a cultura distribui

o poder e tudo o que é partilhável entre as pessoas.

Ela dispõe todos os elementos abstratos e

concretos entre si. Isto significa que uma mudança

cultural acarreta mudança espiritual, política e

econômica. As pessoas estão acostumadas a

pensar que a sua própria religião deve ser a mesma

religião de seus pais. Pelo contrário, quem quer

obter mudança de vida deve principiar pela

mudança no mundo espiritual. A cultura é algo que

tem a capacidade de ser mais do que da mesma,

justamente porque ela é o que temos de mais

humano. É assim que religião é cultura, mas, doutro

lado, é mais do que um fenômeno cultural

conquanto sentido algum teria se não

transcendesse sua aparência empírica. A cultura é

algo que diz respeito a um jeito de ser e que a todo

momento se endereça ao ser. A cultura é a ruptura

com o mundo natural. No sentido de que a primeira

cultura, a agricultura, é uma quebra da mera

339

espontaneidade do solo que passa a ser obrigado a

dar mais do que estava acostumado a dar. Ao

conjunto de alterações conscientes sobre o

ambiente denominamos cultura. E é por isso que só

o homem tem cultura, porque só ele é consciente.

O dique construído por um castor não é cultura e

nem a casa do João de Barro porque isto é

meramente instintivo. Não há aprimoramento. A

cultura humana é conservativa, mas,

paradoxalmente, evolutiva, o que requer abrir mão

daquilo que era usual outrora e hoje não mais. Os

amish são conhecidos como um grupo cristão

anabatista caracterizados pelo repúdio à tecnologia.

Vejo neles alguma coerência. Sim, porque no afã

de se preservar sabe-se lá o que, talvez a

espiritualidade, abstêm-se os tais de manipular

determinados recursos tecnológicos. Ora, pior do

que isso é ter uma parafernalha de ponta presa ao

corpo e pensar como se pensava a séculos atrás.

Não é só porque uma ideia é mais recente que ela

de per si seja melhor, mas não bom senso

comungar de ideais jurássicos como se os valores

340

fossem essências imutáveis porque também eles

se metamorfoseiam. Quanto mais desenvolvida

uma cultura,mais burocrática ela se torna. Por isso

mesmo que surgiu exatamente na Alemanha um

grande teórico da burocracia, seja ele, Max Weber.

Weber escreveu sobre burocracia porque vivenciou

isto. E a Alemanha de Weber era a cultura mais

forte da Europa em sua época. Porque burocracia é

procedimento e cultura é pavimentar veredas para

realizar o sonho das pessoas. As sociedades, ditas

ocidentais passaram e continuam passando por um

violento processo de juridicização. A burocracia

projeta uma pessoa que a domina, mas se o

burocrata deixar de lado a impessoalidade, pode

obstaculizar a ascensão de um sujeito indesejado.

A cultura passa muito por aceitação ou rejeição.

Concurso público premia bons produtores culturais

sem dúvida alguma, mas deixa excelentes pessoas

aquém da berlinda cabresteadas no limiar de

entrada. A burocracia é também a ferramenta mais

eficaz para angariar dinheiro público para atender a

interesses comunitários que de alguma forma são

341

mais privados do que públicos. Sim, porque

musicam, telas, livros, etc, são confeccionados por

pessoas concretas e reais, dotadas de vaidade,

vício, virtude, idiossincrasia e forte viés subjetivo.

Isto é tão real que a legislação brasileira que trata

de licitação dispensa o procedimento quando se

trata de trabalho artesanal de pessoa renomada e

bem falada pela crítica, cuja reputação é de imensa

credibilidade. Olavo Bilac chamou a Língua

Portuguesa de “última flor do Lácio inculta e bela”.

Do ponto de vista de uma fala que se deslatiniza e

se aportuguesa é correto chamá-la de inculta. Mas

não é correto pensar nos dias de hoje que seja

inculta. A Língua Portuguesa é sim língua erudita

embora a maioria dos seus falantes de eruditos

nada tenham. No Brasil há a ditadura do símplice e

do fácil justamente porque vivemos numa espécie

de democratismo. Não são os entendidos que

devem submeter-se à plebe, é o vulgo que deve

correr atrás de entendimento para compreender as

construções gramaticais e lexicais mais acuradas.

Do ponto de vista lexical o Francês é menos do que

342

a Língua Portuguesa. O Francês só nos ultrapassa

em estilística e mesmo isto podemos conquistar se

nos apropriarmos da riqueza linguística que nos

pertence. De maneira geral vejo meus

contemporâneos e compatriotas mais preocupados

com que carro rodar, onde morar e com quem

praticar sexo. Cultura bela começa a ser feita

apenas a partir do momento em que já se deu

conta destas concreções e o espírito começa anelar

instâncias mais sublimes. É curioso como nos

interiores do nosso país conversando justamente

com pessoas mais simples ouvimos expressões

lusitanas de um português medieval. Nos cafundós

em meio ao tiguera e ao guachiva é que nos

deparamos com falantes de jargões de outrora

decernindo-lhes caráter imorredoiro. Dentro da

estreiteza de minha ignorância procuro trazer à

baila vocábulos que gradativamente estão

perdendo espaço nos meios oficiais e inoficiais.

Entendo que um bom dicionário deve ocupar-se de

termos em desuso e obsoletos porque nada obsta

que eu me reporte a produções mais antigas. O fato

343

de eu tentar resgatar dizeres antigos se justifica em

razão de minha arraigada convicção de acordo com

a qual não há perfeita sinonímia entre velhas e

novas expressões, porque “ser infértil” e “ter a

madre seca” não é exatamente a mesma coisa. O

grande problema de nossos dias já não é mais o

sexual, como apontou Freud, ou não é só

restritamente o sexual, mas há uma forte pitada de

tensão cultural. A uma, porque as pessoas se

entregam sexualmente entre si com maior

facilidade do que no passado e, a duas, porque o

que realmente deixa uma pessoa cindida é o

choque de valores e os valores são adquiridos

culturalmente. O sexo também é uma atividade

regrada por hábitos consuetudinários, os chamados

tabus sexuais são parte inseparável de toda e

qualquer cultura. A cultura é muito senso comum,

são os preconceitos e os achismos que

alimentamos a respeito de quase tudo. A cultura foi

a invenção mais cômoda de se retirar de nossos

ombros a responsabilidade de fazer as coisas do

modo mais certo nas ocasiões mais delicadas de

344

nossa vida. Para quase tudo há uma etiqueta. Tudo

é revestido de protocolos. A cultura, neste sentido,

é muito irracional. Sim, isto mesmo! Porque a

cultura nos diz até que tipo de emoção devemos

externar dependendo da situação. Assim, se a

cultura diz que em dada situação deve externar

contentamento, contentamento externarei ainda

que intimamente não seja este o meu humor

natural. Daí a ideia de que a cultura nos impõe

papéis. Devemos a todo momento representar e

encenar. Ocorre uma teatralização da vida. Por isso

que os atores globais são tão lisonjeados: porque

eles conseguem fazer de uma maneira tão perfeita

aquilo que fazemos a todo momento de maneira

tosca. A cultura acontece entre o sein e o sollen.

Sim, ela está cabida dentro deste campo de tensão

entre o que efetivamente somos e aquilo que

queremos ser. A cultura é algo que está a caminho

e é algo que está se fazendo. Irrealização total é

estado de natureza e realização total não é mundo

empírico, único palco dentro do qual se desenvolve

a cultura. A cultura é sempre um meio termo. É por

345

isso que as culturas mais desenvolvidas são as que

se aproximam mais da abstração. A cultura é

síntese de coisas sabidas e não sabidas. É síntese

de assertivas situadas no campo dos explícitos e da

consciência forte e de assertivas situadas no reino

dos presumidos e subentendidos. Chamamos a

cultura de metanarrativa porque a cultura é

sistemática e totalizante. Falar em metanarrativa é

conceber a cultura como um contexto. O excesso

de cultura inutiliza da mesma forma que um homem

sem cultura alguma não tem nenhuma serventia.

Porque a pessoa excessivamente aculturada passa

a fazer do mundo da cultura seu único local seguro,

uma zona de conforto. A ponto de grande parte dos

intelectuais serem misantropos. As pessoas ditas

comuns já não mais alcançam as preocupações

dos superiores níveis. Para o intelectual todo o

problema é intelectual ainda que à porta do mesmo

estejam batendo cobradores, oficiais de justiça, pai,

mãe, esposa, filho, amigos ou quem quer que seja.

A elite só cumpre seu papel se consegue ser não

só elite política, econômica e espiritual, mas

346

também cultural. Vemos que as elites brasileiras

não têm a devida preocupação de exercer o papel

de vanguardista cultural. É por isso que não

conseguimos nos desfazer do pensamento de

esquerda. Porque a esquerda preenche um lugar

vazio. Em sociedade de ricos ignorantes e pobres

cultos se vivencia esta teratologia de prática liberal

e pensamento crítico. E aí vai para as cucuias a

praxe dos marxistas e se executa uma prática

acéfala e avulsa de um conhecimento-ideologia que

lhe dê espeque e guarida. O que escrevo é tão real,

embora a direita me olhe como um pobre coitado,

que posso assegurar que foi através de recursos

culturais e não só através de recursos financeiros

que o PT chegou a se tornar o que ele é hoje. Esta

tensão entre infraestrutura e superestrutura

descasadas se manifesta nas urnas. É assim que o

povo coloca um chefe do Executivo de esquerda e

faz maioria parlamentar de direita ou vice-versa.

Não adianta culpar o povo. O poder sufragante do

povo apenas reflete o desencontro das lideranças

sociais que a um só tempo educam e deseducam.

347

E isto está presente em todas as instâncias: o

reverendo pregando indissolubilidade matrimonial e

o ator da novela trocando de par como quem troca

de roupa. Quem sabe, a marca da nossa cultura

brasileira seja exatamente esta: a contradição e o

ecletismo. E assim como o cristianismo católico se

contaminou com o paganismo antigo, o cristianismo

neopentecostal começa a passa pelo mesmo

processo.

Sociologia: a ideia de sociedade

Augusto Comte foi o primeiro pensador a sentir a

necessidade de criar uma ciência que tivesse como

objeto de estudo a sociedade. Comte sucede

autores como Hume e Kant, o que fazia dele um

descrente na filosofia. No que Comte acreditava

mesmo era nas ciências. A filosofia se reservaria

em ser uma mera organizadora dos saberes.

Comte chegou a escrever um Catecismo Positivista

em que a grande deusa é a humanidade.

Positivismo é, portanto, humanismo. E os santos do

348

cristianismo católico são substituídos por escritores,

filósofos e cientistas. A sociedade deveria ser

regida, segundo Comte, por ordem, progresso e

amor, guardando alguma equivalência com o

chavão da Revolução Francesa, liberdade,

igualdade e fraternidade. Comte seria o idealizador

da sociologia, mas quem faria o trabalho braçal

seria outro positivista, Émile Durkheim. Para os

sociólogos positivistas, essencialmente

conservadores, a sociedade é um organismo e a

preocupação das lideranças é manter a vitalidade e

a saúde do corpo. Além disso, Durkheim foi esperto

e estratégico a reservar tratamento ao método da

sociologia porque esta discussão teórica sempre

terá grande repercussão. Posso partir do indivíduo

para entender a coletividade ou posso partir da

coletividade para entender o indivíduo. Os dois

caminhos são válidos. A sociologia é uma

antropologia do sujeito coletivo. No Ocidente o

indivíduo é o grande herói e no Oriente é a

coletividade. Émile Durkheim aborda temas como a

Divisão Social do Trabalho e o suicídio. Thorstein

349

Veblen aborda a questão do ócio e do ócio vicário.

Marx que escreveu uma teoria que afeta quase

todas as áreas do conhecimento explicou que a

base da sociedade é a economia. O modo de

produção de bens e o grau de desenvolvimento das

forças produtivas determina a maneira como os

homens se relacionam em sociedade entre si e

entre si e a natureza. A economia é o conjunto de

instâncias concretas sobre as quais estariam

apoiados o direito, a religião, a filosofia, o Estado,

as artes, as ciências e tudo o que é pertinente ao

reino intelectivo. Max Weber coloca o materialismo

histórico de Marx de ponta cabeça e demonstra que

pensamento religioso tem inclusive o poder de fazer

deslanchar um sistema econômico. Célebre é a

obra de Weber A Ética Protestante e o Espírito do

Capitalismo. Discussão epistemológica importante

é se o trabalho dos sociólogos é a descrição

fidedigna da sociedade ou apenas uma espécie de

antolhos, ou seja, uma instrumento para poder

visualizar a sociedade. Habermas critica a redução

da racionalidade a um escopo instrumental e em

350

sua ética do discurso propõe um modelo de

racionalidade a um só tempo procedurístico,

democrático, teleológico e aplicável do ponto de

vista prático. Costuma-se dizer também que

podemos fazer abordagens estruturais e

conjecturais de sociedade. Em que a análise de

conjuntura seria o retrato e a análise de estrutura o

raio xis. De acordo com Habermas a sociologia

exerce hoje o papel que o passado cabia à filosofia:

ver a totalidade. A filosofia está se perdendo em

conceitos. Louis Althusser elaborou a teoria do

aparelho ideológico. Tudo, para Althusser, é

aparelho ideológico do Estado Capitalista: a escola,

a igreja, os meios de comunicação social, etc... A

sociologia muito se ocupou do papel do trabalho

nas sociedades desenvolvidas e hoje fala menos

em trabalho porque ele perdeu sua relevância. No

passado o que moldava o perfil psicológico das

pessoas era o trabalho que elas desenvolviam, hoje

são os meios de comunicação social. Domenico de

Mais diz que vivemos na sociedade do não trabalho

e sugere um ócio criativo. A sociologia se ocupa

351

ainda de movimentos migratórios, imigratórios e

emigratórios. Ocupa-se dos processos de

urbanização desordenada, densidade demográfica

e êxodo rural. A sociologia procura situar o ser

social, a pessoa humana, dentro daquela totalidade

em que ele vem a ser a um só tempo condenado à

liberdade e peça de uma gigantesca engrenagem.

A sociologia se ocupa da produção social dos

saberes e da informação, dos fenômenos religiosos

enquanto fenômenos sociais, das redes virtuais de

relacionamento e do comportamento dos indivíduos

no sentido de haver verdadeiramente uma

psicologia social. Isto é tão verdadeiro que o

Código Penal Brasileiro estabelece atenuante para

crimes cometidos sob comoção social. A meu ver,

deveria ser uma agravante justamente como forma

de cobrar atividade pensante do indivíduo em meio

à multidão. Ortega y Gasset mostra que o indivíduo

pensa pouco e as massas não pensam nada, do

que a violência nos estádios de futebol ou de

tourada é a maior prova. Darci Ribeiro define a

civilização brasileira como um amálgama de

352

portugueses, indígenas e negros, mas para quem

mora no sul do país é demasiado impróprio e

incômodo ser um material como este. A sociologia

brasileira é um capítulo à parte da sociologia geral

de que se destaca. Florestan Fernandes

desenvolve um trabalho mostrando que o papel da

guerra na tribo dos tupinambás é promover a

coesão do grupo e talvez nisto consiste a ênfase

que colocamos na Batalha do Riachuelo. Fernando

Henrique Cardoso explica que o capitalismo

brasileiro foi estruturado de modo a depender das

potências capitalistas estrangeiras. O Brasil tem

pouca experiência democrática se se computar os

tempos de Colônia, de Monarquia, de República

dos Marechais, dos Vargas, dos Militares em que

os poucos intervalos de lucidez ainda se sujeitam a

diplomas jurídicos obsoletos. E hoje se vive uma

democracia colorida com tons vermelhos e rosas,

em que a ditadura do Judiciário coloca entre

parêntesis os ideais parlamentares. De todo modo,

o mundo empírico é basicamente isto. Nem a

Europa é diferente senão pelos menores índices de

353

corrupção do que cá no cisatlântico. A dificuldade

de ser algo novo sem se vislumbrar ainda

exatamente o quê. De minha parte deveríamos nos

empenhar para fazermos deste garrão uma nova

Europa, mas os nossos colegas intelectuais são os

primeiros a discordar desta minha doxografia.

Questão controvertida é se é possível produzir

sociologia de uma sociedade que não existe mais

por estar soterrada no passado. Neste caso a

sociologia ficaria refém de outra ciência, a História.

Se a História por si só já é polêmica o que dizer de

uma segunda disciplina que entra como reprise e

transformação? A sociologia, a despeito de ser m

dos ramos mais teóricos do saber, é uma área ou

um foro demasiado estratégico. O duro do sociólgo

é que ele está implicitado dentro do seu próprio

objeto de estudo, a sociedade. Não consegue, pois,

uma total isonomia e uma total imparcialidade por,

de antemão, ter interesse no resultado de suas

pesquisas. A objetividade de quem se coloca do

lado de fora é algo impossível. Dizemos isto,

mesmo, por exemplo, quando um sociólogo

354

brasileiro estuda a sociedade chinesa daqui

mesmo, pois o trânsito de informações, bens e

pessoas entre os países mais pujantes do globo é

tão intenso que acoimados estamos todos nós. É

por isso que a sociologia é uma das disciplinas

mais fáceis e mais difíceis, todos nós sabemos

muito sobre ela, entrementes, tudo o que sabemos

é viciado e atávico. As ciências modernas em sua

maioria são forjadas no século XIX e a sociologia

não foge disso. A Revolução Industrial era o boom

que estava faltando para que houvesse um

deslanche teórico. A sociedade de hoje é a da

terceira onda, ou seja, é a sociedade da

informação. Quem tem informação consegue poder

e quem consegue poder consegue informação.

Todavia, só a informação não basta. Hoje vivemos

a geração dos gênios impotentes entre os quais eu

me incluo. Sabe-se fazer uma bomba atômica, mas

nem todo sábio consegue 600 bilhões de dólares

para o malfadado projeto tornar-se realidade, o que

tem um lado bom. O conhecimento está tão

acessível e popularizado que de acordo com a mão

355

invisível de Adam Smith, a lei da oferta e da

procura, já está sofrendo um terrível processo de

depreciação. É por isso que vemos pobres

engravatados e pessoal do escritório bem arrumado

ganhando menos do que o peão da construção

civil, em que pese o aquecimento deste setor da

economia. Estamos voltando para a sociedade de

guildas e confrarias. O nosso tempo é especial e

esquisito, pois se realizam tendências opostas. O

mundo ao mesmo tempo se globaliza e se

feudaliza. Há uma supervalorização do âmbito

local. De sorte que é mais poder ser Prefeito de

Munique ou São Paulo do que ser Presidente ou

Primeiro Ministro de um país de pouca projeção. A

nossa sociedade é sociedade de tribos. Como nas

metrópoles transitam milhões de pessoas pelas

ruas de sorte que o próprio ser humano se torne

corriqueiro, banal e sem valor, cria-se uma

diferenciação que passa a ser o timbre de pessoas

que comungam de uma determinada cesta de

hábitos e valores. O próprio conceito de

proletariado hoje em dia é amplo demais. Está

356

havendo uma multiplicidade de classes sociais

porque o critério econômico de taxonomia perdeu

sua exclusividade. Em razão da pluralidade étnica,

em função do sincretismo ideológico, conferido à

palavra “ideologia” a acepção mais ampla possível,

o cidadão de um modo geral e sobretudo o citadino

metropolitano já não sabe ou nunca soube quem

ele é. Como diria o filósofo polonês Zygmunt

Baumann, vivemos a sociedade líquida. Ou como

diria o jusfilósofo Miguel Reale, a sociedade do

orgasmo. A geração de hoje se chama épsilon.

Vivemos que o que Schopenhauer chamou de

“democracia representativa” ao contrário da

democracia direta da Antiguidade Grega. No

sentido de que o eleitor conhece muito

superficialmente o candidato em que vota, bem

como os demais. A sociedade de hoje está, como

nunca esteve antes, verticalizada. Mas ao contrário

do ideal kantiano da paz perpétua o que vemos é a

cúpula do poder manejando influência, poder e

riqueza a favor dos interesses pessoais. O mundo

nunca teve uma distribuição de riqueza tão

357

discrepante. Os donos dos meios de produção, seja

produção de energia, de bens, de informação e dos

meios de arrecadação, e agora falamos do Estado,

dominam absolutamente tudo. As igrejas também

são meios de arrecadação, é indiscutível. 4% de

toda a riqueza do mundo seria capaz de promover

excelente padrão de vida para todas as pessoas do

planeta. As sociedades capitalistas são peritas em

iludir os mais pobres de que são ricos e,

relativamente, os pobres cada vez mais pobres. Se

os ricos, nas pegadas de Keynes, emprestassem

aos pobres o seu dinheiro eles fariam o capital se

incrementado de tal sorte que deixariam de ser

pobres e poderiam compensar com juros os

emprestadores com vantagens mais palpáveis do

que os bancos oferecem. A sociologia, como

dissemos, é fruto da industrialização que começa

na Inglaterra por volta de 1750 e se estende até

hoje. Ela reflete rápidas transformações culturais e

técnicas dentre as quais destacaríamos a

passagem da manufatura para a maquinofatura.

Por que a Revolução Industrial ocorre na

358

Inglaterra? Simples, porque ela tem como causa

aquilo que é pressuposto e consequência do

capitalismo: acumulação de mão-de-obra. Uma lei

de 1602 promovia os cercamentos. Ou seja, os

contratos de arrendamento entre nobres e vassalos

eram quebrados e a mão-de-obra agrícola não

tinha mais participação na produção, mas recebia

salário. Desenvolve-se a monocultura de lã e

algodão. As cidades estratégicas ficam inchadas de

pessoas. Cresce a tensão social na cidade e por

conta disso cresce o número de homicídios e

suicídios. O alcoolismo e o uso de outras drogas se

prolifera como forma de aliviar a tensão. São

construídos sanatórios e presídios. Surgem as

gangues. O suicídio pode ser encarado como uma

privatização do sofrimento. A família passa por uma

profunda desestruturação. Cresce a prostituição. O

lado bom é que a posteriori procura-se contornar os

problemas da carbonização. O saneamento básico

é uma prova disso e nos lembra do quão importante

é o banheiro que temos em casa. A escola passa a

desempenhar papel fulcral. Porque ainda que ela

359

seja uma caixa de ressonância a fazer eco às

injustiças que ocorrem fora dela e aspergir-lhe com

água benta, ao mesmo tempo passa a ser um canal

de interferência na formação do caráter e da

personalidade do aluno. Com a sociedade moderna

há uma intensificação da sexualidade e é por isso

que ela é, também, objeto de estudo da sociologia.

Um conceito que vale ser explicitado é o ludismo

que é o movimento “quebra-máquinas”. Já o

cartismo é a participação dos trabalhadores na vida

pública. Surgem os sindicatos. Pensa-se em

planejamento urbano. Há zoneamento das cidades

para comportar área de riscos e de operários, áreas

comerciais, industriais e residenciais. Surge a

necessidade de intensificar a segurança urbana.

Enquanto que a grande e respeitável forma de

saber anterior era a filosofia, especulativa, a

sociologia é essencialmente empírica. No Brasil de

hoje somos vistos pelo mundo como o país do

agronegócio. A bebida, no Brasil, é vista como ritual

de iniciação, inclusive para as mulheres e sempre

em níveis crescentes. A escola brasileira tem sido

360

vista como o cais, o porto seguro em que todos os

problemas serão resolvidos. A escola não é fim em

si mesma, ela é meio e, portanto, não deve ser tido

como uma ilha da fantasia. A diferença entre a

sociologia e a antropologia é que a antropologia,

com Darwin, principia pela estrutura biológica do

ser humano. O negro, só para exemplificar, resiste

mais ao deserto. A antropologia traça relação entre

as instituições e a estrutura. O sociólogo se

preocupa com fenômenos. Hoje um grande número

de mesmas preocupações diz respeito tanto à

sociologia quanto à antropologia. Edgar Morin

observa que a fragmentação dos saberes reflete a

especialização do trabalho e que não devemos nos

preocupar em territorializar os saberes.

Geografia: a ideia de ubiquidade

A geografia começa a se tornar disciplina chave

com as circumnavegações de Portugal e Espanha.

Com o Tratado de Tordesilhas as potências

europeias suso mencionadas se sentem na

361

obrigação de tomarem conhecimento daquilo que

em tese seriam donas. Os lugares mais ermos,

mais inóspitos e mais remotos do planeta começam

a ser desbravados. A geografia, todavia, não se

resume a estudar as características do planeta, da

topografia e da cartografia, mas se preocupa em

que medida estes aspectos materiais e territoriais e

climáticos afetam a vida do ser humano. A

geografia humana é a área de maior concentração

dos geógrafos porque o homem tem o si mesmo

como maior interesse. O lugar de proveniência de

uma pessoa pode definir suas características

físicas, culturais, linguísticas, religiosas e

axiológicas. Élisée Reclus enxerga a geografia

como não só o mais estratégico de todos os

saberes, mas como ferramenta teórica e prática de

emancipação social. A geografia teria o condão de

mapear os problemas e, concomitantemente, de

entregar a solução para os mesmos. A geografia

desenvolvida em seus tratados era chamada de

“crítica” e era assecla do anarquismo. A geografia

seria uma teoria revolucionária de emancipação

362

social e desfazedora de travas do progresso. Em

tempos de globalização a geografia não perde seu

papel, mas o vê ainda mais reforçado: porque as

empresas multinacionais cujas redes situam-se na

América do Norte e na Europa criam unidades nos

países periféricos onde há tolerância a altíssimos

níveis de exploração da mão de obra tal como

ocorria na Europa há dois séculos. Ocorre,

portanto, uma verdadeira transferência de riqueza

dos países ditos emergentes para os ricos. Por

detrás do apelo midiático na televisão e na internet

de uma marca famosa há pessoas reais vivendo

relações jurídicas e econômicas não paritárias e até

mesmo indignas e desumanas a ponto de se

promover uma terrível maceração da pessoa à

mercê de drogas, do álcool e da própria morte que

sobrevém de uma vida sem sentido pela ausência

de realização e pela pletora de sofrimento. O fator

de progresso é fator de degradação. O mundo

material se faz acontecer pelo não ser da pessoa

humana. A mão de obra transfere sua vitalidade

que passa a ficar embutida na mercadoria,

363

instância bruta e morte. É salgado o preço social

que se paga pela industrialização, pelo

aquecimento da economia e, em última instância,

pelo estabelecimento da civilização. A diferença de

câmbio entre as moedas dos países também é

importante. De forma tal que em algumas partes do

mundo mais acentuadamente são produzidos

produtos de tecnologia de ponto e na periferia se

pratica mais agricultura, pecuária e extrativismo. Os

países da periferia exportam matérias-primas que

nos países ricos são processadas e ali agregam

valor e retornam a preço de ouro para os

consumidores daqueles países donde provêm a

matéria-prima. A geografia econômica mostra que

não existe apenas exploração de um indivíduo

sobre outro indivíduo ou de uma classe sobre outra,

mas de algumas nações por outras nações. A ponto

de termos país rico e povo pobre. Os ditos povos

civilizados mantêm sua civilidade às custas da

barbárie que perpetram nas margens do globo. O

capitalismo é tão arrojado que reproduz suas

injustas e suas relações vendendo camisetas com a

364

estampa exibindo o rosto de Che Guevara. É como

o hippie que defendendo seus ideais escreveu um

livro com o título “Roube este livro” porque queria a

todo custo se ver livre das malhas do capitalismo. A

geografia mensura inclusive o status jurídico das

pessoas. Porque em países árabes ainda se

traficam seres humanos e a mulher é objeto de

compra e venda e de outros contratos comerciais.

Há lugares onde ainda se pratica escravidão e onde

ainda impera o canibalismo. Claro que isto tudo

sinaliza a geografia da fé. Pois o cristianismo é a

ideologia, ainda que não seja só uma ideologia, que

mais fomenta a civilidade e abole os maus

costumes. A geografia explica porque, por exemplo,

o Brasil não é servido do Pacífico assim como o é

do Atlântico: a Cordilheira dos Andes desestimulou

a prossecução da expansão das balizas firmadas

pelos capitães do mato e pelos bandeirantes. A

sociedade brasileira que nasce como sociedade

escravocrata em que os brancos fazem indígenas e

negros trabalharem de graça contra sua vontade e

abole este sistema por uma necessidade

365

capitalista. O capitalismo não se coaduna com mão

de obra não remunerada porque quem não tem

salário não adquire mercadorias, o que trava a

circulação do capital. Os povos da Ásia chegaram à

América pelo estreito de Bering unido pelo gelo na

Era das Glaciações e o europeu aqui chega para

adquirir matérias-primas e expandir a fé católica

que na Europa estava perdendo campo para o

protestantismo. Já o negro da costa ocidental da

África é feito cativo pelo seu próximo que trocava o

capturado por quinquilharia dos europeus. Já a

presença alemã no Brasil se deve ao casamento de

Dom Pedro I com a Dona Leopoldina da Áustria,

lembrando que os austríacos são germanófonos.

Também vieram alemães para o Brasil de aquando

das Duas Grandes Guerras. Muitos alemães vieram

para o Brasil crentes de que a Alemanha nunca

mais se levantaria, o que felizmente não se

confirmou, muito pelo contrário. As teorias críticas,

inclusive entre as quais se encontra boa parte da

literatura geográfica, não entende que há uma

classe de homens maus, mas que a injustiça do

366

mundo advém de certas estruturas. É assim que o

negro ladino, isto é, falante do Português, veste-se

como europeu, anda a cavalo e captura pessoas

fugitivas das fazendas ainda que se trate de uma

pessoa de sua mesma cor. Na casa grande, por

outro lado, há fortíssimos laços afetivos entre o

filhinho do patrão e sua ama de leite negra. Na

senzala, não raro, o capataz é negro ou mestiço e

aquando da lei do sexagenário e do ventre livre

houvesse quem preferisse ser escravo a

quilombola. No mundo hoje são realizados cerca de

100 mil voos diários. Isto nos dá uma noção do

quanto o mundo é pequeno. Os aeroportos

concentram-se na Europa e nos Estados Unidos e

e o maior aeroporto do mundo fica em Pequim. A

geografia ainda ocupa-se com a agriculturabilidade

do solo. O Egito, por exemplo, é um grande

importador de comida porque o Nilo não só aduba

as várzeas, mas ainda as saliniza o que gera um

acúmulo tal de sódio que inviabiliza o

desenvolvimento da planta. Nossa caridade por

vezes mata as pessoas. Porque quando vamos a

367

algum país da África onde as pessoas falam algum

crioulo ou mesmo uma língua nativa vemos as

pessoas vestidas com camisetas e bonés com

dizeres em inglês. Hoje se sabe que o ramo têxtil é

o primeiro que tem a capacidade de fazer

deslanchar a economia. Quem em sã consciência

abriria em África uma ficção ou tecelagem se a

roupa vem em fardos e é comercializada a preço

vil? Outra geografia importante é a da água e dos

recursos energéticos, sobretudo petróleo. O Brasil e

o Canadá se encontram entre os países que

possuem as maiores reservas de água potável.

Sempre lembrando que apenas 1% da água do

planeta é doce. O petróleo é outra questão

fundamental para a humanidade. Os EUA que

fazem guerra para se apropriar das jazidas

petrolíferas alheias como as do Oriente Médio e

para fomentar a indústria armamentista conseguem

ser os mais ricos do globo pela predatoriedade. No

Brasil a bola da vez é a Amazônia e o Petróleo,

sobretudo o oriundo daquela matéria fóssil mais

densa encontradiça sob o sal, e daí a denominação

368

“pré-sal”. Hoje já existem tecnologias alternativas

ao petróleo meramente excutido do solo. No Brasil

volta e meia é reeditado o programa pró-álcool que

extrai álcool da cana-de-açúcar. Muito em voga

hoje é o processo de compostagem. Trata-se de

um conjunto de processos químicos que transforma

resíduos orgânicos, como a serragem e partes

animais, em combustível. O problema é o

investimento que a compostagem em larga escala

requer. O problema energético é fundamental para

a geografia porque tais recursos estão dispostos no

globo de maneira desuniforme. Ao que tudo indica,

aliás, é que a vitória é sempre da geografia e por

isso que por dois milênios a Europa mostra-se a

parte do globo mais importante. Com o aumento da

densidade demográfica em poucas décadas será a

Ásia que desempenhará este papel. Como a

humanidade não sabe o que fazer com o lixo que

produz e como está carente de recursos

energéticos, a solução passa por transformar lixo

em energia. O único problema é instrumentalizar

isto do ponto de vista técnico, teórico e econômico,

369

principalmente. A geografia deve ser conhecimento

chave para que é governo. A primeira coisa que

requer administração é a geografia. Claus Maria

Von Clausewitz,o maior teórico das ciências

militares, chama a atenção para o conhecimento

geográfico que um comandante militar deve ter. se

tomarmos um manual militar de sobrevivência

norte-americana, veremos lá que o clima

amazônico, por ser quente e úmido, é o mais

estafante do planeta. Para a oumperiforalogia a

geografia é importante à medida que para ela o

próprio lugar é uma instância cheia de sentido. Sim,

porque a vida tem um sentido diferente na Londres

cinzenta e úmida ou na terra do Sol da meia-noite

ou na linha do Equador. O espírito reage diferente

ao ambiente de Caracas e ao de Jerusalém. Uma

coisa é o metanarrador estar rodeado de matas,

serras e rios e outra estar plantado como um

estafermo em um apertado apartamento embutido

na estrutura de um prédio que é um arranha-céus

dentro tantos outros. A tara dos japoneses por

objetos pequenos, por chips de eletroeletrônicos,

370

etc, mostra um habitante abarcado por um pouco

espaçoso arquipélago que não tem mais para onde

se expandir. Assim como o litorâneo sente um

espírito de liberdade por contemplar de um só golpe

a imensidão do oceano e dos céus. O lugar ainda

pode ter um sentido místico e é assim que se

justificam os movimentos de peregrinação em

Santiago de Compostela e em certos lugares de

Macchu Picchu as pessoas entram em transe. A

geografia deixa de ser cada vez mais a descrição

da Terra em sua forma natural para ser a descrição

do homem é de sua cultura porque não há mais no

planeta lugar intocado pelo homem. O homem firma

sua marca por todo lugar onde passa, nada resta

incólume à sua presença. O lugar físico onde

nascemos, crescemos, estudamos, trabalhamos,

amamos, temos nossa família, pesadamente

impacta a nossa vida. E quando fazemos turismo

internacional percebemos que a nossa cultura é só

uma das culturas possíveis sendo que muito

embora consideremos a nossa melhor, o indiano e

o aborígene da mesma forma consideram as suas

371

melhores. É interessante como todos os ramos do

saber se entrelaçam. E em algum sentido a

geografia é o nó górdio que reúne todas as pontas

teóricas jungindo os saberes. A biologia é produto

da geografia. À medida que lugar relaciona-se com

clima, topografia, flora, fauna, insolação, frequência

pluvial e neveira, é pertinente explicar quem é o

homem através destas conexões. O homem dito

branco foi o que mais impactou a geografia em

todas as suas dimensões, mas ele mesmo é

produto de um processo violento de geografização

ou adaptabilidade geográfica. A raça humana

começa no norte da África, vai para a Ásia, chega à

Índia e da Índia desloca-se ao Ocidente. O homem

branco é, do ponto de vista episódico, o mais

recente e o mais pujante. Na verdade, como a

Europa é fria e o Sol escasso, o nível de insolação

cai muito. A pele negra protege o organismo da

radiação e por outro lado cria um filtro contra o

excesso de vitamina D. De acordo com a

varaibilidade genética, e a prova disso é o

nascimento de albinos no coração da África, de

372

quando em quando nasciam indivíduos claros e

estes se adaptavam melhor à Europa. Porque não

eram achacados pelo Sol e com a perda gradativa

de pigmentação conseguem extrair mais vitamina D

de um ambiente pouco ensolarado. Os escuros

sofriam de carência de vitamina D cujas

consequências sabemos que são doenças

cardíacas, pressão alta, câncer, artrite, reumatoide,

dentro outras. Montesquieu foi o primeiro a associar

conceitos geográficos à legislação povos em sua

obra O Espírito das Leis. E por falar em lei, diria

que a estratégia sistemática do Estado em apenas

os pais com pensão alimentícia não é tanto reflexo

da preocupação de dar guarida ao já nascido e sim

controlar a natalidade mexendo no bolso do varão.

A geografia é importante como ponte de síntese.

Assim que na Turquia há síntese de valores

ocidentais e orientais. Na Galiza se fala o Galego

que aglutina elementos do Português e do

Espanhol, assim como o Catalão é um mescla,

grosso modo, de Espanhol e Francês. O mesmo

pode ser dito em relação à raça, como na Rússia

373

em que há miscigenação entre orientais e

caucasianos. Assim como na Índia e no Paquistão

pratica-se o sikhismo que é a junção do hinduísmo

com o islamismo. O fato de o Vaticano estar

encravado no coração da Itália é fator determinante

para que uma de suas línguas oficiais, seja o

Italiano. O fato de um país não ter acesso a portos

faz depender da boa vizinhança com outras nações

para poder fazer fluir suas mercadorias por mar. A

geografia está relacionada ao tempo. Porque o

Reveillon ocorre primeiro no Oriente e por isso o

Japão é considerado o País do Sol a partir do

meridiano de Greenwich. Os estreitos também são

de grande importância para a geografia como o de

Magalhães, de Bering, de Gibraltar e onde não

havia ou não se conseguiu produzir um estreito

construiu-se o canal do Panamá. O mesmo vale par

ao Canal de Suez no Mediterrâneo. É melhor

passar por um canal a ter que contornar todo um

continente em função de se procurar

navegabilidade. Só a engenharia moderna seria

capaz de transpor os óbices da topografia que em

374

épocas passadas eram intransponíveis pela força

da pá e da picareta.

Religião: a ideia de religação

A religião se refere à ideia de ligar aquilo que foi

desatado. No sentido de quando estamos no

mundo empírico estamos fora daquela conexão

própria que é a antecâmara do mundo empírico. A

humanidade teve vários grandes líderes religiosos.

A seguir citamos os mais importantes. A religião é

importantíssima porque é ela que serve de

plataforma final para que sobre ela seja posto todo

o restante. Cada disciplina é a mais importante a

partir do seu próprio ponto de vista e com a Ciência

da Religião não é diferente. Em torno de 5.000 a. C.

surge Krishna na Índia para propagar aquilo que

seria conhecido como hinduísmo. Os principais

textos do hinduísmo são os Vedas e o Baghavat

Ghita. O hinduísmo está relacionado à yoga que

trabalha espiritualidade com técnicas de respiração.

Para o hinduísmo a alma de um ser humano tem

375

milhões de anos e vai se reencarnando para que

progrida cada vez mais. Em 1.300 a. C. temos Lao-

Tsé na China propagando o taoismo cujo livro

sagrado é o Tao Te King. O taoismo prega a

dualidade de princípios e diz que os seus

seguidores devem seguir o caminho correto. Toma

emprestadas muitas coisas do xintoísmo. O

xintoísmo é religião e filosofia japonesa pré-

Histórica que se caracteriza por culto à natureza,

aos ancestrais e é politeísta. Em 1291 a. C. nasce

Moisés que recebe de Deus a Torá. Ele era egípcio

e conduziu o Povo Hebreu para fora do Egito onde

havia escravidão. Zaratustra remonta a 700 a. C. na

Pérsia. Sua doutrina chamava-se zoroastrismo. O

livro sagrado é o Zend Avesta. Trata-se de religião

monoteísta. Sidarta Gautama, conhecido como

Buda era natural da Índia e não deixou nada

escrito. Contrariando o hinduísmo diz que o ciclo

reencarnacional pode ser quebrado desde que se

aniquile o desejo e o próprio eu e assim será

atingido o nirvana. O jainismo tem como mestre

Mahauira que nasceu em 599 a. C. e prega

376

ascetismo, metempsicose e um de seus símbolos é

a suástica. De acordo com a doutrina, quem nela é

muito experimentado consegue ficar seu se

alimentar ou, como dizem, alimentam-se de luz.

Confúcio é de 550 a. C. e sua doutrina chama-se

confucionismo. Ele é chinês e a obra doutrinária

mais importante são os Analectos. Prega a moral, a

boa vida familiar e a obediência ao Estado. Em 469

a. C. temos Sócrates na Grécia que conferiria

dignidade ao discurso filosófico. Não deixou nada

escrito, mas sua doutrina foi exarada por Platão ao

longo de diversas obras. Jesus Cristo é o fixador do

calendário ocidental é o seu nascimento coincide

com o ano zero. Pregou na Palestina, ensinou sua

doutrina incomparável com tudo o que há neste

mundo e fez muitos milagres. Não escreveu nada,

mas suas façanhas e seus ensinamentos estão

consignados nos Evangelhos. Maomé é de 570 d.

C. e nasceu onde hoje é a Arábia Saudita.

Escreveu o Alcorão, de acordo com ele ditado por

um anjo. É o grande nome dos filhos de Ismael. Ao

lado do judaísmo e do cristianismo é uma religião

377

abraâmica. Francisco de Assis nascido em 1.182 é

italiano e foi um renovador do cristianismo católico.

Viveu a mendicância, a pobreza e a caridade. O

guru Nanada é de 1.469 d. C. e sua doutrina

chamada Sikhismo se difundiu no Paquistão e na

Índia. O Sikhismo é a síntese de hinduísmo e de

islamismo, este último tomado na perspectiva

mística do sufismo. Lutero nasceu em 1.483 d. C.

na Alemanha e traduziu a Bíblia Vulgata de

Jerônimo para o alemão. Foi contra as indulgências

plenárias e ensinou que a salvação vem pela fé.a fé

Bahá’i é do século XIX e ensina que o mundo

espiritual tem uma evolução e uma dinâmica

própria. Krishna, Abraão, Buda, Jesus, Maomé e

Bahá’ulláh seriam autoridades espirituais de acordo

entre si e complementares. A ideia parece-nos

interessante, mas não é fácil pautar a conduta,

dada a pluralidade de doutrinas. Allan Kardec

nasceu em 1.804 d. C. e foi o grande

sistematizador do espiritismo que prega a

metempsicose até que se atinja o espírito luz.

Escreveu vários livros, dentre eles O Evangelho

378

segundo o Espiritismo. Helena Blavatski nasceu em

1.831 d. C. na Rússia e foi a fundadora da Teosofia

e uma de suas principais obras é A Doutrina

Secreta. Trata-se de religião sincrética, mística,

esotérica e de difícil compreensão. Masaharu

Taniguchi nasceu em 1.893 d. C. e sua doutrina

chama-se seicho-no-ie. Ele era japonês. A principal

obra é A Verdade da Vida. Há culto aos ancestrais

(manismo), do cristianismo se ensina o perdão e do

budismo se ensina que o nosso pensamento

determina o que ocorre em nossa vida. Pecotche,

argentino nascido em 1.901 d. C. ficou famoso pelo

pseudônimo Raumsol e criou o que chamaria de

Logosofia. Para a Logosofia o homem é

fundamento de si mesmo e, de acordo com uma

hermenêutica radical, Deus, em obras logosóficas,

seria apenas um conceito. Ao que parece o

budismo também é uma religião ateia. As religiões

orientais são predominantemente filosóficas. Mas

diferem da filosofia ocidental e diferem das ditas

religiões “reveladas” em que o ingrediente fé é

explícito. A religião é o grande sistema de ideias, a

379

perspectiva de mundo e de extramundo, a

metanarrativa que norteia o agir da maior parte da

humanidade. Ter religião não é tanto uma escolha,

mas uma imposição cultural e uma necessidade

psicológica. Mas o fato de sermos culturalmente

influenciados e termos carência e taras psicológicas

não tira o valor da religião assim como a

causalidade apriorística kantiana não é argumento

o bastante para negar a causalidade fora de nós.

Diria que a religião é um fenômeno e por detrás de

cada fenômeno há uma realidade eidética e

essencial inegável. A religião é apenas o elo de

ligação entre o homem e o seu fundamento. O fato

de o homem entender a divindade diferentemente

em cada cultura não causa relativização recíproca

dos pontos de vista contrapostos. Ambos os lados

estão corretos a partir de si mesmos. É neste

sentido que a Bíblia afirma que “muitos são os

dons, mas um só é o Espírito”. Penso que cada ser

humano com suas experiências vivenciais deve

eleger uma via e tentar vivê-la. O que se vê é que a

religião muitas vezes acaba sendo o único caminho

380

de ordenação de vida daqueles que se

desencontram em meio às brumas mundanas. A

religião é um grito de protesto contra a contingência

deste mundo. Não raro se costuma dizer em

relação aos incrédulos que eles se apropinquam ou

pelo amor ou pela dor. E pelo que tenho visto, a

grande maioria vem pela dor. A religião é um

sentimento de dependência de um Ser Superior.

Temos necessidade de dependermos de algo fora

de nós porque somos um nada em relação ao

restante da humanidade e para os sistemas, sejam

eles econômicos, sociais ou políticos. Já dissemos

nesta obra que sobretudo nos grandes centros

urbanos nos sentimos uma nulidade zirótica pela

abundância e concentração dos indivíduos. O eu

relativo precisa do Eu Absoluto. Da mesma forma

que o Eu Absoluto precisa do eu relativo. Na

maioria das religiões, máxime, nas reveladas, vejo

a Divindade ciumenta repressora dos ególatras que

cultuam mais a si mesmos do que a ela. No mundo

empírico estão presos dentro de uma série de

imanências e a religião é o instrumento de

381

superação que nos permite transcender as

circunstacialidades dentro das quais estamos

atados. A matéria é cheia de regras e a religião

quebra estas regras. A religião é sempre um bom

discurso quando o que se tem em mira é a

dignidade do ser humano. Porque se admitimos

que não somos mais que nosso corpo e que nossos

recursos mentais então logo se banaliza a vida.

Adilson Colombi me dizia nos tempos de meu

marxismo ateu que “jogando fora meu cristianismo

eu estaria também me jogando no lixo”. Na

verdade, o fato determinante de meu ateísmo na

época da adolescência era mais por questões

afetivas, pois meu pai era um rançoso católico sem

prática e eu estava exprimido entre o ceticismo da

filosofia e a opressão religiosa familiar discursista e

hipócrita. Prega-se, em geral, cristianismo, mas

vive-se qualquer outra coisa, menos cristianismo. A

religião é a um só tempo promotora de civilidade e

de barbárie. No entanto, o saldo é mais positivo do

que negativo. A força religiosa é sempre a mais

forte. Ela é a mais forte por ser mias popular e por

382

ser criada como uma instância cuja legitimação

vem do além. Não raro, líderes religiosos foram

líderes militares e a Guerra do Contestado é um

ótimo exemplo disso, ainda que os tais monges,

fossem charlatães. Frei Caneca seria um dos

mentores da Revolução Pernambucana. Na

teologia católica o marxismo foi apropriado por

religiosos católicos na América Latina e marxizaram

a Bíblia e biblicizaram Marx. O sincretismo é marca

de várias religiões. Porque a maneira de conservar

vivo algo velho é fazendo periódicas reformas e

aglutinando elementos externos. O catolicismo na

América Latina, sobretudo nos países de Língua

Espanhola, aglutinou a cultura indígena, enquanto

no Brasil a assimilação se deu em relação à cultura

afro. O cristianismo primitivo assimilou muito do

paganismo greco-romano. Os gnósticos foram

reprimidos, mas nenhum papa ou outro pontífice

sozinho consegue apagar o rastro de toda uma

civilização. A religião ajuda a organizar o nosso

tempo e a dar sentido a ele. É assim que no

Ocidente folga-se aos domingos e mui lembrados

383

são a Páscoa e o Natal. Sendo que a Páscoa Cristã

é diferente da Páscoa Judaica e o Natal foi o

aproveitamento do dia 25 de dezembro dedicado ao

deus sol para nele se celebrar o nascimento de

Cristo. A religião, de acordo com Jung, é um

sentimento mais forte do que a sexualidade.

Discordando do que afirmara seu mestre Freud.

Para nós ocidentais talvez não signifique nada que

um indiano fique décadas com o braço

perenemente erguido, mas para a cultura daquele

asceta isto denota santidade. O próprio celibato

praticado pela maior denominação religiosa do

Brasil já não é bem aceita ou sequer valorizada.

Esta é a loucura da qual fala Paulo de Tarso, autor

de várias epístolas. A religião é a grande prova de

que o intelecto humano sozinho não dá conta de

tudo explicar e de se autossatisfazer. O homem não

basta a si mesmo. E isto é tão real que daí nasce a

poesia, a literatura e as artes em geral. Mas nem

toda a arte do mundo é capaz de exercer o papel

de Deus, prerrogado que é de muitos papéis. A

religião nem sempre é o melhor aferidor da

384

idoneidade de uma pessoa. A pessoa pode ser

muito religiosa e guardadora de ritos, sem

compreender o âmago daquilo que lhe serve de

justiça própria. Todavia, ainda que religião não

pague conta e não sirva de fiança, atrevo-me a

dizer que, em linhas gerais, as pessoas praticantes

de uma religião apresentam um padrão ético algo

melhor do que os não praticantes. Apesar de casos

de pedofilia as igrejas de um modo em geral e as

autoridades religiosas são as instituições e as

pessoas que contam com a maior credibilidade

social. No passado do Ocidente religião e política

estavam não só ligadas, mas em comistão. De

modo que quem fosse autoridade religiosa teria

poder político e quem fosse político teria espaço na

estrutura eclesiástica. Em sociedades do Oriente

religião e política continuam integrando um bloco

monolítico. Isto ocorre entre os árabes e no Tibete

da teocracia do Dalai Lama. Numa sociedade em

que tudo se consome e gastamos as massas são

premidas a se afiliarem a uma denominação e a

contribuir com o dízimo. Assim como num mercado

385

os produtos estão expostos em prateleiras hoje

existe o shopping da fé com direito a canal de

televisão, emissora de rádio e jornal próprios.

Assim como nos sentimos mal em admitir que não

somos torcedores de nenhum time de futebol de

igual maneira e com maior razão nos sentimos

obrigados a nos submetermos ao alpendre de uma

instituição para evitar diatribes proselitistas. A

religião é o melhor caminho, melhor até mesmo do

que a política, para uma pessoa simplória tornar-se

alguém socialmente relevante. A religião ao lado da

linguagem, até porque não há religião sem

linguagem e há quem diga que a religião nasce do

encantamento da linguagem, é o que faz diferir o

homem do animal. O animal é ateu radical. No

sentido de que para ele não lhe ocorre no intelecto

e não faz a menor diferença Deus existir ou não.

Nos tempos de pós tudo em que nenhuma ideia de

largada é de todo absurda vem bem a calhar o

discurso de que Deus é amor. O Senhor dos

Exércitos de outrora, o Deus exterminador é

substituído pelo Deus hippie. Esta noção de um

386

Deus complacente nos torna frouxos. Sim, porque o

pecado, para quem admite este conceito, não nos

afeta ainda que estejamos claramente conscientes

dele. Ouvi um ministro de confissão religiosa dizer

“Deus gosta que pequemos para poder nos

perdoar”. Alto lá! Uma questão de ordem! Deus não

gosta de pecado e não quer que pequemos por

mais imensurável que seja sua graça. Pois ainda

que Deus não punisse nossas faltas liberando

perdão antes da intenção mesma de pecar é certo

que vivemos numa sociedade de controle total,

inclusive da mais íntima privacidade e com ela não

tem “love”, tem “hardpower”. Numa sociedade de

relativa liberdade de pensamento e expressão

vemos uniões entre ambos os pais incrédulos se

não exatamente ateus. E o que ocorre? Pois bem,

os filhos de pais ateus buscam encontrar-se na

religião que em momento algum foi ministrada no

seio familiar. Outra hipótese é a de casamentos

mistos em que cada genitor professa uma fé e os

filhos são disputados ou mesmo outorgando-lhes

decisão própria devem fazer uma opção radical que

387

alterará a relação com ambos os pais em que o

fator afetivo entrará como causa e consequência.

Cada vez mais discursos não religiosos, não ao

menos do ponto de vista do mais rigoroso e estrito

papel da religião tradicional. Todavia, o que se vê é

que as neorreligiões, que ao mesmo tempo são

pseudorreligiões, não conseguem responder

integralmente aos anseios da alma humana e

sempre remanesce um cadinho de angústia e de

perplexidades existenciais não resolvidas. Porque

toda instância vicária é incapaz de realizar com o

mesmo primor aquela função que cabe aos

revestidos de titularidades. Todo o saber se

apresenta como técnica explicativa, porém, nem

toda explicação consegue atribuir sentido àquilo

que se explica. A batalha dos filósofos irreligiosos é

uma batalha perdida. Não só porque enquanto

existir humanidade existirá religiões, mas porque

tenho visto que certos homens que abandonam sua

religião passam a acreditar em crendices mais

bizarras e mais primitivas. Como diria Edmund

Burke “a superstição é a religião dos que não tem

388

religião”. Trata-se de paráfrase. Tomando uma ideia

emprestada da informática, querer organizar a vida

familiar, profissional e econômica prescindindo-se

da dinâmica espiritual é como querer usar o

Windows sem primeiro instalar na máquina o DOS

sobre o qual os softwares mais leves estão

calcados. Por mais que os teóricos expliquem a

religião como consolo, hipostatização dos ideais

humanos, alienação mental, fantasia de desejos

não realizados e mesmo que tais perspectivas

teóricas tenham alguma razão, a religião é mais

que tudo isso. O povo precisa de pastores e não de

intelectuais. A atitude de um mártir tem muito mais

valor do que o ensinamento de um erudito. Jesus é

o homem perfeito porque coonesta com o sacrifício

da própria vida aquilo que ministrou com sábias

palavras. O sacrificar-se pela lição é a prova

irrefragável que todo discípulo espera de seu

mestre.

Formas primitivas da vida religiosa: a ideia de alma

389

Neste tópico voltamos a algumas reflexões

antropológicas porque o homem só é compreendido

dentro de um processo evolutivo orgânico,

neurológico e cultural. A partir de dado momento o

homem começa a crer que a imanência não se

esgota nela mesma. É assim que Malinowski com

muita propriedade observa o uso de amuletos. No

sentido de que aquele penduricalho no colar de

meu pescoço não é apenas um enfeite, mas um

receptor de fluídos positivos que me potencializa

para o sucesso e o êxodo. A religião nasce pela

subjetivação daquilo que é objetivo. Os

preconceitos passam a ser tomados como mais

importantes do que a objetividade dos fatos. A

primeira etapa da fé coincide inteiramente com a

feitiçaria. O líder espiritual é aquele que executa os

rituais que esconjuram a favor do pedinte as forças

ocultas que determinam os caminhos e os

descaminhos das coisas. Nesta fase tudo está

cheio de espíritos. Isto se chama animismo. A

ponto de o canibal crer que o alimentar-se do

cadáver do opositor vencido se traduz na aquisição

390

da força daquele guerreiro. Trabalha-se com as

forças do mal e do bem ao mesmo tempo e até

parece haver uma primazia das forças do mal. A

religião nasce e se fortifica com a divisão social do

trabalho, com a complexificação do grupo e com a

concentração demográfica. Porque a partir do

momento em que há tantas encomendas de feitiços

a ponto de justificar a existencial social de alguém

que só se ocupe com isso e nada mais, a tendência

é acentuar o papel desta forma primitiva de

religiosidade. A par e paralelo ao mundo real vai

sendo construído o mundo espiritual. Não estranha

também que o feiticeiro seja um dos mais velhos da

tribo porque o ancião já não mais tem força para a

caçada e precisa forjar um papel social que

justifique sua utilidade dentro do grupo. O feiticeiro,

num primeiro momento acaba cumulando o papel

de líder religioso, médico e juiz. E os problemas de

saúde são tratados espiritualmente além do ritual

material em relação ao qual algumas tribos creem

que quanto mais dolorido o procedimento,

crescente é a sua eficácia. A feitiçaria também é o

391

reconhecimento da pouca desenvoltura da técnica

de uma coletividade de modo que a ingerência

sobre o mundo natural só se medeia por formas

mágicas e encantadas. A religião, logo quando

nasce, pode promover os fracos e rebaixar os

fortes. Justamente porque seus critérios são

heterodoxos daqueles oriundos do mundo

puramente físico. A religião também surge como

primeira memória. Porque os mortos passam a ser

cultuados. Crê-se que o corpo perece, mas o

espírito invisível transita nos lugares onde o finado

em vida permanecia quando atado ao corpo. A

ideia de alma é a abstração da personalidade.

Como se o corpo físico fosse à falência, mas a

personalidade permanecesse incólume. A vida

religiosa primitiva também principia por culto a

árvores, a animais, e passa a se deslocar para culto

de animais fictícios como se entre os egípcios

mistura entre jacaré e ave, leão e mulher. Também

o culto passa a ser de princípios e forças naturais

como a chuva, o vento e o trovão e de corpos

celestiais como a Lua, o Sol e outras estrelas. A

392

observação das estrelas começa a ser tão

intensamente praticada que dela nasce a astrologia

que é crença da influência de uma determinada

conjuntura de astros no dia do nosso nascimento

sobre nossa personalidade. O determinismo

inexorável dos gregos decorre desta ideia de ver o

homem como lançado sem proteção às forças

tirânicas e cegas da natureza. As forças da

natureza, por sua vez, seriam o epifenômeno de

arquétipos espirituais. A religiosidade primitiva

também cumpriu o papel que as religiões mais

desenvolvidas cumprem até no dia de hoje.

Referimo-nos à integração da experiência. Sim,

porque a religião é a racionalidade nascem juntas.

Até porque racionalidade e irracionalidade são

complementares. A religião é a representação de

mundo que me permite superar a fragmentação da

experiência. Ela junge tudo numa perspectiva mais

ou menos harmônica. A religião é o primeiro nexo

de causalidade, como apontou Kelsen. No sentido

de que a religião primitiva inculca no homem que se

ele agir de forma má o mundo conspirará contra ele

393

e, se pelo contrário, ele agir bem, o mundo

conspirará a seu favor. A religião primitiva é a

primeira metanarrativa engendrada pelo homem.

Porque este mundo passa a ser concebido como

extensão de outro mundo, muito superior ao nosso.

Isto fica claro no mito da caverna de Platão. E a

nossa vivência neste mundo passa a ser encarada

como um estágio probatório. Em razão de uma

queda é que viemos parar neste infeliz lugar. E as

tristezas desta vida não se comparariam à glória da

vida futura se aprovados fôssemos nesta

substância. A ideia central de religião é encarar o

mundo como passagem. A religião ensina

desapego e provisoriedade. Como diria Buda, este

mundo é uma ponte, devemos passar por ela, mas

não construir uma casa sobre ela. Gerações vêm e

vão e nem um jota dos livros sagrados é suprimido

ou acrescentado. Lembrando que o jota equivale ao

iota, menor letra do alfabeto grego. Do iota procede

o jota e o “i”. As formas elementares da vida

religiosa eram muita consuetudiárias, ou seja,

assentadas em costumes. E ao que parece a

394

redação dos livros sagradas vem a ser uma

exaração de hábitos surrados e já consagrados

pelo decurso do tempo. É assim que a Lei Mosaica

retrata em maior ou menor medida uma tradição

egípcia antiquíssima. E mesmo o Alcorão sendo um

texto mais recente ele retrata uma mentalidade

própria dos tempos antigos em que Abraão viveu.

Talvez esta seja a diferença básica entre filosofia e

religião, ou, ao menos, um delas: o filósofo pensa e

imediatamente escreve, já a religião acontece,

acontece, acontece, e só muito depois ela se

corporifica no papel. A religião nasce junto com o

direito. Pois num primeiro momento não há direito

puro e é a religião que diz quem tem direito a que.

A religião também assinala a mudança do

matriarcado pelo patriarcado. No sentido de que a

fêmea passa a ser fêmea de um único macho, o

que liquida com o problema de se saber quem é o

pai da cria. A religião é o que estabelece os

fundamentos do Estado. Porque depois que o

Estado está fortíssimo e gigantesco ele se separa

da religião, mas se não fosse ela ele sequer

395

existiria. Não é por acaso que o anarquismo é a um

só tempo negação do Estado e da religião. Religião

é princípio, teórico, de poder, de aglutinação e

Estado é isto também. Porque o Estado é o que

confere eficácia aos ditames da religião. Porque

num primeiro momento a religião vem a ser uma

imposição e não uma opção pessoal. Isto contradiz,

por exemplo, o espírito do cristianismo, porque

enquanto o Cristo é compassivo com o mal, tendo

doze legiões de anjos a seu lado, agoniza três

horas na cruz enquanto que a cristandade se

organiza militarmente mediante as cruzadas e

burocraticamente com o Tribunal da Inquisição. E

esta crítica não afeta o catolicismo, mas o

cristianismo com um todo conquanto em dado

momento aquela cristandade era a única possível.

Com a separação entre Estado e religião só a lei

remanesce compulsória e a moralidade religiosa é

relegada para o foro íntimo de cada indivíduo. Não

há imposição legal de religião hoje, mas continua

havendo imposição social, sobretudo no âmbito

familiar. Pois abdicar de uma perspectiva religiosa

396

poderá equivaler a uma ruptura com todos os

relacionamentos estratégicos. A religião também se

mistura com os ritos iniciáticos que nesta obra

recebem um capítulo à parte. Porque a religião

impõe critérios de ascensão social. É a religião que

confere a aquisição da capacidade nubencial. Não

basta apenas o preparo biológico, exige-se ainda o

preparo social em que o aferidor é o sacerdote. A

religião nasce com a ideia de alma e de julgamento

desta alma. Porque se existe alma é de se admitir

que haja quem governe esta entidade. Os conceitos

chaves da religião são Deus e alma. Em relação à

divindade começa-se sempre pelo politeísmo. Aí

então é eleito um deus que é mais que outros

deuses e então logo se reconhece um só Deus e as

outras forças espirituais são reduzidas a anjos.

Como no mundo empírico nem tudo é um mar de

rosas, admite-se a rebelião de uma parcela dos

anjos como ferramenta hermenêutica necessária

para explicar a gênese do mal no mundo. E o

homem passa a estar dividido ou no máximo

disputado entre estas duas forças. A religião

397

também nasce como representação de mundo

enquanto não se desenvolve o pensamento

filosófico. Ela é filosofia e literatura. A filosofia se

caracteriza por tentar se livrar dos pressupostos e

dos corolários injustificáveis, mas o máximo que

consegue é transformar Zeus em motor imóvel. O

que ocorre é uma reificação da linguagem. A

linguagem fica impessoal, abstrata e genérica. Já a

literatura perde sua função de metanarrativa para

se tornar exercício mental e emoção enlatada. Há

muitas pessoas que entram em crise quando se

debruçam sobre a etiologia e desenvolvimento da

religião e quando vislumbram a pluralidade de

perspectivas religiosas. Porque os estudos

genéticos acerca da religião acabam gerando a

impressão de que ela é irredutível a processos

psicológicos sociais, culturais e históricos e a

pluralidade de perspectivas religiosas faz com que

um ponto de vista relativize o outro. De toda sorte

diria que os grandes estudiosos, senão todos boa

parte deles, continuam tendo suas verdades

pessoais resguardadas, em que pese o discurso da

398

sociologia, da antropologia, da filosofia, da

psicologia, etc. O estudo tem esta característica

duplamente frustrante e os meus colegas que estão

mais adiantados do que eu e fizeram doutorado que

o digam: a uma, porque estudar um fenômeno

equivale a destruir este fenômeno e, a duas, porque

o estudo que pretende esgotar objeto sobre o qual

se debruça sequer arranha o seu verniz. Nas

sociedades da Antiguidade a religião tinha um peso

enorme. A religião só passa a perder espaço no

Ocidente com a chamada secularização. A filosofia

é a grande promotora da secularização seguida

pela ciência que passa a interferir nos mesmos

espaços antes reservados à religião. De todo modo,

por mais que a filosofia, a ciência e a técnica

evoluam, a religião terá seu espaço justamente

porque até mesmo do ponto de vista neurológico

toda a evolução do próprio homem e do universo

está escrita no homem e a religião é um dos

capítulos mais importantes desta História. O ensino

religioso não deve ser ministrado na escola pública,

mas não significa que o ensino público deva ser o

399

único lócus do ensino. Todos precisamos de ensino

religioso e penso que ao menos disso as igrejas

deveriam se incumbir. A religião desde os

primórdios esteve ligada à sexualidade. Desde o

começo ela pautou o comportamento sexual.

Talvez o cristianismo tenha reprovado o incesto

porque o contrair núpcias com estranhos equivale a

ampliar minha rede de relacionamentos afetivos.

Religião é ordem e a maior desordem é a

promiscuidade. Freud quis libertar os neuróticos e

os psicóticos de suas taras e fulminou, por isso, a

religião. Mas não se percebe que a religião não se

presta para oprimir. A religião serve par orientar. E

quando ela impõe uma norma proibitiva é claro que

passo a correr o risco de desejar algo proibido. Mas

só por isso não posso dizer que é proibido proibir.

Porque o direito sem limites equivale à máxima

injustiça. Não se vislumbra escravidão em larga

escala e um imperador com superpoderes ou um

trabalho arquitetônico como as pirâmides do Egito

senão mediante um intensivo, exaustivo,

extenuante e maciço discurso religioso. No Japão,

400

em tempos pré-Ocidentais, o imperador era

celebrado como deus. A religião é a mestra da

economia e da política. Alternam-se nessa tríade,

em épocas diferentes, a primazia ou da política, ou

da economia ou da religião. A característica da

religião é ela mesma ser uma perspectiva

autônoma em si. Assim sendo, pessoas diferentes

de distintas classes sociais podem somar forças

dentro do espaço religioso. A religião é sempre um

pretexto para a comunhão. Quando todos os outros

recursos estão desgastados é a religião que tem a

capacidade de unir os homens em favor de uma

dada causa. Além de ser um discurso totalizante a

religião é mais compreensível ao homem comum

do que a filosofia ou a ciência. Em tempos de

pouca desenvoltura da racionalidade enquanto algo

social e coletivo a religião se mostra insubstituível.

Porque todos os discursos posteriores que vieram a

exercer um papel semelhante ao da religião eram

herméticos e, se se vulgarizaram, foi ao preço de

Marx negar ser marxista e reduzir a psicanálise a

um pansexismo. Aliás, esta diferença entre a

401

compreensão vulgar da religião e o conhecimento

erudito é a marca de tudo o que há no mundo de

notório. Na psicanálise, no marxismo, e em todas

as religiões há a doutrina exotérica e a esotérica. A

religião desde os tempos antigos cria no homem a

sensação de acessar aquele oculto que não se

vislumbra em nenhum outro lugar. A religião

também, desde os tempos imemoriais, cria a noção

do sagrado. Etimologicamente, o sagrado é o

antônimo do profano. O sagrado é, por definição,

algo que não se vende. E por incrível que pareça

há uma palavra para designar a comercialização do

sagrado, simonia. A religião sempre se caracterizou

por produzir no homem estados de consciência

alternados. É assim que se fala que um sujeito está

endemoninhado, é assim que se fala em estado de

transe ou glossololia. A religião é essencialmente

paranormal. Através da religião podem acontecer

curas de enfermidades mentais ou mesmo

somáticas. A experiência religiosa pode ser

caracterizar pela premonição, também chamada de

profecia e pela iluminação, em que o sujeito

402

descobre um princípio espiritual até então velado,

seja para sua própria vida ou para toda a

humanidade. A ideia de sacrifício também está

presente em praticamente todas as religiões. Nas

religiões primitivas, entre as quais se encontra o

druidismo há inclusive sacrifício de vidas humanas

para apaziguar a fúria da divindade. Deus, de

acordo com Norberto Bobbio, é um ser que só tem

direitos. Todos precisam dele e Ele não precisa de

ninguém e tudo o que Ele faz não é por obrigação,

mas por generosidade. Deus, nas religiões

propriamente ditas e caracterizadas e não naquelas

que transitam entre a filosofia e a religião, é um Ser

que se compraz em credor de toda dignidade,

consideração, adoração, louvor, elogio e exaltação.

Feuerbach observa que quanto mais imperfeito e

pobre o homem, mais perfeito e rico é seu Deus. O

que o homem efetivamente é condiciona o modo

como ele representa seu Deus. Agora, o que

Feuerbach faz é um salto: dizer que a nossa

representação de Deus é o próprio Deus e que

quando o homem deixa de representar. Deus deixa

403

de existir. Nada autoriza supor que aquilo que

imaginamos exaura tudo o que está por detrás e

por cima da imaginação como se não houvesse

nada além da imaginação. O fato de eu fazer uma

determinada ideia sobre uma pessoa e depois

verificar que esta ideia era equivocada não me

autoriza supor que esta pessoa nunca existiu. O

fato de eu errar um cálculo não retira da

matemática a sua consistência platônica. Apenas

mostra que eu tomei o errado pelo verdadeiro.

Judaísmo: a ideia de um Deus único

O judaísmo é uma religião semita que principia com

Abraão. Abraão torna-se pai quase centenário e

não nega seu filho ainda que filho único. Aí então

Deus se agrada da atitude de Abraão, livra Isaac de

ser sacrificado e promete a Abraão ser pai de

nações. O judaísmo cultua um Deus que afirma

acerca de si ser único e, portanto, único verdadeiro,

conhecido por EU SOU ou pela tetragrama YHWH.

Trata-se de um Deus que faz aliança com aqueles

404

que seguem seus preceitos e se mostra intolerante

e sectário. Deus reprova casamentos mistos e

manda passar ao fio da espada quem cultua outros

deuses que não Ele. Estes outros deuses são

chamados demônios e o Deus de Israel é poderoso

e fazedor de prodígios. O Deus de Israel cobre todo

o globo de água e faz o Mar Vermelho se abrir.

Nada mal para uma época em que se pensava que

os deuses moravam nos oceanos e nas águas de

um modo em geral. O Deus de Israel manda as dez

pragas para o Egito para humilhar as dez maiores

divindades egípcias. O Deus de Israel é legislador

e abençoa quem cumpre a lei a amaldiçoa quem a

desrespeita. Como toda lei, inclusive a de Deus,

existe para ser cumprida, mas, não raro, é

descumprida e, como a pena ao descumprimento é

a danação eterna, a morte das mortes, só a morte

pode remir aquilo que diz respeito à morte. Daí que

o animal verte o seu sangue e é esfolado para

substituir aquele que deveria receber a pena, o

próprio homem. O Templo passa a ser o maior

banco, o maior açougue e o maior palanque

405

político, além da maior casa de oração. O judaísmo

é uma religião legalista. E justamente em razão

deste fato pode ser a coisa mais bela do mundo ou

a mais fria. Porque o propósito do judaísmo é jungir

os aspectos internos (espiritualidade) aos externos

(comportamento). Assim, se o que se manifesta no

mundo fenomênico for expressão da mais profunda

compreensão e vivência da Torá haverá ambiente

de santidade. Mas se apelo para subterfúgios, para

burlar os aspectos jurídicos da lei, então cumprirei

ela por fora e a esvaziarei de sentido por dentro. É

neste sentido que os profetas falarão que devemos

rasgar os corações e não as vestes falarão que

devemos circuncidar o coração e não a carne.

Porque não faz sentido recolher o dízimo até sobre

a erva com a qual preparo meu chá e deixar os pais

passarem necessidade. Não se deve coar um

mosquito e engolir um camelo. De nada adianta

praticar o jejum duas vezes por semana e não

realizar a caridade para com o estrangeiro, o órfão

e a viúva. A higiene é importante, mas zelar pela

limpeza de pratos e jarras é menos importante do

406

que zelar pela pureza dos lábios, refiro-me às

palavras que lançamos ao ouvido alheio. O

judaísmo é uma religião dualista ao extremo: de um

lado a dureza da vida na sua concreção desértica e

do outro um Deus riquíssimo. O judaísmo é essa

tensão espiritual entre a Jerusalém real e a

Jerusalém espiritual. O judaísmo é o que mantém a

unidade de um povo trucidado por recorrentes

diásporas. O judaísmo, os meus amigos cristãos

que me perdoem, é mil vezes mais realista do que

o cristianismo. Mas eu ainda prefiro ser cristão. O

judaísmo faz entender que o talião não é um

retrocesso, mas, no momento certo, um avanço.

Porque se alguém me privou de minha orelha,

extirparei uma única orelha de meu oponente e não

as duas. Trata-se de um refreamento à vingança

privada. Os judeus são escravos do sábado. É

certo ter um dia dedicado a Deus. Mas não me

sinto bem nem entre judeus que sequer acionam o

disjuntor na parede para acender ou apagar uma

lâmpada e nem entre ocidentais para quem muitas

das vezes o domingo é um dia como qualquer

407

outro. O descanso é o momento ímpar em que

recompomos nossas forças para trabalhar outros

seis. O judaísmo tira sua força da tradição escrita,

chamada de masorética. A cultura judaica é

extremamente voltada para a escrita. É uma cultura

de muita leitura e de muita erudição. Valoriza-se

por demais a palavra. A vantagem da cultura

transformada em texto é que ela pode renascer das

cinzas e foi justamente isto o que aconteceu com o

hebraico. A cabala é uma tradição paralela que

trabalha com o valor numérico das letras do

alfabeto hebraico. Segundo se diz, os anjos teriam

ensinado a cabala a Adão e este teria transmitido a

tradição aos seus descendentes. Além disso os

rabinos são filósofos-teólogos peritos na arte do

comentário. O Talmude é uma compilação de

entendimentos interpretativos e jurisprudenciais

acerca da Torá. Embora os rabinos não possam ser

nominados de filósofos, pois não são

independentes como os pensadores gregos,

aplicam a racionalidade filosófica aos textos

sagrados. Maimônides é o grande nome na filosofia

408

entre os judeus. A liturgia judaica possui sete festas

distribuídas ao longo de um calendário próprio:

Páscoa, pães ázimos, primícias, da colheita, do

perdão, das trombetas e dos tabernáculos.

Consideram o porco e outros animais impuros.

Trata-se de gente dominadora e intransigente.

Perdem muito e ganham muito por serem avessos

a composições e acordos. Em linhas gerais, apesar

das reiteradas perdas, parece tratar-se mais de

uma História de vitória justamente porque sempre

emerge um remanescente. Ao mesmo tempo são

uma das culturas mais fechadas do mundo e, de

outro lado, há um consenso de que se trata de uma

cultura internacional. É importante dizer que vários

eram os povos semitas e que a maioria deles

cultuavam a outros deuses que não o Deus invisível

dos israelitas. Os judeus eram monoteístas

enquanto sua parentela era politeísta. Em nome do

verdadeiro Deus os israelitas ao longo de séculos e

séculos promoveram o extermínio de seu

semelhante numa verdadeira indústria fratricida. E

eles nem podem ser reprovados por isso enquanto

409

outros deuses, falsos, supostamente expediam

comandos da mesma natureza. O judeu foi

inventando a si mesmo ao longo dos séculos.

Criou-se um arquétipo de judeu e quem não está

absolutamente alinhavado com o padrão é espúreo.

Assim é que os samaritanos são rejeitados pelos

judeus. O próprio hebraico comportando a variante

dialetal do aramaico já mostra uma cisão cultural. O

judeu ortodoxo e essa figura quase folclórica

daquilo que viria a ser um judeu cem por cento. Na

Alemanha também se discutiu o que era um alemão

e chegou-se a dizer que o verdadeiro alemão coça

a orelha esquerda com mão direita e usa luvas de

couro de búfalo. Como se vê, tudo isto é um grande

exagero. O judaísmo é pesado para o não judeu e

para o judeu. Porque dentro do judaísmo há um

nível de vigilância, controle e punição muito

exacerbado. Quem nasce numa família ocidental

entre trancos e barrancos pode escolher qual

religião seguir. Mas quem nasce numa família judia

não tem escolha, ele é propriedade da comunidade

judaica. Se antes de um varão ser gerado se define

410

que ele será rabino então rabino ele será,

impreterivelmente. Nós temos nossos próprios

projetos, mas a sociedade tem os projetos dela

para nós. A lei judaica é rigorosa e dura e visa

regrar a vida de um povo que, quando introduzidos

no ambiente do ordenamento jurídico, levavam vida

duríssima. A pergunta que se faz é: por que impor

uma dura lex sed lex para um povo que já padece

circunstâncias climatológicas, geográficas,

ambientais e epidemiológicas adversas? A resposta

é simples: o ambiente áspero recrudesce os

espíritos e uma lei suave seria incapaz de

disciplinar um povo de dura cerviz e viabilizar a

convivência em sociedade. O judaísmo é

rememorativo, atávico e ensimesmado. Nenhum

outro povo tem uma identidade tão forte como o

judeu. E parece que do ponto de vista intelectual

esta onímoda cultura instila uma dose cavalar de

criatividade nos intelectos que se revelam. Porque

quem sai de uma plataforma muito hermética sente

necessidade de criar uma substituta semelhante

para si mesmo. O judaísmo é o discurso ideológico

411

e espiritual mais adequado e conveniente a um

povo marcado por perseguição, luta, trabalho e

esperteza. O judaísmo tem a ímpar capacidade de

recriar a si mesmo. Ele aparta o judeu do resto do

mundo e diz que o mundo é dos apartados. Que

quem não é assecla é inimigo. De tanto sofrer o

exercício de poderes despóticos o judeu aprendeu

a conquistar o poder. O judeu consegue colocar

outros homens para trabalharem pelo seu negócio

e é obcecado pelo domínio dos meios de

comunicação social. Eles possuem grande trânsito

nos escalões da alta política, das organizações

financeiras e dos movimentos midiáticos mundiais.

O judaísmo é verticalização de normas. As normas

são hierarquizadas. É assim que não posso rachar

lenha no sábado, mas posso salvar uma res que

atolou-se no tremedor. O mesmo legislador que

protege a vida preceituando “não matarás” é o que

determina a execução dos adoradores do bezerro

de ouro. Porque é mais importante honrar Deus

com a morte do que os homens com a vida. Os

judeus são os que menos se ressentem de ter de

412

cortar na própria carne e a maldição contra o

filósofo Baruck Spinoza é a grande prova disso.

Infelizmente, a maioria das igrejas se desfazem dos

membros problemáticos quando o conselho

evangélico sugere exatamente o contrário. O

ostracismo de membros do seio da comunidade

para sabe-se lá onde ficarão extrusos produz

membros lindeiros: o sujeito é e não é judeu ao

mesmo tempo. Quando ele está em apuros não há

quem lhe ajude, e quando consegue ficar famoso é

alardeado para todas as direções de que se tratava

de um judeu. Sinceramente, às vezes me passa

pela cabeça escrever o meu próprio livro sagrado e

fundar minha própria religião. Mas tenho visto

também de que o mundo não está carente de

religião, está carente de quem se proponha vivê-

las. O pecado é uma escravidão, mas não é porque

alguma instância, como um código de normas, tem

o poder de quitar a dívida do pecado, que a pessoa

esteja livre. Porque posso sair de uma prisão para

ser trasladado para um regime prisional, talvez até

mais brando, mas que continua sendo um

413

ergástulo. O judaísmo precisa ser compreendido

historicamente e dentro de um contexto. Porque foi

uma plataforma de dispositivos e institutos que

cumpriu um papel importante, trasladar acerca de

um milhão e seiscentas mil pessoas mais os

rebanhos da terra da escravidão para a Terra

Prometida. Agora que o Estado de Israel tem

reconhecimento internacional, assim como toda

outra forma de racionalidade, o sionismo deixou de

ser importante. Como sentido algum faria o

discurso de esquerda em sociedade de plana

justiça social. O judeu sabe que o judaísmo é

essencialmente messiânico, sobretudo para quem

lê Isaías e Jeremias. Então se ele aceita Jesus

como Messias, então ele já não é mais judeu e sim

cristão. Admiro, particularmente, os judeus

messiânicos. Porque olham para as Sagradas

Escrituras a par de duas óticas. Pois

frequentemente o Antigo Testamento é posto em

desapreço pelos cristãos. Assim, não se

compreende o Novo porque ele é a consumação do

antecedente. Em linhas gerais o judeu fica com a

414

Tanach (A. T.), o cristão com o N. T. e o judeu

messiânico com os dois. E os judeus messiânicos

estão divididos entre aqueles que aceitam Jesus

apenas como messias e aqueles que o aceitam

como messias e Deus. quem salta o A. T. não

entende absolutamente nada nem do antigo e nem

do novo. Os cristãos pentecostais, ao menos

alguns deles, afirmam que a besta será a figura que

será tida por messias para aqueles judeus que não

reconhecem a Cristo e ainda esperam o salvador.

O Antigo Testamento é um conjunto de textos que

são genealógicos, históricos, narrativos, crônicos,

informativos, sapienciais, filosóficos, proféticos,

políticos, espirituais e envolvem variedades de

gêneros que incluem até poesia, e que se prestam

a orientar o leitor e regular sua vida por decretos e

comandos e enchê-lo de esperança através da

literatura. A Bíblia, no Antigo e no Novo

Testamento, é trabalho de gênios. A grandeza dela

reside na coesão apesar da pluralidade de temas e

autores, apesar de ter sido escrita em lugares e

épocas e contextos diferentes. Além disso, ela é

415

grande porque os autores abrem mão de sua

criatividade para fazer com que ela seja encarada

como a Palavra do próprio Deus. E ela é. Porque

tudo se torna o que pretende ser. A Bíblia é o livro

mais lido, mais traduzido, mais estudado e mais

discutido do mundo. A Bíblia não encerra ciência

dentro do conceito moderno de ciência, mas é,

dentre todos os outros, o livro que mereceu o maior

número de estudos científicos, sejam eles

paleontológicos, arqueológicos, históricos,

linguísticos, culturais, antropológicos, filosóficos,

teológicos e hermenêuticos. É também o livro

campeão em figurar em teses de doutorado. Toda

esta riqueza hermenêutica brota da quantidade de

experiência, prática, tradição, costume e

conhecimento teórico embutido neste livro. O out

put é grande porque grande foi o imput. Debaixo

deste Sol passaram povos de larga produção

literária que sequer conhecemos o nome porque

militarmente nunca foram nada e passaram povos

valentes e belicosos que também ignoramos por

não serem amigos do cinzel ou da pena. Os judeus

416

não, eles foram diferentes: valentes e guerreiros e

escritores ao mesmo tempo, inclusive em alguns

casos unindo ambos os aspectos numa só pessoa.

Isto significa que o judeu vive a experiência e a

exara no papel. Mais que isto, ele teoriza,

sistematiza e explica sua experiência. O fato é que

toda cultura disputa o ser cultural que é o humano e

o judaísmo leva isto ao extremo. Nada tão

judaizante quanto o judaísmo. De modo que o

judaísmo chega a ser um grande contraponto a

toda cultura ocidental na sua enormidade e

retumbância. O judaísmo é a chave da

complementariedade entre Ocidente e Oriente.

Porque não é forçoso dizer que a Bíblia é um dos

fundamentos de nossa civilização e,

modernamente, todo o aparato material e técnico

que os judeus usufruem hoje é reflexo da

industrialização e do desenvolvimento da técnica do

Ocidente. A técnica é Ocidental e o que chineses,

coreanos, judeus e outros fazem com ela é só um

aprimoramento. Assim, quem quiser compreender o

Ocidente na sua profundidade terá de hebraizar-se,

417

aprender hebraico, aramaico e grego para palmilhar

as Sagradas Escrituras de acordo com os originais.

Paradoxalmente, o ritmo da cultura ocidental é tão

acelerado que nos é tirado o tempo de pausa para

cogitarmos nos processos que brotam dos

pergaminhos e afetam nosso tablet. Parece, a

princípio, que se trata de realidades distantes, mas

a linguagem da informática é um tipo de cabala e

criptografia encontramos nos velhos manuscritos e

nos softwares de todo gênero. O judaísmo se

encontra entre poucas religiões que contam com

mais de quatro milênios e que não pressagiam o

próprio ocaso. E apesar de alguns desencontros de

informação é a história espiritual mais bem contada

de um povo pela razão já apontada, a tradição

escrita. A ressuscitação da Língua Hebraica é caso

único no mundo. Ela até pode não estar entre os

idiomas mais falados do mundo, mas com certeza

está entre as mais estratégicas e sua prospecção é

crescer. Cursos via internet colocam qualquer

pessoa de qualquer parte do mundo com um

preceptor em Israel. A bandeira estrelada de seis

418

pontas é tão ou mais conhecida e notória do que a

bandeira de outras potências ocidentais. A História

é a mais sábia da juízas e faz justiça a este povo

sem quem não seríamos quem nós somos.

Cristianismo: a ideia de Deus Homem

A palavra cristianismo vem de Cristo que é o

aportuguesamento do termo Christós, que equivale

ao Messias dos hebreus. Os cristãos acreditam que

Jesus Cristo é o cumprimento da Bíblia judaica, o

prometido pela tradição cuja instância última é o

próprio Deus. O cristianismo é uma religião

abraâmica e monoteísta apesar de os maometanos

vociferarem contra os cristãos que três é diferente

de um. Quem até hoje melhor explicou a triunidade

de Deus foi o filósofo alemão Georg Wilhelm

Friedrich Hegel. De acordo com alguns é o maioral

de toda tradição filosófica desde que ela existe,

Deus é pensante e esse pensamento que pensa a

si é Deus Pai, já o Filho é o Deus pensado, o verbo

que se faz carne, que assume a concreção

419

humana, e o Espírito Santo é a síntese, a relação

entre o Primeiro e o Segundo. Vale à pena pensar

nisso lendo atenciosamente o Evangelho de João.

Deus é comunidade e é único. Deus é pensamento.

Antes de criar o universo pensava em si mesmo e

criou tudo o que existe num gesto de infinito amor a

fim de partilhar a comunhão que tinha consigo

mesmo. O ser é caridade transbordante de um

modo de ser do Máximo dos Seres. Deus cria a

comunidade angelical, mas Lúcifer e a terça parte

dos anjos se rebelam contra Deus e então Deus

castiga satanás, agora já com outro nome e inicial

minúscula, criando um ser inferior a ele em status

ontológico e inteligência, o homem, porém este

imagem e semelhança do próprio Deus. E logo que

o homem e depois a mulher são postos no Jardim

do Éden, o paraíso do mundo, ele quebra a aliança

com Deus ao provar do fruto do conhecimento do

bem e do mal. E então o salário do pecado é a

doença, a velhice e a morte. Agora, se quiser

comer, o homem terá de cultivar o solo: “com o suor

do teu rosto comerás o teu pão”. Deus é fiel às

420

suas promessas, mas o homem reiteradamente

inadimple o que lhe cabe no trato. É assim que

Deus se vê forçado a realizar diversas alianças,

com Moisés, com Josué, com Davi e com Cristo. O

cristianismo se torna religião importante a partir do

século IV depois de Cristo. E a partir da plataforma

política do Império Romano se expandirá por longa

extensão territorial. Em 1.054 d. C. haveria o

Grande Cisma do Oriente. A razão do cisma,

indubitavelmente, é de natureza cultural. Até haverá

discussões acerca do Espírito Santo e do uso de

imagens, e é daqui que surge o termo “iconoclasta”,

ou seja, aquele que quebra uma imagem, mas o

fato é que os orientais eram classicamente

helênicos enquanto que os latinos receberiam

influência fortíssima dos bárbaros germânicos. Os

alemães, portanto, pode ser responsabilizados

pelas duas grandes divisões dentro do cristianismo:

o Cisma do Oriente e o no século XVI com Lutero.

E há quem diga que a Igreja Alemã está prestes a

desencadear o terceiro racha. Não é fácil, como se

vê, entender cabeça de alemão, porque Nietzsche

421

escreveu em O Anticristo que “se o cristianismo não

acabar, a culpa é dos alemães”. E chama seus

conterrâneos de “metafísicos”. Com a descoberta

da América, com o comércio marítimo e a

necessidade de fazer circular as mercadorias

produzidas pela maquinofatura europeia o

cristianismo foi levado para todos os cantos da

Terra. Pois antes disso estava adstrito à Europa, à

Grécia, algumas pequenas comunidades no

Oriente, na Índia e no norte da África. Trabalho

teórico colossal seria tentar explicar como uma

seita judaica insignificante no decorrer dos séculos

se tornaria uma religião universal, contando com

cerca de 2,3 bilhões de fieis. Além disso, vários

disseram de si ser o Messias, porque Cristo

conseguiu toda esta credibilidade? Por certo que o

ter convencido da própria ressurreição pré-

anunciada foi determinante. A maioria das

denominações cristãs dizem que Cristo voltará. A

Bíblia, através de Paulo, aliás, diz que “nós

podemos apressar a vinda de Cristo”, sim porque

ela está condicionada ao preparo da Igreja. No

422

cristianismo há síntese do divino com o humano, de

céus e Terra, de espírito e corpo, de abstração é

concreção, de infinitude e finitude, de necessidade

e contingência, de ser e dever ser, do ideal e do

real, do possível e do efetivo, do natural e do

sobrenatural, do paranormal e do normal, da

metanarrativa e da realidade narrada, enfim, toda

contradição é desfeita e resolvida, passado e futuro

se encontram no Deus de carne e osso que sente

frio, calor, sede, fome, cansaço, além daquelas

opressões psicológicas a que todo ser humano está

sujeito. Cristo derrota satanás ao lhe provar que é

possível viver a santidade estando na carne. Assim

como por um só homem, Adão, o pecado e a morte

entram no mundo, por um só homem, Cristo, o

segundo Adão, entrou no mundo a graça e a

salvação. Cristo, sendo justo, sofreu a pena

máxima imposta aos facínoras. Como Ele sofreu o

que não merecia, com seu sacrifício agora pode dar

vida a quem Ele quer. Mas Ele não faz isto para só

um homem, mas para toda humanidade, porque

seu sacrifício foi infinito. Quem crer e for batizado

423

em nome de Cristo encontra a salvação e fica

sujeito a amar a Deus sobre todas as coisas, ao

próximo como a si mesmo e fazer discípulos. O

próprio Cristo chamou doze discípulos não só para

que eles fundassem a Igreja e porque as doze

tribos de Israel ficassem representadas, mas para

que pudesse pregar nas sinagogas, pois quem não

tinha discípulos não podia manifestar-se nas

sinagogas. Paulo leva Timóteo consigo pela mesma

razão. O cristianismo começa sempre como religião

dos “pobres de espírito” e termina como religião das

elites. Este fenômeno ocorreu com o cristianismo

católico romano e algo parecido já se vislumbra no

Brasil através das igrejas evangélicas. Talvez este

seja o grande sentido da obra de Max Weber A

Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Não

existe maior lavagem cerebral do que o cristianismo

a ponto de o magistrado romano dizer a Paulo de

Tarso “o excesso de estudos afetou o seu juízo” e,

em contrapartida, em outro lugar, “Paulo, desse

jeito até eu fico quase convencido”. A morte é o

combustível do cristianismo. Em nenhuma outra

424

religião o martírio consegue comover tanta gente.

De fato, é extremamente belo morrer por amor.

Belo e nobre! Mesmo quem não vive e sequer

acredita em cristianismo tem apreço por quem crê e

pratica esta doutrina, em nossa ótica é a mais sábia

e a mais revolucionária de todos os tempos. O

papel civilizador do cristianismo contrasta com o

papel civilizador de qualquer outra religião. O

cristianismo é a oficina da dignidade. Ainda que em

nome do cristianismo tenham se praticado tantas

barbáries, no Ocidente e no Oriente, no romanismo

e no protestantismo, ele é a palavra final em

civilidade. O cristianismo não é grande porque foi

de carona com a Civilização Ocidental, pelo

contrário, o Ocidente só conseguiu sua

incontroversa expansão por ter se submetido aos

melhores e insuperáveis princípios espirituais

encontradiços nas Sagradas Escrituras, máxime,

nos Evangelhos. A cristandade por muitos séculos

foi governo e de certo modo ainda hoje o é, e não é

fácil ser governo porque não há governo sem

oposição. Muita coisa tem de ser explicada. E ainda

425

que explicação e justificativa sejam coisas

diferentes, a explicação sempre tem um caráter

satisfativo. A Inquisição teve importante papel na

Idade Média e cumpre fazer alguns

esclarecimentos antes que o preconceito comece a

satanizar a instituição mencionada. Quando o

mundo romano, ou seja, civilizado, vai à bancarrota,

o evangelho gradativamente vai conquistando o

coração dos bárbaros. Porém, estes 30 centímetros

são como o deserto cabido entre o Egito e a Terra

Prometida, um trajeto dificílimo de ser ligado.

Porque embora os bárbaros se rendam à novidade

cristã, não é nada simples tirar um ser humano da

brutalidade selvática e trasladá-lo à civilidade. O

cristianismo conseguiu fazer isto e hoje a

Alemanha, a Áustria e a Holanda são países

civilizadíssimos. Entrementes, o cristianismo

precisou de tempo. Pois bem, voltemos ao Tribunal

da Inquisição. O que justifica a existência deste

aparelho burocrático repressor? Justamente o baixo

grau de civilidade dos povos do Ocidente da

Europa. Os anátemas, heréticos e cismáticos

426

precisavam a qualquer preço ser calados porque se

alguém começasse a propalar doutrinas novas,

diferentes da oficial, correria muito sangue. Porque

não se deve esperar do dissídio de ideias entre dois

ou vários bárbaros os mesmos meios de resolução

de conflitos como nas sociedades democráticas

contemporâneas. Toda a vírgula era razão

suficiente o bastante para desembainhar a espada.

Assim, o Tribunal da Inquisição entendia que era

melhor sacrificar uma cabeça anômica do que

poupar-lhe a vida e no coletivo ver comoção de

violência. E o que escrevemos aqui não é mera

conjectura, mas a mais pura realidade, a ponto de a

Guerra dos Trinta Anos, a eterna polêmica entre

católicos e protestantes ser a maior prova disso.

Porque em nome do mesmo Cristo, um Cristo

tradicional e outro Cristo supostamente resgatado

do cristianismo primitivo pré-sincrético, ambas

promoviam baixas nos lados opostos e a Europa

ficou regada de sangue. Neste sentido que vinha

justificar-se a atuação da Inquisição. Por outro lado,

o luteranismo, o calvinismo e outras

427

neodenominações e a própria Guerra dos Trinta

Anos foram remédios amargos que tivemos que

tomar para nos tolerarmos reciprocamente, sem

que houvesse um órgão social para exterminar os

franco-atiradores do pensamento. Porém, aqui faço

uma ressalva: agora já se trata de novos tempos. E

o que não tem utilidade alguma hoje pôde ter tido

no passado. Agora a coletividade amadureceu, os

germanos já entenderam o viés da civilização e o

pensamento de contestação já não causa a mesma

turbação de outrora. A sociedade medieval

semicivilizada e semibárbara poderia ser

comparada a um tubo pleno de material gasoso

volátil e inflamável em que não se podia riscar um

palito de fósforo e nossos tempos são estoicos de

modo que parece nada mais escandalizar. Ou seja,

já não necessitamos mais dos bombeiros do

pensamento. A partir do momento em que tivermos

esta compreensão histórica, de que tudo é

contexto, nos escandalizaremos menos e seremos

mais cultos. Aliás, em cem por cento dos casos

quando algo lhe escandaliza demasiadamente, é

428

porque alguma coisa permanece alheia à sua zona

mental de compreensão. E assim como homem de

40 anos de idade não pode julgar suas ações de

menino quando tinha 12 ou 16, não podemos julgar

o procedimento das lideranças da sociedade de

uma outra época pelos valores que temos hoje.

Diria que a maior parte da África e uma parte

considerável da Oceania está em situação

subcivilizacional. Só o cristianismo para fazer do

afro e do asiático um ser pleno de sentido e

consciente de si mesmo. O cristianismo promove o

desenvolvimento intelectual dos povos. Até mesmo

porque a Bíblia é um livro de dificílima

compreensão o que cobra esforço intelectual.

Assim como o cristianismo tirou os bárbaros do

estado de todos contra todos e os pôs em

moderníssima e arrojada condição, o mesmo fará

como os ditos povos primitivos que ainda

desconhecem e portanto não praticam as leis do

sucesso. E ainda que um grupo numericamente

expressivo de intelectuais repudie a religião e, com

ela, o cristianismo, é preciso ser dito que todos os

429

intelectuais são menos do que a civilização à qual

eles pertencem. A civilização é o todo e os

pensadores são individualidades e não podemos

colocar esta ordem de ponta cabeça. No dia de

hoje tenho como superadas as questões teóricas e

filosóficas controvertidas e que repercutem sobre

minha fé. Certo mesmo é que os anos passam

como um sopro e faço a mesma aposta de Pascal

conquanto na esfera do pensamento tenha

antecipado todos os resultados das possíveis

apostas. Deveria ser permitido ao homem ir ao

cemitério e ver a ossada do seu avô e de seu

bisavô, quem sabe, se for o caso, do seu próprio

pai, para saber que aquela estrutura calcária um dia

foi o que somos e um dia nós seremos o que ela é.

Nada melhor do que a experiência da finitude para

se ir em busca da Infinitude. O cristianismo deve

ser conhecido, estudado, debatido e vivido. Os

melhores homens que conheci em minha vida

sempre se mostraram profundamente cristãos.

Certo viajante ocidental e missionário cristão estava

caminhando num cantão dos interiores da China e

430

perguntou se havia uma casa de cristão onde

pudesse passar a noite. E eis que alguém aponta o

braço e diz “nesta direção a cinco quilômetros”. Ou

seja, havia na China uma pessoa que vivia o

cristianismo com uma tal intensidade que num raio

de cinco quilômetros era identificada como cristã.

Será que transmitimos com o nosso

comportamento um nível de caridade tal que nos

identifique como cristãos? Se o seu vizinho vai à

Igreja e não vive o cristianismo você não deve dizer

“é por isso que eu não vou à Igreja”. Pelo contrário,

você deve ir à Igreja e deve provar ao seu vizinho

rebelde de que é, sim, possível viver cristianismo. O

continente africano é alvo de vários trabalhos

missionários e penso que tais iniciativas são muito

acertadas. Porque os africanos de um modo geral

estão muito carentes da Palavra de Deus. Não

colhe o argumento, à moda de Feuerbach, de que

eles precisam de alimentação, moradia e condições

de higiene. Tudo isto lhes poderá ser dado e será

como um grande desperdício porque não sabem

administrar a própria vida. Mas se eles tiverem o

431

cristianismo a tudo o mais terão porque o acessório

segue o principal. O progresso material não passa

de um reflexo do progresso espiritual. E nada pior

do que um rico descrente porque, em verdade, é

como se fosse pobre duas vezes. Não há como

esperar de um homem que seja bom cidadão se

antes disso não for um bom cristão. E eu defendo

que sejamos pescadores de homens e não

proselitistas. Se o judeu gosta de viver debaixo da

lei então que viva. A postura das religiões mais

desenvolvidas é o diálogo e o ecumenismo. Porque

o cristianismo precisa aculturar-se. Sim, porque se

eu tiro de cena uma principiologia espiritual para

fazer valer a melhor que é a crística, então o

mínimo que devo fazer é transigir no acidental que

vai desde me alimentar com palitos até andar sem

roupas. É por isso que nas sociedades ditas

desenvolvidas não posso me permitir dar de

ombros àqueles discursos que afrontam o

cristianismo, mas devo dialogar com eles. Este é o

grande erro das neodenominações pentecostais:

polarizam as coisas entre Igreja de um lado e

432

mundo do outro porque seus líderes não possuem

capacidade intelectual de debater com os teóricos

deste século. A Igreja Católica Apostólica Romana

é uma das poucas instituições que dão conta de

absorver a superprodução teórica típica de nosso

tempo. Mas não há como cobrar do rebanho o que

se cobra dos reverendos. Porque a nossa época é

tão variegada e complexa do ponto de vista teórico

que quem não for profissional do pensamento não

dá conta do recado. Como sempre foi, desde que

existe cristianismo, ele será sempre uma opção,

sempre um salto em meio a um nevoeiro, pois no

curso vital de sua metanarrativa ninguém ou

pouquíssimos terão condições de inventariar todas

as teorias do mundo para só então, após exauriente

análise, dizer o seu sim a Cristo. E este dizer sim é

um sim que se renova diariamente, inclusive numa

escala crescente, porque Deu se mostra àqueles

que o procuram.

Ocultismo iniciático: a ideia de aristocracia

433

Desde que o homem existe em sociedades

primitivas há rituais de iniciação. Nas tribos

indígenas, africanas e aborígenes isto é visto sem

fazer o menor esforço. Os índios mocongotuba

submetem os adolescentes da comunidade a

picadas de formigas tucandeiras e o mesmo fazem

os sateré-maués. Veste-se em cada mão uma

espécie de luva em que as formigas estão presas.

Em certas tribos africanas o candidato ao

casamento tem de ficar de pé sobre uma das

pernas em cima de um mastro de seis ou sete

metros de altura por dias a fio. Durkheim que

escreveu uma obra sobre o suicídio deveria ter

criado um capítulo à parte sobre as sociedades

iniciáticas e esqueceu de relacionar um fenômeno

com outro. Muitos e muitos jovens se suicidam

quando são provados pela iniciação. Embora em

cada sociedade os critérios sejam diferentes, que

vai desde ser um bom remador, um perito em arte

marcial, ou constância de temperamento mesmo

estando submetido a drogas como no deserto do

México onde remanescem velhas tribos indígenas.

434

Quem sabe o ritual seja tão exigente que cobre do

neófito pluralidade de critérios, inclusive o

comportamento na intimidade. Nas sociedades

ditas desenvolvida não há o emprego de ritual de

iniciação generalizado. Apenas quem é líder

precisa passar por ela, o homem comum fica alheio

a isso. Porque as instâncias de poder econômico,

religioso e político estão nas mãos das confrarias

que ainda submetem os candidatos à membresia a

testes de resistência psicológica e moral. É assim

que acontece com a máfia na Itália e é assim que

ocorre nas chamadas congregações religiosas da

Igreja Católica como os jesuítas e dominicanos. O

grande problema é que em muitos dos casos o

sujeito está sendo testado e sequer suspeita.

Preferindo imaginar que a sorte faz as

circunstâncias conspirarem a seu desfavor,

decaindo para a infelicidade e depressão. Os

critérios de avaliação são tão esdrúxulos que por

vezes um menino de 12 anos de idade que está em

formação inclusive biológica e intelectual nem se

fala e que consegue aprovação fora do alcance do

435

homem que já está maduro. Penso que é lícito livrar

as pessoas comuns do ritual de iniciação, pois a

verdade é que nem todos pretendem ser líderes ou

sequer ocupar um espaço social de prestígio. A

filosofia é pródiga de exemplos de iniciação e

Pitágoras é a grande prova disso. Aliás, Pitágoras

nos lembra de onde vêm os rituais de iniciação da

Antiguidade egípcia. Assim, mesmo quem é filósofo

tem de demonstrar outras qualidades que não tão

somente a habilidade intelectual. A confraria dos

iniciados tem a vantagem de fazer com que uns

membros abram portas para outros membros, pois

um está no Executivo e outro no Judiciário, um está

na universidade e outro na instituição financeira.

Mas o preço que se paga por integrar o bloco é ter

a personalidade fortemente relativizada pela

confraria na abstração. No fundo não há nenhuma

regra senão a do poder, pois o poder tem o verso e

o reverso e quanto mais empoderado um sujeito

está, mais ele vive isto. Penso que do ponto de

vista da evolução dos organismos e da antropologia

biológica o ritual de iniciação é importantíssimo.

436

Porque já não estamos mais sujeitos àquelas

mesmas adversidades que engendraram o homo

sapiens sapiens. Assim, continuamos nos

reproduzindo e gerando variabilidade genética sem

nenhum mecanismo de seletividade. Desta feita, é

necessário, portanto, que se crie um critério de

seleção. O que a natureza não faz mais é feito pela

própria sociedade. Além do mais, é possível que

maiorias eventuais, como ocorreu na Revolução

Russa, tentem sublevar a ordem posta e aí quem é

governo de fato, os iniciados, terão de unir-se como

uma superliga e conter o movimento de deposição

da ordem posta. Nas sociedades ocidentais esta

lógica tem funcionado por milênios e creio que

assim sempre o será. Para mim, Durkheim é muito

maior teórico do que Marx. Porque a sociedade

precisa ser revolucionada pelos próprios meios de

auto-organização e não por uma lógica nova que

pretende levar a antiga sociedade a uma

hecatombe para fazer emergir algo totalmente

novo. Uma revolução armada é como um bruxo que

esconjura poderes que depois de provocados

437

fogem de todo e qualquer controle, de modo que

nem o esconjurador o subjuga. Mas quando

escrevo estas coisas não repilo totalmente o que

Marx escreveu. Não sou marxista, mas sou

marxólogo. E todo bom durkheimiano deveria ao

mesmo tempo ser marxólogo. Porque a sociedade

em que vivemos precisa ser entendida a partir dela

mesma positivamente e a partir de fora,

marxologicamente. Isto equivale dizer que a cautela

compreende a contracautela, como se usa nos

meios judiciais, e que a metanarrativa deve

comportar a contrametanarrativa. A iniciação é uma

antecâmara que servirá de vestíbulo para quase

tudo na vida. A iniciação é também iniciação de

uma doutrina, cujos alguns princípios já são

aprendidos e assimilados a custa de murro em

ponta de faca desde o estágio probatório iniciático.

A doutrina é secreta, devendo ser mantida sob

sigilo por parte de quem a recebe, sob pena de

severas punições. Aqui faço uma ressalva: a

filosofia. Como as doutrinas das sociedades de

segredo são filosóficas há quem se aproprie de tais

438

princípios sem que os mesmos lhes sejam dados

como dádiva, mas são produto do esforço individual

intelectual. Quem encontra um tesouro sem ter em

mãos o mapa do tesouro faz por merecer. A

tradição filosófica está repleta de princípios que

aliunde são tratados como segredo. Tudo, e não só

a doutrina, é sigiloso. Porque tudo o que se

conhece se desmonta pelo conhecimento. O fato de

sempre haver uma doutrina oculta apenas

simboliza a necessidade que todo o grupo sente de

firmar-se ideológica e espiritualmente. Quanto mais

concentrado o poder, mais necessidade de o

mesmo legitimar-se cultural e intelectualmente. E

como a base do poder material é o poder espiritual,

a teologia é recorrente em tais doutrinas. Daí o

dizer-se em “sociedades de mão direita” e

“sociedade de mão esquerda”. O rosacrucianismo,

só para exemplificar, é um tipo de cristianismo

protestante místico. Esta informação é importante,

porque outras sociedades tomam de empréstimo

algumas lições desta venerável ordem. Tratam-se

de conhecimentos superiores que cobram preparo

439

do assecla para que suporte grandes verdades. É

conhecimento esotérico e hermético. Não pode ser

disponibilizado aos não iniciados por se de difícil

compreensão e porque na recepção sobra

dignidade de quem o recebe. É como dizem os

evangelhos “não se deve dar pérolas aos porcos e

coisas sagradas aos cães”. Não raro, há quem

pertença a mais de uma sociedade secreta. Dentro

do ocultismo o iniciado vai ascendendo em

conhecimento, dignidade e poder de acordo com

uma escalada de grau em grau. Aliás, não é só nas

sociedades secretas que isto ocorre, mas em tudo

na vida é assim conforme explica Maslow com sua

pirâmide. A grande maioria das pessoas passa a

vida toda sem conseguir sair da base. Em minha

família tive o caso de um senhor que se casou com

uma de minhas tias que trabalhou duramente a vida

toda na produção no horário noturno e faleceu

poucos dias após a aposentadoria de modo que

sua vida não teve quase nada de fruição, mas

sempre obrigação. Dentro de tais confrarias o

sujeito muitas vezes continua encontrando

440

oposição, dos seus próprios confrades, mas lá é o

nicho onde de fato ocorre uma verdadeira

fraternidade. Talvez pela ímpar oportunidade, como

se diz na gíria, poder “lavar roupa suja” e sair alvo

como neve. O neófito é marchetado dentro de

minuciosas observações de sua personalidade e

corrigido com um rigor que inexiste nos meios de

coação próprios da grande sociedade que afirma

que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de

fazer qualquer coisa que seja senão por força de

lei”. Diria que uma pessoa que vive intensamente o

cotidiano de uma sociedade secreta tem uma visão

tão distorcida da realidade como aquela que

apenas ouviu vagamente falar na existência de tais

sociedades. Isto é inevitável do mesmo modo que o

leitor de onze mil livros é tão míope quanto o

analfabeto em algum sentido. Diria que tais

sociedades no passado procuravam homens

extraordinários e hoje procuram pessoas comuns

que estão cada vez mais raras na época da

afirmação da individualidade. Como observou

Foucault, a ideia de conspiração mundial – como

441

Dan Brown fez em relação ao illuminati – serve

apenas para literatura. Porque na prática o que

vivemos é a microfísica do poder que envolve o

ambulante que lhe vendo o churro ao médico que

clinica sua saúde. Porque assim como a microfísica

do poder pode se pulverizar por um comando

macro, o macro desmorona se não estiver

assentado nas menores bases. O micro e o macro,

enfim, são complementares. Talvez vislumbrando a

indivisibilidade do poder, sua coesão, coerção e

onimodocidade é que alguns teóricos, entre eles

alguns judeus franceses, pregaram uma ausência

total de poder e individualidade absoluta que se

chama anarquismo. O anarquismo é anômico,

materialista, ateu, individualista e sonhador. Crê

que derrubando o Estado, maior instância do poder

temporal e desbancando todas as religiões

teríamos o paraíso na Terra, o que é uma

inverdade. Participar de uma sociedade secreta é

ter a personalidade cindida em dois. Uma é a

memória que abriga o que é de conhecimento

público e outra é a memória reservada para os

442

assuntos da própria ordem. É como eu ter duas

memórias em meu computador, o que é

plenamente possível. Os membros de uma

sociedade fechada olham para a sociedade aberta

como um campo carente de lideranças. Os

iniciados veem a si mesmos como aristocracia em

relação à comunidade dos profanos. O problema de

ser elite é exatamente este: analisamos os outros,

mas perdemos a capacidade de olharmos para nós

mesmos com objetividade. Por detrás de

capitalismo e socialismo existem grupos invisíveis.

E isto é a grande prova de que o proletariado por si

só não tem o menor poder de auto-organização,

articulação e mobilização. Os burocratas do partido

comunista soviético eram intelectuais que não

gostavam do czarismo e pegaram a ideologia do

socialismo científico como bandeira e pretexto de

inovação social. A intelligentsia russa fez de tudo

para dar a entender que o socialismo é produto

político das massas. Isto não é verdadeiro e a

derrota da social-democracia europeia nas urnas é

a grande prova disso. Assim como o dono de um

443

açougue é um burguês que tem empregados sob

suas ordens, um gerente do escritório da Microsoft

é um proletário. E neste caso o proletário pode

perceber uma renda equivalente ao triplo do

faturamento do referido burguês. Assim também um

não iniciado pode ter um poder de barganha maior,

por ser autoridade nas esferas profanas, do que um

iniciado que tem alguma projeção na ordem, mas é

inexpressivo foram da ordem. A sociedade em que

vivemos é tão complexa que não podemos sair em

nenhuma espécie de monismo como a polarização

entre cultos e incultos, burgueses e proletários,

iniciados e não iniciados. Por outro viés, uma

compreensão profunda da sociedade não pode

passar ao largo deste tema. A questão chave de

todo grupo organizado é o modelo de civilização ou

de sociedade que se procura atingir. Em linhas

gerais, com Deus ou sem Deus, voltada para a luz

ou para as trevas, coletivista ou individualista, ou

como quer Amarthya Sem, conciliar o ying e o

yang, o niti e o nyaya. A sociedade secreta é algo

tão distinto e tão autônomo que um homem de

444

idade avançada que tenha empregado boa parte de

uma vida e até recursos financeiros em nome da

promoção da sociedade à qual pertence que ainda

sua família sairia no lucro. Pois os filhos e netos

teriam o retorno garantido pelo investimento em

relacionamentos. Tenho visto que homens

parcamente dotados do ponto de mira intelectual

consegue melhor projeção social do que outro

inteligente e mal relacionado. A aristocracia traz

consigo a ideia de benignidade, fazendo crer que

quem é poder é melhor do que quem é

administrado sob algum ponto de vista. Todavia, o

poder é uma instância tão sui generis que ele não

pode ser explicado por um conceito paralelo. Este é

um dos erros de Marx: pensar que a elite é sempre

a classe que tem mais dinheiro.muitas vezes é

assim, mas nem sempre é assim. Os mais velhos,

em média, são mais poderosos do que os mais

jovens, mas há autoridades jovens e velhos

impotentes. Há homens sábios no governo, mas há

sábios sem poder e Joaquim Nabuco disse que “há

tantos homens burros mandando em homens

445

inteligentes que a burrice deve ser uma ciência”. Há

autoridades populares, mas o povo não parece ser

o fundamento último do poder, pois se assim fosse

não haveria déspotas. Apenas no mundo

fenomênico o poder espiritual separou-se do poder

temporal. No mundo numênico tudo permanece

umbilicalmente ligado. O poder se relaciona com

muita coisa, mas é diferente e independente de

todas elas. O poder, como observa Foucault, é uma

instância energética autônoma que circula através

das pessoas. Não são as pessoas que angariam o

poder, é o poder que angaria as pessoas para si.

Levi Strauss na antropologia e Émile Durkheim na

sociologia exibiram o poder explicativo da

perspectiva estruturalista. O marxismo é

estruturalista também, sobretudo quando fala no

grau de desenvolvimento das forças produtivas,

porém, passa por cima das próprias premissas ao

identificar os atores sociais, burgueses e

proletários, criando uma sociedade de mocinhos e

bandidos. Porque se, como disse Proudhon “a

propriedade é um roubo”, então todos somos

446

ladrões. O erro, se é que posso opinar acerca da

matéria, é os grupos fechados tratarem seus

confrades como se fossem proprietários dos

mesmos. O ser humano não pode dispor de si

mesmo, até porque tudo para Deus pertence. Do

ponto de vista espiritual há um ganho em se

participar de uma sociedade secreta de mão direita

porque o padrão de comportamento que nos é

imposto aproveita também à alma. A propósito, o

comportamento é um dos critérios de admissão.

Ressalvamos que, em se cumprindo aquilo que é

público e notório, verbum gratia, o cristianismo,

cumprem-se os códigos fechados que estão alheios

ao alcance dos não iniciados. Por falar em

comportamento, cumpre ressaltar que o homem

médio tem bom comportamento em situações

corriqueiras, o homem vulgar é sempre

inconveniente, mas o que se persegue é o homem

heroico que age com brio, honradez e elegantismo

mesmo nas piores situações. A oliva só libera

azeite quando é posta em meio à prensa. Cada um

vai tirar do seu interior o que nele há. Quando se

447

fala em ocultismo logo são suscitadas questões

epistemológicas. Porque o que está oculto

repercute no mundo da visibilidade. Um rosto que

guarda segredos é diferente de um rosto cuja vida

na íntegra é um livro aberto. O semblante sigiloso

estampa o segredo em si mesmo: quem observa

não sabe o que está sendo escondido, mas sabe

que algo já oculto ali. A sociedade só está

hierarquizada no poder e o poder é a guarda de

certas informações: quanto mais informação mais

poder e quanto mais poder mais poder mais

informação. E as informações chaves podem ser

descobertas não pela revelação, mas pela força da

abstração. Um pensador que tem a capacidade de

concatenar discursos, circunstâncias, impactos

midiáticos e acontecimentos políticos e econômicos

consegue sozinho obter informações que só elas

preenchem certas lacunas. O critério das diferentes

sociedades secretas não só para admissão, mas

ainda para ascensão dentro dos quadros da própria

sociedade são diferentes porque conforme

discutíamos no capítulo reservado à geografia,

448

cada ambiente cobra do ambientado uma qualidade

diferente.

Matemática: ideia de quantificação

Ao lado da filosofia a matemática é a disciplina

perita em pensar abstrações, trata-se do

pensamento em busca de si mesmo e de sua

coerência interna. Ao lado da teologia a matemática

é a disciplina mais próxima de Deus. Euler, Newton

e outros grandes matemáticos eram convictos da

inerrância bíblica, o que eu também endosso. E

toda vez que a hermenêutica se depara com um

ponto crítico é como e estivéssemos diante de um

teorema matemático ainda não devidamente

representado por números e /ou letras. Assim como

só consigo me aprofundar nas páginas bíblicas a

partir de uma postura de concordância, o mesmo

ocorre em matemática. Porque ainda que falemos

em novas geometrias, em grau de profundidade

mais avançado as novas concordam com a

euclidiana. Todo o sucesso da matemática reside

449

em sua simplicidade. Geralmente as coisas que

pior funcionam são as complexas. Porque as

instâncias complexas são carentes de medidas ad

hoc para perpetrar ajustes. O que é simples e

quanto mais simples menos ajuste carece. A

matemática é a passagem da descrição qualitativa

para a descrição quantitativa. Mas assim como a

qualidade é afetada pela subjetividade de nossa

percepção, a quantidade não é o excesso do

mundo empírico, mas um nome que damos a uma

abstração que reúne dentro de si subcategorias. O

impressionante da matemática é que o número é

um termo que pode corresponder a uma entidade e

ainda pode ser conjugado com outros como se

pudéssemos arrancar a alma dos seres brutos para

manipularmos estas enteléquias no mundo

apartado das ideias. A matemática é o âmbito

especialmente criado de natureza virtual para

concatenar, relacionar, confrontar e hierarquizar

conceitos quantitativos. A atuária é a ciência da

profecia de nosso tempo pois antecipa no mundo

abstrato o que mais cedo ou mais tarde irá

450

manifestar no mundo concreto se as instâncias

postas permanecerem como estão. Malba Tahan

em O Homem que Calculava exibe um modo de ser

em que tudo é convertido em número e relações

matemáticas. Mas mesmo que tudo seja convertido

em números eles são como as antinomias

kantianas. Sim, porque o número é determinidade e

a nova vida cotidiana é um quebrantamento das

relações exatas. Matemática é o sentimento a

serviço da inteligência e a maioria das outras coisas

é a inteligência a serviço do sentimento. A

matemática é essencialmente procedurística. Sim,

porque ela nos disponibiliza os meios intelectuais

que nos permitem avaliar as situações antes de

ministrar-lhes as soluções. A própria palavra

solução muito usada na matemática é equivocada

porque o resultado numérico não é a solução em si

mesma, mas apenas uma prévia. A matemática é a

técnica de resolução de problemas sugerida e

apregoada pela oumperiforalogia. Mas se

quantificar é pensar, pensar nem sempre e

necessariamente é quantificar. Porque a

451

matemática é um ramo da lógica e a quantificação

é uma das modalidades de formalização do

pensamento. A lógica é um induzir, deduzir,

silogizar e calcular proposicionalmente. O

quantificar é mensurar e delimitar. Mas quantificar é

tão vago e tão impessoal a ponto de lançarmos

números para dentro de calculadora pressionando

botões ainda que os caminhos nos sejam ocultos.

Se a aritmética nos dá a impressão de

trabalharmos com essências platônicas, a

geometria sugere o inverso: é como se

agasalhássemos a extensão sob a lona dos

números e das medidas. A matemática inventa o

espaço embora a noção de espaço preceda o

raciocínio lógico-matemático. Newton trabalha com

espaço e tempo absolutos e Einstein relativiza

estas duas categorias empregando equações tão

matemáticas quanto as absolutizantes. Isto deixa

claro que a matemática tem um caráter

eminentemente instrumental. A partir de premissas

e corolários antagônicos em relação a outras

premissas e outros corolários podem ficar

452

igualmente distintas relações matemáticas porque o

número é essencialmente caminho e parece

desconhecer donde parte e para onde vai. A

matemática é como o GPS do carro: você coloca

sua garagem onde quer e viaja para onde lha

apraza, o aparelho limita-se unir ambas as pontas.

Newton não chegou nem a arranhar a natureza da

gravidade. Dizer que existe uma força de atração

entre dois corpos na razão direta de suas massas e

à base do quadrado da distância que os separa é

uma mera descrição matemática. Mas isto não

explica como um corpo é atraído por outro. Porque

a atração é metafísica e metamatemática, embora

matematizável. A matemática nos oferece

previsibilidade. Se se trata de algo que será

realizado fica no campo da mensuração e se for

algo não dirigido, porém, possível, calcula a

probabilidade. Platão escreveu no frontispício de

sua Academia “quem não for geômetra não entre”.

E muitos são os exemplos de pensadores que

foram ao mesmo tempo filósofos e matemáticos. A

filosofia é a busca por princípios axiomáticos e a

453

matemática também. O axioma é indemonstrável

senão por uma única via que é a refutação que

refuta a si mesma. Pois em se tratando de axiomas

lógicos e matemáticos para alguém rejeitar tais

elementos primeiro precisa admiti-los. A questão

intransponível é esta: aceitamos os princípios pelo

simples fato de os mesmos se assemelharem a

programas indeletáveis e pela razão de que burlam

as nossas tentativas de frustrá-los. Os axiomas são

para o pensamento aquilo que o esforço de Sísifo

representa para o mito de mesmo nome. Os

axiomas são recorrentes, são, de um lado,

exaurientes e, de outro, inesgotáveis. O resultado

desta irrefutabilidade é a concordância que tais

princípios guardam consigo próprios. A matemática

é como um enormíssimo conjunto de engrenagens

em que os músicos executam com a máxima

perfeição os movimentos por terem mãos e pés e

todo o corpo presos a mecanismos de sorte que o

resultado da ação sobre os meios produtores de

sonoridade é a mais bela e simétrica sinfonia. A

matemática impinge à natureza uma ordem que

454

não existe nela, mas que nos permite compreendê-

la, ainda que quase ad hoc-isticamente. A

matemática é uma linguagem bem montada. Seu

defeito é restringir-se anunciar o óbvio e

tautológico. Os avanços da matemática consistem

em levar adiante aquilo que pode ser extraído do já

conhecido e demonstrar certos princípios que se

admitem por conveniência sem que tenham sido

decompostos analiticamente. É difícil inovar em

matemática justamente porque uma disciplina tão

genérica e abstrata gira em torno de poucos

princípios de maneiras que a maioria deles já foram

elucidados. Alguns problemas continuam

incomodando os matemáticos como 1) problema de

Stephen Cook; 2) a conjectura de Hodge; 3) A

hipótese de Riemann; 4) a equação de Yang-Mills;

5) as equações de Navier-Stokes e 6) a conjectura

de Birch e Swinnerton-Dyer. Geralmente tais

problemas nascem pela inversão em que são

postos: ao invés de se chegar neles por raciocínios

matemáticos eles são injetados no reino dos

números pela aparência superficial e empírica.

455

Assim, cria-se um vácuo no pensamento entre os

axiomas mestres da matemática dos quais todos os

outros decorrem e as modernas questões

matemático-simbólicas a um só tempo lógicas e

epistemológicas. Demonstração é método. E não

há problema eu ter primeiro o resultado e depois

elucidar o caminho. Porque muitas vezes sabemos

da correição do resultado por sermos espertos e

jogarmos com os números como se fossem dados

de um caneco. Assim, nos servimos dos tais

resultados como verdades apriorísticas, dirigindo os

processos mentais para escopos já enunciados de

antemão. Havendo lisura no caminho que

compreende o ponto de partida de algo já

demonstrado até a satisfação do paradoxo que se

pretende resolver e harmonizar, então podem ser

tomados de grande proveito todo o

desenvolvimento da linha de raciocínio. Tomás de

Aquino não se debruça sobre números, mas nas

quinquae viae trabalha com conceitos matemáticos

como o infinito ou o máximo bem. Parece não ser,

ao menos do ponto de vista matemático, correto

456

afirmar que Deus é infinitamente bom. Porque

quando se fala em bondade há que haver um zero

absoluto de bondade e uma grandeza máxima. No

sentido de que a bondade de Deus é maior do que

qualquer outra coisa, mas não infinita. Porque o

infinito é uma não noção e portanto inábil a servir

de parâmetro para as noções medianas que só

passam a existir a partir de noções absolutas. É

assim que o espaço e tempo absolutos de Newton

estão cabidos dentro de espaço e tempo relativos

de Einstein que, por sua vez, estão cabidos dentro

de um espaço e tempo absolutos metafísicos que

ainda não foram teorizados. A matemática nunca

este em tão larga escala sendo empregada pela

civilização. No sentido de que a economia mundial

cria músculos e os números são cada vez mais

meteóricos. Paradoxalmente, o mundo que se

organiza numérica e matematicamente está de

costas para a matemática enquanto disciplina

eminentemente teórica em que uma descoberta

neste campo não traria royalties como o

patenteamento de um equipamento industrial. A

457

civilização precisa contornar isto porque muitas

inovações tecnológicas não deslancham porque a

matemática ainda não desenvolveu o potencial que

ela guarda dentro de si. Habermas fala que o

conhecimento está a serviço de um complexo

indústria-exército-governo-sistema de sorte que sua

produção, desde a genética, é condicionada a

interesses prévios. A matemática está livre disso

embora seja a mais idônea das disciplinas no

tocante a isto. No capítulo subsequente

discorreremos sobre economia e aproveitam o

aporte para dizer que a referida ciência é o reino de

conhecimento que faz da matemática uma serva

humilhada e sem direitos. Na economia espanca-se

a matemática para que ela confirme exatamente

aquilo que o inquisidor quer ouvir. O fato de a

matemática ser tão desenvolvida entre árabes é

explicável pela mesma razão que se supõe o

desenvolvimento da teologia e da religião. Numa

cultura cabida numa topografia e num ambiente

climaticamente inóspito e cuja língua é voltada para

a concreção vive-se um acentuamento tão intenso

458

da concreção que é gerada a sua antítese, a

abstração. O mesmo pode ser dito em relação aos

povos germânicos: o ímpeto da barbárie é

canalizado para o ímpeto da civilização. Os

primeiros signos destinados a representar

quantidades nasce na Mesopotâmia junto com a

escrita há seis mil anos. E inclusive os primeiros

ideogramas são ao mesmo tempo desenho, texto e

quantidade. Porque a escrita nasce dentro do paço

real como tentativa de colocar ordem nas reservas

do palácio. A escrita e a matemática nascem da

burocracia, portanto. E até hoje a matemática

continua atrelada a questões de ordem prática,

razão pela qual entendo que nós filósofos somos os

incumbidos em desenvolver a matemática do ponto

de vista teórico. A crítica que os teóricos do Wiener

Kreiss fizeram ao discurso religioso, o tratar-se de

uma linguagem enfeitiçada, faço à linguagem

matemática: ela se separa do mundo real de uma

maneira tão estratosférica que galga uma

autonomia sem lei e sem parâmetro que esbarra

em seríssimos problemas de ordem epistemológica.

459

Isto significa que também a matemática que Kant

relegou à instância puramente apriorística, de igual

maneira ela possui limites oriundos do mundo

empírico. O mundo empírico, incognoscível em sua

essência, é o fundamento último da realidade. E a

matemática, como qualquer outro ramo de

conhecimento, é o resultado da relação

sinalagmática entre sujeito cognoscente e objeto

congnoscível. E o que Comte coloca em termos de

generalidade decrescente e complexidade

crescente nós, nesta obra, colocamos como

subjetividade decrescente e objetividade crescente.

Em que a matemática seria a mais subjetiva das

disciplinas e, concordando com Kant, a

universalidade estaria no sujeito, e a sociologia

seria a mais objetiva em que a produção teórica

estaria mais centrada no fenômeno abordado do

que no abordante. Quando a sociologia trabalha

com estatísticas, que é a matemática aplicada a

fenômenos idiossincráticos da coletividade, busca a

um só tempo a segurança da universalidade

kantiana e o conteúdo informativo do objeto

460

empírico e, portanto, sintético. O sintético e o

analítico se encontrariam, pois. Metanarrativa é

essencialmente isto: analitizar o sintético e

sintetizar o analítico. A matemática é uma

companhia agradável para aqueles espíritos

furiosos tomados pelas paixões calmas. Não foi por

acaso que o filósofo René Descartes afirmou que a

razão é o que há de mais bem distribuído entre os

homens. Ele sabia que qualquer homem, rico ou

pobre, nobre ou de vil nascimento, poderia aplicar-

se às matemáticas e dela extrair a sua dignidade.

Se não fosse a matemática jamais teríamos ouvido

falar de Tartaglia e ele seria sempre um simplório

italiano pobre e insignificante. A matemática

cumpre o magnificat mariano ao exaltar quem por

outros caminhos só poderia se deparar com a

vulgaridade e a trivialidade. A matemática nos

mostra o caminho do erro e do acerto. No sentido

de que quando se chega ao valor de uma variável

posso verificar se ela satisfaz a função, o que

poderá gerar igualdade no caso de acerto e

diferença no caso de erro. O ideal da matemática

461

seria sempre trabalhar com números integrais.

Todavia, o mundo empírico costuma espezinhar o

panlogismo dos pensadores e a constante (h) de

Planck é a grande prova disso, em que h =

0,000000000000000000000000006626. Isto

significa que nem sempre é tão cômodo aplicar

nossos esquemas mentais àquilo que queremos

acomodar dentro deles. Um número como a

constante de Planck que pertine ao mundo do micro

é tão fora da experiência humana como uma

medida astronômica representada por dez elevada

a uma superexponenciação, que se reporta a uma

macro expressão. Protágoras disse que o homem é

a medida das coisas e o que é distante do homem

acaba sendo distante de tudo. A matemática é

parenta da música e da estética. Porque música e

estética são simetria e proporcionalidade. O

matemático não é apenas um homem de

inteligência, mas de bela inteligência. Um cálculo é

mais que uma demonstração, é um ornamento,

assim como as boas letras são sempre belas letras.

Michelangelo e Da Vinci faziam belas obras de arte

462

porque o olho clínico destes gênios dava às suas

esculturas uma simetria tão perfeita que sequer

podemos encontrar na natureza. Aplicando-se a

ciência da computação à biologia pode-se chegar à

conclusão de que a vida é mais velha do que o

planeta. A matemática tem disso: ou se admite que

a vida aterrissou em nosso planeta ou, então, se

admite a explicação retro de que ela teria emergido

dos oceanos primitivos e aí é preciso refazer

cálculos. Isto não é problema, é mérito. Porque os

paradigmas científicos nada mais são do que os

esquemas matemáticos que surgem como

harmonizadores até que sejam relativizados por

novos cálculos. O grande salto de paradigma se

sucederá entre nós quando a matemática atual, que

é uma plataforma lógica, for substituída por outra

plataforma lógica completamente diferente de tudo

o que já vimos até hoje. Até o dia de hoje a

matemática representou progresso, mas quando

este padrão de pensamento tiver cumprido ao

máximo sua função começa a criar problemas e

algo novo terá de ser introduzido na civilização. de

463

qualificação passamos à quantificação e da

quantificação teremos de passar à

metanarradorização.

Economia: a ideia de riqueza

Não é fácil falar sobre economia porque, como bem

reparou Galbraith, muda não só a disciplina e suas

teorias, mas o próprio objeto empírico. Este teórico

observa que no mundo a riqueza das pessoas

jurídicas em sua soma total é maior do que a soma

total das riquezas das pessoas físicas. Mais que o

dobro. Observa ele que o indivíduo entra no

planejamento muito mais como consumidor do que

como poupador. Porque em geral a maioria dos

indivíduos tem dificuldade de gerar um excedente

para si mesmo. Ele concorda com os economistas

críticos de que o capital jungido ao poder gera

usurpação de vantagens. Paradoxalmente, nas

ditas culturas ocidentais o indivíduo recebe lugar de

destaque em detrimento do grupo, mas suas

grandes empresas o que manda é o trabalho em

464

grupo. Contra os economistas planejadores argui

que o desenvolvimento da técnica relativiza a

necessidade de planejamento. Talvez porque o

planejamento o seja em primeiro lugar de atores

sociais e não de bens materiais, sendo que a

tecnologia tem o condão de induzir as pessoas para

postos dados de antemão. O preço, de acordo com

Galbraith, deve emergir naturalmente, o que é uma

afronta ao planejamento que tabela preços. Böhm-

Bawerk também critica os economistas

ideologicamente alinhados com a esquerda e

trabalha com conceitos que se assemelham a

categorias astronômicas. Porque assim como a

astronomia fala em anos-luz, o mencionado

economista fala em milhões de anos-trabalho.

Böhm-Bawerk relaciona hedonismo e preço. Pois

as mercadorias visam à nossa satisfação. O juro

seria uma supervalorização do presente. O juro,

portanto, deixa de ser uma categoria econômica

para ser tido como reflexo de uma categoria

psicológica e existencial do ser humano. Fala

ainda, em coro com muitos outros economistas,

465

dentre eles Walras, em utilidade marginal. Em que

explica o valor de uma mercadoria teleologicamente

e não etiologicamente como o faz Marx. De acordo

com Böhm-Bawerk, no socialismo o Estado é o

dono dos meios de produção e compra a mão de

obra. Daí a expressão justa “capitalismo de

Estado”. Böhn-Bawerk, como bom liberal

sobrevalorizava a experiência e a natureza humana

e correntemente trazia argumentos jusfilosóficos à

moda “argumentum ad hominem”. Na contramão

destes autores Leontief defende o planejamento e

diz que ele consiste basicamente em organizar

entre si o custo e o preço. Porque o antecedente é

componente do consequente. Ele fala da divisão

internacional do trabalho e relaciona-a com a

exportação e a importação. Para Leontief tudo é

insumo, inclusive o capital. Leontief é contra o

investimento em militarismo pois ele gera despesa

que entra como insumo em praticamente todas as

mercadorias produzidas dentro da sociedade.

Bukharin talvez tenha sido o primeiro a falar em

imperialismo e sua relação com a economia

466

mundial. De acordo com Bukharin os monopólios

destroem a livre-concorrência. Há no modo de

produção capitalista a nacionalização do capital, o

que gera concorrência de nações e até mesmo

entre raças, do que o nazismo e o fascismo foram

as maiores provas. Uma característica interessante

do grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) é a

aparição do piro do capitalismo nestas nações , o

agigantamento do Estado, e o pior do capitalismo, a

concentração extrema de riqueza nas mãos de

poucos. Mas parece que esta conjuntura agrada

aos investidores internacionais. Rosa Luxemburgo

foi a grande teórica do expansionismo e

imperialismo que é multifacetado, porém,

predominantemente econômico. De acordo com

Luxemburgo, o mundo capitalista se expande para

o mundo não capitalista onde os meios de

produção e a mão de obra são mais baratos. Ela

critica a teoria da abstinência de acordo com a qual

a acumulação traduz uma postura diligente e

heroica do capitalista. Ela fala que o militarismo

está relacionado com a acumulação do capital pois

467

o vencedor se apropria do despojo de guerra.

Assim como a economia de Luxemburgo mostra a

imoralidade e a anticivilidade do capitalismo,

também o capitalismo critica a, de acordo com ele,

pífia moral das medidas coletivistas, é assim que os

medicamentos são chamados por “ético” ou

“genérico”. Sweezy cita Lukács o qual dizia que a

ortodoxia marxista diz respeito ao método. Isto

significa que os intelectuais que se dizem marxistas

estão livres para produzirem qualquer teoria desde

que apliquem o método de Marx. Como se vê, a

natureza da coisa é espinhosa, pois dizer no que

consiste o método de Marx não é tarefa tão

simples. Sweezy atrela a questão do valor à do

planejamento, na teoria e na prática, e por isso

mesmo é chamado “marxista keynesiano” ou

“keynesiano de esquerda”. De acordo com Sweezy,

o erro de Marx consiste em trabalhar com valores e

transformá-los em preço. Mas o preço seria

universal e deveria já estar imbricado no princípio

da economia e não simplesmente como apenas o

produto do valor. Sweezy cita Grossman que fala

468

que o capitalismo irá sucumbir por falta de mais-

valia, pois o capital constante precisa crescer mais

rápido do que a mais-valia, o que é uma

contradição em termos porque o constante é

produto do variável. Sweezy medita que o

trabalhador inglês é esgotado no processo de

produção para enriquecer o governo e o Estado

inglês para que eles possam explorar e subjugar as

sociedades periféricas. Steindl explica as razões

das crises econômicas do capitalismo. De acordo

com ele, o desenvolvimento da técnica aumentaria

a massa de lucro, mas não chegaria a compensar a

queda da taxa. Assim, se a queda da taxa é mais

veloz que a ascensão da massa, a crise se torna

inexorável. A segunda razão é que o mercado de

ações é crescente. A despesa de administração

aumenta na medida em que se amplia o campo de

investimento e é deduzida do retorno. Como a taxa

de administração é crescente, o retorno é

decrescente. Mitchell explica o ciclo da economia

capitalista. De acordo com ele a economia

capitalista é como uma pessoa drogada que oscila

469

entre a euforia e a depressão. A prosperidade eleva

gradativamente o custo dos insumos, matéria-

prima, maquinário, meios de vida, crédito, até que a

agudização destas circunstâncias gere um crise.

Após a crise há uma queda abrupta do custo das

coisas em geral e está preparada a plataforma

econômica e social para a prosperidade. Ao criticar

o modo de produção capitalista com o chama Marx,

ou simplesmente capitalismo, Marx presta uma

imensa gentileza aos burgueses. Porque ele mostra

quais são os pontos falhos do sistema. O que Marx

profetizara acabou acontecendo, ou seja, o

socialismo científico saiu da teoria e da ideologia e

se tornou uma prática e um modelo de civilização.

Marx fala de capitalismo numa época em que ele

ainda era jovenzinho e o feudalismo não havia sido

totalmente purgado da Europa. A despeito da barba

e do cabelo de Marx que lhe conferiam um feição

leonina, dois comentários: a um quilômetro de

distância era possível saber que Marx era judeu e

ele não fazia do penteado uma singela estética,

mas recordava os pedreiros medievais que

470

deixavam o cabelo e a barba crescer quando

tencionavam aumento de salário. Marx seria o mais

terrível patrão se fosse burguês, porque conhecia

todas as técnicas de exploração: trabalho

extensivo, trabalho intensivo, trabalho por peça e

assim por diante. De acordo com Engels, as duas

grandes ideias de Marx foram a mais-valia e o

materialismo histórico. A mais-valia significa que o

trabalhador consome apenas parte da jornada de

trabalho para reproduzir seu próprio salário e o

trabalho excedente é entrega de valor sem

contrapartida ao empregador. Já o materialismo

histórico é a convicção de que eu primeiro lugar o

homem precisa reproduzir seus próprios nervos,

cérebro, músculos e os aspectos mais basilares da

vida para partir para abstrações. Até aqui concordo

com Marx. Mas o materialismo histórico é mais do

que isto. É a convicção de que a história da

humanidade é o desenvolvimento das forças

produtivas e a noção de que precisamos

desenvolver o aparato material concretizado na

técnica para transcendermos a realidade natural e

471

nos projetarmos em direção à liberdade. É a ideia

de que a religião, a arte, a ciência, a ética, a

estética, o direito, as instituições e as instâncias

culturais de um modo em geral jogam a água benta

sobre relações sociais de escravidão. Trata-se da

superestrutura que ampara ideologicamente a

infraestrutura, a economia. A superestrutura

reprime e legitima modos de pensar que

corroboram e sustentam o status quo da sociedade

dentro da qual nos movemos. Como Marx investe a

dialética idealista de Hegel e propõe um

materialismo dialético que a um só tempo relativiza

a metafísica anterior e estabelece uma nova

metafísica, sua postura filosófica se faz sentir nas

obras econômicas. Porque Marx superestima as

condições objetivas dos países na dianteira do

capitalismo. Isto é um erro tão grande como

desconsiderar as condições objetivas e cair num

completo psicologismo. Os aspectos psicológicos

merecem uma participação de pelo menos 50% das

considerações de um tratadista de economia.

Porque o ser humano não é só alimento, roupa e

472

dono de utilidades. Ele é espírito dotado de

vontade, liberdade, desejo e imaginação. Este lado

é desconsiderado. Os marxistas que leram as obras

do mestre foram os primeiros a desprezar a

extrema objetividade. Na Rússia Lênin capitaneou o

partido bolchevique que defendia a ideia de uma

revolução imediata, antes mesmo que o capitalismo

amadurecesse no referido país gelado. Na China

Mao Tsé Tung rachou com Lênin justamente por

absolutizar aquilo mesmo que Lênin propunha: a

deflagração do subjetivismo atuante e aguerrido.

Na Itália Antonio Gramsci só falava em militância e

articulação e guerra de trincheiras. De minha parte

não me identifico totalmente nem como os

ultraliberais e nem com os marxistas embora

reconheça que ambos os lados têm a ensinar. Nem

os liberais vivem o liberalismo e nem os socialistas

vivem o socialismo. Sou capitalista e penso que o

capitalismo deve ser administrado. Keynes é bem-

vindo aquando da conveniência e oportunidade. A

mais totalizante teoria é sempre parcial, é sempre

uma perspectiva de um dado ponto de vista. E,

473

como dissemos, a economia é dinâmica e mutante.

A economia foi representada por Marx pela

mercadoria, porque ela encerraria uma zona de

relações que o próprio Marx nos explicaria.

Particularmente, penso que o que mais caracteriza

o capitalismo é a pessoa jurídica que visa lucros. O

Código Canônico defina pessoa jurídica como

conjunto de bens e pessoas. Tem bens, tem

pessoas, é também isto, mas é mais do que isto. A

pessoa jurídica é uma ficção. E ela tem vida

própria. E é exatamente por isso que quando ela

sofre um processo falimentar os credores,

preferenciais ou quirografários, não podem querer

expropriar os bens particulares do sócio, mas

limitar-se às forças de solvência da própria pessoa

jurídica. A pessoa jurídica será desconsiderada

apenas quando cumulativamente se configurar

abuso de direito e fraude. A ordem burguesa é uma

ordem jurídica que se desdobra num ordem

econômica. O salário do proletário é forfetário, mas

o ex-patrão não é o único provedor capaz de lhe

oferecer condições de sobrevivência, devendo

474

buscar uma fonte alternativa. O que aprendemos

com os economistas socialistas é que, diferente do

que ensinou Adam Smith, o capitalismo não é um

prolongamento da natureza, coisa que ele tira dos

fisiocratas, e nem sequer a “mão-invisível”, nome

metafórico da lei da oferta e da procura, tudo

consegue equilibrar e manter em harmonia. O

capitalismo não dá certo sem Estado. O Estado é o

gerenciador das instâncias mais profundas dentro

das quais se desenvolve a iniciativa privada. O

capitalismo não é só ideologia como acusam alguns

e nem extensão do mundo físico como dizem os

clássicos e os neoclássicos, mas algo situado entre

estes dois extremos. E sempre temos que ter em

mira a relatividade porque ora a tensão é entre

empregado e empregador e ora entre vendedor e

consumidor, de formas que ninguém é dono da

verdade total. As crises, como disse, é o alerta de

que não devemos deixar as coisas correrem soltas.

E quando se fala em organização de sociedade a

dimensão econômica é apenas uma a ser

considerada, porque todos os aspectos

475

civilizacionais são importantes. Certa vez

perguntaram a dois filósofos porque não se

dedicavam, assim como outros polímatas fizeram,

também à economia. Um respondeu que não tinha

interesse pela economia porque era muito fácil

enquanto que outro justificou o interesse porque era

muito difícil. Como diria Joelmir Beting “em

economia é fácil explicar o passado e mais fácil

ainda prever o futuro, difícil mesmo é explicar o

presente”. Em economia é comum especular sobre

aporias que nunca existiram e até defender

catastrofismo como o fez Thomas Malthus para

quem os alimentos se reproduzem aritmeticamente

e a humanidade geometricamente, o que em curto

espaço de tempo generalizaria a fome. O

crescimento da população mundial sempre foi uma

preocupação. E há quem diga que foram boas

coisas as Duas Grandes Guerras por conter o

inchaço do planeta. Ao que parece, no entanto,

cremos que os chamados países emergentes farão

uma desaceleração assim como aconteceu com os

países europeus. No Brasil é crescente a

476

população idosa e as famílias já não têm tantos

filhos. O que do ponto de vista atuarial inviabiliza

qualquer regime público de previdência social por

razões óbvias. Todavia, a quase totalidade das

projeções malogram justamente por haver mudança

nas tendências antes de ela se efetivar na realidade

assim como no mundo abstrato. A economia deve

ser encarada sempre como uma mediação e não

como um fim em si mesmo. Quando um Hayeck diz

que para um plano econômico dar certo “é preciso

que milhares de pessoas morram de fome”, perdeu

o sentido que deveria atribuir às ciências

econômicas, vez que também elas se justificam

apenas na medida em que facilitam a vida do ser

humano. O rei de Salém pede as pessoas e dá os

bens, mas o objetivo de um homem nobre não é

mercantilizar as pessoas, mas sacrificar os bens

para resguardar o bem supremo que são as

pessoas. Devemos fazer da economia um pretexto

para nos aproximar das pessoas, para ter

comunhão com elas, para justificar unidade de

esforços em nome de interesses comuns.

477

Economia é palco de cooperação entre os seres

humanos.

Capitalismo: a ideia de autorreprodução

O capitalismo é um modo de produção e de

reprodução dos bens materiais indispensáveis à

vida. O grande salto da acumulação primitiva

recebe amplo tratamento histórico em O Capital de

Karl Marx. Penso que estudar capitalismo se

confunde muito com estudar as sociedades

capitalistas e aí os clássicos nos ajudam muito. No

Grundrisse Marx fala que o capital é global e que

espaço e tempo são concomitantemente

achatados. É assim que a cana-de-açúcar veio da

China. Houve traslado de uma série de coisas,

inclusive de epidemias. Os índios passaram para os

europeus o tabaco, o chimarrão e a sífilis e o

branco passou para o negro e o índio a gonorreia e

a gripe. Aliás, muitas vezes a gripe adrede era

passada para os índios como forma de extermínio.a

peste bubônica, também conhecida como peste

478

negra que dizimou um terço da Europa foi trazida

por mercadores da Ásia. O capitalismo é a

exponenciação de fatores e é assim que se

desenvolve uma superbactéria de hospital. A

epidemia que recebeu espaço até na literatura

filosófica, com Albert Camus, era uma realidade tão

presente que exemplificativamente trazemos os

casos de Hegel e Weber: o primeiro morreu de

cólera e o segundo de gripe espanhola. Durkheim

foi um dos grandes nomes abordadores da

sociedade capitalista. Para ele, o objeto de estudo

da sociologia é o fato social. Ele diz que o fato

social é dotado de coesão e coerção. Uma salva de

palmas, mesmo que não apreciemos o espetáculo,

somos quase que obrigados a bater palmas. Para

Durkheim a sociedade é um organismo. E assim

como na biologia sabemos que há processos de

estruturação e reorganização, na sociedade

também há ajustes. Para a acomodação Durkheim

trabalha com o conceito de anomia e para a

patologia usa o termo anomalia. O cinema trabalha

com esta concepção orgânica a ponto de uma

479

determinada película cinematográfica Silvestre

Stalone apontar a arma para um fora-da-lei e dizer

“você é uma doença e eu sou a cura” e puxar sem

piedade o gatilho da pistola. Embora o foco de

estudo de Durkheim esteja voltado para as

sociedades desenvolvidas, ele pode ser aplicado a

diversos contextos. É assim que podemos dizer que

um índio, qualquer que seja ele, isoladamente

representa melhor o seu grupo do que se pinçando

um indivíduo de uma sociedade complexa. As

sociedades primitivas são mecânicas e as

ocidentais são orgâncias. Durkheim ao discorrer em

divisão social do trabalho também aborda conceitos

como segmentação e hierarquização. Enquanto

que numa visão mais rasteira possamos dizer que o

materialismo histórico divide a sociedade em

bandidos e mocinhos, na perspectiva de Durkheim

a sociedade é um grande conjunto de engrenagens

e cada um de nós é uma peça. De modo que só

somos algo em função de conjunto e devemos nos

negar porque o único tipo de afirmação é o social.

Já o Marx abre O Capital abordando a mercadoria

480

no capítulo primeiro. Ele fala que a mercadoria é

encantada e plena de fetiche. Isto fica muito visível

nos comerciais televisivos em que passo a ser

amado por pessoas interessantes porque bebo

determinado tipo de refrigerante. De acordo com

Marx a sociedade caminhava ou para a ampliação

máxima da miséria e aí então voltaríamos para o

estado de guerra e barbárie de uns contra outros ou

de todos contra todos, ou inauguraríamos a história

com a sociedade socialista. Enquanto se costuma

dizer que a história começa com o advento da

escrita, para Marx história começa com a realização

do homem no socialismo. Faz algum sentido por se

tratar de um historicista. Em 1872 deu errado a

Comuna de Paris e isto deixou Marx muito

desesperançoso e frustrado. Ele faleceria logo em

1883. É interessante dizer que, para a época de

Marx o socialismo científico era algo que estava na

crista da onda. Todavia, já não se presta para

explicar os nossos dias. Na sociedade brasileira

contemporânea, e este é uma tendência

mundial,temos mais trabalhadores na prestação de

481

serviços do que empregados na indústria. Nunca a

classe operária consumiu tanta coisa como hoje.

Aumentou o salário, mas todo ele continua sendo

devolvido aos capitalistas. Enquanto Durkheim é

estruturalista e se preocupa com o fato social em si,

Weber é psicologista e acentua a importância da

subjetividade do agente social. Weber, arguto que

é, percebe que proletários e burgueses têm entre si

muito mais coisa em comum do que Marx possa

imaginar. Weber trabalha com a categoria de

“modelos” e diz que o modelo dá sentido à ação.

Estender a mão, por exemplo, é um modelo. Se eu

estendo a mão só o faço porque estou convicto de

que o outro também fará o mesmo. Hitler, por

exemplo, trabalhou com modelos: modelo de raça,

de religião, etc... Ele apregoava que a Alemanha só

perdeu a Primeira Guerra Mundial porque era

governada por judeus que, na real, nunca foram

alemães, e que traíram a Alemanha em prol dos

próprios interesses. E daí que se diz “Deutschland

über Alex”. E ainda “onde houver um alemão

haverá uma Alemanha” e, da mesma forma, “A

482

Alemanha é para os alemães”. A questão de

tipificar o judeu como traidor é algo culturalmente

cômodo. Porque na cultura cristã o judeu é visto

como traidor e deicida. Judas tem o radical “jud”,

que é encontradiço em “judeu”. Estes chavões

foram cunhados por Bismarck que em 1871 unificou

a Alemanha. Bem, todo este exemplo de Hitler e da

Alemanha porque Weber era alemão e porque

Hitler sempre será uma personalidade

reconhecidíssima. Weber chama a atenção para a

ação e para a não ação. Porque quando diminuo a

velocidade de meu automóvel porque o semáforo

avermelhou, estou preocupado em evitar qualquer

tipo de colisão ou abalroamento. Isto vale para o

mundo da economia. E nem precisamos sair do

exemplo para falar de economia,de capitalismo e

de sociedade, porque é um absurdo o que se perde

de vidas humanas e riquezas em acidentes de

trânsito. Mas Weber dá nome aos bois, ele trabalha

com quatro modelos, são eles: 1) Racional-

lógico:que é o comportamento puro e simples,

como o via Durkheim; 2) Lógico em relação a

483

valores: que é o comportamento relacionado a uma

pirâmide axiológica; 3) Emocional: que é o

comportamento enviesado pelo sentimento e, por

fim, 4) Tradicional: que é o comportamento que

espelha a manutenção de uma prática herdada. É

assim que posso ter um forte sentimento negativo

em relação a alguém e planejar sua morte ao longo

de vários meses. Assim como, por exemplo, o

padrão emocional com o racional. Weber fez um

estudo entre operárias alemãs e constatou que as

mulheres mais velhas e casadas eram mais

diligentes e se acidentavam menos. Já as operárias

novas eram menos trabalhadoras e se acidentavam

mais. Mas o que surpreendeu Weber foi um terceiro

grupo, o das novas operárias ainda mais diligentes

do que as veteranas. Elas eram pietistas, o que

significa que a religião desempenha um papel

fundamental nos ditos modelos, repercutindo

diretamente na sociedade em que estas pessoas

estão inseridas, seja ela, a capitalista. Weber ainda

observa que os operários devidamente

sindicalizados se alistavam para a guerra para

484

morrer pelos ideais burgueses, o que indica que

eles tinham mais apreço pelo seu nacionalismo do

que pelo movimento proletário internacional. Os

junkers traíram os alemães. E por isso os

camponeses já não queriam mais trabalhar para

eles. Então eles aumentam o salário dos

camponeses para dez marcos diários, mas os ditos

camponeses preferem mudar seu estilo de vida, ir

para o meio urbano e receber de quatro a cinco

marcos na produção fabril. Quem acabou

trabalhando para os junkers foram os polacos ao

preço de um ou dois marcos por dia. Ao contrário

do que se costuma fazer, isto não prova que os

poloneses se submetiam a condições menos

dignas do que os alemães e aqui resgato a

objetividade de Marx, porque só pode rejeitar

trabalho duro e mal pago quem tem melhor opção.

Feliz a colocação do professor Gilson Costa Aguiar

de acordo com o qual “não podemos criar igrejas

dentro da ciência” e é por isso que troco de autores

como o ar que eu respiro. O importante é

acrescentar conhecimento. E aqui aproveito o

485

espaço para explicar o termo “positivismo”, ele vem

da matemática, no sentido de que o conhecimento

da humanidade é um permanente

acrescentamento. Embora Lakatos, Kuhn,

Feyreband, Popper e outros mostrarão que o

conhecimento é bem mais do que uma simples

soma. Weber classifica o poder de três maneiras: 1)

o racional: que é o instituído; 2) o orgânico: que é o

que reflete as condições e 3) carismático, que

depende de emotividade. É importante trazer estes

elementos à baila até porque no capitalismo há

uma impossibilidade de se isolar problemas. Por

mais que, doutro modo, se tente privatizar o

sofrimento como se o indivíduo fosse algo separado

da sociedade. Em geral, se vê que as culturas mais

fortes são as que possuem melhor prospecção no

capitalismo, mas não ao mesmo tempo as que mais

sofrem. Só se entende o genocídio cometido contra

os japoneses se se considerar que eles se

entocavam nas cavernas das ilhas e de lá não

saíam a qualquer preço de sorte que não havia,

apesar do desequilíbrio de forças, a menor

486

possibilidade de rendição. Com as duas bombas

atômicas sobre o Japão, Hiroshima e Nagasaki o

Imperador pede ao povo que se renda. Além de

país sofrido hoje o Japão é uma das maiores

potências capitalistas. O capitalismo atual é bem

representado hodiernamente pela figura de

franquia. Porque posso beber coca-cola, lanchar

McDonald e calçar Nike mesmo que se trate de

marcas na sua fantasia e abstração nefelibática.

Porque quem produz e vende os produtos não são

as marcas, as marcas são apenas as marcas, um

logotipo identifica um padrão criado midiaticamente.

O capitalismo de nossa era tem uma característica

muito peculiar: ele é global. Sim, o capitalismo

passa por cima de toda e qualquer cultura como um

trator passa por cima de um jardim de margaridas

com suas brutas esteiras. O capitalismo é mutante

e transcultural. O capitalismo é uma invenção das

culturas europeias ocidentais e se apossou do

mundo todo. E os países periféricos deixaram e

estão deixando de ser uma roça para rivalizar com

as velhas potências capitalistas. É assim que os

487

Tigres Asiáticos assombram a União Europeia e os

Estados Unidos. O capitalismo é algo retumbante

que se impõe sobre as culturas, mas ao mesmo

tempo vai sendo culturalmente assimilado. Isto

significa que, ultrapassada a fase de adaptação e

aculturamento a sociedade neocapitalista pode

capitalizar-se socialmente mais do que as

sociedades matrizes. Isto significa que o

capitalismo pode, e efetivamente é o que vem

acontecendo, ser praticado de forma intensificada

de modo que o nível de riqueza acumulada das

sociedades neocapitalistas se aproxime, em parte e

ultrapasse o nível de acumulação, por exemplo, das

sociedades europeias. Como dinheiro é poder,

significa que o centro de poder do mundo é volátil e

dinâmico. Daí que as personalidades mundiais

laboram pela cooperação dos povos como meio de

evitar guerras e conflitos que assinalam os

primeiros tempos da história humana, bárbara e

belicosa, essencialmente instável. O que diferencia

capitalismo de socialismo não é a presença ou

ausência de planejamento, mas o nível de

488

planejamento, porque no comunismo ele desce aos

mínimos detalhes. No capitalismo o planejamento

adstrinje-se a uma espécie de dirigismo da livre-

iniciativa. São traçadas diretrizes gerais que

regulamentam a vida das pessoas pela política de

administração do crédito, do juro, do câmbio,da

emissão de moeda e do mercado de ações cujos

mecanismos são as instituições financeiras,

mormente as bancárias e a própria política estatal

genericamente falando. Os centros de poder são o

Ministério da Fazenda e o Banco Central. O

sistema financeiro é centralizado e evita-se,

mediante lei, a sua pulverização punindo o usurário,

porque quanto mais concentrado o ponto através

do qual se movimenta o dinheiro, maior a

ingerência do poder político sobre o destino dos

cidadãos. É a concentração do sistema financeiro

que permite se trabalhar com políticas

fomentadores do consumo para aquecer a

economia ou praticar políticas mais austeras de

restrição de crédito, de elevação do custo do

dinheiro e de desaceleração em nome da anti-

489

inflação. A inflação é um modelo de crescimento

econômico de pauperização da classe média e

principalmente das classes mais pobres. Porque

quem é dono dos meios de produção ou se aplica

ao comércio pode indexar a carga inflacionária nos

produtos que comercializa. A classe trabalhadora é

só compradora de mercadorias e não vende nada

para que possa transmitir o encarecimento do custo

de vida para terceiros. A única mercadoria que ele

vende é sua força de trabalho e não tem o poder de

tabelar a própria mercadoria. É o patrão, ou melhor,

é o mercado que diz quanto vale a mão de obra. A

inflação, concluindo o raciocínio, é uma sangria das

classes mais pobres para as mais ricas. É a

potencialização da extração de mais-valia das

classes trabalhadoras. O Brasil e outros países da

América Latina adotaram este modelo por muito

tempo. O problema dele, além da pauperização

daqueles que sempre pobres foram é que afasta o

investimento estrangeiro. Porque não é vantajoso

desenvolver atividade econômica num país em que

em dado momento, por exemplo, dólar e cruzeiro

490

se equivalem e seis meses depois o cruzeiro vale

apenas a metade do dólar, o que significa uma

desvalorização de 50% se eu quiser agora

reconverter meus cruzeiros em dólar. Para evitar

estes problemas é que existem mecanismos

financeiros que permitem ao investidor estrangeiro

obter alta taxa de retorno num país razoavelmente

seguro, não tão sólido como nas fortíssimas

economias, mas seguro o suficiente par compensar

o risco que se corre. Trata-se de risco módico e

rendimento muito bom. Hoje as reservas do Brasil

são suficientes para pagar a dívida externa e ainda

fazer restar um considerável remanescente. Mas,

como se diz, dívida externa não se paga, se

administra. Politicamente, às vezes, é interessante

permanecer endividado. Hoje, além de o Brasil não

ser tomador de empréstimo, está a emprestar para

fundos internacionais. O Brasil é, por isso mesmo, o

carro chefe do MERCOSUL e provisoriamente não

conta com o Paraguai no bloco pela maneira pouco

jurídica como Lugo foi deposto da Presidência da

República. O capitalismo funciona muito bem se for

491

sabiamente administrado independente de que seja

o dono dos meios de produção: particulares ou o

próprio Estado. O segredo do capitalismo é a

exploração da natureza e do ser humano através

da técnica. O brocardo kantiano é a exploração da

natureza e do ser humano através da técnica. O

brocardo kantiano “age de tal maneira que o ser

humano seja sempre fim e não meio” não passa de

um belo aforismo filosófico. Porque a lei do mundo

espiritual é fazer de nós mesmos mediações,

pontes, instrumentos. A afirmação da

individualidade passa pela sua negação. O

capitalismo é um fenômeno moderno. Na

Antiguidade, contudo, havia espectros de

capitalismo. A isto Marx chamou de formas

econômicas pré-capitalistas em um manuscrito que

só depois de sua morte seria publicado. Em outros

modos de produção que não o capitalista também

existe a mais-valia, inclusive no socialismo. O que

faz com que o capitalismo seja capitalismo e não

outra coisa é o desembaraço do assalariado dos

vínculos de submissão, sendo juridicamente

492

homem livre e, outrossim, livre no sentido

econômico, no pior sentido, estando numa situação

de quem é dono tão somente de sua própria força

de trabalho. Ou seja, não existe capitalismo sem

ordenamento jurídico capitalista. Isto significa que

posso transformar uma sociedade capitalista em

outra qualquer pela mudança da lei e da

jurisprudência. É assim que declaro o negro livre e

igual porque quem é mão de obra não assalariada

não pode consumir e o capitalista só faz girar a

economia para extrair mais-valia se há quem

consuma o que for produzido, o que requer um

mínimo de dinheiro em mãos. Não podemos dizer

que o capitalismo gera diferença, perpétua porque

a sociedade é complexíssima e chega a ser infantil

dividi-la em apenas duas classes.

Comunismo: a ideia de capitalismo de Estado

Lênin costumava definir o socialismo científico

como síntese de tudo aquilo que o século XIX havia

produzido de melhor: a filosofia clássica alemã, o

493

socialismo utópico francês e a economia política

inglesa. Mas Marx substitui o idealismo da filosofia

pelo materialismo, mas aceita a dialética, o que

difere do materialismo estático de Feuerbach.

Quanto ao socialismo, faz dele uma ciência, o que

difere dos contos de fada anteriores sem

aplicabilidade prática alguma. Quanto à economia

explica ela não pela aparência, mas pela essência,

que até Marx estava oculta ainda que Davi Ricardo

tenha se dado conta da mais-valia de modo

embrionária. O capitalismo figura na obra de Marx

como objeto de análise e crítica e as melhores

abordagens teóricas capitalistas são abordagens de

fracassos. O marxismo é perito em explicar o

fracasso. Marx previa a aparição do socialismo nas

economias capitalistas mais desenvolvidas e

acabou ocorrendo o reverso disso: ele foi

implantado na Rússia, no Leste Europeu, na Ásia,

na África e em alguns países da América Central e

na América Latina. No Brasil a Intentona Comunista

de Prestes em 1935 não deu certo porque os pés

vermelhos nacionais cometeram erros estratégicos

494

olímpicos. Alexander Soljenitsin escreveu

Arquipélago Gulag e mostrou que indústria de

presos políticos é o comunismo. No socialismo real

há uma total falta de liberdade um clima

pesadamente policialesco. Porque o mérito

individual é algo que não existe. Assim, o vendedor

de bolinhos de carne na praça de Varsóvia, ao final

do dia, não podia levar para casa os bolinhos não

vendidos e eles eram jogados fora. Porque se o

vendedor se apropriasse dos tais bolinhos haveria

uma diferença de fruição dos seus vizinhos. Ou o

senhor Jossif que furava a fila de quem queria

consertar a televisão antes, pois pouco importava

quantas televisões consertasse de dia pois o seus

salário seria sempre o mesmo como capitalista,

pois esta era a única maneira de transcender o

trivial. Como dizemos, no socialismo também há

mais-valia. Além do imposto o governo se apropria

da mais-valia. Isto gera dinheiro para se investir ou

planejamento. Mas o que realmente recebe verba é

armamentismo, militarismo e corrida espacial. Em

geral vê-se o trabalhador da sociedade capitalista

495

desenvolvida em melhor situação do que o mesmo

trabalhador no socialismo. Não há hierarquização

de salário com o grau exato de responsabilidade e

conhecimento técnico. Os engenheiros e médicos

são mal pagos. A mais-valia é usada ainda para

tapar buracos. Empresas superavitárias sustentam

empresas deficitárias. Ou seja, toleram-se

empresas que dão prejuízo porque empregam

pessoas. Não há fomento à iniciativa privada.

Todos precisam ser cobrados por fiscais e há até

mesmo o fiscal do fiscal. O planejamento também

não funciona às mil maravilhas porque é preciso

fazer fila no mercador e no restaurante. Nas

olimpíadas é maximizado o desempenho presente

do físico do atleta ao preço de uma morte precoce

do mesmo. O socialismo nega todos para afirmar

todos. Nada mais lógico e perfeitamente dialético.

No capitalismo, pelo menos, alguns são alguma

coisa. Mas no socialismo todos são nada. O

socialismo gera o crescimento da burocracia, mas a

eficiência não cresce na mesma proporção da

estrutura e do pessoal que a estrutura comporta. O

496

socialismo pretendeu ser uma escola de gestão, e

em algum sentido até conseguiu ser com a NEP e

os planos quinquenais, mas faliu por má-gestão. A

Perestroika faliu a URSS porque quis fazer a um só

tempo uma reforma política e econômica. É mais ou

menos como fazer dois grandes procedimento

cirúrgicos num mesmo paciente. O bom senso nos

diz que devemos primeiro fazer um procedimento e,

quando convalescer da primeira intervenção fazer a

segunda. Enquanto houver capitalismo haverá

socialismo enquanto que o socialismo é o eterno

discurso de quem não se conforma à desigualdade

e à injustiça. Como mostraram os filósofos

marxistas culturalistas ou frankfurtianos, o

marxismo é um iluminismo. No sentido de que

pretende organizar a sociedade a partir da razão e

de que vela pela igualdade, fraternidade e liberdade

dos revolucionários franceses. O socialismo

pretendeu reconciliar o homem consigo mesmo,

mas gerou muitos conflitos. O martelo e a foice da

bandeira da URSS significa a resolução da tensão

cidade versus campo. O capitalismo puro e o

497

socialismo puro não são capazes de realizar o

homem, mas a síntese de ambos consegue. A

prova disso é o New Deal e o Wellfare State que é

um capitalismo repleto de políticas públicas e

sociais. É como se os capitalistas abrissem mão

dos anéis para ficar com os dedos. A Constituição

do México e a Constituição de Weimar são ícones

desta ideologia. Quanto, todavia, em 1989 cai o

muro de Berlim e em 1991 cai a URSS com o

fracasso da Perestroika de Mikail Gorbachev, as

políticas do capitalismo social vão à bancarrota. É

interessante perceber que a Constituição Brasileira

é de 05 de outubro de 1988, anterior aos dois

eventos de malogro do socialismo. Trata-se, pois,

de um diploma jurídico calcado em ideais que

perderam o bonde da história. Assim, o que vemos

é uma legislação social reduzida a normas

programáticas pelo Judiciário de um modo geral e

pelas Supremas Cortes. Muitos dispositivos até

hoje não foram regulamentados por lei. E o

mandado de injunção que teria o poder de coarctar

o Legislativo foi relegado à ineficácia pelos

498

Tribunais que lhe tiraram a viabilidade processual.

O legislador às vezes parece esquecer que se

alguém recebe um direito um outro alguém terá de

pagar uma conta ou de alguma forma cumprir um

dever. Por outro lado, quando o capitalista quer

fazer cortes nas saídas a primeira coisa que

vislumbra é o direito do trabalhador assim como os

governos tolhem a verba da educação e da saúde.

Há quem classifique os direitos em gerações.

Primeira geração: legalidade, propriedade.

Segunda: liberdade de pensamento e expressão,

direitos políticos e cidadania. Terceira: os direitos

sociais. Quarta: difusos, do meio ambiente

equilibrado, do consumidor. Temos que zelar por

aquilo que já conquistamos, porque corremos um

sério risco de retroceder. De um modo geral os

direitos sociais têm retrocedido na maior parte do

mundo. Vivemos na sociedade da informação onde

nós mesmos devassamos a intimidade de nossa

vida, onde gastamos todo o nosso tempo de não

trabalho com assimilação de informações que nem

sempre têm outra serventia senão o estar por

499

dentro da fofoca e não nos sobra tempo para

discutir política partidária ou sindicalismo. Engels

compara a formação de um exército de ideólogos

socialistas ao surgimento do cristianismo que

crescia na razão direta do número de mártires. Mas

a URSS se assemelhou mais ao Império Romano

do que às vítimas por ele imoladas. O que do ponto

de vista moral é altamente pernicioso ao

socialismo. Porque a liberdade é tão sagrada

quanto a vida, bem que é atingido no caso de

miséria extrema. Porque sentido algum faz uma

vida materialmente satisfeita e um espírito

embrutecido e carente dos mais elevados ideais.

Hoje o aparato militar é tão mais sofisticado do que

o armamento do Czar que dificilmente uma

revolução comunista teria êxito em qualquer parte

do mundo. Se a exploração tornar-se crescente e

os trabalhadores forem reduzidos à escravidão,

assim como o foram os judeus no Egito, não haverá

força humana ou tecnologia que colocará termo à

infelicidade e extrema opressão, senão um Deus

poderoso como o que humilhou o Faraó, o homem

500

mais poderoso do mundo. E por falar em Deus, o

maior de todos os erros do socialismo científico é

defender o materialismo ateu. Porque não há como

haver libertação voltando as costas ao Libertador. A

religião cristã do tempo de Marx realmente perdeu

o foco ficando alinhavada com o explorador e só

muito tempo depois é que faria a opção preferencial

pelos pobres. De toda forma, parece que estamos

diante de dois erros teológicos e nenhum tem o

condão de anular o outro. Porque Cristo fala dos

pobres em espírito, o que é diferente de ser

simplesmente pobre. Há quem diga que o

comunismo é uma ideologia cristã e há quem

interprete o cristianismo a partir da parábola dos

talentos. Na verdade, o cristianismo ao mesmo

tempo é ambas as coisas e nenhuma. Talvez o

cristianismo seja um socialismo endossado. Sim,

porque o que vemos no socialismo real é a

incapacidade de abolir as classes porque umas

funções exigem mais que outras. Como assinalou

Gramsci, os comunistas não são contra os cristãos,

pelo contrário, querem criar o tão sonhado céu

501

cristão já aqui nesta Terra. cristo disse dos cristãos

que deveriam ser sal da terra, mas sentido algum

tem ser sal de um grande saleiro, é preciso que

haja terra e erro maior ainda é achar que a terra

não precisa de sal. O socialismo é um discurso

extremamente ousado. Porque ele defende

justamente os mais fracos diante dos maiores

poderes deste mundo. Neste sentido ele é corajoso,

belo e heroico. O socialismo é como uma bela flor

que exala delicado odor e está enraizada no

esterco em decomposição. São as mazelas sociais

sendo convertidas em ideologia séria e

comprometida capaz de discursivamente fazer

frente a outros discursos, pois trabalha com

excelentes categorias. Por mais que o marxismo

fale em condições objetivas, ele pode ser definido

como um fenômeno essencialmente cultural. Assim

como a psicanálise: ela diz estar tratando do ser

humano, mas não passa de um dos pontos

possíveis. E não é fácil ser produtor cultural hoje

em dia. Porque em nenhum outro tempo vivemos

uma pletora tão grande de músicas, novelas,

502

cinema, romances e todo tipo de literatura. O

marxismo e a psicanálise ainda são fortíssimos em

nossos dias, mas cada vez mais deixam de ser os

senhores discursos por se tornarem mais um entre

outros. O que também contribui para o

enfraquecimento do socialismo é a ascensão da

escolaridade. Porque se no passado a grande

escola era o sindicato, hoje em dia é raro quem não

tenha curso superior. E o enfoque são os cursos

técnicos. Os tecnólogos se acham tão entendidos

em ser humano, sociedade e tudo o mais quanto os

licenciados e bacharéis das ciências humanas. E

mesmo nas ciências humanas nos cursos de

instituições privadas o socialismo já não é a noiva

de outrora. Com toda razão, pois não faz sentido

desprezar o metal quando é ele que mantém a

universidade e os professores. As instituições de

ensino costumam alardear que quem tem curso

superior tem melhores salários do que quem não

tem. De um lado isto é verdadeiro, mas, de outro, o

que se vê é que as pessoas não têm renda porque

possuem curso superior, mas possuem curso

503

superior em função da renda. O curso superior

parece ser uma das primeiras opções de

investimento hoje em dia. E é justamente esta

qualificação profissional que faz o diplomado ver a

si próprio como artífice do próprio destino e não

mais como mero agregado no empreendimento do

patrão. Porque em alguns casos o patrão depende

tanto do empregado graduado como este daquele.

E o empregado graduado, se não vê a si mesmo

como patrão, também não consegue se identificar

com aquela mão de obra bruta. O problema de um

partido socialista numa sociedade capitalista é que

ele está adstrito a fazer uma boa administração, o

que em tese qualquer partido poderia estar

fazendo. E mesmo que o Partido consiga o

Governo Federal não pode, senão através de

golpe, subverter o Estado de coisas. A ideia de

socialização é só uma das grandes ideias

possíveis, que em função da pluralidade de ideias

fica muito relativizada. Pensamos que chega a ser

uma ideia uma sociedade de capitalistas e um

governo socialista. O problema é que os capitalistas

504

não estão rendidos e patrocinam seus

representantes nos poderes constituídos. Os

próprios partidos de esquerda estão estruturados

muitas vezes a partir de modelos norte-americanos

e o PT é um exemplo disso em que a militância não

pode votar diretamente no candidato quando o

assunto é seleção para cargos estratégicos do

próprio partido. Muitas vezes o discurso de

esquerda é meramente retórico e instrumental de

formas que quando o político de esquerda é o

empoderado não passa de um burguês

simpatizante de ideais atenuantes do sistema, mas

que não derrogam o sistema. Hoje que estou a

almoçar no mercado público da Ilha da Fantasia,

nossa Floripa, capital de nosso Estado, sinto o

quanto é complexo fazer política numa comunidade

em que nas calçadas centrais transitam centenas

de pessoas por minuto. A poucos metros daqui está

a Assembleia Legislativa em que temas centrais de

nossa coletividade são discutidos e em relação aos

quais maior parte dos insulanos estão tão distante

quanto nós interioranos. Encontro-me agora em

505

audiência pública para discutir a radiodifusão

comunitária e a digitalização das rádios. Embora as

rádios comunitárias ostentem discurso de

esquerda, parece que a centralização dos meios de

produção de notícia favorece a um governo tanto

capitalista quanto socialista. Porque é mais viável

barganhar com um só grande do que com vários

pequenos. A mídia enfrenta em linhas gerais o

mesmo problema que o socialismo: combate aquele

que é o seu poder concessor. O PDT é um tipo de

socialismo interessante: sim, porque defende a

legalidade. Porque em dados momentos o

socialismo se tornou o partido dominante pela

legalidade burguesa e então a burguesia subverte a

própria ordem, a própria legalidade e o próprio

regime democrático. Quando o trabalhador reclama

seus direitos trabalhistas não está defendendo o

socialismo, mas o capitalismo. E isso se explica à

Carta di Lavoro italiana e à CLT brasileira. Porque

em certo sentido a defesa do empregado é ao

mesmo tempo a defesa do empregador. Porque

indenizar o empregado significa conciliar conflito de

506

interesses típicos da sociedade burguesa. O

Judiciário limita o afã selvático e maquinal do

capitalismo e faz crer que o Estado é o garantidor

do equilíbrio das relações e da paritariedade

contratual referente à relação laboral. Capitalismo e

socialismo são duas plataformas de pensamento

que se assemelham respectivamente a um bode e

a uma ovelha. E uso estes animais sem intenção de

maniqueísmo. Tratam-se de figuras

complementares de modo que não devo sacrificar

um em nome de outro, mas toda sabedoria consiste

em dividir em iguais feixes o capim apanhado com

o zenzo. E do ponto de vista teórico não fazer

opção entre um e outro é deixar ambas perecer

sem o capim. Penso que individualmente cada um

deve fazer sua opção teórica, mas o parecer

acertado vem da decomposição dos distintos assim

como o asfalto sólido é sobreposto à brita

graduada. Se eu avaliar meus alunos

coletivamente, ou seja, somar todas as notas e

dividir pelo número de alunos, e estas experiências

já foram feitas, a tendência é de queda da nota.

507

Porque os que tiram nota de excelência são

desestimulados. E, além disso, o mau aluno fica

mais acomodado do que já é. Este é o problema da

não meritocracia: o indivíduo só se empenha se é

reconhecido ou se pode converter o resultado do

seu esforço em benefício próprio. Num primeiro

momento foi extinto o direito de herança, mas a

URSS teve de retroceder, pois todos somos

interessados em nós mesmos e o que fica depois

de nós são nossos filhos e netos de modo que

pouco nos importa a impessoalidade da

coletividade e do governo. Nesse sentido o

socialismo é um retrocesso em relação ao

positivismo que santificava os intelectuais, filósofos

e cientistas com um calendário próprio. O bom

socialismo deveria ser uma valorização da pessoa

e não o seu aniquilamento, porque em última

instância tanto o burguês quanto o proletário são

pessoas. E esta nomenclatura tem um sentido

metafísico porque ser pessoa é mais que ser isto

ou aquilo na política ou na engrenagem econômica.

Porque à luz das Sagradas Escrituras todos nós

508

somos pessoas conquanto que ser ou estar em

algum posto é circunstancial e passageiro. Feliz a

colocação de Emanuel Mounier que chama a

comunidade de Pessoa de Pessoas. Ele propõe o

cooperativismo como saída e alternativa às duas

grandes racionalidades. A ideia é excelente, mas a

filosofia de autogestão e autofiscalização, tenho

visto na prática, não funciona. Além disso, estas

cooperativas estão insertas no interior de ordens

fáticas e jurídicas capitalistas. Uma boa política é a

de participação dos trabalhadores nos lucros da

empresa. Se se criar um padrão jurídico

internacional neste sentido, o que entendo, deveria

ser capitaneado pelas grandes potências

capitalistas, não prejudicando nenhuma economia

do ponto de vista concorrencial. É preciso ampliar a

participação do trabalhador naquela riqueza que ele

mesmo produz e é preciso diminuir a jornada de

trabalho. Talvez esta seja uma saída a situações

como a da Espanha que hoje se encontra com 25%

de desemprego. É bem verdade que em tais países

se pratica a granel o seguro-desemprego, porém

509

não sei, mas suspeito, que o efeito psicológico de

uma pessoa que depende da coletividade não é

nada agradável, sobretudo se se trata de pessoa

jovem ou relativamente jovem. Capitalismo e

socialismo estão entre si, um para o outro

reciprocamente, como a espada de Dâmocles que

estava por um fio de crina de cavalo. No entanto,

um precisa do outro enquanto antípodas. Porque o

socialismo é uma antítese ao capitalismo, sendo

que o capitalismo é uma oposição ao socialismo

enquanto inexista a sociedade feudal que veio a ser

a primeira negação do ideal liberal. O esquerdismo

está sendo reinventado e faz uma leitura do

socialismo antigo entendendo que este sempre

esteve a favor do excluído que, dependendo do

espaço, do tempo e das circunstâncias, pode ser o

operário ou o camponês, mas em nossos dias pode

ser o negro, o homossexual, o índio, o cigano e

assim por diante. Como o estar no centro ou na

periferia é sempre relativo, é de se supor que

sempre haverá empoderados e outros alheios às

instâncias de deliberação social. Isto significa que

510

enquanto houver mundo haverá socialismo. Pode

acontecer que os pobres do futuro sejam menos

pobres do que os pobres do presente. Mas

enquanto eu junto R$ 1,00 e outro alguém arrecada

R$ 100,00, mesmo que eu consiga viver

dignamente com R$ 1,00 o discurso socialista me

fará sentido. Nossos avós jamais sonharam que

teríamos uma quantidade de parafernalhas em

nossa cozinha, telefone sem fio e tantos outros

comodities eletroeletrônicos. Nossa felicidade não

depende ou não deveria depender destes produtos,

mas quem se vê privado de multimeios que nas

comunidades mais prósperas são corriqueiras

começa a se sentir alienado. Entala na garganta um

sentimento de não pertença. Isto foi chamado por

Marx de alienação. O nível geral de bem estar

social é crescente. E devemos ter em vista a cada

vez mais rápida popularização destas tecnologias a

fim de que a igualdade técnica reforce aquela

igualdade filosófica e jurídica que tanto

defendemos. Claro, por outro lado a técnica tem

sua independência e o malogro do rádio digital

511

espelha a má vontade do consumidor de pagar de

10 a 20 vezes mais por um receptor mais

sofisticado em nome de uma suposta melhora na

qualidade do som.

Política: a ideia de organização do Estado

A política desde o princípio foi uma preocupação

dos filósofos. Essa parece ser a preocupação

central de Platão em A República e o mito da

caverna em primeiro lugar, antes da metafísica, da

epistemologia e da lógica, se propõe a apregoar a

mensagem de que há um grupo de iluminados que

contemplam a ideia de bem, o Sol, e está

melhormente preparado para liderar a coletividade.

Aristóteles cuida do comportamento em suas

Éticas: Ética a Eudemo e Ética a Nicômaco de

forma a prescrever ao indivíduo, e em A Política

cuida do comportamento social. A política é a arte e

a ciência de dizer quais são os meios de se chegar

ao poder, o que deve ser feito com o poder, ela

rege a procedurística do administrador da coisa

512

pública, aliás, a política se presta a cuidar da res

pública e da convivência social entre os cidadãos. A

única coisa que precedeu o debate político foi o

debate sobre a physis cujo inaugurador foi Tales de

Mileto. O grande objeto de discussão girou em

torno da natureza do governo e suas metas e em

torno de modelos ideais. O que se tem visto é que a

discussão sobre os modelos é a mais frutífera

realizada até agora, mas nenhum modelo se

cumpre sem a intencionalidade dos agentes

políticos. Aliás, os modelos são em certo sentido

impotentes e inócuos de modo que nem o mais

genial dos modelos coisa alguma irá resolver senão

antes o próprio ser humano ser aprimorado. Nos

tempos de outrora na democracia direta grega da

Antiguidade a política era feita de boca em boca. E

até hoje, nós que vivemos na pletora de recursos

midiáticos, vivemos este lado do tête-a-tête da

política. Não nos convencemos apenas ouvindo a

televisão, o rádio, o jornal e a revista, além, é claro,

da internet, mas sentimos a necessidade de trocar

ideias com pessoas que reputamos confiáveis. A

513

política pode ser comparada a um círculo de vinte

fortes homens de mãos dadas que aprisionam

duzentos: ou seja, a minoria domina a maioria

porque é unida e forte. É assim que poucos bodes

levam para onde querem um numeroso rebanho de

ovelhas: dando cabeçadas e espuleteando com

recalcitrância e tenacidade. As massas são

instâncias de manobra em primeiro lugar por causa

da divisão social do trabalho, pois liderar também é

um trabalho. A maior parte das pessoas está

preocupada em cuidar do seus afazeres e trabalhar

pela própria economia,o que lhes subtrai o tempo

de pensar os rumos da sociedade e as prioridades

da coletividade. Assim como há pessoas, e elas

são maioria, que pensam em si mesmas e nos

entes familiares todos os dias do ano, é preciso que

haja quem pense no conjunto o tempo inteiro. É

assim que a riqueza da nação é a soma da riqueza

de seus cidadãos tomados particularmente, sendo

a afirmação da individualidade a afirmação da

coletividade, e é assim que o que nega a si pelo

bem social se torna um homem público, sendo a

514

afirmação do coletivo a afirmação do indivíduo. A

política se assemelha muito às práticas de

mercadologia que enaltece uma marca e o produto

rotulado com a determinada marca. O candidato

vende sua imagem. A relação de sufrágio está se

assemelhando cada vez mais a uma relação de

consumo. Abraham Lincoln falou que o magistério e

a política são para aqueles que fracassaram na

vida. Porque a política é tão meditativa e reflexiva

quanto a filosofia. A vantagem da política em

relação à filosofia consiste em ela receber muito

mais feedback. Todos gostam de opinar, criticar e

sugerir, o que enriquece tremendamente a

racionalidade. A política é altamente concentradora

de inteligência em razão de ser exaurientemente

debatida. Ao lado da escola tradicional, a Igreja e a

política são as maiores escolas pelas quais um ser

humano pode passar. A política recebe muita

contribuição da filosofia, o que é de sumo bem.

Porque em filosofia a pouca quantidade é mais que

compensada pela excelente qualidade dos que a

ela se aplicam. A opinião pública é muito útil na

515

fase preparatória de levantamento de polêmicas e

pontos candentes. E os filósofos tomam da plebe

os problemas suscitados e em seus gabinetes

ruminam as prováveis soluções. A política é tão

poderosa que faz dum homem sem talento um

super-herói. O triste é quando ocorre o inverso

disso: os competentes e diligentes além de não

serem reconhecidos são punidos por estarem

destituídos do carisma. Isto apenas mostra que é

mais respeitado aquele que extrai virtude dos

outros do que o que possui virtude em si mesmo.

Tudo depende de política. Sobretudo se se tomar o

termo “política” na acepção latu sensu. Mas ainda

que o termo “política” seja tomado strictu sensu

deve-se dizer que a relevância da política é

crescente pela tendência de juridicização da vida,

pela burocratização e pela estatização do nosso

cotidiano. O Estado está controlando cada vez mais

as pessoas, mas é raro fiscalizar se da fiscalização

não adviesse a punição para aqueles que são

flagrados pelo sistema praticando infração

administrativa, contravenção, crime, ou até mesmo

516

desleixo meramente moral. A política faz o homem

ser homem. Porque os animais só conhecem a

força bruta para administrar e conciliar conflitos de

interesse. País desenvolvido é aquele que possui

democracia forte. O modelo ideal é aquele que

mescla aristocracia com democracia. Na ótica de

acordo com a qual poderíamos escolher a equipe

ou o líder que reputamos ser o melhor. A política é

a viabilização não só do interesse público, até

porque tudo que é público é uma abstração, mas é

a realização de interesses pessoais e de

segmentos. É assim que um deputado federal que

usa a gráfica parlamentar para publicar o próprio

livro faz um bem a si mesmo e à coletividade se o

material for de razoável qualidade. É assim que o

interesse de uma tribo indígena contempla um

coletivo relativo e diminui para determinado Estado

a área de exploração econômica da qual depende o

desenvolvimento de uma região. A política e a

estratégia de conciliação do individual, do particular

e do universal, ou seja, do um, dos alguns e de

todos a um só tempo. Estas três categorias são

517

como variáveis que flutuam no vácuo de sorte que

em dada época uma se sobressalta em detrimento

das outras duas, sucessiva e alternativamente. A

política depende do voto e da capacidade de

articulação. Como é desgastante ser governo, é

mais esperável o declínio do prestígio de um

político do que o inverso disso de modo que a

relevância da articulação é crescente. José Sarney

ilustra isto muito bem. E o bom articulador é aquele

que se faz liderança entre as lideranças. Isto é

esperteza e malandragem no bom sentido da

palavra e, no caso do Brasil, às vezes, também, no

mau sentido. Não adianta reclamar dos velhos

caciques. Ninguém é forte por si mesmo. Se há

quem seja empossado é porque há quem vote.

Porque veteranos na política mostram que a

comunidade não teve capacidade de produzir

novos líderes. Liderança e comunidade são efeito e

causa um do outro, mas a preponderância deve ser

atribuída à comunidade até pela sua quantidade

majoritária. A política é uma arte. E a prova disso é

que em certos municípios brasileiros o bisavô até o

518

bisneto foram prefeitos. Ora, não é possível que

carisma seja um dom, até porque o que se vê é que

os talentos dos filhos quase sempre são diferentes

do talento dos pais. Política é algo que se aprende,

é algo inculcado e introjetado culturalmente. Até o

modo de se relacionar com as pessoas é algo que

se aprende. Diria que ser herdeiro de uma tradição

política é mais um fardo do que uma chance

grande. Ou melhor, tudo depende do ponto de

vista. Porque o que é bênção para um pode

representar apenas incomodação para outro. De

todo modo, vemos verdadeiras árvores

genealógicas dentro do Congresso, das

Assembleias Legislativas e dos Tribunais. A

genética leva consigo não só informação

cromossômicas, mas também um cabedal de

informações que ficam salvas em memoriais

metacromossômicos. E é por isso que muitas vezes

um ser humano só vai entender quem ele é aos 30,

40 ou 50 anos. A política vem bem a calhar com a

teoria weberiana dos modelos. Sim, porque o povo

faz uma determinada ideia sobre os chamados

519

políticos profissionais e até acerca das famílias de

políticos quando a referida arte é mais arraigada. O

marxismo faz da política uma ciência. Mas o

socialismo científico enquanto teoria revolucionária

despreza as urnas porque entende que o povo está

alienado e a elite do partido deveria comandar a

subversão do estado de coisas pelas armas se

aproximando da estratégia guilhotinesca da

revolução burguesa. Em grande medida a história

de um povo é a História das suas instituições

políticas e das diretrizes firmadas por seus

expoentes ao longo do tempo. É por isso que se diz

que a História é sempre a História dos vencedores.

E como a burguesia conseguiu se impor sobre a

nobreza e o clero, é festejada como a libertadora.

Mesmo que certos apaixonados por número jurem

de pés juntos que a Revolução das Luzes matou

mais pessoas em uma semana do que o Tribunal

da Inquisição em mil anos. Durante muito tempo se

apregoou abertamente o darwinismo social e hoje

há uma crítica muito forte às ideologias eugênicas.

Entrementes, o que se vê é que ainda hoje se

520

pratica darwinismo social, todavia, de forma velada.

E não se faz isto porque o ser humano é mau, mas

porque esta é uma lei natural e as leis naturais são

eco das leis espirituais. A escravidão e a grandeza

de um homem depende de seu pensamento e o

voto reflete o nível de pensamento do sufragante. A

urna é o filtro, é o parâmetro de depuração do

burilamento de pensamento do homem médio.

Escolhemos a quem iremos nos submeter. E a

escolha sempre parte de quem o nosso

representante é melhor do que nós mesmos. Do

contrário, entendo eu, nos lançaríamos candidatos.

A política muitas vezes é dúbia. Isto pode acontecer

inclusive nas políticas eclesiásticas. João Paulo II,

por exemplo, tinha frases bombásticas a ponto de

dizer “a teoria da evolução é mais do que uma

teoria” e acolá “é impressionante como um

esquadro e um compasso podem reunir tantos

homens de bem”, ou seja, o discurso era arrojado,

mas a política de nomeação de bispos e cardeais

era conservadora. O discurso estava lá na frente e

os príncipes católicos egressavam das alas mais

521

conservadoras. João Paulo II foi inteligente, pois

disse o que o mundo queria ouvir e cuidou de não

deixar se criar movimentos separatistas

antirromanos. A estetização da política, em que

pese aquilo tudo que Walter Benjamin escreveu, é

fundamental. Porque numa empresa cerâmica o

patrão tem de falar que a empresa segue padrões

internacionais, que tem este e aquele certificado,

este e aquele reconhecimento, muito embora saiam

pratos tortos dos fornos. O discurso não pode ser

realista porque a função da política é negar a

realidade e não se conformar a ela. A política tem

de ser transformativa e o discurso deve antecipar já

no tempo presente aquilo que o idealizador prevê

para amanhã. Política é mobilização e articulação.

Com os meios virtuais, hoje, mais do que nunca,

ficou relativamente fácil reunir alguns milhões de

assinaturas em prol de uma causa. Vemos que a

política é também – e sempre e necessariamente

em última instância – choque de valores. É assim

que parlamentares de esquerda defendem

interesses homoafetivos e a bancada evangélica o

522

repúdio a padrões diferentes dos que prescrevem

as Sagradas Escrituras. É assim que a bancada

ruralista defende a propriedade, no diapasão do

tríduo tradição, família e propriedade, e os

esquerdistas, somente neste momento uns poucos

radicais a la Trotsky, defendem o movimento dos

trabalhadores sem terra cuja pano de fundo é a

justiça social e a função social da propriedade.

Liberalismo defende liberdade porque a liberdade o

é também de concorrência em desfavor do

protecionismo social e o socialismo defende o

coletivo em desfavor da liberdade. Amarthya Sem

foi sábio ao paradoxalizar as coisas em niti e nyaya.

Ele deixou claro que os princípios que norteiam a

política são contraditórios e desencontradiços. O

papel da política é conciliar o inconciliável. É

realizar o impossível. Sen, seguindo as pegadas

dos utilitaristas, como Jeremy Bentham e John

Stuart Mill diz que a cobertura tem de ser a mais

ampla possível, mas não necessariamente integral.

Habermas endossa a ideia de que a integralidade

pertine à comunidade ideal, sendo que a

523

comunidade real e empírica é sempre e sempre

parcial. O que se vê é que as pessoas muito

conscientes, conhecedoras do próprio vernáculo

em profundidade e de cultura enciclopédica são

liberais justamente por confiarem em si mesmas. E

quando digo isto faço a ressalva de que há pessoas

sábias e experientes tanto entre crentes e ateus,

marxistas e liberais, protestantes e católicos.

Alguns escritores, como Paulo Leminsky, vivem do

ponto de vista bíblico dissolutamente, mas não

estamos autorizados a chamá-los de ignorantes

porque é possuidor de grande conhecimento, ainda

que se trate daquele conhecimento pagão

comumente representado pela coruja babilônica. A

política é esta câmara de gestação e parturição de

ideias. Ideias que agasalhadas por certos conceitos

jurídicos tornam-se regras. E, como tais, impõe-se-

nos sobre o pescoço e quer queiramos ou não

temos de carregá-la. Como diria Aurélio Agostinho

“carrega tua cruz e ela te carregará”. A política é o

marco civilizacional, geralmente exarado nos

diplomas legais, do grau de maturação de uma

524

sociedade. O direito é um marco seguro justamente

porque sempre há um retardo da existência do fato

social que adrede não é observado, até chegar ao

ponto de não se poder não vislumbrá-lo e aí vem a

regulação e a tutela. Não raro, o ordenamento

jurídico apenas chancela aquilo que a praxe

forense mediante a surrada jurisprudência já vinha

sabatinando há muito tempo. Fazer leis é

relativamente simples, difícil é transformar a

sociedade. De minha parte concordo que “um país

se faz com homens e livros” para abraçar-me a

Monteiro Lobato. No geral, a sociedade brasileira

está se tornando cada vez mais tolerante e isto se

deve a coibição legal contra o preconceito e as

políticas de afirmação. A política é a coisa mais

importante no mundo se se pensar que a ciência, a

tecnologia, as garantias fundamentais, os

patamares civilizacionais, a religião, as políticas

sociais, a saúde, a educação, a segurança, a

energia, as finanças, a vida em sociedade e tudo o

que se possa imaginar dependem dele. Ela é a

câmara de deliberação disto tudo. A política é o que

525

faz florescer e que faz esmorecer. Os países

governados por partidos de esquerda nos mostram

que nenhuma outra linha partidária tem uma

capacidade tão grande de mudar a cultura como a

esquerdista. Se pararmos para pensar na crítica

que os frankfurtianos fazem à cultura capitalista, e a

teoria que eles produziram também é cultura, ou

aterrissando aqui no Brasil, se pararmos para

pensar que o nosso país é o oitavo produtor de

livros no mundo e que o governo é o que realiza

mais de 50% das compras de livros, já

entendemos, por exemplo, a importância da política

para a cultura. Quem não for aristocrata não se

meta na política. Tenho visto gente de pouca

cultura, pouca renda e pouca projeção social

metendo-se na política, e acho que representam

muita gente do mesmo naipe, mas o máximo que

conseguem quando conseguem, é um único

mandato e um resto de vida reunido em uma só

linha “perseguição”. Porque o desgaste é muito

maior do que o crédito. Só para exemplificar do

ponto de vista financeiro, emergem do fim do

526

mandato com menos posses, e, às vezes, até

endividados, do que no momento anterior ao

envolvimento político. A grande dificuldade dos

nossos dias, sobretudo para os partidos de

esquerda, por incrível que a informação pareça, é a

formação da militância. Vemos pessoas engajadas

no voluntariado dos partidos de direita e, na outra

ponta, cabos eleitorais cobrando verbas laborais

dos partidos de esquerda. O crédito é assim, as

pessoas reclamam dos bancos, mas fazem igual,

temos à nossa disposição o mais belo e sofisticado

guarda-chuva em dias ensolarados. Em resumo, a

política deve ser a dialética entre teoria e prática,

no dizer de Paulo Freire, “a prática de pensar a

prática”. Enquanto a política forme pedagogos e

pedagogos formam políticos.

Filosofia: a ideia de pensar as ideias

A filosofia se apresenta como a primeira forma de

conhecimento epistemologicamente séria. Sim,

porque antes havia o senso comum, o mito e as

527

crenças religiosas e até um pouco de literatura e

teatro. Digo que a filosofia é séria porque não toma

como suposto aquilo que jamais em tempo foi

demonstrado senão admitido pela tradição. Embora

também a filosofia seja uma tradição a marca maior

dela é a quebra de tradição e do paradigma

anterior. A filosofia sempre pretendeu não crer em

outra coisa senão em si mesma, ou seja, na razão

pura, livre de preconceitos. A filosofia é

essencialmente método. Trata-se de método

racional, sistemático, analítico, despojante e crítico.

Como a filosofia irá demonstrar por si só, a

fraqueza deste método é a dificuldade de construir

conhecimento pragmático. E isto por uma razão

muito simples: o filósofo não conta com outra

ferramenta senão a própria razão. Por isso a

filosofia é só intelecção e discernimento conceitual.

Trata-se de uma inteligência que se move dentro de

si mesma. A razão é sempre relativa e, plantada

dentro desta relatividade, procura ir adiante

perscrutando as próprias premissas e os próprios

corolários.o caminho da elucidação pertence ao

528

homem porque o homem é a medida de si mesmo.

O ócio é o pai da filosofia e talvez seja por isso que

hoje já não se veem os grandões de outrora, todos

estamos muito atarefados e não nos sobre tempo

par nos voltar para aquilo que nos torna humanos:

o pensamento. O pensamento é a chave que abre

todas as prisões. O computador não inventa um

cérebro humano, mas a argúcia mental do homem

constrói um computador. A filosofia é um exercício

de força, ela trabalha com nosso ponto forte, o

pensamento. A libertação do homem está

diretamente relacionada com sensível de

pensamento. Hoje em dia o grande problema de

inserção do iniciante no mercado de trabalho é o

comportamento. Ora, o comportamento é

expressão de nosso pensamento, de nossa

metanarrativa. Se o comportamento não vai bem é

porque antes disso o pensamento é truncado. A

reflexão filosófica só se desenvolveu na Grécia do

século VI a. C. porque naquela sociedade havia

não só muita prosperidade, mas liberdade de

pensamento oriunda de um pluralismo religioso que

529

aniquila a base de uma teocracia ditatorial. Mas

como a filosofia entre em crise ainda no seu

período de formação Platão retorna ao mito e

Aristóteles se mostra racionalista, empirista e

cientista. Com o advento do movimento cultural

chamado cristianismo houve um longuíssimo

período de acomodação entre a perspectiva

religiosa e a filosófica. Houve quem professasse as

duas verdades, ou seja, uma é a verdade filosófica

e outra a teológica e houve Agostinho de Hipona e

Tomás de Aquino, respectivamente neoplatônico e

peripatético. Os referidos teóricos seriam grandes

expoentes de duas subtradições: Patrística e

Escolática. O pensamento filosófico e o

pensamento cristão foram amalgamados de tal

forma que hoje a teologia, mormente a católica, é

impensável sem essa ponte, pois os conceitos e

categorias hermenêuticas são trazidos da filosofia.

A filosofia tem a pretensão de abordar o seu objeto

de estudo, ainda que também não haja consenso

de qual seja o objeto de estudo da filosofia, de

maneira imparcial e livre de tendenciosidade. Isto,

530

enquanto disciplina. Mas o que vemos é que

embora a filosofia possa se ocupar de enteléquias,

os seres pensantes que constroem o debate

filosófico não são enteléquias, mas pessoas reais,

dotadas de emoções, valores, preconceitos e

reféns de experiências e vivências adstritas. O

resultado prático disto é que, não negando o que

dissemos acima, pois é necessário distinguir e até

separar o cultor da cultura, a filosofia sempre está a

favorecer este ou aquele ponto de vista, sempre

espelha pontos de vista limitados e subjetivos. Não

obstante o fato de a filosofia imiscuir-se com os

palpites de seus corifeus, é importante ressaltar

que um meio a cacoetes, nacionalismos,

historicismos, etc, pode-se encontrar princípios

universais atemporais e supraespaciais em todas

as obras dos pensadores de peso. Na filosofia os

conceitos nem sempre estão claros e distintos, mas

por meio de processos abstrativos devem se

liberados de um invólucro. Isto é hermenêutica.

Embora a hermenêutica filosófica seja uma

disciplina, a própria filosofia enquanto discurso

531

complexo carece de suportes oriundos das teorias

de interpretação de texto e contexto. A filosofia é

uma das grandes tradições que jamais irão se

acabar. É importante destacar que antes dos

gregos já havia pensamento filosófico. Não se

admite dizer que krishna, Buda, Confúcio, Lao Tsé

e tantos outros não foram filósofos. Filósofos eles

foram e em algum sentido o que eles disseram

transcende o dito pelos helênicos. Mas o que faz a

filosofia oriental grande é o que lhe põe para fora

da chamada “filosofia pura”. Porque os sábios do

Oriente admitiam princípios não dedutíveis pelos

mecanismos puramente lógicos. Eles se renderam

a uma espécie de intuição mesclada com

iluminação. O filósofo na concepção grega não

pode contar com outra luz senão aquela que vem

de si mesmo, ficando de lado toda transcendência e

todo paralelismo. Justamente pelo fato de a razão

humana ser eleita a juíza de tudo, estando de

costas para instâncias ad hoc é que se diz,

acertadamente, que a filosofia é um humanismo. A

filosofia é um humanismo porque tudo é observado

532

a partir da ótica do humano, mesmo o supra-

humano. Toda a grandeza de Nietzsche consiste

em negar o que não é humano para afirmar o

humano. Nietzsche não é compreendido. Nem o

próprio Nietzsche conseguiu se dar conta de que

em seu íntimo ele nunca foi ateu. A briga de

Nietzsche nunca foi com Deus, mas contra uma

determinada representação de Deus que refletia um

contexto específico, uma época específica e um

tipo, dentre muitos outros possíveis, de vivência

das Sagradas Escrituras, mormente dos

Evangelhos. Schopenhauer foi sábio ao repetir

Buda “o mundo é representação”. E Nietzsche quis

criar uma nova representação. Pois bem, se o

mundo é representação, Deus também o é. E quem

somos nós para querermos engaiolar o infinito

Deus dentro de nossas representações? A

propósito, Deus não é nem finito e nem infinito,

conquanto finitude e nem infinitude seja categorias

lógicas e Deus está acima do plano lógico humano.

A cada um compete eleger sua representação de

mundo ou o conjunto delas, sua metanarrativa.

533

somos livres para escolher, mas escravos das

consequências. A filosofia é esse negócio que se

mete em tudo porque de acordo com ela mesma

quem vê o todo é filósofo e quem não vê não no é.

Essa é de Platão. Assim, quem é filósofo tem de

conhecer o que não é estritamente filosófico e a

variedade de temas desta obra pretende cumprir

este desiderato da totalidade. A filosofia é a

disciplina mais importante dentre todas as demais a

partir do instante em que releva as contribuições de

todos os outros ramos do conhecimento e passa a

se debruçar sobre o sentido disto tudo. O sentido

do que nos rodeia e da nossa própria vida. A

filosofia procura ser a resposta às perguntas

fundamentais, os porquês e para quês, ela quer

saber donde viemos e para onde vamos. Ela quer

saber o que é a realidade, qual o nexo da História,

como devemos nos comportar individual e

coletivamente. Ela quer ser um parecer razoável a

todas as questões de alta indagação proposta pela

civilização. Ela quer agarrar a raiz do próprio

homem. A filosofia é uma antropologia. Mas difere

534

da antropologia moderna por se caracterizar pela

tentativa de romper o mundo fenomênico e também

por debruçar-se sobre o mais civilizado dos homens

e não estar voltada para o bárbaro e para o

primitivo. O filósofo é a consciência máxima de uma

coletividade. Se a filosofia de determinado filósofo é

fraca então é porque em última ratio a comunidade

à qual o filósofo pertence é fraca. O filósofo é o que

pensa a si mesmo pois não há superior que possa

olhá-lo do alto. Precisamente esta noção de que eu

sou o superior a partir do meu próprio ponto de

vista é que encoraja o pensador a propor e impor

seu ponto de vista como o supremo relegando

todos os demais a menores posições. Quando há

dois pontos de vista que estão neste ponto de mira

será a História a dizer qual deles efetivamente é o

mais saliente e funcional. A ideia tem um valor em

si mesma, isto é inegável. Toda boa ideia tende a

prosperar. Ora bem, é preciso dizer que certas

ideias nem são tão boas assim e encontram

guarida entre os clássicos porque seus

sustentadores foram tenazes e ainda conseguiram

535

converter neófitos para praticar proselitismo em

favor dela. O marxismo é genial, mas passa muito

por processos semelhantes àqueles bairristas no

território da religião. A filosofia não é apenas uma

eterna criação de conceitos ainda que também seja

isto. Ela é uma câmara de debate e avaliação de

ideias. Porque do ponto de vista filosófico posso ter

várias concepções de vida e a filosofia não é um

manancial de propostas de vida, é, ainda, a juíza de

todas estas propostas. Porque há um limite a partir

do qual não se trata mais de ideias, mas de valores.

Todavia, uma das disciplinas filosóficas é a

axiologia e os próprios valores em alguma medida

podem ser submetidos ao crivo da razão. A filosofia

é esta tendência de racionalizar inclusive aqueles

âmbitos que se reconhecem não serem muito

racionais como os sonhos, a sexualidade, etc. A

psicanálise ao afirmar o inconsciente é

antifilosófica, mas fica alinhavada com a filosofia ao

fazer catarse coincidir com a conscientização.

Quando um Comte reduz a filosofia a uma

organizadora das ciências porque conhecimento

536

sério e útil de verdade e o científico ou quando

Wittgenstein diz que a filosofia deve silenciar sobre

aqueles temas de que tratou a vida inteira, estão

indo na contramão da filosofia. Porque a filosofia

entra sem bater ou pedir licença. Ela não precisa

ser credibilizada por ninguém, pelo contrário, é dela

que os outros ramos de conhecimento tiram sua

credibilidade. Embora a filosofia, de acordo com o

momento histórico, oscila de “ancilla” a “regina”,

tenho comigo que rainha ela sempre foi e sempre

será. O que às vezes fazemos é dirigir à rainha da

sabedoria um tratamento incompatível com sua

dignidade. De todos os conhecimentos o mais

mundano é o filosófico. Porque os saberes

científicos se colocam na perspectiva de seu objeto

de estudo. Já a filosofia tem como ponto de partida

e de chegada o sujeito pensante. E este pensador

fez um pacto consigo próprio de não autorizar

ingerência na sua visão de mundo que não seja

simples inferências que se reportem sempre e

necessariamente à inteligência nos limites que lhe

são impostos pelo mundo empírico. É por isso que

537

se diz que a filosofia é uma sábia ignorância. Ela só

passa a se constituir saber quando admite que

nada sabe. O que para o homem religioso, e todo

homem do senso comum professa alguma forma de

religiosidade ainda que seja o ateísmo, entra no

discurso como presumido, subentendido e aceito,

para o filósofo não merece guarida enquanto não

for demonstrado. Ele sabe que certos

entendimentos, mesmo não demonstrados, são

partilhados pela plebe, mas ele não é plebe, pois se

plebe fosse não seria filósofo. Uma das marcas da

filosofia, portanto, é a exacerbação da exação

lógica e epistemológicas de critérios reguladores do

discurso. René Descartes levou muito a sério a

questão criteriológica e a sua dúvida metódica só

difere da dúvida pirrônica porque a partir do cogito

ergo sum ele conseguiu afirmar algo positivamente.

Ele não teve fim destrutivo, ou talvez até tivesse,

mas sua tônica é o revisionismo das bases de

nosso conhecimento. Aliás, a dúvida acerca do que

posto está não só é recorrente, mas penso que

todo filósofo de peso deve passar por este

538

vestíbulo. Porque o situar-se dentro da tradição

filosófica significa destinar galardões aos que nos

precederam. De tal modo que acabamos sendo em

grande parte aqueles homens, e o que eles

escreveram, que nós valorizamos. O ponto de vista

é algo tão curioso que mesmo em se tratando de

pontos autoexcludentes, quando nos aprofundamos

num e em outro ponto de vista parece que ambos

são igualmente plausíveis e verossímeis. E é por

isso mesmo que a filosofia contemporânea é feita

de tendências. De modo tal que nunca houvesse

uma variedade tão grande de linhas de pesquisa.

Parece que pelo fato de a filosofia ter se

especializado e se ramificado está mais difícil se

destacar na filosofia hoje. Vivemos num sociedade

de muitos e menores filósofos. Ou, quem sabe, os

vivos raramente recebem as mesmas comendas

dos filósofos já finados. A filosofia, atrevo-me a

dizer isto, é o senso comum imbuído de solenidade

e despojado da irreverência. Porque a reflexão

filosófica nasce do assombro do sujeito diante do

mundo, mas todos nós nos assombramos. E o

539

filosofar é esta postura séria de quem filosofa ou,

para não ser redundante, de quem pensa com

argúcia o que está por detrás do espanto e da

admiração. A filosofia sempre será a mais

importante disciplina quando o assunto é

transdisciplinariedade e generalização. Acorrem .à

filosofia místicos, teólogos, físicos, biólogos,

engenheiros da computação, matemáticos,

antropólogos, astrônomos, escritores, poetas e uma

plêiade incontável de homens de intelecto possante

e vontade boa e bem intencionada. Qual a outra

disciplina que consegue fazer isto? Em

compensação emergem da filosofia, a prima

sciencia, um grupo expressivo de intelectuais que

começam sua carreira analiticamente e acabam

encaminhando-se para zonas gnosiológicas mais

específicas. O método científico nasceu no interior

da filosofia e as ciências empíricas pode se

comparada à filha protestante que se rebela contra

a matriz. A prova disso é o empirismo latente na

filosofia em Aristóteles e o empirismo metafísico da

tradição filosófica anglófona. E por falar em

540

anglofonia, é importante dizer acerca da filosofia

que ela é sempre e sempre um grande idealismo. O

que é o imaterialismo fulcrado no empirismo de

Berkeley senão um idealismo? O que é o ceticismo

de Hume calcado no empirismo levado ao extremo

senão um idealismo? E o que falar da dialética

aplicada à matéria como foi concebida por Marx e

quejandos? É por isso que tanta gente procura na

filosofia respostas às perguntas mais importantes

de suas vidas, porque o homem duvida, crê,

problematiza-se e resolve pelo pensamento. A

filosofia é o âmbito privilegiado onde o ser humano

enquanto ser pensante pode se exercitar, se

emancipar e se autorreconhecer. Talvez melhor do

que uma academia de ginástica para quem almeja

educar e aprimorar o corpo. A filosofia explica o que

é um corpo, para que ele serve, o que devemos e o

que não podemos fazer com ele. A filosofia é uma

paixão da alma assim como a religião é a unção do

espírito. E o homem se sente realizado quando

espírito, alma e corpo se complementam e se

entendem.

541

Epistemologia: a ideia de processo gnosiológico

A epistemologia de certo modo é tão velha como a

metafísica se considerarmos Parmênides o primeiro

grande metafísico. Parmênides supõe, contra a

percepção dos sentidos, o modelo do ser único,

estático, imóvel e imutável para assegurar algum

tipo de cognição. Porque, como observou Popper, o

movimento nega a lógica, raiz epistemológica

última da validade de nosso conhecimento. Em

nossa obra Heráclito versus Parmênides vemos

que o desenrolar da tradição filosófica se

caracteriza pelo alinhavar-se a Parmênides ou a

Heráclito ou a fazer uma síntese de ambos. Porque,

se como quer Heráclito “tudo corre” (panta rei),

como é que poderemos construir um conhecimento

sólido que transcenda o instante em que foi

elaborado? Platão resolve o problema colocando a

alma dos seres no mundo das ideias de forma que

a ideia seja tomada na sua pureza, estreme de

corruptibilidade. Já Aristóteles fala em substância

542

que é o casamento entre corpo e alma e a alma (a

forma) seria a ideia platônica jazendo na imanência.

Assim, enquanto para Platão o mundo empírico

excita a memória e faz-nos recordar do mundo das

ideias, para Aristóteles o sujeito cognoscente é

mais ativo. Pois ele tem de laborar o processo de

abstração que é o prescindir de características

particulares ressalvando a universalidade do ser.

Quanto mais me aprofundo no processo de

abstração mais abrangente meu pensamento,

porém menos específico. Quem ganha na

abrangência perde na especificidade quem ganha

na especificidade perda na abrangência. Agostinho

diria que o processo de conhecimento se dá por

iluminação e Tomás de Aquino diria que nosso

conhecimento é a posteriori via abstração.

Johannes Hessen diz que são cinco os grandes

sistemas de ideias com os quais podemos nos

identificar: espiritualismo, panteísmo, materialismo,

ceticismo e niilismo. Já quanto à possibilidade do

conhecimento, cinco, também, seriam as respostas:

dogmatismo, ceticismo, subjetivismo ou relativismo,

543

pragmatismo e criticismo. Quanto à origem o

conhecimento poderia ser classificado dentro das

seguintes correntes: racionalismo, empirismo,

intelectualismo e apriorismo. Grosso modo, o

conhecimento pode ser inato ou agregado. Ou,

como quer Kant, os esquemas mentais seriam

inatos e o conteúdo imbutido em tais esquemas

seria agregado. A neurologia tem demonstrado que

as ligações sinápticas de nosso cérebro estão

organizadas de maneira a percorrerem o caminho

mais curto. As ligações se assemelham, pois, mais

a fios geometricamente esticados e distribuídos

economicamente do que a uma panela com uma

macarronada dentro. Isto, contudo, não anula

nossa ideia sustentada em Crítica da Razão

Cibernética onde arguíamos que conceitos raiz

estão lado a lado com informações banais. O

conhecimento é algo muito frágil. Descartes foi o

primeiro a demonstrar a limitação de nossas

certezas que não iriam além do cogito ergo sum,

todavia, apenas hic et nunc. Este, colcado ao lado

do racionalismo. Já o empirista David Hume reduz

544

o conhecimento a uma crença e à precipitação de

raciocínios obnóxios e fora da lei tal como o hábito,

a repetição e a contiguidade que transformamos em

causalidade. Para Hume o conhecimento humano é

um fora da lei. Justamente porque para ser

conhecimento deveria atender a certas leis, o que é

metafisicamente impossível. Kant concilia inatismo

e empirismo e com isto é reconhecido como um dos

maiores gênios da humanidade. Daí que a

epistemologia de Kant torna-se metafísica. Pois

para Schelling o sujeito seria o detentor dos a

prioris e do conteúdo dos mesmos. Isto equivale

dizer que o sujeito criaria a realidade. Já Fichte

rejeita o idealismo subjetivo e propõe o idealismo

objetivo de modo que o mundo real e empírico

criaria o mundo subjetivo, ideal e abstrato. Hegel,

por sua vez, com seu idealismo absoluto faria

coincidir o mundo real e o ideal, o exterior e o

interior de modo que sujeito e objeto estão para si

mesmos reciprocamente como criação e criatura,

condição e consequência. O sujeito conhece a si

mesmo. O objeto de cognição se identifica com o

545

sujeito cognoscente. Com Hegel a filosofia chega a

seu máximo e o último suspiro é o marxismo que se

forja dentro da esquerda hegeliana. Piaget

colocaria a formação dos esquemas mentais dentro

de uma perspectiva biológica em que os a prioris

iriam amadurecimento com o desenvolvimento

orgânico e neurológico da criança e Marx colocaria

o conhecimento como método dialético que tem

como meta desfazer contradições. Lukács explica o

conhecimento como algo que nasce como tese, se

exterioriza e se mescla com elementos novos e se

reconstitui e se recupera a si mesmo na síntese. O

problema do conhecimento afeta todas as áreas do

conhecimento, por óbvio, mas em primeiro lugar

afeta a própria filosofia. Porque antes de fazermos

perguntas nos perguntamos se podemos responder

às perguntas que nós mesmos fazemos. O “por

quê?” foi substituído pelo “como?”. A filosofia da

linguagem é a noção de que o conhecimento é uma

linguagem bem construída e que perguntar pela

validade do conhecimento é o mesmo que

perguntar pela validade da linguagem. A filosofia é

546

a grande prova de que em traços largos a filosofia

toda ela foi assentada por Sócrates, Platão e

Aristóteles e tudo o que vem depois disso é mero

feedback. Em regra podemos dizer que a

metafísica, que para Aristóteles era a mais

profunda das ciências por estar além da física, está

calcada sobre a epistemologia, que para os

inauguradores da filosofia moderna era o punctum

dolens, que, por sua vez, esta fulcrada sobre a

lógica. Daí a seriedade do cálculo proposicional.

Daí a importância de se trabalhar com

quantificadores e conectivos. Embora tratá-los ao

mesmo tempo dentro de uma única abordagem

possa gerar complicações seríssimas e aí estar o

nó górdio do conhecimento. Conhecer é organizar

informações. Por isso que Aristóteles foi o grande

sistematizador do conhecimento: ele colocou tudo

em gavetas. E o nosso mundo cibernético tenciona

o mesmo escopo. Os paradoxos do conhecimento

são os paradoxos da taxonomia. Nossa dificuldade

está justamente no basilar, construir assertivas

claras e distintas a partir das quais possamos

547

acrescentar informações complementares.

Episteme é um ideal. Não existe episteme. O que

existe é somente doxa. Algumas doxa são mais

criteriosas e outras são absolutamente feéricas. O

pragmatismo faz grande sentido pois para a maioria

das pessoas importa mais o resultado de

determinada crença do que os parâmetros

certificadores de determinada crença. Uma coisa

que até hoje ficou de fora da pauta dos filósofos

sendo mais abordada pelos sociólogos é a

construção social e jurídica do conhecimento. No

sentido de que é o Estado quem diz o que é e o

que não é conhecimento ao criar um ministério

voltado para credenciamento de pessoas,

instituições e produções teóricas. O problema da

epistemologia é que ela se põe o problema se se

pode construir teorias metafísicas, mas passa ao

largo do fato de que empregamos os mesmos

meios mentais e a mesma linguagem para edificar

esta disciplina que se chama epistemologia.

Dessarte, a racionalidade não consegue

transcender a ela mesma e é a razão que fiscaliza

548

ela mesma e que se autocrítica. Talvez ocorra uma

forma de transcendência quando o que se tem em

mira é a racionalidade individual. Mas esta

transcendência embasada na multilateralidade jaz

dentro da imanência do gênero. Todo trabalho

filosófico é transcendível, mas o humano não passa

ou ultrapassa o humano. A filosofia, assim como a

literatura em geral, à qual mais adiante reservamos

um capítulo próprio, começa a ser valorizada a

partir do momento em que o autor, mais tarde

aclamado como gênio consegue mudar a opinião

da crítica. O filósofo de peso é igual a todos os

outros, mas é diferente. Ele agrega um ponto de

vista distinto acerca da tradição filosófica sem sair

da tradição filosófica. A epistemologia é uma das

disciplinas filosóficas que mais promete. Porque

como a inteligência artificial é reflexo da inteligência

humana, entendemos a nós mesmos entendendo

aquilo que criamos. Porque o mundo virtual é

projeção da inteligência que mora em nós. Os

sistemas de informação são a nossa inteligência

trasladada para objetificação. Podemos olhar para

549

a nossa própria inteligência como uma coisa e a

epistemologia se livra de um dos seus grandes

gravames, o psicologismo. Embora a psicologia

também ela tenha muito a acrescentar do ponto de

vista teórico. Nos dias de hoje a epistemologia se

confunde com a filosofia da ciência enquanto cada

vez mais se tem as ciências empíricas como as

únicas capazes de produzir conhecimento seguro,

aplicável e eficiente. Porque a filosofia produz muito

conhecimento. Mas ele tem pouca eficiência

quando o assunto é majoritariamente pragmático.

Contudo, quando o conhecimento que se procura é

o crítico então a reflexão filosófica é encarada como

a mais formidável das disciplinas, deixando as ditas

“humanas” a comer poeira fina. Do ponto de vista

da cidadania o conhecimento filosófico acrescenta

mais à sociedade e à democracia mais que

qualquer conhecimento científico. Claro, para uma

sociedade de excelência é preciso que haja

profissionais bem preparados inclusive do ponto de

vista científico. O conhecimento se torna ferramenta

de pode e de transformação social quando os

550

cientistas se tornam filósofos e os filósofos se

tornam cientistas. Marx fez isto em economia ao

misturar conceitos econômicos com metafísicos. A

fungibilidade do valor em preço nada mais é do que

a fungibilidade do mundo das essências em mundo

fenomênico. E o procedimento de conversão,

chamado de o problema da transformação, é

complicado. Porque o preço é universal e o

processo de produção e circulação da riqueza

trabalha desde o princípio com a categoria de

preço, pois ele é atemporal e universal. isto tem um

significado epistemológico muito grande: porque

mesmo que conhecêssemos por completo o mundo

fenomênico e o numênico, mas desconhecêssemos

o processo de passagem de uma instância a outra,

o grande problema do conhecimento estaria ainda

por ser resolvido. A própria criação dos termos

“essência” e “aparência” é um esforço intelectual

frustrado. Porque fenômeno é o que eu capto e

coisa-em-si é o que a coisa é em si mesma. Mas

tudo o que eu capto sempre e sempre será

fenômeno. Só ultrapassaremos o nível fenomênico

551

quando deixarmos de ser humanos. E aquilo que

ao longo da tradição filosófica viemos chamando de

essência não passa de imaginação. E por isso

mesmo que Einstein disse que a imaginação é mais

importante que o conhecimento. Vai que, na loteria

da vida, o que imaginamos por sorte coincida com a

natureza mesma da coisa!? O que jamais teremos

certeza é da fidedignidade de nossas teorias. E

mesmo que a teoria consiga prever um evento isto

não a abona de modo absoluto, mas significa que

parte do fenômeno foi explicada e talvez nem seja a

mais importante. O pragmatismo é o

reconhecimento da inutilidade da epistemologia e

admite como válida toda assertiva que guarde em si

o condão de atender aos meus interesses sejam

eles quais forem, independente de em quais

premissas se firma. Aliás, o pragmatismo é o triunfo

das nulidades teóricas. Porque o dizer de si que é

pragmático e que só interessa o resultado é anular

o sentido das discussões puramente teoréticas que,

em nosso ver, são o auge da maturidade filosófica.

É assim que os debates sobre linguagem e lógica

552

são os mais profícuos, mas não devem ser

alienantes a ponto de nos fazer esquecer que

vivemos em sociedades num mundo cheio de

política, religião e todo tipo de interesses. A

epistemologia cumpre um papel não só de

ratificação e metodologia, mas de relativização

também. Porque um discurso político pode ser

falacioso do ponto de vista epistemológico e aí

então compete à epistemologia desmascará-lo. A

epistemologia não é uma disciplina cara apenas às

ciências da natureza. Os bons economistas são

filósofos e é por isso que o trabalho desenvolvido

pelos economistas são, além de verificáveis ou não

verificáveis, sujeito ao crivo gnosiológico conquanto

reconheçamos que a disciplina sofre e sempre

sofrerá uma tendência ontologizante. Tudo o que

há de mais sério se relaciona com a epistemologia.

E embora as Sagradas Escrituras cobrem do

neófito uma grande porção de fé para aí então

sobrevir a compreensão, a Palavra de Deus precisa

ser filosoficamente estudada. Este estudo, então,

daria guarida àquilo que eu chamo de

553

“epistemologia bíblica”. A epistemologia bíblica

seria parceira da hermenêutica em atribuir caráter

de episteme ou de doxa a determinadas

interpretações a partir de certos critérios. Claro,

teríamos, no caso em tela, mais de um padrão de

episteme pelo simples fato de também os padrões

epistêmicos serem variados de acordo com a

engenhosidade mental dos pensadores. Embora a

epistemologia tenha tomado fôlego na idade

moderna, desde o princípio foi preocupação dos

filósofos não reprisar as bobagens do senso

comum. E Cícero disse “não há nenhum ideia, por

mais absurda que seja, que já não tenha sido dita

por um filósofo”. Isto, deveras, é verdadeiro. Mesmo

diante de toda cautela prévia. Imaginou se os

filósofos fossem descuidados! Penso que a

Renascença exemplifica bem as teorias dos

filósofos descuidados. A vantagem de se observar

as cautelas epistemológicas é a durabilidade do

paradigma teórico. Pelo fato de Aristóteles ser

cuidadoso é que ficou por séculos e séculos sem

ser rivalizado por ninguém, pois não havia quem lhe

554

fosse páreo. E mais importante do que isto: quando

um grande autor, um clássico é superado, mesmo

que absolutamente tudo o que ele tenha dito seja

coisa rota, seu nome permanecerá indelével na

tradição porque os tijolos mais altos sempre

pressuporão os mais basilares, isto é, a arqueologia

do saber lhe fará justiça. Porque quando um autor

do passado foi importante precisamos repisá-lo

para entendermos onde chegamos e porque

chegamos. A epistemologia também cuida desta

parte histórica e aponta as gafes dos autores

pretéritos para que ao invés de patinarmos

possamos ir para frente. A epistemologia em geral

prega o impossível: o despojamento intelectual. O

grande problema é que só depois de nos

enfastiarmos de milhares de livros é que nos damos

conta de que é necessário realizarmos o tal

despojamento. Ou seja, depois de nos doparmos

com ópio descobrimos que para o bom andamento

dos trabalhos teóricos é recomendável jamais ter

experimentado ópio. Isto vale para a filosofia de um

modo geral, para o marxismo, a psicanálise e

555

mesmo para a literatura. Descobrimos que o bom

conhecimento é o desumano, mas a busca de

conhecimento firme e robusto só advém depois de

um processo pesadíssimo de humanização intensa

a partir de leituras exageradas. É assim que

pretendemos ser sábios, assimilarmos

conhecimento e, depois da exaustão livresca, nos

damos conta de que nada sabemos.

Estética: a ideia de belo

A palavra estética vem do étimo grego aesthesys,

que significa “sensação”. Foi cunhada pelo filósofo

Baumgarten. A estética nasce no Egito. Por três mil

anos seguidos se praticou um mesmo padrão

estético no Egito. Corpo medianamente alto e

esguio, suavemente moreno, embora também

vejamos a arte retratando o albino e o negroide. Do

Egito nos reportamos à Grécia. Os gregos

exaltavam o corpo que nos dias de hoje chamamos

de “sarado”. Como a cultura grega e latina

acabaram se fundindo podemos falar em estética

556

greco-romana. Acentuavam-se os traços de força

das estátuas, como a separação do corpo em

partes, de modo que era impossível que na prática

alguém tivesse tal físico. A beleza masculina era

mais apreciada que a feminina. Quando o corpo

retratado era o da mulher geralmente víamos um

corpo cheio, quase obeso e de curvas vigorosas. O

padrão de exagerada corpulência só daria lugar a

corpos magros e até mal alimentados aquando do

advento do cristianismo. A exaltação da alma

implicava a negação do corpo. Negava-se o corpo

com o fito de exaltar a alma. A beleza física passa a

ser desprezada em nome da beleza do

comportamento, agora pautado nos evangelhos e

na vida dos santos. Com a Renascença se retorna

para a natureza da qual o nosso corpo faz parte e

surgem os polímatas como Michelangelo e Da Vinci

resgatando os valores da Antiguidade. A arte deixa

de ser arte necessariamente sacra e outros valores

passam a ser cultivados. A arte deixa os céus aos

céus e começa a espelhar o cotidiano real e

concreto das pessoas comuns. Em nenhuma outra

557

área a crítica é tão importante quanto na arte. É a

crítica que faz o mictório de Duchamp virar arte. As

Duas Grandes Guerras Mundiais impactaram

grandemente os movimentos de vanguarda do que

a Semana de Arte Moderna de 1922 no Brasil v em

a ser reflexo e um grito de autonomia em relação

ao Continente Europeu. O ápice da maturação da

arte é quando ela passa do realismo para a

figuração, da figuração para uma mensagem

metafigurativa e da metafiguração para a arte

abstrata. A arte abstrata não pretende usar a arte

para outro fim que não o si mesma, embora possa

fazê-lo ou continuar fazendo. A arte abstrata sequer

quer ser reminiscência de algo concreto. A arte

abstrata é o sentimento estético puro. O seu

objetivo é agradar os sentidos e nada mais. No

fundo, embora não se restrinja a isto, a arte

abstrata reflete a máxima desenvoltura da cultura

burguesa que na contramão da estética socialista,

sempre crítica ou no mínimo ideológica, não se

preocupa em explicar o mundo, mas disponibililzar

a sensação agradável que se pode extrair de tal

558

mundo. Penso que a arte começa sua história para

valer a partir da arte abstrata. Porque algo só

começa a ser o si mesmo quando não se ancora

sobre outros elementos, mas tem o fundamento em

si mesmo e ainda comporta outros elementos que

desta vez entram como acidentes e não como

atributos substanciais. A arte abstrata é a noção de

que o mundo é pródigo de outros meios de

interpretação de maneira que o artista não mais

precisava explicar o mundo, apenas dele prover a

satisfação do expectador. O prazer puro que dá as

costas ao doutrinamento reflete, em última

instância, um mundo saturado de ideologia e

doutrina em que se busca um instante de descanso

em que o intelecto para de beligerar consigo

mesmo e entra em clima de harmonia. A arte

abstrata é a capacidade de atingir a beleza na sua

pureza sem pregar revoluções ou desenhar causas

martiriológicas. Como movimento artístico toma

uma tendência mundial e começamos a ver artistas

abstratos no Ocidente e no Oriente, nas sociedades

capitalistas e nas socialistas. A arte já foi

559

considerada pelos filósofos antigos como Platão e

Aristóteles como imitação, mas ela é mais que isto.

Porque se ela fosse só imitação e o artista vivesse

num mundo feio nada haveria de belo a retratar e a

arte perderia seu objeto. A arte, por isso mesmo, é

criação. No sentido deque a beleza é inédita e os

homens do futuro contemplarão obras de arte que

jamais vimos ou sonhamos. Como o belo é

intrínseco à imaginação e ela não tem limite,

também o belo é ilimitado. Enquanto o

eurocentrismo era a moda do momento ainda

trabalhava-se com padrões estéticos universais.

Mas hoje há um consenso que se generaliza cada

vez mais de que não há um padrão universal de

beleza. E os filósofos que defendem padrões

universais de beleza são chamados pela mídia de

“defensores de causas impossíveis”. Bem, como

explicou Kant, o juízo estético oscila entre o juízo

prático e o juízo universal, pairando uma espécie de

limbo que mescla universalidade e idiossincrasia. É

por isso que o mais belo para um pode ser o menos

belo para outro e vice-versa. Ainda que se diga que

560

a beleza é simetria, parece que a simetria entra

apenas como um dos arquétipos possíveis da

beleza. A beleza é associativa. E como a sequência

de circunstâncias, coisas e pessoas surgem na

nossa vida de acordo com o tempo e o lugar onde

estamos, é possível dizer que a beleza é histórica,

situacional e relativa. Os padrões estéticos seguem

tendências e tendência é algo que muda o tempo

todo. A indumentária que usamos sempre está

refém dos ditadores da moda. As roupas mudam o

tempo todo de modo que nosso armário sempre

está desatualizado. Na sociedade da

superalimentação se pregam ideais de extrema

magreza de forma que nos disputam roupas

exíguas e pratos hipercalóricos. Esta é apenas uma

das contradições da contemporaneidade. Ou

satisfazemos nossa gula ou nos mortificamos, não

em nome de ideais religiosos, para encher os olhos

alheios. Para o público feminino a imposição de

padrões é ainda mais agressiva e violenta.

Sócrates costumava dizer que se algo não fosse

nem verdadeiro e nem útil deveria ser, ao menos,

561

belo. Mas se nem verdadeiro, nem útil e nem belo

fosse deveria ser descartado. Particularmente, se é

que as mulheres querem minha opinião, mulher

inteligente, esta sim, que é bela, desde que evite

ser autoritária e arrogante. A inteligência jungida de

humildade e simpatia faz a moça de poucos

atributos colocar a miss sob a sola de seu calçado.

Eu vos garanto. Embora a maioria dos homens não

erijam a inteligência como parâmetro sempre há

uma minoria esclarecida e esperta. A estética é

altamente misteriosa por traços em nosso intelecto

ligações e associações atípicas e até aberradoras.

As chamadas conexões extremas fazem, por

exemplo, um conceito lógico, que não é nem

estético e nem antiestético, pareça-nos belos ou

feios. O estético está ligado, portanto, ao

paraestético. É assim que tomamos o acessório

pelo principal e o principal pelo acessório,

indistintamente. Do ponto de vista da ética o agir

moralmente é belo e agir imoralmente é feio. E

como há discussão do que venha a ser ético ou

antiético, outrossim, há discussão do que venha a

562

ser belo ou não belo. E assim como em literatura

posso trabalhar um duro tema com belas palavras,

em pintura posso retratar corpos trucidados pela

guerra de forma esteticamente desejável como o

fez Pablo Picasso. A beleza, em arte, passa

muitíssimo pelo como. É assim que numa peça de

teatro o personagem escroto pode ser belamente

representado por um artista talentoso. Eu diria que

a beleza é a sensação de totalidade. É por isso que

no mundo de hoje sejam tão usadas cores

complementares. A obra de arte não pode ser um

capítulo de algo, ela tem de ser em mesma uma

totalidade. Ela não pode pedir complemento porque

já é completa. Claro, isto não significa que ela não

possa transmitir mensagens subliminares. Porque

se a obra de arte for traduzível em uma assertiva é

de se dizer que toda assertiva possui um

antecedente e um consequente, uma premissa e

um corolário. Como em tudo o que se discute na

filosofia, na estética também há a teoria da forma.

Há uma beleza estrutural e principiológica que

confere a uma porção de matéria o princípio da

563

beleza. Mas assim como na metafísica matéria e

forma se unem para ser um sínolo indesfazível,o

mesmo ocorre na estética: o abstrato só se faz

sentir na matéria e a matéria só é apetecível se

estiver imbuída da abstração. A beleza, de acordo

com a teoria das formas, é uma concordância

consigo mesma que gera uma sensação de

concordância no sujeito apreciador. A arte não está,

ainda que se trata de arte abstrata, totalmente de

costas para tudo. Ela faz coro à física. Trabalham-

se, por exemplo, com luzes e sombras, movimento,

ponto de fuga, textura, profundidade, sentido,

tempo, clima, tamanho, estação, e uma série de

outras circunstâncias. A arte pode ser o próprio

contexto ou ela pode ser produzida a partir de um

contexto. A arte sugere zelo, cuidado,

meticulosidade. A arte é apaixonada, apaixonante e

liga um ser humano a outro através de um canal

exclusivo insub-rogável por qualquer outro

caminho. O sentimento estético é único e

infungível. Ele explica ou transmite aquilo que é

intransmissível pelas vias lógicas e discursivas. É

564

assim que alguém pode ficar angustiado, rir ou

chorar diante de uma obra de arte. A obra de arte

pode ser tão terrível como uma agressão física. A

obra de arte cria o ambiente. E quando o ambiente

artístico vem ao encontro de uma psique altamente

sugestionável, obtemos os chamados estados

alterados de consciência. O belo é essencialmente

aquilo que foge da média. Não queremos dizer que

o mediano seja feio, mas que o belo é único pela

beleza que encerra em si. O belo quase sempre é

excepcional. Ele quebra o corriqueiro e o banal. Ele

é algo essencialmente acentuado em alguma

dimensão. Mas este acentuado tem limites. Assim

como um corpo musculoso além da conta foge da

beleza pelo excesso. A estética se une aos

chamados fetiches. Porque não raro ela se reporta

à sexualidade, à fertilidade e ao sentimento

religioso. Ela torna homens fracos e medrosos em

fortes e corajosos. A arte idealiza o mundo. De

formas que quem se apaixona pela arte acaba

querendo que o mundo imite a arte. O nazismo e o

fascismo são isso: a estetização da política. Um

565

mundo padronizado que em todo canto se depara

com Standards fica carente de arte genuína e

quando alguém se apresenta como resgatador da

tal arte genuína é acolhido com grande recepção.

As pessoas gostam mais de arte do que imaginam.

Mas as pessoas pensam que não gostam de arte

pelo simples fato de não terem amadurecido seu

pensamento. A verdade é que na sua abstração a

arte satisfaz uma utilidade e as pessoas acabam

colmatando o espaço lacunoso da estética com

outros artifícios. A arte mexe com aquilo que há de

mais sagrado, a personalidade. Ela extrai da

pessoa o que nenhuma outra prensa é capaz de

extrair. No mundo desencantado de Weber a

estética aparece como um refúgio do

encantamento. O problema de quem está muito

focado é que ele perde a visão periférica e a arte

vem a ser esta visão periférica. A arte, para usar

uma expressão de Terça-Feira Lobsang Rampa, é

a “terceira visão”. E não há felino que rivalize com a

elevação do meu espírito quando estou diante de

uma obra de arte. A arte é uma experiência onírica

566

de quem está em estado de vigília ou em estado

sofrônico. A arte é a mística máxima para quem é

irreligioso. A arte é o texto interpretado pela

protointeligência. A arte é tão democrática que um

analfabeto, embora nem sempre isto ocorra, pode

fazer melhor deleite do que um sujeito culto em

saberes técnicos. Arte é ebulição de emoções, é o

modo de dizer o indizível. Quando a arte é a

fotografia, e estendemos isto a outros gêneros

artísticos, ela deve ter a capacidade de flagrar a

fugacidade do instante. Ao contrário daquele

rebanho de pessoas fazendo cara de feliz para a

câmera. A arte oscila desde uma natureza morte

até o fato social do calçadão, mas eu, sem dúvida

alguma, prefiro ficar com este último tipo de arte. A

arte tem de ser humanista. Porque hoje mais do

que nunca o humano está carente do humano.

Buscamos não só a Deus, mas também ao seu

semelhante que somos nós mesmos. A arte é a

prova de que vale à pena ser homem, humano. A

arte é a manifestação do espírito humano que não

admite a contingência. A arte é um protesto contra

567

a limitação. A arte é o grito que não consegue

percussão na política, na mídia ou em qualquer

outro lugar. A arte é um modo de ser em que o ser

é transfigurado. A arte é a narrativa daqueles que

sem serem cerebrotônicos enveredam pelo

sentimento para cumprir sua missão existencial que

é a metanarrativa. Porque uma coisa é a emoção

traduzida em pensamento e outra o pensamento

traduzido em emoção: respectivamente, filosofia é

arte. A filosofia é o amor que se torna pensamento

e a arte é o amor que se torna sentimento puro.

Como o amar é belo a arte também é bela. A arte é

a beleza da vida e do cotidiano num mundo onde o

tic-tac do relógio veda nossos olhos para aquelas

veredas que só se deixam ver pelos espíritos

calmos e serenos. A arte é o inverso do rush, ela é

uma parada. É um inspirar mais profundo em meio

à atividade fabril ofegante. A arte é o inverso do

estresse do trânsito embora o próprio trânsito possa

ser artisticamente representado. Nesse sentido a

arte é mais do mesmo e é o mesmo visto por

ângulos inéditos e inimagináveis. O desafio da arte

568

é o quefazer artístico profissional. Porque a

profissão está atrelada à ideia de dever enquanto

que a arte é livre inspiração. O artista é um dos

poucos para quem o dever e o lazer são uma só e

mesma coisa. Embora o lazer não deva estar

sempre e necessariamente ligado à ideia de

descompromisso e leviandade. O tema a seguir é o

da lógica e é bom que correlacionemos a estética e

a lógica. A arte pode ser lógica, mas ainda tem a

capacidade de ser supralógica. O surrealismo que o

diga. Porque enquanto Aristóteles define o homem

como animal lógico a arte pretende preconizar o ser

humano ilógico e sensível. A arte vai na contramão

da filosofia da linguagem, do cálculo proposicional,

da matemática e do racionalismo. Ela pretende

assegurar um espaço para uma dimensão do

espírito humano que não encontra guarida na

investigação filosófica, nas ciências e nas religiões.

A arte é o que ela é, não podendo se explicada por

analogias. As artes marciais só são arte porque são

imbuídas de artesanalidade. Para quem não sabe

no que consiste a artesanalidade ela é o antônimo

569

da produção em série. Toda obra artística é única,

irrepetível e irreproduzível. É claro que na época da

produção em série até mesmo as artes são

industrializadas. É assim que posso lançar no

mercado em larga escala uma coletânea de valsas

vienenses e uma grande edição de uma antologia

poética de um clássico de nossa literatura. A arte

pode estar presente em todos os aspectos da vida.

É assim que posso fazer, na qualidade de

advogado, uma contestação que não apenas se

preste a objetivos judiciais, mas ainda um

ornamento do mundo jurídico. É por isso que o

futebol brasileiro é o futebol-arte. Ele tem ginga,

traquejo, pessoalidade. A arte é a síntese do

individual e do universal. E isto se deve ao fato de a

extrema afirmação do individual ser a extrema

afirmação do universal. E o artista, como diria o

poeta russo Maiakovsky, não passa do “seu

cachorro” como se reportava a si mesmo quando

assinava uma carta de amor para sua namorada. E

quando o poeta se suicida é porque resolve tirar a

570

própria vida por um ato de vontade porque a arte é

essencialmente voluntariosa.

Lógica: a ideia de identidade

Nada mais ilógico do que a lógica. No cálculo

proposicional parece haver uma ilógica porque para

obtermos a confirmação de algo precisamos negar

este elemento simbólico. A lógica trabalha com

símbolos. Os símbolos que representam as

assertivas são de pouca importância conquanto

qualquer letra do alfabeto possa o prestar para este

fim. Já os conectivos são importantes e os

quantificadores também. Os conectivos revelam a

natureza da relação entre as assertivas e os

quantificadores revelam se se trata de

individualidade, particularidade ou universalidade. A

tabela de verdade de Wittgenstein mostra que do

ponto de vista conteudístico uma proposição lógica

pode ser apenas verdadeira ou falsa da mesma

forma que o número pode ser positivo ou negativo.

O silogismo peripatético tem uma grande valia para

571

um sermonista. Sim, porque para quem prepara um

discurso homilético as premissas maiores são

dados pelas Sagradas Escrituras e o único cuidado

que devemos ter é de a partir dos dados de

antemão silogizar com perfeição. E assim que parto

da premissa maior de que o homem é imagem e

semelhança de Deus e que devo amar a Deus

sobre todas as coisas e que, por conseguinte, o

amor ao próximo como a si mesmo é um

mandamento semelhante ao anterior justamente

porque quem ama o refletor não tem dificuldade de

amor o refletido. Todavia, se parto da ideia dos

empiristas ou se sou um cientista e admito o

materialismo metodológico, fica difícil, senão

impossível construir conhecimento com a lógica do

velho sábio grego. Porque eu só afirmo algo a

respeito de algum coisa por saber que determinado

grupo tem uma característica e que tal elemento

petence ao grupo. Trata-se de simplesmente cruzar

predicados quando o próprio sujeito é fungível. Daí

que entra o trabalho de Popper. Ele parte da

dedução: a assertiva maior é lançada

572

aleatoriamente e confrontada com a experiência,

donde ela resultará corroborada ou refutada. Ora, a

crítica que se faz a Popper, e parece que Hume

sugere exatamente isto, é que toda dedução é

precedida da indução. Isto é um problema sério.

Porque a indução sempre trai o rigor que a lógica

almeja. Ela é raciocínio obnóxio e perpetra saltos

epistemológicos injustificáveis e teratológicos. Isto

significa que por mais lógico que seja o nosso

conhecimento ele não é seguro. Porque fazemos

da repetição, do hábito e das associações

precipitadas o processo indutivo e dedutivamente, a

posteriori, confrontamos uma hipótese em baterias

de testes que mesmo felizes, não são líquidas e

certas, mas apenas muito prováveis. É por isso que

episteme não existe. Não há verdade real, há

apenas verossimilhança ou verossimilitude. E

Popper é o primeiro a reconhecer isto. Por isso

mesmo que o racionalismo dele se chama “crítico”.

Penso que Popper, ao mesmo tempo em que é um

grande herdeiro do positivismo, rompe com o

positivismo. Porque enquanto o positivismo

573

enaltece sobremaneira e absolutiza as ciências

empíricas, Popper mostra que mesmo que o

conhecimento científico seja o único possível, ele é

relativo e medianamente provável. Não há teste

que me outorgue cem por cento de certeza. Não

existem assertivas científicas claras e distintas. O

problema da lógica é este: ainda que

estruturalmente a lógica pudesse ser tomada como

uma ferramenta perfeita de construir excelente

linguagem, o conteúdo posto dentro das

proposições atômicas são eivadas de subjetividade.

A previsão do raciocínio é combalido pelo canal do

conteúdo sintético, as sensações e impressões,

que nos chegam através dos sentidos. Sentidos

estes que variam de espécie para espécie e, dentro

da espécie humana, de indivíduo para indivíduo. Os

Principia Mathematica de Bertrand Russel e Alfred

North Whitehead são um brinco, uma joia. Mas o

que, afinal de contas, eles informam sobre o

mundo? O que se vê é que quanto mais lógica uma

linguagem menos ela informa sobre o mundo e

quanto mais elas informam sobre o mundo menos

574

lógica ela é. Dentro dessa prisão límbica se move o

conhecimento: o que certifica a veracidade exclui

informatividade e o que enuncia não passa pelo

crivo de ratificação. Quanto mais cobra na

qualidade menos quantidade me sobra e numa

perspectiva de arrocho metodológico nada

transcende o óbvio. Aqui está toda a força do

pragmatismo para o qual a única coisa que

interessa é a entidade, o resultado e a extensão da

cobertura. Os maiores impérios da Terra sempre

foram pragmáticos. Assim foi o Império Babilônico,

o Romano, o Inglês e hoje o é o Norte-Americano.

A lógica, neste sentido, deveria ser casada com o

pragmatismo para antecipar os resultados. A partir

do momento em que antecipa a prosperidade sei

como agilizá-la e quando antecipo intelectualmente

a bancarrota sei o que fazer para evitá-la. O esforço

dos lógicos sempre foi no sentido de arrancar a

alma do pensamento para ao invés de analisar um

ou outro pensamento em particular poder

compreender a única dinâmica que rege todos os

pensamentos. A vantagem de segregar esta

575

dinâmica consiste em vê-la e compreendê-la com

maior clareza. Assim, quando ouço um discurso,

mesmo que ele seja recheado de várias assertivas

corretas posso derribar o mesmo por falhas

estruturais. Porque o bom discurso deve se

preocupar mais em estar de acordo com si mesmo

do que com o mundo, embora ambas as coisas

sejam desejáveis. A lógica é a mais séria de todas

as disciplinas embora poquíssimas pessoas tenham

tido a oportunidade de estudar lógica na sua

pureza. Todo conhecimento é resultado da

aplicação de um método que em linhas gerais

repete a lógica e no que dela difere é porque já

acrescentou a si mesmo preconceitos da ortodoxia

de um determinado viés. O viés é isto: raciocínio

lógico mais superstição que não conta com outra

justificativa senão a intuição. Pelo que tenho visto,

e o marxismo e a psicanálise são provas disso, há

uma solidariedade entre método e resultado de

pesquisa. De modo que produza uma teoria e só

depois de ter escrito o livro inteiro, de trás para

frente insiro um primeiro capítulo sobre metodologia

576

para, artificialmente, fazer as subsequentes

resultarem do anterior a todos. Isto significa que

mui pertinente é a teoria da metanarrativa. Porque

por vezes aceito a premissa, ou aceito a assertiva

mediana porque aprecio o corolário. Em linhas

gerais, aceito o discurso todo porque aprecio uma

de suas peças fundamentais. No dizer do brocardo

popular “levo o porco inteiro para casa por causa da

linguiça”. A lógica é isto: é o encadeamento de uma

sequência de assertivas. Cada elo está entrosado

com outros anteriores e outros posteriores. E

escolher uma peça é escolher a corrente inteira.

Daí a importância de termos linha: porque só é

possível se posicionar diante do mundo a partir de

fios condutores gnosiológicos. O ecletismo é a

posição filosófica mais correta em função de sua

completude, mas tropeça a todo instante em

contradições. O trabalho de um grande intelectual é

mostrar que há em tudo uma concordância de

fundo. É mostrar que a contradição é aparente. Que

num plano de análise mais profundo tudo confirma

as demais coisas, inclusive seus opostos. Foi isso

577

que tentou fazer Hegel, a ponto de criar uma nova

lógica triádica e dialética, assentada em tese,

negação e negação da negação. Foi isso o que

tentou fazer Teilhard de Chardin em O Fenômeno

Humano e é isto o que estamos tentando fazer

aqui. Lógica, ilógica, ciência, arte, religião, filosofia

são linguagens construídas de modo diferente, mas

todas hospedam a verdade. No dizer de Heidegger

“a linguagem é a morada do ser”. A lógica é o

âmbito do consenso. E só existe dissenso porque

nossas diferenças existem em função de diferentes

valores. O valor é aquela parcela da minha

subjetividade que diz o que devo fazer com a

lógica. A organização do mundo passa pela

organização do pensamento, daí a importância da

lógica. Já a câmara de conciliação de valores e

interesses é a política. Por isso que Aristóteles

escreveu o Organom e também A Política. Na

verdade a lógica só faz sentido dentro de um

contexto de uma civilização séria que se autoelege

guardiã do pensamento e, na mão inversa, a lógica

é o último marco regulatório de todo e qualquer

578

discurso político. Questão interessante é a de

classificação dos pensadores. Pois embora a lógica

tenha nascido da filosofia há quem entenda muito

de lógica e quase nada de filosofia. A ponto de os

tais estudiosos se autorotularem de “lógicos”.

“Somos lógicos e não filósofos”. Penso que embora

a filosofia seja o eterno esforço de apreensão da

totalidade ela acabou se especializando. Por mais

desenvoltura que a especialidade tome parece-me

ser mais sábio continuar considerando a

especialidade como filosofia. Porque mesmo que o

galho seja o maior galho da figueira ele não deixa

de ser figueira. Diria que analíticos como nós

somos deveríamos nos aplicar à lógica até mais do

que de costume. A lógica exige do seu praticante

atenção e autoinflexão. Ela que consiste em unir o

diferente, justamente porque nosso cérebro é

analógico, cobra de nós que nos desliguemos do

exterior para nos focar em nosso próprio interior. A

tradição filosófica pode receber infindáveis

abordagens. Uma delas é encarar a tradição

filosófica como uma grande engrenagem lógica. A

579

partir desta ótica poderíamos, por exemplo,

vislumbrar o futuro da filosofia na acepção de que

ela nada mais é do que desdobramento de

premissas. Porque aquilo que outrora num presente

que hoje é passado foi corolário e agora entra como

premissa. Assim poderíamos fazer distensões de

longo alcance no âmbito da racionalidade pura. Por

isso mesmo, o conhecimento é, por definição, um

parecer de durabilidade transitória. Se tudo fosse

lógico não haveria conhecimento. Em poucas

pegadas desvendaríamos os segredos da lógica e

tudo estaria pronto, acabado e resolvido, como a

metafísica de Parmêmides. O conhecimento só

existe porque existe lógica e ilógica. O

conhecimento é essa linguagem que se constrói na

zona lindeira entre panlogismo e ilogismo. Daí a

total procedência das categorias metafísicas de

Aristóteles , sejam elas, matéria e forma. Ou seja,

ilógica e lógica, conteúdo e estrutura. Substância é

síntese, é conjuntura. Haverá no futuro um

ressurgimento da metafísica de Aristóteles. Sim,

porque tudo se resume a principiologias, a

580

enteléquias e a indeterminidades regidas por estes

padrões abstratos. A diferença entre Hegel e

Aristóteles é que a essência para Aristóteles é

imutável e na Ciência da Lógica de Hegel até o

princípio abstrato é mutante. O princípio da

contradição parece ser óbvio, mas antes que

Aristóteles o enunciasse já havia pelo menos 5.000

anos de civilização. Hoje em dia há lógicas que

admitem a contradição, mas reafirmam a não

contradição pelas vias laterais. Isto significa que

numa linguagem figurativa eu também poderia

admitir a contradição desde que eu desse um jeito

de contorná-la. Os filósofos da linguagem

ampliaram o conceito de não contradição

observando que além da contradição puramente

lógica posso ter a contradição pragmática e

performativa. Um exemplo de contradição

pragmática e performativa. Um exemplo de

contradição pragmática: tentar conter a inflação

aumentando a emissão de papel moeda. Ora, a lei

da oferta e da procura deixa o próprio dinheiro mais

caro ou mais barato de acordo com sua raridade ou

581

abundância. Exemplo de contradição performativa:

querer receber afeto através de manifestações de

agressividade. Na contradição pragmática é burlada

a intenção de cunho prático da ação. Já na

contradição performativa a contradição é mais

arraigada a ponto de a própria mediação

empregada ser a contradição daquilo que se

persegue. Isto significa que mesmo eu o meu

discurso, do ponto de vista da lógica pura esteja

coerente e impecável, ele pode ser derrubado

pragmaticamente ou performativamente. O

pragmatismo leva em conta o resultado enquanto a

performação leva em conta a relação instrumental

com o resultado. O grande problema da contradição

pragmática e performativa é que do ponto de vista

simbólico elas não são representáveis como ocorre

na lógica pura. Habermas foi esperto criticando

Hans Albert que defendia as três inviabilidades da

fundamentação última do discurso em bases

puramente lógicas. Ou interrupção abrupta, ou

sequência infinita ou petição de princípio em que

duas assertivas estariam uma para a outra

582

concomitantemente como premissa e corolário. Ele,

refiro-me a Habermas, afirma que quem consegue

sustentar tal discurso já aceitou uma ética mínima

como a abertura ao diálogo, a veracidade e boa-fé

dos dialogantes de formas que na prática e na

performatividade superadas de arrancada estão

estas questões. Habermas tem o mérito de mostrar

que a consciência não é individual, mas

comunitária. A consciência é reflexo do nível geral

de conhecimento da comunidade do que o filósofo

vem a ser a melhor figura. O conhecimento é

partilhado e, antes disso, a inteligência é partilhada.

Isto significa que os grandes problemas teóricos da

lógica e da filosofia sequer um dia existiriam na

prática. Pelo que se pode dizer que seríssimos

problemas teóricos nada representam para a

prática e sérissimos problemas práticos nada

representam para a teoria. Não estou dizendo que

isto é a regra, mas ao inverso disso, operacionalizo

que às vezes estes desencontros acontecem.

Como se vê, Aristóteles foi discípulo de Platão, que

foi discípulo de Sócrates, que foi um crítico dos

583

sofistas, discursistas e oradores por excelência.

Assim, a lógica de Aristóteles deve ser vista como

uma tentativa de botar ordem ao vale tudo dos

sofistas. Do discurso nasce a lógica e na ética

discursiva habermasiana a lógica é novamente

colocada dentro da perspectiva do discurso.

Habermas associa a ética ao pensamento e nisso

resgata Sócrates para quem o conhecimento do

bem equivale ao bom agir. Ora, ainda que eu tenha

o conhecimento do justo posso praticar o injusto.

Mas se sequer conheço o correto terei dificuldade

de praticar a correição, quem sabe eu atinja por

acesso por intuição. Como se vê, a lógica é

importante por servir de substrato à ética, à

epistemologia, à metafísica e a todas as áreas do

conhecimento humano. O desafio da lógica é

principiar por si mesma. Porque a inteligência

humana não começa a partir dela mesma, mas a

partir de instâncias menos sofisticadas do que ela.

E mesmo que façamos um corte para simular um

marco inicial, não haverá como esconder o norte,

ele ficará sempre subentendido. Os medievais

584

fizeram um excelente trabalho de remastigação da

lógica de Aristóteles vislumbrando todas as

possibilidades do silogismo, catalogando e

classificando tais possibilidades. Penso que o

mesmo devemos fazer em relação ao trabalho dos

lógicos contemporâneos. Porque só está preparada

a base para o próximo paradigma quando

conseguimos compreender totalmente o anterior.

Um trabalho importante que ainda deverá ser feito

diz respeito à indução e quem melhor abordou isto

foi John Stuart Mill. Devemos pesquisar a lógica

obnóxia ou a lógica residual. Por exemplo: toda

folha é verde. O morcego é preto, logo não é folha.

Patético? Sim, mas apenas aparentemente. Nos

meios jurídicos pouco se trabalha com silogismo, e

quase o tempo todo se trabalha com lógica

residual. Assim, se a lógica residual é de pouco

apreço por opor-se ao ideal filosófico de perfeição

do raciocínio, ao menos oferece a vantagem de ser

dotada de extremo senso prático e enorme

aplicabilidade pelos jurisconsultos. E digo que esta

não é apenas uma peculiaridade do direito, mas

585

também das ciências empíricas. Porque as grandes

descobertas científicas nascem de associações

anômicas ou com baixo grau de lisura lógica. Isto

relativiza a lógica de um modo geral e chama a

atenção dos filósofos entre a prática científica e

aquilo que colocamos como padrão de raciocínio

para toda a humanidade, máxime, para a

comunidade científica. Talvez seja por isso que é

tão difícil classificar uma pessoa como normal ou

anormal. Porque anormalidade é fazer conexões

fora da lei. Mas estas conexões são encontradiças

na mente dita sã e com grande frequência no

cérebro de profissionais predominantemente

intelectuais.

Psicologia: a ideia de comportamento

A psicologia começa dentro da filosofia sob o nome

de pneumatologia, isto é, o estudo da alma. Mas a

psicologia só a partir do século XIX começa a se

tornar empírica e se afirmar como ciência e como

disciplina autônoma. O objeto da psicologia é

586

amplo. Ela pretende entender a maturação em

todos os seus aspectos do ser humano. Aborda

processos como cognição, moralidade,

sexualidade, pensamento, memória, emoção,

personalidade, hábitos, consciência,

subconsciência, religiosidade, linguagem,

anomalias, disfunções. Propõe técnicas de

aprimoramento dos recursos humanos na educação

especial e tudo o mais. Reserva-se a tratar

terapeuticamente das neuroses, pois as chamadas

psicoses requerem intervenção psiquiátrica. O

bordeline, ou seja, aquele que está na zona lindeira

entre neurose e psicose ainda é objeto, ou melhor,

paciente, do psicólogo. Uma das correntes mais

apreciados dentro da psicologia é a psicanálise. A

psicanálise trabalha com conceitos não verificáveis

e com baixo grau de discutibilidade o que, do ponto

de vista epistemológico, põe em xeque sua

cientificidade. A psicanálise entra como

complemento ou teoria bissexta no consultório

psiquiátrico. A psicologia é uma das mais

importantes disciplinas da noosfera. Ele é um

587

celeiro de ideias mestras. Com ela podemos

inclusive entender melhor outras teorias como o

marximo e conceitos mais recentes como o de

subproletariado. A psicologia, como bem observou

Claude Levi Strauss, assim como qualquer outra

teoria procura trabalhar com invariantes. Como a

psicologia quer ser ciência e não literatura, o

complemento natural do método é a produção

literária enquanto resgate de valores existenciais. E

aqui está o valor do beletrista: ele usa uma

linguagem que desvenda a alma humana, o que

está fora do alcance da psicologia que tende à

objetividade e foge e metáforas. A psicologia é uma

das disciplinas mais disputadas ideologicamente a

ponto de asseclas de uma mesma perspectiva

tratarem-se de confrades e confreiras. As teorias

psicológicas oscilam em grau de cientificidade em

que o comportamentalismo entra como o ramo mais

científico e a psicanálise o menos científico.

Quando falamos em Skinner e Pavlov o problema é

o preço que pagamos pela cientificidade. Porque se

reduz o sujeito ao mais crasso fisiologismo. A

588

psicologia tende a pesar pelo psicologismo. É como

está escrito no Talmude, não vemos as coisas

como elas são, mas como nós somos. A psicologia

tem passado por processos de popularização de

seus conceitos e esta tendência se traduz na

produção artística. Na psicologia o ser humano é

reificado, ele torna-se coisa. O sujeito é encarado

como objeto. De acordo com Kant, depois dele

mesmo a única metafísica factível seria o estudo

dos a prioris e é exatamente isto o que faz a

psicologia. A psicologia pretende ser uma

reprogramação do intelecto. Porque adquirimos

cacoetes mentais e comportamentais e é preciso

descobrir a sua gênese para desengatilhá-los.

como diria Buda, cada um é aquilo que pensa. A

psicologia pretende ser inclusiva. E é aí que o ramo

de conhecimento se torna fator de transformação

social. A psicologia, visando imparcialidade, tem se

apoiado muito em estatísticas. Enquanto a

sociologia quer compreender a coletividade a

psicologia quer entender o sujeito, em que pese a

psicologia social que une ambas as coisas. A tarefa

589

do psicólogo tem se tornado cada vez mais difícil,

pois o indivíduo está cada vez mais complexo. A

projeção da psicologia aponta o desarranjo da

personalidade dos indivíduos cada vez mais

recorrente num mundo que gira rápido demais. Boa

parte de nossos problemas decorre da nossa

limitada capacidade de adequação. A psicologia

constrói pontos não só entre elas e outras ciências

humanas, mas ainda se relaciona com ciências

médicas como a biologia, a genética, a psiquiatria e

a neurologia. Nosso cérebro, em linhas gerais, é

constituído de três partes: reptiliano, límbico e

neocortical. O cérebro reptiliano é o responsável

pelos sinais vitais e pelo funcionamento dos órgãos,

o límbico é responsável pela emoção e pelas

memórias e o neocórtex é a área responsável pelo

pensamento abstrato, pela linguística e por tudo o

que há de mais sofisticado na noosfera. O

inconsciente coletivo de Jung muito provavelmente

deve dizer respeito a estas protoestruturas.

Interessante é que posso ser experto em psicologia

e não ser feliz enquanto um analfabeto pode ser

590

profundamente realizado. Como todo outro ramo de

conhecimento, a psicologia é um castelo de

conceitos. Estes conceitos são altamente

enviesante, pois se antepõe aos nossos olhos

como se fossem as lentes de óculos. O ser

psicólogo, por isso mesmo, cobra do profissional da

área ser mais do que um bom acadêmico, cobra

que ele tenha tato e feeling. Passamos de uma fase

em que a figura do psicólogo era obscura, pela

raridade mesmo, para um estágio de pletora de

profissionais. O mercado de trabalho está saturado.

É que geralmente são as classes mais abastadas

que procuram este tipo de prestação de serviço

embora não se trate de exclusividade. Aliás, o

psicólogo ao lado do assistente social tem sido uma

figura especial ao colmatar lacunas em que

nenhuma peça se encaixava. A psicologia é

transida de um relativismo filosófico que decorre do

seu método. Sim, porque como qualquer outra

ciência ela aplica o materialismo metodológico e

como seu objeto de estudo é o homem, ele fica

reduzido de algum modo a um superanimal, o que

591

faz muitos estudantes entrarem em crise.

Sobretudo se a psicologia é a primeira formação

oficial daquele que é inexperiente em humanidades.

A psicologia também é altamente frustrante como

curso porque o iniciante pensa eu egressará da

universidade estendendo tudo de ser humano e

percebe que passou cinco anos tracejando alguns

rabiscos. Tenho um pensamento que é o de que

todo homem tende para a média que é de dada

socialmente. É assim que procuro me satisfazer

medianamente na alimentação, no sexo e em

outras áreas da vida como a acadêmica e a

profissional. Quando não atinjo a média em alguma

área procuro estar acima da média em outra área.

É assim que aquele que não resolveu sua

sexualidade busca ser um intelectual, por exemplo.

Talvez Adler devesse ser interpretado desta

maneira: a busca de poder seria uma satisfação

para aquele que aliunde é um frustrado. As

biografias de Hitler e de Stalin sugerem exatamente

esta dinâmica. A psicologia aborda ainda questões

orgânicas como a da obesidade em que o

592

alimentar-se compulsivamente é encarado como

meio de compensação aos desprazeres da vida.

Alcoolismo e uso de entorpecentes entram em

semelhantes categorias. Estudos mostram que

quem começa a usar drogas aos 14 anos de idade,

por exemplo, em alguma área de sua personalidade

estaciona nesta faixa etária. A psicologia deveria se

empenhar em descobrir os fatores desencadeantes

do comportamento reto porque o mercado de

trabalho padece por conta de pessoas de mau

comportamento e de ínfimo senso de

responsabilidade. Os marqueteiros exploram muito

a psicologia associando uma marca de cerveja a

mulher bonita ou uma marca de cigarro e muita

aventura e a paisagens paradisíacas. Hoje, além de

as empresas de cigarro não poderem fazer

propaganda sofrem contrapropaganda por conta do

governo que estava cansado de perder demandas

judiciais. A psicologia promoveu a maior

dessatanização do mundo. E o padre Quevedo

terminou o trabalho com seus escritos

parapsicológicos. No sentido de que a mudança de

593

humor é o sintoma de um transtorno de

personalidade e não uma entidade demoníaca. A

psicologia mata Deus e o diabo, portanto. A

psicologia é conservadora e tão conformista quanto

as filosofias de Spinoza, Hegel e dos estoicos. Sim,

porque o papel do psicólogo, em linhas gerais, é

fazer o sujeito se sentir bem consigo mesmo e com

o meio em que está cabido. A psicologia é a

extensão da escola e da família quando nos dá

valiosas dicas de boa convivência. A psicologia

peca por ser estigmatizante. Ela rotula as pessoas

sob conceitos quando todo ser humano é mais que

qualquer conceito. Não raro, o estudante de

psicologia busca o curso para resolver seus

próprios problemas. A psicologia tem esta

característica de o estudioso estar imbricado dentro

da problematização teórica que tem por objetivo

abordar com frieza. É como se o médico fizesse

uma cirurgia em si mesmo. A verdade é que a

psicologia não dá conta dos aspectos existenciais

por ser muito presa a aspectos meramente

fenomênicos. A psicologia de hoje tem novos

594

desafios do que tinha no século XX. Hoje há

pessoas com fobias das mais estranhas e

inusitadas e há compulsividades novas como a de

consumo, a de uso de certas tecnologias como a

internet e assim por diante. A informação em

excesso desnorteia as personalidades da época

contemporânea. As pessoas se sentem em meio a

um fogo cruzado com tanto jornal, revista, televisão,

iphone e não sei mais o quê. A ideia do sistema é

nos manter ocupados o tempo todo. Se no passado

o trabalho engendrava a personalidade do ser

humano, hoje ele não está mais sozinho, mas nos

faz os pés tocarem o chão nos conferindo uma

objetividade que não mais encontrávamos nos

meios virtuais. Dentro de uma perspectiva

sociológica a psicologia pode ser vista como um

mecanismo social, enquanto conhecimento e

prática, de amainamento das tensões sociais. A

psicologia descolore o social e traz tudo para a

esfera do privado. Há uma privatização do

sofrimento. Não é à toa que a psicologia rivaliza

com a religião. A religião, em linhas gerais, cumpre

595

o mesmo papel da psicologia. Fazer com que a

pessoa se sinta em clima de harmonia com aquilo

que a rodeia. A ponto de no Brasil existir o brocardo

“psicólogo de pobre é padre”. Existencialmente

falando parece que a orientação do sacerdote se

afigurava até superior à do profissional da psique.

Mas a secularização do mundo e a consequente

descatolicização da sociedade pediram uma figura

nova, que em linhas mestras, é a do psicólogo. No

mundo da técnica até a alma é tecnicamente

tratada. Aliás, nos meios religiosos tem se

desenvolvido uma psicologia própria, seja na

literatura católica ou evangélica, mas ela passa ao

largo das instituições universitárias. A psicologia

abre horizontes e muda a percepção da realidade

do seu estudioso. O psicólogo sabe que muito do

que ele pensava fazer parte do mundo, no fundo,

fazia parte de si mesmo. A psicologia ao mesmo

tempo traduz um período histórico de irreligião e

também fortalece o sentimento religioso. Porque

quando a psicologia e a religião forem bem

compreendidas elas falarão uma só e mesma

596

língua. A psicologia não ri, não ridiculariza e não

deplora, ela compreende. Ser psicólogo passa por

isso: largar do leiguismo e encarar o outro

cientificamente. O psicólogo não faz juízos morais,

ele orienta e trata. O profissional da psicologia, pelo

seu código de ética, é obrigado a guardar segredo

do que sabe do seu paciente. Isto é não só um

dever, mas um direito. Sim, porque às vezes o

psicólogo, mesmo sem querer, torna-se cúmplice

por não delatar uma conduta criminosa do seu

cliente. A denunciação seria uma traição, uma

quebra de confiança. O psicólogo em regra é cioso

pela intimidade e pelos interesses de seu cliente. A

psicologia, quando comparada à filosofia, produziu

muito de conhecimento sobre nós mesmos em que

pese seu pouco tempo de existência. O grande

problema da psicologia reside exatamente em seu

objeto: a subjetividade humana. Se em física abre-

se o leque para intermináveis discussões acerca do

nível quântico da matéria bruta, o que iremos falar

do espírito humano? Wilhelm Wundt foi o grande

teórico do estruturalismo. Escreveu 490 livros sobre

597

o tema. A crítica que se costuma fazer ao

estruturalismo dentro da psicologia é de três

monismos: reducionismo, por reduzir tudo a

sensações como fez Hume na filosofia,

elementarismo, por perder de vista a complexidade

do todo e mentalismo, por desprezar a capacidade

de introspecção do ser humano. Os textos

psicológicos são explicados para quem faz carteira

de habilitação e para quem ocupa cargos que

cobram refinado senso de orientação. São os

chamados testes psicotécnicos. Uma pessoa pode

ser dotada intelectualmente acima da mídia e ter

dificuldade com o volante, como é o meu caso.

Dançar, para mim, é uma atividade impossível de

ser cumprida. Meu corpo fala uma linguagem

autista, tenho pouco controle sobre ele. É a lei da

média das médias da qual eu falara anteriormente.

Hoje rivaliza com a psicologia a filosofia clínica que

é o esforço de Lucio Packter de dar um sentido

prático à filosofia. Porque o que se vê é que

existem filósofos geniais desconhecidos de um

lado e de outro pessoas atravessando agruras já

598

apreciadas pela tradição filosófica. O filósofo clínico

faz esta ponte entre a tradição filosófica e o

problema prático do cliente. Ao contrário do

psicanalista que pode ouvir uma mesma pessoa por

20 ou 30 anos, o filósofo clínico pretende resolver

tudo em umas poucas sessões. A psicologia é

como um mecanismo de correção no plano virtual

antes mesmo que o problema manifeste-se na sua

concreção. É como eu consertar um texto no

arquivo antes de colocá-lo na lista de impressão. A

psicologia também tem efeito retroativo. Não raro o

adulto chega com problemas ao consultório do

psicólogo com os chamados “traumas” de criança.

Os parapsicólogos trabalham com a regressão a

partir de estados hipnóticos. Dependendo da linha a

regressão abarca uma vida só, na perspectiva

cristã, com várias, na perspectiva kardecista. Não

raro, em estados hipnóticos presenciamos pessoas

falando idiomas que nunca estudaram. Seria uma

bagagem genética, como sugerem cristãos, ou

seria o idioma que eu falei em vidas pretéritas?

Dizem que o inconsciente é muito criativo. Eu,

599

particularmente, não concordo com a ideia de

inconsciente ou subconsciente. Creio que há

diferentes consciências acessíveis em diferentes

estados mentais que podem ser obtidos por

hipnose, sono, cansaço, drogas ou experiências

sexuais ou místico-religiosas. Porque quando estou

hipnotizado o inconsciente é o que chamamos de

consciente. Toda vez que acesso uma área de

minha consciência ela passa a ser a consciência

naquele momento e as áreas dormentes, inclusive

aquela que exibimos em estado de vigília e lucidez,

são os não conscientes. Freud, ao dividir a psique

humana em id, ego e superego procede da mesma

forma que o geógrafo europeu que sem maiores

justificativas coloca a Europa no centro do seu

mapa mundi, que sem justificativa coloca a Europa

e a América no plano superior do mapa e a América

Latina e a África no plano inferior. E os

psicanalistas leem e releem Freud e Lacan e não

se dão conta disso: da relatividade daquilo que

chamamos de consciência e inconsciência, de eu e

não eu. Aquilo que chamamos consciência é

600

apenas um dos modos possíveis de consciência.

Não podemos dizer que outra forma de ser é o não

ser. Como num jogo de xadrez ora uma frente é a

consciência preterindo as demais para consciências

paralelas provisoriamente inertes. Ora, em um

tempo uma área funciona como premissa e as

demais como corolário e, em seguida o que era

corolário passa a ser premissa. Ao criar a categoria

de inconsciente Freud relativizou a consciência. Em

nosso caso não se trata de negar a consciência,

mas de realçá-la, porque ela é poliforme, variegada

e cheia de diversidade. No máximo o que pode-se

falar é em consciência perfunctória e exauriente em

relação ao que haveria presumidos e

subentendidos e, doutra feita, explícitos. A

estruturação da mente é em tipos e níveis de

consciência e não em consciente e inconsciente. E

ainda ao ponto de se dizer que o consciente é a

ponta do iceberg. Pelo contrário, a lucidez é maior

que a escuridão e o conhecimento e a aculturação

desempenham papéis fundamentais no que se

refere a este processo de esclarecimento.

601

Direito: a ideia de justiça

Miguel Reale desenvolveu a teoria tridimensional

do direito afirmando que o mundo jurídico gravita

em torno de três elementos: norma, valor e fato.

Simpatizo com tal teoria embora eu não me vincule

a ela. No meu ponto de vista o maior jurista de

todos os tempos foi o judeu alemão Hans Kelsen.

Ele defende o positivismo jurídico. Já sei o que vão

me perguntar: por que alguém que critica o

positivismo filosófico defenderia o positivismo

jurídico? Simples: porque é a única teoria que

reconhece o direito como área autônoma e

independente que não deve se incardinar a outros

interesses que não seja a própria justiça. Porque o

direito alternativo questiona essa posição e diz que

o direito deve ser tendencioso a favor dos supostos

hipossuficientes. Defendo imparcialidade. Porque o

que vemos é a trucidação das normas processuais

em prol de determinados interesses. A minha luta é

pela legalidade. Porque quando a própria legislação

602

consumerista determina a inversão do ônus da

prova esse princípio não pode ser relativizado. A

lei, ainda que os alternativistas digam que ela é

burguesa, é equânime, o problema está na

aplicação. Porque quando uma parte frágil está a

litigar ela tem de suportar a “dura lex sed lex”. Já a

burguesia relativiza o ordenamento jurídico que ela

própria criou para trapacear seus colaboradores,

isso não pode acontecer. Ouço falar em

modernização da legislação trabalhista. Ressalvo:

modernizar é uma coisa, lograr o trabalhador é

outra. O direito alternativo diz que devemos, às

vezes, passar por cima do direito para fazer

acontecer a justiça. Discordo, isso criaria

insegurança jurídica. O que tenho, entretanto, visto

com frequência é passar por cima do direito para

acontecer a injustiça, o que é igualmente deplorável

ou até pior. No direito penal sou a favor do

garantismo jurídico de Ferrajoli. Está na hora de o

Brasil assegurar um processo penal transparente e

disciplinado aos seus jurisdicionados. A polícia

técnica é mal aparelhada e a condenação sem

603

provas é uma constante. Percebe-se que no direito

civil se cobra da parte, no que se refere à produção

da prova, um rigor maior do que do Ministério

Público no processo-crime. Justamente menor rigor

do Estado que tem a seu favor uma megaestrutura!

Um exemplo de insanidade mental é a obra “Direito

Penal do Inimigo” de Günter Jakobs que sugere a

dinamização do processo penal em detrimento do

zelo pela prova. Absurdo! O processo penal tem de

ser meticuloso e cuidadoso, trate-se de quem tratar.

É o direito penal que faz de mim um positivista

jurídico. Processo penal tem de ter cientificidade.

Se não houver um conjunto de provas científicas

em desfavor do réu ele deve ser absolvido. Na

dúvida sempre em favor do réu. Eu realmente não

sei quem é esse “inimigo” de Jakobs. E no Tribunal

do Júri o in dúbio pro societa deve ser submetido à

prova irrefragável da materialidade e indícios

suficientes de autoria, eles precisam ser

“suficientes”. Sobre a questão da intencionalidade

ou finalismo da ação no direito penal entendo que

quando a interpretação mais favorável ao réu for a

604

finalista será esta a ser aplicada, quando for a da

intenção, então será acolhida a tese da intenção. A

lei no tempo, se se trata de direito penal, deve ser

aplicada conforme resultar em melhor proveito para

o réu que, dependendo das circunstâncias poderá

ser a antiga ou a mais nova. Não basta banir do

vocabulário as expressões “recluso” e “apenado”

colocando “educando” ou “reeducando”. O preso

realmente precisa ser ressocializado.

Preventivamente deve se investir pesadamente em

educação. Há estatísticas que comprovam, e isso

ao longo de décadas, que quanto maior a

escolaridade menor a afronta à lei e que a

incidência de condutas delitivas está na razão

direta dos baixos índices de escolaridade. Ainda

bem que há agravo de instrumento para destrancar

recurso, mas penso que não deveria ser o juízo a

quo a fazer exame de admissibilidade do recurso,

ele já é suspeito por ter prolatado decisão nos

autos e nenhum juiz gosta de ver a própria

sentença reformada ou substituída. Outro problema

grave no Brasil é que há muitos processos por juiz

605

e o critério de ascensão na carreira é a

produtividade. Cobrar muita produtividade

compromete a qualidade, passando da sentença

artesanal para a industrial, e induz o magistrado

fulminar certas ações sem apreciações mais

exaurientes. Sou a favor de boa remuneração de

juízes, promotores e advogados para que os

referidos profissionais possam desenvolver com

dignidade seu ofício. Sou terminantemente contra

compensação de honorários porque é um direito do

advogado e não da parte. Sou contrário a súmula

vinculante porque se de um lado ela uniformiza a

jurisprudência, de outro, ela engessa o direito e o

direito precisa ser dinâmico. Defendo acima de tudo

a imparcialidade. Os parâmetros processuais e,

superados estes, o mérito deve ser apreciado, e

não a vida do advogado ou das partes. Todo

magistrado deveria advogar por pelo menos dez

anos antes de ser juiz. Sou totalmente a favor do

quinto constitucional por trazer às turmas um ponto

de vista diverso. Os cursos de direito no Brasil, de

um modo geral, precisam ter sua qualidade

606

aprimorada. Defendo um acréscimo de formação

humanista na faculdade de direito. Sou totalmente

favorável ao exame da OAB tal como vem sendo

praticado. Defendo nacionalização da anuidade da

OAB em todo país. Sou a favor da faculdade de

Direito no ensino a distância. Quem tem de regular

o número de profissionais no mercado é o próprio

mercado. Quem se submete ao vestibular deve

avaliar a viabilidade de uma profissão antes de dar

o primeiro passo. O Governo Federal deveria criar

uma política de barateamento de todo tipo de livro,

inclusive do livro jurídico. As publicações de todo o

país e de todas as instâncias deveriam ser

fornecidas eletronicamente ao advogado sem custo

algum e todas pelo mesmo eficiente canal. Como a

defensoria pública não consegue cobrir todo o

contingente de pessoas que carecem de seu

serviço em todo território nacional os Estados

deveriam mesclar defensoria pública com

defensoria dativa. Quando houver desvio de

dinheiro dos cofres da OAB a consequência não

deveria apenas ser a eleição de uma chapa

607

contrária, mas ainda deveria ser apurada a

responsabilidade criminal. No que se refere à

campanha eleitoral sinto que a respectiva

legislação impede de conhecer a fundo o candidato,

bem como suas propostas, enfim, está rígida

demais. A Lei Maria da Penha é inconstitucional

porque fere a igualdade entre homem e mulher de

maneira que o homem não pode usar da força nem

para legítima defesa. Tem muita mulher agredindo

varão e ficando impune. Foi um retrocesso a

equalização entre estupro e atentado violento ao

pudor. São níveis de afrontamento de norma

distintos e deveriam os tipificados de forma

especificada, como era antes. É uma afronta à

Constituição exigir custas de remédios

constitucionais, o Conselho Nacional de Justiça tem

que fiscalizar os magistrados para coibir estes

abusos. Refiro-me a habeas corpus, habeas data e

mandado de segurança. No juizado especial o

advogado deveria ser sempre intimado quando do

que se trata é de recolher custas. O advogado

deveria ter no mínimo férias de trinta dias por ano.

608

Estas férias em um único lapso de tempo.

Deveriam ser banidos do ordenamento jurídico os

prazos curtíssimos, pois eles destroem a saúde do

advogado. Deveria haver um piso da categoria

abaixo da qual não poderia ninguém laborar tanto

para a iniciativa pública quanto para a privada.

Como vivemos em uma sociedade capitalista de

livro iniciativa, livre concorrência e liberdade de

expressão não deveria haver vedação na

propagação midiática do serviço que o advogado

presta. Todos os processos de todas as instâncias

deveriam ser digitalizados. Toda vez que o

processo vier acompanhado de farta documentação

deveria ser excepcionada a regra e haver autos

físicos. Sempre que o advogado devolve os autos

em cartório deveria ser-lhe entregue uma certidão

de devolução e recebimento. Deveria haver um

tempo mínimo de permanência de um juiz em uma

comarca porque nas de menos entrância há um

rodízio muito intenso de juízes e promotores, o que

prejudica a marcha processual das ações.

Comprovada enfermidade o advogado deveria

609

possuir um mecanismo de estancar publicações em

sua OAB. Deveriam mudar o nome do

departamento administrativo da delegacia de

trânsito de “setor de imposição de penalidades”

para “junta de apreciação de recursos

administrativos”. A função do órgão é apreciar o

mérito porque, afinal de contas, a multa já foi

imposta, o que cumpre discutir é se ela será

mantida ou não. Os procons deveriam ter poder de

coagir as empresas que passam por cima do direito

consumerista a respeitar ainda que a contragosto o

direito do consumidor. Porque do jeito que está hoje

o órgão pouca coisa resolve. O voto não deveria

ser obrigatório. Porque coloca o voto consciente e o

de má qualidade na mesma balança atribuindo-lhes

o mesmo peso. O voto deveria ser na sigla

partidária e não na pessoa para que o povo

aprenda a votar ideologicamente. Depois de

apuradas as urnas o partido deveria fazer

assembleia para decidir quem iria exercer os

mandatos eletivos. Sou a favor do parlamentarismo

porque tenho visto que, sistematicamente, o povo

610

coloca partidos opostos no Legislativo e no

Executivo, o que gera demanda de mensalões e

barganhas. Trata-se de uma questão de

governabilidade. Reforma tributária já! O sul remete

muitas divisas ao Governo Federal e tem retorno

baixíssimo. Aglutinação aos Estados do nordeste

que estão super-representados. Os integrantes do

Conselho de Sentença do Tribunal do Júri deveriam

todos eles possuir curso superior. Porque quem

tem curso superior também faz parte do povo e

porque tenho visto que as pessoas de baixa

escolaridade têm dificuldade de compreender as

teses de defesa. O país precisa de uma legislação

avançada que discipline o urbanismo, a arquitetura

e as obras de engenharia de um modo em geral

para a modernização estrutural do país. O Brasil

precisa ter uma legislação e um direito penal mais

eficientes e mais duros no combate à corrupção.

Deve haver pena duríssima quando o assunto é

destruição ou falsificação de documentos e de

autos. O que não está nos autos não está no

mundo. Não devem ser acolhidas provas ilícitas. O

611

magistrado deve ser um processualista imparcial,

mas deve abrir ou conceder prazo à parte quando o

vício é remediável. A liberdade de expressão não

deve ser restringida por ação judicial a não ser que

exponha a honra e a intimidade de um indivíduo.

Sempre que possível deve-se preservar o

pensamento e a expressão do mesmo. Os

Tribunais de Contas deveriam fiscalizar com mais

rigor os Municípios, pois quem está no mundo

fenomênico não consegue entender porque o

dinheiro não aparece. Precisa ser revista a

legislação que regulamenta a radiodifusão

comunitária porque o marco regulatório atual

inviabiliza as atividades das referidas entidades.

Acertada foi a decisão do STF que tirou a exigência

do bacharelado em jornalismo para exercer a

profissão de jornalista. Todo ser humano tem direito

de expressar-se e não só o jornalismo. Mesmo

quem é formado em outra área que não o

jornalismo e a comunicação social reúne condições

de produzir e transmitir informação de qualidade. É

preciso ter mais controle sobre as empresas que

612

realizam concurso público para evitar fraude e

beneficiar de antemão quem não tem os melhores

dotes intelectuais, mas é apadrinhado. É preciso

levar a sério as ações de indenização por danos

morais exatamente quando o ofensor é abonado e

possui grande projeção social. A lei não deve

tolerar nenhuma instituição que prega “as leis do

nosso mundo se sobrepõe às leis do mundo

exterior” porque nada e nem ninguém podem estar

acima da lei. Deveria ser criado um plano de

universalização do ensino superior, de fomento à

pesquisa, à ciência, ao desenvolvimento

tecnológico e à produção cultural. E a lei teria o

papel de disciplinar a procedurística deste plano.

Quando o advogado é defensor dativo e é expedida

carta precatória dever ser nomeado defensor ad

hoc na própria comarca deprecada porque o que o

Estado paga não cobre a despesa de

deslocamento. Quando os autos saem da Justiça

Estadual e vão para a Federal deveriam ser os

funcionários de cartório a digitalizar o processo e

não o advogado. Quando o defensor é nomeado

613

para Tribunal do Júri o Estado deve fornecer cópia

fotostática dos autos sem nenhum custo. Nas

regiões de fronteira deveria haver acordo entre as

comarcas para agilizar cartas precatórias e

rogatórias. É lamentável que um Oficial de Justiça

tenha um ganho maior do que o de um advogado.

Ambos são dignos e precisam receber bem, mas a

profissão de advogado cobra mais do intelecto e

por isso deve ser melhor remunerada. O advogado,

em razão da saturação do mercado, passou por

uma proletarização. Ele, não raro, é um pobre

engravatado. Dos profissionais de escritório está

sendo um dos piores pagos. O advogado se move

entre a possibilidade de ser um generalista, cível,

penal e trabalhista, ou trabalhar para os grandes

escritórios em que há um volume enorme de

trabalho e parca remuneração. Se optar pela

primeira posição terá de ser um anônimo entre

outros que já têm algum nome. Parece que a

bacharelização jurídica de nosso país vem atender

a uma demanda oriunda da pletora de direitos da

constituição de 88. Mas o excesso de profissionais

614

gerou não só o efeito almejado, a assunção de

causas de valor econômico irrelevante, mas ainda a

queda do nível de conhecimento médio dos juristas

que estão atuando. O brio do jurista foi substituído

pela produção em série taylorista “operador

jurídico”. O que os filósofos da Escola de Frankfurt

disseram sobre a cultura europeia hoje se aplica ao

direito praticado no Brasil: a mais objetificadora,

desencantadora, reificadora e desumanizante

estandardização.

Teoria da Literatura: a ideia de contexto

Grosso modo, a teoria da literatura gira em torno de

cinco eixos: autor, que é aquele ser humano real

que faz uma experiência concreta e psíquica e

limitada de vida; texto, que é o produto de uma

conjuntura dos ingredientes que o compõem e que,

apesar disso, ao menos nesta perspectiva, tem vida

própria; leitor, que é para quem o texto se dirige;

contexto, que é a metanarrativa dentro da qual tudo

está imbricado e, finalmente, código, que é a

615

estrutura profunda do texto. Estes cinco conceitos

são fundamentais para explicar uma produção

literária, qualquer que seja ela. Vemos com

frequência que os grandes autores, embora isto

não seja uma regra, possuem uma biografia

recheada de fatos inusitados e que em muitos

casos o pôr-se a escrever traduz uma vida rica de

experiências. No sentido de que aquele que

vivenciou uma série de circunstâncias não

consegue guardar tudo isto para si. A questão do

autor pode mostrar um citadino que parou para

pensar na “pauliceia desvairada” ou nas belezas do

Rio de Janeiro das belas praias. A biografia pode

mostrar alguém que optou pelas letras porque não

se vislumbrava opções diferentes desta. A

abordagem do autor vai identificá-lo como russo,

judeu ou alemão. A biografia vai me fazer entender

que o autor foi combatente, apátrida, boêmio ou

membro do clero. A abordagem do autor poderá

vislumbrar um autor que passou fome na vida ou

era herdeiro de uma enorme fortuna como Alain de

Botton. A abordagem do autor é importantíssima

616

porque, como dizem as Sagradas Escrituras, “é

pelo fruto que se reconhece a árvore” e vice-versa.

Não pode uma boa árvore dar frutos maus e nem

uma má árvore dar frutos bons. Ainda que Tomás

de Aquino tenha dito “não importa quem o diz, mas

o que se diz”. Claro, ele era filósofo e trabalhava

com as ideias como se elas fossem coisas. O autor

sempre herda dos pais, dos professores e de

pessoas próximas a religião, a diretriz política, o

time de futebol, e uma série de outros bairrismos.

Isto é jogado para dentro do texto do autor explícita

ou implicitamente. A obra sempre traduz o

etnocentrismo do autor. A idiossincrasia e a

subjetividade, não raro, são apresentadas como

modelo válido, perfeito e universal. Os filósofos são

campeões nisto. Além disso, o autor deve morar

num ponto do planeta e sofrer os cerceamentos da

época em que viveu. Como se vê, é tênue a linha

que separa contexto de autor. O autor faz, ainda,

experiências amorosas, ou experiências de

frustração, como Nietzsche e tantos outros poetas,

vem de uma família e constitui família. O autor,

617

além disso, pode escrever uma obra aos 18 ou aos

85 anos de idade. Pode ser pai de obra única ou

até de centenas de livros. O autor, é óbvio, mas é

bom que se diga, é homem ou mulher. Sim, porque

até recentemente a produção literária se

encontrava encerrada nas mãos dos barbudos. A

ponto de a escritora Clarice Lispector ser elogiada

por uma colega sua com os dizeres “nossa, você

escreve como homem!”. O que se vê é que

qualquer pessoa pode ser escritor, mas sobretudo

nos primeiros tempos de nosso pais havia uma

preponderância, salvo Machado de Assis, Cruz e

Souza e alguns outros, de homens, brancos, ricos,

clérigos, advogados, jornalistas, militares, médicos

e funcionários públicos. Ser escritor, no passado,

não era para qualquer um. Havia uns ricos cultos

de pequena expressão numérica e uma multidão de

pobres analfabetos. A literatura sempre começa

como expressão da supremacia das elites para só

mais tarde se tornar o retrato das mazelas sociais.

Além disso tudo, o autor pode ser sanguíneo,

colérico, fleumático ou melancólico. Pode ser

618

sentimental ou calculista. É inegável, para

compreender a totalidade de um texto é preciso

conhecer a vida real de seu autor. Outra

abordagem possível é a do texto. Sim, porque o

texto pode e deve ser tomado como uma entidade

autônoma, independente e fechada em si mesma.

O texto tem a capacidade de falar por si só. A ponto

de não nos interessar, muitas vezes, com o que o

autor pretendeu dizer, mas com aquilo que ele

efetivamente diz e expressa. Certa vez Renato

Russo foi questionado se era homossexual porque

na letra de uma de suas músicas dizia “eu gosto de

meninos e meninas”, ao que ele respondeu, “eu

não detenho a posse do texto, eu o redigi, mas

agora ele não me pertence mais”. A meu ver,

excelente resposta. O texto comporta aquilo que se

chama hermenêutica, que é um conjunto de

técnicas de interpretação. É feita abordagem literal,

gramatical, axiológica e muitas outras do texto. A

filosofia também é usada. E, como diz Carlos

Alberto Hang, filosofia não é ciência, sequer é uma

disciplina, ela é “uma ferramenta”. O texto pode ser

619

rebuscado ou pode estar escrito em uma linguagem

mais moderna, como o estilo jornalístico. O texto

pode ser descritivo, dissertativo ou narrativo. Ele

pode ser prosa ou verso. A poesia pode ser livre ou

ritmada, musicalizada e bem construída. A

estilística pode ser rica ou pobre, principalmente no

que se refere ao uso de figuras de linguagem. O

texto pode ser solene ou alegre e fácil. O texto

pode ser superficial ou denso. Específico ou

genérico. Concreto ou abstrato. O texto pode ser

coeso ou truncado. Claro ou obscuro. Aberto ou

hermético. O texto é uma fonte inesgotável de

interpretação. Porque projetamos no texto o que

nós queremos ver. Nós extraímos do texto e o texto

extrai de nós, isto é hermenêutica. O texto é algo

que se renova. O texto diz muito mais do que o

autor pretendeu dizer. Daí a frase que com

frequência se ouve “sou responsável por aquilo que

escrevo e não por aquilo que você interpreta”. O

texto pode ser religioso, científico, filosófico, literário

propriamente dito ou pode ser um texto da crítica. O

que talvez falte no Brasil seja a crítica da crítica.

620

Porque não se sabe quem deu carta branca para

alguns dizerem o que é de bom alvitre e outros nem

tanto. O bom da crítica é que mesmo quando ela é

negativa chama a atenção para o texto criticado. E

a crítica de amanhã pode pensar de modo diferente

da crítica de hoje. O texto é a foto de um rio em

movimento. Mesmo que vejamos as águas paradas

sonhamos com a correnteza, com o frio da água,

com os peixes, ou a aventura, etc...Outra

perspectiva é a do leitor. No sentido de que o autor

pode escrever de trás para frente, ou seja, pode

antes mesmo de segurar a caneta entre os dedos,

imaginar como o receptor da mensagem irá

conceber a redação. A novela e o cinema são

gêneros literários que trabalham essencialmente

com esta lógica. Há uma espécie de simonia. No

sentido de que a única coisa que se vislumbra é a

vendabilidade do livro e o retorno financeiro que ele

irá trazer. Particularmente, sou contra a ideia de

quer vender sabonetes e livros passam por

processos idênticos. Um livro que se presta a

satisfazer a fruição e o gozo do leitor é um livro que

621

não agrega muita coisa. Tudo aquilo que é cômodo

e que não cobra mudança é como um alimento

gostoso, porém, nada nutritivo. O escrever

enquanto jogada de marketing traduz aquilo que

Martin Heidegger chamou de existência inautêntica.

O leitor deve, sim, ser considerado. Mas quando

um escritor realize um texto hermético ele não está

desprezando o leitor, apenas está dizendo quem irá

ser seu leitor. Nietzsche costumava dizer que seus

leitores eram pessoas especiais. O leitor na é uma

tábula rasa. Ele é carregado de preconceitos e

valores e o escritor pode reafirmar esses eixos ou

relativizá-los e polemizá-los. No geral, a literatura

tem trabalhado pela desconstrução da sabedoria

popular. A literatura tem posto o duvidoso no lugar

do líquido e certo. O leitor está cada vez mais

inacessível. Porque vivemos numa pletora de

literatura e o excesso de excitação dos sentidos os

torna indiferentes àqueles cujo maior interesse é

chamar a atenção e disputar o tempo livre do leitor.

O leitor está cada vez menos inocente. E se no

passado o leitor era desafiado a compreender um

622

romance, hoje é o leitor que desafia o escritor a

desenvolver uma trama cada vez mais complexa,

intrincada, hermética e misteriosa. É claro que

quanto mais bem estruturada e fechada a

antecâmara do clímax, mais orgásmico ele se

torna. Porque a sensação de extravazamento é

precedida de extrema tensão. A marca psicológica

é imprimida somente através do movimento do

texto. O texto precisa arrancar o leitor da sua

postura de expectador e colocá-lo dentro da cena

do livro como se ele estivesse de fato lá e fosse

invisível. O leitor também tem de ser estimulado a

dar conta das mensagens subliminares. De sorte

que se tomando os corolários se chegue às

premissas e, tomando-se as premissas, se chegue

aos corolários. A dificuldade de entender um texto

mais antigo se deve ao fato de os preconceitos do

leitor do passado serem diferentes dos

preconceitos do leitor dos dias de hoje. O pré-paro

do leitor é sempre outro, é mutante e dinâmico.

Assim como no mundo do trabalho há a divisão

social do trabalho, no mundo da cultura há a

623

mesma especialização. A ponto de haver pessoas

que só leem histórias de amor, outros só aventura

policial, outros os investigação, outros só ficção

científica, outros só ufologia e assim por diante. é

claro que isto traz uma vantagem para o escritor.

Pois na medida em que aumenta o universo de

leitores abre demanda para a produção escrita. O

leitor é um ditador poderoso. Porque o escritor

depende da logística de consumo, livraria,

distribuidora e editora. Aliás, as editoras moldam o

padrão do leitor. A maioria das editoras são

temáticas e é por isso que os escritores franco-

atiradores sentem dificuldade de se impor. Na

verdade, a internet vem cada vez mais quebrando

essa classificação dualista leitor-escritor. Estamos

caminhando para uma sociedade em que todos

escrevem e todos leem. Considera-se o marco

divisor entre a Pré-História e a História o advento

da escrita. Adentraremos um dia para o reino da

Super-História. Todos serão leitores e escritores.

Quase nada passará ao largo da escrita, tudo,

absolutamente tudo será exarado. A escrita será

624

não só uma superconsciência, mas também um

supercontrole. Porque uma coisa é inaugurar um

movimento civilizatório e outro é universalizá-lo.

Infelizmente, sabemos que nenhuma garantia

fundamental foi universalizada até agora, nem

mesmo o direito à vida e à liberdade. Enquanto a

escrita não se universaliza quem escreve está na

dianteira. Está sendo revolucionário e vanguardista.

Outra perspectiva, que reputamos de suma

importância é a do contexto. O contexto é aquela

universalidade de situações, coisas, pessoas e

ideias a partir do que o metanarrador construirá sua

metanarrativa. Hegel diz que nenhum autor é maior

do que aquilo que seu contexto permite sê-lo.

Gênio é aquele que consegue captar o contexto na

sua inteireza. E para isto é necessário ter

capacidade de síntese e conseguir eleger aquilo

que realmente é importante. Esta obra que o leitor

está a passar sob seus olhos tenta ser exatamente

isto. Reputamos importante abrir um capítulo sobre

a Teoria da Literatura porque a literatura é uma arte

que possui fortíssimo pode de modificar os hábitos

625

das pessoas. A literatura dita padrões e

comportamentos. Ela é parte intrínseca do contexto

em que o ser humano vive. Porque uma das

instâncias mais importantes da vida humana é a

noosfera enquanto dimensão em que fica refugiado

o pensamento puro, a ideologia, a primeira acepção

histórica da palavra. Assim, se a literatura é parte

do contexto ela é também reflexo do contexto, seja

ele econômico, social, religioso, político, cultural,

filosófico, artístico, etc... A literatura é, destarte,

ativa e passiva, premissa e corolário. Ela sai de si

mesma torna-se realidade e é colhida da realidade

para novamente tornar-se arte. Que prato cheio

para um quejando de Hegel. Essa é a verdadeira

direita hegeliana. O pensamento que se objetifica e

o objeto que se idealiza. O contexto é algo em

construção e por isso mesmo a própria literatura se

assemelha ao avião que se constrói no ar.

Genialidade é um Miguel de Cervantes ridicularizar

o que está em decadência e um Marx vislumbrar

por completo aquilo que outros autores só viam em

parte. Quando um contexto está prestes a se

626

perfectibilizar é porque o seu sucessor já está na

reta final de gestação. E que duro é o parturir de

um novo contexto, o Terror guilhotinesco que o

diga. A inteligência começa como embrutecimento

e a luz como treva. Para se sair da barbárie se

intensifica a barbárie. Platão diz “quem consegue

ver o todo é filósofo”. Que poderia ser substituído

por “quem consegue ver o contexto é filósofo”. Este

é o papel do intelectual: ver o contexto. Mas o

homem comum sempre tem sua visão parcial da

realidade. O contexto ainda comporta lados e

subcontextos. Pois uma coisa é o capitalismo visto

pelo capitalista e outro é pela ótica do proletário.

Uma coisa é o catolicismo visto como fenômeno

universal e outra é vê-lo pela ótica do monge há

vinte anos enclausurado. Uma coisa é encarar

tecnicamente a seca no nordeste e outra é vivê-la

existencialmente. Do que se aproxima a poesia.

João Cabral de Melo Neto que o diga. Diferente é

falar de cristianismo na época da Igreja Primitiva e

falar dela na Alta Idade Média e nos dias atuais.

Não há texto sem contexto. Enfim, era esta a

627

grande mensagem. A quinta perspectiva é a do

código. Sim, porque uma coisa é marxismo, outra é

existencialismo, outra é empiriocriticismo, mas

todos eles são materialistas. Isto equivale dizer

que, em que pese as discordâncias mais

pormenorizadas, há uma concordância de fundo

entre todas estas vertentes. Assim como

cristianismo e kardecismo conflitam quando o

assunto é ressurreição e reencarnação, mas estão

de acordo quando do que se trata é de afirmar a

existência de Deus e a imortalidade da alma. Os

códigos são hierarquizados, podendo, inclusive,

comportar numerosas gradações. E a leitura

profunda de um texto consiste em abstrair estes

conceitos e produzir uma hermenêutica

harmonizando todos estes níveis. A teologia, em

linhas gerais, é isto: uma leitura sistemática e

profunda das Sagradas Escrituras. O código

profundo é sempre metafísico e, portanto, filosófico.

O problema da transformação do livro terceiro de O

Capital só chega a ser um problema para quem não

vislumbra a concordância profunda da obra consigo

628

mesma. O mesmo pode ser dito sobre a Bíblia da

castidade recomendada por Paulo de Tarso e o

livro do Cântico dos Cânticos ou o dar a túnica e a

quem não teme o talento único para o que já tinha

dez. Na tradução judaica a concordância profunda

toma um caminho totalmente inusitado. Como no

hebraico a letra possui ao mesmo tempo um valor

alfabético e numérico, casam-se os valores

simbólicos, numéricos e místicos numa verdadeira

transmutação de aspectos quantitativos em

qualitativos e vice-versa. Esta tradição chama-se

cabala. Há quem fale em cabala cristã, que viria a

ser um prolongamento da judaica. O estruturalismo

é um esforço de compreensão profunda não só da

literatura, mas da própria linguagem. Claude Levi

Strauss é o grande nome do estruturalismo

linguístico. Penso que a teoria dos códigos se

aplica à literatura e a todos os ramos do

conhecimento. Toda ciência possui seu código e as

teorias são as tentativas de encontrar estas

invariantes. Tudo, enfim, se resume à criptografia.

O próprio homem que é o inventor e descobridor de

629

códigos é também ele um código. Ao que parece , a

razão de ser da vida inteligente é compreender a si

mesma e nós caminhamos para isso. Quando a

meta for alcançada seremos guindados a uma

condição ontológica superior e aí o desafio será

ainda mais difícil. Não duvido de que haja alguém

nos fiscalizando, e, vez por outra, averiguando

nossos avanços para se certificar em que patamar

estamos como o gourmet que abre a tampa da

panela, cheira e espia a vianda para ver se já está

no ponto ou se precisa ainda ser um pouco mais

aquecida. A literatura é a fragrância que odoriza o

olfato e a inteligência de quem nos avalia. A

literatura não puxa nem para baixo e nem para

cima o progresso da humanidade. Ela apenas é o

sinalizador, o termômetro que registra onde

estamos. A teoria da Literatura é essa

metacognição que disponibiliza a apreciação de um

ramo de atividade humana que aos olhos do leigo

não estaria submetida a nenhum parâmetro

externo. Agora, já sabemo como é que a chamada

“crítica” se apropinqua e discorre sobre a produção

630

de quem escreve por escrever e não para satisfazer

a este ou àquele.

Teologia: a ideia de um Deus racionalizável

O método da teologia é o filosófico. Popper diz que

“a teologia nasceu da falta de fé”. Isto é verdadeiro.

Aliás, há quem não desencadeie crise de fé na

filosofia, mas se vê cindido na teologia. Temos que

entender que Deus está infinitamente acima da

racionalidade humana. Ele se deixa em parte

aprisionar pela razão humana para que nós

possamos compreendê-lo. Mas quando não

compreendemos algo não devemos renegar a fé.

Pelo contrário, é aí que começa a fé. Se existe

mistério não é porque Deus quer nos fazer de

bobos, mas é porque não estamos prontos para

tudo compreender. Assim, a teologia faz aquilo que

é humanamente possível. E sobre as nossas

limitações remeta-se o amável leitor ao campo da

epistemologia. A teologia é um dos campos mais

bem tratados do conhecimento humano embora

631

seja o que mais desconhece o próprio objeto de

estudo. A teologia é ao mesmo tempo a rainha das

ciências e uma miserável. Depende de quem o vê.

Na verdade, a teologia é uma disciplina

extremamente séria, inclusive no que concerne ao

método. Já as críticas que se dirigem a ela se deve

ao fato de ela admitir certas premissas de antemão.

Só um leigo se rebela contra este problema. Porque

quem é profundo conhecedor da noosfera sabe que

todo e qualquer saber antepõe premissas

indemonstráveis àquilo que efetivamente é passível

de ratificação ou refutação. A teologia pode ser a

leitora da realidade à luz da Bíblia ou a leitura da

Bíblia à luz da realidade. As duas leituras são

válidas. A teologia pode sofrer a influência de

praticamente tudo, desde teoria econômica,

políticas, movimentos sociais, até experiências

místicas e emotividade. A liturgia pode fazer caber

dentro de si as pastorais ou as pastorais subjugam

a liturgia. Há, ora uma acentuação da fé ora uma

acentuação do agir. Há o esperar e o iniciar. Acima

de qualquer linha ideológica deve prevalecer a

632

obediência, a caridade e a noção de que tudo

passa, menos a verdade. Entre Reformas,

Contrarreformas, arrefecimento e avivamento deve

prevalecer o Cristo, o mesmo de ontem, de hoje e

de sempre. O cristianismo deve dar conta de

produzir psicologias cristãs. A ponto de a maioria

dos padres e pastores psicólogos serem

psicanalistas, o que não se acomoda com a postura

ateia de Freud. A teologia é uma antropologia. O

homem é interpretado a partir de sua origem. De

sorte que pode-se falar que nós não vamos para o

céu, nós viemos do céu. A teologia é relativizante.

Mas ela ajuda a relativizar também quem lhe faz

frente. Tudo passa a ser representação. E aí nos

damos conta de que não podemos ser escravos de

nossas próprias representações. Nietzsche não

matou Deus, ele matou um Deus. Ou seja, fulminou

uma determinada falsa representação do

verdadeiro Deus. Diria que Nietzsche fez um favor

a serviço do Reino de Deus, porque embora tenha

arrancado muito trigo junto, jogou no fogo um

punhado considerável de joio. O mesmo pode ser

633

dita em relação a Sartre, Freud, Carnap, Feuerbach

e toda esquerda hegeliana, céticos, agnósticos e

similares. Embora há séculos atrás vários autores

tivessem dado por encerrada a discussão acerca

de Deus, optando pela inexistência do mesmo, o

que se vê é uma busca intensa por Deus e por

Cristo, e, não obstante a diáspora católica, a missa

matinal dominical tem lotação garantida a ponto de

faltarem bancos para os mais jovens. A teologia

relaciona-se com a riqueza de dois modos: pela

teologia da libertação e pela teologia da

prosperidade. De fato, Deus é um Deus Libertador.

Mas o que importa para Deus é ser pobre em

espírito e uma aliançado com Deus pode ser rico

inclusive na acepção deste mundo. Já a teologia da

prosperidade acerta quando reconhece que a

bênção vem do Abençoador, mas deveria ensinar

que é melhor ter o Abençoador do que a própria

bênção. A teologia ao mesmo tempo é dogmática e

sistemática. Na verdade, uma coisa depende da

outra. Porque a palavra “dogma”, apesar de ter sido

introduzida na Língua Portuguesa é latina e

634

significa decreto. Trata-se de uma premissa de que

não se pode abrir mão. Já a ideia de sistema

significa que um único furo teórico invalida o

sistema inteiro. A ideia de sistematicidade está

atrelada à de perfeição. O trabalho do teólogo é

encontrar um sistema filosófico subentendido nas

Sagradas Escrituras. E a Bíblia é tão promissora e

tecida de tantos níveis que isto é factível numa

leitura profunda e dela podem ser extraídos

enésimos sistemas de ideias. Uma denominação

religiosa faz constar em seus estatutos uma

doutrina e muitíssimas são as suas doutrinas a

partir dos mesmos textos. É assim que se fala em

teologia judaica, teologia católica, teologia

protestante, teologia mórmon e assim por diante. a

teologia é interpretação e reinterpretação. Porque

da interpretação são deduzidos conceitos e os

conceitos são usados como mecanismo de análise

dos mesmos textos que lhe deram causa. Uma das

grandessíssimas razões pelas quais a

hermenêutica da palavra é inextinguível é a

permanente criação de conceitos que não tem fim.

635

Enquanto houver humanidade haverá criação de

conceitos. E aí o que faz o hermeneuta? Simples:

coloca o velho vinho em odres novos. Coloca os

mesmos versículos dentro de novas categorias.

Aristóteles chama a mais sublime das disciplinas de

“teologia”, que mais tarde seus seguidores

chamariam de metafísica. Claro, porque a raiz

última de todas as coisas seria o motor imóvel e

tudo o que está relacionado direta ou indiretamente

com ele. A teologia é sempre proselitista e sectária,

oposto da ciência da religião. Ele é sempre um

ponto de vista. E mesmo que haja pluralidade de

interpretações há uma concordância de fundo. A

teologia é tão ou mais ideológica do que a filosofia.

Teologia é tradição judaico-cristã enriquecida pela

perspectiva filosófica grega. É por isso mesmo que

ela é palco de diálogo e síntese. As seitas

neopentecostais se ancoram sobre a Bíblia e

repudiam a teologia. Porque a teologia deixa a

razão entrar, fazendo com que a nossa fé receba e

dialogue com o padrão do mundo. Neste sentido a

fé é uma irracionalidade. O mundo é a nossa casa

636

e não podemos fechar os olhos para aquilo que nos

rodeia, mas entender que o que vemos o fazemos

sob a ótica de um Ser que tem o poder de iluminar

isto tudo. A teologia durante séculos foi o ponto de

vista dentro do qual tudo estava cabido. Ela veio

substituir a filosofia. Hoje as chaves do

conhecimento estão com as ciências. Mas isto

significa que concomitantemente uma e outra

exerce um papel preponderante, mas não implica a

aniquilação das suas duas respectivas

concorrentes. As transformações culturais do

Ocidente e a industrialização repercutiram inclusive

sobre a teologia. As Duas Grandes Guerras

também impactaram a teologia. Vê-se com cada

vez mais clareza que as religiões desenvolvidas

são abertas ao diálogo e ao ecumenismo. O diálogo

reforça a identidade, ao contrário do que muitos

pensam. A Igreja Católica não está retraindo

porque não tem ideias, mas porque tem dificuldade

de implementar as maravilhas cogitadas no âmbito

teológico. Quanto ao amparo da noosfera, há

material abundante e riquíssimo, mas também se

637

vê uma espécie de resfriamento. No sentido de que

a orientação teológica hoje é um ressurgir medieval

porque não deu certo acompanhar o movimento da

maré social. Porque o protestantismo não aceita o

mundo, mas o rejeita e está crescendo a todo

vapor. Está se tentando montar, em toda parte, o

eixo da piedade. Ainda que isto implique cortar a

própria carne, pois sempre há os desgostosos e as

lideranças estão se dando conta de que sempre

seguir a ortodoxia da doutrina a agradar o povo. O

povo gosta de populismo na política, mas não na

Igreja.assim como na Igreja Católica quase só se

ouve teologia e quase nada da Palavra de Deus, no

evangelismo o texto é tudo e não há um espaço

teórico para amenizar o confronto entre a

literalidade do texto e o nosso contexto. Quem sabe

faltaria unir as perspectivas. É preciso evitar os

extremos entre intelectualismo e apelatividade. No

sentido de que não se recaia nos extremos da

divagação e da coação indecorosa. Há como extrair

da teologia, tudo é uma questão de escolha. De

modo geral, não é bom que a Igreja seja nem

638

eclesiocêntrica e nem assembleiocêntrica, mas

antes de mais nada cristocêntrica. A teologia é a

técnica de atualizar a compreensão da Bíblia ao

longo dos tempos. É uma pena que o curso não

seja buscado como uma realização existencial, mas

apenas por aspirantes ao sacerdócio e ao

pastoreio, e, neste último caso, nem todos os

pastores possuem formação superior. A teologia

consegue transmitir melhor do que a filosofia um

cadinho de dignidade ao homem. Somos

importantes por sermos imagem e semelhança do

que há de mais importante no universo. A teologia

abarca diversas subdisciplinas como hermenêutica

teológica, antropologia teológica, hamartiologia,

História da Igreja, pastoral, liturgia, direito

canônico,cristologia, pneumatologia, administração

paroquial, escatologia, ecumenismo, catequese, e

tantas outras. A bibliologia é a mais focada para as

Sagradas Escrituras. Um dos grandes ganhos da

ascensão do pentecostalismo no Brasil é a

facilidade de se fazer um curso de teologia,coisa

que no passado ficava adstrito aos aspirantes ao

639

presbiterato. Existe uma vontade diretiva e uma

permissiva da parte de Deus. Na diretiva Deus

adrede faz acontecer. Na permissiva ele só

concorre no resultado por anuência ou omissão. A

Reforma foi uma maneira que Deus encontrou de

fazer chegar a palavra para quem estava carente

da palavra e enfastiado da burocracia. A letra mata

e o espírito vivifica. A Reforma reflete o

descompasso entre o exercício ministerial focado

para o poder e uma comunidade carente de bens

espirituais. Mas mesmo no que se refere ao espírito

a Igreja Católica continua cumprindo um importante

papel porque há quem nela se encontre

plenamente. A começar pelos seus próprios

dirigentes. O ensino da teologia está sujeito a

políticas pedagógicas que traçam diretrizes para o

conteúdo e para a didática. A teologia é colocada

na perspectiva da pregação, do ensino e da obra.

Há uma diferença entre pregação e ensino, pois

enquanto que a primeira é aconselhativa,

imperativa, exortativa e admoestativa o ensino não

quer trabalhar tanto o coração, mas o intelecto.

640

Para clarificar conceitos e elidir heresias. O

neoconvertido é um animal feroz e a teologia

suavemente o domestica. Porque a espiritualização

da fé educa a paixão. A teologia nos deixa mais

centrados. A teologia relativiza o fanatismo. A

teologia amplia compreensões e horizontes,

contextualiza nossa fé em todos os sentidos,

inclusive culturalmente. A teologia é o esforço do

homem de compreender a Deus, a si mesmo, a

partir da ótica de filho de Deus e a relação de Deus

e o homem. Se a Bíblia é um sinal de trânsito a

teologia é uma tentativa de compreender este sinal.

Não é todo livro que possui um conteúdo tão denso

a ponto de requerer para si uma disciplina

específica. Também não é todo livro que possui

uma estrutura tão coesa a ponto de não naufragar

em função daquilo que poderia vir a ser

contradições. Até as aparentes contradições ou

desencontros da Bíblia guardam um sentido

teológico. Porque sem num evangelho existe um

Simão Cirineu para ajudar a carregar a cruz de

Cristo, noutro evangelho, o de João, Cristo carrega

641

a cruz sozinho para mostrar que Cristo é insub-

rogável. Lendo teólogos famosos, católicos e

protestantes, vejo que o texto é de uma

profundidade, de uma densidade e de uma sutileza

incríveis. Isto é reflexo do acúmulo de

conhecimento amealhado nesta área. Porque a

soma de aspectos quantitativos gera uma mudança

qualitativa. Em que pese Cristo ser a revelação total

dos planos de Deus Pai diria que há uma perene

revelação da Palavra de Deus ao longo do tempo.

Os fatos históricos sacodem e suscitam novos

sentidos à tradição consignada na Palavra de Deus.

A teologia é um misto de obediência e ousadia.

Obediência porque admite como absolutamente

verdadeira a Bíblia e ousadia porque intenta

compreender pela razão aquilo que transcende

toda racionalidade. O duro de ser ao mesmo tempo

teólogo e autoridade eclesiástica é que o que

escrevemos nos deixa pastoralmente limitados. Tal

como aquele doutrinador advogado que protestava

num processo por uma medida que reputava

incabível nas lições do manual de sua autoria.

642

Defender exacerbada ortodoxia em matéria de fé é

como ser partido de oposição que se torna governo

e reprisa o que criticava nos antecessores. Hoje em

dia chega-se a falar em “mercado” dos teólogos

encetando para a capelania hospitalar, escolar e

militar. Na verdade, as tendências apontam uma

procura crescente por este curso e por esta

disciplina. O fato é que o teólogo estuda com quem

ele se relaciona e o que ele faz é muito mais do que

prestação de um serviço. E se o operário é digno

do seu salário, quem ministra a palavra de cura, de

bênção, de profecia e de aconselhamento não deve

fazê-lo pelo vil metal. A teologia ocupa o ápice da

noosfera pura, mas os subníveis teóricos lhe

afetam porque há sempre uma troca entre a

abstração e a concreção. Não raro, se veem padres

marxistas e pastores psicanalistas, embora tanto o

marxismo quanto a psicanálise sejam materialistas

no nível da decodificação. A noosfera é esse

âmbito maior em que os níveis superiores afetam e

são afetados pelos inferiores, assim como os

paralelos são afetados pelos outros paralelos. E aí

643

se chega a uma cesta de valores que gira em torno

de caridade ao hipossuficiente, ao diferente, ao

meio ambiente, ao globalismo, ao ecletismo e aos

valores centrais do cristianismo. Mas os ruralistas

usam o dominai a natureza para justificar a

exploração da Amazônia assim como o amor ao

próximo para os ambientalistas engloba todos os

tipos de vida e não só a humana. O cristianismo

pode ser um “dai a César o que é de César” e pode

ser também “quem sabe faz a hora, não espera

acontecer”. Em nome da melhoria das condições de

vida num ambiente pode se ver maniqueisticamente

o mal na figura do patrão, ou ver a oferta do dízimo

como melhor meio de se alcançar a prosperidade,

ou seja, deduzir 10% daquilo que supostamente já

seria pouco. Posturas antitéticas são igualmente

justificáveis. Os déspotas recorriam a Deus para

justificar seu poder e há quem diga que o céu é

anárquico porque Deus também o é. Esta é uma

das formas possíveis de compreender ma

comunhão dos santos. As perspectivas teológicas

engendram as chamadas congregações. Pois uns

644

são adventistas, outros batistas, outros

assembleanos, outros pentecostais, outros

metódicos, outros protestantes, outros ortodoxos,

outros esotéricos, e assim por diante. Entre todas

elas há uma concordância de fundo. Crê-se em

Deus, Triuno para a maioria delas, na imortalidade

da alma e na moral entendida como amor e

respeito ao próximo. Como tudo na vida, mas com

mais ênfase, a teologia não existe para ser sabida,

mas vivida. Mais fácil chega o analfabeto ao céu

que é piedoso do que o doutor em teologia

dogmática que não superou certas fortalezas em

seu coração e que ainda necessita passar por um

profundo sentimento de quebrantamento.

História do pensamento econômico: a ideia de

evolução nas ciências econômicas

Platão é um dos inauguradores do pensamento

econômico ainda que muito embrionariamente. Em

sua República lança a proposta de socialização da

riqueza. Já Aristóteles diz que é honroso ser uma

645

família rica, porém, de acordo com sua doutrina de

epiqueia reprova duramente a avareza. Aristóteles

aprova o modo de produção escravagista que tem

por suposto a supressão da liberdade da maioria

das pessoas. Quem se destaca no pensamento

medieval é Tomás de Aquino. Discípulo der

Aristóteles, o doutor angélico defende o “preço

justo”. O pensamento econômico, no entanto,

começa a florescer com a formação dos Estados

Nacionais. País forte é país rico. Assim, tudo deve

estar focado na balança comercial. Ela deve ser

superavitária sempre. Deve-se exportar muito e

importar pouco. O mercantilismo teve como uma de

suas grandes expressões Jean-Baptiste Colbert,

Ministro das Finanças de Luís XIV que teorizou este

pensamento. Não importava se o povo era pobre,

era o Estado quem tinha que ser rico. Depois do

mercantilismo e, no diapasão dele, quem se

destaca é François Quesnay com a fisiocracia.

Segundo Quesnay, e temos que ter em mente que

os principais comodities da balança comercial da

época eram produtos agrícolas, a agricultura é o

646

único ramo de atividade que produz riqueza.

Porque na agricultura a semente rende por 30, 60 e

100, para fazer alusão aos evangelhos. Há

multiplicação física. Para os fisiocratas a

manufatura e o comércio nada produzem. Porque

na manufatura só há transformação e não

verdadeiramente produção. Adam Smith contesta

os mercantilistas. Smith é reconhecido

universalmente como o fundador da economia

enquanto ciência moderna. Para Smith o Estado

não deve intervir na economia porque o mercado se

autorregula sozinho pela mão invisível que é a lei

da oferta e da procura. Dizia Smith que a riqueza

de uma nação consiste na soma da riqueza de seus

cidadãos em sua individualidade. Como se vê, há

numa leitura mais profunda um liberalismo que é

não só econômico, mas filosófico também. E por

falar em liberalismo filosófico trago à baila meu

companheiro de letras Jeremy Bentham que

defendia a teoria do utilitarismo. Ou seja, o que

determina o valor de troca de uma mercadoria é o

seu valor de uso. Ele defendia a maior felicidade

647

possível para o maior número possível de pessoas.

E o instrumento de efetivação dessa felicidade seria

inclusive o mercado no seu sentido mais amplo.

Jean Baptiste Say ficou famoso na França por

popularizarf a obra de Adam Smith neste país.

Thomas Malthus ficou célebre por defender a ideia

segundo a qual a população cresce

geometricamente e os meios de subsistência da

agricultura aritmeticamente. Os fisiocratas estavam

errados ao dizer que só a agricultura é produtiva,

mas em uma coisa estavam certos: todos nós,

todas as pessoas de todos os ramos da atividade

econômica são alimentados pela agricultura. Da

mesma forma que todos compramos utilidades

oriundas da produção fabril. David Ricardo teve o

mérito de dizer que são três os ingredientes da

atividade econômica: terra (natureza), trabalho e

capital. David Ricardo antevia inclusive,

perfunctoriamente, a teoria da mais-valia que iria

ser exaurientemente desenvolvida por Marx. Karl

Marx mostra que a origem da riqueza está no

tempo de trabalho extra durante o qual o

648

trabalhador oferece ao dono dos meios de

produção porque já produziu a riqueza necessária

para reproduzir a si própria. A força de trabalho,

leia-se, mão de obra, é a única mercadoria que tem

a prerrogativa de reproduzir a si mesma e além de

si mesma. A mão de obra é capital variável. Marx

discerne capital constate e variável e fixo e

circulante. Marx enaltece a economia como a

rainha das ciências porque o motor da história é o

desenvolvimento das forças produtivas e a história

nada mais é do que a história das lutas de classe.

Os neoclássicos, dentre os quais se acham León

Walras e William Santley Jevons, defendem a ideia

de que a tensão não é entre capitalistas e

proletários, mas entre vendedores e consumidores.

Resgatam as teses de Adam Smith e David

Ricardo. Vilfredo Pareto fala da utilidade marginal.

No sentido de que a utilidade de uma mercadoria

está atrelada à sua quantidade. Quanto maior a

quantidade, menos útil. O ótimo de Pareto é a

identidade entre a real demanda de uma utilidade e

a quantidade exata da oferta. É, em síntese,

649

identidade entre oferta e demanda. A Escola

Austríaca que abarca pensadores como Eugen Von

Böhm-Bawerk, Friedrich Von Wieser, Joseph

Schumpeter, Ludwig Von Mises e Friedrich Hayeck

analisam e explicam os ciclos econômicos. Keynes

também se ocupa de ciclos econômicos, mas

acredita no poder de gerá-los e administrá-los.

enquanto que os autores explicam as crises pelos

ciclos econômicos, Keynes leciona como superar a

crise fazendo com que o Estado intervenha em tais

ciclos. De acordo com Keynes o Estado deveria

comprar as empresas estratégicas falidas e pagar o

salário dos trabalhadores que iriam despender seus

salários na aquisição de bens, o que aqueceria a

economia arrefecida pela crise. Os neoliberais são

os autores que criticam Keynes. De acordo com os

neoliberais o Estado é ineficiente, um enorme

cabide de empregos. As empresas estatais seriam

pouco eficientes devendo ser privatizadas. De

acordo com os liberais as empresas estatais

deveriam ser alienadas a preço de banana porque

só dão despesa, além de não dar lucro. É como se

650

o Estado cumprisse uma importante função num

período de crise e, passada a crise, ele poderia ser

descartado, retirando-se da economia. Os

neoliberais ainda diziam que o Estado atrapalharia

a livre-concorrência por subsidiar empresas, o que

elidiria o desenvolvimento privado destas

atividades. Em linhas gerais, pode-se dizer que a

economia muda porque seu objeto de estudo muda.

E que um discurso que é profundamente

conveniente num momento histórico pode não sê-lo

em outro. A economia está diretamente atrelada à

política porque o Estado é sempre o cidadão mais

rico de um país, além de ser sócio de toda pessoa

física e de toda pessoa jurídica através da

tributação além de ditar diretrizes no mercado

financeiro como câmbio, crédito e normas

bancárias. Não concordamos com o materialismo

histórico, mas anuímos que antes de o ser humano

estudar, orar, dançar e amar ele precisa comer,

vestir-se, adquirir bens indispensáveis à vida e à

saúde.

651

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta obra foi escrita pela neto da Dona Irene Seidel

e, ao que parece, não será nem a primeira e nem a

última obra de sucesso oriunda da feliz e sulfurosa

combinação do fosfato judaico-alemão. De tempos

em tempos a mescla proibida agita as estruturas do

mundo da noosfera. Claro que a obra deixa muito a

desejar. Quanto mais pretensiosa a obra, mais

aquém do seu objetivo e mais facilmente alvejável

pelos críticos. Esta obra é extemporânea, para

tomar um vocábulo caro a Nietzsche. Porque

vivemos na Era da Especialização e a filosofia e

todos os conhecimentos científicos propugnam pela

inalcançabilidade da totalidade. Em nossa teoria

oumperiforalógica defendemos o inverso disso.

Pois metanarrativa é essencialmente totalidade.

Enquanto que em nossa obra “Comportamento

como expressão da metanarrativa” teorizamos

sobre a metanarrativa na sua pureza, aqui não

ficamos na metacognição, ou seja, na teoria acerca

da teoria, mas no nível menos abstrato que é o da

652

teoria em si. Este foi o espaço em que colocamos a

nossa visão de mundo. O leitor pode, calcado na

mesma teoria da metanarrativa, escrever outra obra

tencionando cumprir o mesmo objetivo. É como se

na primeira obra fôssemos Marx e Engels

escrevendo A Ideologia Alemã em que explicam o

materialismo histórico e logo fôssemos Eric

Hobsbawn escrevendo A Era dos Extremos

aplicando o método dialético à concatenação de

uma série de atos. Isto significa que eu a um só

tempo desenvolvi um método e provei que ele é

frutífero do que é produto a presente obra. A

metanarrativa, como vimos, é una e polivalente. Os

pontos de vista são reciprocamente externos. Cada

um deles é o primaz quando o expectador se

posiciona a partir dele. Há uma fungibilidade entre

premissas e corolário. A presente obra é mais do

que uma grande maratona intelectual, conquanto

pensar é a ginástica da alma, é o meu mundo, o

meu universo. Quem sabe, os intelectualmente

mais traquejados pensem: que limitação! Sim, mas

a metanarrativa é dinâmica, ela é como a bola de

653

neve. Aqui está um marco. Mas o marco vai sendo

cada vez mais levado adiante. Esta obra é uma

perfeita metanarrativa, pois é uma narração que

tem a capacidade de transcender a si própria. O

conteúdo narrado traz consigo mais informações do

que aquelas evidentes que saltam aos olhos. Entre

as linhas estão as sublinhas e supralinhas. Cada

linha comporta antecedentes e consequentes

invisíveis. O narrador luta contra si mesmo. Pois

tenciona ampliar horizontes quando ele próprio é

fator chave de limitação. É mais ou menos como

fazer alongamento: estendo ao máximo meus

braços, mas não consigo ir além deles mesmos.

Penso que a Enciclopédia das Ciências Filosóficas

e a Fenomenologia do Espírito de Hegel podem ser

tidas maiores que esta obra pelo simples fato de

terem sido escritas num tempo muito remoto. De

sorte que me arrisco dizer que aqui supero Hegel.

Não porque eu seja mais genial do que ele, mas

porque meu contexto me permite fazer isto. Aliás,

nos alinhamos com Hegel ao postular que tudo é

pensamento, tudo é ideia. Metanarrativa nada mais

654

é do que um plexo complexíssimo de ideias. Mas

enquanto que Hegel coloca a metanarrativa a partir

do Eu Absoluto, nós afirmamos que existem

metanarrativas autotópicas e heterotópicas, sem

haver prevalência de uma ou de outra. Não me vejo

como um clássico, embora amanhã a crítica possa

me reconhecer como tal, mas como um leigo bem

informado. Até porque fazer metanarrativa não seja

prerrogativa de grandes teóricos. Espero que este

meu trabalho desperte o escritor que há em cada

um. A mesma estrutura que encontramos no

sumário poderia ser desenvolvida de milhares de

formas diferentes e é isto o que faz a metanarrativa

ser tão bela. O metanarrador não é um gravador.

Ele pode dizer a mesma coisa de muitíssimas

maneiras diferentes. E como não há sinonímia

absoluta dentro do mesmo idioma e nem mesmo e

muito menos entre idiomas diferentes é que

dizemos o mesmo, o mesmo diferente. Lógico e

ilógico ao mesmo tempo. Nada mais belo do que

aquilo que precisa ser feito e refeito ao longo do

tempo. Porque tudo é treino e já viemos ao mundo

655

de certa forma adestrados pelas gerações

anteriores. Precisamos não tanto aprender, mas

reaprender. E reaprendemos o já feito e agregamos

conhecimento. Para usar um versículo dos

evangelhos, o escritor “é como alguém que tira

coisas velhas de um baú”. O velho, não raro, vem à

tona com gosto de novidade, apesar de vetusto.

Uma obra como esta é um convite a cada estudioso

de cada uma das respectivas áreas a se voltar para

as ciências paralelas sem perder o foco de sua

área de concentração. Quisemos mostrar que o

foco de concentração pode ser qualquer um, de

forma que em última instância, o que determina a

perspectiva matriz é o histórico de vida de cada

estudioso. A filosofia é racional e a economia

também. De modo que há quem se dedique a

ambas. Mas não há nenhum princípio de cunho

estritamente racional que em leve a eleger esta ou

aquela mira como a mira das miras. Embora a obra

tenha tido o escopo de abarcar a totalidade, ela se

moveu de um canto a outro de especificidade em

especificidade. Como se para afirmar uma

656

expressão infinita em matemática precisássemos

afirmar o um, o dois, o três, e assim por diante. em

suma, o uno e o múltiplo são a mesma coisa e a

totalidade do universo está contida na menor das

partes.

Fim