2
SUMÁRIO
Aspectos introdutórios............................................ 22
A metanarrativa como relação de coisas ............... 23
O princípio da seleção............................................ 27
O social e o individual ............................................ 28
O mundo de Platão ................................................ 30
A angústia humana ................................................ 31
Trabalhando conceitos fortes para sub-rogar noções toscas ............................................... 33
Insatisfacibilidade intelectual .................................. 35
Materialidade: peça da metanarrativa .................... 36
Relações familiares ................................................ 39
Paranormalidade .................................................... 40
Começando pela negação...................................... 43
O inimigo da metanarrativa: o poder ...................... 45
Lateralidade............................................................ 49
Limites da metanarrativa ........................................ 51
Premissas e corolários distintos comoelemento de união.................................................. 55
A decadência da conversão ................................... 73
O papel da mulher nos dias de hoje....................... 101
3
Inteligência como fenômeno coletivo ..................... 111
Público: o que está no mais íntimo......................... 114
Fungibilidade de conceitos..................................... 115
A atualidade da Escolástica ................................... 116
O que mais funciona no mundo.............................. 120
Etnotolerância ........................................................ 121
Metanarrativas heterotópicas ................................. 130
Deus....................................................................... 131
Mito ........................................................................ 132
História ................................................................... 132
Comunidade........................................................... 133
Ordem jurídica........................................................ 133
Natureza................................................................. 134
Economia ............................................................... 134
Religião .................................................................. 135
Arte......................................................................... 135
Filosofia .................................................................. 135
Literatura ................................................................ 136
Ciência ................................................................... 136
Planeta ................................................................... 136
A metanarrativa autotópica: o sujeitometanarrador.......................................................... 137
4
Metas a atingir........................................................ 146
A causalidade......................................................... 155
Papel da metanarrativa em um mundo emebulição.................................................................. 162
Oumperiforalogia: solução para todos osproblemas............................................................... 187
História do universo: a ideia de cosmos................. 201
História do planeta: a ideia de planeta ................... 215
História da vida: a ideia de propósito vital .............. 230
Química: a ideia de essência ................................. 244
Física: a ideia de generalização ............................. 257
Biologia: a ideia de evolução dosorganismos............................................................. 271
Evolucionismo: a ideia de evolução de ummodo geral ............................................................. 284
Antropologia: a ideia de homem............................. 298
História: a ideia de narração de tudo...................... 313
Cultura: a ideia de representação .......................... 326
Sociologia: a ideia de sociedade ............................ 347
Geografia: a ideia de ubiquidade............................ 360
Religião: a ideia de religação ................................. 374
Formas primitivas da vida religiosa: a ideiade alma .................................................................. 388
5
Judaísmo: a ideia de um Deus único ..................... 403
Cristianismo: a ideia de um Deus Homem ............. 418
Ocultismo iniciático: a ideia de aristocracia ............ 432
Matemática: a ideia de quantificação ..................... 448
Economia: a ideia de riqueza ................................. 463
Capitalismo: a ideia de autorreprodução................ 477
Comunismo: a ideia de capitalismo deEstado .................................................................... 492
Política: a ideia de organização de Estado ............ 511
Filosofia: a ideia de pensar as ideias ..................... 526
Epistemologia: a ideia de pensar as ideias ............ 541
Estética: a ideia de belo ......................................... 555
Lógica: a ideia de identidade.................................. 570
Psicologia: a ideia de comportamento.................... 585
Direito: a ideia de justiça ........................................ 601
Teoria da Literatura: a ideia de contexto ................ 614
Teologia: a ideia de um Deus racionalizável .......... 630
História do pensamento econômico: a ideiade evolução nas ciências econômicas ................... 645
Considerações Finais............................................. 651
6
Prefácio
O autor não fala, mas brada através das letras,
provocando o leitor a uma reflexão, o incitando a
uma busca de si mesmo usando como pedra
angular o conhecimento maior de si, do mundo em
que está inserido e como o percebe. Pode-se
perceber e regozija-se com o intento do autor que
tem seu punctum saliens a apresentação da
verdade como tal, em dado momento, daquilo que é
apresentado. Quando estamos em contato com sua
escrita, ficamos estupefatos com o belo estilo de
abordagem de temas diversos, os quais nos
provocam a querer mais desta água que não sacia
nunca a sede daquele que está a perseguir uma
verdade maior, bem como promove mudanças nas
periferias ao centro de cada qual, além do mais
para quem compreende que sapientes est mutare
consilium.
Sinaliza o autor, em cada tópico abordado, uma
síntese de verdades possíveis e encontradas até
7
dado momento, mas o que vem a ser a verdade
que se encontra e se reconhece como tal, deixando
o leitor numa busca dela ou ela encontrando, sendo
este um vocábulo que tem provocado injustiças de
toda ordem por aqueles que creem que a detêm
como possuidores inatos? Parecemos estar
conscientemente ou não à procura da verdade, mas
o que pode vir a ser designado por verdade?
Popularizam as mentes menos pensantes que a
verdade tem dois lados para resumir o insucesso
de seus raciocínios a respeito. Profanar que cada
ser humano tem sua verdade e deve ser assim
mantida imaculada é, resumir mui
insubstancialmente os limites que temos impostos
dentro de cada qual. Já pensar numa verdade
absoluta seria cair numa dimensão de
transcendência com a qual não podemos anuir tal
possibilidade, salvo a nos direcionarmos em
referencia a Deus. Agora, pensar numa verdade
universal seria remeter-se para uma referência
platônica, como o mundo das ideias, mundo das
verdades, mundo das essências, sendo a mesma
8
fundamentação que nos levaria a acreditar numa
possibilidade platônica de amor.
Alguns sinalizam ser a verdade criada pela mente e
projetada no corpo, mas como ainda crer na
dualidade cartesiana, nesta categoria mente-corpo?
A suposta mente que fala, para mim, trata-se de um
emaranhado de agenciamentos, de linhas que se
dobram e redobram num movimento de invenção
de profundidades que só existem no espaço da
molaridade, da visibilidade, sendo que nisso a física
quântica tem ajudado muito a desmistificar, digo a
respeito dessa primazia da consciência e da
molaridade atômica do real. Diria que a mente não
mata o real, mas ela o inventa, assim como é
inventada por ele dinamicamente, e ainda no final
nos depararemos com o velho ranço modernista da
física clássica em detrimento doutra.
Teria Lacan e outros psicanalistas e filósofos
cometido pecado exatamente pelo fato de não
conseguirem desprender-se de uma visão
representacionista da realidade diante da busca da
verdade?
9
Crer-se do lado da verdade única, inabalável,
suprema, revela a impossibilidade de reinventar a
própria vida. Se houvesse a verdade desta
maneira, a vida estaria empobrecida em sua
totalidade. Existe, isto sim, como diria Foucault,
regimes de verdades. As verdades são produções
discursivas que estão implicadas nas relações de
poder que nos forjam.
Mas acho deveras enriquecedor os paradoxos, ao
que afirmava meu amado Nietzsche que os
mesmos existem para serem vividos, não para
serem superados, numa visão dialética que busca
síntese para tudo, não sendo também uma boa
tentativa linguística de invenção de universos.
Muitos de nós temos uma retroação compulsiva do
gozo do outro, mas nem sempre despertamos
intensidades suficientes a ponto de desestabilizar
as máscaras hegemônicas que em geral nos
vestem. Geralmente discursos ininteligíveis são
máscaras usadas que nos aprisiona a um
cientificismo acrítico e em nada transformador,
podendo ser um dispositivo de poder, buscando
10
silenciar algumas vozes para retificar outras. Já o
autor deste livro leva a uma comunhão do leitor
com as palavras e seus significados e reavaliação
de seus significantes, não decretando ponto final
nas declarações, mas brindando com novas
perspectivas diante do pensar. Entende bem o
escritor desta obra que nós não temos que
dissolver a verdade, mas desdobrá-la.
A verdade passa a ser uma visão simbiótica da
semântica socrática, pois como nós, seres
imperfeitos, podemos ter a condição de
compreender a perfeição ou a verdade? Sobre isso
nos alertou Renê Descartes no seu livro "Princípios
da Filosofia".
A parafernália de nosso mundo cibernético, que
tanto nos tem facilitado deveras nossas ações
cotidianas, nada diz respeito ao avanço da
conceptualização mais coerente da verdade.
Afoitos, corremos feito gazelas de um lado ao outro
a procura do muito, quase nada de coerente é
introjetado em nossa Alma. Os mecanismos
eletrônicos têm sido muito manipulados, pela
11
maioria, como modernos instrumentos de volúpia e
desrespeito a si mesmos. O deleite carnal está
ainda acima dos interesses pela busca do
conhecimento da verdade em muitos dos seres
viventes, dito humanos, isto é, de todos nós.
O mecanismo que mortifica a busca da verdade diz
respeito à luta incessante dos seres que buscam a
sua marginalização, que procuram sonegar,
dissimulá-la e a asfixiar. Mesmo quando conhecem
a verdade, quando a negam e a substituem pela
ficção, até mesmo como meio de encobrir a
tormenta de suas almas a respeito do que ainda
não querem tomar pacto como verdade “particular”
ou pluralizada.
Por que resolvi falar um pouco a respeito do
vocábulo verdade aqui? Pois me deparei com uma
literatura onde o autor, mui sabiamente, deixa clara
a busca da mesma em diversos tópicos, não
somente para si, mas propõe este um encontro aos
leitores e os presenteia com ferramentas ímpares.
Cléverson Israel Minikovsky percebe cada
temática e as manifesta de forma conceitual e
12
informativa sub specie aeternitatis, proporcionando
aos ledores um diálogo como poucos escritores
conseguem brindar aos amantes das letras, numa
verdadeira metanarrativa.
Carlos Alberto Hang
Prefácio
Cléverson Israel Minikovsky nasceu para
marcar a humanidade. Desde que o conheci,
percebi que uma nova história existiria para a
filosofia. Na presente obra ele se superou, criando
uma grande síntese e formando um sistema coeso
de sua filosofia. Ele é um sol que guia todas as
coisas vivas, uma luz que revela o conhecimento
mais sublime. Quando folheamos essa obra,
percebemos que nos iniciamos na filosofia, em um
verdadeiro rito de passagem. Ademais, o próprio
autor trata desse rito com propriedade em um dos
capítulos. Também vemos que, como ele mesmo
disse: “O filósofo não é frio, ele apenas ama de
13
uma forma diferente”. Percebemos então que a
doutrina da metanarrativa veio para ficar, uma vez
que abarca uma série de compreensões sobre a
realidade. Aqui o tema é desenvolvido em um
tratado. A oumperiforalogia é finalmente utilizada
com mais afinco, nos mostrando uma visão
totalizante sobre diversos setores da sociedade.
Percebemos também o amplo conhecimento de
economia e de marxismo por parte de Minikovsky, e
o que pode ter um aspecto bem prático. Desde sua
obra sobre Marx, até aquelas mais recentes que
venho acompanhando, sei que ele funda uma nova
escola e que fica para a posteridade. Apóio esse
saber de forma incontinenti. Temos assim uma
profecia, algo que vai além de mero raciocínio, nos
levando a pensar e até a intuir algo sobre a nossa
existência. O modelo de civilização proposto se
consuma em uma política, onde vemos o aspecto
prático do minikovskysmo. Obra fundamental desse
autor, que devemos ter nas prateleiras. Um livro
que se torna guia em nosso mundo
contemporâneo. Não perca essa oportunidade.
14
Tenha uma ótima meditação sobre esse livro. Boa
leitura.
Mariano Soltys, autor de 22 livros
Prefácio
Difícil falar sobre uma obra de tamanha
profundidade como esta. O autor se encoraja a
desvendar mistérios insondáveis da mente humana
e suas repercussões no comportamento de cada
indivíduo. Pelas inúmeras referências que são
citadas no desenvolvimento das ideias vê-se o
empenho despendido pelo autor em pesquisas
inúmeras, tantas e tão profundas que exigem do
leitor debruçar-se sobre o livro e reconsiderar a sua
existência, dada a riqueza da diversidade e
complexidade. Muita coisa tem sido dita e escrita
sobre o assunto objeto da obra, no entanto novas
luzes surgem aqui, ajudando-nos a ter uma visão
mais abrangente dos mistérios que mais nos tocam
no nosso cotidiano sobre esse algo insondável que
15
é o ser humano. Muita coisa ainda restará por
pesquisar e desvendar pois, como escreveu Aldous
Huxley, “a cauda do infinito está virgem de sal”, no
entanto, esta obra muito nos ajudará nesse sentido,
de pelo menos nos aproximarmos cada vez mais do
infinito, que nunca é alcançado, posto que infinito.
Rodolfo Minikovsky
Prefácio
Cléverson Israel Minikovsky, nesta obra,
não é um mero filete de mel a escorrer de um
rochedo, mas é um Rio Amazonas que se arranca
dos Andes e no seu caudal mundial vai abastecer o
Oceano e irrigar o Mar de Caribe; ele, nesta
Metanarrativa, é um Vesúvio que soterra
Herculano, Pompéia e Estábias numa só de suas
grandes erupções. Nele podemos navegar, escavar
e encontrar tesouros. É preciso buscar, agir,
encontrar.
16
Nesta Metanarrativa Cléverson extrapola
tudo o que já se disse neste gênero. Toda esta obra
é uma pura transcendência. Quem a poderá captar
em toda sua profundidade, em toda sua cósmica
amplitude e toda sua universal dimensão é um
verdadeiro sábio. Certamente não é tarefa para
qualquer pessoa. Mas felizmente sempre há
espíritos iluminados que sabem filtrar os raios
solares e transformá-los num belo arco-íris, a
grande síntese de todas as cores. É este o livro.
Ser sábio é saber interpretar a
universalidade da sabedoria, é saber colher o
néctar de cada beleza espargida na Criação, é
conseguir de cada fato concreto existente arrolar as
causas e consequências numa só e grande
mentalidade espiritual capaz de, na zona dos
pensamentos - com uma inesgotável força mental,
guiar as emanações que do ser humano devem
extrapolar numa constante reestruturação de seu
espaço físico-mental-espiritual. É o que, sutilmente,
a Metanarrativa nos sugere com clara leveza e
profundo saber.
17
Se o mundo hodierno está carente de
pensadores, há uma plêiade que surge qual Sol
brilhante a deixar seus rastros de luz e saber para
que do paradoxo mental contemporâneo surja
brilhante um novo paradigma de alegria, felicidade
e sólida prosperidade. É o que Minikovsky nos diz
em sua Metanarrativa: “A grande genialidade é
descobrir qual o serviço intelectual que necessita
ser feito”. É desse saber que hoje se está tão
carente. É como ele também afirma e pleiteia: “O
retorno da realidade a si mesma”.
Os pensamentos de Cléverson Israel
Minikovsky nesta Metanarrativa são realmente
profundos, curiosos e repletos de incentivos a
idéias criativas, interpretativas e construtivas, como:
“Até a ignorância é um tipo de cultura”; ou “O
genuíno metanarrador nunca está pronto”; ou ainda
“O erro mais crasso de todos é desnudar a coisa
em si”; ou veja ainda esta: “A metanarrativa é a
essência da natureza”.
Se alimentar-se corretamente é o segredo
de bem viver, ler a boa leitura é a chave do saber,
18
esta Metanarrativa é um livro que faz pensar a todo
bom pensador, aumenta a sabedoria de quem já a
tem e traz prosperidade a todos que a buscam. É
um livro que deve ser lido, estudado, pesquisado
por qualquer pessoa que tem amor a si próprio,
aprecia a cultura e quer o progresso seu e de
todos.
Dr. José Kormann
PREFÁCIO
Eis mais um livro do Pensador São-
Bentense Cléverson Minikovsky.
É um trabalho largo, abrangente, com
pretensões de explicar a totalidade da vida. Livro
polêmico, porém respeitável.
Não é tarefa minha analisar e julgar a
forma, o estilo, a organização do livro e as posições
intelectuais do autor. Mas sim o conteúdo. E não
poderia deixar de parabenizá-lo, até porque seu
comportamento intelectual é raro entre pessoas
19
com menos de 35 anos de idade.
Concordem ou não com a obra, o Brasil
seria muito melhor se tivesse ao menos uns trinta
por cento de pessoas acima dessa massa de
idiotas, mesmo com o crescimento dos protestos
nas ruas em 2013.
Diz o autor que o Pensador busca acima de
tudo o prestígio. Eu não concordo e citaria o próprio
autor, cujo potencial humanístico e gana intelectual,
produz porque sua própria alma exige, seu próprio
ser grita. Eu lembro quando Erich Fromm dizia
muito bem que o homem, principalmente o
intelectual jamais se contenta em "viver" como um
dado jogado de um copo. Ele quer fazer história. E
Cléverson é um intelectual até à medula.
Pessoalmente o que mais me realiza na
vida é a contribuição que dou -ou suponho dar - à
melhoria da vida humana - em geral, da história
antropológica, e o sentimento de estar cumprindo
um pacto com as forças transcendentais
20
subjacentes nas interconexões fraternais,
libertárias, altruísticas, espiritualmente evolutivas. O
que mais me tem realizado na vida é ouvir um
incontável número de pessoas dizer-me que
escapou da depressão e do suicídio, por minha
causa: por ter lido alguma obra minha, assistido
alguma Palestra, umas aulas, ou recebido
orientações existenciais, espirituais.
Fora questões deste teor -não confundir
com autoajuda açucarada -pouquíssimas outras
dão sentido à vida de um Filósofo.
É de audácias, como as de Cléverson
Minikovsky que precisamos hoje. Audácia filosófica.
Enfim, Metanarrativa da Civilização é esta audácia.
A racionalidade do autor, saudavelmente se
contradiz quando destila argumentos quase em
transe. É crítico, mas consegue assim ser não
sendo amargo.
É uma Metralhadora intelectual, todavia -
no bom sentido - com muitas balas de borracha.
21
Queremos dizer com isto, que não é niilista, não é
iconoclasta muito menos conformista. E para mim,
o inconformismo não desvairado é a principal
característica do Filósofo.
É volumosa a obra, repleta de ricas
referências, um baile de cultura intelectual.
Erudição incomum hoje.
Vale a pena ler a Metanarrativa de
Cléverson Minikovsky.
Fídias Teles
(Filósofo, Parapsicólogo, Cientista Social e Poeta)
22
Aspectos introdutórios
A metanarrativa é aquilo que não se pode
transcender. Porque a metanarrativa já é uma
transcendência em relação à narrativa visível. A
metanarrativa é na noosfera o que o universo é no
mundo físico. Metanarrativa é a descrição dos
pontos e dos contrapontos. É a eterna vontade de
fazer prevalecer uns princípios em detrimento de
outros. A metanarrativa diz o que deve emergir e o
que deve sucumbir. Mas notemos bem: o bem e o
mal, o burguês e o proletário, o superego e o id
provêm do mesmo útero. É assim que para Hegel
no Eu Absoluto, Deus, está todo o bem e todo o
mal. Deus é bom e mau. De formas que satanás se
mostra mais um operacionalizador do mal do que a
sua gênese. É assim que o mesmo Deus a um só
tempo é o Deus dos Exércitos, exterminador, e é o
Deus Amor. Aliás, o próprio amor é dúbio. Porque
um ódio intenso é uma das formas possíveis de se
praticar e manifestar o amor. Não é por acaso que
os casos paradigmáticos de brutalidade se vejam
23
envolvidos cônjuges. A metanarrativa é una e
plúrima. A contraposição de forças não representa
exterioridades recíprocas ou, no máximo, só
relativamente falando. A contradição é interna, é
dentro do mesmo ser. Neste sentido, a
metanarrativa é uma luta contra o inatingível,
peleja-se contra a própria natureza. Não há como
combater racionalmente a pobreza porque ela é
parte imbricada do mundo. Enquanto houver mundo
haverá pobreza. O próprio Cristo disse “pobres
entre vós sempre tereis”. Assim como a
sexualidade sempre se fará acompanhar de
repressões. Assim como, do ponto de vista ético,
sempre haverá conduta valorosa e vil, bem e mal,
fidelidade e infidelidade. Em suma, somos dúbios
porque a metanarrativa é dúbia. A compreensão do
mundo é síntese de contrários. Mas o processo de
síntese somos nós quem fazemos. Se eu sou bom
e me deparo com o mal, a síntese poderá ser o
bem se eu seguir o preceito evangélico de retribuir
o mal com o bem. A metanarrativa é como um
instrumento de fole que preciso abrir é fechar para
24
que saia som do teclado. A metanarrativa é um
perene morrer e renascer. E o que é sofrimento do
ponto de vista individual quase nada representa do
ponto de vista coletivo ou universal. Embora o
centro de tudo seja Deus ele entra em nosso
sistema como metanarrativa heterotópica porque
entendemos que o homem seja autotópico. Ele é o
centro de tudo a partir da oumperiforalogia, porque
ela é humanismo, cuja premissa é o
antropocentrismo. Esperamos que o leitor aprecie a
obra e que reforce o time dos crentes humanistas
porque o próprio Deus é o primeiro grande
humanista. Nenhum outro gênero senão o humano
tem a feição de Deus. Nós homens somos os
prediletos do Onisciente. Somos metanarradores
porque a metanarratividade é a essência da
natureza divina. Que a graça e a paz de Nosso
Senhor Jesus Cristo esteja com todos, amém!
25
A metanarrativa como relação de coisas
A antropologia cultural nos mostra que a vida do
homem gira sempre em torno das mesmas
instâncias, sejam elas, abstratas ou concretas:
alimentação, vestimenta, habitação, sexo, família,
produção de riqueza, troca, autoridade, poder,
divisão social do trabalho, costumes, repetição,
imitação, estética, conhecimento, idioma, crença,
culto aos mortos, segredo, comportamento e rito
iniciático. Não há como fugir disso. A metanarrativa
é uma abstração conquanto se mostre como a
consciência total de tudo, é a consciência máxima
do indivíduo e, o que agora defendemos, é não só a
idealidade que se extrai do mundo, mas as relações
entre as instâncias materiais. O que segura a
desenvoltura da metanarrativa é esse retorno da
realidade a si mesma. Materialmente falando é
possível evoluir. Todavia, por mais que evoluamos,
sempre giraremos em torno destes lugares comuns.
O livro do Eclesiástico fala que “não há nada de
novo debaixo deste Sol”. O filósofo britânico Alfred
26
North Whitehead, a respeito do mundo do
pensamento disse que toda a tradição filosófica não
passa de uma nota de rodapé às obras de Platão.
Vivemos no mundo do tudo pensado. A cada dia
que passa fica mais e mais difícil pensar algo novo.
Em nenhuma outra época se escreveu tanto como
na nossa. Mas o que hoje se escreve é uma
reedição com outras palavras daquilo que já foi dito
no passado. O grande desafio é dizer algo novo. Ao
mesmo tempo em que vemos um afunilamento da
tradição filosófica por conta do tudo dito, também
se percebe que o caminho mais viável para quem
quer se destacar em relação aos seus
semelhantes, ainda que seja um único milímetro é
através do pensamento. As universidades de
prestígio podem barrar o ingresso de outras
pessoas a seus quadros, pode inviabilizar a
obtenção de títulos, mas o pensar ninguém pode
impedir. O desafio do pensamento é sair da
circularidade. Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino
e Hegel constituem a base tétrica da filosofia, mas
muito há o que ser feito. A grande genialidade é
27
descobrir qual o serviço intelectual que necessita
ser feito.
O princípio da seleção
Chico Xavier dizia que não podemos mudar o
começo, mas ainda podemos fazer um novo fim. E
Sartre dizia que o que importa não é o que fizeram
de nós, mas o que nós fazemos com aquilo que
fizeram de nós. A metanarrativa é não só
consciência de vários pontos de vista, mas seleção.
Dentre vários caminhos viáveis eu elejo um e
abdico dos demais. Seleciono ser advogado e não
engenheiro, casado com uma caucasiana e não
mulata, ser organizado e não desleixado, ser
cristão e não ateu, e assim por diante. Eu, todavia,
nasço dentro de um contexto repleto de premissas.
Minhas escolhas são realizadas dentro de um misto
de discricionariedades, à medida que procuro
atender aos meus corolários e a partir de premissas
que me foram culturalmente impostas. É assim que
metanarrativa é síntese de liberdade e
28
determinidade, explicação que em nosso ver daria
conta de superar a antinomia kantiana. É como se
minha vida fosse um comboio sobre trilhos e à
minha frente eu pudesse escolher trilhar o caminho
esquerdo ou direito.
O social e o individual
Podemos ter premissa individual e corolário
individual, em que prevalece a individualidade.
Podemos ter premissa individual e corolário
coletivo, em que prevalece a individualidade.
Podemos ter premissa coletiva e corolário individual
em que prevalece a individualidade. E, finalmente,
pode haver premissa coletiva e corolário coletivo,
único caso em que predomina a coletividade pura.
A coletividade faz morada na individualidade e a
individualidade faz morada na coletividade. O
filósofo, ainda encerrado no seu gabinete, é o mais
socializado de todos, haja vista que a forma
suprema de socialização é através do pensamento.
A cultura é estática e dinâmica, particular e
29
universal, individual e coletiva. A particularidade se
refere a uma entidade comunitária e a
individualidade a uma só pessoa. O indivíduo só se
realiza pela coletividade. O escritor, todo ele sabe
muito bem o que é isso. Premissas e corolários são
categorias lógicas, são figuras de hermenêutica,
são valores e interesses. A complexificação da
sociedade gera ou aprofunda a divisão social do
trabalho e produz o especialista. O filósofo é
trabalhador intelectual, cuja especialidade a
generalidade. Na sociedade troca-se dinheiro por
afeto, sexo por cargo, proteção por amizade, título
por ideologia, e essa fungibilidade entre premissas
e corolários é espelhada na teoria pela fungibilidade
de conceitos. O político que é um angariador nato
de relacionamento troca isto por tudo o mais. O
homem de negócios troca dinheiro por tudo o mais.
O pensador quase sempre exerce uma atividade de
gente do povo para suprir a suas próprias
necessidades e presenteia a coletividade com o
pensamento acerca dela. O pensamento é um
sacerdócio: da humanidade recebemos e a ela
30
devolvemos. A paga do pensador, ao contrário do
que muitos leigos imaginam, não é o direito autoral,
mas o reconhecimento moral e o prestígio,nada
mais. A seleção, em linhas gerais, é abraçar aquele
corolário que perfunctoriamente agrada nosso
intelecto e, gradativamente ir desbravando as
partes dele novos corolários. A investigação
intelectual pode ser uma sístole, quando
repristinamente me volto para as sequências das
premissas, ou uma diástole, quando avanço para a
sequência dos corolários. Aliás, esta distinção é
meramente didática, porque há uma circularidade
entre premissa e corolário e deixamos isto claro
quando no primeiro tópico elencamos os temas
recorrentes na antropologia cultural que vem de si
para colmatarem a si.
O mundo de Platão
O que faz o homem conferir sentido à
circunstancialidade imanente de sua vida terrena é
a ideia de alma e de Deus. Não me lembro
31
exatamente das palavras que Fídias Teles costuma
empregar, mas, de acordo com este pensador, “a
alma seria uma entidade energética entronizada na
corporeidade que lhe dá vivacidade e inteligência e
que ao deixar este veículo, retira-se incólume, vez
que é imortal e indestrutível”. Perdoe-me o autor se
a paráfrase foi traiçoeira, a memória analógica tem
esse inconveniente. A ideia de um Deus eterno e
abstrato e de um princípio incorruptível no ser
humano é a motivação para que executemos com
esmero o nosso cotidiano. Se não visássemos à
transcendência nossa vida tornar-se-ia enfadonha e
enfastiosa. Diria mesmo que se algum progresso
fizemos no campo material ele é devido ao
vislumbramento do mundo espiritual.
A angústia humana
A angústia humana decorre da escassez do tempo
de nossa vida conjugada com a difícil decisão de
em que empregar esse tempo tão exíguo. A
angústia decorre também de não poder enxergar
32
com clareza e distinção as premissas e os
corolários mais remotos. A angústia decorre ainda
de não ver com clareza o caminho entre aquilo que
eu sou hoje e aquilo que eu quero ser, ou entre o
estar e o querer chegar. Angústia é tensão. A
tensão é a prova do mundo espiritual, justamente
ele que em seu carrega porção dobrada de terra.
talvez essa pletora de gravidade seja o que lhe
inculca o desejo de ascensão traduzido no esforço
sistemático e perseverante do pensamento.
Angústia é a sensação de estreiteza e só se sente
estreito aquele que almeja ampliar seu espectro de
visão intelectual, a qual nominamos de
metanarrativa. a angústia é o gatilho que dispara o
pensamento e a atitude que faz de nós um
fracassado ou um herói. A angústia é, às vezes,
consequência da insegurança da seleção. Somos
obrigados a fazer escolhas sem que tenhamos
clareza das consequências de nossas decisões,
sem saber do inconveniente de uma via e do que
abrimos mão. O que alivia, em longo prazo, essa
angústia é, mais tarde, descobrir que todas as vias
33
oportunizam de modo diferente a consecução de
nossas pérolas da subjetividade. Mas entre o
instante em que nos lançamos em algo e a
consecução ainda que parcial do objetivo há um
meio de campo em que se vive um sacrifício sem
recompensa. O desespero pode sobrevir nessa
fase que é sempre mais longa do que gostaríamos
e somos tentados a abandonar as trincheiras. Todo
o restante irá depender da resistência nesse
momento de ofuscamento, confusão, ignorância,
turbulência, fraqueza e insegurança. É para este
tipo de circunstância que se presta a perspectiva do
sobrenatural. O sobrenatural está fora e dentro de
nós. O metanarrador é convidado a trazer no
campo da idealidade coisas à existência, para que
elas tornem-se reais também na concreção.
Trabalhando conceitos fortes para sub-rogar
noções toscas
Jacques Lacan trabalha quatro conceitos forjados
por Freud, para fazer deles o cerne da psicanálise.
34
São eles: pulsão, inconsciente, repetição e
transferência.
Princípio da lacuna: a metanarrativa é como uma
estrutura de aço que serve para sustentar as
paredes que em seguida serão erigidas. O
metanarrador não é movido por pulsão, mas por
necessidade. O universo tem horror ao vazio e a
inteligência segue a mesma linha. A inteligência é
porosa. É por isso que até a ignorância é um tipo
de cultura, ainda que cultura de má qualidade.
Busco bens culturais, culturais e espirituais para
colmatar as falhas de minha metanarrativa.
Princípio da tênue conexão: de acordo com este
princípio as premissas e os corolários são
conteúdos cabidos dentro de um ponto, por vezes,
o conteúdo já está lá, ele só precisa ser conectado
à grande trama de generalidades.
Princípio da repetição: certas premissas e certos
corolários funcionam como espelho a repetir a
mesma ideia, o mesmo valor e o mesmo interesse
de premissas e corolários primários.
35
Princípio da transferência: de acordo com este
princípio há uma fungibilidade do conteúdo material
da metanarrativa. beleza é conversível em
inteligência, inteligência é conversível em trabalho,
trabalho é conversível em amor, e assim por diante.
O estudo das sociedades ditas primitivas se presta
para poder compreender a nosso que é complexa.
Gaetano Mosca fala que na noite dos tempos os
dois grandes metanarradores era o caçador e o
ancião. Por óbvio, o caçador tem história para
contar, cerzida de alto teor emotivo e moral,
enquanto que o ancião tem grande memória em
razão do excesso de dias de vida. Um e outro, em
suma, mais expostos ao mundo da experiência.
Insatisfacibilidade intelectual
A busca por uma construção grandiosa e
harmônica intelectual, em outras palavras, a busca
por uma metanarrativa exauriente, pode ser
considerada como um processo de maturação.
36
Paradoxalmente o suposto da busca por adultícia é
um perene sentir de infantilidade. A infância do
homem é a mais longa de todas. É que a infância
se identifica com o período de aprendizagem.
Quanto mais estender-se a infância, mais se
ampliará o processo de aprendizagem. Daí que até
mesmo o ancião sábio carrega consigo um
sentimento infantil. Infância é a construção de
personalidade. Metanarrativa é essencialmente isto.
O sentimento de satisfação, de completude e de
adultícia é a horizontalidade. Infância é sair de si.
Mas crer que algum esforço, alguma evolução é o
todo possível é jogar oportunidade de burilamento
cultural janela a fora. O genuíno metanarrador
nunca está pronto. Deus, enquanto metanarrador é
metanarrativa há um só tempo, está se fazendo e
se refazendo continuamente. Foi o Cristo que disse
“deixai vir a mim as criancinhas” e “quem não for
como uma criança não poderá entrar no Reino dos
Céus”.
Materialidade: peça da metanarrativa
37
Platão é considerado por muitos o homem mais
inteligente do mundo por ter vislumbrado o mundo
das ideias. O mundo ideal de Platão, ao menos
para ele, é a grande narrativa. Mas pensamos que
a metanarrativa é não só a alma do mundo, mas o
próprio mundo. Aristóteles estava correto ao unir a
forma à matéria transformando tudo em substância.
A causa, seja ela eficiente ou final, é abstrata. O
Motor Imóvel de Aristóteles é um princípio
atemporal não espacial, material e virtual que tudo
arrasta para si. Causalidade e materialidade estão
entre si como abstração e concreção, são
antônimos que carecem da sua antípoda para
poder efetivar-se. A causa é imaterial e o nexo de
causalidade também é imaterial. Materiais são
apenas as mediações cabidas dentro do trânsito
chamado de nexo de causalidade. O método,
filosófico ou científico, é, via de regra, excludente,
afasta o maior número possível de variáveis para
atrelar certos efeitos a certas causas. Em verdade,
é contrassenso falar em método científico, todo
38
método é filosófico ainda que desenvolvido por um
cientista. O que se tem é um método filosófico
empregado nas ciências. A ciência não é tão
melhor que a filosofia, ela só tem mais propaganda.
Aliás, nós filósofos precisamos fazer parceria com
os propagandistas. Filosofia é propaganda e
propaganda de qualidade tem de ser filosófica.
Quando no princípio de tênue conexão eu falava de
um ponto já albergado em conteúdo, estava
claramente defendendo o inatismo. Mas há pontos
com os quais nascemos brindados inclusive no que
se refere a conteúdo, e há pontos que não passa
de uma plataforma aguardando por conteúdo. À
medida que o tempo vai passando vão sendo
disponibilizados pontos. Se não os preenchemos
com informação de qualidade, os preenchemos
com informação de má qualidade. É por isso que eu
digo que até mesmo que até mesmo a ignorância é
um tipo de cultura. O intelectual nada mais é aquele
que pelo esforço exige do próprio intelecto mais
pontos e mais conexões que o cérebro de uma
pessoa mediana consegue pôr em curso. Vivemos
39
no mundo do tudo pensado. Por isso que sob uma
ótica é melhor ser escritor do que filósofo: o filósofo
locomove-se por corredores estreitos. O escritor
não tem outra preocupação senão empolgar o
leitor, deixá-lo perplexo, ansioso, enfim, brinca com
as palavras, é um exibicionista de estilo. A
semântica, a fonética e o léxico são suas
ferramentas-brinquedos. É a escrita pela escrita. A
ciência, a filosofia e até mesmo a literatura são
metanarrativas artificiais a partir do instante em que
escolhem as peças que irão empregar na ereção do
castelo de conceitos.
Relações familiares
É no seio da família que começamos a construir
nossa metanarrativa. Mas não quero falar de todas
as relações familiares, apenas de duas. Freud
resgata a mitologia grega para criar o complexo de
Édipo e o complexo de Electra, respectivamente o
amor do menino pela mãe e o amor da menina pelo
pai. Mas existem duas situações pouco exploradas:
40
o amor da mãe pelo filho rivalizando com a nora,
duas mulheres amando o mesmo homem, e o amor
do pai pela filha, rivalizando com o genro, dois
homens amando a mesma mulher. É que
metanarrativa é posse. Aquilo que eu conheço
muito bem, ainda que não seja meu, eu o trato
como sendo minha possessão. Quem muito narra,
muito toma posse, narrar é apropriar-se. E eu nem
vou entrar na zona jurídica para traçar a diferença
entre propriedade e posse. Ou, que tem algo junto
de si inevitavelmente está sujeito a perda. Todo
aquele que possui pode ser expropriado.
Paranormalidade
Toda e qualquer evolução nada mais é do que um
nível crescente de paranormalidade. O primeiro
salto paranormal é a vida em que há o salto do
mineral para o orgânico. O pensamento é a free
way da paranormalidade em que ela cresce
geometricamente. O que Teilhard de Chardin
chamou de cosmogênese, biogênese, noogênese e
41
cristogênese são marcos de paranormalidade. A
vida e o pensamento não são ordinários e normais,
mas extraordinários e paranormais. A filosofia
enquanto algo não só se ocupa de
paranormalidade, mas ela mesma é paranormal.
Quanto maior o número de mediações interpostas
no trânsito do nexo de causalidade, menor a
paranormalidade quanto mais imediato a identidade
entre o pensado e o efetivo maior a
paranormalidade. A paranormalidade é um jeito de
ser da causalidade e vice-versa. O pouco progresso
realizado pela parapsicologia se deve ao fato de a
mesma não se dar conta de que há diferença entre
aparência e essência e que cabe à ciência
desvendar a essência das coisas e a relação do
seu objeto de estudo com o mundo fenomênico.
Todo o saber tem como uma das suas metas
explicar o nexo de causalidade de manifestações.
Infeliz a terminologia normalidade e
paranormalidade. Jamais será possível traçar uma
linha segura entre normalidade e paranormalidade.
Isto se deve ao fato de tanto uma quanto outra
42
chegarem ao intelecto pelos sentidos. É assim que
a clarividência trabalha com imagens que são
captadas pela visão, a clariaudiência é captada
pela audição e a levitação é a negação do tato. É
difícil conferir objetividade àquilo que nos é dado
pela subjetividade dos sentidos. Louvável é a
tentativa de se definir o objeto de estudo e existir
uma tábua de temas, mas o método não consegue
ultrapassar em muito a mera descrição.
Normalidade quer dizer conformidade com dadas
normas. Não há anomia no universo, o que existe
são normas diferenciadas para cada instância da
realidade. Grosso modo, poderia se dizer que
normalidade são aquelas truístas conexões de
parca expansão e que a paranormalidade se
intensifica a partir do extrapolamento daquela
circunscrição de obviedades, em direção às
premissas e corolários mais longínquos.
Paranormalidade é frequência. O alcance da
frequência decodifica sua força, intensidade e
natureza.
43
Começando pela negação
Marx é um grande pensador, mas é grande filósofo.
Não, ao menos, como frequentemente se concebe.
Ele começa o discurso pela negação. Em O Capital
começa destrinçando a mercadoria e a nega e
renega sistematicamente. Do ponto de vista lógico
eu tenho de no mínimo principiar pela afirmação
para só em seguida negar, mas Marx começa
negando. Marx constrói uma antinarrativa. Porque
quem narra organiza e harmoniza, mas ele se
ocupa das rachaduras irremediáveis do sistema,
não passíveis do sistema, não passíveis de
emenda. Freud, embora sendo crítico da sociedade
como Marx, apresenta as contrariedades do
indivíduo (e não do sistema) como objeto de
esquemas mentais dotados de autorregulação e
autocompensação. Para Freud só a psicose seria
capaz de arrebentar o dique das barreiras
psicológicas enquanto que para Marx, o
solapamento do modo capitalista de produção seria
inexorável e irreversível. Marx começa negando
44
porque é praxe colocarmos no princípio aquilo que
almejamos como teleologismo. Para Freud as
psicoses seriam administráveis. Para Marx
qualquer forma capitalista de produção e circulação
de riqueza seria transitória, pois eis que cavaria sua
própria cova. A função do metanarrador é
essencialmente afirmar. Se Vygotsky pensava que
a compreensão de um nível superior acarreta a
negação do nível anterior, somos mais próximos de
Wallon que entende que a integração do
superveniente não extingue o antecedente. O belo
do marxismo está em uma das características do
seu método que é a busca da totalidade. O
marxismo, portanto, necessariamente, quando bem
entendido conduz a alguma coisa fora do
marxismo. Ele gera a sua negação. O marxismo é
uma ferramenta teórica tão boa, que nos deixa
ágeis a ponto de jogarmos janela a fora aquilo que
até era nosso arrimo. Como toda outra forma de
inteligência, o marxismo perde a razão de ser
quando atinge a meta tencionada. O marxismo é
apenas uma das narrativas possíveis. Como toda
45
outra perspectiva, é um dado de mira. Mas a
oumperiforalogia quer ser a abstração de todos os
pontos de mira possíveis, inclusive marxismo,
psicanálise e todos os ismos possíveis. Este autor
que vos escreve não escreve com a mesma
minúcia como outros autores. Permito-me maior
liberdade. Mas se Marx chamou Elisée Reclus de
“escrevinhador”, digo ao finado Marx que, para
mim, ele não é nem um milímetro superior a Reclus
do ponto de vista puramente teórico.
O inimigo da metanarrativa: o poder
Quanto menos impactado pelo poder, mais
excelente o metanarrador. O poder inquina e vicia o
intérprete da realidade. O direito é, sim,
pensamento. Mas o juiz é como que menor do que
uma peça numa máquina. Ele está imbricado,
metido e cabido dentro de uma gigantesca
engrenagem. Hoje entendo melhor certas decisões
esdrúxulas. O magistrado é tão refém de aspectos
estruturais do Estado como as partes, ou, no caso
46
do direito penal, quase tão sojigado quanto o réu.
É-lhe cobrado mais do que um ser humano normal
é capaz de ofertar. Ao mesmo tempo que no campo
da aparência é dono de uma colossal
discricionariedade, é sujeito a pesadíssimos
condicionamentos. A eles as minhas reverências
por fazerem prevalecer a justiça não obstante o que
acima foi colocado. Tomo o exemplo dos
magistrados emprestado, porque também nós
estamos dentro de estrutura de poder. Toda
circunstancialidade é uma instância de poder.
Nossa metanarrativa sofre um terrível achatamento
em razão dos pobres postos. O poder existe para
contornar a ausência de narrativa. Quanto menos
racionalidade, mais poder. O objetivo do ser
humano é expandir a metanarrativa e minimizar as
estruturas do poder. Todo poder é irracional. O
poder se serve da racionalidade, mas a odeia. Tudo
depende daquilo que iremos eleger ou como
instrumento ou como fim. Racionalidade e poder se
autoimplicam enquanto instrumento e meta e se
autoaniquilam enquanto ambos postos como
47
finalidade. Não foi por acaso que a filosofia nasceu
na Grécia democrática: democracia é a um só
tempo antiteocracia e diluição do poder. Religião é
para ser praticada. Morte aos políticos cingidos de
túnicas sacerdotais. A democracia é o mais perfeito
modelo político. Melhor que a democracia só
mesmo o governo dos filósofos. Os governos
tirânicos fazem o povo fenecer na ignorância da
tirania. A parte mais importante de um projeto é a
que diz respeito à educação. Porque um povo
instruído dá conta de administrar e resolver todos
os seus problemas pragmáticos e civilizacionais. O
“pobre entre vós sempre tereis” está corretíssimo
dentro de uma cultura farisaica de enclausuramento
de informação e cultura. Onde todos são cultos não
há lugar para pobres. A oumperiforalogia procura
resgatar do Iluminismo a propagação universal das
luzes. Mas pretende fazer isto na prática e não só
no discurso. O Brasil há muito tempo pede um
partido que preconize a educação como o problema
mais estratégico de nossa sociedade. Os governos
tirânicos superfaturam o valor dos livros e aviltam
48
os salários dos professores. A cultura torna-se algo
caro e os seus apreciadores tornam-se miseráveis.
A ponto de o homem sentir vergonha de exibir
certos tipos de conhecimento. A moral do nosso
tempo, como muito bem observou Mariano Soltys, é
a moral do dinheiro. O rico ignorante é prestigiado e
o intelecto pobre é ridicularizado. A cultura não
deve ser encarada como luxo de quem já resolveu
o problema existencial econômico de sua vida, pelo
contrário, a cultura é a grande produtora de riqueza.
Cultura não é excrescência da economia de um
país, a economia que é a expressão material dessa
instância virtual que se chama cultura. O estar
dentro de um sistema a um só tempo dá a base a
partir da qual se principia a reflexão e se começa o
cerceamento com condicionamentos
epistemológicos. O direito é uma arte que resiste à
estandardização. Em meio a tantos milhares de
operadores jurídicos ainda remanescem alguns
poucos juristas. O direito é muito mais do que as
ciências jurídicas. Assim como a metanarrativa em
certos sentido é maior do que qualquer teoria
49
acerca da metanarrativa. O poder é sempre poder
de fato. Narrativa não é fato, é uma construção
intelectual em que a representação do fato está
cabida. Enquanto o pensamento busca o poder e
exclama “peguei”. O poder é critério de verdade. É
o Estado Soberano que diz que você é graduado
nisto ou naquilo, ou se você é doutor. E isto é válido
e verdadeiro ainda que o chefe da nação não seja
doutor ou mesmo que seja um semianalfabeto
ignorante como um onagro. O poder consiste em
dizer com o que devemos preencher nosso tempo.
O ser se realiza com o pensamento e ele só se
efetiva com a hora vaga. É o tempo ocioso que nos
diz quem nós somos. O homem que não tem tempo
vago é um escravo. Quando estamos no trabalho
experienciamos uma liberdade formal. Mas o tempo
livre é uma liberdade real.
Lateralidade
Cerca de 95% da população é destra e as demais
são canhotas e umas poucas ambidestras. Não
50
raro, o ambidestro é um canhoto que se adaptou a
um mundo feito para destros, mas isto não significa
que não exista ambidestria. Grandes
personalidades, como Leonardo da Vinci, foram
ambidestros. Não raro, um típico ambidestro fica
com dúvida de qual das mãos empregar na
realização de uma tarefa. As línguas ocidentais
foram desenvolvidas por e para destros, pois o
movimento é da esquerda para a direita. Trata-se
de uma inteligência analítica. Já os orientais
desenvolveram sua grafia diferente que externaliza
a inteligência de lateralidade direita (referimo-nos
ao hemisfério cerebral, lembrando que cada
hemisfério comanda o lado oposto do corpo num
arranjo de transversalidade). Este é o sentido da
linguagem ideogramática e das escritas que se
movimentam tanto da esquerda para a direita
quanto da direita para a esquerda aquando do
término da linha superior e da descensão à linha
inferior. A Bíblia em I Crônicas 12, 1-2 fala que os
guerreiros de Davi usavam arco e flecha com
ambas as mãos e atiravam pedras. A ambidestria
51
desencadeia um tipo de personalidade sendo a
recíproca inversa verdadeira, embora mais rara. O
treino é muito mais importante do que se imagina.
O usar as duas mãos é praticamente uma
fisioterapia. O cérebro é tão elastério que até
mesmo um ancião destro consegue escrever com a
esquerda se se empenhar.
Limites da metanarrativa
Toda metanarrativa é limitada pelo espaço e pelo
tempo. Pois o eu enquanto alguma coisa está
circundado por um dado entorno no curso de um
trânsito temporal. A reflexão filosófica é o hercúleo
esforço de extrapolar e transcender isto tudo.
Platão fez mais do que inaugurar o mundo abstrato
das ideias, ou, como querem seus discípulos,
desvendá-lo. Ele queria uma proposta de sociedade
e foi o que fez em A República. Aristóteles foi mais
do que um grande tratadista e organizador dos
conhecimentos. Ele foi o mentor do pan-helenismo
e Alexandre Magno, seu tutelado, o executor.
52
Aristóteles compilou o teor de 158 constituições de
cidades-estados. Quando se discute lógica,
metafísica, linguagem e epistemologia está
discussão só faz sentido enquanto aporte teórico a
embasar uma proposta de sociedade e
humanidade. Quando um Wittgenstein reduz a
gama de temas filosóficos, em verdade, está
admitindo que a sociedade em que ele vive é a
melhor e não comporta mais aprimoramento. O que
propomos é uma sociedade de letrados, cientistas,
teóricos e escritores. Não existe nada mais
estratégico do que cultura, idioma, educação,
ciência, tecnologia e conhecimento em geral. Só
aos doutores serão reservados cargos eletivos na
sociedade que propomos. Não existe nada mais
estratégico do que cultura, idioma, educação,
ciência, tecnologia e conhecimento em geral. Os
professores em todos os níveis deverão ser
doutores, inclusive os da educação infantil. A
transição da sociedade atual para a sociedade
almejada será realizada pela inteligência, elite que
organiza a militância, que mobiliza as massas. A
53
nova sociedade deverá ser minuciosamente
monitorada. Não só as lideranças deverão ser
monitoradas, mas todas as pessoas. O governo
deverá ser e ouvir o que acontece em todos os
recintos, mesmo os ocupados por pessoas comuns,
por mais privados que sejam. O Estado deverá
fazer com que as pessoas sejam maximamente
organizadas, pois é mais fácil controlar quem é
organizado. O novo modelo de civilização deverá
preconizar tendências analíticas, abstratas e
universalizantes ao estilo daquilo que melhor dele
se aproxima a racionalidade alemã. O montar uma
metanarrativa não é algo passivo e meramente
interpretativo. Posso, adrede, articular uma
metanarrativa como quem monta um projeto. Sou
livre para estabelecer premissas e corolários e sou
livre para, com elas e a partir delas, vislumbrar um
panorama inédito e superior a tudo o que foi
antecedente. O que pode ser pensado pode ser
realizado. Precisamos de pessoas que pensem o
novo projeto. Para Marx o teorizar até é um
trabalho, porém, improdutivo. Entendo de outra
54
maneira: o pensar é o trabalho por excelência. Ele,
mais que o trabalho braçal, multiplica valor. O ser
humano, se é o único bem que produz mais valor
do que aquele que nele está contido, isto se deve
em primeiríssimo lugar às suas faculdades mentais
e em menor medida ao trabalho físico. Quanto mais
intelectual o trabalho de um homem, mais ele tem
de ser valorizado. O que seria da revolução
industrial sem cientistas, técnicos, engenheiros e
administradores? Ora, bem, o trabalho dessa gente
é intelectual. O erro da modernidade foi proletarizar
os próprios corifeus da era da máquina. Quem
administra a estrutura merece suas prerrogativas,
mas quem pensa o processo não pode ser um
funcionário de gravata apenas. O fator número um
de economia são os recursos humanos. Elas é que
são as premissas e os corolários. É função da nova
sociedade, proporcionar-lhes a devida dignidade. E
isto inclui liberdade religiosa. Digo isto ainda que
intimamente tenha sido convencido da primazia
espiritual do cristianismo. O cristianismo, por falar
nele, é ótimo enquanto revolução pessoal, mas
55
projeto de sociedade tem de ser pensado por
filósofo. O filósofo tem como objetivo um dia dar as
mãos a todos os religiosos e, uníssonos, bradar a
palavra universal “aleluia” por conta de todas as
conquistas individuais e coletivas.
Premissas e corolários distintos como elemento de
união
As pessoas têm preconceitos diferentes e buscam
metas distintas. A praxe que daí decorre deve ser
convencer o outro a me ajudar na conquista das
minhas metas porque eu posso ajudá-lo nas metas
dele. O melhor de tudo é a preparação. Quando
possível, antes de dialogar com alguém já de
antemão devo conhecer os seus objetivos.
Habermas propôs uma ética do discurso falando da
importância da linguagem, da inevitabilidade da
ética mínima, da abertura ao diálogo, etc. O que
queremos dizer é que para uma premissa ser aceita
e para um corolário ser aceito como meta, eu
preciso passar ao largo deles. Tudo aquilo que é
56
publicizado é desacreditado. Deve-se fingir que não
se conhecem as premissas e os corolários alheios
ainda que se esteja ciente dos mesmos. Quando
você quiser defender um interesse seu deverá
convencer o interlocutor da vantagem do caminho
embora ocultando o destino. Quando o agente de
convencimento quiser contar com apoio alheio
deverá fazer isto apresentando para o outro as
vantagens que ele irá ter, no fundo, o maior
privilegiado de todos do ponto de vista individual. O
indivíduo só alcança seu objetivo particular quando
consegue convencer um grupo de que a vantagem
é para o grupo. Por outro lado, nenhum grupo
conseguirá salvaguardar seus interesses se não
segregar um expoente para capitanear a bandeira.
As políticas e, antes delas, as campanhas que dão
errado são aquelas que jogam abertamente. Na
dicção do Papa Paulo IV “o povo quer ser
enganado”. O pensamento está correto em que
pese a redação truncada como foi formulada. Um
projeto de sociedade é precedido por um programa
de governo. Neste programa de governo devem ser
57
dadas as diretrizes genericamente, mais do ponto
de vista procedimental do que teleológico. A elite
deve manter seus objetivos guardados a sete
chaves. Os objetivos, que chamamos de corolários,
devem ficar encerrados no âmbito dos presumidos
e subentendidos. Somente depois de o projeto
estar totalmente implantado é que as premissas e
os corolários poderão ser exibidos e carreados ao
reino dos explícitos e da consciência forte. Dialogar
de igual para igual abertamente expondo suas
metas, havendo transparência de todo lado é como
se cada um exibisse suas armas de guerra e os
mesmos servidos se vissem envergonhados pelo
seu aparato de pouca monta. As proposições
ulteriores precisam ser mediadas por proposições
mais chãs. No diálogo e no comportamento
sempre deve ser mantida a dubiedade dentro/fora e
essência/aparência. Os filósofos achavam que tudo
estaria resolvido no dia em que conseguíssemos
ultrapassar a aparência e atingir a essência.
Errado: a essência não está aí para ser apropriada
intelectualmente pela humanidade toda, ela existe
58
para ser objeto de busca, para mover o mundo do
trabalho, do pensamento e da emoção. O erro mais
crasso de todos é desnudar a coisa em si. E isto
vale para a sexualidade, no campo da religião para
o sagrado, no campo da economia e da política
para o interesse. A coisa em si existe para ser
manipulada pelos preparados e não para ser
compreendida. A coisa em si só se compreende
pelos seus efeitos. Coisa em si abarcando as
premissas e os corolários. É tendência natural do
ser humano querer receber mais do que doar. Mas
só viveremos numa sociedade em que cada um
mais oferta do que recebe quando conseguirmos o
consenso com o discurso perfunctório a serviço de
um metadiscurso, ou seja, uma metanarrativa.
Quando se fala em aparência já surge a ideia de
dualidade. Mas a zona lindeira que separa o público
do sigiloso é movediça. À medida que os objetivos
vão sendo alcançados amplia-se a gama de
proposições que tornam-se públicas e a
inteligentsia avança adiante em consciência em
direção às premissas e aos corolários mais
59
remotos. À medida que o subconjunto de premissas
e corolários do efetivo se ampliar, amplia-se de
igual modo o conjunto que abarca o primeiro que é
contenedor do tudo pensado. Quanto mais cresce o
campo do pensado. O pensado alavanca o efetivo e
o crescimento do efetivo força a ampliação do
pensado. A totalidade de tudo isto que
descrevemos é metanarrativa. Se para Kant os a
prioris estavam no indivíduo, para Habermas na
comunidade ideal, para mim os a prioris estão na
inteligentsia, conjunto real que mais se aproxima do
Eu Absoluto hegeliano. Enfim, a dualidade da qual
falávamos não é apenas o lado A e o lado B.
Porque em se tratando de premissas posso ir
avançando cada vez mais. Isto é possível porque
as novas experiências a todo instante me agraciam
com instâncias antes inexistentes que passam a ser
meu objetivo. O desbravamento das premissas e
corolários, portanto, não é apenas um processo
lógico, é empírico e experiencial ao mesmo tempo.
Metanarrativa é compreensão, mas também é
ingerência sobre a realidade. O desafio do
60
metanarrador é sair da contemplação e partir para a
ação. A solução dos problemas da humanidade não
se pulveriza com um bom mercado ou um bom
Estado embora tudo isto possa ajudar. Precisamos
de uma comunhão de metanarrativas. Para que
todas as propostas sejam unificadas numa só. E
quem irá incardinar todas as categorias possíveis e
imagináveis numa só, que é a educação, será a
inteligentsia. Porque somente a educação é capaz
de gerar uma terceira instância, a comunidade civil
agora esclarecida, além da solidariedade mecânica
do mercado e do paternalismo estatal. Habermas
concebe a sociedade civil organizada como
sindicatos, ONG’s, igrejas, clubes, etc. Na minha
acepção tais instâncias terão algum valor quando,
no mínimo, seus dirigentes forem grandes teóricos.
A sociedade deve ser hierarquizada de acordo com
o nível de intelecção de seus administrados. O
critério sempre foi o ter terras, dinheiro, ser nobre,
mas o melhor critério poucas vezes foi adotado: o
conhecimento. Um problema sério que talvez surja
daí seja o seguinte: se os teóricos serão as
61
autoridades da nova sociedade, como definir quem
terá de realizar trabalhos de relevo, como os
intelectuais, e trabalhos menos visados pelo novo
sistema? Simples: como todos serão doutores ao
longo de duas décadas será fácil definir quem tem
mais propensão para o trabalho e quem,
diferentemente, poderá decernir desvantagens ao
mundo teórico. Assim como eu tenho um
determinado gosto por certa casa e certo automóvel
porque meu capital gira em torno de US$
100.000,00, terei outra percepção se eu tiver
US$1.000.000,00. O mundo intelectual é assim:
quanto mais conheço, quanto mais ampla minha
visão de mundo, tanto mais procurarei ficar arrojado
intelectualmente. Projeto de sociedade é isso:
caminhar da imanência para a transcendência. Mas
quando o transcendente passa a ser imanente por
ter se consubstancializado, já antes desse evento
mesmo a inteligentsia deverá trasladar a baliza da
transcendência para mais adiante. Até porque se
imanência e transcendência coincidirem totalmente,
o indivíduo e a civilização perdem o sentido.
62
Sentido, aliás, nada mais é do que o movimento do
imediato para o remoto, o egresso do realizado,
conhecido e desencantado para o por fazer,
ignorado e místico. A inteligentsia é uma categoria
abstrata dentro da qual entrarão pessoas reais.
Mas, de antemão, não é possível fazer coincidir
com ela nenhuma instituição já existente, mas ela
trará prevalência nos setores de educação estando
aberta a pessoas de todos os meios sociais. O
único requisito é o conhecimento aprofundado da
realidade. Até mesmo porque, como diria René
Descartes, “a razão é o que há de mais bem
distribuído entre os homens” (em que pese a
opinião de Rousseau e de outros mais em
contrário). Há muita gente que passou pelos
bancos universitários, amadureceu o pensamento
crítico, e agora que está fora adquiriu experiência e
tem muito mais a colaborar. Depois que a
universidade abre a visão de mundo de uma
pessoa ela continua se expandindo mesmo que não
mais integre a universidade. Porque o ensino
superior mostra a mina de ouro e lhe dá a picareta
63
para continuar trabalhando. O mundo é uma grande
conversação. A tradição filosófica é um diálogo de
gigantes, um diálogo “intervivos” e, principalmente,
um diálogo entre respirantes e extintos. A filosofia é
o remédio contra o desperdício da experiência. Ela
é o feedback que demos conta de fazer com a
experiência de nossos ancestrais. A filosofia é a
arte de reconhecer que aquilo que não
conhecemos, o eterno reino dos presumidos e
subentendidos é o que impacta ainda que não
elucidado. A filosofia é o transpor o problema ad
infinitum e nunca solvê-lo. As premissas e os
corolários podem se encontrar em três situações:
luz, penumbra e escuridão. Penso que quando se
fala em Iluminismo a ideia é aumentar a luz
avançando sobre a penumbra e fazer com que a
escuridão fronteiriça seja um cafus e que “as vacas
pardas” de Hegel ganhem coloração sob o feixe do
holofote. Ao mesmo tempo em que o indivíduo fica
cada vez mais sobrecarregado pela apreensão da
sequência de processos elucidativos, maior
comodidade lhe é dada num mundo em que as
64
vigas mestras foram todas pensadas. A
metanarrativa é estrutural e material: isto se aplica
ao poder posto e ao discurso, entendido como
linguagem, que instrumentaliza e lhe dá vida. O
poder e a linguagem são a um só tempo pessoais e
impessoais. A assimilação das relações de poder e
de significado próprio da linguagem é a construção
da metanarrativa. A linguagem e o poder são
instâncias que nos deixam cambaleando porque
oscilam entre o muito próximo e o muito distante. A
linguagem é sintaxe, mas cada palavra em especial
possui um conteúdo, o poder também é assim. A
metanarrativa enquanto modelo de civilização não
quer, como certa ala do marxismo, ser
estruturalista, ela ocupa-se com a lógica de
estruturação e operacionalidade e também com os
valores entendidos no seu sentido mais amplo
possível. O mundo platônico das premissas e dos
corolários é piramidal e há uma gradação dentro
desta imaterialidade. Assim como há níveis no
mundo empírico, há níveis no mundo ideal. As
culturas semitas são tão voltadas para os níveis
65
elementares do mundo empírico que, para
compensar, dão um salto para o ápice do mundo
ideal tomando Deus para si. O que o mundo é e o
que ele seja é uma distância dentro da qual está
para ser ou o que nós queremos que ele seja é
uma distância dentro da qual está metida a
potencialidade. Do ponto de vista fático há infinitas
metanarrativas entre o efetivo e o ideal. Quando
falamos que filosofar é pensar os fundamentos da
realidade visando o bem da humanidade, dizemos
que precisamos conhecer para decidir. O
conhecimento deve ser universalizado, mas mesmo
neste campo há quem esteja na dianteira enquanto
que a grande maioria se empenha para tomar nota
do que já foi feito. Toda sociedade possui elite não
existe organização social sem elite. Seja esta elite
militar, demagógica, gerontocrática, plutocrática, e
por aí vai. O que se vê é que em nome de uma
estabilidade e sobretudo em nome da perpetuação
familiar nas instâncias de poder, mantém-se a
massa do povo numa nuvem de escolaridade,
situação material e espiritual suficiente o bastante
66
apenas para ela não perecer, mas ele não
transcende a linha do óbvio. Em nosso programa
tudo ocorre de diferente forma: a inteligentsia é
uma equipe de transição e, em que pese dever
existir uma elite pensante, ela pode ser outra,
desconexa da que lhe precedeu, desde que do
ponto de vista ideológico lhe seja superior. Talvez
não ocorra tal reviravolta justamente porque quem
se destaca um pouco em qualquer área que seja, é
guindado à condição de par ao lado de quem no
comando está. Assim, não há ruptura da estrutura
de poder, mas o conteúdo da estrutura é o que se
renova. Não por acaso que Steve Jobs disse que a
invenção mais genial da vida foi a morte. Assim
como cada indivíduo tem um espírito, e aqui
pretendo não usar qualquer categoria religiosa,
parece que também cada geração tem um espírito.
Isto importa em muito para a metanarrativa, pois é
como se a humanidade em um dado momento
caminhasse para o norte e, ato contínuo, decidisse
remar par ao leste. Muitas vezes a metanarrativa,
para avançar, tem de retroceder. É assim que dada
67
geração é obrigada a se empenhar no trabalho para
criar as bases materiais sobre as quais se dará a
grande emancipação espiritual e cultural. O estudo
é o princípio ativo espiritual que revoluciona o
mundo material. Numa sociedade de engenheiros,
empresários e de letrados de invejável formação,
brota prédios do chão e vicejam as letras. Que
pena que não mais se emprega a expressão “Belas
Letras”. Sim, digo “que pena” porque tão importante
quanto dizer algo é como dizê-lo, tão importante ou
mais importante do que declarar é declarar
belamente. Não que só os grandes autores devam
ter espaço, muitíssimo pelo contrário, pois eu
mesmo ainda não cheguei lá, mas assim o creio
chegarei, mas porque em nós podendo haver a
discricionariedade de eleger os padrões que
queremos seguir, coloquemos os grandes
paradigmas. Porque quanto mais remoto o
corolário, tão mais remoto o corolário, tão mais
longe caminharei no afã de apropinquar-me dele.
Como tudo o que é humano, um projeto de
civilização é um fenômeno cultural. Aí caímos no
68
problema de Boaz e Sausurre de que há culturas e
linguagens simplesmente diferentes, mas não
necessariamente inferiores ou superiores. Sim,
porque para os relativistas culturais sempre
insistem que giramos em torno de lugares comuns.
Mas para quem engendra em seu intelecto um
modelo inédito de sociedade, ainda que não exiba
algo novo debaixo deste Sol, traz uma
superioridade que consiste no modo de como estas
velhas e surradas coisas e instâncias estão
dispostas entre si. Não é por falta de riqueza no
mundo que há miseráveis, tampouco não é por falta
de quantidade de conhecimento que há ignorantes.
Embora tudo isto possa ser multiplicado. A questão
está no fracionamento e na participação menos
discrepante do cabedal de recursos financeiros e
culturais. As lideranças têm dificuldade de se
sensibilizar à situação dos liderados, adstrinjindo-se
a mais vigiá-los e puni-los do que ajudá-los. Na a
sensação no líder de que ele pagou determinado
preço para ser quem é e que quem tem a mesma
pretensão deve se submeter a idênticos critérios de
69
ascensão. Esta mentalidade é errada porque se
tivermos que fazer sempre as mesmas coisas para
sermos os mesmos, nunca conseguiremos
progredir. Isto em parte já é realidade, pois é mais
fácil ser bacharel hoje do que há 50 anos. O risco
de se falar em universalização do progresso são
basicamente dois: a) criar uma sociedade de ricos
ignorantes; b) criar uma sociedade de sábios
pobres. O progresso material deve ser reflexo do
progresso cultural e vice-versa, sem concessões.
Petróleo, minério, energia elétrica e toda sorte de
recurso energético deve ser o patrocinador da
máquina de educação e produção cultural. Na
sociedade do futuro a cultura será o motor do
sistema econômico como princípio e como fim. Não
se deve dar guarida ao discurso “de que adianta ter
cultura e faltar estrutura nos hospitais?”. Se o
diretor do hospital, o político e o paciente estiverem
bem calçados do ponto de vista cultural e imaterial
o problema deixa de existir. Os cursos mais
puxados, sem desmerecer todos os demais, são
medicina, direito e os de engenharia. Estes cursos
70
dão bem delineada a noção de como funcionam os
processos de compreensão de tudo o que é
sistêmico e humano: é preciso ter muita memória
no sentido de decorar muita informação para tê-la
de imediato por mais rápido que seja sua busca e é
preciso ter raciocínio principiológico. O raciocínio
pede informação. Só se raciocina a partir de dado
conteúdo. Ser experiente consiste em ter memória
mais cheia de coisas, mas também em saber o que
é mais importante neste processo ou diante de
determinado quadro sintomático. Construir
civilização é essencialmente isto: precisamos fazer
um levantamento de quais são nossos tropeços e,
inventariado isto, pensar nas melhores soluções
possíveis. Assim, construir civilização não consiste
apenas em empecilhos concretos que
gratuitamente se exibem para nós. A previsibilidade
é aquele tato que o jurista na qualidade de
legislador previne o efetivo. Civilização é vislumbrar
não só a reação à ação desvalorosa ou
problemática qualquer que seja sua natureza, mas,
antes de mais nada, animizar a margem da
71
hipótese de incidência do desvalor ou do problema.
Assim como o setor de prestação de serviços está
customizando, ela precisa ser impositiva. É ela
quem diz o que é importante. Apesar do valor dos
livros ditos “evangélicos” a crescente busca por
este tipo de material mostra que a razão na sua
pureza deixou ou está deixando de pautar nossa
conduta. A crença toma o lugar da racionalidade.
Numa sociedade em que tudo se consome, até
literatura filosófica, o filósofo que na maioria dos
sentidos é um ser humano como outro qualquer, se
vê enrascado nas malhas do mercado editorial.
Mais importante do que ser grande, ou, melhor, o
que torna um homem grande é a capacidade que
ele tem – e efetivamente acontece de fazer grandes
coisas acontecerem. Como o gol aos 47 minutos do
segundo tempo daquele que sem querer esbarra na
bola e põe fim ao campeonato. É claro que para
ocupar tal posição é necessário contar com a ajuda
daquelas premissas e daqueles corolários que de
certo modo estão fora do alcance do mais
esclarecido intelecto humano num nicho metafísico
72
virgem. Senão qual a flecha que, apesar de atirada
ao léu, atinge o coração do generalíssimo e as
tropas esmorecem ante o quinar de seu ponto de
referência? Uma flecha, neste sentido, é o que
define a supremacia da civilização A e a derrocada
da civilização B. É natural que vivamos uma crise
civilizatória neste momento. Não há quem nos sirva
de referencial. Hoje é a época da inteligência
compartilhada. Tudo aquilo que condensa um teor
de inteligência mais apurado do que o corriqueiro é
feito uma equipe. Mas a equipe é uma abstração,
até porque há quem egresse e quem ingresse na
equipe a todo momento. Não há mais os grandes
homens. Na verdade, o sistema atual, adrede, não
permite que eles se autoengendrem. Tudo está
diluído: o conhecimento, a inteligência, a
moralidade, a santidade. Ruíram os protótipos. Só o
conceito é total, não se admite que um homem real,
que um homem existente no mundo empírico se
preste de parâmetro de conduta. O recurso é
buscar tais modelos no passado. Pois os que
viveram em outras épocas não estão sujeitos à
73
mesma devassa de quem ainda respira. A mídia
não admite que um homem público revele apenas
força. A mídia quer vender a imagem de que somos
todos fracos e de que é a coisa mais normal do
mundo ser fraco. O que o cristianismo com sua
moral do rebanho de submissão fazia no passado,
hoje, o mesmo é feito pela telenovela de pior forma.
A teleliteratura com suas novelas de efeito
reforçativo de hábitos pouco louváveis laboram pela
desestruturação de um modo de soster inclusive os
meios de comunicação social. Tal qual homem
imprudente, assim são os empresários da
comunicação que cavam o próprio fosso.
A decadência da conversação
Está havendo uma decadência da conversação. As
pessoas perderam a capacidade de relacionar-se
dignamente e o retrocesso em certo sentido
começa e se reflete no diálogo. A palavra diálogo
se exibe bem no adjetivo que deriva dela,
“dialógica”. Ou seja, “dia” através de e “logos”
74
razão. Se o diálogo é uma travessia mediante a
qual chegamos num consenso, ainda que um mero
acordo intrumental e procedimental, isto significa
que o provisório exige condições como se perene
fosse. As pessoas se relacionam para satisfazer
seus interesses mais inéditos. E raramente as
premissas e os corolários mais remotos são
satisfeitos na vida de poucos indivíduos porque isto
exige firmeza de ânimo a longo prazo e
relacionamentos duradouros. O diálogo é exercício
de exibição e ocultamento. Devem-se exibir os
argumentos e ocultar a vantagem que a aplicação
da recomendação argumentativa acarreta. É
evidente que isto não é fácil, porque se o dialogante
raciocinar bem, descobrirá o que está implicitado.
Mas o argumentador só perde o jogo se se render
ao dialogante e confessar ser um interesseiro.
Mesmo que o dialogante enxergue com
objetividade sua meta, o argumentador deverá
jogar luz para outras consequências, ainda que
acessórios, e se esforçar para mostrar que, na
verdade, o que busca é o acessório e que o
75
acessório é principal e que o principal é o
acessório. A inversão é uma ferramenta
valiosíssima na argumentação. Tão importante
quanto ocultar o que tem de ser exibido, é o modo
como se oculta e como se exibe. As pessoas não
apenas perdoam ser enganadas, mas até
apreciam, desde que tudo seja feito com delicadeza
e civilidade. A mentira não pode ser encarada como
mentira, o melhor é que haja várias verdades e não
verdade e mentira. As perspectivas estremes da
coisa da emoção são versões. E uma versão é uma
verdade complementando as demais. Sim, porque
embora a última premissa e o último corolário tudo
albergue e tudo harmonize e concatene, as
premissas e os corolários medianos se excluem
reciprocamente e chegam a ser antípodas um em
relação ao outro. A conversação decaiu muito
porque passou por uma pauperização sintática e
semântica. Corriqueiramente pratica-se uma
linguagem carregada de libidinosidades e
expressões chulas. O discurso é mal estruturado e
os raciocínios são cada vez mais obnóxios. Não há
76
mais períodos longos. Tudo o que requer um
milímetro a mais de inteligência é rechaçado. E
ainda que a pergunta: por que ficou pobre a
semântica e a sintaxe? Isto é explicável pelos
critérios de eleição da mídia, sobretudo da mídia
televisiva e internáutica. Em certos sítios de
informação há espaço livre para as pessoas
expressarem suas opiniões. Vemos que os
comentários sérios são excluídos, preservando-se
os comentários de baixa classificação. Justamente
agora, que há uma maior liberdade de expressão,
ainda que esta liberdade comporte ressalvas, as
pessoas não sabem o que ser dito. É como eu sair
de uma cadeia e não saber o que fazer com minha
liberdade. Evidentemente que há centros de
excelência mesmo onde o dominante é o vulgar e o
banal. Em escolas onde existem profissionais da
educação comprometidos com determinados ideais
pedagógicos assistimos a produções culturais de
qualidade precoces. Em minha terra natal, São
Bento do Sul, há pessoas de tenra idade que já
podem exibir produções literárias belíssimas. Muito
77
se escreve sobre o impacto da alfabetização sobre
o alfabentizando, de todas as idades, mais
comumente, crianças. Mas o que impacta o
indivíduo impacta a civilização. Até porque por força
do Estado que converte este sagrado e legítimo
direito em compulsoriedade, é de se admitir que o
processo de alfabetização é coletivo e quase
universal. Sim, apesar do analfabetismo dos países
pobres, digo que a alfabetização é universal porque
sempre há uma elite letrada mesmo em terra de
povos ágrafos. Aprendemos palavras novas de
nosso próprio vernáculo até uma idade avançada.
O que faz presumir que dialogar bem é algo que
depende de experiência. O nível de experiência de
uma pessoa pode ser mensurada pela natureza do
teor de sua conversa. As civilizações de ponta são
as civilizações do diálogo desenvolvido. Quanto
mais os compatriotas de uma nação trocarem
ideias entre si, mais desenvolvido será o país em
todos os aspectos. Não é por acaso que a filosofia
hoje se ocupe de teoria do discurso, de linguagem
e que as tecnologias de ponta sejam as tecnologias
78
de informação e de comunicação. A riqueza de um
homem é medida pelo número de informações e
pelo banco de dados que ele detém. A informação
deixou de ser um canal de acesso ao dinheiro, ela é
dinheiro em estado puro. Vemos uma propagação
da língua vernacular sem precedentes. Mas ao
passo que se difundem expressões até então
desconhecidas, vemos que não no mesmo ritmo se
conhecem celebridades da língua. Passou a época
dos grandes autores. Nós, escritores, hoje estamos
em muitos, mas já não temos mais o gigantismo
dos antigos. Ampliou-se a cobertura, mas diluiu-se
a densidade dos pontos chaves. A estátua de
cabeça de ouro, peito de prata, abdômen de
bronze, pernas de ferro e ponta dos pés de barro
com a qual Nabucodonosor sonhou não é só a
diluição do poder político, é a diluição do próprio
saber. Eu nem questiono quem de nós hoje tem a
sabedoria de Daniel, mas quem tem o
conhecimento dos caldeus que rivalizavam com
Daniel? Em Gênesis vemos que também os
caldeus transformavam paus em serpentes. Ora,
79
quem é capaz de fazer isto hoje? Quem entre nós
tem a sabedoria egípcia da Moisés, ou quem, como
Paulo, teve um mestre como Gamaliel? A única
coisa que parece não diluir é a concentração de
riqueza nas mãos de uns poucos. Ainda que hoje
poucos andem a pé, pois podem financiar
automóvel, e que poucos sejam agregados,
conquanto o governo disponibilize linhas de crédito
para a habitação própria. Nas sociedades antigas
um só era poderoso e poucos eram sábios, todavia,
se aprouvesse ao a priori histórico fazer recair
sobre alguém o conhecimento, ele era
premiadíssimo. Se há alguma vantagem em diluir
mérito, conhecimento, dinheiro e poder isto se
resume que a arbitrariedade ou a morte do
indivíduo consiste na não desestabilização do
sistema. Todavia, de que aproveita um sistema
estável onde o máximo que o melhor dos cidadãos
irá conseguir é uma meia realização? A
Antiguidade, neste sentido, era muito superior. Só
na Antiguidade vemos o homem integral ou total.
No Renascimento também vemos algum destes
80
exemplos. Sim, digo isto, ainda que os totalmente
realizados estivessem calcados sobre uma imensa
maioria de insatisfeitos. Precisamos incentivar a
cobertura universal da democracia iluminista com
os superindivíduos da Antiguidade. Desde os mais
longínquos tempos, ou para usar uma expressão
feia, porém, mais apropriada, desde a noite dos
tempos há um contubérnio incestuoso entre
riqueza, religião e poder político e o conhecimento
não tem passado de um amálgama entre os três
elementos. Em nossa ótica não há como se
esquivar desta mancebia, exceto que o
conhecimento deverá ser promovido a uma posição
de maior destaque. Aliás, aposentaram a palavra
“sabedoria” para transformar tudo em
“conhecimento”, esse coiso morto e cheio de
regras. O conhecimento tomou o lugar da
sabedoria, o operador jurídico tomou o lugar do
jurista, as ciências da linguística tomaram o lugar
das Belas Letras. Tudo se tornou peça, um corpo
morto para ser dissecado para os amantes da
anatomia. Coisamente coisificamos aquilo que
81
sabidamente transcende a esfera da coseidade. Até
as Humanidades foram convertidas em Ciências
Humanas Este é o paradigma que se impôs e que
pretendo quebrar. Uma só ressalva faço: quando se
está a falar de direito penal, é de se cobrar
cientificidade máxima do processo penal. Porque
somente o processo penal enquanto ordenação de
realização organizada de atos abarcando inclusive
perícias, como laudo de exame cadavérico,
balística, fosfatase, luminol, DNA, etc, é capaz de
descer às minúcias sem as quais não se é
admissível dar brecha à condenação. Isto está
acima do livre convencimento do juiz monocrático
ou dos jurados. Flexibilizar autoria e materialidade é
abrir brecha seríssima por onde passam inocentes
do convívio livre com outras pessoas para serem
lançados ao ergástulo de população de má índole.
A convivência é assimilação, já dissemos que a
natureza tem horror ao vazio preferindo locupletar-
se de conteúdo, qualquer que seja ele a quedar na
vacuidade. Tão importante quanto rechear de
subjetividade aquilo que é objetivo, é empaturrar de
82
objetividade aquilo que é essencialmente inobjetivo.
Entrementes, não tiro o mérito do processo de
cientificização, ele logrou alguns êxitos e méritos. O
que me refiro é que não podemos ficar só nisto e
que esta não pode ser a única perspectiva. Todo
ramo de saber, qualquer que seja ele, pode ser, no
mínimo, vislumbrado pelas seguintes perspectivas:
lógico-matemática, filosófica, teológica, mística,
científica, literal e artística. É bem verdade que a
abordagem científica é a que põe em marcha a
maior série de resultados pragmáticos. Mas nem
por isso devemos abrir mão do paracientífico. A
ciência é um fenômeno recente na História da
Humanidade. Talvez tenhamos nos rendido
totalmente a ela porque ainda estamos curtindo e
nos regozijando com a afobação da vassoura nova
que varre bem. Ao invés de expropriarmos os
donos dos meios de produção, precisamos
disponibilizar os tais meios a quem quer que o
queira. Isto é totalmente possível. Foi isto o que se
fez com a profissão de advogado, por exemplo.
Hoje qualquer um pode ser advogado, basta cursar
83
o curso que é bastante encontradiço e ser aprovado
no exame da categoria. As carteiras de advogado,
portanto, não são mais monopólio de uns poucos e
nem por isso a advocacia perdeu seu valor.
Democratizar os meios de produção, produção de
tudo o que entra num processo produtivo, tudo
mesmo, é simplesmente, para não restar mais
dúvida, tornar os referidos meios tão baratos e tão
financiáveis que qualquer um ou a maioria possa
comprá-los. E não adianta fazer despencar o preço
se o cidadão comum a despeito da ímpar
oportunidade não tiver um mínimo suficiente de
capacidade de endividamento. Assim, aumentando-
se a renda de quem recebe renda e podendo seus
recebedores comprarem certos meios de produção,
quem já era dono dos mencionados meios auferirá
mais. De sorte que o modelo de sociedade diante
dos quais estamos acentua a diferença econômica.
Os cidadãos precisam estar mais próximos uns dos
outros. O Estado deve ser o monopolizador do
setor energético e investir fatia substancial do
superávit em educação. O Estado, todavia, a olhos
84
vistos no Brasil acentua a desigualdade social. Pois
entra na máquina do Estado os muito ricos ou os
seus representantes que manejam a administração
pública em favor dos interesses particulares
abonados. Assim, ou bem se implanta a lógica da
igualdade, ou bem se implanta a lógica da
desigualdade. No capitalismo os donos dos meios
de produção. No capitalismo poder econômico vira
poder político e no comunismo poder político vira
poder econômico. Predominantemente falando
porque tanto na esquerda quanto na direita trata-se
de vias que vão e que vem. No capitalismo o
sistema diz que o administrado é livre, mas não no
é, no comunismo se diz que todos são iguais, mas
não no são. Talvez nem a igualdade e nem a
liberdade tenham se concretizado pela ausência da
fraternidade. Do mesmo modo que a bandeira
nacional brasileira não cumpre os dizeres ordem e
progresso por falta de amor. A fraternidade e o
amor só podem advir de um Deus que a um só
tempo é amoroso e pai. Nada mais correto os
dizeres na cédula “Deus seja louvado”. O dinheiro é
85
de Deus antes mesmo do que do Estado que o
imprime ou dos cidadãos de determinada pátria. O
dinheiro é importância enquanto aparência a cobrir
uma essência traduzível em diligência, trabalho,
abnegação, persistência, constância,
empreendedorismo, sacrifício e uma gama de
muitas virtudes. O dinheiro do banditismo, da
prostituição e da corrupção se desvanece por
estarem ausentes os itens há pouco citados. O
problema de todo e qualquer sistema são as redes
de relacionamento. Este é um problema do
comunismo, do capitalismo, do cooperativismo, das
igrejas, do sindicalismo, dos partidos políticos e de
tudo o que se possa imaginar: o grupo que se
implanta como uma mancha bacteriana sobre a
superfície da água. Assim é a máfia da Itália e
assim tantos outros grupos na maioria dos países
do mundo, senão em todos. Só para os dominados
há a impressão de que somos tragados pela
estrutura do sistema. Só o Zé ninguém é entregue à
moagem, a lei foi feita para ele. Para quem é poder
de fato a estrutura é predominantemente vantagem
86
pessoal e poder de decidir sobre a vida alheia.
Todo e qualquer modelo de sociedade, por conta
destas organizações metapolíticas,
metaeconômicas e ultratudo, queda refém da
idiossincrasia das personalidades integrantes do
conjunto. O sistema pegando uma analogia
emprestada da medicina, é o esqueleto. Este grupo
que se apropria da máquina do Estado, da religião
e dos meios de produção da sociedade é a alma do
sistema. E a saúde do corpo, leia-se, a saúde da
sociedade é a soma da saúde esquelética e
almática. Assim, tão importante quanto o vigor e a
organização das estruturas é a virtude e a sã
intenção dos membros cuja soma se traduz na
totalidade dos operadores do sistema. O Cristo
disse que não se põe remendo novo em roupas
velhas e nem vinho novo em odres velhos. Ora, de
nada adianta um ser humano de qualidade à frente
de um sistema falido ou o melhor sistema na mão
de meliante. É preciso jungir um sistema de
qualidade a um ser humano de qualidade. Em
qualquer sociedade que alguém esteja inserido
87
sempre será importante a conversão. O argumento
que se instrumentaliza dialogicamente é o que pode
me fazer angariar recursos ainda que ninguém veja
em mim condições objetivas de solvabilidade no
caso de empréstimo. É a conversação que irá me
colocar no parlamento municipal. Toda e qualquer
sociedade, independente de sua estrutura é feita de
relacionamento e o relacionamento é comunicação.
Sendo entendida a comunicação não só como troca
de informação, mas de afeto e afeição. A
comunicação é a tentativa de ser os dois filhos ao
mesmo tempo e o modelo de civilização passa por
isso: ser o filho pródigo que tem a noção de que é
filho pródigo que tem a noção de que é filho e ter as
características do irmão mais velho que tem que
trabalhar. O comunismo empregou a pródiga
fruição e o capitalismo é uma sociedade de
empregados. Fica a questão: é melhor uma
sociedade onde todos trabalham e fruem ou é
melhor uma sociedade em que a maioria trabalha e
os mais espertos, habilidosos e impositivos fruem?
Aristóteles, em A Política convida o leitor à seguinte
88
reflexão: se há corpos robustos de pouca intelecção
e corpos frágeis de grande pensamento, não é
natural que estes últimos comandem os primeiros?
Trago à baila esta paráfrase porque o que temos
visto é que pessoas submetidas a idênticos
processos de aprendizagem têm aproveitamento e
desenvoltura muito diferentes. Qualquer que seja o
sistema há um lado positivo trazer as pessoas para
dentro da esfera de poder, dinheiro e ideologia: é
que em torno de cada liderança se forma um
cinturão de prosperidade, entendida esta no seu
sentido mais amplo. Quem é empoderado recebe a
capacidade de influenciar a vida das outras
pessoas. Mas se alguém de algum modo conseguir
influenciar positivamente a vida das pessoas,
dentro de algum tempo será premiado com todas
as vantagens e prebendas de quem está montado
na estrutura. Augusto Comte elege como critério
máximo de organização social a estabilidade. A
ciência substitui a religião, os cientistas o clero, a
ciência torna-se um credo com direito a catecismo e
culto a personalidades do pensamento e liturgia.
89
Comte é saudosista e não se conforma com as
mudanças repentinas da sociedade moderna. A
dormência medieval, talvez não se perceba isto, foi
uma exceção, porque a regra é a mudança
heraclítea, não só na natureza, mas, por
antonomásia no âmbito social. Sobre se vale à
pena pensar um modelo novo de sociedade ou se é
melhor cuidar da própria vida e dos próprios
projetos, digo que assim como a maioria cuida de
si, é louvável que uns poucos se empenhem em
cuidar de todos. Se quase todos são pura ação,
não há porque impedir que alguns sejam puro
pensamento. Quanto ao projeto de pan-helenismo
que deu certo, mas naufragou ou quanto ao projeto
americano ou comunista de sociedade, digo que só
porque as sociedades que conseguiram se
implementar e saíram do mero modelo, isto não tira
sua eficácia. A efetividade passageira apenas faz
reluzir a relatividade da teoria que lhe serve de
modelo. E que bom que é assim, porque sempre há
trabalho para os intelectuais. Assim como numa
empresa é preciso que haja quem pense a
90
totalidade da atividade empresarial e não
pontualmente produção, tributação, recursos
humanos, contabilidade, marketing, etc, também e
com muito maior razão alguém precisa pensar em
para onde estamos indo como sociedade e
civilização. Assim como um militar de baixa patente
cuida de assuntos pontuais, o general pensa a
guerra como um todo. Esta é a ideia de incumbir
alguém de cuidar dos problemas do bairro, do
município, da microrregião, da região, da
macrorregião, do Estado e da nação. O filósofo é o
pensador que cuida, dos interesses globais da
humanidade. É claro que mesmo em nível global
deve haver quem capitaneie o processo
civilizatório. Diria que o Brasil não pode ainda ser
este dirigente mundial porque ainda não sabe
cuidar de si mesmo e, quando souber
operacionalizar uma coisa, saberá realizar também
outra. E é justamente por isso que os Estados
Unidos fazem este papel apesar de serem gente
como a gente. Mesmo o intelectual reconhece que
a ação é mais importante do que o pensamento
91
para o sucesso de uma nação. O pensamento é o
sintoma e o produto de uma sociedade bem
sucedida. Mas para que o bom se torne excelente é
preciso sojigar o mundo do pragmático e do
empírico à depuração do teorético. A teoria
aprimora o já feito e sempre tem o condão de
estender a cobertura. Nada mais universalizante,
onímodo e imperialista do que o pensamento
filosófico. Filosofar é fazer algumas ideias, em tese
as melhores, suplantar as menos boas ou mais
fracas. O critério para se eleger um discurso, uma
linguagem ou um modelo de civilização como
melhor é o mesmo: funcionalidade, poder de
promoção de mudança e nível de felicidade do
maior número de pessoas possível. O que se vê é
que nos centros de pujança civilizatória é mais fácil
fazer o ideal tornar-se real. E que na periferia os
princípios são de difícil assimilação. Os filósofos
são remédio para os sãos e os doentes rechaçam o
que lhes é ministrado e que, para todos os efeitos
lhe faria bem imenso. É por isso que é necessário
uma elite civilizada nos lugares mais remotos do
92
planeta. Quantas e quantas independências se
tornaram uma marcha ré. Entre o tipo aculturado
num padrão de internacionalismo e o marchetado
no regionalismo tribal no exato dia de hoje pode-se
constatar uma diferença civilizatória de 10 mil anos.
O fato é que se pratica em muitos lugares, África e
Oceania para exemplificar, canibalismo. É de se
tolerar que se coma tudo o que se mexe, mas o
corpo humano é portador de uma dignidade não
relativizável. Nós podemos acelerar o processo
civilizatório nos rincões mais remotos, mas isto tem
um limite. O padrão da cultura internacional e o
padrão das comunidades interioranas dista tanto
um do outro, que não raro toda uma comunidade
sucumbe pela depressão coletiva aguda ou pela
prática reiterada do suicídio. Fica uma dúvida
terrível: trazer para o nosso contexto estas
comunidades ermas é lhes assegurar um direito ou
cometer um sacrilégio cultural? Antes que qualquer
teórico responda a esta pergunta, o que vemos é
que o padrão atual de cultura internacional se
impõe retumbantemente, sem esperar carta-
93
convite. Por outro lado, ainda que o caucasiano
internacionalizante já tenha colocado os pés em
todos os pontos do planeta, o que se vê é uma
resistência dos povos, das culturas e das etnias
minoritárias. Não era para menos, vez que é de
fácil assimilação todo o atávico conteúdo
civilizatório, para tomarmos três adjetivos
emprestados de um velho nome do rock brasileiro.
A civilização ou o movimento civilizatório é como
um trem de muitíssimo vagões: há de haver uma
locomotiva possante que pese todos as outras
unidades, mas uma coisa é ser a locomotiva, outra
coisa, é ser o primeiro vagão subsequente à
máquina e bem outra é ser o quinquagésimo e
último vagão. Todos vão passar pelo mesmo ponto,
mas em tempos diferentes. Quando surgiu o
movimento socialista utópico francês acompanhado
de tantas outras estrelas do anarquismo francês e
italiano, veio Marx com seu socialismo científico
para do alto da crista da onda capitanear um
espírito de época. Mas nos dias de hoje embora
nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas
94
vejamos com menor frequência aqueles níveis de
exploração próprios da Revolução Industrial, não
quer dizer que os aplicados ao pensamento não
possam sonhar com algo diferente do que se tem.
Quando se fala em sociedade alternativa não se
está a falar de socialismo. A questão toda não é ser
de esquerda ou de direita, mas em acreditar que
não é porque as coisas são de determinado modo
elas terão que continuar sendo assim. Podemos
enveredar por um caminho totalmente novo, ainda
não pensado, não nominado, não vislumbrado.
Planejamento é essencialmente ter um projeto
pronto e facilmente aplicável quando antes do que
se tem em mãos estiver prestes a ser descartado. A
antropologia nos mostra que nenhuma cultura se
apaga, ou, melhor, raramente isto acontece, mas
em geral umas culturas transmutam-se em outras.
O filósofo é aquele que preza um dirigismo nesta
transmutação. Pois se não podemos continuar
sendo o que somos, devemos, no mínimo, eleger
aquilo que queremos ser. O filósofo deve, pari
passu, ter parte com o administrador público que se
95
ocupa muito mais com procedimentos do que com
ideais. E quando digo isto não quero dizer que a
procedurística seja alheia ao filósofo. Porque o
procedimento é algo extremamente ideal e é
justamente isto o que nos deixam claro os juristas
que se aplicam à Teoria Geral do Processo. É que
o administrador se incumbe de fazer descender a
instrumentalidade noética à empiricidade chã opaca
e concreta. Na verdade, há várias classes de
filósofos e várias classes de administradores. Há
filósofos que acreditam que a filosofia se esgota em
si mesma, e esta, na maioria das vezes, é a
filosofia ensinada nas Pontifícias Universidades
Católicas, com certeza, para não fazer sombra ao
projeto cristão de organizar a sociedade, e há outro
que desejam não só interpretar a realidade, mas
transformá-la. Lembro-me aqui da 11ª tese
dedicada por Marx a Feuerbach. Os filósofos
revolucionários pregam a práxis. A despeito de tal
terminologia, ela não é exclusividade dos marxistas,
mas oriunda da língua grega, que significa união
entre teoria e prática. No sentido de que o homem
96
tem o poder de intevir e fazer infinitas ingerências
na realidade para guindar o ser ao dever ser. Os
administradores são de vários níveis. Não há como
ser diferente pela própria principiologia do poder.
Assim é que o administrador do mais relés escalão
é um fiscalizador e cobrador, enquanto que o
administrador de primeiro escalão é principiológico,
tal como os filósofos. Quando Platão fala do rei-
filósofo com certeza se refere a um agente
pensante que é habilidoso em múltiplas
competências. O que mais inviabiliza o implemento
de um projeto de civilização é a limitação de
competência dos operadores do sistema posto. A
divisão social do trabalho produz especialistas e a
maneira de contornar isto é através da formação
plúrima, chamada de polimatia e pelas redes de
relacionamento. É impressionante como o sistema
atual impõe em muitos sentidos a monoformação.
Talvez por medo de que o excesso de informação
concentre muito poder em um único indivíduo. O
mesmo pode ser dito em relação ao tempo: tudo
conspira para que não tenhamos tempo para nada.
97
Exatamente naquele instante de análise, de crítica
e de reflexão a televisão está ligada. Sequer é
possível reunir a família num mesmo cômodo, pois
um filho está no vídeo game e o outro na internet
quando alguém ainda se atreve a ter mais de um
filho. E se eu for telefóbico e radiofóbico, à minha
espreita existe um universo urbano a preencher a
pauta de meu tempo livre de não reflexão. Claro
que num ambiente desse a religião vê seu espaço
diminuído pela mesma razão que não mais se
reflete. A pós-modernidade é tão contraditória e ao
mesmo tempo coerente que, qualquer coisa que se
diga a respeito dela estará, inevitavelmente, ao
mesmo tempo, certo e errado. Num mundo onde
todo sonho se realiza, desde ser autor de muitos
livros ainda que a impressão seja sob demanda, e
aí eu posso ter a impressão de um único exemplar
se esta fora demanda, até ter seu próprio apê em
São Paulo, nem que seja de exatos 21 metros
quadrados. Nada mal, quiçá, para o padrão
japonês, mas novidade para o homo brasiliensis.
Como nos ensinaram os russos: para enviar uma
98
nave tripulada por três homens no espaço sideral,
vale até pôr três homens numa cápsula projetada
para no máximo dois. O atleta olímpico é uma
tremenda ficção e o melhor exemplo de nosso
tempo: nossos atletas batem recordes inéditos e
meteóricos justamente num tempo em que não
temos nem a terça parte da resistência de nossos
avós. É que o doping não constata aquilo que é
eminentemente humano ainda que produzido de
maneira mecânica e artificial. O doping é só para
não deixar as drogas mais fraudulentas virarem
moda. É como o carro de fórmula um que é guiado
em alguns aspectos pelo computador via remota e
o piloto não passa de um incômodo passageiro.
Qual, pois, o mérito de quem? Nossa pletora de
tecnologia nos está deixando fracos no ânimo. O
ditado diz que quando a cabeça não pensa o corpo
padece. Mas a nossa inteligência prática, a nossa
inteligência prática, a nossa cabeça está pensando
tanto, que descobrimos que é até bom deixar o
corpo apanhar um bocado. O problema da
natureza, e o nosso corpo é expressão da natureza
99
à qual me refiro, é que ela é absurdamente
econômica. Só a dificuldade é capaz de gerar a
força e a virtude. A dificuldade ou joga o sujeito no
lodo ou faz dele um herói. E olha que muito herói já
esteve no lodo! A tecnologia tem realizado os
nossos sonhos e o refinamento da burocracia é um
complemento ao que a tecnologia nos disponibiliza.
A burocracia, aliás, fomenta o desenvolvimento da
técnica quando eficiente em seus ofícios de
despacho e desembaraço, e a tecnologia, e grifo a
tecnologia da informação, fomenta a eficiência e a
celeridade da burocracia. O advogado é o burocrata
que está sendo cada vez mais onerado com os
processos tecnológicos. Toda vez que a tecnologia
da informação não efetiva seu escopo a não
realização do ato implica a responsabilização do
advogado e não do agente estatal ou do Estado. É
uma pena. Porque sendo o advogado o jurista mais
criativo, ele deveria se ver livre do tecnicismo
espezinhante para ter mais tempo de refletir acerca
das ações que estão sob sua fidúcia. De igual
maneira os títulos mais elevados que cobrariam no
100
passado dote artístico, conhecimento científico,
intelecção ou poder de argumentação esbarram em
vestíbulos burocráticos. Perece o talento em nome
do cotejo ao Estado Soberano. É recomendável
que sejam eliminados os excessivos critérios de
seleção, ainda que dando mais vez aos que
aspiram ao referido status sem que a decepção
seja maior na reta final. Isto porque a pletora de
documentos gera aquele frustrado músico que não
pôde fazer vibrar uma única corda de sua viola por
falta de um carimbo. Assim como tudo na vida, no
passado, era artesanal e agora é produzido em
série fabril taylorista, o mesmo se aplica à
metanarrativa. As velhas questões teóricas do
passado não foram respondidas. Antes que um
gênio desse conta delas elas perderam o sentido. É
como se preocupar em aprimorar a máquina
datilográfica quando computador que encerra muita
tecnologia está mais barato do que ela. O exemplo
é fraco, mas bom o suficiente para ilustrar o que
pretendíamos. E isto não vale apenas para o
âmbito da técnica, mas para o âmbito do
101
pensamento: não se aprofundam muito as questões
metafísicas e até a própria epistemologia perdeu
muito campo com a guinada filosófica centrando-se
sobre a linguagem. Não é por acaso que as
questões teóricas fora de moda são rotuladas como
“discutir o sexo dos anjos”, é que as entidades
angélicas já não recebem tanto a nossa atenção.
Digo isto apesar dos vários vai-e-vens dos surtos
esotéricos com direito não só a anjos, mas ainda a
fadas e duendes. É que a exacerbação da
racionalidade atrai o seu oposto que é a
superstição, a crendice e a mística.
O papel da mulher nos dias de hoje
Nenhum dos tempos que nos antecederam foi tão
feminista quanto o nosso. Não era para menos,
estamos na era da informação. Não foi por acaso
que o anjo apareceu para duas mulheres depois da
ressurreição de Cristo. A menina tem uma
habilidade linguística precoce em relação ao
menino. Isto é muito importante do ponto de vista
102
teórico porque a inteligência da mulher é diferente
da inteligência do homem. Não só o homem, mas
também a mulher produz metanarrativa, embora a
mulher seja mais intuicionista e menos
cerebrotônica do que o homem. O masculino é o
feminino são dois princípios complementares e o
machismo erra por deixar a figura feminina
apagada. O feminismo erra ao entender e pregar
que a fêmea tem de fazer o papel do macho, o que
é um equívoco. A fêmea tem de fazer o papel dela,
até porque o papel dela não é menos nobre. Os
geriatras costumam dizer que com o avançar da
idade o homem fica mais feminino e a mulher mais
masculina. É bem verdade: do ponto de vista não
só hormonal e orgânico, mas psicológico e noético
também. Simplesmente porque a idade nos traz
maturidade, sendo ela equilíbrio. Ora, equilíbrio é a
presença paritária de todos os ingredientes da
personalidade humana, inclusive daquilo que num
primeiro momento me representava oposição antes
da assimilação. O desafio para as mulheres é
exercer papéis que antes eram talvez não
103
prerrogativas, mas incumbência exclusiva dos
homens, sem remedar os cacoetes inerentes à
desenvoltura das tais. Talvez o que mais falte às
mulheres seja maturidade intelectual. Não é de se
tirar a razão de Schopenhauer quando este diz que
a mulher é um meio termo entre a criança e o
homem adulto. É que as maiores tradições
intelectuais da humanidade são construídas por
homens. Seja no campo da religião, da filosofia, da
ciência ou das artes. Aliás, neste último caso
vemos uma participação maior das mulheres.
Relativizando este perspectiva dizemos que assim
como a filosofia não é nem grega e nem não grega,
mas humana, da mesma forma, ela não é nem
masculina e nem feminina, mas humana. Ninguém
torna-se livre enquanto não desenvolver um
pensamento de liberdade e de libertação. Aliás,
Cristo diz que um cego não pode conduzir a outro
certo porque ambos cairão num buraco. Assim, da
mesma forma, as mulheres a ninguém podem
conceder emancipação enquanto elas mesmas
estiverem subsumidas a processos de alienação. O
104
homem e a mulher precisam acreditar que estão
prontos para a liberdade. Projeto de civilização de
verdade é aquele que emancipa o ser humano de
toda idade, de todo gênero e de toda cultura. A
cobertura deve ser a mais ampla possível caso não
possa ser universal. A metanarrativa feminina por
certo que é mais afetiva do que a masculina pela
natureza mesma da mulher. Deus é pai e não mãe.
Todavia, o próprio Cristo quis vir sob a pele de um
homem e não de uma mulher. Deus quer ser igual a
si mesmo: o Deus Pensado quer ser igual ao Deus
Pensante. Deus é pensamento. O pensamento é
afetivo e é por isso que se diz que Deus é amor. O
homem é imagem e semelhança de Deus e por isso
ele é imagem e semelhança de Deus e por isso ele
é um pensador, um metanarrador. Deus é a casa
da moeda das premissas e dos corolários e Ele
quer que busquemos as flores de cunha. O Deus
pensante está pronto em ato puro como ensina
Parmênides, Aristóteles e Tomás de Aquino e o
Deus Pensado está em processo de fazimento
como sugere Heráclito e Hegel e a união dos Dois
105
são os relógios perfeitamente sincronizados de
Leibniz. E eu arremato o dito de Leibniz. E eu
arremato o dito de Leibniz: um digital e outro
analógico. Se Deus é o consignatário das
premissas e dos corolários, satanás é a mente
maligna de Descartes. A mente é o campo de
batalha e satanás enquanto oposição à perfeição
do pensamento é uma anticategoria, um
desestruturador. O papel do inimigo é bloquear os
nexos de causalidade benignos e fazer conexões
errôneas para nos tirar da rota. Tudo é ideológico.
Satanás é ideológico. A própria natureza é
ideológica. O corpo da mulher é outdoor, é palco de
exposição e placar. As minhas pernas, por
exemplo, são tortíssimas. Sou o primeiro a ficar
cansado quando estamos de pé, parados, mas o
que resiste muito a uma longa caminhada. Minhas
pernas foram projetadas para subir morro e
aguentar frio extremo. Oscar Niemeyer se
notabilizou como arquiteto por captar estas
sutilezas. A engenharia tem sua emoção. Tudo
exsuda emoção. O filósofo não é frio, ele apenas
106
ama de uma maneira diferente. As metanarrativas
que mais tomam vulto possuem as seguintes
características: 1) explicam o passado; 2) predizem
o futuro; 3) ensinam e dão um sentido à vida; 4)
elas são afetivas; 5) explicam e procuram resolver a
beligerância. O judaísmo, o cristianismo, o
marxismo e as religiões em geral são as que mais
se aproximam deste conjunto de itens. Quanto mais
harmonioso e organizado o pensamento de um
homem mais próximo de Deus ele está. Daí a
importância do perdão: quem odeia é como um
homem que revolve o fundo do leito e fica com o
rio, a consciência, turva. O satanás é aquele que
turva a metanarrativa. As mulheres estão ganhando
espaço em nossa civilização porque o pensamento
é a emoção amadurecida. Assim quando tudo o
que era embrião agora maduro e quase senil está,
há necessidade de vir uma nova geração um
sentimento pueril e rejuvenescedor. A racionalidade
masculina nos deixou tão sobrecarregado que
sentimos a necessidade de devolver às mulheres o
que elas perderam há dez mil anos atrás com o
107
surgimento do patriarcado. O campo oxigena a
cidade e a fêmea oxigena o macho carrancudo. O
que se produziu na Alemanha depois de Hegel foi
uma involução. Não é só porque algo está
cronologicamente mais próximo de nossos dias que
o mais remoto lhe é necessariamente inferior.
Geralmente, aliás, depois do excelente vem a
decadência. O marxismo é decadência quando faz
a enormidade do pensamento se tornar detalhe.
Mas o marxismo é riquíssimo se partirmos do
suposto de que ser filósofo e economista é uma
coisa só. Para Marx a economia é o princípio
máximo de explicação da realidade como o é a
biologia para Darwin. Hegel a um só tempo encerra
com chave de ouro a modernidade filosófica e
inaugura os conturbados tempos filosóficos
contemporâneos. A contemporaneidade é a perda
da ideia de sistema e a crença da incontrolabilidade
da multidão de perspectivas. Na verdade, a
oumperiforalogia aceita a um só tempo Hegel e os
contemporâneos. Não queremos matar Hegel, pelo
contrário, queremos que cada habitante do mundo
108
seja um novo Hegel. Não se trata, pois, de enterrar
as metanarrativas, mas de fazer nascer tantos
metanarradores em cada rua, tantos quantos seus
residentes. Queremos que também a faixineira e o
gari tenham a sua “consciência absoluta” na
medida em que isto for possível. E as mulheres
estão incluídas neste convite. É nesse sentido que
a legislação eleitoral estabelece um número mínimo
de parlamentares mulheres. Elas não devem ser as
mais falantes só no interior doméstico, mas nas
instâncias públicas e diante dos microfones mais
cobiçados e ideologicamente sobrecarregados.
Nada mal unir Hegel a Habermas, no sentido de
que há uma humanidade toda e outra que nós,
enquanto comunidade politicamente organizada,
criamos e impomos a nós mesmos. A metanarrativa
ao modo hegeliano que independe de nós é o
castelo conceitual âncora que nos mantem
equilibrados e firmados sobre a relatividade
aquosa. Entre a metanarrativa dada e a que nós
forjamos há um jogo de forças e antiforças em que
pontos apoiados e apoiadores sustêm um ao outro
109
simultânea e reciprocamente. Assim é a
codependência masculino e feminino, ou, como
querem os orientais, ying e yang. Só pode o
Estagirita falar ou na matéria ou na forma, porque,
no fundo, existem as duas. Talvez o nosso grande
erro seja pensar que a racionalidade, de per si,
pertença ao mundo masculino, o que é uma
incorreção, pois houve época em que o escravo foi
equiparado a um animal ou a uma coisa. Uma
esquematologia metafísica, ainda que à moda
logicista de premissas e corolários, pairando acima
da realpolitik é algo tão necessário ao mundo
teórico como o é a Câmara Alta em relação à
Câmara Baixa, para compensar as depressões e os
ápices das maiorias eventuais. Perguntado de qual
das partes é a mais importante diria que todas as
partes são importantes ainda que não no mesmo
status, elegendo a categoria Deus como sendo a
máxima categoria. O mesmo vale para as
construções teóricas ao longo da tradição filosófica.
Pois ainda que algumas luzes cintilem mais que
outras, as chamas fortes não existiriam sem a
110
anterioridade das fracas. Pragmatismo à moda de
Pierce é um discurso vazio e até sem utilidade se
não se pensar em termos puramente teóricos, se
não se pensar nas premissas e nos corolários do
comportamento e num modelo de civilização. Uma
nova civilização é alcançada e estabelece um novo
padrão de pensamento e de comportamento. As
mulheres contribuem muito neste sentido: a uma
porque a cada dia que passa aumenta o número de
mulheres pensantes, a duas, porque a mulher gosta
de se caracterizar pelo comportamento que impõe a
si mesma. Entre Platão e Aristóteles fico com os
dois e é com este espírito que caso Hegel com
Habermas. Deus é um Deus que se comunica, Ele
é o Artífice da e pela Palavra, e, o que faz com que
sejamos homens e não feras é a linguagem.
Verdade é discurso, ética é discurso: mas é o
próprio Habermas quem admite a ética mínima para
começar a grande ética. Aristóteles colocou a forma
na coisa pastosa que é a matéria, porém, não teve
como dar conta de explicar a realidade de uma
maneira coerente senão admitindo o Motor Imóvel.
111
O Motor Imóvel é não espacial, não temporal, não
tem extensão, não é uma coisa ou uma esfera
como querem algum, pelo contrário, é uma
abstração, uma ideia, uma categoria, um princípio.
Ou seja, a Ideia de bem no cume do mundo das
ideias de Platão não muda nada do Motor Imóvel
de Aristóteles. Aristóteles quis, mas não conseguiu
reduzir tudo à imanência. Habermas peca, aliás, ao
querer reduzir tudo à imanência da comunidade
real. Ainda que ela seja compensada pela
comunidade ideal. Sim, é isto o que quero dizer: a
expressão “comunidade ideal” não é muito feliz
porque, embora a ideia estando correta, foi
nominada por uma expressão que não revela
devidamente sua natureza.
Inteligência como fenômeno coletivo
A inteligência nasce coletivamente. Quando um
grupo de hominídeos emite um determinado tipo de
grunhido diante de um determinado tipo de
circunstância, cada qual grave em sua memória o
112
som emitido por si mesmo e pelo outro. Logo, pela
maior frequência de um tipo de grunhido diante de
uma similar circunstâncialidade, vai sendo feita uma
coleção de grunhidos. A inteligência individual é
produto da inteligência coletiva. Primeiro existem os
grunhidos fora de mim e depois dentro. A
linguagem é sinestésica: vejo uma circunstância,
minhas cordas vocais produzem um determinado
tipo de reação e, a minha memória vai
armazenando esta série de sons. A linha nodal
ocorre quando a inteligência deixa de ser passiva e
começa a processar isto tudo. É por isso que
quanto mais socializada uma pessoa, maior sua
inteligência. Um grunhido só passa a ter um
significado interpessoal quando um indivíduo o
associa a alguma coisa diferente dele e outro
sujeito acata a injustificável associação. Cultura é
isso, nada mais do que isso. O brasileiro nada será
enquanto outros brasileiros não lhe reconhecerem
como algo. Dar credibilidade a si mesmo é o
segredo do sucesso das civilizações europeias. A
Europa sempre foi tão cheia de credibilidade que,
113
quando dela só restavam ruínas, duas
superpotências, os Estados Unidos da América e a
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
acreditaram nos escombros a ponto de a Europa
hoje ser o lugar mais rico do mundo novamente se
o que se considera é o nível geral de vida e não
apenas o PIB. Linguagem é depositar credibilidade.
Por isso que o inglês é a língua mais famosa do
mundo. Acatar um valor semântico ou um novo
valor semântico a algo é um exercício de
submissão. Numa sociedade em que todos são
vaidosos nenhum sequer recebe a coroa da glória.
No mundo cultural também é preciso que haja
liderança e ela nem precisa estar encastelada num
universidade ou no departamento de certificação da
qualidade dos cursos superiores. A linguagem
escrita em algum sentido é mais impositiva que a
linguagem falada. Porque uma vez no papel ela
dura e perdura. Eu posso gostar da palavra ou não,
mas ela está lá. A palavra escrita tem um nível de
capricho maior, via de regra, do que a linguagem
coloquial e isto ajuda na sua fixação. A linguagem
114
escrita, assim como a sua matriz, a linguagem
sonora, transforma seu criador. O homem age
sobre si mesmo pela linguagem. A linguagem
escrita tem uma cara de objetivamente posta. Ela
tem a desvantagem de uma certa rigidez quando o
hermeneuta tem pouca prática, mas, em
compensação, nada perde e tudo resgata o que é
exprimível.
Público: o que está no mais íntimo
O nosso intelecto não apenas está organizado em
premissas e corolários, mas ainda organiza-se em
camadas. Isto significa que as grandes sequências
de premissas e corolários são metafisicamente
organizadas por trechos de sequências que se
caracterizam por um espírito de grupo. O que
ocorre é que por vezes temos dificuldade de
transitarmos livremente de uma sequência à outra,
embora transitemos livremente dentro de uma
mesma sequência. As sequências mais periféricas
são próprias do ser social e não há praticamente
115
restrição de informação. As camadas do cerne
como ensina Jung também são coletivas: sendo o
externo e o interno públicos. Nossa privacidade
reside, pois, nas camadas intermediárias.
Justamente corroborando nessa tese sobre a
linguagem. O privado nada mais é do que a noção
proprioceptiva do público. O privado é aquilo que
não temos interesse de externar. Essa ideia de
camada está relacionada a uma perspectiva
diacrônica. De sorte tal que as camadas mais
periféricas recebem impressões mais tardonhas do
que as mais intensas. Os a priori ou os corolários e
as premissas do primeiro nível são prontos e inatos
enquanto que os a priori das segundas e
posteriores camadas vão sendo construídos pela
experiência como quer Piaget. Quando ocorre o
assentamento de a prioris nas camadas posteriores
isto não revoga o que está subposto nas camadas
mais basilares.
Fungibilidade de conceitos
116
Considero-me experiente quando do que se trata é
de teoria. Tenho visto que se produz teoria como se
produz a marca de uma mercadoria. Teoria nada
mais é do que um arranjo concatenado de
conceitos. Percebo que existem vários conceitos
para nominar as mesmas realidades. Também isto
é multiplicar os entes sem necessidade. Aliás, por
falar em escolástica passo a redigir o próximo
tópico.
A atualidade da Escolástica
As premissas e os corolários estão para outras
premissas e outros corolários como a potência está
para o ato. Permanentemente saímos da
potencialidade e vamos passando por uma perene
transição de atualização. No sentido de que o
movimento da consciência é ser cada vez mais, é
efetivar-se, é o querer pensar para o já pensado.
No sentido de que o ser e o pensar coincidem. Se
para Aristóteles o Motor Imóvel é causa final e para
Tomás de Aquino é causa eficiente, digo que os
117
dois estão corretíssimos porque a premissa máxima
e o corolário máximo se identificam porque o ponto
de partida e o de chegada é exatamente o mesmo.
Porque experiência é sair de si para voltar para si.
É uma lógica que se torna ilógica para resgatar a
logicidade. E só o movimento produz pensamento,
cultura e linguagem. O ser perfeito de Parmênides
nada produz. Os medievais fizeram um belíssimo
trabalho de lógica, sobretudo classificando as
várias espécies de silogismo. Mas a lógica de
Aristóteles, a dos medievais, a de Hegel e a de
Frege, na verdade, é uma só. A ideia de
substância, na verdade, é uma só. A ideia de
substância quer se reportar à coincidência entre o
ser e o ideal. Ainda que a substância seja um
mutatis mutantis, ainda que quando se fale em
substância nos reportemos ao ser e ao ente, ou,
como surrada e cacofonicamente dizemos, o ser do
ente. No sentido de que o particípio presente que é
ativo quer dizer que não apenas o ser é, mas, que
está sendo. A metafísica aristotélico-tomista ilustra
bem o que queremos aplicar ao comportamento:
118
que quem existe já se comporta de uma
determinada maneira, contudo, visa aprimorar sua
conduta para um patamar de uma determinada
maneira, contudo, visa aprimorar sua conduta para
um patamar superior. Ideia de bem, Motor Imóvel,
Ato Puro, Consciência Absoluta, Tupã, são as
perspectivas de uma só e indecomponível ideia.
Para nós a Premissa-Corolário, o Alfa-Ômega.
Cada vez que saímos de um trecho de frequência
englobando uma subsérie de premissas e
corolários e vamos para um supernível ou um
subnível, mudamos de um estado menor para um
maior ou de um maior para um menor. Cada linha
lindeira é a linha nodal que Althusser chamou de
ruptura epistemológica. É a acumulação
quantitativa que se transmuta na configuração
qualitativa da natureza daquilo que está em
processo. Compreendendo-se de modo absoluto
apenas uma coisa é possível compreender todas as
coisas. A filosofia pretende compreender esta
mesmidade que há entre umas e outras coisas.
Como diria Anaxágoras, tudo está em tudo. Tudo é
119
redutível ao ser. Respondendo-se à pergunta “o
que é o ser?” tudo estará respondido.
Respondendo-se à pergunta “o que é a
linguagem?” sabendo-se que é através dela que
referenciamos todos os seres, tudo estará
respondido. Na verdade, isto tudo foi respondido de
diversas maneiras, mas sempre há quem não se
satisfaça com a resposta e é por isso que a
discussão é transposta de umas premissas e
corolários e outras premissas e corolários. De todos
os lados do cristianismo católico o mais belo é o da
filosofia. Abstenho-me de acusar o mais ignóbil
porque só o lado belo das coisas é do meu
interesse. Por falar em filosofia cristã, digo que ela
e o marxismo são alvos de preconceito em relação
a uma espécie de máfia do pensamento. Em que
pese os erros históricos do cristianismo real e do
socialismo real, não podemos deixar de acolher
suas contribuições teóricas. Em relação ao modelo
societal cristão, o que vemos, é que quem não
pertencesse a nenhuma guilda, a nenhuma
confraria, estava fora do rol de prováveis cidadãos
120
de considerável projeção. Na sociedade medieva
isto fica mais claro, porém, em verdade, este é o
mesmíssimo problema de todos os tipos de
sociedade possíveis. Do ponto de vista teórico a
perspectiva liberal burguesa é a mais realista e a
mais idealista. Mas ela não vive o que prega. Neste
sentido podemos dizer que existe cristandade e
cristianismo, mercado e liberalismo, socialismo real
e socialismo científico. A efetividade está para a
idealidade como uma premissa qualquer, no interior
dos silogismos medianos está para o corolário
perfeito da respectiva metanarrativa. Quem sabe
não é encurtada esta diferença entre o ser e o
dever ser em razão da inaplicabilidade do conceito
ideal? Ora bem, então é de se mudar o tal conceito
para verificar se uma nova proposição alcance um
êxito sem precedentes no sentido de sintonizar o
empírico com o ideal. No dizer de Amartya Sen,
unir o niti ao nyaya, respectivamente a situação
ideal e a situação de fato.
O que mais funciona no mundo
121
O que mais dá dinheiro no mundo, ou o que se
encontra entre os negócios lucrativos são os
networks. Justamente porque assim como a
metanarrativa que é construída em nossa cabeça
também a rede de vendedores-compradores é em
forma de teia. Nenhum modelo supera isto e a
maior prova disso é o regime político do Egito cujos
maiores ícones traduzem o princípio de auto-
organização social, as pirâmides. Todavia, é um
sistema que solapa quando a cobertura se
aproxima de 100%. Claro: assim como as
metanarrativas que mais deram certo no mundo,
elas só funcionam bem quando estão inacabadas.
O crescimento vertiginoso é o trampolim para a
bancarrota e é exatamente por isso que o governo
chinês barra o aumento demográfico e desacelera a
própria economia.
Etnotolerância
122
A característica da metanarrativa aberta e da
metanarrativa fechada é que a primeira consegue
ler as circunvizinhas enquanto que a última não
consegue sair de si mesma. O metanarrador que
postula uma metanarrativa aberta deve, conforme
sua natureza, prestar deferência inclusive a quem é
arrogante e fechado. Ser ético é partir da premissa
de que a minha cultura e a minha metanarrativa
possui o mesmo status como o do outro. Ser ético é
partir da premissa de que os corolários próprios e
alheios são sempre conciliáveis. Isto não quer dizer
que nunca haverá truculência. Tanto na teoria
quanto na práxis. Porque a árvore do conhecimento
é resistente e é preciso agitá-la para que se possa
colher fruto. O conhecimento e a maneira como
tratamos as outras pessoas precisam ser
continuamente atualizadas. O Renascimento no
campo da cognição deve ser uma missiva que se
itera de quando em quando sistematicamente. O
Renascimento impôs um padrão epistemológico e é
justamente isto o que propomos. Há uma pars
destruens e uma pars construens. Devemos
123
relativizar o já posto e excessiva criteriosidade
próprios dos meios acadêmicos. Uma das maneiras
de evitar o conflito é aceitando as categorias do
outro. A filosofia brasileira é assimilação
interpretação, mas peca por lhe faltar o essencial.
De acordo com Gilles Deleuze, “filosofia é criação
de conceitos”. A nós, brasileiros, falta essa criação
de conceitos. Diria, aliás, que isso tem um lado
bom. Porque a primeira tarefa da criança é copiar e
repetir. Só quando ela chega à adultícia ela pode, a
partir de certos parâmetros, inovar. Mas o Brasil já
é adulto o suficiente para criar ideias novas. A única
razão pela qual a obra de Fídias Teles “Dimensões
da Angústia Humana” não é sucesso mundial, é
que lhe falta essa criação de conceitos. Todavia, os
aspectos narrativos, descritivos e problematizantes
são insuperáveis, faltou apenas a solução. Todavia,
é impossível ler a obra do autor e não admitir que o
ser humano é um ser absurdamente angustiado. A
criação de novos conceitos, de começo, é um óbice
ao consenso. Porque todo conceito precisa passar
por uma fase de credibilização. Mas a criação de
124
conceitos é um passo necessário ao entendimento
à medida que a linguagem de sempre resolve
apenas os velhos problemas, carecendo os novos
problemas de conceitos novos para serem
resolvidos. A comunicação precisa ser ao mesmo
tempo conservativa e resgatadora e criadora a fim
de que se possa avançar o processo universal de
esclarecimento. Porque a metanarrativa não é
apenas assimilação, mas suscitação perene do
inédito. O inédito é complemento necessário da
metanarrativa enquanto ela precisa entender-se a si
mesma como algo provisório e ao vivo. Descrever o
sujeito como sujeito é um empobrecimento. Porque
sujeito é aquele que está submetido a algo, está
enfiado, metido e incardinado. Já o termo indivíduo
é muito bom, mas Platão e o próprio Freud o
relativizam. Porque a metanarrativa é finita de
coisas públicas e privadas, embora não exatamente
inconscientes. Quando Habermas fala em
“dialogantes” chega mais próximo do que eu
pretendia. Mas embora o diálogo já seja em si uma
instância rica de sentido, não alcança o que
125
queremos expressar. Porque o metanarrador é
acima de tudo um ser intelectual em que o diálogo
é mecanismo, embora na prática corriqueiramente
funcionasse como um fim em si mesmo. Mas o
metanarrador não é de per si um dialongante. Pois
o metanarrador pode assumir o posto de
observador e ser epistemologicamente passivo. Em
verdade, o narrador só é narrador, o narrador só se
torna metanarrador quando assimilou elementos
que não foram carreados para o explícitos e a
consciência forte e quando a sugestão não foi
formulada na cônica posição de conjectura ou
hipótese. Quando o elemento assimilado não
clareado ou quando a sugestão não clareada não
tomaram corpo no discurso racional, não significa
que estão adormecendo no chamado inconsciente,
mas que são conscientes de restrito acesso.
Porque para uma premissa ser considerada
explícita o metanarrador deverá ter construído
acessos vários e bem pavimentados para o mesmo
destinatário ou para a mesma informação ou ideia
buscada. Não se deve encarar o intelecto como um
126
QG onde estaria abrigado o consciente e a periferia
enorme seria o subconsciente. O intelecto é como
um país com várias capitais coordenadas entre si.
E as premissas e os corolários que egressem dos
subentendidos e dos presumidos são as conexões
várias entre estes pontos e entre os pontos
principais e os próprios consequentes. A
assimilação, por vezes, trazendo para dentro do
intelecto algo inédito, cria um ponto novo a partir do
qual serão puxadas várias conexões como um
governo pujante acelera o crescimento econômico
de um país. A metanarrativa é a única figura que
tem a capacidade de decidir o que irá fazer consigo
mesma. Ela pode optar pelo gozo sem crescimento,
ou pode determinar pôr-se a serviço de si mesma
para crescer exponencialmente. Aliás,
metanarrador e metanarrativa estão para si como o
ser está para o ente, na falta de uma analogia
melhor, ou como o valor está para o preço,
pegando um gancho na economia. A literatura é a
expressão máxima da metanarratividade. Ela é a
metanarrativa em estado puro, em estado líquido e
127
fluídico. A literatura tem de ser o trajeto da
tolerância universal a partir da ótica segundo a qual
a humanidade nela retratada está além de todo e
qualquer etnocentrismo. Não há ponto de
concordância sem linha. Nada mais difícil do que
afinar entre si duas pessoas sem linha, refém de
sua subjetividade idiossincrática e anômica. Muito
mais fácil é dispor de maneira harmônica duas
linhas antípodas, porque a objetividade está na
idealidade, na metanarrativa e não no próprio
metanarrador. O ecletismo não é refutar tudo e nem
aceitar tudo indistintamente. O metanarrador
sempre é eclético. Trata-se de imprimir maior valor
a certas premissas e certos corolários, sem ter que
aniquilar as instâncias opositoras à satisfação de
seu ideal. Quando um tem a meta A e o outro B, e
A implica não B e B implica não A, os
metanarradores terão de fazer nas instâncias
pragmáticas aquilo que é de difícil concepção no
plano intelectual. O melhor caminho é sempre
negociar os consequentes de A em troca dos
consequentes de B e vice-versa. Quando dois
128
metanarradores se reportam um ao outro há um
trânsito de pensamentos, de interesses, de emoção
e de afeto. Muito errado é separar amizade de
interesse. É claro que não devemos deixar o nosso
negócio perecer em nome de uma amizade. Mas só
porque um metanarrador cobiça o interesse de
outro, não significa que entre eles não haja
amizade. Porque amizade é de graça e interesse
tem um custo. E na maior parte das vezes o pago
se faz acompanhar do não pago e vice-versa. Na
Bíblia a idolatria frequentemente é associada à
prostituição por razões óbvias: o Deus de Israel é
um Deus de relacionamento, um que Moisés
conversa tête-à-tête com Ele, mas o bezerro de
ouro não quer relacionamento, ele quer sacrifício
em nome de lã, leite e carne. A prostituição é a
troca de dinheiro por prazer. Mas a sexualidade
sadia é relacionamento em que os amantes se
fazem de oferta um ao outro. Não havia
relacionamento entre o bezerro de ouro e o povo
porque um objeto de metal é incapaz de visualizar o
mundo. O Deus de Israel é um Deus de
129
relacionamento porque ele é a Maior Metanarrativa
em relação à qual não pode haver outra maior.
Deus é relacionamento com Ele Próprio, a essência
d’Ele é o relacionar-se. E o ser humano, imagem e
semelhança de Deus, também é igualmente
propenso ao relacionamento.quando Sartre diz que
“o outro é um inferno” está corretíssimo. Céu e
inferno são idênticos: o que muda é o ponto de
mira. Inferno é metanarrativa fechada, intolerante e
terrorista e o céu é metanarrativa aberta, tolerante e
dialógica. O inferno é a relação entre dois
metanarradores em que cada um equaciona as
coisas eu-isso e o céu é a mesma relação
harmonizada em eu-tu, para lembrarmos de
Bubber. O isso não pensa e não representa o
mundo. O tu é um sujeito cheio de ideias,
representações de mundo, sentimento, valores e
interesses. O isso é fora de contexto em muitas das
vezes. O tu é sempre situado, ele é sempre ele, um
metanarrador calçado por determinada espécie de
sapato, como diria Ortega y Gasset. Onde a
neurologia enxerga 100 bilhões de neurônios e 100
130
trilhões de conexões nós vemos metanarrativa. pois
o metanarrador não é uma superplaca de memória
e processamento, ele é mais do que a soma disto
tudo.
Metanarrativas heterotópicas
A metanarrativa é contexto e ele está em todo e em
nenhum lugar. Ao longo da história da filosofia a
transcendentalidade tem mudado de lugar, o que
equivale dizer que a metanarrativa mudou de lugar.
Na verdade, em linhas gerais, há dois nichos da
transcendentalidade ou da metanarratividade: fora
do sujeito (heterotópicas, por exemplo, Deus,
substância, comunidade, religião, etc) ou dentro do
sujeito (autotópica, como querem Kant, Piaget,
Freud e Lacan). A escrita tem um poder
conservativo e multiplicador incrível, o que foi
majorado pela informática. E à medida que a
metanarrativa fora do sujeito cresce ele aumenta
absolutamente e diminui proporcionalmente.
Vivemos num mundo de estruturalismo
131
concorrentes em que o homem entra como o ser
que quebra isto tudo ou de plúrimas
transcendentalidades. O que narramos,
dominamos, o que está no reino dos presumidos e
subentendidos nos domina. Somos o que
pensamos e nos assalta o que com o qual nos
relacionamos remotamente. O brocardo de Lacan
“onde sou não penso e o que penso não sou” está
erradíssimo. Pelo contrário, somos o que
pensamos. A validade de uma assertiva depende
do número de premissas e corolários que estão
encadeados com ela. É assim que quando digo
“Cléverson é advogado” suscito centenas de
relações processuais. A consciência, leia-se, a
metanarrativa reside em si mesma, mas há,
paralela a isto, heterotopia da consciência.
Deus
Deus, dizem as Sagradas Escrituras, faz morada
em nós, mas é o que está fora de nós. No sentido
de que do ponto de vista conceitual é o que nos faz
132
a maior das oposições na situação de categoria
máxima. Em Platão Deus fica meio turvo. Ainda que
se diga que é a ideia de bem, temos que considerar
que o demiurgo também engendrou a ideia de bem.
Para Aristóteles Deus é uma categoria necessária
do ponto de vista lógico e conceitual. Não haveria
como explicar o movimento sem esta Abstração.
Para Hegel Deus é o todo. Do que, de certa forma,
não discordamos.
Mito
Levi Strauss teve o mérito de perceber que a
cultura do homem é repetitiva, atávica e cíclica. No
máximo há passagem de níveis sem emergir de um
intrínseco imanentismo. Estes elementos reiterados
e inarredáveis comuns a todas as culturas humanas
Strauss fez deles a prioris incontornáveis e mínimos
com o referido setor que isto também seja um
conjunto de esquemas transcendentais.
História
133
Foucault coloca os a priori de Kant fora do sujeito:
na História, entendida esta como relação de poder,
de vigilância, de punição e de micropoder. Não lhe
tiramos a razão, vez que a História é a disposição
de tudo dentro do curso do tempo e o todo é maior
que a soma das partes, é muito maior.
Comunidade
Habermas entende que as estruturas organizadoras
do pensamento não estão cabinas dentro do sujeito
cognoscente, mas a própria coletividade é regida
por estruturas inteligentes de organização da
experiência. Se Jung fala de inconsciente coletivo,
Habermas diz que existe inteligência coletiva, sim,
mas ela é consciente.
Ordem jurídica
Kelsen mostra com sua teoria pura do direito que,
diferente do que ensinou Marx, o direito não é um
134
subproduto do que quer que seja, mas ele tem vida
autônoma e própria de sorte que se pode dizer com
tranquilidade que uma ordem jurídica equivale a
uma ordem de civilização.
Natureza
Deus perdoa sempre, os homens, às vezes, a
natureza nunca. Isto mostra que embora
dominemos a natureza, ela não se nos submete por
completo. Quando em Gênesis Deus ordena que o
homem domine a natureza, em primeiro lugar isso
cabe à natureza mesma do próprio homem.
Economia
Em tempos de Revolução Industrial muitos gênios
começaram a pensar que a economia era o cerne
da realidade. Na verdade, a economia é produto da
vontade humana livre e consciente voltada para um
determinado fim, contudo, esta vontade a todo
instante esbarra em condições objetivas. O grau de
135
desenvolvimento das forças produtivas é um bom
exemplo das condições objetivas a que nos
referimos.
Religião
A religião é uma psicologia coletiva e o coletivo é
mais que a somatória das psicologias individuais.
Arte
A arte é uma transgressão. Ela é a expressão das
premissas e dos corolários remotos antes mesmo
que estes tenham adentrado para o interior do reino
dos explícitos e da consciência forte.
Filosofia
A filosofia é uma tradição intelectual milenar que
traga os maiores gênios para dentro dela mesma.
Trata-se de uma inteligência coletiva tão reforçativa
136
e tão reiterada e exauriente que não há como
colocar-se acima dela.
Literatura
A literatura é o modo belo de retratar o cotidiano e
como nós gostaríamos que ele fosse. A literatura é
a verbosidade por ela mesma, é a palavra em
estado puro. A realidade é só um pretexto, um
distante referencial para que uma linha discursiva
possa se desenvolver dentro dum plexo lexical.
Ciência
A ciência é o conhecimento do mundo objetal de
modo metódico, sistemático e criterioso. Com a
ajuda da mídia torna-se poderoso critério de
verdade e é respeitado pela população como
autoridade em questões de alta indagação
Planeta
137
O planeta também é um a priori na qualidade de
nosso habitat. Morar no planeta Terra implica se
submeter a certas temperaturas, a certa pressão, a
processos físicos e químicos. A gravidade nos é
imposta. A fauna e a flora nos carreiam para dentro
de um ecossistema.
A metanarrativa autotópica: o sujeito metanarrador
Para Lacan sujeito é diferente de indivíduo. Bem
observado, na forma dos seus próprios termos.
Pois indivíduo é não divisível enquanto o sujeito é
um plexo de id, ego e superego. Freud havia dito
que seríamos muito melhores se não quiséssemos
ser tão bons. Isso mostra a diferença entre o ideal
do eu e o eu ideal (metanarrador). Como é gostoso
ser metanarrador. Nietzsche diria que se Cristo se
tornou homem é sinal de que vale à pena ser
homem. A todo momento as consciência autotópica
troca energia com a consciência heterotópica. O
processo de assimilação e alienação se efetiva de
uma só vez. O exterior é plantado na minha
138
consciência e a minha consciência crava a marca
do eu na exterioridade. Conscientização e
brutalização são faces de uma mesma moeda. O
que muda é o fluxo ou o sentido do fluxo ontológico.
E, apesar da mudança, tudo fica equilibrado, é a lei
da entropia. Como em matemática em que passo
uma incógnita de um lado a outro do sinal de
igualdade. O que medeia a instância cognoscente
da cognoscível toma valor pelo número de vezes
que se presta de mediação. Fica, pois, resolvida,
em linhas gerais, a polissemia do termo
“metanarrativa”. O eu ou a metanarrativa autotópica
é algo de difícil compreensão. Aristóteles explica o
ser humano dizendo que ele é um composto de
alma vegetativa, sensitiva e intelectiva e que o
intelecto subdivide-se em intelecto agente e
paciente. Seria a alma imortal? Parece-nos que,
para o grande grego, apenas o intelecto agente
teria esta característica. Aristóteles diz que o
homem é um animal lógico. Mas a lógica é só um
dos aspectos da metanarrativa. O homem é mais
que lógico, é narrador e, mais que isto,
139
metanarrador. Para Aristóteles, portanto, há
diferença entre indivíduo e sujeito. De minha parte,
não rechaço o uso destes termos, mas prefiro usar
o termo “metanarrador”. A metanarratividade é o
significado e o que se presta de conteúdo a ser
simbolizado, é o significante. O metanarrador não
apenas narra como quem conta, mas cria a
metanarrativa elegendo um ideal simbólico e aquilo
que eu gostaria que fosse verdade acaba de fato se
tornando uma verdade. Lacan foi feliz ao falar em
pai real e pai imaginário. Nos primeiros tempos de
vida a figura das pessoas que nos são próximas
são muito importantes. A janela de Johari traz uma
grande verdade ao notar que há uma diferença
entre a) quem eu sou; b) o que os outros pensam o
que eu sou; c) o que eu imagino que os outros
pensam que eu sou. O homem é um ser
dependente. A metanarrativa dela depende da
exterioridade intelectual na qual está inserido assim
como afetiva e sexualmente depende do corpo da
mulher. A metanarrativa é a busca de uma
satisfação intelectual. E por isso que nunca ficamos
140
totalmente satisfeitos. Satisfação total é
antecâmara da morte. A criança insatisfeita sempre
será insatisfeita e o adolescente insatisfeito assim o
será até a velhice. E o sucesso lúdico que a criança
não teve e o sucesso sexual que o adolescente não
teve será substituído pela satisfação intelectual. A
soma de todas as metanarrativas heterotópicas e
da metanarrativa autotópica é aquilo que os
filósofos buscam, a coisa-em-si incognoscível ou a
REALIDADE. Isto significa que Deus e a instância
que está fora d’Ele gera um complexo em algum
sentido mais pobre do que Deus enquanto único
fator tomado como parte da composição. Em
síntese, a composição resta mais pobre do que um
só de seus ingredientes pegado isoladamente, seja
Ele, Deus. O homem entendido pela ótica do
homem sempre será menos do que a antropologia
teológica das Sagradas Escrituras. Uma
compreensão maximamente aprofundada do
homem de si por si e para si recai naquilo que
recaiu a psicanálise declinada por Lacan:
metafísica, simbolismo e esoterismo.
141
Paranormalidade é a capacidade que o
metanarrador possui de mudar a si mesmo, ou seja
aos próprios esquemas mentais. Se o pensamento
é paranormal ou não, digo que o pensamento
passivo e meramente decodificador é normal, mas
o pensamento proativo, retroativo e implicador de
transformação dos seus próprios fundamentos é
paranormal, sem sombras de dúvida. A grandeza
do metanarrador consiste ao mesmo tempo na
capacidade de ser fiel às regras e de quebrá-las.
Devemos quebrar as regras quando as sub-regras
de um determinado nível não dão mais conta de
pautar nosso pensamento e nossa conduta. A regra
é quebrada, portanto, não pelo seu
descumprimento. Porque cumprimento exauriente
de uma regra a satura e a invalida. Aí surge a
necessidade de adotar um código de normas mais
avançado. É neste sentido que Jesus Cristo diz que
não veio abolir a lei, mas aperfeiçoá-la. E aos
supostos exímios cumpridores da lei o Mestre
aconselha “dá tudo o que tens aos pobres e terás
um tesouro nos céus”. Todo sujeito é um
142
metanarrador e todo metanarrador é um sujeito. Daí
ser muitíssimo interessante o emprego da
pleonástica expressão “sujeito metanarrador” que
por simplificação chamamos apenas de
“metanarrador” estando implicitada no vocábulo a
ideia de sujeição ao entorno. O metanarrador se
desenvolve participando de fóruns e seminários.
Entendendo-se o fórum como instância privilegiada,
real ou virtual, de encontro de interessados por um
determinado tema para dirimir a res dúbia, ou seja,
apreciar elementos téticos e antitéticos. Já os
seminários são encontros que lançam desafios
intelectuais como semente no intelecto que permite
a eclosão da solução teórica. Os fóruns e
seminários são muito bons porque nada como a
inteligência coletiva burila tão bem a inteligência
individual. A própria palavra “forasteiro”, parenta de
“fórum”, traz em si a ideia de ubiquidade. Mas
fórum é busca de harmonização e o forasteiro é
visto como quem relativiza a harmonia. O
metanarrador padece quando não exercita aquilo
que faz com que ele seja ele mesmo, a
143
metanarratividade. Quando ele para de pensar, de
sofisticar suas representações de mundo, é como
um motor que começa a oxidar por falta de
funcionamento. Daí a importância da formação
permanente ao longo da vida. Uma civilização pode
ser medida pelo número de escritores, filósofos,
cientistas e doutores, eu creio nisso. A riqueza
material é reflexo da riqueza intelectual. O motor da
economia, da civilização e de tudo o que é utilidade
pragmático-existencial é a educação. A educação
deve ser um fator de promoção social. O letramento
é nada mais do que a narradorização daquele que
simplemente vê, mas não enxerga, escuta, mas
não ouve, decodifica labialmente, mas não
compreende. Há quem não entenda a narrativa,
este é um grande ignorante; há quem entenda a
narrativa, mas não, entretanto, a metanarrativa, ou
seja, é um intermediário com compreensão, mas
sem interpretação; e há quem entenda a narrativa e
a metanarrativa, este compreende e interpreta, isto
é, intelige o que é visível, e colhe o que oculto e
subentendido no texto e no contexto está. Só o
144
intérprete consegue agarrar o sentido da
metanarrativa. Não há diferença entre metanarrador
e intérprete, porque quem narra, narra a sua
interpretação. E quem interpreta só interpreta o que
já internalizou em si. Claro que falamos isto
genericamente, não sendo o mesmo válido para os
recortes da narrativa. Nada engana e confunde
mais do que a parte solta da totalidade. Daí o valor
da ideia de sujeição que veio a ser enriquecida
pelos epistemólogos da psicologia com a ideia de
interacionismo e construtivismo. A metanarrativa é
uma obra sem previsão de término. Trata-se de
uma construção permanente. A morte é a ruptura
do andamento do trabalho intelectual. Quiçá, para
que noutra ocasião comecemos tudo do zero com o
primor de uma transcendentalidade almática
treinada pelas vivências anteriores. A metanarrativa
autotópica é como a exibição de uma peça teatral
de que o treino já é uma apresentação. Marx nega
a existência do mundo espiritual justamente como
quem tira um passageiro de um avião e faz o
mesmo sentir a dureza do lombo da mula no plano
145
terrestre. A filosofia de uma maneira em geral faz
este grande condicional, seja ele, abstrair da
trascendência, para entender a imanência por ela
mesma. Esta não é uma postura errada, pois o
próprio infinito se fez finito para compreender a
finitude e mostrar que em algum sentido finito e
infinito são uma só e mesma coisa. Freud e Marx
foram muito bons no que fizeram, mas pararam no
meio do caminho. A psicanálise é ótima como
busca do sintoma e, não apenas isto, mas como
método catártico. Mas não oferece um método
positivo de organização mental. Da mesma forma
Marx critica a sociedade capitalista, mas não
escreve o que deseja, quem sabe, por medo de
cometer o mesmo erro dos socialistas utópicos.
Assim, estamos carentes de um planejamento
individual e coletivo, coisa que tentarei propor ao
longo dos meus livros. Por certo que tanto um
quanto noutro caso é importante o bem estar
individual e o coletivo. O bem estar individual não
pode sufocar o bem estar coletivo e o bem estar
coletivo não pode sufocar o bem estar individual.
146
Falando do indivíduo, sabemos que a atividade
sexual desempenha um papel de equilíbrio do
sistema nervoso que não pode ser completamente
substituído pela alimentação, excreção, micção ou
repouso. O sexo, para a maioria das pessoas é
insubstituível. O indivíduo deverá trabalhar tanto
que não sobrevenha a escassez de dinheiro e no
máximo aquilo que não comprometer suas reservas
energéticas para fruir sua felicidade. O poeta inglês
William Worsworth disse que o nascimento é o
começo de um sono e que vigília é o que antecede
o nascimento e sucede a morte. Interessantíssima
ideia. Daí que o esforço do metanarrador é tentar
pensar pensamentos próprios de vigília ainda que
esteja refém do sono.
Metas a atingir
Individualmente o metanarrador deve ter a meta de
fazer salientar seus conhecimentos ante os demais.
O Estado, no entanto, deve promover e fomentar a
educação para tornar as razões fracas em fortes.
147
Esse antagonismo de homogeneização coletiva e
heterogeneização individual deve ser uma
constante. Socialmente falando, a estrutura estatal
deveria possuir dois departamentos chaves, o de
fomento à inventividade e o de informação. O
objetivo do departamento de inventividade é a
inovação tecnológica que estabelece um patamar
de taxa de lucro muito maior que a taxa de mais-
valia. E o departamento de informação promove a
quebra de monopólio socializando a informação de
modo que se aproximem ao máximo a taxa de lucro
e as taxas de mais-valia. O departamento de
informações trabalhará tanto com informações
científicas quanto informações de mercado. A
função da oumperiforalogia é organizar a
inteligência individual e coletiva. O novo modelo de
sociedade a ser implantado passa pela fundação de
um Partido da Cultura e pela difusão da
oumperiforalogia. Para que nossas metanarrativas
sejam mais ricas precisamos tornar o mundo mais
belo, precisamos sonhar com o simbólico estético.
A oumperiforalogia está conectada à tradição
148
filosófica e reconhecemos a filosofia como a melhor
estratégia puramente humana para organizar a
civilização, inclusive os conhecimentos científicos.
Todo o sucesso do marxismo e da psicanálise
reside no fato de trabalhar categorias simples como
justiça social e sexualidade, enquanto a
oumperiforalogia fala de metanarrativa que é o
grande reconhecimento da dimensão intelectual do
ser humano. É de se esperar que a
oumperiforalogia tarde a se popularizar como o
marxismo e a psicanálise porque é uma minoria as
pessoas que sentem necessidade de locupletar sua
intelecção. O conhecimento tem sido usado como
meio e instrumento. Mas no futuro as pessoas não
quererão conhecer para exercer uma profissão,
mas simplesmente para saciar seu intelecto. Assim
como não se trabalha senão por dinheiro e se
copula por prazer e não para a reprodução. O
conhecimento deve de um lado manter seu
pragmatismo, mas deve cultivar esse lado de
deleite, alegria e satisfação. Se me disserem que a
minha teoria não revela nada sobre o mundo, direi
149
que, a rigor, nenhuma assertiva é significativa. E
que muitas vezes, senão em todas, as proposições
mais generalizantes são as mais significativas. O
que torna uma proposição útil é o sentido que ela
transmite ao receptor, independente de tudo aquilo
que foi dito pelos cientificistas e quejandos.
Wittgenstein falou acerca daquilo de que não se
podia falar e os verificacionistas defendem uma
teoria não passível de verificação. O próprio
pragmatismo não possui qualquer aplicação prática
imediatista. Este o problema das anti-filosofias. A
metanarrativa não esbarra nestes paradoxos pois
ela mesma vem a ser aquilo que propõe como
objetivo a ser alcançado. Ela, portanto, não apenas
promete, mas a própria formulação da promessa já
é o seu cumprimento. Porque o pensamento que
visa formular um sistema já está se movendo
dentro de um sistema. A grande limitação da
oumperiforalogia é trabalhar com a ideia de
sistema. Porque o sistema não transcende a si
mesmo. Quem sistematiza pensa grande, mas
sempre há algo maior que este grande. Daí o falar-
150
se em metanarrativa que é o reconhecimento dos
pressupostos extrassistêmicos do próprio sistema.
É assim que a metanarrativa pelo trabalho
intelectual de apropriação vai se expandindo. Como
uma célula que engole proteínas que passeiam do
lado de fora da membrana e que, de repente, passa
a servir de proteína a ser processada pelo núcleo.
Feliz é a nossa ideia de narrativa. Pois os filósofos
resolvem o problema descrevendo e narrando o
problema. Perspectivas filosóficas nada mais são
do que perspectivas de narrativa. O problema é
uma parte visível que pede a exibição dos
presumidos e subentendidos. Filosofar é fazer o
remoto se apropinquar, é dar nome àquilo que vibra
em torno dos conceitos que já existem. A filosofia
enquanto produtora de conceitos vem cumprindo
com propriedade e esmero o ônus do qual ficou
incumbida. Mas a tarefa nunca fica pronta e as
veredas tomadas não estão dando conta de
resgatar a humanidade das pessoas. A filosofia tem
pretendido criar um divisor de águas entre o que
pode ser discutido e o que não mais não é podido,
151
mas a beleza do debate consiste em explicar
velhos temas de novas maneiras ainda que elas
não atendam a determinados critérios de suposta
seriedade. Até porque o que há de mais sério na
vida não pode ser decomposto analiticamente e
nem conceituado com precisão. Metanarrativa é o
eterno trabalho de sísifo de deixar a pedra no topo
do morro ainda que previamente sabendo-se de
que tudo é em vão. O importante não é o resultado
do trabalho, mas o trabalho em si mesmo. Assim
como um procedimento cirúrgico de uma
enfermidade que se agrada e o médico que vê as
possibilidades de intervenção cada vez mais
restritas, assim como uma ação judicial que vai
exaurindo as medidas próprias das vias cognitivas
e adentra para a execução, temos que cuidar para
não estrangular a filosofia. Porque a filosofia não é
um processo ou procedimento que nasce, se
desenvolve e finda. O trabalho do filósofo é
infindável. É uma força e uma energia que se
renova a cada manhã. A filosofia é uma fênix que
ressurge das cinzas. E por mais que apareça uma
152
supergênio querendo resolver todas as grandes
questões da filosofia de uma vez por todas, nada
ficará encerrado. A filosofia é a sabedoria do
mundo mesmo quando o objeto da discussão é
Deus. Trata-se de um conhecimento que está em
constante mutação. Um conhecimento que não
transita em julgado, sempre comporta
questionamento, não se perfectibiliza jamais,
sempre está em eterna e perene busca. E não seria
justo ser diferente. Se os que nos precedem
tiverem o direito de fazer suas buscas, nós
poderemos fazer as nossas. Quando se fala em
“fim da História” não se fala em outra coisa senão
acerca da predominância de uma das
metanarrativas possíveis. É claro que a
metanarrativa enquanto categoria pensada toma
força quando na base material da reflexão o que se
encontra é o efetivo praticamente coincidindo com o
ideal. Mas a metanarrativa tem um valor em si
mesmo ainda que seja apenas uma representação
ou um plexo de representações na cabeça de um
só indivíduo. A única atitude que nega a
153
metanarratividade é o ódio à vida. A inércia também
atravanca o andamento do processo intelectivo.
Mas entre avanços e rés, o que se percebe é um
contínuo avanço do pensamento. É bem verdade
que pouco conhecimento. É bem verdade que
pouco conhecimento bem processado vale mais
que muito conhecimento não processado. Todavia,
só recebemos capacidade de processamento a
partir do momento em que se avolumam as
coleções de informações. Tudo concorre
automaticamente para a meta. Enquanto o
metanarrador a partir da sua própria meta narrativa
não se convencer de que foi algo no passado, não
terá vitória no presente. Porque é muito fácil
aceitarmos ser menos do que as outras pessoas,
difícil é aceitar ser menos do que o si mesmo.
Quanto mais bem montada no nosso intelecto
nossa vida passada e a vida de nossos ancestrais,
maior será a nossa pretensão no presente. O
homem é a medida de todas as coisas como diria
Protágoras e quem se vê gigante não tolera outra
coisa senão o gigantismo. Quem sempre parvo foi,
154
parvice alguma irá lhe espezinhar. Nós somos o
que os historiadores dizem que nós sempre fomos.
Daí a importância de se conhecer bem a história da
própria etnia, pois um estudo minucioso sempre
haverá de acusar belas façanhas. O homem é o
padrão que ele impõe a si mesmo. O alemão é
grande porque seu padrão de pensamento é
grandioso. Tal padrão temos chamado de
metanarrativa. O alemão tem a capacidade de
canalizar as paixões para os fins mais sublimes.
Ser grande é pensar grande. A abstração do
pensamento mensura o grau de universalização do
ideal daquele que sustenta o discurso. O mais
realista é o mais idealista. Aquele que se acha
realista por ser conforme o pessimismo é um tolo.
Não significa que devamos prescindir das
condições reais sobre as quais se apoia nossa vida.
É que temos que ter a capacidade de superar e
transcender isto tudo. Diz-me qual é tua filosofia
(metanarrativa) e eu te direi quem tu és. A
experiência é sempre experiência de ideias e não
de sensações. Porque a sensação pouca coisa
155
informa. A única coisa que informa é o juízo prévio
aplicado à prática e que resiste à sua mobilidade. É
por isso que as ideias ligadas à mobilidade e ao
transcurso do tempo são as que mais vingam, por
darem conta de não ser tragadas por aquilo que
pretendem explicar. A causalidade se encaixa nisto
também pelo fato de supor o que tem o poder de
relativizar quase tudo o que é escrito.
A causalidade
Toda civilização tem uma causa de existir. Assim,
um dos papeis centrais não só da filosofia, mas
também das outras humanidades, consiste em
apurar a formação, a ascensão e a manutenção
das grandes civilizações. Devem ser apuradas as
causas das quedas para poderem ser evitadas. Daí
que deve haver uma aliança entre História e
Filosofia da História. Aliás, Filosofia da História
deve ser uma disciplina que figure tanto em
Filosofia quanto em História, refiro-me aos cursos
de graduação. É certo que o amor à pátria, o amor
156
à pontualidade, ao trabalho, à família e a Deus
engrandece uma civilização. A decadência surge da
flexibilização dos costumes sexuais, do desrespeito
aos mais velhos e da apatia à religião e à filosofia.
O Estado deve fomentar as virtudes e punir vícios.
A primeira purga deve ocorrer dentro da estrutura
do próprio Estado. É preciso que cada cidadão
tenha a capacidade de encontrar seu próprio
fundamento em si mesmo. Porque somente o
homem pode reformar o próprio homem e tudo o
que dele provém, inclusive a estrutura estatal e
todas as demais estruturas. O que você espera do
outro precisa encontrar em si mesmo. Tudo o que
cada um precisa está em si mesmo. Capacidade,
força, energia, afeto e entusiasmo está em cada um
de nós. Além disso, em nossa infância são
construídos os níveis dos mais variados tipos.
Níveis de: tensão, estresse, atenção, afeto,
segurança, conforto, etc. Quem foi criado
rusticamente não se sente bem em muito conforto.
Quem não recebeu afeto fica constrangido e
enojado ao ter que dar ou receber mais afeto do
157
que o seu nível admite. O estresse é um dos
poucos que não deixa o metanarrador preparado
para ele mesmo. Muito estresse na infância pode
deixar o metanarrador mais exposto ao estresse na
adultícia do que outro que teve a infância mais
tranquila. Se uma criança for deixada a uma
situação artificiosa de abandono emocional, toda
vez que precisar de ajuda e suporte, será muito
independente, mas não queira que ela lhe dê afeto.
Porque não se tira oceanos de água de cisterna
seca. Até porque esta forma de energia, o ela do
afeto, não usada é indestrutível, é remanejada para
a atividade física ou intelectual ou para ambas. A
metanarrativa não tem outro fim e não tem outro
meio senão ela mesma de modo que o ser humano
não tem outro fim e outro meio senão a si mesmo.
O metanarrador enquanto tal não deve apenas
divagar para aumentar seus graus conscienciais,
deve pensar quais os conceitos ferramentas que
serão interpostos entre ele mesmo e o outro eu,
entre ele mesmo e o pensamento cristalizado nos
materiais para este fim, entre ele mesmo e a
158
natureza. O homem é a causa, o meio e o fim. Ele
também é mediação de si mesmo, mas quando
está na condição de mediação se serve de
aparatos para factibilizar o que pensa, assim como
o escritor depende da caneta para escrever. Ao
mesmo tempo que a economia dos meios agiliza a
consecução dos fins menos gente se vê envolvida
no processo não auferindo vantagem econômica e,
consequentemente, não podendo lograr seus
próprios fins. Vivemos numa época em que o saber
como vem sendo pauperizado. Onde no passado
havia uma carência hoje abundam profissionais e
as profissões mais loucas possíveis estão em alta.
A sociedade fabrica ou importa os homens do
conhecimento e o poder cego e burro relativiza
aquilo que mais teme. Essa dissociação entre
conhecimento e poder é extremamente perigosa.
Porque um homem sábio sem poder é uma
fortaleza à mercê de piratas e um homem poderoso
sem o treino do conhecimento é um arbitrário. As
instâncias de poder submetem as instâncias de
conhecimento, mas as instâncias de conhecimento
159
só em apoucada medida submetem as instâncias
de poder. É mais fácil ao poder fornecer o gabarito
da prova a quem lhe apraz do que conseguir a
assunção a um cargo de prestígio pela força do
intelecto. A oumperiforalogia pretende substituir a
sociedade da empatia pela sociedade de sistemas.
Porque a empatia faz dos ignorantes, brutos e
bestiais cobertos de poder, dinheiro e títulos e
reduz os verdadeiramente civilizados, os
sistêmicos, a empregados mal pagos dos primeiros.
Uma sociedade da empatia é uma sociedade
irracional assentada em fisionomias, que passa por
cima de toda e qualquer lógica, por cima de todo e
qualquer sistema. Os talentos são postos de lado e
a pessoa é avaliada pela subjetividade. A
sociedade da empatia é uma sociedade sem
parâmetros e geradora de uma tremenda
insegurança. Tritura os competentes para servir de
repasto aos sorridentes empáticos que babam o
sangue pelo conto da boca em sua terrível
antropofagia. A extroversão é colocada como
parâmetro máximo de aceitação social, pisando-se
160
a cabeça dos introvertidos que sempre foram os
verdadeiros resolvedores de problema. A
extroversão é uma linguagem de papagaio
enquanto que a verdadeira e acertada
representação é a metanarrativa que mora sempre
do lado de dentro. Sim, digo “sempre”, porque
mesmo quando me detenho sobre as
metanarrativas heterotópicas eu preciso sair do
meu interior e me deixar abduzir pelo interior delas.
A realidade externa é uma ilusão e a mais útil
função da ilusão é gerar demandas, nada mais do
que isto. A civilização da empatia traduz a crença
de que nenhum sistema é perfeito, mas
participamos em parte deste entendimento. O
sistema só não é perfeito porque sempre tomado
fechadamente. É preciso entender o sistema como
algo aberto que comporta elementos novos. Assim,
não se trata de romper com o sistema, mas de os
metanarradores se adequarem ao sistema e de
proceder com uma permanente reparação do
sistema. A extroversão lança assertivas e a
introversão as submete ao crivo da lógica e da
161
adequação. A causalidade da ascensão e queda
das civilizações é o temperamento dos líderes. Os
líderes não devem ser escolhidos apenas por
aclamação popular, mas devem ser melhores que
seus liderados. Um líder precisa desempenhar no
mundo social aquele mesmo papel que os pontos
imateriais apoiadores de si mesmos e de outros
tantos mais no reino das cordas. Porque o líder tem
o poder de dar a linha a quem está carente de ter
alguma linha em suas mãos mentais para poder se
agarrar com o intelecto. A causalidade é algo que,
de acordo com Sartre, nos dividimos entre nossa
liberdade de opção e as consequências de nossas
opções. Somos cativos de nossas opções. A
causalidade é circularidade, porque o agente
causante é o que suporta o efeito daquilo que
lançou fora de si. Vivemos dentro de círculos: para
sair de uma circularidade precisamos de alguma
forma ingressar em outra. Mas livrar-me de todos
os condicionais, para quem faz a experiência do
mundo sensitivo é simplesmente impossível. Cabe-
nos optar entre formas de escravidão e não entre
162
ser livre ou escravo. A liberdade consiste em ter
tempo livre para construir metanarrativa. Tudo o
mais não passa de balela. A causalidade é
transitividade. Como se ela fosse uma alternativa
entre os túneis navegáveis. A liberdade é o site de
busca dentro do qual optamos por abrir a página do
nosso gosto. Você pode abrir páginas mais belas,
mais informativas ou mais eróticas, mas o visar
sempre estará exibindo algo. Nada melhor para um
povo, para uma família e para um indivíduo do que
ter história. Quem não tem história não a valoriza
como a rapoza que diz “as uvas estão verdes”, mas
quem tem história deve fazer dela um leitmotiv
poderoso na consecução de metas para o futuro e
a confiança do agir no presente. Lembrando de que
história é algo necessariamente escrito. A tradução
puramente oral sempre sucumbe. O judaísmo com
certeza tirou a história do mundo tal como nos é
apresentada no Pentateuco da sabedoria egípcia
uma das pioneiras a empregar a escrita.
Papel da metanarrativa em um mundo em ebulição
163
Uma coisa é certa: o mundo foi um projeto perene e
bem sucedido de mudança e continua sendo isto.
Não há melhor receita para referenciação do que o
assimilar a história do pensamento. Assim como o
mundo material tem uma história, também – e muito
antes – o pensamento tem uma história. Fazer
metanarrativa é assentar fundamentos. Porque de
nada adianta eu estar a mil metros de altura num
arranha-céus e vislumbrar amplos horizontes, se
não vislumbro o fundamento que mantém esta
estrutura toda de pé. Porque a pletora de processos
de transformação desnorteia o sujeito, o que só
pode ser remediado pela compreensão da gênese
dos mesmos. A metanarrativa tem o condão de
estabelecer nexos etiológicos. Nunca foi tão
necessário ser um bom metanarrador como nos
dias da atualidade. O mundo de hoje é o mundo da
célere mudança e a mudança é o conteúdo objetal
da metanarrativa. Quem sabe agora conheceremos
qual o melhor ponto de vista, uma vez que as
ideologias estão a passar por uma têmpera que não
164
existiu em épocas precedentes. Em física a
ebulição é um dos processos mais utilizados para
extrair as impurezas de uma substância e separar
sua autêntica essência. Na verdade tudo o que se
escreve em filosofia é superado pelo tempo. As
únicas ideias em filosofia que resistem à ação do
tempo são aquela completamente abstratas e em
sua essência predominantemente lógicas. Ora, isto
significa que a filosofia não consegue sustentar
absolutamente nada além do óbvio. O único
conhecimento filosófico que perdura é o truísta e
apriorista. Nada do que é experiencial é
interpretado. O nível de generalização das
metanarrativas filosóficas não permitem uma
aplicação mais rápida. Isto significa que resta
plenamente justificável a pluriperspectividade da
contemporaneidade. Todas as ideias filosóficas, em
que pese, a inverificabilidade delas para se
certificar de que correspondem à realidade,
concordam totalmente consigo mesma. É esta a
concordância que atrai seguidores e simpatizantes.
É, em certo sentido, uma inteligência que explica a
165
si sem sair de si. É como se ao longo de séculos e
séculos ficássemos por meios sutis reafirmando
com Aristóteles o princípio da identidade, ou seja,
de que A é igual a A. A filosofia é o melhor
conhecimento que existe para mostrar que ela
mesma não leva a lugar nenhum e que está ao
alcance dela apenas engendrar ilusões bonitas e
agradáveis. Mas além de ela desmascarar a si
mesma, faz o mesmo com sua rival, a ciência. Diria
que a filosofia é importante porque os relatórios e
dossiês de nossa própria ignorância são
importantes. Se queremos fazer um levantamento
daquilo que sabemos, é mais fácil fazer uma
apuração do que não sabemos e nisto a filosofia é
mestra. A filosofia é o GPS perfeito que
esquadrinha o mapa dos caminhos e descaminhos
que levam a parte alguma. A filosofia é a
ferramenta mais útil para apontar os vícios dos
raciocínios e dos discursos dos outros. Ela é o
acúmulo grandessíssimo de aventuras intelectuais
mal sucedidas. A filosofia é um estelionatário
graduado em Direito no que se refere às manhas
166
das investigações teoréticas. Ela está recalcada,
sacudida e transbordante de ladinagem intelectual.
A filosofia não cai no golpe do bilhete premiado e
nem tampouco no golpe da barriga. Quando um
leigo fica espantado com a malícia de um sujeito
grosso modo inexperiente e que passa a maior
parte cerrado em seu gabinete se debruçando
sobre obras filosóficas, não desconfia que filosofia
é a formulação de generalidades acendrada não
por outra coisa senão pela própria prática.
Apropriar-se da prática alheia é a forma esperta de
economizar cabeçadas. Fazer filosofia ou qualquer
outra espécie de metanarrativa é avançar
premissas e corolários a dentro. E não há
necessidade de que tais premissas e tais corolários
tenham signficado fora de si, mas lhes basta o
significado intramental em relação ao qual é
conexão importante. A filosofia só faz sentido par si
mesma. Assim é com a metanarrativa: ela não sai
dela mesma, quando ela se expande é o exterior
que passa a ser interior, ganha corpo sem ter a
chance de sair da corporeidade. Enquanto o mundo
167
nos arranca de nós mesmos, a metanarrativa nos
dá o conforto de colocar o ponto de equilíbrio
dentro do nosso eu. O mundo ama o diferente
porque o diferente gera demanda. E demanda gera
lucro. A filosofia chegou nesta mesma fase no
mundo espiritual: ela precisa ser proativa, o
trabalho braçal já foi realizado pelos predecessores.
A filosofia não está mais aí para atender a
paradoxos existenciais, ela tem a missão de
desenvolver “produtos intelectuais” e fazer as
pessoas crerem de que elas precisam assimilar isto
sob pena de defazagem intelectual. A filosofia é
uma grande moda cujo grande escopo é o estar por
dentro da moda intelectual. Esta é a pretensa
vantagem que os filósofos contemporâneos lhes
fornecem: o estar a par das mais recentes
divagações das mentes tecnicamente mais bem
dotadas. O mercado editorial, instância chã e relés,
muitas vezes, senão na maioria, determina qual
será a ideologia dominante. Porque é mais fácil
propagar uma ideia fraca e rica do que uma ideia
boa e pobre. A filosofia há muito tempo está
168
endomingada. Depois do trabalho árduo tornou-se
uma pessoa do tipo bom vivã. Se nenhuma
novidade exsurgiu no mundo empírico, se o
cotidiano no qual estamos imersos não sair da
linearidade, é praticamente impossível haver uma
grande mudança de rota como aconteceu nos
séculos XIX e XX. Ao contrário do que se imagina,
a filosofia não está, pelas razões explicitadas,
passando por um momento de morbidez, ela fez o
trabalho bruto, porém, agora, dispõe de uma
tranquilidade sem precedentes para a livre reflexão.
Não há, como em épocas passadas, o peso
clerical, o ditador político, a pressão econômica, a
repressão em desfavor da sexualidade, de tal forma
que o filósofo já não vem a ser tanto refém do tema
em relação ao qual nem mesmo tinha liberdade de
escolha. Agora a filosofia vai se aproximar muito da
literatura. Ela vai ser não tanto, como outrora,
desfazedora de nós e paradoxos, mas será
narrativa, assim como a literatura. Ela saiu da fase
hard para ingressar na fase soft. E quanto mais
distância cronológica a humanidade guardar da
169
Segunda Guerra Mundial e do comunismo soviético
e europeu, mais pacífica e calma será a reflexão
filosófica. Não é de se surpreender que se fale
tanto em lógica e estética: os temas abstratos
apenas demonstram que a vida concreta pouco tem
esbarrado na reflexão filosófica. Quando um autor
começa a falar em metanarrativa justamente
quando há um consenso geral de que consciência e
conscientização filosófica são temas superados,
quer, na verdade, abarcar o pluralismo de
materialismo, idealismo, positivismo, darwinismo,
neomarxismo, psicanálise, relatividade, realismo,
hermenêutica e tantas outras neocorrentes, a fim
de unificar isto tudo numa única plataforma.
Metanarrativa é recolher o que se esfacelou e
dispor as ideias recolhidas harmoniosamente como
se fosse uma bricolagem intelectual. A
metanarrativa é fazer a filosofia se aproximar da
arte. Não no sentido de que se filosofe acerca da
arte, mas que a filosofia mesma seja uma arte.
Quando se propõe um novo modelo de civilização
calcada sobre a ideia de metanarrativa se quer
170
pregar um ideal artístico de civilização. A indústria
taylorizou quase tudo, inclusive a cultura e agora o
desafio é sair da produção em série e fazer um go
back aos tempos dos ofícios artesanais. A começar
pela produção da própria filosofia. Falar de um
tema filosófico não pode ser como desmontar um
motor. O artesão tem o foco na subjetividade, no
primor, na beleza. Ao artesão representa maior
regozijo uma excelente peça infungível do que
milhares de outras semelhantes, mas inautênticas.
A produção em série rouba grande parte da
autenticidade. Civilização bem sucedida é aquela
em que seus cidadãos fazem da sua atividade um
xou de suavidade, perfeição e beleza artística. Não
basta dar conta de resolver o problema, tem de ser
belo e aprazível. A filosofia é um ramo
especializado da literatura de meditar o homem e
sua cultura de uma maneira a prestigiar os autores
do passado. Quando chamo o ser humano de
metanarrador estou a afirmar que o ser humano
individual e coletivo são tipos de literatura. Viver
bem é escrever bem a própria vida. A vida é uma
171
exibição. A vida é uma narração instantânea,
sequer há chance de treino. O treino já está sendo
transmitido ao vivo. Quem é objeto da narração, o
próprio metanarrador, que está na pista de quem foi
e de quem vai, não consegue nem mesmo dar
conta do que supõe e do que persegue ao
protagonizar seu papel. Quem muito se aplica em
aprofundar seu conhecimento numa área logo
encontra o cânon invisível além do qual é
impossível ir e logo percebe que, em se tratando de
conhecimento, é melhor se expandir para os lados
do que para baixo. Importante também é articular o
que se sabe. Quantas e quantas pessoas sabem ler
em inglês, mas empalidecem no primeiro momento
em que são forçadas a travar um pequeno diálogo
com um anglófono. A fluência, em um idioma, como
o inglês, em um tema, como a filosofia, só se
adquire através de esforços extraordinários e
através da exposição maciça a estas realidades
culturais. O mundo em ebulição pede maneiras
novas de recolocar os velhos pontos lógicos no
vazio entre si. O filósofo é um desbravador de
172
novos discursos. Quando um discurso se desgasta
ele constrói outro para dizer exatamente as
mesmas coisas de outrora. É como, mais ou
menos, o uso de nomes para designar pessoas
mentalmente enfermas. No passado eram
chamadas de retardadas, idiotas, cretinas e
alienadas e hoje em dia fala-se em deficiente
mental, débil mental, pessoa portadora de problema
mental, excepcional e pessoas especiais. Quando o
termo se desgasta é engendrado outro. É assim
que já existe há muito tempo pessoas que sugerem
extirpar o termo “socialista” e usar outro para se
referir à mesma ideologia. Mas a ação do filósofo
não se refere a categorias, mas também com o que
se faz com tais categorias, ou seja, o discurso. É
como se ao longo de 25 séculos eu chamasse a
mesma pessoa por nomes diferentes, por
pseudônimos, ficando, entretanto, sempre velado o
seu verdadeiro nome. Ora, eis que o pseudônimo é
um papel, e o nome se refere à personalidade de
fato. Mas de tanto representar, o artista já não sabe
onde começa e onde termina o teatro e a vida real.
173
A coisa em mim foi tão bem construída, comportou
tantos discursos, que já não importa mais a coisa
em si. O mundo em ebulição é como a água na
chaleira, simbolicamente representando a filosofia,
em que a água saracoteia em seu interior, mas nela
sempre está contida. Assim é um projeto de
civilização: toda civilização, impreterivelmente, é
feita por pessoas, mas o modo como as pessoas
estão dispostas e se relacionam entre si é que faz
toda a diferença. Parmênides vê a água parada,
Heráclito vê a água em movimento, Tomás de
Aquino vê o Dono da chaleira, Marx observa o
preço da chaleira, para Hegel a chaleira é uma
ideia, para os materialistas nada existe além da
chaleira, para os filósofos da linguagem a palavra
“chaleira” é enfeitiçada e para os lógicos a chaleira
é igual a ela mesma. Na verdade, daria para
escrever um tratado acerca da chaleira tomando
emprestadas as ideias da tradição filosófica. Assim
como Aristóteles em sua Metafísica, explica sua
própria ideia, também usamos o petrecho de nosso
chimarrão para podermos nos expressar. Na
174
filosofia as ideias trocam de lugar em última
instância porque o próprio poder está circulando de
uma maneira diferente. Uma nova abordagem
filosófica tem de ter a dupla capacidade de dar
continuidade à tradição e de inovar. Mas o que se
vê é que a novidade é sempre uma aparência e que
a promessa de avanço faz as novas categorias
recaírem dentro das velhas. Os filósofos chamam
as premissas e os corolários pelos mais diversos
nomes e volta e meia opinam sobre o que é meio e
o que é fim. Enquanto que o linguajar coloquial
preocupa-se em nominar entes concretos,
enquanto que o cotidiano de uma pessoa média é
predominantemente feito disso, o linguajar filosófico
procura palpabilizar as abstrações mediante a
criação de nomes intersignificativos. Quanto mais
amplo o rol de entes relacionados mais distante é a
relação, quanto mais específica a relação, mais
próxima ela é. O mundo de hoje é o mundo das
conexões remotas. O que talvez não faço com meu
vizinho, faço com um homem de negócios de Hong
Kong ou Singapura. Várias cidades começam a
175
tomar o perfil de Nova Iorque e Munique: em
qualquer esquina me deparo com um indiano ou
coreano. Isto sinaliza a realização de um objetivo
econômico. A metanarrativa é a realização de um
objetivo intelectual. No mundo de vários interesses
parece que o bico da chaleira por onde flui vapor-
potência é o voltado para a consecução da pecúnia
mesmo. E quando digo isto não itero totalmente
Marx. Até porque a sociedade atual relativiza ao
máximo o valor do trabalho. Estamos saindo do
capitalismo industrial para retornarmos ao
capitalismo comercial. Nunca deu tanto dinheiro o
comprar e vender sem que se tenham em conta os
processos produtivos. O mundo nunca foi tão rico
como o é agora e a filosofia enquanto marco
assinalatório da desenvoltura civilizacional deve
exibir as mesmas e proporcionais dimensões. Em
tempos de economia diversificada, pensamento
diversificado. Em tempos de máfia econômica,
máfia do pensamento. O pensamento mais forte é
aquele defendido pela confraria ou pela tribo mais
forte. O que escrevo nasce velho e superado, mas
176
é sempre candente. Trata-se de uma
metatemporalidade. De tempos em tempos Marx é
assassinado. Nem nasci, mas já querem me matar.
Como fênix renascerei das cinzas. Nietzsche dizia
que o fim da tragédia assinala a passagem do
pensamento mítico para o lógico, e a logicização
coincidiria com a morte de Deus e do cristianismo.
Produzir filosofia é a maneira mais barata e mais
cara de conseguir status. As pessoas lutam por
dinheiro para conseguirem status. Eu consigo
status por aquilo que escrevo. E um fenômeno
recente da filosofia é a produção teórica filosófica
como caminho cujo objetivo exclusivo seja o status.
Enquanto que o marxismo se posiciona como
crítica a um capitalismo anárquico, a psicanálise
procura perscrutar o imperscrutável. E a inteligência
entra nisso como meio. Mas o papel da filosofia é
enaltecer a inteligência e a razão. Marx e Freud
fazem a razão ficar reduzida a produto. Ela é
senhora. Kierkegaard foi feliz ao perceber em Hegel
que a consciência individual tem o poder de romper
com a malha dos processos dialéticos. A crença em
177
Deus é uma atitude de enfrentamento à realidade
meramente natural. Nascemos ateus e só depois
de muita experiência intelectual nos tornamos
crentes. Os ateus e associados não fazem outra
coisa senão elevar o patamar em que nossa fé está
situada. O pastor que orienta seus fiéis a
queimarem livros não cristãos é um infantil. O
pastor deve recomendar o consumo permanente de
tais bens culturais. O que não pode acontecer é o
abandono das Sagradas Escrituras cuja leitura faz
as críticas próprias ao húmus do humanismo serem
postas em seus devidos lugares. A inteligência
grega era superior à atual. Porque era uma
inteligência que se ocupava da physis e do próprio
homem e agora se ocupa da crítica à mais eficiente
sociedade produtora dos bens indispensáveis à
vida, e da irracionalidade do ser humano. Trata-se
de duas perspectivas de negação do si mesmo. A
mentalidade grega é superior por credibilizar a si
própria. Está na hora de jogarmos a água benta
sobre o que construímos, sem, entretanto,
estarmos fechados para melhorias. É um
178
retrocesso escorarmo-nos sobre duas gigantescas
negações: negação do mundo espiritual e negação
do mundo racional. A oumperiforalogia quer
justamente afirmar uma forma de civilização
pautada no otimismo da espiritualidade e da
racionalidade. O materialismo e o inconsciente são
regiões a serem conquistadas e não tanto
compreendidas. Até porque tais instâncias são
nichos de ignorância e inércia. Moram no recôndito
dos presumidos e subentendidos. O mérito do
marxismo e da psicanálise é explicar o que até
então remanescia sem explicação. Mas dizer que o
valor e a sexualidade são eternas coisas em si
incognoscíveis não passa de romantismo. É certo
que somos epistemologicamente cerceados, mas
isto não deve dar margem a um misticismo
gnosiológico. Toda crítica é válida até onde nos
leva a compreender o que tanto critica.
Entrementes, a crítica deve ser uma propedêutica a
um ensino superior, mais sólido e mais consistente,
e não a derradeira lição. O fato de o capitalismo
não faxinar das bibliotecas e das universidades
179
livros e pessoas críticas e o fato de o inconsciente
ser explicado pelo consciente faz eu me perguntar
“porque tanta gente dá crédito a estas instâncias
parasitárias”? Sim, porque se o inconsciente
emerge no consciente então não faz sentido a
departamentalização lacaniana de ego, id e
superego. E se o pensamento crítico precisa de
recursos, cargos, estrutura e consumidores de
livros das sociedades capitalistas, é como o chupim
que nida no ninho do tico-tico. Nada mais fácil dizer
como deve ser dividida a riqueza depois que ela foi
produzida e nada mais fácil ver no adulto uma
vítima da criança mal resolvida. É agradável
chamar o aluno de “oprimido”. Mas não ocorre ao
“libertador” que a vitimização das pessoas gera o
espírito de rebanho, de passividade, de gado
carente de boiadeiro. Pedagogia de verdade é
aquela que forma espíritos livres e já transmite ar
de liberdade por tratar o aluno dignamente, não,
contudo, com coitadismo. Aliás, o culto à miséria é
o erro do cristianismo, do marxismo, da psicanálise
e do próprio Nietzsche. O próprio Nietzsche vê a
180
racionalidade e a tradição filosófica como opressão,
o que é um erro. Deus, a filosofia, a riqueza e a
sexualidade só são opressões quando não
tomamos posse do que é nosso. E tais conquistas
não são conexões, são campos bélicos tomados
pela garra, pela intrepidez e pela aceitação da vida
do jeito que ela é. Não se trata de romper com a
lógica capitalista, mas de planejar o capitalismo.
Não se trata de dizer que a racionalidade é a menor
das partes, mas que é a melhor parte com muita
promessa de ulteriores ampliações. Relativizamos o
que temos de melhor. Mas a ciência nos mostra
que é melhor aperfeiçoar o que já dominamos. Mas
a filosofia parece querer jogar na sucata o Estado,
a democracia, o direito, o mercado, o cristianismo,
não percebendo que é melhor levar adiante o
potencial destes instrumentais. Em ciência a
tecnologia alternativa na maioria esmagadora das
vezes é a exponenciação da racionalidade das
prístinas tecnologias. O pensamento filosófico é o
mesmo pensamento dos velhos gregos. E a política
burguesa é o restabelecimento do ideal
181
democrático grego. Dê-me a máquina a vapor e
farei o virabrequim do carro fórmula 1. O
enaltecimento da negação é a irrealização da
dialética que se consuma numa síntese.
Lembrando que a síntese pode ser a reafirmação
melhorada da tese. Oumperiforalogia é
planejamento social em escala mundial e é
planejamento individual em que o destinatário das
diretrizes é o comportamento. Todos os maiores
progressos que realizamos foi quando demos à
nossa razão o crédito que ela merecia. O fracasso
de certas perspectivas racionais advêm de fatores
irracionais que inquinavam a linha mestra. O
marxismo e a psicanálise inventam monstros
diabólicos em face dos quais canalizamos nosso
ódio, nossa impotência e nossa inaptidão. Essa
teratologia é a forma cômoda de dizer que as
regras não têm valor, que o mundo é
essencialmente injusto e que somos as grandes
vítimas. Gasta-se meia vida com autocomiseração
e a segunda metade lamentando de ter aproveitado
mal a primeira. Chega-se assim, à velhice, quando
182
então culpamos o governo pela baixa
aposentadoria ao invés de arcarmos com nossa
falta de irresignação conosco mesmos. Tudo para
salvaguardar nosso comodismo, nossa falta de
iniciativa. A única coisa aproveitável na psicanálise
é a conversação, coisa que a pessoa deveria de ter
a capacidade de fazer consigo própria, mas não faz
por deixar de empreender o que recomendamos:
metanarrativa, ou seja, a capacidade de a
inteligência organizar a si própria. A razão é
instrumental, inclusive um instrumento de organizar
a si mesma. As sociedades que nos precederam
foram firmadas na força das armas, na força dos
músculos, na força da ideologia religiosa, na força
da ideologia política, na força do dinheiro.
precisamos construir uma sociedade do
conhecimento. O grande cuidado, que não está
sendo tomado, é assegurar valorização não
obstante a popularização. Não podemos fazer do
acadêmico um pobre engravatado. É preciso
informar o público do que a sociedade precisa e
quem ela está pagando bem. Uma sociedade
183
consumidora de conhecimento é questão de vida
ou morte produzir conhecimento. Outra coisa
importante é trabalhar pelo domínio total e pleno de
uma área de conhecimento. Não podemos nos
contentar com superficialidades. É preferível
aprender poucas coisas e bem a passar a vista
sobre muitas. O ensino de idiomas é o melhor
exemplo disso: como é raro encontrar no Brasil
uma pessoa que tenha o perfeito entendimento de
um idioma estrangeiro. A sociedade do
conhecimento capacitará a comunidade a se auto-
organizar. A mãe de todos os erros é a ignorância.
O sistema capitalista não é intrinsecamente mau.
Ele só tem de ser incardinar à cabeça de obra que
hoje não passa de uma empregada maltratada.
Quanto à repressão sexual, diria que se trata de um
tema que perdeu o objeto, vez que o excesso que
se verifica hoje em dia nos meios de comunicação
social se move em sentido inverso, pois quase tudo
o que é libidinosificado. Marx não se deu conta de
que só é possível dividir riqueza se dividirmos,
antes disso, o conhecimento. Porque os meios de
184
produção são produzidos por pessoas de
conhecimento e toda acumulação monetária
esconde atrás de si uma acumulação de
conhecimento. A psicanálise é a crise sintomática
de que as pessoas não conhecem a si mesmas.
Freud, da sua maneira, resgata o “conhece-te a ti
mesmo” pitonisíaco-socrático. Socialismo é
socialização de conhecimento, em primeiro lugar.
Capitalismo é pôr o conhecimento a serviço da
matéria quando o que propomos é colocar a ateriaa
a favor do conhecimento. Não são os proletários do
mundo todo que precisam se unir, somos nós, os
homens do conhecimento. A história da
humanidade não é a história das lutas de classe, é
a história do emprego que temos dado àquilo que
conhecemos. Sabemos pouco e empregamos mal o
que sabemos. As ideias dominantes não são
aquelas ostentadas pela elite dominante, pelo
contrário, as ideias dominantes faz dos seus
artífices a elite da sociedade. O sexo e a morte não
são figuras distintas e opostas aos valores da
civilização, a civilização existe porque o ser
185
humano reproduz a si mesmo e planeja sua vida
com a ciência de que temos prazo, ainda que
indeterminado. Regrar não é negar, é assegurar o
perpetuamento da afirmação. Neurose, psicose,
regressão, são manifestações de quem não
submeteu o próprio eu ao jogo do seu intelecto.
Não basta conhecer, embora isto seja
imprescindível, é preciso submeter o eu a si
mesmo. A expansão da consciência deve ser
revertida em expansão do autodomínio. Ao invés de
querermos dominar aos outros devemos dominar a
nós mesmos. O divã do psicanalista e o movimento
sindical é lugar de gente que não quer sair da
situação de subordinado e deplora os ônus próprios
da subordinação. A sociedade do conhecimento
eleva os salários, pois será uma minoria os que
pedirão função a terceiros. Porque o possuidor de
conhecimento tem a capacidade de oferecer
produtos e serviços de qualidade que lhe
assegurem uma existência digna. Os primeiros
tempos da sociedade do conhecimento serão
assinalados pela predominância do contrato de
186
comandita em que um entrará com o fator capital e
o outro com o fator conhecimento. O fator trabalho
será valorizado como nunca fora antes, pois todos
quererão ser agentes econômicos, capitalistas ou
cientistas-tecnólogos e não simplesmente executor
operacional, como é a maioria da população de
hoje. O conhecimento tem sido satanizado por
desenvolver a técnica e despedir a mão de obra.
Na verdade, o conhecimento não é um facilitador e
multiplicador das forças produtivas. O
conhecimento também gera demanda. A prova
disso é que a população mundial tem aumentado,
as máquinas e outros petrechos ficam cada vez
mais sofisticados e aquilo que Marx chamou de
exército industrial de reserva vem encolhendo cada
vez mais de sorte que nos aproximamos da
sociedade do pleno emprego. O nível de
desemprego, diga-se de passagem, não mensura
apenas a capacidade de absorção da economia,
mas o estado de espírito coletivo. Porque todo
aquele que procura acha, e quem bate à porta logo
vê um interior a lhe acolher. Assim como as
187
premissas e os corolários desconhecidos não
mensuram apenas a estreiteza de liame pelo qual
estão unidos ao conjunto dos explícitos e da
consciência forte, mas o grau de esforço do
metanarrador em se apropriar deles.
Oumperiforalogia: solução para todos os problemas
Fazer metanarrativa é transpor as relações do
mundo material para o ideal. A única maneira de
resolver todos os problemas é fazendo com que
eles ascendam da imanência para a transcendência
da ideia. Porque na esfera do pensamento tudo é
resolvível. O pensamento é o nicho da resolução.
Assim, resolver qualquer coisa que seja implica
guindar o problema para o campo do intelecto para
que ali seja descomplicado e retorne redondo para
o mundo empírico. O pensamento é
essencialmente não oposição. Ele só se torna
oposição quando espelha as contradições do
mundo empírico. O mundo empírico é a mediação
da problematização de algo. Porque sem embargo
188
material não há embargo intelectual. A ciência é
uma maneira de o pensamento desfazer as aporias
empíricas de um modo sistemático. O método é
pensamento, é, pois, um pensamento que coloca
ordem ao próprio pensamento do pensamento
sobre si mesmo. Quando defendemos a ideia de
metanarratividade, estamos, em verdade,
defendendo a ideia de que assim como em ciência
se obtém vitória pela aplicação intencional e dirigida
do pensamento, o mesmo se mostra possível na
esfera existencial. Assim como toda a riqueza é
conversível em papel-moeda, todo quiproquó pode
ser reproduzido no campo das virtualidades para ali
ser destacado e retornar superado para o punctum
dolens de origem. O pensamento é esta ferramenta
de tudo resolver. Os problemas não resolvidos são
os problemas não pensados. As pessoas que
fazem do pensamento sua atividade mais
prazerosa, no fundo, as pessoas traduzem a
multidão de seus problemas. Todo o pensador é um
problemático, por antonomásia. O filósofo não é
forjado apesar do problema, mas por causa do
189
problema. O advogado sabe que o processo judicial
é o nicho simbólico onde os problemas das partes
serão tratados e, para o bem ou para o mal,
resolvidos. O pensamento é uma instância versátil,
volátil, policresta e insub-rogável de apreciação de
questões. Ele é a condenação ou é a absolvição
dependendo do que ele faz com ele mesmo. A
psicanálise nada mais faz do que deslocar o
problema da sexualidade para a compreensão da
sexualidade, que é mental. O sujeito é o que tem a
maior capacidade de apaziguar seus próprios
problemas, quando ele, ainda que
perfunctoriamente, se apropria dos imbróglios que o
afligem. O pensamento é mais do que uma rede de
neurônios e axônios. O pensamento é encantado.
E, se, como dizem os positivistas lógicos, a
linguagem passou por um encantamento, isto se
deve pelo fato de ela ser a consubstanciação do
pensamento desenvolvido. A parapsicologia
constata que o pensamento é o lócus privilegiado
de manifestações ingerenciais sobre o mundo
empírico de uma maneira radical: sem a mediação
190
do nosso corpo ou de outros instrumentos físicos
sobre terceira fisicalidade. O pensamento dá conta
de tudo, exceto de si mesmo. Isto não anula as
belas tentativas de explicação dignas de encômio.
A filosofia é o eterno retorno do pensamento sobre
si mesmo. Pensar sobre coisas, pessoas e animais
é um nível de pensamento cômodo. A transgressão
é quando o pensamento e o pensado coincidem. O
pensamento é a instância suprema cabida dentro
da empiricidade. Ele é mais, muito mais, do que
aquilo sobre o qual se apoia. Os materialistas só
conseguem afirmar o primado da matéria sobre o
pensamento através do pensamento. A discussão
idealismo versus materialismo nada mais é do que
o pensamento sendo juiz e parte. E quando se
afirma o materialismo é como se o pensamento
sentenciasse em desfavor de si mesmo. Só para
um leigo o idealismo filosófico é absurdo. Para
quem conseguiu inteirar-se da tradição filosófica
não há como não ser idealista. Filosofar é
reconhecer o primado do pensamento sobre todo o
mais. De cem posso deduzir vinte e ainda
191
remanescem oitenta, mas de vinte jamais poderei
extrair cem, esta é a relação entre pensamento e
matéria. Como extrair pensamento de um complexo
de carbono? Só se no carbono já havia sido
instilada uma porção de inteligência. Neste sentido,
os processos evolutivos nada mais são do que
processos depurativos, no sentido de extrair um
pensamento com um grau de cada vez maior.
Abstração é isto: o pensamento que agora não é
apenas produto, mas que se depura a si mesmo.
Quando se fala em metanarrativa, está a se falar
que o pensamento é a única de todas as outras
instâncias encontradiças no mundo empírico, que
tem a ímpar capacidade de transcender a si
mesmo, daí o prefixo meta anteposto à narrativa.
Temas a sensação de uma manietagem filosófica
justamente porque o meta, por paradoxal que seja,
não sai do cispensado. Comportamento é o modo
como o nosso corpo animado pela metanarrativa se
posiciona e se movimenta frente ao mundo. Assim
como esta ponte entre ideal e concreto que é o
comportamento é espelho do pensamento
192
produzido a partir do entorno, o determinante é o
pensamento. Porque as condições objetivas são o
estrado sobre o qual repousamos o pensamento
que quisermos. Como o pensamento é origem e
destino, o meio empírico não passa de matéria-
prima a ser processada. O pensamento é um
processador. Mais importante do que aquilo que se
processa é o processador. Porque se o
processador for ruim não consigo extrair ouro da
areia e, de outro lado, se o processador for bom
consigo transformar lixo em negócio rentável e
ecologicamente correto. O pensamento cresce
avançando e retrocedendo. A maneira de criar
conceitos geniais é paragonando os conceitos
novos com os antigos. Filosofia é exercício
contínuo de feedback. O filósofo é um ruminador. O
pensamento é como a repetição: cada vez que
percorre o mesmo trajeto aprimora a performance.
A reflexão filosófica é a trajetória de uma maratona
que volta e meia é perfectibilizada de uma maneira
totalmente inusitada. Experiência é a repetição,
mas o que interessa é o que se extrai da
193
experiência, a praxe mais eficiente e a melhor
abordagem. O pensamento é não só um meio de
resolução de problema, mas um marco de
importante vitória. Porque o pensamento de per si
deixa demonstrada a postura de espírito de quem
está compenetrado, desligado e focado em algo
intelectualmente segregado. O pôr-se em postura
de pensamento indica uma postura psíquica de
comedimento, equilíbrio e autodomínio. Aliás, a
autodisciplina é o requisito número um para a
composição de qualquer problema que seja.
Porque o pensamento só segue seu curso se
encontra um talvegue através do qual possa fluir
que, em última instância, é a temperança. Erro
crasso é querer resolver o problema fora de si.
Nada disso. O problema deve ser internalizado e
resolvido intelectualmente para que, pela segunda
vez, agora no mundo empírico, ele possa ser
resolvido. Os problemas da humanidade são
aqueles sofridos por pessoas que não pensam e
em relação aos quais os pensantes não enxergam
obtenção de vantagem em eventual empréstimo de
194
inteligência. O pensamento é algo crescente,
reforçativo e automelhorador. A inteligência é o
índice geral do que fazemos com os recursos
mentais, comumente chamados de pensamentos.
O fato de Freud ser mais popular do que Hegel
apenas mostra que a maioria das pessoas não
conseguiu sair da ordem fática basilar cuja
explicação é abarcada por uma teoria basilar. Hegel
ainda está para ser famoso. Ele ainda não
conseguiu se fazer entender. Mas um dia a
humanidade entenderá aos idealistas. A psicanálise
é explicada pelo hegelianismo, o afetivo é resolvido
pela hermenêutica da terapia dialógica. E o
hegelianismo é explicado pela psicanálise: eu
sublimo aquilo que me incomoda nos níveis
inferiores. Ambas as teorias estão corretas. Mas
Hegel não é monista, ele é generalista de tal modo
que a sexualidade é um dos aspectos do Eu
Absoluto. Quando se fala em metanarrativa está se
tentando trazer o idealismo para uma linguagem
mais próxima do homem culto médio, ao invés de
deixar certas categorias relegadas ao ostracismo. O
195
pensamento percorre vielas apertadas e de difícil
acesso; as agruras e os perplexos estão sempre
presentes. As Sagradas Escrituras dizem que
estreita é a porta e estreito é o caminho que conduz
à salvação e bem pavimentado e largo o caminho
que conduz à perdição. Isto quer dizer que a
maioria vai se perder e que uma minoria vai se
salvar. Ora, que caminho apertado é este senão o
caminho do pensamento? Claro que se está a falar
do pensamento. O que deve ficar claro é que o
pensamento não é algo divorciado da vida. Quando
uma pessoa despreza a tradição filosófica ela
simplesmente prova que nada entende nem da vida
e nem de filosofia. Quando Cristo fala de caminho
está a falar de mentalidade. Conversão é mudança
de rota, mudança de mentalidade, daí o termo
metanoia. A filosofia, de Descartes a Hegel, perfez
um crescendum. De Hegel para cá foi só
pauperização. O excelente é sempre sucedido de
algo que lhe é inferior. O sujeito, defende a
oumperiforalogia, deve ser um metanarrador. Isto
significa que ele deve ser o norteador de si mesmo.
196
Ele precisa aplicar a inteligência narradora da
realidade de modo a visar não só a realização de
objetivos imediatos e pragmáticos, mas também
questões existenciais, almáticas e metafísicas.
Depois de tirar o fator de hominização do homem, o
pensamento na sua pureza espiritual, Marx ainda
tem o atrevimento de falar em “homem total”.
Totalmente policiado e achacado pelos burocratas
de Estado, isto sim! Qualquer que seja a sociedade
em que ele viva ele carece e necessita de liberdade
de poder pensar e expressar este pensamento.
Ainda não nasceu a sociedade que eu defendo,
porque em nenhum metro quadrado do planeta há
absoluta liberdade de manifestação do
pensamento. Nas universidades brasileiras há uma
deliberada perseguição aos intelectuais e isto
começa já no primeiro ano de graduação, que
escrevam com mais elegância que seus pares. Não
se autoriza pensamento próprio. A criatividade é
completamente desestimulada. Há uma automática
repetição e o mais absurdo desprezo à experiência
pessoal do formando. Não ocorre à universidade
197
brasileira que tão importante quanto conhecer os
precursores é fazer conhecer a si mesmo. A
maneira de refrear a vontade própria de um povo é
refreando a desenvoltura do pensamento filosófico.
Quando a elite de cá é serviçal da elite de lá os
filósofos são coibidos em sua produção. Os heróis
morrem e levam consigo seus livros. Não se
autoriza colocar o pensamento sob as luzes da
arribalta. Um metanarrador profissional é sempre
muito perigoso. Nenhum metanarrador profissional
bem compreendido é perigoso. Ele só é perigoso
quando maltratada é sua obra. Perigoso é o que se
faz com os escritos filosóficos alheios. Porque a
plena, ou quase isto, compreensão de um filósofo
traz consigo a intrínseca relativização do filósofo.
Nada mais perigoso do que a aura de gênio que os
propagadores da filosofia opõem sobre a cabeça
dum pensador. Com isto não quero de modo algum
tirar o mérito dos propaladores filosóficos, porque
também nós filósofos precisamos ter os
marqueteiros a nosso favor. Na esfera judicial são
usuais os prazos. No direito para quase tudo há
198
prazo. Na filosofia também existem prazos, mas
eles não são peremptórios. Facilmente podemos
localizar na História da Filosofia o ursprung de uma
categoria. Mas a contemporaneidade está
assistindo a um revolver de categorias antigas. Sim,
porque muitos conceitos de músculos intelectuais
vigorosos foram aposentados precocemente. Há
quem diga que O Capital de Marx foi publicado já
ideologicamente vencido... e, no entanto,
acotovelam-se marxistas ao meu entorno. Marx
disse que, na 11ª tese sobre Feuerbach, “os
filósofos interpretaram o mundo de diferentes
maneiras, mas o que importa é transformá-lo”. Ora,
o mundo transformou-se a todo momento. Pois até
quem fica silente transforma o mundo, ainda que
seja de uma das piores maneiras. O que Marx não
enxerga é que também ele é um abstratíssimo
teórico antes de agitador político e social. Se for
para transformar a realidade para trocar de mãos a
chave do ergástulo então pouca coisa mudou.
Precisamos viver em uma sociedade que preconize
a liberdade e o preparo para ela, o conhecimento.
199
Só onde há liberdade há aprendizagem e só onde
há aprendizagem há liberdade. É preciso que
qualquer que seja o desempenho de um indivíduo
ele não desfaleça e qualquer iniciativa além do
óbvio seja premiada. Garantismo social e
meritocracia não se excluem, mas se
complementam. Metanarrativa que tudo contempla,
tudo considera. Todos os aspectos são
importantes. O fato de em determinado contexto
histórico um se destacar não deve dar ensejo à
aniquilação teórica dos demais. A nova sociedade
será a democracia realizada pela comunidade ideal:
a comunidade dos pensadores. De todos os
matizes, de liberais a comunistas e anarquistas.
Porque só o ponto de vista da diversidade é o
verdadeiro e melhor ponto de vista. Nunca se leu
tanto a Nietzsche e as igrejas neopentecostais
crescem a todo vapor. Esta é a sociedade líquida. A
pós-Modernidade é o resgatamento de tudo ao
mesmo tempo. Quando trabalhamos com a
categoria de metanarrativa simplesmente queremos
decernir ordem a esta sopa eclética de ideias que
200
xiitamente avocam a verdade para cada uma de si
mesma. Nunca em toda História do Pensamento
Filosófico foi tão oportuno e tão conveniente falar
de metanarrativa. porque não existe nada mais
rachado do que duas racionalidades. Todavia,
numa sociedade de multiplíssimas racionalidades,
fica fácil falar em unidade. Quando o torrão de
barro é reduzido a pó, basta instilar nele uma
porção de água e com esta matéria-prima é
possível fazer uma peça única, super-resistente e
indivisível até prova em contrário. O que escrevo
acima é tão verdadeiro e tão perceptível que o que
se percebe é que a pós-Modernidade com todas as
suas fissuras e alas foi provocada em nome da
consecução de uma unidade calcada na cisão de
quem se fosse coeso poderia lhe fazer frente.
Novamente vemos a Igreja Católica Alemã
insatisfeita. E se a Igreja rachar de novo haverá
uma terceira força cristã, nem luterana e em
católica romana. O que escrevemos é
exemplificativo e o mesmo ocorre com mais
201
frequência com partidos políticos e outros ramos da
sociedade civil organizada.
História do universo: a ideia de cosmos
Não foi por acaso que a filosofia grega pré-
socrática comece tratando da ideia de cosmos e de
physis. Porque do ponto de vista físico esta, de
longe, é a mais importante de todas as questões.
Estamos engavetados, marchetados dentro desta
enormíssima engrenagem que se chama universo.
Fazemos todo o esforço possível de compreender
esta nossa casa, grandessíssima e complexíssima.
Como sempre, nos vemos reféns de nosso
pequeno alcance epistemológico. Somos cerceados
por nós mesmos. Talvez seja a partir desta
constatação que os sofistas, representados por
Protágoras, diriam “o homem é a medida de todas
as coisas”. E ocorre uma reviravolta investigatória
tirando o foco da natureza que nos é exterior para
nos centrarmos sobre nós mesmos. A reflexão
sobre o cosmos sempre será a reflexão última.
202
Porque somos poeira estelar. No universo está
nosso começo e nosso fim. A pergunta “donde veio
o universo” se respondida, faz restarem
respondidas uma série de outras questões. Em que
pese a desenvoltura da cosmologia científica,
astronomia e astronáutica, a cosmologia filosófica
sempre será importante e a crítica que fazemos à
filosofia da linguagem, à lógica e ao pragmatismo é
o passar ao largo destas questões. Parece-nos que
a maneira mais cômoda de explicar o universo é
colocando-o dentro de uma programação
matemática. Isto nos traz um conforto intelectual
muito grande. Todavia, os inconvenientes deste
método já foram apontados em nossa obra “A
Árvore do Conhecimento”. Não há razão plausível
de que as categorias lógico-matemáticas
empregadas pela nossa razão guardem algum tipo
de correspondência metafísica com o que nos
rodeia. Por mais que os telescópios viajem no
universo sempre estaremos apenas tentando
arranhar a película do nosso habitat. Os filósofos
não deveriam se acomodar e transferir este
203
megaproblema teórico aos cientistas. Até mesmo
porque, em se tratando de cosmos, não se pode
dizer que os cientistas estejam em muito melhor
situação do que nós filósofos. Eratóstenes é a
grande prova de que a imaginação calcada em
algumas observações simples pode nos dar grande
conhecimento. Pois se a distância entre Siena e
Alexandria é de 800 quilômetros e uma barra de
igual altura num e noutro ponto fazem sombras
diferentes de modo que a baliza de Alexandria
projete uma sombra 7% maior, então é de se
deduzir que esta trajetória de 800 quilômetros
corresponde à quinquagésima parte do globo
(360:7=50). Assim, 800 vezes 50 igual a 40.000,
circunferência aproximada de nosso planeta.
Cálculos incríveis no século XX foram realizados
pelos astrônomos em razão da intermitência
luminosa dos corpos celestes. É dessa criatividade
que precisamos para construir conhecimento. O ser
humano está transido entre o giga e o nano âmbito.
Ambos os extremos lhe são estranhos embora
nada esteja separado de nós. Diríamos com
204
Anaxágoras, de acordo com o qual tudo está em
tudo, que o conhecimento exauriente da menor das
partículas acarretaria o conhecimento do todo.
Assim como a sequência genética contida em cada
célula contém o organismo inteiro, existe em cada
partícula a sequência do universo inteiro. Na menor
das partículas estão encerradas todas as premissas
e todos os corolários. O metanarrador é essa
mônada de Leibniz que espelha da melhor ou pior
maneira o universo inteiro. O universo é a
disposição de não se sabe o que para fazer
oposição ao nosso intelecto e com isto ser
engendrada a nossa consciência. Consciência é
limitação. O universo traduz o paradoxo no qual a
nossa razão está posta: ela busca autoampliação
quando a infinitude, amplidão máxima, é a sua
aniquilação. Ao contrário do que disse Sartre, de
que a consciência é um nada querendo ser alguma
coisa, a consciência é alguma coisa querendo ser
nada. Quanto mais ela se expande, mais se realiza,
e a realização máxima é a autoderrocada. A
consciência é como a planta parasitária que
205
estrangula aqueloutra que lhe serve de suporte e
ambas fenecem. Consciência é relação e a
suprema afirma de um polo extingue o polo
antípoda e a relação deixa de existir. O universo é
essa vibração dançante que nos dá o ritmo e o
gingado. A maior razão pela qual falamos menos do
cosmos é que nos preocupamos demais conosco
mesmos. O ser humano é vidrado em si. Como
contemplar as estrelas se a todo momento sou
provocado pelo meu semelhante? É que do ponto
de vista espacial e temporal os que estão ao meu
entorno esbarram em mim com mais facilidade. Do
ponto de vista prático é melhor mesmo o homem
ocupar-se de si. Porque é tecnicamente mais fácil
agir sobre si mesmo para obter melhores resultados
do que tentar alterar as macroordens que sequer
compreendemos e que bem provavelmente jamais
teremos ingerência sobre ela. A grande sabedoria
do homem é ter a capacidade de se organizar para
melhor poder suportar e usufruir os movimentos da
natureza entendida e estendida esta para a
natureza bruta. O universo mostra a sua natureza
206
quando é agitado. E nós que somos parte disto
tudo também tendemos à inércia e mostramos
nossa natureza quando somos colocados sob
pressão. O ser humano é a essência do universo, é
a matéria-prima que exibe um maior grau de
desintoxicação daquela porção opaca bruta. Platão
disse que o corpo é o cárcere da alma e
concordamos com ele. Porque Aristóteles estava
certíssimo ao conceber o intelecto agente como
enteléquia, ou seja, ato puro. Discordamos do
Estagirita que a potencialidade esteja agregada à
matéria, porque no mundo puramente espiritual. O
fato de a evolução se dar no plano da matéria, ou,
no caso do ser humano, em um mundo partilhado
em duas dimensões numa só, significa tão somente
que a evolução está nos seus primórdios. Deus
evolui. Quiçá, a própria exteriorização de Deus em
algo palpável, o cosmos, sirva apenas de
mediação. Deus é onisciente, mas a própria
onisciência é evolutiva. E assim como as coisas do
espírito humano estão acima das coisas do corpo
humano, também Deus é maior que o universo,
207
com a diferença de que em se tratando dele a
paralaxe é ainda mais abissal. Deus criou o
universo porque quer fazer morada, o Jardim do
Éden tem esta conotação. Quando o Povo de Deus
atravessava o deserto o arraial com o santuário era
a morada e as tendas eram moradas. Na Terra
Prometida não havia outro propósito senão fazer
morada. No Templo erigido por Salomão o objetivo
era fazer morada. No ventre do peixe Jonas fez
morada. No corpo de Cristo o Deus Homem faz
morada na humanidade. No Pentecostes o Espírito
Santo faz morada nos corações. A Igreja é a Nova
Arca de Noé onde se faz morada. Em Apocalipse
se fala na Jerusalém Celestial, ou seja, morada,
morada... O expandir e contrair do universo, um big
bang infinito de idas e vindas, de expansão e
contração, é como o coração que bate em nosso
tempo. Precisamos estar antenados para as
frequências e subfrequências. A morada é lugar de
aconchego e intimidade. Não construímos moradas
para nos proteger das intempéries atmosféricas,
pelo contrário, Deus proporcionou intempéries para
208
nos dar um ótimo pretexto para fazermos morada.
Os moluscos carregam sua casa consigo e os
pássaros são verdadeiros engenheiros. Como diria
Marx, a diferença entre a melhor abelha e o pior
arquiteto é que este último projeta antes de realizar.
Deus é arquiteto e, o homem, sendo sua imagem e
semelhanças, também é arquiteto. Mas o homem
arquiteta em primeiro lugar em seu próprio espírito
em que as premissas são os fundamentos e os
corolários as coberturas. A morada física de
concreto e ferro é só a mais simbólica moradia. A
atividade laboral é uma morada, a convivência
familiar é uma morada, a comunhão dos santos é
uma morada. O céu e o inferno são essencialmente
morada, em que há respectivamente, harmonia e
desarmonia, companhia e solidão, luz e trevas. O
universo tem, pois, este propósito. É interessante
como o homem se sente sozinho no universo.
Porque usamos indistintamente as expressões
“cosmicização”, “universalização”, “mundialização”
e “globalização”. Quando sabemos que do ponto de
vista físico há uma diferença grotesca entre mundo
209
e universo. A grande questão que se coloca é
porque Deus faria um universo tão grande e
majestoso para autorizar vida inteligente apenas
neste pontinho azul? Uma boa resposta seria dizer
que Deus é tão rico que pode ser pródigo e outra é
supor que de fato estejamos acompanhados. Assim
como as altíssimas catedrais se prestam para a
finalidade de o fiel sentir-se pequeno, colocando
par a par a extensão do próprio corpo com as
medidas do prédio santo, Deus também fez o
universo amplíssimo para que encontrássemos o
nosso devido lugar. Há cerca de 8.000 anos
começamos a, de fato, governar a Terra. E apenas
as últimas 2.500 começamos a nos voltar
reflexivamente para o nosso próprio papel. Dominar
o universo passa em primeiro lugar em dominarmos
nosso próprio pequeno universo. Porque somente
as culturas materialmente organizadas geram
excedentes de alimento, de riqueza, de trabalho
acumulado para presentear os mais felizes com
tempo ocioso para olhar para o alto e dizer
maravilhas acerca do que nos encanta. Quem
210
ocupa todo o seu tempo ou a maior parte do seu
tempo com sua própria manutenção não pode
perquirir sobre as coisas do universo e sequer ser
filósofo. Mas esta é ao mesmo tempo uma vitória
coletiva e individual. Porque é o contexto que
arranja a mesa do sábio e o indivíduo de sorte que
pode banquetear-se necessita ser dotado de
talentos todo especiais. As sete mil estrelas que
enxergamos a olho nu não estão acima de nossa
cabeça por acaso. Cada uma delas tem um
propósito. E assim como o planeta Terra reúne
todas as condições para ser habitado por seres
humanos, as estrelas podem ser morada de outros
seres menos exigentes do que a nossa carne como
as entidades angelicais. O fato de menos de 1% da
matéria do universo ser luminosa nos faz saber que
possivelmente esta é a proporção entre nós
humanos, dos que brilham e dos que não brilham.
Agora, por que Deus quis fazer brilhar alguns e
outros simplesmente refletir o brilho de terceiros, é
explicável pela parábola dos jardineiros em que o
que trabalhou só uma hora recebeu o mesmo que o
211
outro que trabalhou o dia todo. A parábola dos
talentos em que aquele que tem dez minas recebe
mais uma também traduz isto. Tudo tem uma idade
e o universo também tem uma. É certo que se
concebermos o big bang como um eterno retorno
admitiremos a eternidade do mundo físico. Mas
ainda assim não é apropriado falar de idade do
mundo porque a cada princípio de expansão
inaugura-se novamente a ordem do tempo. O
universo tem esta característica singular de fazer
com que aquilo que é mais incipiente seja o mais
velho. Porque ser velho é fazer com que se
resguarde os elementos básicos sempre agregando
a complexidade crescente. Comte observou bem
que “generalidade crescente, complexidade
decrescente”. Só esqueceu de carrear a terceira
categoria, o tempo, porque não há como falar em
complexidade abdicando-se do transcurso do
tempo. O homem é o caminho através do qual
Deus tem sua intimidade com o universo. Porque o
anseio do universo é ser compreendido e o do
homem compreender. Deus se regozija em
212
esconder e o homem em descobrir. O espírito gosta
de fazer caber o universo dentro de padrões e, o
universo, na sua feminilidade, gosta de se fazer
inapreensível. A fêmea tema a mensuração, seus
contornos são a fuga do ângulo reto. Einstein foi
feliz ao notar que uma supernave espacial que
viajasse longamente em linha reta perfaria curvas.
A geometria de Euclides é apenas uma das
possíveis e nem se mostra a melhor para
representar expressões numéricas de grande
magnitude. A cultura judaico-cristã é a que mais
nos coloca em contato direto com o cosmos
embora os rabinos não sejam meditativos do
mesmo modo como os filósofos pagãos gregos. Na
Bíblia o Sol para e até retrocede para irradiar uma
batalha para o Povo de Deus vencer. O menino-
Deus é visitado por reis magos conduzidos por uma
estrela. E o interessante é que as parábolas de
Jesus falam de coisas parvas para dar grande
ensinamento. Diferente daquela sabedoria que fala
de coisas grandes e ensina pouco. Justamente
talvez porque cumprindo o “uns aos outros” que
213
aparece 52 vezes no Novo Testamento, estaremos
cumprindo não só o nosso próprio propósito
existencial, mas o dos corpos celestes também.
Quando o apocalipse fala que no final dos tempos a
terça parte das estrelas será varrida do céu
incardina toda a ordem universal em função de um
escopo escatológico. Claro, tal perspectiva se
choca com a ciência para a qual o gênero humano
é uma insignificante nota de rodapé e coloca o
homem no centro do universo todo o mais girando
em torno dele. Isto quer dizer que mesmo que o
universo esteja de costas para o gênero humano,
assim como esteve para os dinossauros, Deus não
está de costas para nós. Deus é pessoa-
pensamento-amor e se preocupa conosco. Porque
Deus faria do homem um metanarrador para, por
exemplo, interromper de repentemente a narrativa
com um choque meteórico? Seríamos nós um
potencial alvo de um acidente cósmico? Se é que
de acordo com esta perspectiva ao avesso faz
sentido falar em “acidente”. A palavra universo vem
do étimo “unus versus alius” ou seja, um contra o
214
outro. Isto significa que falar em universo é falar em
beligerância. A belicosidade é a regra do mundo
espiritual. É ela que promove crescimento. Não há
crescimento na tranquilidade. Heráclito e Hegel
falavam exatamente disso. Os marxistas admitem a
contradição e a dialética e negam o mundo
espiritual. Como se vê de cara, é uma grosseria
teórica. Como admitir que a matéria é regida por
leis que fazem a natureza pelejar contra si mesma
senão admitindo que sobre um substrato há um
princípio ativo espiritual? Dialética é princípio e não
existe princípio material. A matéria é o que sofre ou
comporta a efetividade principiológica. Mas negar
Deus e admitir a ação de princípios imateriais e
absolutamente virtuais é admitir ad hoc um mundo
espiritual negando a ideia central da qual origina-se
a categorialidade abstrata. Marx se diz materialista
e recheia sua obra máxima, O Capital, de
abstração. Como quer fazer acontecer o socialismo
científico embasando um projeto de civilização no
pensamento abstrato se, segundo ele, o homem é
cérebro, músculos e nervos? Como pode um ser
215
que é aquilo que come (Feuerbach) precisar de
ideologia para ter pão em sua mesa no café da
manhã? Ou como pode uma sexualidade truncada
ser curada no divã, uma via distinta da sexualidade
em si mesma? A própria palavra “matéria” é uma
abstração. E não só o termo “materialidade”.
Porque matéria não existe, ela é uma ideia, uma
abstração. Pelo que inferimos que o universo
também ele é pensamento. A palavra “universo” é
uma abstração. O universo enquanto se contrapõe
ao gênero humano faz ele existir e também o
homem faz o universo existir. Porque Berkeley é
feliz ao dizer que “ser é ser percebido”. Universo
sem vida inteligente é, do ponto de vista lógico,
uma nulidade metafísica como se fosse o vácuo e o
nada absoluto.
História do Planeta: a ideia de planeta
A Terra é um tição incandescente que esfriou. Se
não houver outras variáveis, a tendência é que ela
se torne cada vez mais fria até que se torne
216
inabitável. Como o resfriamento ocorre de fora para
dentro, no exterior há a litosfera sobre a qual se
apoia a película chamada biosfera, e no centro do
globo há níquel incandescente. Evidentemente, que
a temperatura do planeta não está linearmente
descendo uma ladeira. Pois há ondulações de frio e
calor. Pois numerosas são as variáveis e as
glaciações e o aparecimento de desertos como o
do Saara são provas disso. Assim, o gênero
humano por longo tempo terá, no transcurso de
suas gerações submeter-se a ondas de calor
estafante e enregelar pelo frio inóspito. De acordo,
portanto, com Montesquieu, os ordenamentos
jurídicos terão idas e vindas, pois na conformidade
do Espírito das Leis, tudo isso é ingrediente
legiferante. A circunferência da Terra e a
velocidade com que ela gira em torno de si mesma
condiciona totalmente nossa vida. É a dialética de
noite e dia, repousar e ação. E ainda que a energia
elétrica relativize a noite, o certo é que o relógio
biológico é praticamente o mesmo de nossos
ancestrais trogloditas. Somos o planeta azula em
217
razão da grande quantidade de água nos oceanos,
mas um dos riscos que corremos é de carência dos
recursos hídricos. A tecnologia está tentando
contornar isto com a dessalinização. Outro fator
que condiciona a nossa vida é a pressão
barométrica e o índice de oxigenação da atmosfera.
Há total diferença para o organismo humano de ser
serrano ou litorâneo. A altitude está relacionada à
temperatura também. Pois alguns lugares mais
afastados dos polos são mais frios, em razão da
altitude, do que outros mais próximos, porém,
depressivos. Por causa da massa do planeta
estamos sujeitos a uma determinada força
gravitacional. Newton teve o mérito de representá-
la matematicamente. Em nossa obra A Árvore do
Conhecimento questionamos a fórmula de Newton.
Pois, por exemplo, quando encosto o prumo na
parede de um edifício e libero bastante barbante,
ele faz curva em direção à parede. Isto significa que
a gravidade em direção ao solo é afetada por outra
gravidade em direção ao prédio. Assim, há pontos
de energia fora das massas, e esses pontos co-
218
laboram tanto quanto as massas. É esse princípio
de relação que precisa ser embutido numa fórmula
perfeita. A deriva dos continentes esfacelando a
pangeia é outro fenômeno que deve ser
amplamente considerado conquanto se mostre em
processo. A costa da América continua se
distanciando da costa da África. O capitalismo e o
desenvolvimento dos transportes de pessoas gerou
e gera os movimentos migratórios. São
características das centrais civilizacionais a
mestiçagem, o internacionalismo, o sincretismo de
ideologias e mais elastério de pensamento e formas
de conceber a vida. A alta densidade demográfica
nestes polos também faz com que o indivíduo seja
apagado ante a grandiosidade do social. É mais
característica a aparição de gênios e de outras
grandes personalidades nestes nichos urbanos. O
planeta é este substrato, este palco privilegiado
onde tudo corre e ocorre. O planeta sempre será
nosso QG ainda que possamos nos deslocar no
futuro para outros planetas. Com um caça
ultrassônico posso perfazer uma viagem de tempo
219
zero e até de tempo negativo se me mover em
sentido antihorário. Do ponto de vista social, depois
que o planeta tornou-se uma “aldeia global” pelos
meios de comunicação de transmissão
instantânea, deveríamos forçar a comunhão dos
povos pela elevação do padrão material e cultural
dos chamados países de terceiro mundo. Em época
de universalização da informática e dos serviços
financeiros, deveria ocorrer também a
universalização do IDH dos países de primeiro
mundo. E isto será fruto de esforços concorrentes
dos ajudadores e dos ajudados. Assim como os
bárbaros germânicos de ontem hoje são sinônimos
de civilidade o mesmo é possível fazer no
continente africano pela culturalização planejada,
intencional, programada e fiscalizada. Se Jucelino
Kubichek fez o Brasil crescer 50 anos em 5,
podemos fazer a África crescer 5 séculos em 50
anos. Porque o homem constrói pontes, elevados,
estradas e túneis, mas, via de regra, conforma-se à
topografia, porém, não precisa e nem deve
conformar-se à falta de infraestrutura e à falta de
220
saneamento básico. É incrível como somos
irresponsáveis para com nossos descendentes e
nossa própria casa: nossos descendentes vão
dispor do mesmo espaço e das mesmas condições
em que nós entregarmos o planeta a eles. E
precisamos educar ecologicamente nossos filhos já
pensando nos netos e nos bisnetos. O planeta e a
humanidade mantêm entre si uma relação atávica.
Ao mudarmos as características do mundo em que
vivemos os segundos imediatamente afetados
somos nós mesmos. Fazer mal ao planeta Terra é
como puxar o gatilho com o cano apontado para
nós mesmos. A biosfera é a parte mais importante
ainda que a menor das partes onde as espécies
dominantes ou recessivas se desenvolvem. Ela é a
menina dos olhos. A característica marcante da
biosfera é funcionar circularmente em
ecossistemas. Assim, o que inquina qualquer
fragmento da cadeia vital inquina a totalidade do
ambiente. É certo que a gradação de impacto vai se
amainando da mesma forma que as ondas na
borda do lago são menores do que aquelas do
221
centro em que a pedra foi arremessada. A todo
instante, ou melhor, perenemente, já no ventre de
nossa mãe ou ainda antes disso estamos sofrendo
o efeito bumerangue da civilização. Sartre disse
que não importa o que fizeram conosco, mas aquilo
que nós fazemos com o que fizeram de nós. Se não
é possível instrumentalizar a mudança em nossa
própria geração, então temos de ter o bom senso
de fazer o melhor se realizar para as próximas
gerações. Devemos primar pela renovabilidade dos
recursos e lembrar que não apenas hoje, mas
amanhã e sempre a vida deve ser praticável no
planeta. O conforto dos países ricos deixa atrás de
si uma onerosa “hipoteca”, para tomar emprestada
uma expressão de certa encíclica, social e
ecológica. Só alguns usufruem de conforto, mas o
preço ambiental é rateado com toda a humanidade.
É importante que nos relacionemos com o planeta
não só como base física ubiquidade e
circunstancialidade, mas que tenhamos um laço
afetivo com ele. Do mesmo modo que o país em
que nascemos é nossa pátria em prol da qual
222
somos capazes até de dar a vida, também o
planeta deve repercutir da mesma forma sobre nós,
como a pátria universal de todos os povos. O amor
ao planeta não se limita a uma categoria plena de
imperatividade por necessidade fática e física.
Porque ainda podemos golpear muitíssimo o
planeta e a vida continuará praticável. A questão,
destarte, não está exatamente posta entre vida e
não vida, mas em qualidade e longevidade de vida.
Além disso, o cuidado com o planeta está ligado a
uma questão de paisagismo. Como é agradável
morar em um ambiente livre de ruído e de poluição
atmosférica e visual. Somos muito aquilo que
vemos com maior frequência. Dificilmente se tem
uma bela alma inserta num ambiente repleto de
coisas rotas. As ciências antigas, das quais pouco
se fala quando paragonadas com as ditas
modernas, trazem uma abordagem riquíssima
acerca do significante esotérico do nosso planeta.
Este tipo de literatura embora por vezes acrítico
não pode ficar em descrédito por conta de
generalizações apressuradas. Porque reconhecer
223
ao nosso planeta algum sentido místico e
suprarracional nada mais é do que admitir o
primado do sutil sobre o tosco, do espiritual sobre o
material. Trata-se de um nível superior, mais
elevado e mais profundo que é perceptível e
apreensível apenas aos espíritos mais arrojados.
Pertencer a este planeta é pertencer antes de mais
nada a uma determinada ordem espiritual.
Entendida a palavra ordem como organização,
código de normas, status e estatura ôntica. O
planeta é um senhor de meia idade. Dizem, faz não
dois, mas setenta e dois movimentos diferentes. E,
quanto à rotação, há quem diga que está em ritmo
de frenagem a ponto de um dia parar e, como
barbante, começar a perfazer o movimento inverso.
Newton explica que, pela lei da inércia, um planeta
ou outro corpo faz um movimento perene se não
houver resistência do que quer que seja. Em Jó
26,7 lemos “Deus suspende a Terra sobre o nada”.
O próprio Tomás de Aquino na Summa Theologica
deixa claro que a Terra é redonda. A Terra tem uma
vibração própria, vibração esta que é alterada pela
224
irradiação desmesurada de raios eletromagnéticos.
A gravidade da Terra é relativamente fraca, pois
posso catar um prego do chão com um ímã, o que
prova que meu objeto imantado tem mais força
sobre o prego do que toda a massa do Planeta. Os
faquires, não todos, mas o mais treinados, praticam
a arte da levitação que é a suspensão da força
gravitacional. Somos tão sensíveis que não
podemos, sem equipamentos especiais, subir o
Everest ou descer a maior depressão abissal.
Basicamente, é a mesma lógica que faz um avião
decolar e uma pedra de granizo fica suspensa
numa nuvem: a pressão vertical do ar de baixo para
cima. E a água, o granizo, o Sol, o vento são
fatores que agem sobre a superfície da Terra. Terra
agricultável nada mais é do que rocha decomposta
pelos fatores acima expostos. Nada degrada tanto
como o choque térmico. Para o planeta é
indifernete ser fulminado por um relâmpago, pois a
energia que está no céu antes esteve na litosfera.
Assim como a idade do universo é muito maior do
que a idade do planeta, a idade do planeta e muito
225
maior do que tudo o que nele há e nós entramos
em cena no último segundo. Numa escala projetada
em milhões de anos, guardadas as proporções.
Não cremos que o planeta seja perfurado como um
queijo e que como imaginou Júlio Verne em Viagem
ao Centro da Terra, seja possível encontrar uma
civilização que more no escuro. Todavia, no interior
da Terra há lençóis freáticos e petróleo em grande
quantidade. Há rios subterrâneos mais caudalosos
que os que correm do lado de fora. Crê-se, mas
não se sabe com certeza se os elementos da tabela
periódica são os mesmos do planeta e dos confins
do universo. Não raro, topamos com pessoas que
conhecem dezenas de países, o que era uma
extrema raridade no passado. Da roda ao avião
foram poucos dias. A civilização domina o
planeta. Mas a tecnologia vem sendo relativizada
e complementada pela tecnologia não . O
transporte físico, sobretudo o de mensagem, vem
sendo substituído pelo transporte etéreo, virtual.
Satélites e cabos de fibra ótica unem os
continentes. O planeta é alvo de diversas ciências
226
humanas e não humanas e a geografia será uma
delas que abordaremos adiante. Juridicamente
falando a Terra pertence aos mais fortes. A
Amazônia brasileira por um fio de cabelo ainda é
reconhecida como solo brasileiro. Mas quando se
trata de particulares, o direito ainda fica mais
restrito, pois o ar e o subsolo são de propriedade é
uma ficção. Pois ao mesmo tempo em que tudo tem
dono, seja o Estado ou um particular, nada tem
dono. O latifúndio é a maneira de repartir a terra de
modo com o capitalismo clássico. De um lado uma
grande porção de terra improdutiva e, de outro,
lavradores sem terra. O modo como partilhamos a
terra aponta o modo como nos relacionamos com
ela e conosco mesmos. Teologicamente falando,
pegando emprestada a dicção de Manolo Del Olmo,
a Terra é o único ponto no universo onde a vontade
de Deus pode não se realizar e, isto, pelo fato de o
Criador ter nos dado livre-arbítrio. O mal é um sair
da ordem natural e para que o bem seja
restabelecido é preciso uma vez mais sair do
normal. Na verdade, conhecemos muito pouco
227
onde vivemos e até agora não demos uma
explicação razoável de porque os Oceanos
Atlântico e Pacífico não estão no mesmo nível. A
Terra com suas plataformas continentais possui
dimensão finita e a espécie humana, como todas as
demais espécies, fica sujeita a esta finitude. Daí
que o controle de natalidade precisa ser imposto
pelo Estado ou, de outra maneira, torne-se um
hábito cultural ter apenas um ou dois filhos em
razão da dificuldade de estabelecer-se social,
espacial e economicamente. O grande problema é
que o nível de ordenação estrutural, social, político
e cultural não acompanha o crescimento
populacional. E além disso, para cada cidade, com
determinada população, frota de carros e chaminés
é preciso que haja um espaço natural intocado ao
correspondente, para poder absorver isto tudo. Ou
seja, se todos produzíssemos lixo e poluição como
os norte-americanos, só para exemplificar, o
planeta já teria ido à falência. Este tópico é
importante quando sinaliza que toda metanarrativa
depende de processos físicos e planetários
228
anteriores, vez que o ideal, na dimensão espiritual
chamada empírica, depende sempre e
necessariamente de um substrato material. Do
ponto de vista da ufologia há quem diga que somos
observados, nós, terráqueos, e a Terra, nosso
planeta, por outras civilizações de outros planetas.
E que só não fomos fulminados e extinguidos
porque nossos baixos níveis de quociente de
inteligência, do ponto de vista dos alienígenas não
representa um perigo para quem quer que seja. O
máximo que conseguimos fazer foi impactar o dia
com 0,06 segundos a mais por termos deslocado a
Terra do eixo em 2 centímetros elevando a 175
metros de água acima do nível do mar na represa
chinesa de Três Gargantas. Aliás, o único conjunto
arquitetônico visível a olho nu da Lua é a muralha
da China. Como observou Engels em O Papel do
Trabalho na Transformação do Macaco em Homem
desde que começamos a nos proliferar como um
bando de macacos famintos e vorazes, o ambiente
se viu achacado pela procura de alimentos e pela
adubação de terra com nossas fezes. O homem é
229
uma das poucas espécies que consegue
desequilibrar o meio ambiente. E mesma as outras
espécies que aniquilam suas rivais, foram
irresponsavelmente manejadas pelo homem que
colocou matrizes em ambientes indefesos a elas. A
Terra com seus maremotos, abalos sísmicos,
erupções vulcânicas, tornados e variações de
temperatura violentas tem sido hospitaleira para
conosco. O que seriam das ideologias
(metanarrativas) se não fosse esse torrão bruto e
opaco sobre o qual nos calcamos e do qual tiramos
nossa subsistência. Todas as ciências e todos os
conhecimentos ou versam sobre Deus, ou sobre o
homem e suas atividades ou sobre a Terra. Não há
como fugir disso. O próprio homem é o feixe que
junge o maior número possível de saberes. O
grande projeto do homem é conhecer a si mesmo.
E ele dá espaço a uma infinidade de saberes
justamente por participar de dois mundos, por ser o
canal entre o telúrico e o celestial. Não é todo
planeta que possui clima temperado, possui
atmosfera, fica a uma distância ideal de uma estrela
230
e possui água em abundância. Morando num lugar
desse é possível não só amar, trabalhar, estudar,
fazer política, crer em religião, filosofar, mas ainda
ter discípulos, fazer marketing, correr atrás de
vaidades, status, prestígio, autoridade, fama e
moral. Como diria Schopenhauer, “o mundo é
representação”. Mais importante do que em que
mundo vivo, é qual o mundo em que imagino viver.
O mundo que nos cerca é reflexo da relação cordial
e cerebral que travamos com ele. Assim, pois, se o
mundo vai mal é porque nossa vibração mental vai
mal.
História da vida: a ideia de propósito vital
Perguntado se creio em biogênese ou abiogênese,
entendidas estas respectivamente como a ideia de
acordo com a qual os seres vivos emergem
espontaneamente da matéria em estado contínuo e
como impossibilidade de a vida emergir de per si
das estruturas carbônicas, não fico com nenhuma.
Porque em dadas circunstâncias bem específicas a
231
matéria pode se complexificar para se tornar
matéria viva, no entanto, hoje as condições
fisioquímicas já não mais conseguem favorecer
este laboratório natural. Deus pôde ter intervido na
matéria para o surgimento da vida, mas é
suficientemente Inteligente para programar a
matéria para que ela mesma se encarregue disso.
O surgimento da vida foi querido por Deus desde a
eternidade. Carbono, nitrogênio, oxigênio e
hidrogênio sob dada pressão barométrica,
processos de eletrólise e fotólise são, sim, capazes
de se tornar algo mais do que elementos brutos. O
difícil é a primeira entidade unicelular. A partir deste
referencial a meiose e a variabilidade fazem todo o
resto. A vida, assim como o planeta no qual ela é
engendrada, tem um propósito. A discussão de
cientistas e teólogos em cima da discussão
casualidade versus propósito é sempre mal
colocada. Porque fenomenicamente os cientistas
estão corretos e uma certa cegueira e anomia
conduzem a vida. Mas por detrás da desordem
existe uma ordem que tenciona atingir uma série de
232
escopos. A variabilidade genética e sua capacidade
de adaptação ao meio são chaves explicativas
sérias o suficiente para descrever o elo de evolução
vital. O que defendemos é que a vontade não é
algo necessariamente intrínseca à inteligência. Na
irracionalidade também há vontade. Trata-se de
uma vontade que a duras penas se submete aos
processos que regem a matéria. O desafio da vida
inteligente cabida na matéria é ter de submeter leis
superiores a leis inferiores. A encarnação de Cristo
é essencialmente isto. O fato de uma ecatombe do
tipo K-T aniquilar com os dinossauros, conjunto de
espécies dominantes no planeta é totalmente
aceitável. O ser humano, como sugere a ficção
científica expressa sua produção cinematográfica
Armagedon, reuniria totais condições técnicas de
detonar um meteoro e salvar a si por si. O
surgimento de vida na Terra é o primeiro grande
sintoma de paranormalidade. A vida animal e
vegetal são oriundas de uma plataforma vital. A
vida vegetal tira sua energia do mundo mineral e a
vida animal é autofágica e tira sua vida do reino
233
vegetal ou do próprio mundo animal. O carnívoro
fica no topo da cadeia e por isso, em certo sentido,
é o mais exposto. Mas engolir pacotes prontos e
densos de energia traz uma comodidade. O
mamífero é uma tecnologia inteligente da natureza
na medida em que gera uma pletora de energia
para as crias mesmo quando não haveria outro
recurso alimentar de modo mais imediato. Há
vantagem e desvantagens em ser um animal de
sangue quente. A grande vantagem é podermos
estar ativos em todas as estações do ano e
disponibilizar para o nosso cérebro tudo o que ele
precisa apesar das oscilações do ambiente. A
desvantagem é que se formos pegos de maneira
brusca por uma reviravolta climática talvez não
tenhamos tempo hábil para nos precaver. O ter
uma temperatura em torno dos 36 ou 37 graus
Celsius é uma das primeiras grandes oposições ao
entorno. No sentido de que relutamos para manter
uma constância dentro de um ambiente
inconstante. O próprio fato de o ser humano não ter
um número definido de cromossomos nos mostra o
234
quão real é a variabilidade. A genética é a grande
chave do ser humano. O ser humano é um código.
Deus usa deste código para nos conhecer e
conduzir. A filosofia não pode passar ao largo
disso. Como diria Bacon de Verulam “um pouco de
filosofia afasta de Deus, muita o traz de volta “. E
como percebeu Schopenhauer, o homem é um
animal tão cerebrotônico que até a posição da
cabeça influi no ato de pensar: inclinada para
frente, quase horizontal. Isto ele escreve em
Parerga e Paralipomena (Ornatos e
Complementos). O que comemos repercute
diretamente sobre o que somos. Nosso alimento é,
em regra, um composto que também está
cromossomicamente estruturado. Daí o risco de se
ingerir, de acordo com alguns, alimentos
geneticamente modificados. A vida é um arranjo de
proteínas. Os vegetarianos, pois, que me
desculpem. A vida tem objetivo: conhecer a si
própria e fazer morada, além de ser moradia. O
propósito da vida é se apropriar das premissas e
dos corolários presumidos e subentendidos e trazê-
235
los para o reino dos explícitos e da consciência
forte. A reprodução sexuada foi a invenção mais
genial da vida. Sim, dizemos isto porque há
espécies hermafroditas que exercem papel ativo e
passivo podendo, um único indivíduo, fecundar a si
mesmo. A reprodução sexuada é quebra de um
código e a um só passo a renovação do mesmo. No
sentido de que a configuração da nova vida é
atualizada de tal sorte que a inovação burla os
agentes estranhos que não tem o mesmo
dinamismo. A mudança de sexo de alguns
indivíduos da população visa trazer compensações.
Pois é negativo para a espécie que haja
discrepância entre o número de machos e fêmeas.
Talvez o movimento de sociedade da diversidade
sexual cumpra esta finalidade embrionária em
todas as espécies. A diferença é que o ser humano,
diferente dos outros animais, tem personalidade.
Isto significa que outra hipótese, a do
condicionamento social, pode falar até mais alto do
que as necessidades procriativas. A vida procura
caminhos. É assim que o presidiário recebe visita
236
íntima e do lado de fora logo tem uma criança
recebendo auxílio reclusão. A vida pretende cobrir o
planeta. Nas depressões oceânicas os peixes
abissais, no alto das montanhas a águia, nos
lugares gelados focas, ocasião em que o filhote
nasce e a diferença entre a temperatura do útero da
mãe e do ambiente é de mais de 100 graus Celsius.
No telhado das casas o musgo, em toda greta uma
erva recalcitrante. A vida pode oscilar entre os
serenos quatro mil anos da sequoia ou os dez
violentos anos do leão africano. A casa de luxo vira
tapera e a figueira da praça da capital do meu
Estado paira feliz sobre a cabeça dos catarinas. Ao
longo dos sessenta anos do elefante e dos dois
anos do rato o número de batidos do coração de
um e de outro perfectibiliza quase que a mesma
expressão numérica. O propósito vital, neste caso,
seria expressar esta linguagem em diferentes
ritmos de frequência. A vida usa os mais velhos
como modelo. É assim que elefantes que estão
acostumados a conviverem com duas gerações
mais velhas se suicidam quando seus ancestrais
237
são chacinados. Ouço, agora, do meu sócio, que
uma senhora de 71 anos passa no exame da OAB
e que um personal trainer de 70 anos leciona e
assessora algunos de 102. Bem, penso que esta
volatilidade intelectual e esta resiliência é o que tem
feito do ser humano a espécie dominante do
planeta. Em um grupo de macacos em que um
toma a iniciativa de lavar a batata na água do mar
os seus colegas jovens copiam a conduta, mas os
mais velhos preferem comer batata com terra. A
vida é essencialmente informação. Mas trata-se de
uma informação ou de um conjunto de informações
transmitidos inconscientemente no caso de nossos
inferiores. No homem a informação é explícita, ao
menos parte dela. Freud complementa Darwin, no
sentido de que tudo é genética e a sexualidade é o
canal pelo qual é veiculado o material genético,
base de todo processo evolutivo. A psicologia de
Freud é uma psicologia para o cérebro de um
animal racional, mas o homem é bem mais do que
um superanimal. A vida é um pêndulo que oscila
entre desejo e tédio, realização e frustração, prazer
238
e sofrimento. Como diria Viktor Frankl, o sofrimento
deixa de ser sofrimento quando ganha sentido. O
próprio prazer também ele parece almejar algum
sentido. A vida é tomada pela ideia de processo e
processamento. Ela é processo no sentido de que o
sínolo de espermatozoide e óvulo, aí vem a
infância, a adolescência, juventude e adultícia,
velhice e morte. E é processamento na medida em
que somos a vida inteira bombardeados por
informações. Além disso, processamos e no interior
de nosso corpo funciona um plexo tão complexo de
enigmas, hormônios, combustão de calorias,
assimilação e eliminação que nem toda a ciência do
mundo seria capaz de explicar. O homem é o
pináculo da evolução na condição de quem tomou
consciência de si, sendo este “si” síntese de tudo o
que lhe precedeu. Mas poucas inteligências
transcendem o trivial e o banal. A reflexão filosófica
é esforço intencional e pensado de o homem
hominizar-se. A filosofia é o “lucidis intervallis”. Se
até o dia de hoje, como assinalou Freud, a
consciência é a ponta do iceberg enquanto que o
239
subconsciente é gigantesco, passaremos por uma
inversão: o pensamento será esmagadoramente
maior do que o não pensamento. Será invertida a
ampulheta. Se, como se quer, o consciente está na
razão inversa do subconsciente, será cambiada a
proporcionalidade porque o mundo espiritual se
afirma às expensas da negação do mundo material
e vice-versa. Se o universo se caracteriza por ora
gravidade infinita e extensão zero e ora por
extensão máxima e gravidade zero, filosoficamente
nos sentimos autorizar a lei que segue: o universo
da mesma forma oscila entre o pensamento infinito
e a concreção zero e a brutalidade máxima e a
consciência zero. O que vem a ser, pois, a
oumperiforalogia? É a disciplina que explica a
metanarratividade, ou seja, a passagem do não
pensamento para o mundo crescente do
pensamento. De toda forma, estamos, por isso, a
um só tempo, a trabalhar com linearidade a menor
alcance e a longo alcance com eterno retorno. O
que temos dito é que a consciência não se deixa
afetar pela não consciência senão antes acolher
240
uma impressão remota e abrigá-la sob o alpendre
da consciência. A este processo chamamos de
aprendizagem e dele se ocupam várias disciplinas,
inclusive a pedagogia. Nada mais dolorido do que a
aprendizagem ou, o que é o mesmo, a
conscientização. É mais ou menos, ou até pior,
como transformar pedra bruta em pó. É como livrar
a cebola de todas as suas camadas até não restar
outra coisa senão a ideia de cebola. A tensão não é
como queria Freud, pulsão sexual versus ímpeto
civilizatório, mas é entre pensamento e não
pensamento. O coito é o pensamento traduzido em
linguagem somática e, se dele ressaltar concepção,
o nascituro é soma que visa adquirir capacidade
pensante. Esta é a didática que defendemos. Existe
passagem do não pensamento para o pensamento
e do pensamento para o não pensamento. Mas
enquanto o não pensamento estiver guardado
sabe-se lá onde, id ou superego, em nada percute
sem que ao menos tenha o intelecto lhe reservado
um tratamento consciente, ainda que perfunctório.
Assim como o pensamento é enriquecido via
241
assimilação de dados brutos e depurados pela
abstração, o pensamento se lança sobre o
desconhecido mesmo sabendo da insegurança que
isso gera. Mas não faz isto de qualquer maneira,
mas de modo estratégico, seguindo a lógica do
método científico. A inteligência é adrede dirigida
para a construção do conhecimento. Claro, a vida
vem a ser não só a base de toda inteligência que se
emprega nas ciências, mas ela própria torna-se
objeto empírico e ideal de estudo. O empirismo
relegamos aos cientistas e da idealidade tentamos
dar conta aqui neste espaço. A vida é como o curso
de um rio. Mas enquanto todos os rios deságuam
no oceano, a vida emerge do oceano e se
esparrama por toda a face da Terra. O
denominador comum é o fluxo. A vida é fluxo.
Neste sentido Heráclito foi brilhante com o seu
“tudo flui”. A morte não é exatamente a interrupção
do fluxo, mas a transposição do fluxo para uma
superior transição. Tudo é, de um lado, material e,
de outro, espiritual. E assim como a matéria evolui
dos aminoácidos até chegar ao homo sapiens
242
sapiens, algo paralelo ocorre com o mundo
espiritual. Cristo é claro “quem crê em mim
ressuscitará”. Isto está no Evangelho segundo João
em que perguntam a João (o Batista agora e não o
Evangelista) “tu és Elias?” em uma alusão
claríssima à reencarnação. Assim é de se admitir
que ressureição e reencarnação são dois conceitos
que além de não se chocarem, se complementam.
O propósito da vida, neste sentido, é propiciar uma
câmara de alta pressurização para que o espírito
nela cabido possa evoluir para novamente
ascender ao status de onde caiu. Tenho percebido
que a vida é essencialmente emoção e inteligência
para o ser humano, a inteligência é emocional. E
que, em linhas gerais a minha inteligência é como
eu me trato e as minhas emoções é como as
pessoas em tratam. E sou avaliado mais pelas
emoções do que pelos pensamentos. As pessoas
me avaliam pelo modo como elas me tratam,
destarte. Isto significa que, como lecionou Jesus
Cristo, devemos retribuir o mal com o bem se
quisermos tornar nossa vida praticável. A vida é um
243
descobrir e desvelar de princípios. Eles nos são
passados indiretamente, sempre por mediações. A
mediação, por isso mesmo, também é um princípio.
O crescimento consiste em cumprir o honrar o que
desconhecemos. E quanto mais conhecemos, mais
cumprimos, e quanto mais cumprimos, mais
obedecemos. Essa é a característica da verdade:
você tem de se submeter a ela e não adianta dar
cabeçadas em colunas de aço. O que contradiz a
verdade, isto sim, precisa ser submetido ao controle
do homem. É este governo do mundo que Deus dá
ao homem. A vida é ruah, vento, sopro. Ainda que
existam microorganismos anaeróbicos. E assim
como a proliferação desmesurada de
microorganismos aeróbicos torna a água inabitável
pela carência de oxigenação, a pletora de oxigênio
é inapropriada para os peixes que estão
acostumados com menores taxas de oxigenação.
Há plena concordância entre filosofia, ciência e
religião no que se refere à criação da vida, o que
muda é o estilo de descrever processos. A filosofia
é dissertativa, a ciência é informativa e a religião
244
narrativa. Todas as versões estão corretas a partir
do seu próprio ponto de vista. Posso informar
jornalisticamente que houve incêndio na quadra B
da cidade, posso apurar causas metafísicas da
manifestação ígnea e procurar os fundamentos
teológicos do episódio a partir das páginas das
Sagradas Escrituras e a afirmação de um ou de
outro ponto de vista não significa a imediata
inocorrência do inegável, o incêndio. Tentar, por
vezes, montar um todo harmônico e partir de
modos diferentes de abordagem calcadas em
premissas distintas é o mesmo, ou talvez até mais
absurdo, querer construir um belo prédio com
palha, concreto, madeira e gelo prescindindo do
contexto em que a casa será erigida.
Química: a ideia de essência
O atomismo surge na Grécia Antiga com teoria
metafísica. Leucipo cria que se quebrássemos um
objeto em menores partes chegaríamos a uma
partícula indivisível invisível. Demócrito foi o grande
245
sistematizador do atomismo. Aristóteles com sua
física qualitativa nega a ideia de átomo. Aristóteles
acolhe a teoria de Empédocles usada na medicina
por Hipócrates segundo a qual tudo é mescla de
quatro princípios: ar, fogo, água e terra. problema
sério foi o da quintessência que Aristóteles chamou
de éter. Daí que vem a palavra “eternidade”, pois o
tal elemento seria incorruptível. Tudo é químico em
certo sentido. Mesmo que haja um mundo
transcendente em relação ao mundo transcendente
em relação ao mundo químico livre de sua
influência, certo é que o homem está sujeito aos
princípios da química. A química é, em traços
largos, dividida em orgânica e inorgânica. No que
se refere à vida, ela é orgânica enquanto sendo
uma estrutura carbônica. Conhece-se hoje mais de
10 milhões de estruturas de carbono. Só uma
estrutura de carbono conseguiu desenvolver o
pensamento, esta mesma que escreve estas linhas,
exemplar do gênero humano. A química foi
precedida pela alquimia. A alquimia visava,
basicamente, a duas coisas, transformar qualquer
246
coisa em ouro e descobrir a fórmula dos humores
do ser humano. É possível sintetizar hoje em
laboratório, alegria, tristeza, euforia, depressão,
calma, ira e assim por diante. Os atletas olímpicos,
em que pese a generalização precipitada, refletem
o poder das drogas. Há uma gama variada de
drogas e de técnicas não perceptíveis no
antidoping. E o que milagrosamente se opera no
físico se opera de igual modo no quesito
inteligência. É claro que eu consigo potencializar
muito mais força naquele que por si só já é forte. O
mesmo vale para a inteligência. Ou seja, ainda que
este seja o segredo dos filósofos isto não anula o
mérito dos pensadores referidos, pois eles são os
atletas do pensamento. Vivemos no tempo da
energia nuclear. A Segunda Grande Guerra
mostrou o poder de destruição do hélio e do urânio
quando utilizados para fins bélicos. Algumas ilhas
do Pacífico têm servido como campos de teste das
grandes potências militares que detêm a tecnologia
nuclear. Chernobill foi o alerta para o nosso pouco
cuidado com aquilo que é deveras sério e perigoso.
247
A química estuda ácidos, bases e sais, produz
combustíveis, plásticos, vidros, perfumes,
detergentes, solventes, e ainda se debruça sobre
processos fisioquímicos como eletrólise, fotólise, e
pirólise. A própria vida é uma grande química: os
animais queimam oxigênio e produzem gás
carbônico e as plantas consomem gás carbônico e
liberam oxigênio. A maneira que o desenvolvimento
social humano encontrou para desmentir a teoria,
em princípio correta, de Malthus, foi aprimorado o
conhecimento químico aplicado em agronomia. Boa
parte das empresas mais ricas do mundo trabalham
com produtos químicos e possuem seus próprios
laboratórios de pesquisa. A saúde humana é cada
dia mais e mais cliente dos laboratórios fármacos. A
química vem dando conta de responder a uma
pergunta que a filosofia não deu conta de
responder: o que é uma essência ou, em outros
termos, o que faz com que uma coisa seja ela
mesma e não outra? Neste diapasão, o que
caracteriza a natureza áurea do ouro? A química
me diz Fe S2. E o mais curioso disto é que a
248
química não me informa isto pela observação
empírica, mas por dedução. A tabela periódica de
Mendeleiev é uma grande abstração. Porque, em
verdade, não conhecemos um único átomo. Apenas
imaginamos como seja o átomo. A teoria quântica é
o genial retrato da nossa ignorância atômica. Não
deve ser por acaso que em tantos intelectuais
sejam vidrados em cafeína e outros quantos em
nicotina. Porque um ritmo diferenciado de
pensamento espelha um metabolismo químico
neural diferenciado. O sintético cada vez mais
substitui o natural. O que eu questiono é até que
ponto o organismo consegue absorver o sintético.
Hoje muito se fala em produtos orgânicos depois
que a humanidade já ficou se intoxicando por
décadas. O DDT que rendeu o prêmio Nobel
também rendeu A Primavera Silenciosa. A química
é como os poderes de um bruxo que colocamos em
marcha e depois perdemos o controle sobre ele. Da
pedra de sabão de vísceras animais, gordura, cinza
e soda cáustica até os hidrantes rejuvenescedores
foi um pulo. Quem sabe a química, mais do que já
249
fez, esticará ainda mais nossa expectativa de vida e
melhorará o padrão de qualidade de nosso
cotidiano. Desde que éramos trogloditas já
sofríamos os nefastos efeitos do mau uso da
química: o fogo de nossa caverna nos intoxicava
com a fumaça o que nos vitimava de enfisema
pulmonar e o excesso de carne obstruía nossas
artérias de lipídios. Os índios sempre foram
grandes conhecedores dos princípios ativos das
plantas, donde, em última instância, tiramos nossa
indústria. Desde barbitúricos, laxantes, calmantes,
anestésicos, anticoncepcionais, cicatrizantes e
assim por diante. O colonizador europeu, ao
colonizar a América, destruiu não só os povos
daqui, mas também esta sabedoria de grande
utilidade. Feuerbach que dizia que “o homem é
aquilo que ele come”. E eu arremato: também, o
homem é aquilo que ele bebe. Engels fala que o
acréscimo de inteligência do homem se deu pelo
implemento da dieta de carne, rica em proteína. A
qualidade de um ser humano se mede pela
qualidade de sua alimentação enquanto o cardápio
250
preconize ou exclua certos elementos químicos. O
cangaço ficava semanas e até meses na caatinga
porque levava na guaiaca carne em pó de charque,
farelo de pão moído e rapadura, ou seja, proteína,
carboidrato e glicose. A água era extraída das
bromélias. Sobre o beber questiono a eficácia da
fluoretação e sua suposta característica
anticariogênica. É preciso, antes de mais nada,
pesquisar a influência do flúor sobre o humor das
pessoas. Um coquetel de drogas ministrado a uma
pessoa sem o seu conhecimento pode, associada a
fatores psicológicos estressantes, desencadear
inclusive esquizofrenia. O ciclo hormonal da mulher
que faz dela uma montanha russa emocional não é
outra coisa senão um ciclo químico. Pouco
estudada é a relação entre o químico e o não
químico. Porque uma dose ministrada a alguém
pode deixá-lo abatido, mas sempre fica uma
pequena resistência. Este arbítrio metaquímico
precisa ser considerado. No mesmo sentido são
aquelas manifestações capazes de produzir uma
nuvem química no cérebro sem necessidade de
251
instilação de fora para dentro. Há uma luta entre o
químico e o psicológico. O químico afeta o
psicológico e o psicológico afeta o químico. Mas o
psicológico de algum modo extrapola o químico,
como demonstra a parapsicologia, da mesma forma
que passa por cima de leis físicas. Nossa mente é
mais que nosso cérebro. A mente é atingida pelos
processos químicos cerebrais e se mostra uma
entidade física enquanto membro irradiador de
frequência. Sentimos nosso cérebro mudar de
frequência ao falar de morte, ao ver uma cena
pornográfica, ao resolvermos uma equação.
Quando produzimos endorfina nos sentimos bem e
é por isso que praticamos esporte. Já a sensação
de risco produz adrenalina. Somos um corpo
exposto ao ambiente. A temperatura é um fator
físico e o frio e o calor fazem nosso cérebro
produzir no seu interior químicas diferentes. Daí a
procedência do que Montesquieu falou acerca do
espírito dos povos, da topografia e do clima. A
recíproca inversa é verdadeira: como observa René
Descartes no Discurso sobre o Método, o feno em
252
fermentação, que nada mais é do que um processo
químico produz calor. O chinês comedor de arroz e
bebedor de chá é sereno como o amido e o
tranquilizante sob infusão vegetal. Já o argentino
comedor de churrasco e bebedor de chimarrão é
alvoroçado com a toxina e a cafeína. Tão
importante quanto aquilo que ingerimos é aquilo
que eliminamos. A propósito, o bombardeio
midiático que sofremos todos os dias nos impacta
inclusive quimicamente e não só psicologicamente
a ponto de vergar a personalidade e exaurir os
órgãos reprodutores. Fomos programados pelas
glaciações para buscar o alimento calórico.
Todavia, deixamos de ser caçadores e
despendemos menos energia e o planeta já não
mais é achacado pelo frio. Schopenhauer diz que o
homem é naturalmente negro e que o ser humano
branco é uma aberração da natureza. Concordo de
certa forma com ele. Mas digo que a própria
melanina é uma reação do organismo a fatores
físicos e químicos: insolação intensa e consumo de
betacaroteno. O que vem a ser o ser humano? Um
253
conjunto de cálcio, ferro, água, fosfato e outros
elementos mais? Por certo que não. Porque tão
importante ou até mais importante do que uma
coisa é feita, é como os elementos integrantes
deste algo estão dispostos entre si. E eu não paro
por aí. O homem é mais do que essa especial
forma de organizar estes elementos químicos, é um
ser cultural. E não apenas isto, ele é mais do que
cultura, é metafísico e depois do metafísico vem o
insondável. Que é mais do que o esotérico, que é
mais do que o parapsicológico, que é mais do que a
taumaturgia. A química enquanto ciência é refém
daquilo mesma o que ela é: uma ciência. Nesta
qualidade não pode transcender o próprio método e
a própria linguagem. Da mesma forma, o universo é
mais do que os fenômenos químicos que nele
ocorrem. Seria simplista demais reduzir o universo
à tabela periódica. O que Darwin fez na biologia
alguém precisa fazer na química. Porque os
próprios elementos que se nos são apresentados
como entes estáticos, prontos e imutáveis são
frutos de processos evolutivos em que num início
254
recôndito havia não mais que um único elemento. A
lei da química é a lei de todo o resto:
complexificação crescente. Didaticamente, pode-se,
daí, fazer coro a Comte “complexificação crescente
generalização decrescente, generalização
crescente, complexificação decrescente”. Agora, se
novos elementos estão sendo engendrados em
galáxias ermas do universo ou o estágio evolutivo
químico só propicia trabalhar com aquilo que em
outro estágio já fora forjado é outra história. Da
mesma foram que não é todo dia que um primata
torna-se homem, não é todo dia que surge um
elemento químico novo. A ideia de um protótipo
único domina todas as disciplinas e em linguística
Umberto Eco propõe um único idioma que daria
origem aos mais de sete mil idiomas e dialetos. A
inteligência está tão ligada à física e à química que
os cientistas da computação esbarram em unidades
espaciais quando o assunto é ship de
computadores em número de moléculas. A
inteligência humana também é refém da
capacidade cúbica craniana e dos fenômenos
255
químicos indribláveis do cérebro. A inteligência, a
base física e química que nos trouxe até aqui é a
mesma que não nos deixa ir adiante. Neste sentido,
ou também neste, é que Platão falou que o corpo é
o cárcere da alma. Não obstante isto, talvez a
barreira que nos impede de avançar mais no
mundo empírico é a mesma que nos habilita a
ascender a um outro plano, completamente
espiritual. E, uma vez guindados à condição de
seres puramente espirituais como os anjos, livres
da coima química, poderemos continuar subindo os
degraus rumo à evolução infinita que as religiões
costumam chamar de paraíso. Na verdade, a
química é o motor de tudo o que existe enquanto
causa eficiente e final. Porque toda ação carece de
um impulso químico. E quando batalhamos por
dinheiro, sexo, prestígio, cargos e títulos o fazemos
pelo fato de essas conquistas desencadearem
determinadas reações químicas de satisfação em
nosso cérebro. O drogadito é o que provoca em si
mesmo a sensação de prazer lançando mão da
mediação errada. E o fato de os toxicômanos em
256
geral descerem ao fundo do poço só mostra que o
prazer sem responsabilidade não passa de uma
amarga ilusão. Em certos gibis para adolescentes
de ficção científica é mostrada uma realidade futura
em que todas as pessoas usam frequentemente
droga. Quem sabe a ficção não irá mesmo se tornar
verdade? Há quem diga que em 2030 todas as
pessoas sofrerão de depressão. Não creio nisso,
mas é uma grande verdade admitir que o número
de depressivos vem crescendo. Descobrimos a
química do sexo, mas não a do amor. Esta tem de
partir de dentro. Alfred Nobel teve o mérito de usar
a química para promover cultura. A Academia
Sueca destina parte dos royalties da dinamite para
premiar escritores, físicos, químicos, médicos,
economistas e homens de paz. O futuro da química
a encaminha para a informática. Hoje existem
softwares em que posso simular no meu PC
reações químicas sem temer o risco de explosão ou
queima de um inflamável. A impressão 3D me
permite confeccionar peças com perfeição
industrial. Não ocorreu talvez ainda que uma
257
inteligência mal intencionada possa fazer uma arma
em 3D. A química a um só tempo foi o ramo de
conhecimento que mais se expandiu e que continua
sendo ainda um dos mais promissores. Certo sábio
disse que se eu tiver conhecimento total de uma
das partes, por menor que seja, conhecerei todo o
resto. E a química passa por isto. Conhecimentos
químicos eram usados desde a pré-História, o que
fica bem caracterizado pela cerâmica e pela idade
do ferro e só muitos milênios depois é que ela
despontaria como ciência. A homeopatia, técnica
que consiste em diluir uma essência num solvente
primando pelo efeito ativo e abstraindo o efeito
colateral, deveria ser mais empregada num mundo
em que quase tudo tem um efeito colateral
indesejado.
Física: a ideia de generalização
O primeiro grande sistematizador da Física foi o
tratadista Aristóteles com suas categorias de
substância, ente e ser, essência, ato e potência,
258
matéria e forma, motor imóvel conseguiu de alguma
forma explicar o movimento total do universo.
Quanto às esferas que fugiam do seu controle, dizia
que elas eram guiadas por deuses, o que os
escolásticos diriam que eram dirigidas por
inteligências (anjos). A física de Aristóteles foi
transformada em teologia pelos intelectuais cristãos
da mesma forma como ocorrem à perspectiva do
mito da caverna de Platão. Galileu Galilei provou
que Aristóteles estava errado no que se referia à
queda dos corpos e provou ainda que a Lua não
era uma esfera perfeita de éter, mas que nela
haviam montanhas de sete mil metros de altura.
Copérnico enfrentou o geocentrismo aristotélico-
tomista e propôs o heliocentrismo. Kepler explicou
o movimento oval dos planetas. Newton
racionalizou matematicamente a lei da inércia e da
gravitação geral dos corpos. Uma plêiade de físicos
elaborou a teoria quântica das nanomedidas da
física. Einstein elaborou a teoria da relatividade
tirando o nosso chão de espaço e tempo. E uma
série de autores falaram do big bang. Hawking teria
259
tido o mérito de explicar a história do tempo
matematicamente. A física se ocupa com os
fenômenos relacionados à eletricidade, ao
movimento, ao magnetismo, à radiação, à luz, ao
som, e à relação entre estes fatores. As mudanças
de estado da matéria que pode ser líquida, gasosa,
sólida ou gel também são estudadas. A física se
ocupa do micro e do macro. Gosta de matematizar.
A teoria das cordas nada mais é do que uma
geometrização e aritmetização do universo. A
física, pela natureza mesma do seu objeto, é uma
disciplina altamente teórica. Com as descobertas
newtonianas a física começou a referendar todas
as outras disciplinas e a servir de modelo. O
mecanicismo de Descartes foi acolhido pelos
cientistas e pelos filósofos e gerou problemas como
o do determinismo. A física festejada pelos
intelectuais gerou o materialismo, o ateísmo e o
endeusamento do homem. A matéria é uma
abstração e como tal sempre foi alvo de reflexão
filosófica. Para o materialismo dialético a matéria
está sujeita à dialética em que se move
260
indefinidamente dentro de uma trilogia de tese,
antítese e síntese. O mérito do diamat foi
preconizar a fungibilidade das forças físicas embora
a URSS não reconhecesse a relatividade. Matéria
nada mais é do que energia condensada. Energia
não se perde, se transforma, pois é indestrutível. A
alma humana é esta entidade energética que além
de não se destruir também ainda resguarda sua
identidade e individualidade. O universo é
essencialmente desequilíbrio. A soma de todas as
forças do universo é igual a zero. Entropia e
neguentropia são dois lados de uma mesma
moeda. Costuma-se dizer que o grande problema
da física de Aristóteles é que ela era qualitativa e o
padrão que vingou foi o quantitativo. Mas eu
ressalvo que o número é tão humano quanto o
descrever. Porque descrição é linguagem. Certos,
portanto, os positivistas lógicos para os quais a
ciência é uma linguagem bem construída. Mas
linguagem é padrão do homem e não sabemos se o
é da matéria. E nada nos autoriza supor que
nossos esquemas mentais, como demonstrou Kant,
261
corresponda aos esquemas da matéria. A física
gosta de estabelecer conexões causais, mas como
ficou demonstrado pela filosofia, a causalidade é
uma abstração, uma construção intelectual. É difícil
saber onde termina a contiguidade e onde começa
a causalidade. Como apontou Kant, pensar
causalmente é um atributo do ser humano e
projetamos nas coisas concretas nossas
idiossincrasias. Correta é a distinção de Aristóteles
entre física e metafísica. Porque há algo que está
além da física, o mundo físico é o epifenômeno de
uma vibração espiritual. Ele não se esgota em si
mesmo. O que os filósofos sempre tentaram e
nunca conseguiram foi esse lançar-se além. A física
está para a metafísica assim como a aparência está
para a essência. As ciências não se ocupam de
nenhum objeto de intelecção que não seja também
objeto empírico. A física, assim como as outras
ciências, é metodologicamente materialista. Mas
nada autoriza quem quer que seja saltar do
materialismo metodológico para o materialismo
metafísico. A física é a máxima generalização em
262
que tudo é abstratamente reduzido a corpo. Só
duas instâncias são ainda mais abstratas do que a
física: a matemática, em que tudo é reduzido a
número e a filosofia, em que tudo é reduzido à ideia
de ser. O ser humano está inserido num meio físico
e o mesmo é uma entidade física, um corpo. Temos
altura, massa e peso. Descartes, Hobbes e
Helvetius viam o corpo humano como uma máquina
em que os olhos eram lentes focais, o coração uma
bomba, os rins filtros, o estômago processador,
braços e pernas alavancas, os pulmões foles e a
circulação sanguínea um sistema de dutos como
quis Harvey. Os reducionismos chegam a ser
comuns. Assim é que para o físico faz do homem
uma supermáquina e o biólogo um supermacaco.
Os gregos eram não apenas cultores do intelecto,
mas também do corpo. Diziam os romanos “mens
sana in corpore sano”. Hoje é do nosso
conhecimento uma planta rara que faz os músculos
crescerem 700%. O mundo físico é um grande
laboratório. As chamadas superligas como as
esmeraldas e os diamantes são estruturas
263
carbônicas que são submetidas pela natureza a
altíssima pressão do que são resultado. A
sabedoria do ser humano consiste em usar as leis
da física a seu favor, ciência é isto. O que faz o
avião voar, por exemplo, ele que é um cilindro com
asas mais pesado do que o ar, é a maior pressão
de baixo para cima do que a pressão de cima para
baixo. E estas forças aerodinâmicas são captadas
pela estratégico formato das asas e das turbinas. O
que faz, por exemplo, um transatlântico de milhares
de toneladas flutuar sobre a água do mar é o maior
peso da água do que o da nave num determinado
espaço cúbico disputado entre o corpo da
embarcação e as águas oceânicas. Além disso,
deve-se considerar que a água marinha é salobra,
o que modifica a densidade da água. As obras de
engenharia, seja civil, militar, elétrica, hidráulica,
mecânica, naval, aeronáutica, da informática, são
espécies de física prática. As leis da física exigem
que nós nos submetamos a elas e a nós. A ciência
não só não é incompatível com as Sagradas
Escrituras, mas ainda se mostram como seu fiel
264
cumprimento, é o “dominar a natureza”. O mundo
físico é o mundo da mobilidade. São Bento do Sul
no passado foi e ainda hoje o é um importante polo
moveleiro. A madeira trai a drena digital a toda
oscilação de temperatura e umidade. Ainda que em
um determinado museu da Europa haja
simbolicamente o metro e o quilo padrão num
objeto material, sabemos das limitações
epistemológicas a que estamos sujeitos. Pois o
metro padrão pode contrair ou dilatar com a
temperatura e o próprio peso não está alheio a isto,
pois oscila de acordo com a pressão do seu
entorno. Daí que A é igual a A somente no campo
da lógica, pois no mundo empírico, na real, uma
coisa é diferente dela mesma. A Segunda Grande
Guerra nos trouxe um desenvolvimento prático da
física sem precedentes. Ali foi pensado o primeiro
computador que, num primeiro momento, ocupava
um prédio inteiro. As comunicações sem fio se
desenvolveram. O telégrafo foi substituído pelo
telefone. O rádio é desta época. Hoje somos
ininterruptamente atravessados por ondas de rádio.
265
Não sabemos até que ponto isto sobrecarrega
nosso organismo. Certo mesmo é que frequência é
eletricidade na atmosfera, hoje usamos calçadas o
tempo todo e debaixo dos nossos pés sempre há
concreto. Isto significa que estamos
demasiadamente energizados e não temos mais a
chance de descarregar esta tensão para o colo com
o qual perdemos o contato. Certo é que o próprio
planeta tem uma dada frequência a qual está sendo
modificada pelo nosso aparato tecnológico. Os
problemas centrais da humanidade comporta o
problema energético. Porque as jazidas petrolíferas
são infinitas e porque nem toda topografia permite a
construção de hidrelétricas. Além disso, há uma
tendência mundial de não se optar pela energia
nuclear. As energias solar e eólica são opções,
porém trata-se de tecnologia cara. Quem sabe a
solução seja produzir células fotovoltaicas mais
baratas. O gás também é uma opção para
processamento e aproveitamento de material
orgânico em biodigestores. Como o nosso planeta é
o planeta azul a saída será o uso da água para
266
combustão. Em primeiro lugar teremos de
dessalinizá-la e em seguida empregá-la em
processos de quebra de moléculas. Porque embora
usemos a água para apagar o fogo ela é composta
de dois gases altamente inflamáveis, oxigênio e
hidrogênio (H2O). O desafio dos governos
capitalistas sempre foi encurtar tempo-espaço e faz
isto com infraestrutura de transporte e
comunicação. É que o modo de produção
capitalista para poder alienar suas mercadorias
carece de facilitação de despacho de bens e
pessoas. A ferrovia cumpriu, num primeiro
momento, com primor esta meta. Hoje os governos
têm priorizado as rodovias porque for fás ou por
nefas, assim como a moradia, a indústria
automobilística é um dos carros-chefes da
economia. O mundo físico está sofrendo um
encolhimento. Sim, porque hoje posso ter um tablet
com centenas ou até milhares de livros sem ter que
destinar com exclusividade um cômodo da minha
casa para estes bens culturais. Da mesma forma, o
mundo virtual me permite treinar num simulador de
267
voo sem que se corra o risco de derrubar um avião
caríssimo e repleto de vidas. O físico vai cedendo
seu espaço para o virtual. Com um bom sistema de
som em minha casa, com multiplicidade de
autofalantes, posso obter um superestéreo e ter
uma orquestra dentro de minha casa. Da viagem de
Fernão de Magalhães ao confortável iate, do 14 bis
ao supersônico, dos dois metros de caixa ao celular
com rádio, internet, câmara e filmadora foram
poucos os minutos transcorridos, sim, digo minutos.
Isto assinala a velocidade da mudança do modo
com que nos relacionemos com o mundo físico em
que estamos engavetados. Diria que graças ao fato
de termos modificado o mundo físico que nos
rodeia poupamos nosso próprio físico. Porque se a
expectativa de vida hoje é maior isto se deve
também ao fato de pouparmos nossa corporeidade
daquilo que nossos ancestrais estavam sujeitos. O
fato é que fisicamente despendemos muito menos
joules do que nossos avós. Na contramão disso,
pagamos para frequentar academias para exercitar
o organismo para que não se atrofie. Como diria
268
Lamarck “tudo o que não se usa se atrofia”. O
mundo da física é regido por uma dualidade que no
oriente é chamada de ying e yang. É assim que o
mundo nanofísico posso falar em massa negativa
enquanto ela apenas seja uma força oposta à carga
positiva de um elétron que nada mais é do que um
pacotinho de massa, se me é permitido usar o
diminutivo. No plano do micro o mundo está em
ebulição. Os átomos pululam. Só uma passada de
vista grosseira é capaz de ver algo estático. E
assim como na biologia há a chamada variabilidade
genética, no mundo físico há o princípio da
indeterminidade, o que desafia a visão newtoniana
de mundo. Todavia, por cálculos matriciais e
probabilísticos o que se vê é um fio condutor
centrado a partir de jogos de compensação. Claro
que tudo isto é muito teórico porque jamais em
tempo algum podemos observar um átomo tal como
ele é, pois ao projetarmos luz sobre ele aceleramos
a velocidade das partículas subatômicas que
gravitam em torno do núcleo de massa, o que
chamamos de efeito Heisenberg. A ressurreição de
269
Cristo, assim como tantos outros milagres, como a
multiplicação dos pães, o andar sobre as águas, a
pesca milagrosa, desafiam respectivamente a
noção que temos de tanatologia, conservação de
matéria, pressão e probabilidade. Páscoa é este
“passar por cima”. Deus não é um legislador refém
das próprias leis. É certo que o Deus homem teve
de se submeter às mesmas intempéries que nós,
mas fê-lo por opção o que para nós é uma
imposição. A física é uma disciplina cômoda, bem
desejável aos apaixonados por paixões calmas.
Menor truculência do que a da física só mesmo a
matemática, o paraíso das tautologias. A física é o
primeiro nível de conjecturação e distanciamento da
realidade e as ciências humanas são as últimas em
que eu faria questão de colocar psicologia, filosofia
e antropologia. De acordo com Comte, sociologia. À
medida que vamos nos distanciando do óbvio, e
nem do que é óbvio temos certeza, vamos
construindo discursos de menor consistência. O
ganho disso é a oportunidade de transferir a
subjetividade para aquilo que se escreve em que a
270
teosofia vem a ser o máximo, sobretudo pelo
sincretismo que envolve. O mundo físico desafia o
pensamento dogmático e o pensamento cético: ao
dogmático se furta de permitir incursões
gnosiológicas exaurientes e ao cético convida a dar
com a cabeça contra a parede se a dúvida é das
radicais. Nada resiste ao mundo físico: nem a
dogmática e nem a zetética. O mundo físico é um
excelente mestre, a valsa do planeta executável em
24 horas é a prova disso. Tudo que se executa com
perfeição é resultado de repetição. E se eu jogar da
mesma maneira um seixo morro abaixo um milhão
de vezes, se eu for preciso, terei um milhão de
resultados idênticos. No mundo profissional vemos
excelentes profissionais pela habitualidade com que
se empenham em dadas empreitadas.
Precisamente no meu caso, a minha atividade de
filósofo preconiza o pensamento e é tão ou mais
trabalhoso aparar as arestas do pensamento do
que abaular uma pedra de rio que vai se movendo
sentido nascente-foz. O mundo físico, portanto, é o
271
nosso grande mestre. Repetitio est mater
studiorum.
Biologia: a ideia de evolução dos organismos
Herbert Spencer, como veremos no próximo tópico,
foi um dos maiores teóricos do evolucionismo. O
evolucionismo científico, se é que se pode admitir
que haja alguma cientificidade na ideia de
evolução. As pernas e o pescoço compridos da
girafa chamaram a atenção de Larmarck. Lamarck
entendia que o esforço repetitivo de esticar o
pescoço faria o referido órgão alongar-se e que
este caractere adquirido seria transmitido às
gerações subsequentes. Darwin não admite que um
caractere adquirido possa ser transmitido
geneticamente aos pósteros. Deveras, se amputo
meu dedo isto não fará eu ter um filho sem dedo.
Mas o uso reiterado de alimentos pode sim mudar a
rota das coisas. Além do que, o uso de um recurso
de cobertura quase que total da população, como o
computador, bem provavelmente afeta nossa
272
genética. O mesmo eu digo em relação às drogas.
Para mim, ambos Lamarck e Darwin estão corretos.
Admito a transmissão aos descendentes de
caracteres adquiridos e admito a variabilidade
genética casada com a seletividade do meio.
Todavia, parece-me forçoso presumir o
aniquilamento físico de todos os portadores de
determinado gen inútil ou danoso para acreditar
que só assim ele é excluído da população. Mas o
que escrevi para a física escrevo para a biologia:
nem todos os caracteres adquiridos do mundo e
transmitidos aos descendentes, nenhuma loteria e
indeterminidade genética e nenhum critério
ambiental, ainda que juntos, dariam conta de
explicar a evolução das espécies. Porque cascos,
chifres, couraças, presas, penas, bicos, escamas,
veneno, eletricidade, espinhos, músculos, caudas e
inteligência adviriam de um único lugar por
diferenciação e complexificação? A evolução é um
plano. A evolução foi quista por Deus. a evolução
com todas as espécies que ela comporta é uma
orquestra e o Maestro é Deus. Claro que não
273
podemos minimizar e menosprezar o valor das
teorias biológicas. A favor dos argumentos de
Darwin está o hibridismo que advoga pela
relatividade do conceito de espécie e pela unidade
da ideia de vida. A engenharia genética vai mais
adiante: não apenas relativiza a espécie, mas
também o gênero. Daí a nomeclatura
“transgênicos”. É assim que colocando em
determinado gen de dada espécie de aranha na
sequência genética de caprino leiteiro podemos
aumentar a produção de leite e ver sinais como que
teias de aranha desenhadas na úbere da matriz.
Mendel foi o inaugurador da genética com suas
experiências com ervilhas. A Bíblia recomenda não
misturar espécies de animais e de plantas
diferentes. Sistematicamente desrespeitamos este
mandamento proibitivo. A Dolly é o insofismável
indício de que poderíamos reproduzir um indivíduo
a partir dele mesmo, burlando a reprodução
sexuada. O próprio Marx em O Capital fala da
desenvoltura da pecuária e da agronomia de seu
tempo em que o processo produtivo natural é
274
acelerado a fim de satisfazer um sistema
econômico que maximiza a velocidade da
circulação do capital. O ser humano pode e deve
acreditar na transcendência ao mesmo passo que
deve acolher a teoria da evolução dos organismos.
Como diria João Paulo II “a teoria da evolução é
mais que uma teoria”. E a grande prova disso são
os órgãos vestigiais como o cóxis, a barba, a
apêndice e os sisos no fundo da arcada dentária. O
homem enquanto organismo e mente, enquanto
portador de uma dupla natureza, animal e angelical,
não precisa ter vergonha de admitir que seu corpo
veio da natureza assim como a alma veio de Deus,
até porque Deus tem apreço pela sua criação, isto
é, pela natureza. As lideranças religiosas sabem
que a evolução dos organismos é uma verdade
incontornável, mas sabem que seus fieis, não estão
preparados para isto tudo. A ideia de que oxigênio,
hidrogênio, carbono e nitrogênio sob eletrólise,
pirólise e fotólise se torne aminoácido, o qual se
torna uma entidade unicelular, que por meiose
torna-se pluricelular, que passa a se tornar uma
275
protovida, que se desdobra em vegetal e animal, eu
esta vida animal passa a se tornar sexuada, e
agora já falo peixes pré-Históricos, que se
transmutam em anfíbios, que se tornam répteis,
que, por sua vez se tornam aves e mamíferos, que
alguns destes mamíferos se tornam primatas do
qual surgem aproximadamente seis ou sete
espécies humanas da qual só sobrevive o homo
sapiens sapiens subdividido em quatro raças:
branca, negra, amarela e vermelha, é, em linhas
gerais, a ideia da evolução dos organismos. A
teoria da evolução dos organismos é a chave
explicativa que desvenda toda a semelhança, a
diferença e o parentesco entre todas as espécies
de vida na Terra de modo que a taxonomia deixa
de ser uma mera técnica de classificação e passa a
ser na biologia aquilo que a tabela periódica é na
química. Por razões políticas se ridiculariza
Lombroso e se deprecia a frenologia. Ora, não é
pouco plausível a ideia de se associar o biótipo com
o perfil psicológico de um indivíduo. Racismo pode
e deve ser crime em todos os países civilizados do
276
mundo. O que não pode ser crime é a liberdade de
produzir ciência. São visíveis maiores índices de
genialidade entre brancos e judeus como grandes
esportistas entre afros. Cremos que a equação
massa cerebral versus massa corporal não pode
ser menosprezada. A capacidade cúbica craniana
predispõe intelectualmente seu portador assim
como ter dois metros e vinte predispõe para o
basquete. Mas nem todo bem dotado na estatura
consegue se identificar no esporte. Aliás, posso ter
uma voz possante e não gostar de cantar. Isto
significa que o fator genético em si mesmo é um
determinante, porém, não é um determinismo.
Estarei sujeito a uma condição orgânica sem que
ela me induza inexoravelmente a um determinado
rumo profissional, social ou existencial. Claro que a
soma de fatores gera tendências praticamente
irreversíveis. Assim é com o sujeito pernalta, magro
e musculoso que se aplica ao atletismo e assim é o
obeso que não se autodisciplina em sua dieta. Em
outro lugar escrevi que “a obesidade é o sucesso
do homem enquanto animal e seu fracasso
277
enquanto ser pensante”. E eu mesmo tenho um
pequeno fracasso nesta área. Mas pesquisas
recentes contraditam suas anteriores e
pesquisadores ingleses creem que um pequeno
sobrepeso é fator de longevidade, ao contrário do
que se imaginava. De certa forma toda
infraestrutura é prolongamento daqueles bens que
visam abrigar nosso organismo. Nisto se encaixa
obviamente vestuário, alimentação, habitação e
transporte e todo o resto que indiretamente se
possa imaginar. A cultura rompe com isto, pois nem
sempre satisfaz uma necessidade do corpo, mas do
intelecto enquanto algo paralelo, todavia, separado
do corpo. De maneira imediata nosso corpo pede
bebida, comida, micção, excreção, sono e sexo.
Mas para ele conseguir isto tudo precisa sair da
inércia. Os imperativos categóricos da civilização
nos compungem a lutar pelas mediações que nos
oportunizam alcançar estes escopos. Neste sentido
o clima rigoroso é fator chave desencadeante de
dispêndio de energia. Se a natureza não nos cobre,
não cobramos de nós mesmos. O judeu é a grande
278
prova da teoria da evolução dos organismos e dos
intelectos: judeu fraco não resiste, só o forte dribla
a dificuldade que lhe é imposta. O judeu torna-se
judeu pela superação. Sua história o obriga a ser
diligente, metódico, disciplinado e arrojado. É assim
que a seleção faz de um povo de escravos
marginalizado tornar-se elite e governo. Este é o
significado que se atribui ao aforismo de Bial “vá a
Paris mas sai antes de amolecer e vá a Londres e
retorna antes de endurecer”. O movimento
civilizacional entre deserto e oásis explicado por Ibn
Kaldun reside na mesma premissa. No livro do
Gênesis vemos que os patriarcas viviam quase mil
anos, do que Matusalém é o protótipo. Talvez os
patriarcas fossem uma raça diferente de humanos e
a paulatina queda da expectativa de vida se
explique pela hibridização entre os longevos e os
comuns. Quanto maior a mestiçagem com os
humanos menor a expectativa de vida. Precisamos
selecionar bem o que ingerimos se quisermos
aumentar bem nossa expectativa de vida. A
seleção natural fez de nós buscadores de calorias,
279
de proteína, de gordura e de glicose, em outras
palavras, fez de nós carnívoros e frugais. Mas par
que, afinal de contas, sairmos empaturrados da
churrascaria se só judiamos nosso organismo com
um material de difícil digestão e o grande esforço
que nos resta é a boleia hidráulica? Em relação à
glicose é ainda pior: como os açúcares das frutas
se faziam acompanhar de vitaminas buscávamos o
doce. Agora abusamos do açúcar refinado que nos
causa diabetes e exaure o pâncreas e de brinde
não traz consigo nenhuma vitamina sequer.
Polarizamos o cardápio entre o salgado e o doce.
Nossa língua está cada vez mais distante da
riqueza de valores da floresta. A humanidade em
breve despertará para o que voltamos as costas. A
própria carne ficou restrita a poucos animais
domésticos e não reproduzimos em cativeiro outros
animais exóticos. As maiores tecnologias do
planeta copiam a tecnologia natural dos
organismos. É assim que o sonar imita o morcego,
o infravermelho a coruja, o submarino os mamíferos
aquáticos, a armadura a tartaruga, o sensor de
280
calor e o ultrassom as cobras, o infrassom o
elefante, os helicópteros os holometábolos, a asa
delta a águia, e assim por diante. os pássaros pré-
Históricos tinham, a princípio, dois pares de asas e
só depois se tornaram dípteros. Nosso organismo é
frágil, nosso couro delicado, mandíbula fraca, baixa
audição e visão, força física restrita. Em
compensação desenvolvemos a linguagem,
caminhamos eretos, temos polegar opositor,
memória extraordinária, sobretudo para os que a
treinam e raciocínio lógico. Temos a vantagem de
sermos onívoros a ponto de comer quase tudo o
que se mexe, plantas, pescados, gafanhotos e
outros insetos, barro, sangue, leite, ovos, frutos,
tubérculos, sementes, dentre outros. O apetite
voraz que faz de nós a espécie dominante do
planeta é a barreira que faz a morte se precipitar
sobre o indivíduo. Investimos em variedade, sem
tomar o mesmo cuidado no que se refere à
qualidade. Engels assinala que o homem primitivo
antes de assentar comunidade fixa ao solo era um
consumidor de carniça. Como observam os
281
antropólogos, se você for a uma tribo indígena e
rejeitar degustar uma larva xilófaga ainda se
contorcendo, isto, do ponto de vista cultural é
cerimonial, é um insulto. É curioso como o corpo
ainda é um referencial para a escolha do par. Nem
vou me dedicar descrever o tipo de mulher que os
homens preferem, por desnecessário. Mas as
mulheres gostam, em geral, de homens altos,
magros, claros, porém, bronzeados e musculosos.
Não se dando conta de que este tipo de padrão de
homem não se traduz num sujeito abonado,
estabelecido, ajuizado, de prestígio político, culto
ou poderoso. Dizem que a infidelidade é genética,
mas isto torna o ser humano desculpável, porque,
como dissemos, a um limite a partir do qual nós
damos o comando a nós mesmos. Claro, se a
variabilidade existe, a tendência é não só que
continue existindo, mas que se torne cada vez
maior. A raça negra, por ser a mais antiga, é a que
possui a maior variabilidade dentre as demais
raças. O oriental é o de menor variabilidade, ainda
que se diga que a raça mais recente seja a
282
caucasiana. Isto significa que a miscigenação pode
fazer surgir uma nova raça. Isto está a acontecer no
Brasil, na Rússia, na China, na Índia e na Austrália.
Este rol é exemplificativo e não taxativo. A própria
Europa já não tema mesma composição de outrora.
Os autóctones apresentam baixa expansão
demográfica e de outro tanto a imigração aumenta
em que pese os esforços xenofóbicos. A mesma
França que se fecha aos estrangeiros ainda que
francófonos como os argelinos é a mesma França
da Legião Estrangeira. Darci Ribeiro e Terça-Feira
Lobsang Rampa falam da raça morena. E haverá
um dia em que o trânsito de pessoas será tão
intenso e o amálgama dos povos tão comum que a
genética de uma vez por todas se divorciará da
geografia. A expectativa de vida de um organismo
condiciona o espaço social que ele irá ocupar. Sim,
isto se ele se manter ativo o tempo todo. Todos os
governos do mundo são gerontocráticos o que
confirma o que estou a falar. Interessante também
é que questões da mais alta indagação e da mais
alta importância estão atreladas à duração do
283
organismo. Sim, porque qualquer que seja a
religião há um uníssono de que esta vida no corpo
é teste para sermos aprovados e galgarmos um
espaço especial, um galardão no mundo espiritual.
Como um episódio relativamente banal, a falência
de um organismo biofisioquímico pode percutir em
esfera de maior brio? De um lado tem-se a
afirmação científica de que a miscigenação é boa
por estar em conformidade com a lógica da
reprodução sexuada e, de outro lado, vemos uma
sociedade milenar como a egípcia praticando
durante séculos e séculos incesto e mesmo as
monarquias europeias durante toda Idade Média
casavam e davam-se em casamento entre si. O
Projeto Genoma um dia será estendido a toda
humanidade e num chip instalado em nosso próprio
corpo uma leitora poderá saber quem somos nós
do ponto de vista genético. Isto, acoplado à
sociedade de vigilância total dará vez à sociedade
de supercontrole como queriam Bentham e John
Stuart Mill com seu panóptico. As cartas estarão
todas marcadas desde o começo e a previsibilidade
284
será quase total. Não sabemos até que ponto vale
à pena uma eugenia programada, pois tão
importante quanto satisfazer demandas é gerar
demandas. O que seria dos magistrados que
ocupam a titularidade em varas criminais,
promotores e advogados? O setor que mais
emprega dentre vários outros é o setor público.
Ora, a máquina burocrática estatal só se justifica
diante de demandas.
Evolucionismo: a ideia de evolução de um modo em
geral
O evolucionismo nasce dentro da filosofia.
Aristóteles, por exemplo, fala que há mudança e
evolução é essencialmente mudança, porém, nega
a evolução. Sim, é isto mesmo. Porque o
movimento de um ser para o Estagirita está
condicionado à sua essência. A essência de cada
ser é imutável como as ideias platônicas. Parece
que o primeiro grande evolucionista foi Hegel.
Porque para Hegel não só a criação, mas o próprio
285
Deus está em constante evolução. Esta ideia já
estava contida de certa forma em Spinoza. A ideia
de evolução surge no seio da filosofia e só depois é
estendida às ciências. Como a ideia vingou muito
bem na biologia, principalmente através de Darwin,
houve uma biologização das demais ciências. É
assim que a sociologia e a antropologia passam a
falar em sociedades primitivas e sociedades
desenvolvidas. Boaz, depois, pregaria o relativismo
cultural na antropologia. Em economia e em política
se fala em países de primeiro, segundo e terceiro
mundos. Comte classificaria os estágios das
mentalidades em religioso ou teológico, metafísico
ou filosófico, e positivo ou científico. Martin
Heidegger falaria das três etapas da ascensão
moral do ser humano: estético, moral e religioso.
Nietzsche preconiza a fase do camelo, do leão e do
menino livre. O materialismo dialético explica a
evolução do mundo natural e o materialismo
histórico a evolução do mundo social. Teilhard de
Chardin falaria em cosmogênese, biogênese,
noogênese e cristogênese. Alan Kardec fala da
286
evolução dos espíritos em sete etapas em que o
estágio final, alcançada pela metempsicose seria o
espírito luz. Para Hegel a evolução ocorre pela
alienação e pelo resgate entre tese, antítese e
síntese, em que o Eu Absoluto através da dialética
toma cada vez mais liberdade e cada vez mais
consciência. As ciências da religião traçam uma
linha evolutiva como animismo, politeísmo e
manismo, totemismo, adoração à entidade do mal,
adoração à entidade do bem, Deus Guerra, Deus
amor. Assim como a paleontologia mostra a
evolução dos espécimes animais e vegetais, a
arqueologia mostra a evolução da cultura humana e
hoje é muito apreciada a arqueologia industrial. Em
tudo é possível verificar evolução, inclusive nos
costumes, se é que a mudança comportamental
das últimas décadas pode ser considerada uma
evolução. Isto traz para dentro do debate uma outra
ideia, a de involução. Involução em todos os
sentidos, orgânica e até cultural. Porque somos tão
vacinados e tão medicados que o fraco não mais
sucumbe ao ambiente. É cultural porque filosófica e
287
politicamente está tão difundida a ideia de
tolerância para a qual nada pode ser rechaçado ou
aniquilado. Inexistem critérios de excludência ou
qualquer seletividade. Sartre não se debruçou
sobre o tema da evolução, mas disse que a
existência precede a essência. Logo, meu nível de
evolução não ficaria atado a uma essência fixa.
Diferentes das rationes seminales de Agostinho
para as quais tudo desde o princípio foi plantado
por Deus na matéria. Temos visto que em parte a
evolução é aprimoramento do velho e é, também,
algo totalmente novo. É assim que o virabrequim de
uma carro de fórmula um tem um parentesco com
uma engrenagem de trem que, grosso modo,
trabalha da mesma maneira. A NASA tem se
empenhado a algum tempo em desenvolver
engrenagens não circulares. A evolução é acúmulo
de experiência. A filosofia é uma das maiores
mestras em condensar experiência. Evolução
traduz uma leitura historiológica de ascensão linear
e clareamento de tudo pela razão. A evolução é fria
e tenaz. Ao contrário do romantismo que é bucólico,
288
poético e saudosista. A evolução é como a troca
constante do IP de um microcomputador. Certas
formigas são habitadas em seus corpos por fungos.
Por milhões de anos o fungo se modifica para
resistir ao sistema imunológico da formiga e a
imunidade da formiga e altera para evitar ser
vitimada pelo fungo. E todos ganham com isso
conquanto estes fungos sejam imprescindíveis para
a fermentação das folhas de estoque no interior do
ninho. A evolução é feita de tendências. E toda
tendência é volante, podendo adquirir mobilidade
para este ou para aquele lado. É complicado falar
em evolução intelectual. Porque não é de todo
necessariamente correto dizer que as ideias mais
recentes são mais sofisticadas do que as mais
distantes no tempo. A contemporaneidade é a
grande prova disso, pois há espaço para todas as
tendências. Já foi sinal de sofisticação dizer-se
socialista, mas hoje não há consenso de que a
visão de pensamento crítico seja mais adequada do
que a postura liberal burguesa. É assim que hoje se
percebe que nem em todos os quesitos a geração y
289
é mais sofisticada do que a x. A própria juventude
querendo sobrepujar os pais se faz adepta de
tribalismos que podem ser classificados como
barbárie e primitividade. O comportamento
individual e coletivo dos menos letrados e mais
pobres é mais dinâmico do que dos mais ricos e
mais cultos. Embora os primeiros comumente
sejam massa de manobra dos últimos. O
ingrediente chave da evolução é a morte, uma das
maiores, senão a maior, invenção da vida. Porque o
velho às vezes engessa de tal forma o novo, que
ele precisa morrer para que o consequente nasça.
Dizemos que a Língua Portuguesa é um Latim
evoluído, mas costumamos dizer que o crioulo de
Guiné-Bissau é uma infantilização linguística.
Todavia, não vejo nativo racional para classificar
algo como avanço ou retrocesso senão a
prosperidade dos praticantes de um idioma. Já ouvi
um descendente de alemães dizer que o holandês
é um alemão mal falado. Ora, por que não posso
dizer que o alemão é um holandês mal falado
senão levando em consideração o prestígio destas
290
culturas? A xícara vem do Oriente e lá ela não tinha
alça. Ou seja, eu teria que esperar a cerâmica
esfriar para tocar o recipiente com a ponta dos
dedos. Mas o que os ocidentais fizemos?
Colocamos uma alça para poder pegar a xícara
ainda quente sem se pensar no preço que nosso
sistema digestivo teria e tem que pagar por isso.
Não temos a paciência de esperar o resfriamento. A
evolução é da espécie justamente porque dentro da
espécie e, falamos agora não só de biologia, há
uma complementariedade. Embora a personalidade
marqueteira e exploradora ou a receptiva acrítica
individualmente sejam improdutivas, elas cooperam
com o contexto. Existe na natureza e na sociedade
uma complementariedade entre produtivos e
improdutivos. Diria, aliás, que os cargos mais
importantes da sociedade, em sua maioria, são
improdutivos. A tabela de Quesnay mostra a
movimentação de riqueza entre estas classes. Em
momentos diferentes de nossas vidas percebemos
que ora precisamos de alguém bronco porém
eficiente para resolver um problema e, noutra
291
ocasião, de alguém de conversa mole mas de bom
coração que nos dê um consolo. Escrevo livros,
dentre infinitos outros motivos, porque hoje em dia
se vive a ditadura dos extrovertidos, mas eles
evolução alguma teriam galgado se não fosse a
técnica, a ciência e o conhecimento dos
introvertidos. Os introvertidos precisam colocar os
extrovertidos no seu devido lugar. Difícil é a vida de
um analítico no Brasil. Sou tão repudiado em minha
própria terra como um brasileiro o é na Europa. E a
causa da repulsa nem é o biótipo, pois nos trópicos
há gente de todas as cores, mas a mentalidade, a
postura intelectual e os caracteres psicológicos.
Muitas das vezes, portanto, de nada adianta ter
várias vantagens tipológicas se se está inserto no
ambiente errado. A ideia de evolução reflete as
mudanças na cultura como a Renascença, a
Reforma Protestante e a Revolução Francesa que
faz da sociedade medieval saturada e estagnada
servir de adubo para a burguesia nascente para
quem o trabalho livre torna-se um valor. Enquanto
para os medievais o tempo presente não passava
292
de uma dispensação de menor importância quando
comparada com a volta triunfante de Cristo, os
modernos decidiram antecipar os deleites da vida
espiritual já para este mundo, que deixa de ser um
vale de lágrimas para ser um lugar de ação. O
progresso material que fizemos na Revolução
Industrial foi projetado para todas as áreas de
atividade humana, inclusive para o conhecimento.
Aliás, o conhecimento no século XIX entra como
causa e consequência a um só tempo. Em tempos
de rápidas transformações sociais é impossível
furtar-se à ideia de evolução. O conhecimento
passa a ser descrição de processos evolutivos. A
geologia é essencialmente isto. Hegel foi genial ao
criar o conceito de linha nodal. A China dos nossos
dias é grande prova de que o acúmulo de
mudanças quantitativas se transmuta em acúmulo
de mudanças qualitativas. A evolução que faremos
daqui para frente será consequência das leis
naturais. Dormimos menos por causa da energia
artificial e transamos em qualquer dia e horário
desde que brote o desejo. Quando trogloditas a
293
fêmea só aquiescia ao coito quando nos dias
férteis. O cristianismo é fator de evolução por causa
disto: recomenda que amemos os que não nos são
desagradáveis e ensina a perdoar as ofensas. O
que a natureza poderia ter feito em evolução por
nós, em linhas gerais, ela já fez. A evolução agora
não passa mais pela natureza, mas pela sua
negação. Porque a natureza nos impõe fuga ou
revide na agressão, mas o traço de maturidade
evolutiva consiste em manter a cabeça fria nestes
momentos. A natureza nos empurra para a
satisfação enquanto que o suportar a privação é
fator determinante de sucesso. Ser evoluído é ter a
capacidade de ajudar quando o ajudante mesmo
ele deveria ser receptor de ajuda. Ser evoluído é
dar para os outros o que nós não temos para nós
mesmos. Ser líder é ter esse sobrenatural, esse
paranormal, de manter a calma quando todos já
perderam a paciência. O não conhecimento é tão
importante quanto o conhecimento para a evolução.
Porque a evolução requer que erremos. Porque
sempre erramos de um modo novo e só por isso
294
encontramos soluções. As próprias artes marciais
não evoluiriam se não fossem os neófitos. Um faixa
preta prefere lutar com um faixa preta a ter de lutar
com um faixa branca. Porque o faixa branca pode
não ganhar a luta, mas movimentando-se de modo
estropiado dá serviço e machuca seu oponente. O
desafio do mundo atual é dar conta de absorver a
evolução tecnológica, cultural e social sem perder
de vista o sentido disto tudo. Porque somos tão
cabidos no fazer e na operacionalidade que
perdemos o traquejo daquilo que não nos cobra
procedurística ou método, mas conversão,
convivência e partilhamento existencial. Está tão
difícil para o sujeito expressar-se dentro de sua
própria casa com sua família em que a televisão
para mais ligada do que desligada, que a religião
acaba sendo o nicho onde temos nossa família por
opção e lá sim podemos nos abrir. Do ponto de
vista relacional involuímos. A vantagem de
levarmos o outro menos a sério e a própria vida
menos a sério é que já não temos a predisposição
de esfolarmos nosso corpo em nome disto ou
295
daquilo. O indivíduo passa a ser mais do que toda
sua gama de relacionamentos. A decepção de
todas as pessoas que com ele se relacionam não
chega a ser motivo de decisão radicais. Isto denota
grande evolução. Porque um ser evoluído é
fundamento de si próprio. Só o pouco ou menos
evoluído precisa se escorar em terceiros. Estamos
vivendo um tempo em que não temos mais uma
ideia acerca de determinada pessoa simplesmente
pelo partido político que ela integra ou a religião
que ela professa. Não se acredita mais que
determinado ponto de vista seja sinônimo de
superioridade intelectual de quem ostenta aquele
ponto de vista. Na esquerda e na direita há
intelectuais e ignorantes da mesma forma que
encontro bons e maus homens entre crentes e
ateus. A criança deixa de ser um anjo ou um
animalzinho cruel pelo simples fato de criança ser.
A nossa época será conhecida pelas posteriores
por desconstruir as ideias preconcebidas. Raça já
não mais é referencial situacional de que posição o
indivíduo ocupa na comunidade, pois vemos negros
296
ministros e brancos pobres. Aliás, não é só o negro
que mora na periferia urbana. A evolução é um a
priori. Porque nascemos dentro de processos
evolutivos que não escolhemos. E somos tão
condicionados a isto que não conseguimos
vislumbrar um estilo de vida menos dinâmico. Dar
continuidade aos processos evolutivos nos dias de
hoje não é nada de extraordinário, mas algo
natural. Aliás, costumo dizer que em nossa
sociedade precisamos pensar e fazer o
extraordinário para termos o básico. Nesse sentido,
a dificultação para termos o básico é fator de
evolução. Toda vez que somos forçados a
fazermos um espaço maior para obtermos as
mesmas coisas que antes tínhamos com menos
esforço, somos obrigados a evoluir. É incrível como
que por vezes somos embaraçados ao máximo
para levarmos a cabo algo simplíssimo de se fazer.
Somos desafiados cada vez mais a fazermos um
número maior de coisas num dado tempo e o que
mais nos falta é tempo. Como diria Benjamin
Franklin “tempo é dinheiro”. Diferente é a
297
mentalidade de dois amigos índios que ajustam
pescar no início da tarde e quando o segundo se
dirige ao primeiro o encontra dormindo e se põe a
dormir da mesma forma esperando que o colega
desperte espontaneamente. A evolução exige o
encarceramento do ser em processo evolutivo, mas
ao fim lhe premia com liberdade. Se, portanto, a
evolução faz algum sentido é pela liberdade que ela
nos outorga. Como desde que os gregos passaram
a perquirir pela physis estamos teorizando, deveria
haver uma liberdade mais ampla de emitir opiniões.
Não digo, contudo, que a liberdade de ação e
comportamento deva ser tão grande como a
liberdade de opinião. Porque toda vez que
externamos uma ideia ajudamos nossos consortes
a amadurecer e, se tivermos sorte, poderemos
obter geniais feedbacks de nossos circundantes e
desta maneira também nós evoluirmos. A evolução
é tensão. Níveis mais altos de evolução requerem
níveis maiores de resiliência para darem conta de
maiores tensões. Quando o ser cabido dentro da
tensão não consegue absorver toda ela, ele muda
298
de rota ou sucumbe e de uma ou de outra maneira
deixa um espaço desocupado para um forte ocupá-
lo. E por falar em força, não é nem o mais forte,
nem o mais rápido e nem o mais inteligente que
prospera, mas o mais adaptável.
Antropologia: a ideia de homem
Na sua obra “O Desprezo do Mundo” o papa
Inocêncio III refere-se ao homem da seguinte
forma: “Anda pesquisando ervas e árvores; estas,
porém, produzem flores, folhas e frutas, e tu
produzes de ti; lêndeas, piolhos e vermes; elas
lançam de seu interior azeite, vinho e bálsamo, e tu
do teu corpo, saliva, urina, excrementos”. Diria que
a antropologia teológica católica ainda há um certo
otimismo, mas para o protestantismo o pecado
adâmico deixou a natureza humana totalmente
corrompida. O homem é fruto de processos
paralelos naturais e espirituais. O homem é um
conceito e como conceito está posto como um
arranjo no interior da metanarrativa do sujeito
299
pensante. Ou seja, o homem é o que ele pensa de
si mesmo enquanto que todas as outras coisas são
aquilo que o homem pensa a respeito delas. O
homem é lúdico, é portador de linguagem, é
religioso, é afetivo, é lógico e racional, é o lobo de
si mesmo, como querem Plauto e Hobbes. Platão
disse que o homem é um bípede sem penas e
Voltaire disse que ele é um animal preto que possui
lã sobre a cabeça e é mais fraco do que outros
animais que têm o mesmo tamanho que ele. Para
Maquiavel o homem é pragmático e antiético. Para
Teilhard de Chardin ele é um fenômeno. Para
Heidegger um dasein. Para Hegel, uma pequena
tese cabida dentro do Eu Absoluto. Para Descartes
o homem é a efêmera certeza do cogito, hic et
nunc. Para Darwin ele é um superprimata. Para
Freud, um ser sexuado. Para Nietzsche, um animal
doente. Para Sartre ele é um inferno. Para Platão e
Agostinho o homem é um ser dividido entre dois
mundos. Para Tomás de Aquino o homem é uma
substância. Para os economistas ele é um ser que
busca satisfazer-se através de valores de uso que
300
possuem valor de troca. Para os atomistas o home
é um ajuntamento de átomos. Para Pitágoras o
homem é número. Para a química ele é um
composto de carbono. Para a física ele é um corpo.
Para a biologia ele é um organismo que nasce,
cresce, reproduz-se e morre. Para a antropologia
cultural ele é um ser étnico. Para a psicologia ele é
um plexo de conhecimento, afeto e sexualidade.
Para as Sagradas Escrituras ele é um ser inferior
aos anjos, porém, imagem e semelhança de Deus.
para o budismo ele é um ser oprimido pelo desejo
que oscila entre o desejo e o tédio. Para o
hinduísmo ele é uma fagulha divina. Essa é a
perspectiva dos panteísmos. Para o direito ele é
sujeito de direitos e deveres. Para a sociologia ele é
um ator social. Para Vico ele é um ser histórico.
Para a pedagogia ele é um ser em formação. para
Bubber ele é um tu e não um isso. Para Levinas ele
é um alter ego. Para um psicopata o outro é degrau
e mediação descartável. Para a medicina legal ele
é objeto de estudo e paciente. Para o comerciante
ele é cliente. Para o profissional liberal ela é
301
recebedor de prestação de serviços. Para o
cooperativista ele é colaborador. Para Protágoras
ele é a medida de todas as coisas. Para o líder
religioso ele é fiel. Para os meios de comunicação
social ele é audiência. Para o sistema ele é uma
peça. Para Adler ele é um ser sedento de poder.
Para Carnegie um ser sensível, ilógico e
inconsequente. Para John Stuart Mill ele é um ser
livre. Para Foucault ele é um ser vigiado. Para Jung
ele é um ser que partilha arquétipos coletivos. Para
a teoria quântica ele é o elo entre dois mundos, o
do nano e o do macro. Para a cientologia ele é um
ser ferido que precisa buscar o estado clean. Para
Kardec ele é um ser cármico. Para Eckhardt ele é
um ser místico. Para pontes de Miranda um ser que
consegue corrigir-se. Para o adventismo ele é um
ser que aguarda a segunda vinda de Cristo à Terra.
para a ufologia ele é um terráqueo. Para o rufião
ele é mercadoria e objeto de deleite. Para Fídias
Teles ele é boêmio e angustiado. Para Mariano
Soltys ele é panlógico. Ele é ainda um ser técnico.
Ele é artista. Ele é relacional e, como quer Ortega y
302
Gasset, ele é ele mesmo e os seus sapatos, ou
seja, circunstancial. Para Unamuno ele é um ser
que se humaniza pelo sofrimento. Para Kafka ele é
insignificante como um inseto. Para Schelling ele
cria a realidade, para Fichte ele é produto da
realidade. Para Feuerbach ele é o que ele come.
Para Reclus ele é produto da geografia. Para a
ecologia ele é um fator desencadeante de
equilíbrio. Para Malthus ele é uma raça que se
multiplica mais rapidamente do que os recursos da
Terra. Para Pascal ele é um caniço pensante. Para
Lacan nós somos o nosso inconsciente. Para o
administrador o homem é um recurso humano.
Para o governo ele é um administrado. Para a
monarquia ele é súdito. Sob diversas óticas,
religiosa, filosófica, econômica e política, ele é um
ônus. Para o computador ele é um dono burro. Para
a literatura ele é matéria-prima temática. Para o
cético é um ser incognoscível. Para Croce ele é
consciência. Para Wittgenstein ele é um ser do qual
não se pode falar. Para Rousseau ele é um ser
socialmente corrompido mas, a princípio bom. Para
303
a seicho-no-ie cada um é aquilo que pensa. Para
Pecotche ele é um ser em evolução mental. Para
Habermas ele é um ser discursivo, comunicativo e
ético. Aristóteles ainda diz que ele é um animal
gregário. Muitas outras definições de homem
poderíamos dar. Para a oumperiforalogia ele é um
ser intelectual, um metanarrador. O homem é
aquele que continuamente está a pontuar questões
em seu intelecto trazendo dos presumidos e
subentendidos premissas e corolários fixando-os no
reino dos explícitos e da consciência forte. Para
Franklin ele é um construtor de ferramentas. Ou
seja, podemos definir o homem por aquilo que ele
faz e uma das definições de homem é “homo
faber”. O homem é um fenômeno tão amplo e tão
complexo que somos incapazes de num apertado
conceito fazer ele restar cabido lá dentro. O homem
tem uma longa história: uma história de resultado
de processos e outra de promotor de processos.
Ele é o ser que coloca em marcha e sofre as
consequências dos processos desencadeados por
ele próprio. Como diria Marx em O 18 Brumário de
304
Luís Bonaparte “cada vez mais os vivos são
comandados pelos mortos”. Sim, porque aquilo que
já foi culturalmente construído já é tão imenso que
condiciona pesadamente o que vamos construir
doravante. O homem se tornou pujante com a
agricultura, deixa de ficar sujeito aos reveses da
caça e do nomadismo. Depois passa a ser
fabricante e a terceira onda, para usar uma
expressão de Toffler, é a informática. A informática
é a exponenciação da escrita no sentido de
armazenar, reproduzir e transmitir informações. O
domínio do fogo e da roda também foram muito
importantes. O homem fuma não só para instilar
fumaça prazenteira nos pulmões, mas porque se
maravilha em manipular algo incandescente. A
tecnologia (da roda) é a da carroça, to trem, do
automóvel, do avião, da máquina de parte de tudo
aquilo que se movimenta. É a roda dos geradores
da hidrelétrica que faz girar uma série de outras
rodas. O homem descobriu no Éden que estava nu
e produz não apenas roupa, mas ainda moda. Tudo
passa a ser estilo de vida, até mesmo a
305
indumentária que usamos. Pecamos e somos
condenados a trabalhar, comer nosso pão com o
suor de nosso rosto, e um dos primeiros trabalhos é
confeccionar o vestuário. A folha de figueira
também simboliza o avental. Como diz o brocardo
popular “quem não vive para servir não serve para
viver”. O homem hominiza e antropologiza tudo que
está à sua volta. Ele adora projetar. O homem é
imaginativo. Ele imagina com tanta convicção que
acredita em suas ilusões. É por isso mesmo que
acaba acontecendo aquilo que tanto desejamos. O
homem, além de Deus, é o único que tem a
capacidade de prometer e jurar, justamente porque
de outra feita tem a capacidade de ser inadimplente
e mentiroso. O ser humano é um ser que crê. Ao
nosso alcance não está decidir crer ou não crer,
mas crer em quê. Para Aristóteles a essência do
homem é sua alma. Questão controvertida é se o
homem tem ou não uma alma e se ela é imortal. A
filosofia da mente tem se manifestado de que a
mente é diferente do cérebro; mas não sabemos se
essa mente é nossa alma. Ao que parece, sim. A
306
alma é uma unidade energética que habita o corpo
humano e que se retira do mesmo quando ele vai à
falência, característica de tudo o que é material,
que tem prazo de validade. Todavia, a alma sendo
energia é imortal porque a energia é indestrutível. A
alma está para o corpo como o magnetismo está
para o corpo imantado e a corrente elétrica para o
duto condutor. Foi assim que Jesus devolveu
mobilidade ao corpo de Lázaro determinando que o
hálito vital para ele retornasse. Temos e somos um
corpo, mas este corpo não nos pertence, é só
emprestado, a vida não nos pertence. Tudo nos é
dado: a vida, o corpo, os pais, os amigos, a
formação, a profissão, nossos bens, somos postos
como administradores disto tudo e quando sairmos
do mundo empírico teremos de prestar contas disso
tudo. À pergunta o que ou quem é o homem
respondemos que ele é alguém que produz
conhecimento-ideologia. A metanarrativa não é só
conhecimento de mundo. Porque ela supõe e
pospõe categorias que se admitem, mas que não
se demonstram. E o conhecimento é esse discurso
307
que acontece a partir dele mesmo e só se
ultrapassa quanto às consequências, mas não
guarda a menor chance de justificativa teórica. A
episteme grega só se justifica na metafísica de
Aristóteles e talvez nem ali. Pois na sua perspectiva
política a escravidão é uma categoria tão natural
quanto ato e potência. Não existe conhecimento
não ideológico. Porque ainda que a matemática,
como se costuma dizer, em si mesma seja objetiva,
o certo é que também os números são
manipuláveis. Não há conhecimento
desinteressado. A própria filosofia é criação de
conceitos a partir de interesses. A própria teoria
econômica é ciência de primeiro escalão para
socialistas e ideologia para os liberais. O homem é
ideólogo. É criador de disciplinas, ciências e
conhecimentos. Todo conhecimento é ideologia e
quanto mais qualificado o conhecimento, mais
ideologizado. Feliz é Platão com seu mito da
caverna. O conhecimento é esse reflexo na parede
de um lado iluminado pelo sol e soprado pelo vento
que projeta ebulição de luzes e sombras ao que
308
costumamos chamar de fenômeno. O nosso
conhecimento dista tanto da realidade quanto as
sombras distam da realidade física opaca. O
homem é um ser que crê. Enquanto o liderado crê o
líder é o que se faz crer. Mas o líder é o que mais
crê. Ele crê em si mesmo e sobretudo nos
princípios que ele professa. Qualquer conjunto de
princípios que não seja muito absurdo funciona na
prática se for crido, vivido e aplicado. O homem é
um ser que representa e pensa a representação.
Pensar é embaralhar e combinar figuras. É claro
que a arte do pensamento é abstrata quando o
metanarrador é perito e profissional. O pensamento
é o que norteia a ação. Quem muito age e não
separa tempo para o pensamento precisa ser
pensado por outrem assim como o pensador é
trabalhado por aqueles a quem dirige seu discurso.
Os povos mais ativos do mundo são os que mais
pensam. A inércia da ação apenas é reflexo da
inércia do pensamento. O pensamento nasce do
pensamento e o pensamento equaciona a
problematização. Diria que a inteligência é o
309
resultado de circunstâncias férreas e ígneas. Não
há genialidade sem tensão. É bem verdade que
muitos são os opressos, mas nem tantos são os
gênios. Isto mostra apenas que as circunstâncias
são importantes, mas é necessário que haja algum
tipo de predisposição interna, seja ela genética,
espiritual ou ambas. A política e a religião são
ideologias determinantes quando do que se trata é
organização social e teleologismo. Política e
religião são metanarrativas. É curioso que haja um
curso para a política, seja ele, Ciências Políticas e
outro para a religião, seja ele, Ciências da religião.
Mas não há um curso que trate ambas as duas
coisas a partir daquilo que as unem num único
gênero, Ciências das Metanarrativas. Sim, porque
deveria haver uma disciplina diferente da Teoria da
Literatura, muito embora contando com a ajuda
dela, e, a nosso ver, este papel cabe a filosofia. Se
temos um objeto de estudo sem disciplina e uma
disciplina que perdeu o objeto de estudo, nada
melhor do que casar o noivo com a noiva. Estudar
metanarrativa é como estudar o fruto para conhecer
310
a árvore. No evangelho está escrito que é pelo fruto
que se conhece a árvore. Se se quer conhecer o
homem, é preciso estudar o que ele produz, é pela
metanarrativa que se conhece o metanarrador. A
epistemologia foi uma extraordinária percepção do
homem de si mesmo. Mas ela não está dando
conta de explicar o conhecimento. É assim que se
deve criar uma nova disciplina, como queremos, ou
expandir os debates realizados pelos
epistemólogos. Diria que os epistemólogos estão
embebidos da dúvida metódica de Cartésio.
Deveríamos por alguns instantes deixar de dizer o
que não podemos conhecer, ou em não sendo
nosso pensamento conhecimento, dizer o que vem
as ser nosso pensamento. O homem é pensamento
e se existem pensamentos presumidos e outros
expressos isso se deve também à velocidade do
pensamento. Quando estou a enxugar uma xícara e
ela despenca da minha mão e eu consigo resgatá-
la ainda antes que chegue ao chão antes que
houvesse um golpe de vista e uma mão ágil, houve
um pensamento. Diferente disso é o pensamento
311
profundo que se protrai no tempo porque exige uma
compreensão profunda. Além disso, as conexões
profundas são revisitadas periodicamente. Outra
questão importante é a do nada mental. Nas
mulheres se vê isto com pouca frequência, mas
certos homens praticam todo dia. O homem sente
necessidade de se desligar. De tirar um tempo para
nada fazer e deixar a cabeça ocupada com
absolutamente nada. Na verdade esta é uma
técnica de acomodação de informações, o que em
computação é chamado de desfragmentação.
Quem nunca tomou um chimarrão sozinho para se
introspectar e amainar a agitação mental em busca
de equilíbrio. A mente é como uma câmara de
equilíbrio. A mente é como uma câmara hermética
em que pululam partículas: as partículas não
podem nem estar aceleradas demais e nem em
estado inercial. O ritmo da mente é apenas um dos
ritmos dentro de um todo maior que comporta maior
número de execuções. Nossa inteligência é, em
linhas gerais, fazer conexões. E aí fica a pergunta:
porque não fazemos mais conexões se é
312
exatamente isto o que nos cobra nossa vida pós-
moderna? Primeiro porque o próprio organismo
impôs uma barreira a si mesmo como forma de não
abalar a comunidade de indivíduos. Porque se
houver jovens intelectualmente muito arrojados
sobrepujarão os mais velhos empoderados, o que
acarretará instabilidade social. E a outra razão é
que se o cérebro se permite conectar em maior
velocidade, logo começará a fazer conexões
clandestinas, ou seja, errôneas. Enquanto que a
natureza é o reino das conexões inconscientes o
homem é o reino das conexões conscientes. E o
fato de o homem estar saindo do obscurantismo
para as luzes apenas revela que ele está saindo da
natureza para adentrar em si mesmo, que é uma
antítese ao mundo natural. O homem se opõe
através do seu polegar opositor à natureza e a
postura e a engenharia corporal assuma a forma de
oposição intelectual. O homem produz lixo e
consome energia. Faltam recursos energéticos e
abunda o lixo. A saída é converter lixo em energia.
A grande inteligência do homem será a logística
313
reversa. Ou seja, precisamos colocar nossa
inteligência para algo que é bem mais do que a
logística simples. Inteligência é essencialmente
procedimento.
História: a ideia de narração de tudo
De certo ponto de vista sou obrigado a concordar
com o ilustre historiador José Kormann: “a História
é a mais difícil de todas as ciências”. Abraham
Lincolm foi alvejado diante de 1.500 pessoas num
anfiteatro e diante da polícia não foi possível reunir
sequer duas versões em linhas gerais compatíveis.
Marx e Engels escreveram na Ideologia Alemã,
mas depois riscaram por ser demasiado polêmica a
frase “não conhecemos outra ciência senão a
História”. História é narração. O primeiro grande
historiador sistemático foi Heródoto que entendia
que a História é pedagógica e descreveu o
desenrolar da Guerra entre Atenas e Esparta. Os
gregos e romanos foram grandes historiadores e os
judeus também dentre os quais destacamos o
314
nome de Flávio Josefo. Uma vez que a História
começa com a invenção da escrita há uns 6.000
anos, nunca é demais afirmar que as culturas mais
bem servidas de historiadores são as masoréticas.
As oralidade esbarra na capacidade limitada de
memorização do intelecto humano. Alguns autores
narram fragmentos de História e outros mais
ousados pretendem dar conta do fenômeno como
um todo como Cesare Cantu com seu Tratado de
História Universal. A humanidade enquanto
civilização conta com uns 8.000 anos de idade
embora em Jerusalém tenham sido encontrados
túmulos de aproximadamente 70.000 anos. A
História do homem começa na Mesopotâmia, no
Mediterrâneo, zona de confluência daquilo que
mais tarde seriam três continentes, Europa, Ásia e
África. Na região há pouco referida tribos das mais
diversas origens étnicas se miscigenariam do ponto
de vista genético, cultural, linguístico e religioso. Ali
começam as primeiras cidades e os primeiros
ordenamentos jurídicos. Da convivialidade brota o
regramento. Em diferentes lugares do mundo se
315
veem focos de civilização: no Japão, na China, na
América Central e Norte da América Latina, no
Oriente Médio, na Península Itálica, na Grécia e no
Egito. O Egito, depois de milhares de anos como
civilização de ponta do planeta perde seu posto
para a Grécia que se apropria da tradição órfica e,
mais tarde, os intelectuais gregos, dentre os quais
destacaríamos Tales de Mileto, Pitágoras,
Arquimedes, Hipócrates, Sócrates, Platão,
Aristóteles, Eróstrato, Ésquilo, dentre tantos outros
senão assimilados pela cultura militarista romana.
Os romanos eram grandes juristas. Entre eles
vemos grandes oradores e literatos, dentre os quais
destacamos Cícero, chamado por Júlio César de
“ornamento da cultura latina”, mas eram de
medianos para fracos em filosofia. Marco Aurélio
imperador foi destaque do estoicismo. O Império
Romano foi um sistema civilizacional de expansão
territorial. Essa expansão territorial levava adiante a
língua latina, estradas, obra de infraestrutura,
tornava os ricos cada vez mais ricos, gerava
inflação e fazia do Imperador Romano um pop star,
316
adorado como deus. O Império Romano Ocidental
em 476 d. C. já cristianizado pro Constantino é
invadido e começa a época medieval de
esfacelamento e feudalização. O feudo é o grande
Império Romano sem fronteiras agora cindido em
pequenas unidades políticas autônomas. Em 1453
é derrubado pelos turcos o Império Romano
Oriental de língua grega e começa a época
Moderna. A transição da Idade Média para a Idade
Moderna traduz muita coisa. A desbarbarização dos
bárbaros e a desnecessidade de muros e valas em
torno das unidades agrícolas e o desenvolvimento
das forças produtivas. No final da Idade Média há o
desenvolvimento da manufatura e o aparecimento
dos burgos. O feudo que antes representava
segurança agora é um óbice à desenvoltura da
economia. É criado o Estado Nacional que cria a
ideia de nação assentada num vernáculo comum,
geralmente o dialeto mais empregado. O
Renascimento resgata o espírito filosófico grego
depois de séculos de vivência de um cristianismo
bom em si, mas vivido por gente tosca. A América é
317
descoberta. Na Alemanha Lutero diz que os
cristianismo romano é apenas um dos modos de se
viver cristianismo e nem é o melhor. Traduz a
vulgata de Jerônimo para o alemão. Na França a
monarquia é deposta e substituída em 1789 pela
República, sistema democrático e político que
preconiza as liberdades individuais. No século XIX
na Inglaterra surge o capitalismo industrial fazendo-
se prevalecer sobre o capitalismo comercial. A
Inglaterra torna-se a grande potência mundial. Há
Sol no Império Britânico 24 horas por dia. O mundo,
com o advento do capitalismo industrial, assiste a
uma multiplicação de saberes ciências sem
precedentes. Com a complexificação da sociedade
o homem sente profundo desejo de conhecer a si
próprio. A Revolução Francesa assinala a época
das primeiras grandes conquistas sociais. A
nobreza, a monarquia e o clero são colocados em
segundo plano e se proclama o direito da
burguesia, o terceiro estado. O socialismo científicoi
nasce como teoria e visão de mundo a contemplar
o quarto estado ou o proletariado. O globo passa a
318
ser disputado por duas grandes ideologias. E eis
que tanto a racionalidade burguesa quanto a
proletária fracassam. Fukuyama chega a falar em
“fim da História”. Na verdade, a História continua
até porque a política é apenas uma das dimensões
da História. Quando cada economia nacional tenta
se afirmar na Europa e no mundo como potência
ocorre a Primeira Guerra Mundial de 1914 a 1918.
A Alemanha faz surgir a Segunda Grande Guerra
em função do descontentamento com o tratado de
Versalhes. Ela se desencadeia de 1939 a 1945. De
maneira especial a partir da Segunda Guerra
vemos um despertar tecnológico sem precedentes.
O pós-guerra acaba se tornando a época do pós
tudo. Tudo o que poderia ter ocorrido ocorreu. O
preço que a humanidade pagou em Duas Grandes
Guerras foi salgado, mas hoje se vive um clima de
emancipação sem precedentes. Ainda hoje o
mundo continua cindido entre direita e esquerda e
há quem diga que o Well Fare State na Europa é o
New Deal foi o melhor modelo de civilização que
existiu até hoje. Vivemos a época da cultura e da
319
informação. Hoje se consome cultura. Nenhuma
outra época foi tão pródiga quanto as nossas em
gerar necessidades antes inexistentes. Ao lado da
História dos fatos há a História das ideias que em
alguma medida reflete os primeiros. Nas artes
vemos o cubismo, em que Pablo Picasso aparece
como expoente, futurismo, dadaísmo, realismo,
surrealismo e diversas outras tendências. A filosofia
passa a trabalhar a linguagem, o idealismo, o
fisicalismo, o pragmatismo, o neopositivismo,
dentre outros. Na literatura se vê uma fungibilidade
entre o mundo dos livros e o do cinema. Em todas
as rádios do mundo são tocas músicas em inglês.
Na música erudita o que se vê é a quebra da
harmonia como ela era entendida em outras
épocas. A briga entre EUA e URSS dá ensejo a
programas nucleares e espaciais. O homem vai à
Lua embora haja contestadores. Quando em 1989
cai o muro de Berlim e em 1991 a Perestroika dá
errado, abre-se campo para aplicar no mundo
inteiro e também aqui na América Latina o ideário
dos Chicago’s Boys, capitaneados por Friedmann.
320
O inglês firma-se como idioma das relações
comerciais, inclusive entre países não anglófonos,
no diapasão de Breton Woods. O petróleo é cotado
em dólar, o que significa que para os EUA apenas
emitir papel moeda. O mundo torna-se, como disse
McLuhan, “uma aldeia global”. Como diriam os
brasileiros, nossa época é de globalização ou,
como querem os franceses ou Chesnais
“mudialização”. As transações financeiras tornam-
se cada vez mais voláteis, o mundo está dentro do
meu micro e funciona 24 horas por dia. O mundo
organiza-se em blocos econômicos e o mais forte
deles é a União Europeia e o mais promissor os
Tigres Asiáticos. Surge a sigla BRIC: Brasil, Rússia,
Índia e China, as economias mais emergentes. O
mundo é bombardeado por informações, tudo serve
de pretexto midiático. Trilhões de informações por
dia são lançados para dentro do Google, maior de
todos os sites de busca. Cresce o mundo virtual na
rede mundial de computadores e encolhe o mundo
empírico sobre o qual ele se escora. Matrix deixa
de ser produção cinematográfica para ser nossa
321
vida. Ocorre uma pletora de literatura. O Brasil se
torna um dos maiores produtores de livro do
mundo. O sistema financeiro brasileiro alia-se ao
mais prestigiado partido de esquerda para
promover inclusão social, universalizar o ensino
superior, promover a diversidade racial e sexual e
popularizar bens que antes só estavam ao alcance
das elites. Em quase todos os países do mundo,
senão em todos, encontramos máfias. Mas não só
para vender armas ou drogas ou mercadorias
piratas, mas produtos que eu e você adquirimos. As
guildas da Idade Média agora são obrigadas a atuar
na ilegalidade e a Itália que o diga. O Estado cresce
com todo gigantismo possível e todos querem fincar
na bandeira dentro dele. Surgem não apenas fatos
históricos novos, mas novas historiografias. Eric
Hobsbawn explica o século XX através do
materialismo histórico. Analles procura retratar
temas históricos como a vida familiar e privada.
Valoriza-se a oralidade. O positivismo histórico dos
grandes personagens é relativizado. Arquivos
ultrassecretos do DOPS são colocados em domínio
322
público. O poder da economia rivaliza com o
político. O Estado fica forte para promover guerra
de um tipo de capitalismo e agora que o mercado
nacional interno fica pequeno o Estado é
minimizado. Pela primeira vez na História da Igreja
Católica um Papa do Continente Americano torna-
se chefe da Igreja, o argentino Francisco.
Tendências apontam que em poucos anos
evangélicos serão maioria no mundo. A Europa
recebe cada vez mais imigrantes. Neste momento o
maior genocídio em andamento é no Sudão em que
uma tribo aniquila sua rival como uma atividade
fabril de execução sumária, mais precisamente em
Darfur. Na Oceania ainda se pratica antropofagia e
50% da população mundial não recebeu ou emitiu
uma chamada telefônica. A Índia é o país com o
maior número de anglófonos do mundo, e ainda há
cerca de 6.000 pessoas que falam sânscrito. Em
Damão, Diu e Goa fala-se língua portuguesa. Está
em andamento um acordo ortográfico dos países
lusófonos, mas não está fácil aparar as arestas. A
cada dois minutos é publicado um livro. O Brasil
323
hoje forma 10.000 doutores por ano. Popularizou-se
no Brasil a casa própria, o automóvel particular, o
computador, a internet, o celular e não raro as
pessoas tem acesso a algemas de canais de
televisão. O jornal é ingrediente matinal das
famílias há quem assine vários periódicos. A
depressão se apresenta como o transtorno mais
crescente e as doenças de caráter mental são as
que mais sobem nas estatísticas. As metrópoles
estão refreando e as cidades de médio porte estão
sendo as preferidas das grandes empresas. Diminui
cada vez mais as diferenças de gênero e cresce o
número de entidades familiares chefiadas por
mulheres. Cresce o número de divórcios e o
casamento já não mais é considerado como
indispensável para a comunhão de vida entre duas
pessoas. Cai a taxa de natalidade no Brasil e
aumenta a expectativa de vida e há quem anuncie
a inviabilidade da previdência social. O campo está
cada vez mais urbanizado, pois a tecnologia via
satélite faz chegar lá todo tipo de informação e
estão sendo pavimentados os acessos
324
asfalticamente onde antes só havia barro e
pedregulho. A rede elétrica sobre quase 100% do
território nacional. Do ponto de vista cultural diria
que pelas telenovelas da Rede Globo todo o Brasil
está passando por uma carioquização e
copacabanização. O interior cresce, mas o eixo
Rio-São Paulo em quase tudo se torna cada vez
mais referência. Mesmo sem o apoio
governamental as rádios comunitárias promovem a
reforma agrária da informação e da atmosfera. Ao
lado do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, os
meios de comunicação social tornou-se o quarto
poder. Hoje é possível a um menino paupérrimo
sair de um vilarejo africano e doutorar-se em
Harvard. Aliás, o homem mais poderoso do planeta,
Barack Obama, é negro. A frota de veículos
cresceu tanto que até mesmo em cidades com 50
mil habitantes há rush. O advogado se torna figura
comum e cidades com 20 mil habitantes tem seu
próprio curso de direito. Hoje existem editoras que
trabalham sob demanda e quem quer que queira
publicar um livro pode fazê-lo sem grandes óbices.
325
O que no passado, correr o mundo inteiro, por
exemplo, era objeto de literatura hoje é factível se
os pais são de classe média. Hoje é possível fazer
uso de medicação psiquiátrica continuada sem que
isso implique um déficit somático, intelectual ou
sexual. A História é a Historia de nossos acertos e
do preço que tivermos que pagar. A História é a
versão dos vencedores. Há quem diga que a
Revolução Francesa matou mais em uma semana
do que o Tribunal da Inquisição em 1.000 anos. De
todo modo, de acordo com a Filosofia da História,
tudo passa a fazer sentido quando é descoberto um
propósito da marcha civilizacional. A História é a
disciplina mais ampla em seus aspectos
introdutórios comporta um histórico de si mesma.
Tudo é História. O homem é um narrador e quem
narra, narra História. Pensar em narrativa como
metanarrativa é só pegar a História da Comuna de
Paris que recebe mais de dez vieses diferentes de
acordo com o ponto de vista anarquista, socialista,
burguês, conservador, eclesiástico e assim por
326
diante. A História não é só o que vemos, mas em
grande medida, aquilo que queremos ver.
Cultura: a ideia de representação
96% dos idiomas do planeta são falados por 4% da
população mundial. Isto significa que o mandarim é
falado por mais de 1 bilhão de pessoas e, dos
7.000 idiomas, 500 são falados por menos de 100
pessoas. Cultura é isto: em primeiro lugar o
mandarim, o híndi é o segundo, seguido pelo
inglês, pelo espanhol, pelo árabe e aí vem nossa
língua portuguesa seguida pelo bengalês, pelo
russo, pelo francês e em décimo lugar o japonês. A
globalização fortalece as línguas fortes e
enfraquece as fracas. É importante dizer que as
línguas não são sinônimas. Porque homesickness
não é o mesmo que saudades assim como
sombrero não é o mesmo que chapéu, assim como
netz não é o mesmo que puçal. O homem é um ser
cultural. Tudo é cultura. A geografia da cultura
também é interessante porque posso nascer numa
327
Suécia onde a cultura é generalizada, no Brasil em
que alguns são cultos e outros nem tanto ou no
Zimbabwe onde todos estão privados dos bens
culturais. Hoje em dia a cultura está sendo vista
como mais um setor da economia, o que é bom por
um lado nem tanto por outro. A mercantilização da
cultura faz com que ela passe a receber patrocínio
daquele que é seu destinatário e juridicamente
consumidor, ficando por essa razão mesma refém
dos seus apreciadores. O autor que se preocupa
demasiadamente com seu público não consegue
viver com perfeição o seu papel de produtor
cultural. Em sociedade capitalista a cultura começa
pelo fim, ou seja, por quem visa atender. O
americano é expert em vender cultura. São os
maiores produtores culturais do mundo do ponto de
vista quantitativo. E também são os maiores
consumidores. A diferença entre o Brasil e os
Estados Unidos é que no primeiro há uma
preocupação com publicação enquanto que os
ianques estão mais avançados: eles não só
publicam, mas propagam, o que é sobremaneira
328
importante. Como o mercado editorial anglófono é
mais amplo, cai o preço da edição o que fomenta a
venda e a venda permite edições maiores, que dilui
dentro de si as despesas fixas. De todo modo,
nunca esteve tão fácil adquirir uma impressora off
set ainda que continue sendo um meio de produção
gráfica nas mãos de relativamente poucas pessoas.
No Brasil de hoje até pessoas mais pobres
externam o desejo de ver o filho cursando um curso
superior e projetado socialmente com uma
profissão de valor. Isto significa que a cultura é
também techne, é conjunto de ferramentas ideais e
concretas que nos permite cumprir uma função
operacional no seio da comunidade em que
residimos. Mas a cultura não é só isto. Ela é aquele
geist, aquele ornamento que nos presenteia com
nossa identidade sem a qual ficaríamos sem
referencial. A etnopsiquiatria é a noção de que as
manifestações psíquicas patológicas decorrem da
avulsão do interior da cultura autóctone do
indivíduo, o que o torna desnorteado. A noção do
desequilíbrio químico é colocado num plano mais
329
profundo, o cultural. Os críticos que mais combatem
e o fordismo e o taylorismo muitas vezes são os
maiores beneficiados por estas compreensões.
Sim, dizemos isto porque estamos reproduzindo em
série aquilo que num primeiro momento era labor
artesanal. O sistema fabril tem a capacidade de
transpor os limites materiais que emperram a
difusão da cultura. A internet vem a ser a
relativização do direito autoral econômico e
esperamos que não haja nenhum retrocesso neste
sentido. Em nossa ótica o direito moral é o mais
importante e os legistas deveriam passar por cima
dos interesses pecuniários privados em nome do
interesse público. Hoje a cultura escrita sobrepuja
em muito a cultura não escrita a ponto de deixá-la
empoeirada e perder de sua concorrente mais
veloz. Costumo sonhar com 36. Ou seja 3 + 6 = 9
ou 3 x 6 = 18 em que 1+ 8 = 9. 9 é o número da
solidariedade e da fraternidade. A nona letra do
alfabeto é o “i”. Em minha assinatura o “i” de Israel
é a letra de maior destaque. O “i” significa talento
artístico popular. É o número das massas populares
330
e dos extremos. Eu nada escreveria se não tivesse
certeza de um dia ser um escritor muito popular. A
maior cultura de um homem é o conhecimento que
ele tem do próprio vernáculo. Porque conhecer
nada mais é do que conhecer conceitos e os
conceitos são ideias cabidas dentro de palavras.
Ou seja, tudo se resume em conhecer a maior
diversidade possível de palavras e o seu
significado. A cultura se manifesta através do
comportamento e no pensamento, mas como
comportamento é reflexo do pensamento, então
tudo é pensamento. O pensamento é como uma
coleção de tintas: faço telas toscas se minha
aquarela tem poucas cores. É como erguer um
edifício com pouca quantidade e pouca variedade
de materiais: ficará um cômodo apertado e sem
graça. O pensamento se alimenta de vocabulário e
ele se conquista pela leitura seguida do emprego
ativo daquilo que foi inteligido aliunde como leitor. O
vocabulário depende não só de leitura, mas do
número de circunstâncias empíricas em que nos
vemos envoltos. O acréscimo numérico de
331
experiências tende a se dirigir para a diversidade.
Assim, quanto mais experiente uma pessoa, mais
vocabulário ela terá agregado. A leitura faz conosco
esta mágica: nos habilitamos a exibir uma
experiência que em verdade não temos. A escrita
são modos de driblar a inexperiência. Quem
assume o compromisso consigo próprio de
escrever livros ou é articulista de um jornal é
forçado em razão das contingências a se
manifestar sobre temas não muito íntimos e isto
cobra estudo e assimilação de categorias e
palavras novas. A cultura de um modo geral e mais
especificamente a língua é este contínuo treino que
em algum sentido já é a versão final do discurso.
Tudo é treino e com a cultura não é diferente. Diria
que ainda estou a treinar minha escrita e há quem
só consiga se tornar um grande escritor lá pelo
quinquagésimo livro. A quantidade demandada de
papel para jornal é um dos índices das
organizações internacionais para aferir o grau de
aculturação de um povo. O jornal faz tão parte de
nossa mesa como o café da manhã e a carteira de
332
cigarros. Aliás, o fumar também é um hábito
cultural, prova de que nem tudo o que é cultural é
bom. Se preparássemos a mortalha como o faziam
os povos indígenas da América Central, local de
origem do tabagismo, não nos intoxicaríamos tanto.
Mas com nossa caucasiana inteligência
conseguimos inserir mais de 4.700 substâncias
tóxicas no diminuto cilindro. Quanto ao narguilé, há
quem diga que equivale a fumar cem cigarros.
Todas as grandes mudanças do mundo passam por
mudanças culturais. A cultura determina a própria
ascensão ou queda. Para uma comunidade em que
a ideia de procriação e filiação é mal vista a
tendência é que tal cultura desapareça. Hoje as
telenovelas são um fenômeno mundial e boa parte
da população do globo tira horas por dia
absorvendo os valores veiculados neste teatro de
baixa qualidade a ponto de a referida exibição
diminuir a natalidade, aumentar o número de
divórcios, fomentar o anseio de projeção social a
qualquer preço, além de outros fatores. Tudo o que
é mais importante é atingido pela mídia: os
333
relacionamentos, a sexualidade, a vida matrimonial
e familiar, o estudo, a profissão e o comportamento
de uma maneira geral. O rebanho precisa de
heróis. E os nossos heróis são fracos, corruptos,
lascivos, extrovertidos, e mais, exibicionistas e
pusilânimes. Vive-se nos meios de comunicação
social uma verdadeira ordem antiespartana. O
único valor espartano que ainda é apregoado é o
da homossexualidade, o que colide frontalmente
com nossos valores judaico-cristãos. A infidelidade
conjugal cuja conduta tipificada foi extrusa do
Código Penal Brasileiro é sugerida pela mídia como
comportamento altamente tolerável. Diria que no
Brasil as pessoas tem menos cultura do que na
Europa, por exemplo, embora também no Velho
Mundo vejamos pessoas padecendo de ignorância
crônica, porque aqui em nossa pátria amada é mais
difícil fazer um curso superior do que em outros
lugares. Se a pessoa tem família acaba havendo
um achaque muito grande por conta do cônjuge
como a demanda de tempo e dinheiro que isto
implica. Quando se pega o diploma na mão nem se
334
ri e nem se chora, embora a vontade seja
efetivamente de chorar, e se toma a consciência de
que a luta foi tão renhida que não se tem motivos
para comemorações, o formando sai da
universidade como aquela res que conseguiu
escapar do matadouro e agora está brutalmente
machucada. É difícil assimilar cultura nos dias de
hoje, sobretudo a erudita, porque aquisição de
cultura depende de tempo e tempo é o que menos
nós temos. Os enlatados como internet e televisão
não deixam que compulsemos um livro de 850
páginas ou ouçamos uma sinfonia. É
impressionante como as pessoas leem a Bíblia e
não a compreendem. Da mesma maneira o mesmo
ocorre em relação à cultura de um modo em geral:
vendo não enxergamos e escutando não ouvimos.
Freud escreveu sobre ato falho e o ato falho é um
mecanismo de defesa da personalidade. Premissas
e corolários no reino dos presumidos e
subentendidos se esquivam do processo de
elucidação. É assim que busco uma resposta para
uma situação e, como diz o provérbio popular “não
335
se enxerga um pau diante do nariz”. A cultura é
esse negócio enfeitiçado que se esconde da
maioria como que por mandinga. A persistência é a
chave que abre esta prisão. E quando certas
pessoas leem minhas obras não acreditam que um
jovem senhor simples e rústico como eu seja autor,
mas um plagiário. A minha simplicidade todos
enxergam, mas a quantidade astronômica de horas
que apliquei ao estudo apenas um ou outro vê. O
grande produto cultural de nosso tempo é o
roteirista de cinema e de novela televisionada.
Vendem-se muito mais revistas do que livros e os
que vendem muitos livros devem parte disso às
revistas. Nossa época é a época do hipertexto. E
hipertexto não é um conceito da informática e sim
da literatura. Esse prefixoide “hiper” se refere à
multiplicidade de meios que o texto nos
disponibiliza: texto, foto, áudio, vídeo, etc...
Paradoxalmente, esta época do hipertexto assiste a
um movimento editorial sem precedentes. Nunca
foram vendidos tantos livros como agora. Assim
como nunca foram postadas tantas cartas nos
336
correios como na época do e-mail. Os produtores
culturais também estão engrossando suas fileiras.
O escritor está deixando de ser uma figura distante
para se apropriar cada vez mais do público. Esta
sensação de escritor estar entre nós e, aliás, ser
um dos nossos tira o glamour, e as pessoas que
não desenvolvem a mesma atividade tendem a
banalizar aquilo que sob pretexto algum poderia ser
banalizado. Não é a pessoa cinza que tem de
banalizar a pessoa especial, é o escritor que
dignifica seu próximo e comparsa. Se até Jesus
Cristo teve de ouvir “este não é o filho do
carpinteiro?” o que devo dizer a respeito de mim
mesmo? Assim como o médico, o juiz, o
empresário e o banqueiro nasceram sem dentes,
pelados e carecas e vieram a ser algo através de
processos, também o escritor não nasce escritor,
mas torna-se dia-a-dia cada vez mais escritor.
Diferentemente da técnica e de outros avanços da
humanidade para os quais os gênios inventivos
acabam passando por despercebidos, no campo
das letras o nome do escritor ou do filósofo é
337
bastante destacado. Uma das razões pelas quais
decidi enveredar por este caminho. Isto é não só
uma tradição, um costume e uma praxe, mas, diria,
uma necessidade. Sim, porque a subjetividade está
entrelaçada àquela universalidade kantiana
centrada no sujeito. O universal e o individual são
águas que jorram exatamente da mesma fonte e
não há como compreender uma sem a outra. A
cultura é algo que está diretamente relacionado ao
tempo. O tempo é um importante mensurador de
aculturação e é por isso mesmo que nas culturas
em geral e sobretudo nas mais fortes os velhos são
respeitados pelo conhecimento que suposta ou
efetivamente têm. Não há culturas erradas ou
corretas, porque não temos alcance gnosiológico
para separar o certo do duvidoso, existem culturas
que funcionam melhor e outras capengam. O jeito
europeu de conduzir a própria vida do qual eu
destacaria as culturas alemã e inglesa é o que
melhor funciona em qualquer lugar do mundo.
Trata-se de uma maneira tão melhor de enfrentar
as situações concretas da vida que tudo o que dela
338
difere se lhe submete. A cultura é um conjunto de
pessoas, coisas, bens e riquezas entre si além
daquela alma que anima isto tudo, a cultura distribui
o poder e tudo o que é partilhável entre as pessoas.
Ela dispõe todos os elementos abstratos e
concretos entre si. Isto significa que uma mudança
cultural acarreta mudança espiritual, política e
econômica. As pessoas estão acostumadas a
pensar que a sua própria religião deve ser a mesma
religião de seus pais. Pelo contrário, quem quer
obter mudança de vida deve principiar pela
mudança no mundo espiritual. A cultura é algo que
tem a capacidade de ser mais do que da mesma,
justamente porque ela é o que temos de mais
humano. É assim que religião é cultura, mas, doutro
lado, é mais do que um fenômeno cultural
conquanto sentido algum teria se não
transcendesse sua aparência empírica. A cultura é
algo que diz respeito a um jeito de ser e que a todo
momento se endereça ao ser. A cultura é a ruptura
com o mundo natural. No sentido de que a primeira
cultura, a agricultura, é uma quebra da mera
339
espontaneidade do solo que passa a ser obrigado a
dar mais do que estava acostumado a dar. Ao
conjunto de alterações conscientes sobre o
ambiente denominamos cultura. E é por isso que só
o homem tem cultura, porque só ele é consciente.
O dique construído por um castor não é cultura e
nem a casa do João de Barro porque isto é
meramente instintivo. Não há aprimoramento. A
cultura humana é conservativa, mas,
paradoxalmente, evolutiva, o que requer abrir mão
daquilo que era usual outrora e hoje não mais. Os
amish são conhecidos como um grupo cristão
anabatista caracterizados pelo repúdio à tecnologia.
Vejo neles alguma coerência. Sim, porque no afã
de se preservar sabe-se lá o que, talvez a
espiritualidade, abstêm-se os tais de manipular
determinados recursos tecnológicos. Ora, pior do
que isso é ter uma parafernalha de ponta presa ao
corpo e pensar como se pensava a séculos atrás.
Não é só porque uma ideia é mais recente que ela
de per si seja melhor, mas não bom senso
comungar de ideais jurássicos como se os valores
340
fossem essências imutáveis porque também eles
se metamorfoseiam. Quanto mais desenvolvida
uma cultura,mais burocrática ela se torna. Por isso
mesmo que surgiu exatamente na Alemanha um
grande teórico da burocracia, seja ele, Max Weber.
Weber escreveu sobre burocracia porque vivenciou
isto. E a Alemanha de Weber era a cultura mais
forte da Europa em sua época. Porque burocracia é
procedimento e cultura é pavimentar veredas para
realizar o sonho das pessoas. As sociedades, ditas
ocidentais passaram e continuam passando por um
violento processo de juridicização. A burocracia
projeta uma pessoa que a domina, mas se o
burocrata deixar de lado a impessoalidade, pode
obstaculizar a ascensão de um sujeito indesejado.
A cultura passa muito por aceitação ou rejeição.
Concurso público premia bons produtores culturais
sem dúvida alguma, mas deixa excelentes pessoas
aquém da berlinda cabresteadas no limiar de
entrada. A burocracia é também a ferramenta mais
eficaz para angariar dinheiro público para atender a
interesses comunitários que de alguma forma são
341
mais privados do que públicos. Sim, porque
musicam, telas, livros, etc, são confeccionados por
pessoas concretas e reais, dotadas de vaidade,
vício, virtude, idiossincrasia e forte viés subjetivo.
Isto é tão real que a legislação brasileira que trata
de licitação dispensa o procedimento quando se
trata de trabalho artesanal de pessoa renomada e
bem falada pela crítica, cuja reputação é de imensa
credibilidade. Olavo Bilac chamou a Língua
Portuguesa de “última flor do Lácio inculta e bela”.
Do ponto de vista de uma fala que se deslatiniza e
se aportuguesa é correto chamá-la de inculta. Mas
não é correto pensar nos dias de hoje que seja
inculta. A Língua Portuguesa é sim língua erudita
embora a maioria dos seus falantes de eruditos
nada tenham. No Brasil há a ditadura do símplice e
do fácil justamente porque vivemos numa espécie
de democratismo. Não são os entendidos que
devem submeter-se à plebe, é o vulgo que deve
correr atrás de entendimento para compreender as
construções gramaticais e lexicais mais acuradas.
Do ponto de vista lexical o Francês é menos do que
342
a Língua Portuguesa. O Francês só nos ultrapassa
em estilística e mesmo isto podemos conquistar se
nos apropriarmos da riqueza linguística que nos
pertence. De maneira geral vejo meus
contemporâneos e compatriotas mais preocupados
com que carro rodar, onde morar e com quem
praticar sexo. Cultura bela começa a ser feita
apenas a partir do momento em que já se deu
conta destas concreções e o espírito começa anelar
instâncias mais sublimes. É curioso como nos
interiores do nosso país conversando justamente
com pessoas mais simples ouvimos expressões
lusitanas de um português medieval. Nos cafundós
em meio ao tiguera e ao guachiva é que nos
deparamos com falantes de jargões de outrora
decernindo-lhes caráter imorredoiro. Dentro da
estreiteza de minha ignorância procuro trazer à
baila vocábulos que gradativamente estão
perdendo espaço nos meios oficiais e inoficiais.
Entendo que um bom dicionário deve ocupar-se de
termos em desuso e obsoletos porque nada obsta
que eu me reporte a produções mais antigas. O fato
343
de eu tentar resgatar dizeres antigos se justifica em
razão de minha arraigada convicção de acordo com
a qual não há perfeita sinonímia entre velhas e
novas expressões, porque “ser infértil” e “ter a
madre seca” não é exatamente a mesma coisa. O
grande problema de nossos dias já não é mais o
sexual, como apontou Freud, ou não é só
restritamente o sexual, mas há uma forte pitada de
tensão cultural. A uma, porque as pessoas se
entregam sexualmente entre si com maior
facilidade do que no passado e, a duas, porque o
que realmente deixa uma pessoa cindida é o
choque de valores e os valores são adquiridos
culturalmente. O sexo também é uma atividade
regrada por hábitos consuetudinários, os chamados
tabus sexuais são parte inseparável de toda e
qualquer cultura. A cultura é muito senso comum,
são os preconceitos e os achismos que
alimentamos a respeito de quase tudo. A cultura foi
a invenção mais cômoda de se retirar de nossos
ombros a responsabilidade de fazer as coisas do
modo mais certo nas ocasiões mais delicadas de
344
nossa vida. Para quase tudo há uma etiqueta. Tudo
é revestido de protocolos. A cultura, neste sentido,
é muito irracional. Sim, isto mesmo! Porque a
cultura nos diz até que tipo de emoção devemos
externar dependendo da situação. Assim, se a
cultura diz que em dada situação deve externar
contentamento, contentamento externarei ainda
que intimamente não seja este o meu humor
natural. Daí a ideia de que a cultura nos impõe
papéis. Devemos a todo momento representar e
encenar. Ocorre uma teatralização da vida. Por isso
que os atores globais são tão lisonjeados: porque
eles conseguem fazer de uma maneira tão perfeita
aquilo que fazemos a todo momento de maneira
tosca. A cultura acontece entre o sein e o sollen.
Sim, ela está cabida dentro deste campo de tensão
entre o que efetivamente somos e aquilo que
queremos ser. A cultura é algo que está a caminho
e é algo que está se fazendo. Irrealização total é
estado de natureza e realização total não é mundo
empírico, único palco dentro do qual se desenvolve
a cultura. A cultura é sempre um meio termo. É por
345
isso que as culturas mais desenvolvidas são as que
se aproximam mais da abstração. A cultura é
síntese de coisas sabidas e não sabidas. É síntese
de assertivas situadas no campo dos explícitos e da
consciência forte e de assertivas situadas no reino
dos presumidos e subentendidos. Chamamos a
cultura de metanarrativa porque a cultura é
sistemática e totalizante. Falar em metanarrativa é
conceber a cultura como um contexto. O excesso
de cultura inutiliza da mesma forma que um homem
sem cultura alguma não tem nenhuma serventia.
Porque a pessoa excessivamente aculturada passa
a fazer do mundo da cultura seu único local seguro,
uma zona de conforto. A ponto de grande parte dos
intelectuais serem misantropos. As pessoas ditas
comuns já não mais alcançam as preocupações
dos superiores níveis. Para o intelectual todo o
problema é intelectual ainda que à porta do mesmo
estejam batendo cobradores, oficiais de justiça, pai,
mãe, esposa, filho, amigos ou quem quer que seja.
A elite só cumpre seu papel se consegue ser não
só elite política, econômica e espiritual, mas
346
também cultural. Vemos que as elites brasileiras
não têm a devida preocupação de exercer o papel
de vanguardista cultural. É por isso que não
conseguimos nos desfazer do pensamento de
esquerda. Porque a esquerda preenche um lugar
vazio. Em sociedade de ricos ignorantes e pobres
cultos se vivencia esta teratologia de prática liberal
e pensamento crítico. E aí vai para as cucuias a
praxe dos marxistas e se executa uma prática
acéfala e avulsa de um conhecimento-ideologia que
lhe dê espeque e guarida. O que escrevo é tão real,
embora a direita me olhe como um pobre coitado,
que posso assegurar que foi através de recursos
culturais e não só através de recursos financeiros
que o PT chegou a se tornar o que ele é hoje. Esta
tensão entre infraestrutura e superestrutura
descasadas se manifesta nas urnas. É assim que o
povo coloca um chefe do Executivo de esquerda e
faz maioria parlamentar de direita ou vice-versa.
Não adianta culpar o povo. O poder sufragante do
povo apenas reflete o desencontro das lideranças
sociais que a um só tempo educam e deseducam.
347
E isto está presente em todas as instâncias: o
reverendo pregando indissolubilidade matrimonial e
o ator da novela trocando de par como quem troca
de roupa. Quem sabe, a marca da nossa cultura
brasileira seja exatamente esta: a contradição e o
ecletismo. E assim como o cristianismo católico se
contaminou com o paganismo antigo, o cristianismo
neopentecostal começa a passa pelo mesmo
processo.
Sociologia: a ideia de sociedade
Augusto Comte foi o primeiro pensador a sentir a
necessidade de criar uma ciência que tivesse como
objeto de estudo a sociedade. Comte sucede
autores como Hume e Kant, o que fazia dele um
descrente na filosofia. No que Comte acreditava
mesmo era nas ciências. A filosofia se reservaria
em ser uma mera organizadora dos saberes.
Comte chegou a escrever um Catecismo Positivista
em que a grande deusa é a humanidade.
Positivismo é, portanto, humanismo. E os santos do
348
cristianismo católico são substituídos por escritores,
filósofos e cientistas. A sociedade deveria ser
regida, segundo Comte, por ordem, progresso e
amor, guardando alguma equivalência com o
chavão da Revolução Francesa, liberdade,
igualdade e fraternidade. Comte seria o idealizador
da sociologia, mas quem faria o trabalho braçal
seria outro positivista, Émile Durkheim. Para os
sociólogos positivistas, essencialmente
conservadores, a sociedade é um organismo e a
preocupação das lideranças é manter a vitalidade e
a saúde do corpo. Além disso, Durkheim foi esperto
e estratégico a reservar tratamento ao método da
sociologia porque esta discussão teórica sempre
terá grande repercussão. Posso partir do indivíduo
para entender a coletividade ou posso partir da
coletividade para entender o indivíduo. Os dois
caminhos são válidos. A sociologia é uma
antropologia do sujeito coletivo. No Ocidente o
indivíduo é o grande herói e no Oriente é a
coletividade. Émile Durkheim aborda temas como a
Divisão Social do Trabalho e o suicídio. Thorstein
349
Veblen aborda a questão do ócio e do ócio vicário.
Marx que escreveu uma teoria que afeta quase
todas as áreas do conhecimento explicou que a
base da sociedade é a economia. O modo de
produção de bens e o grau de desenvolvimento das
forças produtivas determina a maneira como os
homens se relacionam em sociedade entre si e
entre si e a natureza. A economia é o conjunto de
instâncias concretas sobre as quais estariam
apoiados o direito, a religião, a filosofia, o Estado,
as artes, as ciências e tudo o que é pertinente ao
reino intelectivo. Max Weber coloca o materialismo
histórico de Marx de ponta cabeça e demonstra que
pensamento religioso tem inclusive o poder de fazer
deslanchar um sistema econômico. Célebre é a
obra de Weber A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo. Discussão epistemológica importante
é se o trabalho dos sociólogos é a descrição
fidedigna da sociedade ou apenas uma espécie de
antolhos, ou seja, uma instrumento para poder
visualizar a sociedade. Habermas critica a redução
da racionalidade a um escopo instrumental e em
350
sua ética do discurso propõe um modelo de
racionalidade a um só tempo procedurístico,
democrático, teleológico e aplicável do ponto de
vista prático. Costuma-se dizer também que
podemos fazer abordagens estruturais e
conjecturais de sociedade. Em que a análise de
conjuntura seria o retrato e a análise de estrutura o
raio xis. De acordo com Habermas a sociologia
exerce hoje o papel que o passado cabia à filosofia:
ver a totalidade. A filosofia está se perdendo em
conceitos. Louis Althusser elaborou a teoria do
aparelho ideológico. Tudo, para Althusser, é
aparelho ideológico do Estado Capitalista: a escola,
a igreja, os meios de comunicação social, etc... A
sociologia muito se ocupou do papel do trabalho
nas sociedades desenvolvidas e hoje fala menos
em trabalho porque ele perdeu sua relevância. No
passado o que moldava o perfil psicológico das
pessoas era o trabalho que elas desenvolviam, hoje
são os meios de comunicação social. Domenico de
Mais diz que vivemos na sociedade do não trabalho
e sugere um ócio criativo. A sociologia se ocupa
351
ainda de movimentos migratórios, imigratórios e
emigratórios. Ocupa-se dos processos de
urbanização desordenada, densidade demográfica
e êxodo rural. A sociologia procura situar o ser
social, a pessoa humana, dentro daquela totalidade
em que ele vem a ser a um só tempo condenado à
liberdade e peça de uma gigantesca engrenagem.
A sociologia se ocupa da produção social dos
saberes e da informação, dos fenômenos religiosos
enquanto fenômenos sociais, das redes virtuais de
relacionamento e do comportamento dos indivíduos
no sentido de haver verdadeiramente uma
psicologia social. Isto é tão verdadeiro que o
Código Penal Brasileiro estabelece atenuante para
crimes cometidos sob comoção social. A meu ver,
deveria ser uma agravante justamente como forma
de cobrar atividade pensante do indivíduo em meio
à multidão. Ortega y Gasset mostra que o indivíduo
pensa pouco e as massas não pensam nada, do
que a violência nos estádios de futebol ou de
tourada é a maior prova. Darci Ribeiro define a
civilização brasileira como um amálgama de
352
portugueses, indígenas e negros, mas para quem
mora no sul do país é demasiado impróprio e
incômodo ser um material como este. A sociologia
brasileira é um capítulo à parte da sociologia geral
de que se destaca. Florestan Fernandes
desenvolve um trabalho mostrando que o papel da
guerra na tribo dos tupinambás é promover a
coesão do grupo e talvez nisto consiste a ênfase
que colocamos na Batalha do Riachuelo. Fernando
Henrique Cardoso explica que o capitalismo
brasileiro foi estruturado de modo a depender das
potências capitalistas estrangeiras. O Brasil tem
pouca experiência democrática se se computar os
tempos de Colônia, de Monarquia, de República
dos Marechais, dos Vargas, dos Militares em que
os poucos intervalos de lucidez ainda se sujeitam a
diplomas jurídicos obsoletos. E hoje se vive uma
democracia colorida com tons vermelhos e rosas,
em que a ditadura do Judiciário coloca entre
parêntesis os ideais parlamentares. De todo modo,
o mundo empírico é basicamente isto. Nem a
Europa é diferente senão pelos menores índices de
353
corrupção do que cá no cisatlântico. A dificuldade
de ser algo novo sem se vislumbrar ainda
exatamente o quê. De minha parte deveríamos nos
empenhar para fazermos deste garrão uma nova
Europa, mas os nossos colegas intelectuais são os
primeiros a discordar desta minha doxografia.
Questão controvertida é se é possível produzir
sociologia de uma sociedade que não existe mais
por estar soterrada no passado. Neste caso a
sociologia ficaria refém de outra ciência, a História.
Se a História por si só já é polêmica o que dizer de
uma segunda disciplina que entra como reprise e
transformação? A sociologia, a despeito de ser m
dos ramos mais teóricos do saber, é uma área ou
um foro demasiado estratégico. O duro do sociólgo
é que ele está implicitado dentro do seu próprio
objeto de estudo, a sociedade. Não consegue, pois,
uma total isonomia e uma total imparcialidade por,
de antemão, ter interesse no resultado de suas
pesquisas. A objetividade de quem se coloca do
lado de fora é algo impossível. Dizemos isto,
mesmo, por exemplo, quando um sociólogo
354
brasileiro estuda a sociedade chinesa daqui
mesmo, pois o trânsito de informações, bens e
pessoas entre os países mais pujantes do globo é
tão intenso que acoimados estamos todos nós. É
por isso que a sociologia é uma das disciplinas
mais fáceis e mais difíceis, todos nós sabemos
muito sobre ela, entrementes, tudo o que sabemos
é viciado e atávico. As ciências modernas em sua
maioria são forjadas no século XIX e a sociologia
não foge disso. A Revolução Industrial era o boom
que estava faltando para que houvesse um
deslanche teórico. A sociedade de hoje é a da
terceira onda, ou seja, é a sociedade da
informação. Quem tem informação consegue poder
e quem consegue poder consegue informação.
Todavia, só a informação não basta. Hoje vivemos
a geração dos gênios impotentes entre os quais eu
me incluo. Sabe-se fazer uma bomba atômica, mas
nem todo sábio consegue 600 bilhões de dólares
para o malfadado projeto tornar-se realidade, o que
tem um lado bom. O conhecimento está tão
acessível e popularizado que de acordo com a mão
355
invisível de Adam Smith, a lei da oferta e da
procura, já está sofrendo um terrível processo de
depreciação. É por isso que vemos pobres
engravatados e pessoal do escritório bem arrumado
ganhando menos do que o peão da construção
civil, em que pese o aquecimento deste setor da
economia. Estamos voltando para a sociedade de
guildas e confrarias. O nosso tempo é especial e
esquisito, pois se realizam tendências opostas. O
mundo ao mesmo tempo se globaliza e se
feudaliza. Há uma supervalorização do âmbito
local. De sorte que é mais poder ser Prefeito de
Munique ou São Paulo do que ser Presidente ou
Primeiro Ministro de um país de pouca projeção. A
nossa sociedade é sociedade de tribos. Como nas
metrópoles transitam milhões de pessoas pelas
ruas de sorte que o próprio ser humano se torne
corriqueiro, banal e sem valor, cria-se uma
diferenciação que passa a ser o timbre de pessoas
que comungam de uma determinada cesta de
hábitos e valores. O próprio conceito de
proletariado hoje em dia é amplo demais. Está
356
havendo uma multiplicidade de classes sociais
porque o critério econômico de taxonomia perdeu
sua exclusividade. Em razão da pluralidade étnica,
em função do sincretismo ideológico, conferido à
palavra “ideologia” a acepção mais ampla possível,
o cidadão de um modo geral e sobretudo o citadino
metropolitano já não sabe ou nunca soube quem
ele é. Como diria o filósofo polonês Zygmunt
Baumann, vivemos a sociedade líquida. Ou como
diria o jusfilósofo Miguel Reale, a sociedade do
orgasmo. A geração de hoje se chama épsilon.
Vivemos que o que Schopenhauer chamou de
“democracia representativa” ao contrário da
democracia direta da Antiguidade Grega. No
sentido de que o eleitor conhece muito
superficialmente o candidato em que vota, bem
como os demais. A sociedade de hoje está, como
nunca esteve antes, verticalizada. Mas ao contrário
do ideal kantiano da paz perpétua o que vemos é a
cúpula do poder manejando influência, poder e
riqueza a favor dos interesses pessoais. O mundo
nunca teve uma distribuição de riqueza tão
357
discrepante. Os donos dos meios de produção, seja
produção de energia, de bens, de informação e dos
meios de arrecadação, e agora falamos do Estado,
dominam absolutamente tudo. As igrejas também
são meios de arrecadação, é indiscutível. 4% de
toda a riqueza do mundo seria capaz de promover
excelente padrão de vida para todas as pessoas do
planeta. As sociedades capitalistas são peritas em
iludir os mais pobres de que são ricos e,
relativamente, os pobres cada vez mais pobres. Se
os ricos, nas pegadas de Keynes, emprestassem
aos pobres o seu dinheiro eles fariam o capital se
incrementado de tal sorte que deixariam de ser
pobres e poderiam compensar com juros os
emprestadores com vantagens mais palpáveis do
que os bancos oferecem. A sociologia, como
dissemos, é fruto da industrialização que começa
na Inglaterra por volta de 1750 e se estende até
hoje. Ela reflete rápidas transformações culturais e
técnicas dentre as quais destacaríamos a
passagem da manufatura para a maquinofatura.
Por que a Revolução Industrial ocorre na
358
Inglaterra? Simples, porque ela tem como causa
aquilo que é pressuposto e consequência do
capitalismo: acumulação de mão-de-obra. Uma lei
de 1602 promovia os cercamentos. Ou seja, os
contratos de arrendamento entre nobres e vassalos
eram quebrados e a mão-de-obra agrícola não
tinha mais participação na produção, mas recebia
salário. Desenvolve-se a monocultura de lã e
algodão. As cidades estratégicas ficam inchadas de
pessoas. Cresce a tensão social na cidade e por
conta disso cresce o número de homicídios e
suicídios. O alcoolismo e o uso de outras drogas se
prolifera como forma de aliviar a tensão. São
construídos sanatórios e presídios. Surgem as
gangues. O suicídio pode ser encarado como uma
privatização do sofrimento. A família passa por uma
profunda desestruturação. Cresce a prostituição. O
lado bom é que a posteriori procura-se contornar os
problemas da carbonização. O saneamento básico
é uma prova disso e nos lembra do quão importante
é o banheiro que temos em casa. A escola passa a
desempenhar papel fulcral. Porque ainda que ela
359
seja uma caixa de ressonância a fazer eco às
injustiças que ocorrem fora dela e aspergir-lhe com
água benta, ao mesmo tempo passa a ser um canal
de interferência na formação do caráter e da
personalidade do aluno. Com a sociedade moderna
há uma intensificação da sexualidade e é por isso
que ela é, também, objeto de estudo da sociologia.
Um conceito que vale ser explicitado é o ludismo
que é o movimento “quebra-máquinas”. Já o
cartismo é a participação dos trabalhadores na vida
pública. Surgem os sindicatos. Pensa-se em
planejamento urbano. Há zoneamento das cidades
para comportar área de riscos e de operários, áreas
comerciais, industriais e residenciais. Surge a
necessidade de intensificar a segurança urbana.
Enquanto que a grande e respeitável forma de
saber anterior era a filosofia, especulativa, a
sociologia é essencialmente empírica. No Brasil de
hoje somos vistos pelo mundo como o país do
agronegócio. A bebida, no Brasil, é vista como ritual
de iniciação, inclusive para as mulheres e sempre
em níveis crescentes. A escola brasileira tem sido
360
vista como o cais, o porto seguro em que todos os
problemas serão resolvidos. A escola não é fim em
si mesma, ela é meio e, portanto, não deve ser tido
como uma ilha da fantasia. A diferença entre a
sociologia e a antropologia é que a antropologia,
com Darwin, principia pela estrutura biológica do
ser humano. O negro, só para exemplificar, resiste
mais ao deserto. A antropologia traça relação entre
as instituições e a estrutura. O sociólogo se
preocupa com fenômenos. Hoje um grande número
de mesmas preocupações diz respeito tanto à
sociologia quanto à antropologia. Edgar Morin
observa que a fragmentação dos saberes reflete a
especialização do trabalho e que não devemos nos
preocupar em territorializar os saberes.
Geografia: a ideia de ubiquidade
A geografia começa a se tornar disciplina chave
com as circumnavegações de Portugal e Espanha.
Com o Tratado de Tordesilhas as potências
europeias suso mencionadas se sentem na
361
obrigação de tomarem conhecimento daquilo que
em tese seriam donas. Os lugares mais ermos,
mais inóspitos e mais remotos do planeta começam
a ser desbravados. A geografia, todavia, não se
resume a estudar as características do planeta, da
topografia e da cartografia, mas se preocupa em
que medida estes aspectos materiais e territoriais e
climáticos afetam a vida do ser humano. A
geografia humana é a área de maior concentração
dos geógrafos porque o homem tem o si mesmo
como maior interesse. O lugar de proveniência de
uma pessoa pode definir suas características
físicas, culturais, linguísticas, religiosas e
axiológicas. Élisée Reclus enxerga a geografia
como não só o mais estratégico de todos os
saberes, mas como ferramenta teórica e prática de
emancipação social. A geografia teria o condão de
mapear os problemas e, concomitantemente, de
entregar a solução para os mesmos. A geografia
desenvolvida em seus tratados era chamada de
“crítica” e era assecla do anarquismo. A geografia
seria uma teoria revolucionária de emancipação
362
social e desfazedora de travas do progresso. Em
tempos de globalização a geografia não perde seu
papel, mas o vê ainda mais reforçado: porque as
empresas multinacionais cujas redes situam-se na
América do Norte e na Europa criam unidades nos
países periféricos onde há tolerância a altíssimos
níveis de exploração da mão de obra tal como
ocorria na Europa há dois séculos. Ocorre,
portanto, uma verdadeira transferência de riqueza
dos países ditos emergentes para os ricos. Por
detrás do apelo midiático na televisão e na internet
de uma marca famosa há pessoas reais vivendo
relações jurídicas e econômicas não paritárias e até
mesmo indignas e desumanas a ponto de se
promover uma terrível maceração da pessoa à
mercê de drogas, do álcool e da própria morte que
sobrevém de uma vida sem sentido pela ausência
de realização e pela pletora de sofrimento. O fator
de progresso é fator de degradação. O mundo
material se faz acontecer pelo não ser da pessoa
humana. A mão de obra transfere sua vitalidade
que passa a ficar embutida na mercadoria,
363
instância bruta e morte. É salgado o preço social
que se paga pela industrialização, pelo
aquecimento da economia e, em última instância,
pelo estabelecimento da civilização. A diferença de
câmbio entre as moedas dos países também é
importante. De forma tal que em algumas partes do
mundo mais acentuadamente são produzidos
produtos de tecnologia de ponto e na periferia se
pratica mais agricultura, pecuária e extrativismo. Os
países da periferia exportam matérias-primas que
nos países ricos são processadas e ali agregam
valor e retornam a preço de ouro para os
consumidores daqueles países donde provêm a
matéria-prima. A geografia econômica mostra que
não existe apenas exploração de um indivíduo
sobre outro indivíduo ou de uma classe sobre outra,
mas de algumas nações por outras nações. A ponto
de termos país rico e povo pobre. Os ditos povos
civilizados mantêm sua civilidade às custas da
barbárie que perpetram nas margens do globo. O
capitalismo é tão arrojado que reproduz suas
injustas e suas relações vendendo camisetas com a
364
estampa exibindo o rosto de Che Guevara. É como
o hippie que defendendo seus ideais escreveu um
livro com o título “Roube este livro” porque queria a
todo custo se ver livre das malhas do capitalismo. A
geografia mensura inclusive o status jurídico das
pessoas. Porque em países árabes ainda se
traficam seres humanos e a mulher é objeto de
compra e venda e de outros contratos comerciais.
Há lugares onde ainda se pratica escravidão e onde
ainda impera o canibalismo. Claro que isto tudo
sinaliza a geografia da fé. Pois o cristianismo é a
ideologia, ainda que não seja só uma ideologia, que
mais fomenta a civilidade e abole os maus
costumes. A geografia explica porque, por exemplo,
o Brasil não é servido do Pacífico assim como o é
do Atlântico: a Cordilheira dos Andes desestimulou
a prossecução da expansão das balizas firmadas
pelos capitães do mato e pelos bandeirantes. A
sociedade brasileira que nasce como sociedade
escravocrata em que os brancos fazem indígenas e
negros trabalharem de graça contra sua vontade e
abole este sistema por uma necessidade
365
capitalista. O capitalismo não se coaduna com mão
de obra não remunerada porque quem não tem
salário não adquire mercadorias, o que trava a
circulação do capital. Os povos da Ásia chegaram à
América pelo estreito de Bering unido pelo gelo na
Era das Glaciações e o europeu aqui chega para
adquirir matérias-primas e expandir a fé católica
que na Europa estava perdendo campo para o
protestantismo. Já o negro da costa ocidental da
África é feito cativo pelo seu próximo que trocava o
capturado por quinquilharia dos europeus. Já a
presença alemã no Brasil se deve ao casamento de
Dom Pedro I com a Dona Leopoldina da Áustria,
lembrando que os austríacos são germanófonos.
Também vieram alemães para o Brasil de aquando
das Duas Grandes Guerras. Muitos alemães vieram
para o Brasil crentes de que a Alemanha nunca
mais se levantaria, o que felizmente não se
confirmou, muito pelo contrário. As teorias críticas,
inclusive entre as quais se encontra boa parte da
literatura geográfica, não entende que há uma
classe de homens maus, mas que a injustiça do
366
mundo advém de certas estruturas. É assim que o
negro ladino, isto é, falante do Português, veste-se
como europeu, anda a cavalo e captura pessoas
fugitivas das fazendas ainda que se trate de uma
pessoa de sua mesma cor. Na casa grande, por
outro lado, há fortíssimos laços afetivos entre o
filhinho do patrão e sua ama de leite negra. Na
senzala, não raro, o capataz é negro ou mestiço e
aquando da lei do sexagenário e do ventre livre
houvesse quem preferisse ser escravo a
quilombola. No mundo hoje são realizados cerca de
100 mil voos diários. Isto nos dá uma noção do
quanto o mundo é pequeno. Os aeroportos
concentram-se na Europa e nos Estados Unidos e
e o maior aeroporto do mundo fica em Pequim. A
geografia ainda ocupa-se com a agriculturabilidade
do solo. O Egito, por exemplo, é um grande
importador de comida porque o Nilo não só aduba
as várzeas, mas ainda as saliniza o que gera um
acúmulo tal de sódio que inviabiliza o
desenvolvimento da planta. Nossa caridade por
vezes mata as pessoas. Porque quando vamos a
367
algum país da África onde as pessoas falam algum
crioulo ou mesmo uma língua nativa vemos as
pessoas vestidas com camisetas e bonés com
dizeres em inglês. Hoje se sabe que o ramo têxtil é
o primeiro que tem a capacidade de fazer
deslanchar a economia. Quem em sã consciência
abriria em África uma ficção ou tecelagem se a
roupa vem em fardos e é comercializada a preço
vil? Outra geografia importante é a da água e dos
recursos energéticos, sobretudo petróleo. O Brasil e
o Canadá se encontram entre os países que
possuem as maiores reservas de água potável.
Sempre lembrando que apenas 1% da água do
planeta é doce. O petróleo é outra questão
fundamental para a humanidade. Os EUA que
fazem guerra para se apropriar das jazidas
petrolíferas alheias como as do Oriente Médio e
para fomentar a indústria armamentista conseguem
ser os mais ricos do globo pela predatoriedade. No
Brasil a bola da vez é a Amazônia e o Petróleo,
sobretudo o oriundo daquela matéria fóssil mais
densa encontradiça sob o sal, e daí a denominação
368
“pré-sal”. Hoje já existem tecnologias alternativas
ao petróleo meramente excutido do solo. No Brasil
volta e meia é reeditado o programa pró-álcool que
extrai álcool da cana-de-açúcar. Muito em voga
hoje é o processo de compostagem. Trata-se de
um conjunto de processos químicos que transforma
resíduos orgânicos, como a serragem e partes
animais, em combustível. O problema é o
investimento que a compostagem em larga escala
requer. O problema energético é fundamental para
a geografia porque tais recursos estão dispostos no
globo de maneira desuniforme. Ao que tudo indica,
aliás, é que a vitória é sempre da geografia e por
isso que por dois milênios a Europa mostra-se a
parte do globo mais importante. Com o aumento da
densidade demográfica em poucas décadas será a
Ásia que desempenhará este papel. Como a
humanidade não sabe o que fazer com o lixo que
produz e como está carente de recursos
energéticos, a solução passa por transformar lixo
em energia. O único problema é instrumentalizar
isto do ponto de vista técnico, teórico e econômico,
369
principalmente. A geografia deve ser conhecimento
chave para que é governo. A primeira coisa que
requer administração é a geografia. Claus Maria
Von Clausewitz,o maior teórico das ciências
militares, chama a atenção para o conhecimento
geográfico que um comandante militar deve ter. se
tomarmos um manual militar de sobrevivência
norte-americana, veremos lá que o clima
amazônico, por ser quente e úmido, é o mais
estafante do planeta. Para a oumperiforalogia a
geografia é importante à medida que para ela o
próprio lugar é uma instância cheia de sentido. Sim,
porque a vida tem um sentido diferente na Londres
cinzenta e úmida ou na terra do Sol da meia-noite
ou na linha do Equador. O espírito reage diferente
ao ambiente de Caracas e ao de Jerusalém. Uma
coisa é o metanarrador estar rodeado de matas,
serras e rios e outra estar plantado como um
estafermo em um apertado apartamento embutido
na estrutura de um prédio que é um arranha-céus
dentro tantos outros. A tara dos japoneses por
objetos pequenos, por chips de eletroeletrônicos,
370
etc, mostra um habitante abarcado por um pouco
espaçoso arquipélago que não tem mais para onde
se expandir. Assim como o litorâneo sente um
espírito de liberdade por contemplar de um só golpe
a imensidão do oceano e dos céus. O lugar ainda
pode ter um sentido místico e é assim que se
justificam os movimentos de peregrinação em
Santiago de Compostela e em certos lugares de
Macchu Picchu as pessoas entram em transe. A
geografia deixa de ser cada vez mais a descrição
da Terra em sua forma natural para ser a descrição
do homem é de sua cultura porque não há mais no
planeta lugar intocado pelo homem. O homem firma
sua marca por todo lugar onde passa, nada resta
incólume à sua presença. O lugar físico onde
nascemos, crescemos, estudamos, trabalhamos,
amamos, temos nossa família, pesadamente
impacta a nossa vida. E quando fazemos turismo
internacional percebemos que a nossa cultura é só
uma das culturas possíveis sendo que muito
embora consideremos a nossa melhor, o indiano e
o aborígene da mesma forma consideram as suas
371
melhores. É interessante como todos os ramos do
saber se entrelaçam. E em algum sentido a
geografia é o nó górdio que reúne todas as pontas
teóricas jungindo os saberes. A biologia é produto
da geografia. À medida que lugar relaciona-se com
clima, topografia, flora, fauna, insolação, frequência
pluvial e neveira, é pertinente explicar quem é o
homem através destas conexões. O homem dito
branco foi o que mais impactou a geografia em
todas as suas dimensões, mas ele mesmo é
produto de um processo violento de geografização
ou adaptabilidade geográfica. A raça humana
começa no norte da África, vai para a Ásia, chega à
Índia e da Índia desloca-se ao Ocidente. O homem
branco é, do ponto de vista episódico, o mais
recente e o mais pujante. Na verdade, como a
Europa é fria e o Sol escasso, o nível de insolação
cai muito. A pele negra protege o organismo da
radiação e por outro lado cria um filtro contra o
excesso de vitamina D. De acordo com a
varaibilidade genética, e a prova disso é o
nascimento de albinos no coração da África, de
372
quando em quando nasciam indivíduos claros e
estes se adaptavam melhor à Europa. Porque não
eram achacados pelo Sol e com a perda gradativa
de pigmentação conseguem extrair mais vitamina D
de um ambiente pouco ensolarado. Os escuros
sofriam de carência de vitamina D cujas
consequências sabemos que são doenças
cardíacas, pressão alta, câncer, artrite, reumatoide,
dentro outras. Montesquieu foi o primeiro a associar
conceitos geográficos à legislação povos em sua
obra O Espírito das Leis. E por falar em lei, diria
que a estratégia sistemática do Estado em apenas
os pais com pensão alimentícia não é tanto reflexo
da preocupação de dar guarida ao já nascido e sim
controlar a natalidade mexendo no bolso do varão.
A geografia é importante como ponte de síntese.
Assim que na Turquia há síntese de valores
ocidentais e orientais. Na Galiza se fala o Galego
que aglutina elementos do Português e do
Espanhol, assim como o Catalão é um mescla,
grosso modo, de Espanhol e Francês. O mesmo
pode ser dito em relação à raça, como na Rússia
373
em que há miscigenação entre orientais e
caucasianos. Assim como na Índia e no Paquistão
pratica-se o sikhismo que é a junção do hinduísmo
com o islamismo. O fato de o Vaticano estar
encravado no coração da Itália é fator determinante
para que uma de suas línguas oficiais, seja o
Italiano. O fato de um país não ter acesso a portos
faz depender da boa vizinhança com outras nações
para poder fazer fluir suas mercadorias por mar. A
geografia está relacionada ao tempo. Porque o
Reveillon ocorre primeiro no Oriente e por isso o
Japão é considerado o País do Sol a partir do
meridiano de Greenwich. Os estreitos também são
de grande importância para a geografia como o de
Magalhães, de Bering, de Gibraltar e onde não
havia ou não se conseguiu produzir um estreito
construiu-se o canal do Panamá. O mesmo vale par
ao Canal de Suez no Mediterrâneo. É melhor
passar por um canal a ter que contornar todo um
continente em função de se procurar
navegabilidade. Só a engenharia moderna seria
capaz de transpor os óbices da topografia que em
374
épocas passadas eram intransponíveis pela força
da pá e da picareta.
Religião: a ideia de religação
A religião se refere à ideia de ligar aquilo que foi
desatado. No sentido de quando estamos no
mundo empírico estamos fora daquela conexão
própria que é a antecâmara do mundo empírico. A
humanidade teve vários grandes líderes religiosos.
A seguir citamos os mais importantes. A religião é
importantíssima porque é ela que serve de
plataforma final para que sobre ela seja posto todo
o restante. Cada disciplina é a mais importante a
partir do seu próprio ponto de vista e com a Ciência
da Religião não é diferente. Em torno de 5.000 a. C.
surge Krishna na Índia para propagar aquilo que
seria conhecido como hinduísmo. Os principais
textos do hinduísmo são os Vedas e o Baghavat
Ghita. O hinduísmo está relacionado à yoga que
trabalha espiritualidade com técnicas de respiração.
Para o hinduísmo a alma de um ser humano tem
375
milhões de anos e vai se reencarnando para que
progrida cada vez mais. Em 1.300 a. C. temos Lao-
Tsé na China propagando o taoismo cujo livro
sagrado é o Tao Te King. O taoismo prega a
dualidade de princípios e diz que os seus
seguidores devem seguir o caminho correto. Toma
emprestadas muitas coisas do xintoísmo. O
xintoísmo é religião e filosofia japonesa pré-
Histórica que se caracteriza por culto à natureza,
aos ancestrais e é politeísta. Em 1291 a. C. nasce
Moisés que recebe de Deus a Torá. Ele era egípcio
e conduziu o Povo Hebreu para fora do Egito onde
havia escravidão. Zaratustra remonta a 700 a. C. na
Pérsia. Sua doutrina chamava-se zoroastrismo. O
livro sagrado é o Zend Avesta. Trata-se de religião
monoteísta. Sidarta Gautama, conhecido como
Buda era natural da Índia e não deixou nada
escrito. Contrariando o hinduísmo diz que o ciclo
reencarnacional pode ser quebrado desde que se
aniquile o desejo e o próprio eu e assim será
atingido o nirvana. O jainismo tem como mestre
Mahauira que nasceu em 599 a. C. e prega
376
ascetismo, metempsicose e um de seus símbolos é
a suástica. De acordo com a doutrina, quem nela é
muito experimentado consegue ficar seu se
alimentar ou, como dizem, alimentam-se de luz.
Confúcio é de 550 a. C. e sua doutrina chama-se
confucionismo. Ele é chinês e a obra doutrinária
mais importante são os Analectos. Prega a moral, a
boa vida familiar e a obediência ao Estado. Em 469
a. C. temos Sócrates na Grécia que conferiria
dignidade ao discurso filosófico. Não deixou nada
escrito, mas sua doutrina foi exarada por Platão ao
longo de diversas obras. Jesus Cristo é o fixador do
calendário ocidental é o seu nascimento coincide
com o ano zero. Pregou na Palestina, ensinou sua
doutrina incomparável com tudo o que há neste
mundo e fez muitos milagres. Não escreveu nada,
mas suas façanhas e seus ensinamentos estão
consignados nos Evangelhos. Maomé é de 570 d.
C. e nasceu onde hoje é a Arábia Saudita.
Escreveu o Alcorão, de acordo com ele ditado por
um anjo. É o grande nome dos filhos de Ismael. Ao
lado do judaísmo e do cristianismo é uma religião
377
abraâmica. Francisco de Assis nascido em 1.182 é
italiano e foi um renovador do cristianismo católico.
Viveu a mendicância, a pobreza e a caridade. O
guru Nanada é de 1.469 d. C. e sua doutrina
chamada Sikhismo se difundiu no Paquistão e na
Índia. O Sikhismo é a síntese de hinduísmo e de
islamismo, este último tomado na perspectiva
mística do sufismo. Lutero nasceu em 1.483 d. C.
na Alemanha e traduziu a Bíblia Vulgata de
Jerônimo para o alemão. Foi contra as indulgências
plenárias e ensinou que a salvação vem pela fé.a fé
Bahá’i é do século XIX e ensina que o mundo
espiritual tem uma evolução e uma dinâmica
própria. Krishna, Abraão, Buda, Jesus, Maomé e
Bahá’ulláh seriam autoridades espirituais de acordo
entre si e complementares. A ideia parece-nos
interessante, mas não é fácil pautar a conduta,
dada a pluralidade de doutrinas. Allan Kardec
nasceu em 1.804 d. C. e foi o grande
sistematizador do espiritismo que prega a
metempsicose até que se atinja o espírito luz.
Escreveu vários livros, dentre eles O Evangelho
378
segundo o Espiritismo. Helena Blavatski nasceu em
1.831 d. C. na Rússia e foi a fundadora da Teosofia
e uma de suas principais obras é A Doutrina
Secreta. Trata-se de religião sincrética, mística,
esotérica e de difícil compreensão. Masaharu
Taniguchi nasceu em 1.893 d. C. e sua doutrina
chama-se seicho-no-ie. Ele era japonês. A principal
obra é A Verdade da Vida. Há culto aos ancestrais
(manismo), do cristianismo se ensina o perdão e do
budismo se ensina que o nosso pensamento
determina o que ocorre em nossa vida. Pecotche,
argentino nascido em 1.901 d. C. ficou famoso pelo
pseudônimo Raumsol e criou o que chamaria de
Logosofia. Para a Logosofia o homem é
fundamento de si mesmo e, de acordo com uma
hermenêutica radical, Deus, em obras logosóficas,
seria apenas um conceito. Ao que parece o
budismo também é uma religião ateia. As religiões
orientais são predominantemente filosóficas. Mas
diferem da filosofia ocidental e diferem das ditas
religiões “reveladas” em que o ingrediente fé é
explícito. A religião é o grande sistema de ideias, a
379
perspectiva de mundo e de extramundo, a
metanarrativa que norteia o agir da maior parte da
humanidade. Ter religião não é tanto uma escolha,
mas uma imposição cultural e uma necessidade
psicológica. Mas o fato de sermos culturalmente
influenciados e termos carência e taras psicológicas
não tira o valor da religião assim como a
causalidade apriorística kantiana não é argumento
o bastante para negar a causalidade fora de nós.
Diria que a religião é um fenômeno e por detrás de
cada fenômeno há uma realidade eidética e
essencial inegável. A religião é apenas o elo de
ligação entre o homem e o seu fundamento. O fato
de o homem entender a divindade diferentemente
em cada cultura não causa relativização recíproca
dos pontos de vista contrapostos. Ambos os lados
estão corretos a partir de si mesmos. É neste
sentido que a Bíblia afirma que “muitos são os
dons, mas um só é o Espírito”. Penso que cada ser
humano com suas experiências vivenciais deve
eleger uma via e tentar vivê-la. O que se vê é que a
religião muitas vezes acaba sendo o único caminho
380
de ordenação de vida daqueles que se
desencontram em meio às brumas mundanas. A
religião é um grito de protesto contra a contingência
deste mundo. Não raro se costuma dizer em
relação aos incrédulos que eles se apropinquam ou
pelo amor ou pela dor. E pelo que tenho visto, a
grande maioria vem pela dor. A religião é um
sentimento de dependência de um Ser Superior.
Temos necessidade de dependermos de algo fora
de nós porque somos um nada em relação ao
restante da humanidade e para os sistemas, sejam
eles econômicos, sociais ou políticos. Já dissemos
nesta obra que sobretudo nos grandes centros
urbanos nos sentimos uma nulidade zirótica pela
abundância e concentração dos indivíduos. O eu
relativo precisa do Eu Absoluto. Da mesma forma
que o Eu Absoluto precisa do eu relativo. Na
maioria das religiões, máxime, nas reveladas, vejo
a Divindade ciumenta repressora dos ególatras que
cultuam mais a si mesmos do que a ela. No mundo
empírico estão presos dentro de uma série de
imanências e a religião é o instrumento de
381
superação que nos permite transcender as
circunstacialidades dentro das quais estamos
atados. A matéria é cheia de regras e a religião
quebra estas regras. A religião é sempre um bom
discurso quando o que se tem em mira é a
dignidade do ser humano. Porque se admitimos
que não somos mais que nosso corpo e que nossos
recursos mentais então logo se banaliza a vida.
Adilson Colombi me dizia nos tempos de meu
marxismo ateu que “jogando fora meu cristianismo
eu estaria também me jogando no lixo”. Na
verdade, o fato determinante de meu ateísmo na
época da adolescência era mais por questões
afetivas, pois meu pai era um rançoso católico sem
prática e eu estava exprimido entre o ceticismo da
filosofia e a opressão religiosa familiar discursista e
hipócrita. Prega-se, em geral, cristianismo, mas
vive-se qualquer outra coisa, menos cristianismo. A
religião é a um só tempo promotora de civilidade e
de barbárie. No entanto, o saldo é mais positivo do
que negativo. A força religiosa é sempre a mais
forte. Ela é a mais forte por ser mias popular e por
382
ser criada como uma instância cuja legitimação
vem do além. Não raro, líderes religiosos foram
líderes militares e a Guerra do Contestado é um
ótimo exemplo disso, ainda que os tais monges,
fossem charlatães. Frei Caneca seria um dos
mentores da Revolução Pernambucana. Na
teologia católica o marxismo foi apropriado por
religiosos católicos na América Latina e marxizaram
a Bíblia e biblicizaram Marx. O sincretismo é marca
de várias religiões. Porque a maneira de conservar
vivo algo velho é fazendo periódicas reformas e
aglutinando elementos externos. O catolicismo na
América Latina, sobretudo nos países de Língua
Espanhola, aglutinou a cultura indígena, enquanto
no Brasil a assimilação se deu em relação à cultura
afro. O cristianismo primitivo assimilou muito do
paganismo greco-romano. Os gnósticos foram
reprimidos, mas nenhum papa ou outro pontífice
sozinho consegue apagar o rastro de toda uma
civilização. A religião ajuda a organizar o nosso
tempo e a dar sentido a ele. É assim que no
Ocidente folga-se aos domingos e mui lembrados
383
são a Páscoa e o Natal. Sendo que a Páscoa Cristã
é diferente da Páscoa Judaica e o Natal foi o
aproveitamento do dia 25 de dezembro dedicado ao
deus sol para nele se celebrar o nascimento de
Cristo. A religião, de acordo com Jung, é um
sentimento mais forte do que a sexualidade.
Discordando do que afirmara seu mestre Freud.
Para nós ocidentais talvez não signifique nada que
um indiano fique décadas com o braço
perenemente erguido, mas para a cultura daquele
asceta isto denota santidade. O próprio celibato
praticado pela maior denominação religiosa do
Brasil já não é bem aceita ou sequer valorizada.
Esta é a loucura da qual fala Paulo de Tarso, autor
de várias epístolas. A religião é a grande prova de
que o intelecto humano sozinho não dá conta de
tudo explicar e de se autossatisfazer. O homem não
basta a si mesmo. E isto é tão real que daí nasce a
poesia, a literatura e as artes em geral. Mas nem
toda a arte do mundo é capaz de exercer o papel
de Deus, prerrogado que é de muitos papéis. A
religião nem sempre é o melhor aferidor da
384
idoneidade de uma pessoa. A pessoa pode ser
muito religiosa e guardadora de ritos, sem
compreender o âmago daquilo que lhe serve de
justiça própria. Todavia, ainda que religião não
pague conta e não sirva de fiança, atrevo-me a
dizer que, em linhas gerais, as pessoas praticantes
de uma religião apresentam um padrão ético algo
melhor do que os não praticantes. Apesar de casos
de pedofilia as igrejas de um modo em geral e as
autoridades religiosas são as instituições e as
pessoas que contam com a maior credibilidade
social. No passado do Ocidente religião e política
estavam não só ligadas, mas em comistão. De
modo que quem fosse autoridade religiosa teria
poder político e quem fosse político teria espaço na
estrutura eclesiástica. Em sociedades do Oriente
religião e política continuam integrando um bloco
monolítico. Isto ocorre entre os árabes e no Tibete
da teocracia do Dalai Lama. Numa sociedade em
que tudo se consome e gastamos as massas são
premidas a se afiliarem a uma denominação e a
contribuir com o dízimo. Assim como num mercado
385
os produtos estão expostos em prateleiras hoje
existe o shopping da fé com direito a canal de
televisão, emissora de rádio e jornal próprios.
Assim como nos sentimos mal em admitir que não
somos torcedores de nenhum time de futebol de
igual maneira e com maior razão nos sentimos
obrigados a nos submetermos ao alpendre de uma
instituição para evitar diatribes proselitistas. A
religião é o melhor caminho, melhor até mesmo do
que a política, para uma pessoa simplória tornar-se
alguém socialmente relevante. A religião ao lado da
linguagem, até porque não há religião sem
linguagem e há quem diga que a religião nasce do
encantamento da linguagem, é o que faz diferir o
homem do animal. O animal é ateu radical. No
sentido de que para ele não lhe ocorre no intelecto
e não faz a menor diferença Deus existir ou não.
Nos tempos de pós tudo em que nenhuma ideia de
largada é de todo absurda vem bem a calhar o
discurso de que Deus é amor. O Senhor dos
Exércitos de outrora, o Deus exterminador é
substituído pelo Deus hippie. Esta noção de um
386
Deus complacente nos torna frouxos. Sim, porque o
pecado, para quem admite este conceito, não nos
afeta ainda que estejamos claramente conscientes
dele. Ouvi um ministro de confissão religiosa dizer
“Deus gosta que pequemos para poder nos
perdoar”. Alto lá! Uma questão de ordem! Deus não
gosta de pecado e não quer que pequemos por
mais imensurável que seja sua graça. Pois ainda
que Deus não punisse nossas faltas liberando
perdão antes da intenção mesma de pecar é certo
que vivemos numa sociedade de controle total,
inclusive da mais íntima privacidade e com ela não
tem “love”, tem “hardpower”. Numa sociedade de
relativa liberdade de pensamento e expressão
vemos uniões entre ambos os pais incrédulos se
não exatamente ateus. E o que ocorre? Pois bem,
os filhos de pais ateus buscam encontrar-se na
religião que em momento algum foi ministrada no
seio familiar. Outra hipótese é a de casamentos
mistos em que cada genitor professa uma fé e os
filhos são disputados ou mesmo outorgando-lhes
decisão própria devem fazer uma opção radical que
387
alterará a relação com ambos os pais em que o
fator afetivo entrará como causa e consequência.
Cada vez mais discursos não religiosos, não ao
menos do ponto de vista do mais rigoroso e estrito
papel da religião tradicional. Todavia, o que se vê é
que as neorreligiões, que ao mesmo tempo são
pseudorreligiões, não conseguem responder
integralmente aos anseios da alma humana e
sempre remanesce um cadinho de angústia e de
perplexidades existenciais não resolvidas. Porque
toda instância vicária é incapaz de realizar com o
mesmo primor aquela função que cabe aos
revestidos de titularidades. Todo o saber se
apresenta como técnica explicativa, porém, nem
toda explicação consegue atribuir sentido àquilo
que se explica. A batalha dos filósofos irreligiosos é
uma batalha perdida. Não só porque enquanto
existir humanidade existirá religiões, mas porque
tenho visto que certos homens que abandonam sua
religião passam a acreditar em crendices mais
bizarras e mais primitivas. Como diria Edmund
Burke “a superstição é a religião dos que não tem
388
religião”. Trata-se de paráfrase. Tomando uma ideia
emprestada da informática, querer organizar a vida
familiar, profissional e econômica prescindindo-se
da dinâmica espiritual é como querer usar o
Windows sem primeiro instalar na máquina o DOS
sobre o qual os softwares mais leves estão
calcados. Por mais que os teóricos expliquem a
religião como consolo, hipostatização dos ideais
humanos, alienação mental, fantasia de desejos
não realizados e mesmo que tais perspectivas
teóricas tenham alguma razão, a religião é mais
que tudo isso. O povo precisa de pastores e não de
intelectuais. A atitude de um mártir tem muito mais
valor do que o ensinamento de um erudito. Jesus é
o homem perfeito porque coonesta com o sacrifício
da própria vida aquilo que ministrou com sábias
palavras. O sacrificar-se pela lição é a prova
irrefragável que todo discípulo espera de seu
mestre.
Formas primitivas da vida religiosa: a ideia de alma
389
Neste tópico voltamos a algumas reflexões
antropológicas porque o homem só é compreendido
dentro de um processo evolutivo orgânico,
neurológico e cultural. A partir de dado momento o
homem começa a crer que a imanência não se
esgota nela mesma. É assim que Malinowski com
muita propriedade observa o uso de amuletos. No
sentido de que aquele penduricalho no colar de
meu pescoço não é apenas um enfeite, mas um
receptor de fluídos positivos que me potencializa
para o sucesso e o êxodo. A religião nasce pela
subjetivação daquilo que é objetivo. Os
preconceitos passam a ser tomados como mais
importantes do que a objetividade dos fatos. A
primeira etapa da fé coincide inteiramente com a
feitiçaria. O líder espiritual é aquele que executa os
rituais que esconjuram a favor do pedinte as forças
ocultas que determinam os caminhos e os
descaminhos das coisas. Nesta fase tudo está
cheio de espíritos. Isto se chama animismo. A
ponto de o canibal crer que o alimentar-se do
cadáver do opositor vencido se traduz na aquisição
390
da força daquele guerreiro. Trabalha-se com as
forças do mal e do bem ao mesmo tempo e até
parece haver uma primazia das forças do mal. A
religião nasce e se fortifica com a divisão social do
trabalho, com a complexificação do grupo e com a
concentração demográfica. Porque a partir do
momento em que há tantas encomendas de feitiços
a ponto de justificar a existencial social de alguém
que só se ocupe com isso e nada mais, a tendência
é acentuar o papel desta forma primitiva de
religiosidade. A par e paralelo ao mundo real vai
sendo construído o mundo espiritual. Não estranha
também que o feiticeiro seja um dos mais velhos da
tribo porque o ancião já não mais tem força para a
caçada e precisa forjar um papel social que
justifique sua utilidade dentro do grupo. O feiticeiro,
num primeiro momento acaba cumulando o papel
de líder religioso, médico e juiz. E os problemas de
saúde são tratados espiritualmente além do ritual
material em relação ao qual algumas tribos creem
que quanto mais dolorido o procedimento,
crescente é a sua eficácia. A feitiçaria também é o
391
reconhecimento da pouca desenvoltura da técnica
de uma coletividade de modo que a ingerência
sobre o mundo natural só se medeia por formas
mágicas e encantadas. A religião, logo quando
nasce, pode promover os fracos e rebaixar os
fortes. Justamente porque seus critérios são
heterodoxos daqueles oriundos do mundo
puramente físico. A religião também surge como
primeira memória. Porque os mortos passam a ser
cultuados. Crê-se que o corpo perece, mas o
espírito invisível transita nos lugares onde o finado
em vida permanecia quando atado ao corpo. A
ideia de alma é a abstração da personalidade.
Como se o corpo físico fosse à falência, mas a
personalidade permanecesse incólume. A vida
religiosa primitiva também principia por culto a
árvores, a animais, e passa a se deslocar para culto
de animais fictícios como se entre os egípcios
mistura entre jacaré e ave, leão e mulher. Também
o culto passa a ser de princípios e forças naturais
como a chuva, o vento e o trovão e de corpos
celestiais como a Lua, o Sol e outras estrelas. A
392
observação das estrelas começa a ser tão
intensamente praticada que dela nasce a astrologia
que é crença da influência de uma determinada
conjuntura de astros no dia do nosso nascimento
sobre nossa personalidade. O determinismo
inexorável dos gregos decorre desta ideia de ver o
homem como lançado sem proteção às forças
tirânicas e cegas da natureza. As forças da
natureza, por sua vez, seriam o epifenômeno de
arquétipos espirituais. A religiosidade primitiva
também cumpriu o papel que as religiões mais
desenvolvidas cumprem até no dia de hoje.
Referimo-nos à integração da experiência. Sim,
porque a religião é a racionalidade nascem juntas.
Até porque racionalidade e irracionalidade são
complementares. A religião é a representação de
mundo que me permite superar a fragmentação da
experiência. Ela junge tudo numa perspectiva mais
ou menos harmônica. A religião é o primeiro nexo
de causalidade, como apontou Kelsen. No sentido
de que a religião primitiva inculca no homem que se
ele agir de forma má o mundo conspirará contra ele
393
e, se pelo contrário, ele agir bem, o mundo
conspirará a seu favor. A religião primitiva é a
primeira metanarrativa engendrada pelo homem.
Porque este mundo passa a ser concebido como
extensão de outro mundo, muito superior ao nosso.
Isto fica claro no mito da caverna de Platão. E a
nossa vivência neste mundo passa a ser encarada
como um estágio probatório. Em razão de uma
queda é que viemos parar neste infeliz lugar. E as
tristezas desta vida não se comparariam à glória da
vida futura se aprovados fôssemos nesta
substância. A ideia central de religião é encarar o
mundo como passagem. A religião ensina
desapego e provisoriedade. Como diria Buda, este
mundo é uma ponte, devemos passar por ela, mas
não construir uma casa sobre ela. Gerações vêm e
vão e nem um jota dos livros sagrados é suprimido
ou acrescentado. Lembrando que o jota equivale ao
iota, menor letra do alfabeto grego. Do iota procede
o jota e o “i”. As formas elementares da vida
religiosa eram muita consuetudiárias, ou seja,
assentadas em costumes. E ao que parece a
394
redação dos livros sagradas vem a ser uma
exaração de hábitos surrados e já consagrados
pelo decurso do tempo. É assim que a Lei Mosaica
retrata em maior ou menor medida uma tradição
egípcia antiquíssima. E mesmo o Alcorão sendo um
texto mais recente ele retrata uma mentalidade
própria dos tempos antigos em que Abraão viveu.
Talvez esta seja a diferença básica entre filosofia e
religião, ou, ao menos, um delas: o filósofo pensa e
imediatamente escreve, já a religião acontece,
acontece, acontece, e só muito depois ela se
corporifica no papel. A religião nasce junto com o
direito. Pois num primeiro momento não há direito
puro e é a religião que diz quem tem direito a que.
A religião também assinala a mudança do
matriarcado pelo patriarcado. No sentido de que a
fêmea passa a ser fêmea de um único macho, o
que liquida com o problema de se saber quem é o
pai da cria. A religião é o que estabelece os
fundamentos do Estado. Porque depois que o
Estado está fortíssimo e gigantesco ele se separa
da religião, mas se não fosse ela ele sequer
395
existiria. Não é por acaso que o anarquismo é a um
só tempo negação do Estado e da religião. Religião
é princípio, teórico, de poder, de aglutinação e
Estado é isto também. Porque o Estado é o que
confere eficácia aos ditames da religião. Porque
num primeiro momento a religião vem a ser uma
imposição e não uma opção pessoal. Isto contradiz,
por exemplo, o espírito do cristianismo, porque
enquanto o Cristo é compassivo com o mal, tendo
doze legiões de anjos a seu lado, agoniza três
horas na cruz enquanto que a cristandade se
organiza militarmente mediante as cruzadas e
burocraticamente com o Tribunal da Inquisição. E
esta crítica não afeta o catolicismo, mas o
cristianismo com um todo conquanto em dado
momento aquela cristandade era a única possível.
Com a separação entre Estado e religião só a lei
remanesce compulsória e a moralidade religiosa é
relegada para o foro íntimo de cada indivíduo. Não
há imposição legal de religião hoje, mas continua
havendo imposição social, sobretudo no âmbito
familiar. Pois abdicar de uma perspectiva religiosa
396
poderá equivaler a uma ruptura com todos os
relacionamentos estratégicos. A religião também se
mistura com os ritos iniciáticos que nesta obra
recebem um capítulo à parte. Porque a religião
impõe critérios de ascensão social. É a religião que
confere a aquisição da capacidade nubencial. Não
basta apenas o preparo biológico, exige-se ainda o
preparo social em que o aferidor é o sacerdote. A
religião nasce com a ideia de alma e de julgamento
desta alma. Porque se existe alma é de se admitir
que haja quem governe esta entidade. Os conceitos
chaves da religião são Deus e alma. Em relação à
divindade começa-se sempre pelo politeísmo. Aí
então é eleito um deus que é mais que outros
deuses e então logo se reconhece um só Deus e as
outras forças espirituais são reduzidas a anjos.
Como no mundo empírico nem tudo é um mar de
rosas, admite-se a rebelião de uma parcela dos
anjos como ferramenta hermenêutica necessária
para explicar a gênese do mal no mundo. E o
homem passa a estar dividido ou no máximo
disputado entre estas duas forças. A religião
397
também nasce como representação de mundo
enquanto não se desenvolve o pensamento
filosófico. Ela é filosofia e literatura. A filosofia se
caracteriza por tentar se livrar dos pressupostos e
dos corolários injustificáveis, mas o máximo que
consegue é transformar Zeus em motor imóvel. O
que ocorre é uma reificação da linguagem. A
linguagem fica impessoal, abstrata e genérica. Já a
literatura perde sua função de metanarrativa para
se tornar exercício mental e emoção enlatada. Há
muitas pessoas que entram em crise quando se
debruçam sobre a etiologia e desenvolvimento da
religião e quando vislumbram a pluralidade de
perspectivas religiosas. Porque os estudos
genéticos acerca da religião acabam gerando a
impressão de que ela é irredutível a processos
psicológicos sociais, culturais e históricos e a
pluralidade de perspectivas religiosas faz com que
um ponto de vista relativize o outro. De toda sorte
diria que os grandes estudiosos, senão todos boa
parte deles, continuam tendo suas verdades
pessoais resguardadas, em que pese o discurso da
398
sociologia, da antropologia, da filosofia, da
psicologia, etc. O estudo tem esta característica
duplamente frustrante e os meus colegas que estão
mais adiantados do que eu e fizeram doutorado que
o digam: a uma, porque estudar um fenômeno
equivale a destruir este fenômeno e, a duas, porque
o estudo que pretende esgotar objeto sobre o qual
se debruça sequer arranha o seu verniz. Nas
sociedades da Antiguidade a religião tinha um peso
enorme. A religião só passa a perder espaço no
Ocidente com a chamada secularização. A filosofia
é a grande promotora da secularização seguida
pela ciência que passa a interferir nos mesmos
espaços antes reservados à religião. De todo modo,
por mais que a filosofia, a ciência e a técnica
evoluam, a religião terá seu espaço justamente
porque até mesmo do ponto de vista neurológico
toda a evolução do próprio homem e do universo
está escrita no homem e a religião é um dos
capítulos mais importantes desta História. O ensino
religioso não deve ser ministrado na escola pública,
mas não significa que o ensino público deva ser o
399
único lócus do ensino. Todos precisamos de ensino
religioso e penso que ao menos disso as igrejas
deveriam se incumbir. A religião desde os
primórdios esteve ligada à sexualidade. Desde o
começo ela pautou o comportamento sexual.
Talvez o cristianismo tenha reprovado o incesto
porque o contrair núpcias com estranhos equivale a
ampliar minha rede de relacionamentos afetivos.
Religião é ordem e a maior desordem é a
promiscuidade. Freud quis libertar os neuróticos e
os psicóticos de suas taras e fulminou, por isso, a
religião. Mas não se percebe que a religião não se
presta para oprimir. A religião serve par orientar. E
quando ela impõe uma norma proibitiva é claro que
passo a correr o risco de desejar algo proibido. Mas
só por isso não posso dizer que é proibido proibir.
Porque o direito sem limites equivale à máxima
injustiça. Não se vislumbra escravidão em larga
escala e um imperador com superpoderes ou um
trabalho arquitetônico como as pirâmides do Egito
senão mediante um intensivo, exaustivo,
extenuante e maciço discurso religioso. No Japão,
400
em tempos pré-Ocidentais, o imperador era
celebrado como deus. A religião é a mestra da
economia e da política. Alternam-se nessa tríade,
em épocas diferentes, a primazia ou da política, ou
da economia ou da religião. A característica da
religião é ela mesma ser uma perspectiva
autônoma em si. Assim sendo, pessoas diferentes
de distintas classes sociais podem somar forças
dentro do espaço religioso. A religião é sempre um
pretexto para a comunhão. Quando todos os outros
recursos estão desgastados é a religião que tem a
capacidade de unir os homens em favor de uma
dada causa. Além de ser um discurso totalizante a
religião é mais compreensível ao homem comum
do que a filosofia ou a ciência. Em tempos de
pouca desenvoltura da racionalidade enquanto algo
social e coletivo a religião se mostra insubstituível.
Porque todos os discursos posteriores que vieram a
exercer um papel semelhante ao da religião eram
herméticos e, se se vulgarizaram, foi ao preço de
Marx negar ser marxista e reduzir a psicanálise a
um pansexismo. Aliás, esta diferença entre a
401
compreensão vulgar da religião e o conhecimento
erudito é a marca de tudo o que há no mundo de
notório. Na psicanálise, no marxismo, e em todas
as religiões há a doutrina exotérica e a esotérica. A
religião desde os tempos antigos cria no homem a
sensação de acessar aquele oculto que não se
vislumbra em nenhum outro lugar. A religião
também, desde os tempos imemoriais, cria a noção
do sagrado. Etimologicamente, o sagrado é o
antônimo do profano. O sagrado é, por definição,
algo que não se vende. E por incrível que pareça
há uma palavra para designar a comercialização do
sagrado, simonia. A religião sempre se caracterizou
por produzir no homem estados de consciência
alternados. É assim que se fala que um sujeito está
endemoninhado, é assim que se fala em estado de
transe ou glossololia. A religião é essencialmente
paranormal. Através da religião podem acontecer
curas de enfermidades mentais ou mesmo
somáticas. A experiência religiosa pode ser
caracterizar pela premonição, também chamada de
profecia e pela iluminação, em que o sujeito
402
descobre um princípio espiritual até então velado,
seja para sua própria vida ou para toda a
humanidade. A ideia de sacrifício também está
presente em praticamente todas as religiões. Nas
religiões primitivas, entre as quais se encontra o
druidismo há inclusive sacrifício de vidas humanas
para apaziguar a fúria da divindade. Deus, de
acordo com Norberto Bobbio, é um ser que só tem
direitos. Todos precisam dele e Ele não precisa de
ninguém e tudo o que Ele faz não é por obrigação,
mas por generosidade. Deus, nas religiões
propriamente ditas e caracterizadas e não naquelas
que transitam entre a filosofia e a religião, é um Ser
que se compraz em credor de toda dignidade,
consideração, adoração, louvor, elogio e exaltação.
Feuerbach observa que quanto mais imperfeito e
pobre o homem, mais perfeito e rico é seu Deus. O
que o homem efetivamente é condiciona o modo
como ele representa seu Deus. Agora, o que
Feuerbach faz é um salto: dizer que a nossa
representação de Deus é o próprio Deus e que
quando o homem deixa de representar. Deus deixa
403
de existir. Nada autoriza supor que aquilo que
imaginamos exaura tudo o que está por detrás e
por cima da imaginação como se não houvesse
nada além da imaginação. O fato de eu fazer uma
determinada ideia sobre uma pessoa e depois
verificar que esta ideia era equivocada não me
autoriza supor que esta pessoa nunca existiu. O
fato de eu errar um cálculo não retira da
matemática a sua consistência platônica. Apenas
mostra que eu tomei o errado pelo verdadeiro.
Judaísmo: a ideia de um Deus único
O judaísmo é uma religião semita que principia com
Abraão. Abraão torna-se pai quase centenário e
não nega seu filho ainda que filho único. Aí então
Deus se agrada da atitude de Abraão, livra Isaac de
ser sacrificado e promete a Abraão ser pai de
nações. O judaísmo cultua um Deus que afirma
acerca de si ser único e, portanto, único verdadeiro,
conhecido por EU SOU ou pela tetragrama YHWH.
Trata-se de um Deus que faz aliança com aqueles
404
que seguem seus preceitos e se mostra intolerante
e sectário. Deus reprova casamentos mistos e
manda passar ao fio da espada quem cultua outros
deuses que não Ele. Estes outros deuses são
chamados demônios e o Deus de Israel é poderoso
e fazedor de prodígios. O Deus de Israel cobre todo
o globo de água e faz o Mar Vermelho se abrir.
Nada mal para uma época em que se pensava que
os deuses moravam nos oceanos e nas águas de
um modo em geral. O Deus de Israel manda as dez
pragas para o Egito para humilhar as dez maiores
divindades egípcias. O Deus de Israel é legislador
e abençoa quem cumpre a lei a amaldiçoa quem a
desrespeita. Como toda lei, inclusive a de Deus,
existe para ser cumprida, mas, não raro, é
descumprida e, como a pena ao descumprimento é
a danação eterna, a morte das mortes, só a morte
pode remir aquilo que diz respeito à morte. Daí que
o animal verte o seu sangue e é esfolado para
substituir aquele que deveria receber a pena, o
próprio homem. O Templo passa a ser o maior
banco, o maior açougue e o maior palanque
405
político, além da maior casa de oração. O judaísmo
é uma religião legalista. E justamente em razão
deste fato pode ser a coisa mais bela do mundo ou
a mais fria. Porque o propósito do judaísmo é jungir
os aspectos internos (espiritualidade) aos externos
(comportamento). Assim, se o que se manifesta no
mundo fenomênico for expressão da mais profunda
compreensão e vivência da Torá haverá ambiente
de santidade. Mas se apelo para subterfúgios, para
burlar os aspectos jurídicos da lei, então cumprirei
ela por fora e a esvaziarei de sentido por dentro. É
neste sentido que os profetas falarão que devemos
rasgar os corações e não as vestes falarão que
devemos circuncidar o coração e não a carne.
Porque não faz sentido recolher o dízimo até sobre
a erva com a qual preparo meu chá e deixar os pais
passarem necessidade. Não se deve coar um
mosquito e engolir um camelo. De nada adianta
praticar o jejum duas vezes por semana e não
realizar a caridade para com o estrangeiro, o órfão
e a viúva. A higiene é importante, mas zelar pela
limpeza de pratos e jarras é menos importante do
406
que zelar pela pureza dos lábios, refiro-me às
palavras que lançamos ao ouvido alheio. O
judaísmo é uma religião dualista ao extremo: de um
lado a dureza da vida na sua concreção desértica e
do outro um Deus riquíssimo. O judaísmo é essa
tensão espiritual entre a Jerusalém real e a
Jerusalém espiritual. O judaísmo é o que mantém a
unidade de um povo trucidado por recorrentes
diásporas. O judaísmo, os meus amigos cristãos
que me perdoem, é mil vezes mais realista do que
o cristianismo. Mas eu ainda prefiro ser cristão. O
judaísmo faz entender que o talião não é um
retrocesso, mas, no momento certo, um avanço.
Porque se alguém me privou de minha orelha,
extirparei uma única orelha de meu oponente e não
as duas. Trata-se de um refreamento à vingança
privada. Os judeus são escravos do sábado. É
certo ter um dia dedicado a Deus. Mas não me
sinto bem nem entre judeus que sequer acionam o
disjuntor na parede para acender ou apagar uma
lâmpada e nem entre ocidentais para quem muitas
das vezes o domingo é um dia como qualquer
407
outro. O descanso é o momento ímpar em que
recompomos nossas forças para trabalhar outros
seis. O judaísmo tira sua força da tradição escrita,
chamada de masorética. A cultura judaica é
extremamente voltada para a escrita. É uma cultura
de muita leitura e de muita erudição. Valoriza-se
por demais a palavra. A vantagem da cultura
transformada em texto é que ela pode renascer das
cinzas e foi justamente isto o que aconteceu com o
hebraico. A cabala é uma tradição paralela que
trabalha com o valor numérico das letras do
alfabeto hebraico. Segundo se diz, os anjos teriam
ensinado a cabala a Adão e este teria transmitido a
tradição aos seus descendentes. Além disso os
rabinos são filósofos-teólogos peritos na arte do
comentário. O Talmude é uma compilação de
entendimentos interpretativos e jurisprudenciais
acerca da Torá. Embora os rabinos não possam ser
nominados de filósofos, pois não são
independentes como os pensadores gregos,
aplicam a racionalidade filosófica aos textos
sagrados. Maimônides é o grande nome na filosofia
408
entre os judeus. A liturgia judaica possui sete festas
distribuídas ao longo de um calendário próprio:
Páscoa, pães ázimos, primícias, da colheita, do
perdão, das trombetas e dos tabernáculos.
Consideram o porco e outros animais impuros.
Trata-se de gente dominadora e intransigente.
Perdem muito e ganham muito por serem avessos
a composições e acordos. Em linhas gerais, apesar
das reiteradas perdas, parece tratar-se mais de
uma História de vitória justamente porque sempre
emerge um remanescente. Ao mesmo tempo são
uma das culturas mais fechadas do mundo e, de
outro lado, há um consenso de que se trata de uma
cultura internacional. É importante dizer que vários
eram os povos semitas e que a maioria deles
cultuavam a outros deuses que não o Deus invisível
dos israelitas. Os judeus eram monoteístas
enquanto sua parentela era politeísta. Em nome do
verdadeiro Deus os israelitas ao longo de séculos e
séculos promoveram o extermínio de seu
semelhante numa verdadeira indústria fratricida. E
eles nem podem ser reprovados por isso enquanto
409
outros deuses, falsos, supostamente expediam
comandos da mesma natureza. O judeu foi
inventando a si mesmo ao longo dos séculos.
Criou-se um arquétipo de judeu e quem não está
absolutamente alinhavado com o padrão é espúreo.
Assim é que os samaritanos são rejeitados pelos
judeus. O próprio hebraico comportando a variante
dialetal do aramaico já mostra uma cisão cultural. O
judeu ortodoxo e essa figura quase folclórica
daquilo que viria a ser um judeu cem por cento. Na
Alemanha também se discutiu o que era um alemão
e chegou-se a dizer que o verdadeiro alemão coça
a orelha esquerda com mão direita e usa luvas de
couro de búfalo. Como se vê, tudo isto é um grande
exagero. O judaísmo é pesado para o não judeu e
para o judeu. Porque dentro do judaísmo há um
nível de vigilância, controle e punição muito
exacerbado. Quem nasce numa família ocidental
entre trancos e barrancos pode escolher qual
religião seguir. Mas quem nasce numa família judia
não tem escolha, ele é propriedade da comunidade
judaica. Se antes de um varão ser gerado se define
410
que ele será rabino então rabino ele será,
impreterivelmente. Nós temos nossos próprios
projetos, mas a sociedade tem os projetos dela
para nós. A lei judaica é rigorosa e dura e visa
regrar a vida de um povo que, quando introduzidos
no ambiente do ordenamento jurídico, levavam vida
duríssima. A pergunta que se faz é: por que impor
uma dura lex sed lex para um povo que já padece
circunstâncias climatológicas, geográficas,
ambientais e epidemiológicas adversas? A resposta
é simples: o ambiente áspero recrudesce os
espíritos e uma lei suave seria incapaz de
disciplinar um povo de dura cerviz e viabilizar a
convivência em sociedade. O judaísmo é
rememorativo, atávico e ensimesmado. Nenhum
outro povo tem uma identidade tão forte como o
judeu. E parece que do ponto de vista intelectual
esta onímoda cultura instila uma dose cavalar de
criatividade nos intelectos que se revelam. Porque
quem sai de uma plataforma muito hermética sente
necessidade de criar uma substituta semelhante
para si mesmo. O judaísmo é o discurso ideológico
411
e espiritual mais adequado e conveniente a um
povo marcado por perseguição, luta, trabalho e
esperteza. O judaísmo tem a ímpar capacidade de
recriar a si mesmo. Ele aparta o judeu do resto do
mundo e diz que o mundo é dos apartados. Que
quem não é assecla é inimigo. De tanto sofrer o
exercício de poderes despóticos o judeu aprendeu
a conquistar o poder. O judeu consegue colocar
outros homens para trabalharem pelo seu negócio
e é obcecado pelo domínio dos meios de
comunicação social. Eles possuem grande trânsito
nos escalões da alta política, das organizações
financeiras e dos movimentos midiáticos mundiais.
O judaísmo é verticalização de normas. As normas
são hierarquizadas. É assim que não posso rachar
lenha no sábado, mas posso salvar uma res que
atolou-se no tremedor. O mesmo legislador que
protege a vida preceituando “não matarás” é o que
determina a execução dos adoradores do bezerro
de ouro. Porque é mais importante honrar Deus
com a morte do que os homens com a vida. Os
judeus são os que menos se ressentem de ter de
412
cortar na própria carne e a maldição contra o
filósofo Baruck Spinoza é a grande prova disso.
Infelizmente, a maioria das igrejas se desfazem dos
membros problemáticos quando o conselho
evangélico sugere exatamente o contrário. O
ostracismo de membros do seio da comunidade
para sabe-se lá onde ficarão extrusos produz
membros lindeiros: o sujeito é e não é judeu ao
mesmo tempo. Quando ele está em apuros não há
quem lhe ajude, e quando consegue ficar famoso é
alardeado para todas as direções de que se tratava
de um judeu. Sinceramente, às vezes me passa
pela cabeça escrever o meu próprio livro sagrado e
fundar minha própria religião. Mas tenho visto
também de que o mundo não está carente de
religião, está carente de quem se proponha vivê-
las. O pecado é uma escravidão, mas não é porque
alguma instância, como um código de normas, tem
o poder de quitar a dívida do pecado, que a pessoa
esteja livre. Porque posso sair de uma prisão para
ser trasladado para um regime prisional, talvez até
mais brando, mas que continua sendo um
413
ergástulo. O judaísmo precisa ser compreendido
historicamente e dentro de um contexto. Porque foi
uma plataforma de dispositivos e institutos que
cumpriu um papel importante, trasladar acerca de
um milhão e seiscentas mil pessoas mais os
rebanhos da terra da escravidão para a Terra
Prometida. Agora que o Estado de Israel tem
reconhecimento internacional, assim como toda
outra forma de racionalidade, o sionismo deixou de
ser importante. Como sentido algum faria o
discurso de esquerda em sociedade de plana
justiça social. O judeu sabe que o judaísmo é
essencialmente messiânico, sobretudo para quem
lê Isaías e Jeremias. Então se ele aceita Jesus
como Messias, então ele já não é mais judeu e sim
cristão. Admiro, particularmente, os judeus
messiânicos. Porque olham para as Sagradas
Escrituras a par de duas óticas. Pois
frequentemente o Antigo Testamento é posto em
desapreço pelos cristãos. Assim, não se
compreende o Novo porque ele é a consumação do
antecedente. Em linhas gerais o judeu fica com a
414
Tanach (A. T.), o cristão com o N. T. e o judeu
messiânico com os dois. E os judeus messiânicos
estão divididos entre aqueles que aceitam Jesus
apenas como messias e aqueles que o aceitam
como messias e Deus. quem salta o A. T. não
entende absolutamente nada nem do antigo e nem
do novo. Os cristãos pentecostais, ao menos
alguns deles, afirmam que a besta será a figura que
será tida por messias para aqueles judeus que não
reconhecem a Cristo e ainda esperam o salvador.
O Antigo Testamento é um conjunto de textos que
são genealógicos, históricos, narrativos, crônicos,
informativos, sapienciais, filosóficos, proféticos,
políticos, espirituais e envolvem variedades de
gêneros que incluem até poesia, e que se prestam
a orientar o leitor e regular sua vida por decretos e
comandos e enchê-lo de esperança através da
literatura. A Bíblia, no Antigo e no Novo
Testamento, é trabalho de gênios. A grandeza dela
reside na coesão apesar da pluralidade de temas e
autores, apesar de ter sido escrita em lugares e
épocas e contextos diferentes. Além disso, ela é
415
grande porque os autores abrem mão de sua
criatividade para fazer com que ela seja encarada
como a Palavra do próprio Deus. E ela é. Porque
tudo se torna o que pretende ser. A Bíblia é o livro
mais lido, mais traduzido, mais estudado e mais
discutido do mundo. A Bíblia não encerra ciência
dentro do conceito moderno de ciência, mas é,
dentre todos os outros, o livro que mereceu o maior
número de estudos científicos, sejam eles
paleontológicos, arqueológicos, históricos,
linguísticos, culturais, antropológicos, filosóficos,
teológicos e hermenêuticos. É também o livro
campeão em figurar em teses de doutorado. Toda
esta riqueza hermenêutica brota da quantidade de
experiência, prática, tradição, costume e
conhecimento teórico embutido neste livro. O out
put é grande porque grande foi o imput. Debaixo
deste Sol passaram povos de larga produção
literária que sequer conhecemos o nome porque
militarmente nunca foram nada e passaram povos
valentes e belicosos que também ignoramos por
não serem amigos do cinzel ou da pena. Os judeus
416
não, eles foram diferentes: valentes e guerreiros e
escritores ao mesmo tempo, inclusive em alguns
casos unindo ambos os aspectos numa só pessoa.
Isto significa que o judeu vive a experiência e a
exara no papel. Mais que isto, ele teoriza,
sistematiza e explica sua experiência. O fato é que
toda cultura disputa o ser cultural que é o humano e
o judaísmo leva isto ao extremo. Nada tão
judaizante quanto o judaísmo. De modo que o
judaísmo chega a ser um grande contraponto a
toda cultura ocidental na sua enormidade e
retumbância. O judaísmo é a chave da
complementariedade entre Ocidente e Oriente.
Porque não é forçoso dizer que a Bíblia é um dos
fundamentos de nossa civilização e,
modernamente, todo o aparato material e técnico
que os judeus usufruem hoje é reflexo da
industrialização e do desenvolvimento da técnica do
Ocidente. A técnica é Ocidental e o que chineses,
coreanos, judeus e outros fazem com ela é só um
aprimoramento. Assim, quem quiser compreender o
Ocidente na sua profundidade terá de hebraizar-se,
417
aprender hebraico, aramaico e grego para palmilhar
as Sagradas Escrituras de acordo com os originais.
Paradoxalmente, o ritmo da cultura ocidental é tão
acelerado que nos é tirado o tempo de pausa para
cogitarmos nos processos que brotam dos
pergaminhos e afetam nosso tablet. Parece, a
princípio, que se trata de realidades distantes, mas
a linguagem da informática é um tipo de cabala e
criptografia encontramos nos velhos manuscritos e
nos softwares de todo gênero. O judaísmo se
encontra entre poucas religiões que contam com
mais de quatro milênios e que não pressagiam o
próprio ocaso. E apesar de alguns desencontros de
informação é a história espiritual mais bem contada
de um povo pela razão já apontada, a tradição
escrita. A ressuscitação da Língua Hebraica é caso
único no mundo. Ela até pode não estar entre os
idiomas mais falados do mundo, mas com certeza
está entre as mais estratégicas e sua prospecção é
crescer. Cursos via internet colocam qualquer
pessoa de qualquer parte do mundo com um
preceptor em Israel. A bandeira estrelada de seis
418
pontas é tão ou mais conhecida e notória do que a
bandeira de outras potências ocidentais. A História
é a mais sábia da juízas e faz justiça a este povo
sem quem não seríamos quem nós somos.
Cristianismo: a ideia de Deus Homem
A palavra cristianismo vem de Cristo que é o
aportuguesamento do termo Christós, que equivale
ao Messias dos hebreus. Os cristãos acreditam que
Jesus Cristo é o cumprimento da Bíblia judaica, o
prometido pela tradição cuja instância última é o
próprio Deus. O cristianismo é uma religião
abraâmica e monoteísta apesar de os maometanos
vociferarem contra os cristãos que três é diferente
de um. Quem até hoje melhor explicou a triunidade
de Deus foi o filósofo alemão Georg Wilhelm
Friedrich Hegel. De acordo com alguns é o maioral
de toda tradição filosófica desde que ela existe,
Deus é pensante e esse pensamento que pensa a
si é Deus Pai, já o Filho é o Deus pensado, o verbo
que se faz carne, que assume a concreção
419
humana, e o Espírito Santo é a síntese, a relação
entre o Primeiro e o Segundo. Vale à pena pensar
nisso lendo atenciosamente o Evangelho de João.
Deus é comunidade e é único. Deus é pensamento.
Antes de criar o universo pensava em si mesmo e
criou tudo o que existe num gesto de infinito amor a
fim de partilhar a comunhão que tinha consigo
mesmo. O ser é caridade transbordante de um
modo de ser do Máximo dos Seres. Deus cria a
comunidade angelical, mas Lúcifer e a terça parte
dos anjos se rebelam contra Deus e então Deus
castiga satanás, agora já com outro nome e inicial
minúscula, criando um ser inferior a ele em status
ontológico e inteligência, o homem, porém este
imagem e semelhança do próprio Deus. E logo que
o homem e depois a mulher são postos no Jardim
do Éden, o paraíso do mundo, ele quebra a aliança
com Deus ao provar do fruto do conhecimento do
bem e do mal. E então o salário do pecado é a
doença, a velhice e a morte. Agora, se quiser
comer, o homem terá de cultivar o solo: “com o suor
do teu rosto comerás o teu pão”. Deus é fiel às
420
suas promessas, mas o homem reiteradamente
inadimple o que lhe cabe no trato. É assim que
Deus se vê forçado a realizar diversas alianças,
com Moisés, com Josué, com Davi e com Cristo. O
cristianismo se torna religião importante a partir do
século IV depois de Cristo. E a partir da plataforma
política do Império Romano se expandirá por longa
extensão territorial. Em 1.054 d. C. haveria o
Grande Cisma do Oriente. A razão do cisma,
indubitavelmente, é de natureza cultural. Até haverá
discussões acerca do Espírito Santo e do uso de
imagens, e é daqui que surge o termo “iconoclasta”,
ou seja, aquele que quebra uma imagem, mas o
fato é que os orientais eram classicamente
helênicos enquanto que os latinos receberiam
influência fortíssima dos bárbaros germânicos. Os
alemães, portanto, pode ser responsabilizados
pelas duas grandes divisões dentro do cristianismo:
o Cisma do Oriente e o no século XVI com Lutero.
E há quem diga que a Igreja Alemã está prestes a
desencadear o terceiro racha. Não é fácil, como se
vê, entender cabeça de alemão, porque Nietzsche
421
escreveu em O Anticristo que “se o cristianismo não
acabar, a culpa é dos alemães”. E chama seus
conterrâneos de “metafísicos”. Com a descoberta
da América, com o comércio marítimo e a
necessidade de fazer circular as mercadorias
produzidas pela maquinofatura europeia o
cristianismo foi levado para todos os cantos da
Terra. Pois antes disso estava adstrito à Europa, à
Grécia, algumas pequenas comunidades no
Oriente, na Índia e no norte da África. Trabalho
teórico colossal seria tentar explicar como uma
seita judaica insignificante no decorrer dos séculos
se tornaria uma religião universal, contando com
cerca de 2,3 bilhões de fieis. Além disso, vários
disseram de si ser o Messias, porque Cristo
conseguiu toda esta credibilidade? Por certo que o
ter convencido da própria ressurreição pré-
anunciada foi determinante. A maioria das
denominações cristãs dizem que Cristo voltará. A
Bíblia, através de Paulo, aliás, diz que “nós
podemos apressar a vinda de Cristo”, sim porque
ela está condicionada ao preparo da Igreja. No
422
cristianismo há síntese do divino com o humano, de
céus e Terra, de espírito e corpo, de abstração é
concreção, de infinitude e finitude, de necessidade
e contingência, de ser e dever ser, do ideal e do
real, do possível e do efetivo, do natural e do
sobrenatural, do paranormal e do normal, da
metanarrativa e da realidade narrada, enfim, toda
contradição é desfeita e resolvida, passado e futuro
se encontram no Deus de carne e osso que sente
frio, calor, sede, fome, cansaço, além daquelas
opressões psicológicas a que todo ser humano está
sujeito. Cristo derrota satanás ao lhe provar que é
possível viver a santidade estando na carne. Assim
como por um só homem, Adão, o pecado e a morte
entram no mundo, por um só homem, Cristo, o
segundo Adão, entrou no mundo a graça e a
salvação. Cristo, sendo justo, sofreu a pena
máxima imposta aos facínoras. Como Ele sofreu o
que não merecia, com seu sacrifício agora pode dar
vida a quem Ele quer. Mas Ele não faz isto para só
um homem, mas para toda humanidade, porque
seu sacrifício foi infinito. Quem crer e for batizado
423
em nome de Cristo encontra a salvação e fica
sujeito a amar a Deus sobre todas as coisas, ao
próximo como a si mesmo e fazer discípulos. O
próprio Cristo chamou doze discípulos não só para
que eles fundassem a Igreja e porque as doze
tribos de Israel ficassem representadas, mas para
que pudesse pregar nas sinagogas, pois quem não
tinha discípulos não podia manifestar-se nas
sinagogas. Paulo leva Timóteo consigo pela mesma
razão. O cristianismo começa sempre como religião
dos “pobres de espírito” e termina como religião das
elites. Este fenômeno ocorreu com o cristianismo
católico romano e algo parecido já se vislumbra no
Brasil através das igrejas evangélicas. Talvez este
seja o grande sentido da obra de Max Weber A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Não
existe maior lavagem cerebral do que o cristianismo
a ponto de o magistrado romano dizer a Paulo de
Tarso “o excesso de estudos afetou o seu juízo” e,
em contrapartida, em outro lugar, “Paulo, desse
jeito até eu fico quase convencido”. A morte é o
combustível do cristianismo. Em nenhuma outra
424
religião o martírio consegue comover tanta gente.
De fato, é extremamente belo morrer por amor.
Belo e nobre! Mesmo quem não vive e sequer
acredita em cristianismo tem apreço por quem crê e
pratica esta doutrina, em nossa ótica é a mais sábia
e a mais revolucionária de todos os tempos. O
papel civilizador do cristianismo contrasta com o
papel civilizador de qualquer outra religião. O
cristianismo é a oficina da dignidade. Ainda que em
nome do cristianismo tenham se praticado tantas
barbáries, no Ocidente e no Oriente, no romanismo
e no protestantismo, ele é a palavra final em
civilidade. O cristianismo não é grande porque foi
de carona com a Civilização Ocidental, pelo
contrário, o Ocidente só conseguiu sua
incontroversa expansão por ter se submetido aos
melhores e insuperáveis princípios espirituais
encontradiços nas Sagradas Escrituras, máxime,
nos Evangelhos. A cristandade por muitos séculos
foi governo e de certo modo ainda hoje o é, e não é
fácil ser governo porque não há governo sem
oposição. Muita coisa tem de ser explicada. E ainda
425
que explicação e justificativa sejam coisas
diferentes, a explicação sempre tem um caráter
satisfativo. A Inquisição teve importante papel na
Idade Média e cumpre fazer alguns
esclarecimentos antes que o preconceito comece a
satanizar a instituição mencionada. Quando o
mundo romano, ou seja, civilizado, vai à bancarrota,
o evangelho gradativamente vai conquistando o
coração dos bárbaros. Porém, estes 30 centímetros
são como o deserto cabido entre o Egito e a Terra
Prometida, um trajeto dificílimo de ser ligado.
Porque embora os bárbaros se rendam à novidade
cristã, não é nada simples tirar um ser humano da
brutalidade selvática e trasladá-lo à civilidade. O
cristianismo conseguiu fazer isto e hoje a
Alemanha, a Áustria e a Holanda são países
civilizadíssimos. Entrementes, o cristianismo
precisou de tempo. Pois bem, voltemos ao Tribunal
da Inquisição. O que justifica a existência deste
aparelho burocrático repressor? Justamente o baixo
grau de civilidade dos povos do Ocidente da
Europa. Os anátemas, heréticos e cismáticos
426
precisavam a qualquer preço ser calados porque se
alguém começasse a propalar doutrinas novas,
diferentes da oficial, correria muito sangue. Porque
não se deve esperar do dissídio de ideias entre dois
ou vários bárbaros os mesmos meios de resolução
de conflitos como nas sociedades democráticas
contemporâneas. Toda a vírgula era razão
suficiente o bastante para desembainhar a espada.
Assim, o Tribunal da Inquisição entendia que era
melhor sacrificar uma cabeça anômica do que
poupar-lhe a vida e no coletivo ver comoção de
violência. E o que escrevemos aqui não é mera
conjectura, mas a mais pura realidade, a ponto de a
Guerra dos Trinta Anos, a eterna polêmica entre
católicos e protestantes ser a maior prova disso.
Porque em nome do mesmo Cristo, um Cristo
tradicional e outro Cristo supostamente resgatado
do cristianismo primitivo pré-sincrético, ambas
promoviam baixas nos lados opostos e a Europa
ficou regada de sangue. Neste sentido que vinha
justificar-se a atuação da Inquisição. Por outro lado,
o luteranismo, o calvinismo e outras
427
neodenominações e a própria Guerra dos Trinta
Anos foram remédios amargos que tivemos que
tomar para nos tolerarmos reciprocamente, sem
que houvesse um órgão social para exterminar os
franco-atiradores do pensamento. Porém, aqui faço
uma ressalva: agora já se trata de novos tempos. E
o que não tem utilidade alguma hoje pôde ter tido
no passado. Agora a coletividade amadureceu, os
germanos já entenderam o viés da civilização e o
pensamento de contestação já não causa a mesma
turbação de outrora. A sociedade medieval
semicivilizada e semibárbara poderia ser
comparada a um tubo pleno de material gasoso
volátil e inflamável em que não se podia riscar um
palito de fósforo e nossos tempos são estoicos de
modo que parece nada mais escandalizar. Ou seja,
já não necessitamos mais dos bombeiros do
pensamento. A partir do momento em que tivermos
esta compreensão histórica, de que tudo é
contexto, nos escandalizaremos menos e seremos
mais cultos. Aliás, em cem por cento dos casos
quando algo lhe escandaliza demasiadamente, é
428
porque alguma coisa permanece alheia à sua zona
mental de compreensão. E assim como homem de
40 anos de idade não pode julgar suas ações de
menino quando tinha 12 ou 16, não podemos julgar
o procedimento das lideranças da sociedade de
uma outra época pelos valores que temos hoje.
Diria que a maior parte da África e uma parte
considerável da Oceania está em situação
subcivilizacional. Só o cristianismo para fazer do
afro e do asiático um ser pleno de sentido e
consciente de si mesmo. O cristianismo promove o
desenvolvimento intelectual dos povos. Até mesmo
porque a Bíblia é um livro de dificílima
compreensão o que cobra esforço intelectual.
Assim como o cristianismo tirou os bárbaros do
estado de todos contra todos e os pôs em
moderníssima e arrojada condição, o mesmo fará
como os ditos povos primitivos que ainda
desconhecem e portanto não praticam as leis do
sucesso. E ainda que um grupo numericamente
expressivo de intelectuais repudie a religião e, com
ela, o cristianismo, é preciso ser dito que todos os
429
intelectuais são menos do que a civilização à qual
eles pertencem. A civilização é o todo e os
pensadores são individualidades e não podemos
colocar esta ordem de ponta cabeça. No dia de
hoje tenho como superadas as questões teóricas e
filosóficas controvertidas e que repercutem sobre
minha fé. Certo mesmo é que os anos passam
como um sopro e faço a mesma aposta de Pascal
conquanto na esfera do pensamento tenha
antecipado todos os resultados das possíveis
apostas. Deveria ser permitido ao homem ir ao
cemitério e ver a ossada do seu avô e de seu
bisavô, quem sabe, se for o caso, do seu próprio
pai, para saber que aquela estrutura calcária um dia
foi o que somos e um dia nós seremos o que ela é.
Nada melhor do que a experiência da finitude para
se ir em busca da Infinitude. O cristianismo deve
ser conhecido, estudado, debatido e vivido. Os
melhores homens que conheci em minha vida
sempre se mostraram profundamente cristãos.
Certo viajante ocidental e missionário cristão estava
caminhando num cantão dos interiores da China e
430
perguntou se havia uma casa de cristão onde
pudesse passar a noite. E eis que alguém aponta o
braço e diz “nesta direção a cinco quilômetros”. Ou
seja, havia na China uma pessoa que vivia o
cristianismo com uma tal intensidade que num raio
de cinco quilômetros era identificada como cristã.
Será que transmitimos com o nosso
comportamento um nível de caridade tal que nos
identifique como cristãos? Se o seu vizinho vai à
Igreja e não vive o cristianismo você não deve dizer
“é por isso que eu não vou à Igreja”. Pelo contrário,
você deve ir à Igreja e deve provar ao seu vizinho
rebelde de que é, sim, possível viver cristianismo. O
continente africano é alvo de vários trabalhos
missionários e penso que tais iniciativas são muito
acertadas. Porque os africanos de um modo geral
estão muito carentes da Palavra de Deus. Não
colhe o argumento, à moda de Feuerbach, de que
eles precisam de alimentação, moradia e condições
de higiene. Tudo isto lhes poderá ser dado e será
como um grande desperdício porque não sabem
administrar a própria vida. Mas se eles tiverem o
431
cristianismo a tudo o mais terão porque o acessório
segue o principal. O progresso material não passa
de um reflexo do progresso espiritual. E nada pior
do que um rico descrente porque, em verdade, é
como se fosse pobre duas vezes. Não há como
esperar de um homem que seja bom cidadão se
antes disso não for um bom cristão. E eu defendo
que sejamos pescadores de homens e não
proselitistas. Se o judeu gosta de viver debaixo da
lei então que viva. A postura das religiões mais
desenvolvidas é o diálogo e o ecumenismo. Porque
o cristianismo precisa aculturar-se. Sim, porque se
eu tiro de cena uma principiologia espiritual para
fazer valer a melhor que é a crística, então o
mínimo que devo fazer é transigir no acidental que
vai desde me alimentar com palitos até andar sem
roupas. É por isso que nas sociedades ditas
desenvolvidas não posso me permitir dar de
ombros àqueles discursos que afrontam o
cristianismo, mas devo dialogar com eles. Este é o
grande erro das neodenominações pentecostais:
polarizam as coisas entre Igreja de um lado e
432
mundo do outro porque seus líderes não possuem
capacidade intelectual de debater com os teóricos
deste século. A Igreja Católica Apostólica Romana
é uma das poucas instituições que dão conta de
absorver a superprodução teórica típica de nosso
tempo. Mas não há como cobrar do rebanho o que
se cobra dos reverendos. Porque a nossa época é
tão variegada e complexa do ponto de vista teórico
que quem não for profissional do pensamento não
dá conta do recado. Como sempre foi, desde que
existe cristianismo, ele será sempre uma opção,
sempre um salto em meio a um nevoeiro, pois no
curso vital de sua metanarrativa ninguém ou
pouquíssimos terão condições de inventariar todas
as teorias do mundo para só então, após exauriente
análise, dizer o seu sim a Cristo. E este dizer sim é
um sim que se renova diariamente, inclusive numa
escala crescente, porque Deu se mostra àqueles
que o procuram.
Ocultismo iniciático: a ideia de aristocracia
433
Desde que o homem existe em sociedades
primitivas há rituais de iniciação. Nas tribos
indígenas, africanas e aborígenes isto é visto sem
fazer o menor esforço. Os índios mocongotuba
submetem os adolescentes da comunidade a
picadas de formigas tucandeiras e o mesmo fazem
os sateré-maués. Veste-se em cada mão uma
espécie de luva em que as formigas estão presas.
Em certas tribos africanas o candidato ao
casamento tem de ficar de pé sobre uma das
pernas em cima de um mastro de seis ou sete
metros de altura por dias a fio. Durkheim que
escreveu uma obra sobre o suicídio deveria ter
criado um capítulo à parte sobre as sociedades
iniciáticas e esqueceu de relacionar um fenômeno
com outro. Muitos e muitos jovens se suicidam
quando são provados pela iniciação. Embora em
cada sociedade os critérios sejam diferentes, que
vai desde ser um bom remador, um perito em arte
marcial, ou constância de temperamento mesmo
estando submetido a drogas como no deserto do
México onde remanescem velhas tribos indígenas.
434
Quem sabe o ritual seja tão exigente que cobre do
neófito pluralidade de critérios, inclusive o
comportamento na intimidade. Nas sociedades
ditas desenvolvida não há o emprego de ritual de
iniciação generalizado. Apenas quem é líder
precisa passar por ela, o homem comum fica alheio
a isso. Porque as instâncias de poder econômico,
religioso e político estão nas mãos das confrarias
que ainda submetem os candidatos à membresia a
testes de resistência psicológica e moral. É assim
que acontece com a máfia na Itália e é assim que
ocorre nas chamadas congregações religiosas da
Igreja Católica como os jesuítas e dominicanos. O
grande problema é que em muitos dos casos o
sujeito está sendo testado e sequer suspeita.
Preferindo imaginar que a sorte faz as
circunstâncias conspirarem a seu desfavor,
decaindo para a infelicidade e depressão. Os
critérios de avaliação são tão esdrúxulos que por
vezes um menino de 12 anos de idade que está em
formação inclusive biológica e intelectual nem se
fala e que consegue aprovação fora do alcance do
435
homem que já está maduro. Penso que é lícito livrar
as pessoas comuns do ritual de iniciação, pois a
verdade é que nem todos pretendem ser líderes ou
sequer ocupar um espaço social de prestígio. A
filosofia é pródiga de exemplos de iniciação e
Pitágoras é a grande prova disso. Aliás, Pitágoras
nos lembra de onde vêm os rituais de iniciação da
Antiguidade egípcia. Assim, mesmo quem é filósofo
tem de demonstrar outras qualidades que não tão
somente a habilidade intelectual. A confraria dos
iniciados tem a vantagem de fazer com que uns
membros abram portas para outros membros, pois
um está no Executivo e outro no Judiciário, um está
na universidade e outro na instituição financeira.
Mas o preço que se paga por integrar o bloco é ter
a personalidade fortemente relativizada pela
confraria na abstração. No fundo não há nenhuma
regra senão a do poder, pois o poder tem o verso e
o reverso e quanto mais empoderado um sujeito
está, mais ele vive isto. Penso que do ponto de
vista da evolução dos organismos e da antropologia
biológica o ritual de iniciação é importantíssimo.
436
Porque já não estamos mais sujeitos àquelas
mesmas adversidades que engendraram o homo
sapiens sapiens. Assim, continuamos nos
reproduzindo e gerando variabilidade genética sem
nenhum mecanismo de seletividade. Desta feita, é
necessário, portanto, que se crie um critério de
seleção. O que a natureza não faz mais é feito pela
própria sociedade. Além do mais, é possível que
maiorias eventuais, como ocorreu na Revolução
Russa, tentem sublevar a ordem posta e aí quem é
governo de fato, os iniciados, terão de unir-se como
uma superliga e conter o movimento de deposição
da ordem posta. Nas sociedades ocidentais esta
lógica tem funcionado por milênios e creio que
assim sempre o será. Para mim, Durkheim é muito
maior teórico do que Marx. Porque a sociedade
precisa ser revolucionada pelos próprios meios de
auto-organização e não por uma lógica nova que
pretende levar a antiga sociedade a uma
hecatombe para fazer emergir algo totalmente
novo. Uma revolução armada é como um bruxo que
esconjura poderes que depois de provocados
437
fogem de todo e qualquer controle, de modo que
nem o esconjurador o subjuga. Mas quando
escrevo estas coisas não repilo totalmente o que
Marx escreveu. Não sou marxista, mas sou
marxólogo. E todo bom durkheimiano deveria ao
mesmo tempo ser marxólogo. Porque a sociedade
em que vivemos precisa ser entendida a partir dela
mesma positivamente e a partir de fora,
marxologicamente. Isto equivale dizer que a cautela
compreende a contracautela, como se usa nos
meios judiciais, e que a metanarrativa deve
comportar a contrametanarrativa. A iniciação é uma
antecâmara que servirá de vestíbulo para quase
tudo na vida. A iniciação é também iniciação de
uma doutrina, cujos alguns princípios já são
aprendidos e assimilados a custa de murro em
ponta de faca desde o estágio probatório iniciático.
A doutrina é secreta, devendo ser mantida sob
sigilo por parte de quem a recebe, sob pena de
severas punições. Aqui faço uma ressalva: a
filosofia. Como as doutrinas das sociedades de
segredo são filosóficas há quem se aproprie de tais
438
princípios sem que os mesmos lhes sejam dados
como dádiva, mas são produto do esforço individual
intelectual. Quem encontra um tesouro sem ter em
mãos o mapa do tesouro faz por merecer. A
tradição filosófica está repleta de princípios que
aliunde são tratados como segredo. Tudo, e não só
a doutrina, é sigiloso. Porque tudo o que se
conhece se desmonta pelo conhecimento. O fato de
sempre haver uma doutrina oculta apenas
simboliza a necessidade que todo o grupo sente de
firmar-se ideológica e espiritualmente. Quanto mais
concentrado o poder, mais necessidade de o
mesmo legitimar-se cultural e intelectualmente. E
como a base do poder material é o poder espiritual,
a teologia é recorrente em tais doutrinas. Daí o
dizer-se em “sociedades de mão direita” e
“sociedade de mão esquerda”. O rosacrucianismo,
só para exemplificar, é um tipo de cristianismo
protestante místico. Esta informação é importante,
porque outras sociedades tomam de empréstimo
algumas lições desta venerável ordem. Tratam-se
de conhecimentos superiores que cobram preparo
439
do assecla para que suporte grandes verdades. É
conhecimento esotérico e hermético. Não pode ser
disponibilizado aos não iniciados por se de difícil
compreensão e porque na recepção sobra
dignidade de quem o recebe. É como dizem os
evangelhos “não se deve dar pérolas aos porcos e
coisas sagradas aos cães”. Não raro, há quem
pertença a mais de uma sociedade secreta. Dentro
do ocultismo o iniciado vai ascendendo em
conhecimento, dignidade e poder de acordo com
uma escalada de grau em grau. Aliás, não é só nas
sociedades secretas que isto ocorre, mas em tudo
na vida é assim conforme explica Maslow com sua
pirâmide. A grande maioria das pessoas passa a
vida toda sem conseguir sair da base. Em minha
família tive o caso de um senhor que se casou com
uma de minhas tias que trabalhou duramente a vida
toda na produção no horário noturno e faleceu
poucos dias após a aposentadoria de modo que
sua vida não teve quase nada de fruição, mas
sempre obrigação. Dentro de tais confrarias o
sujeito muitas vezes continua encontrando
440
oposição, dos seus próprios confrades, mas lá é o
nicho onde de fato ocorre uma verdadeira
fraternidade. Talvez pela ímpar oportunidade, como
se diz na gíria, poder “lavar roupa suja” e sair alvo
como neve. O neófito é marchetado dentro de
minuciosas observações de sua personalidade e
corrigido com um rigor que inexiste nos meios de
coação próprios da grande sociedade que afirma
que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer qualquer coisa que seja senão por força de
lei”. Diria que uma pessoa que vive intensamente o
cotidiano de uma sociedade secreta tem uma visão
tão distorcida da realidade como aquela que
apenas ouviu vagamente falar na existência de tais
sociedades. Isto é inevitável do mesmo modo que o
leitor de onze mil livros é tão míope quanto o
analfabeto em algum sentido. Diria que tais
sociedades no passado procuravam homens
extraordinários e hoje procuram pessoas comuns
que estão cada vez mais raras na época da
afirmação da individualidade. Como observou
Foucault, a ideia de conspiração mundial – como
441
Dan Brown fez em relação ao illuminati – serve
apenas para literatura. Porque na prática o que
vivemos é a microfísica do poder que envolve o
ambulante que lhe vendo o churro ao médico que
clinica sua saúde. Porque assim como a microfísica
do poder pode se pulverizar por um comando
macro, o macro desmorona se não estiver
assentado nas menores bases. O micro e o macro,
enfim, são complementares. Talvez vislumbrando a
indivisibilidade do poder, sua coesão, coerção e
onimodocidade é que alguns teóricos, entre eles
alguns judeus franceses, pregaram uma ausência
total de poder e individualidade absoluta que se
chama anarquismo. O anarquismo é anômico,
materialista, ateu, individualista e sonhador. Crê
que derrubando o Estado, maior instância do poder
temporal e desbancando todas as religiões
teríamos o paraíso na Terra, o que é uma
inverdade. Participar de uma sociedade secreta é
ter a personalidade cindida em dois. Uma é a
memória que abriga o que é de conhecimento
público e outra é a memória reservada para os
442
assuntos da própria ordem. É como eu ter duas
memórias em meu computador, o que é
plenamente possível. Os membros de uma
sociedade fechada olham para a sociedade aberta
como um campo carente de lideranças. Os
iniciados veem a si mesmos como aristocracia em
relação à comunidade dos profanos. O problema de
ser elite é exatamente este: analisamos os outros,
mas perdemos a capacidade de olharmos para nós
mesmos com objetividade. Por detrás de
capitalismo e socialismo existem grupos invisíveis.
E isto é a grande prova de que o proletariado por si
só não tem o menor poder de auto-organização,
articulação e mobilização. Os burocratas do partido
comunista soviético eram intelectuais que não
gostavam do czarismo e pegaram a ideologia do
socialismo científico como bandeira e pretexto de
inovação social. A intelligentsia russa fez de tudo
para dar a entender que o socialismo é produto
político das massas. Isto não é verdadeiro e a
derrota da social-democracia europeia nas urnas é
a grande prova disso. Assim como o dono de um
443
açougue é um burguês que tem empregados sob
suas ordens, um gerente do escritório da Microsoft
é um proletário. E neste caso o proletário pode
perceber uma renda equivalente ao triplo do
faturamento do referido burguês. Assim também um
não iniciado pode ter um poder de barganha maior,
por ser autoridade nas esferas profanas, do que um
iniciado que tem alguma projeção na ordem, mas é
inexpressivo foram da ordem. A sociedade em que
vivemos é tão complexa que não podemos sair em
nenhuma espécie de monismo como a polarização
entre cultos e incultos, burgueses e proletários,
iniciados e não iniciados. Por outro viés, uma
compreensão profunda da sociedade não pode
passar ao largo deste tema. A questão chave de
todo grupo organizado é o modelo de civilização ou
de sociedade que se procura atingir. Em linhas
gerais, com Deus ou sem Deus, voltada para a luz
ou para as trevas, coletivista ou individualista, ou
como quer Amarthya Sem, conciliar o ying e o
yang, o niti e o nyaya. A sociedade secreta é algo
tão distinto e tão autônomo que um homem de
444
idade avançada que tenha empregado boa parte de
uma vida e até recursos financeiros em nome da
promoção da sociedade à qual pertence que ainda
sua família sairia no lucro. Pois os filhos e netos
teriam o retorno garantido pelo investimento em
relacionamentos. Tenho visto que homens
parcamente dotados do ponto de mira intelectual
consegue melhor projeção social do que outro
inteligente e mal relacionado. A aristocracia traz
consigo a ideia de benignidade, fazendo crer que
quem é poder é melhor do que quem é
administrado sob algum ponto de vista. Todavia, o
poder é uma instância tão sui generis que ele não
pode ser explicado por um conceito paralelo. Este é
um dos erros de Marx: pensar que a elite é sempre
a classe que tem mais dinheiro.muitas vezes é
assim, mas nem sempre é assim. Os mais velhos,
em média, são mais poderosos do que os mais
jovens, mas há autoridades jovens e velhos
impotentes. Há homens sábios no governo, mas há
sábios sem poder e Joaquim Nabuco disse que “há
tantos homens burros mandando em homens
445
inteligentes que a burrice deve ser uma ciência”. Há
autoridades populares, mas o povo não parece ser
o fundamento último do poder, pois se assim fosse
não haveria déspotas. Apenas no mundo
fenomênico o poder espiritual separou-se do poder
temporal. No mundo numênico tudo permanece
umbilicalmente ligado. O poder se relaciona com
muita coisa, mas é diferente e independente de
todas elas. O poder, como observa Foucault, é uma
instância energética autônoma que circula através
das pessoas. Não são as pessoas que angariam o
poder, é o poder que angaria as pessoas para si.
Levi Strauss na antropologia e Émile Durkheim na
sociologia exibiram o poder explicativo da
perspectiva estruturalista. O marxismo é
estruturalista também, sobretudo quando fala no
grau de desenvolvimento das forças produtivas,
porém, passa por cima das próprias premissas ao
identificar os atores sociais, burgueses e
proletários, criando uma sociedade de mocinhos e
bandidos. Porque se, como disse Proudhon “a
propriedade é um roubo”, então todos somos
446
ladrões. O erro, se é que posso opinar acerca da
matéria, é os grupos fechados tratarem seus
confrades como se fossem proprietários dos
mesmos. O ser humano não pode dispor de si
mesmo, até porque tudo para Deus pertence. Do
ponto de vista espiritual há um ganho em se
participar de uma sociedade secreta de mão direita
porque o padrão de comportamento que nos é
imposto aproveita também à alma. A propósito, o
comportamento é um dos critérios de admissão.
Ressalvamos que, em se cumprindo aquilo que é
público e notório, verbum gratia, o cristianismo,
cumprem-se os códigos fechados que estão alheios
ao alcance dos não iniciados. Por falar em
comportamento, cumpre ressaltar que o homem
médio tem bom comportamento em situações
corriqueiras, o homem vulgar é sempre
inconveniente, mas o que se persegue é o homem
heroico que age com brio, honradez e elegantismo
mesmo nas piores situações. A oliva só libera
azeite quando é posta em meio à prensa. Cada um
vai tirar do seu interior o que nele há. Quando se
447
fala em ocultismo logo são suscitadas questões
epistemológicas. Porque o que está oculto
repercute no mundo da visibilidade. Um rosto que
guarda segredos é diferente de um rosto cuja vida
na íntegra é um livro aberto. O semblante sigiloso
estampa o segredo em si mesmo: quem observa
não sabe o que está sendo escondido, mas sabe
que algo já oculto ali. A sociedade só está
hierarquizada no poder e o poder é a guarda de
certas informações: quanto mais informação mais
poder e quanto mais poder mais poder mais
informação. E as informações chaves podem ser
descobertas não pela revelação, mas pela força da
abstração. Um pensador que tem a capacidade de
concatenar discursos, circunstâncias, impactos
midiáticos e acontecimentos políticos e econômicos
consegue sozinho obter informações que só elas
preenchem certas lacunas. O critério das diferentes
sociedades secretas não só para admissão, mas
ainda para ascensão dentro dos quadros da própria
sociedade são diferentes porque conforme
discutíamos no capítulo reservado à geografia,
448
cada ambiente cobra do ambientado uma qualidade
diferente.
Matemática: ideia de quantificação
Ao lado da filosofia a matemática é a disciplina
perita em pensar abstrações, trata-se do
pensamento em busca de si mesmo e de sua
coerência interna. Ao lado da teologia a matemática
é a disciplina mais próxima de Deus. Euler, Newton
e outros grandes matemáticos eram convictos da
inerrância bíblica, o que eu também endosso. E
toda vez que a hermenêutica se depara com um
ponto crítico é como e estivéssemos diante de um
teorema matemático ainda não devidamente
representado por números e /ou letras. Assim como
só consigo me aprofundar nas páginas bíblicas a
partir de uma postura de concordância, o mesmo
ocorre em matemática. Porque ainda que falemos
em novas geometrias, em grau de profundidade
mais avançado as novas concordam com a
euclidiana. Todo o sucesso da matemática reside
449
em sua simplicidade. Geralmente as coisas que
pior funcionam são as complexas. Porque as
instâncias complexas são carentes de medidas ad
hoc para perpetrar ajustes. O que é simples e
quanto mais simples menos ajuste carece. A
matemática é a passagem da descrição qualitativa
para a descrição quantitativa. Mas assim como a
qualidade é afetada pela subjetividade de nossa
percepção, a quantidade não é o excesso do
mundo empírico, mas um nome que damos a uma
abstração que reúne dentro de si subcategorias. O
impressionante da matemática é que o número é
um termo que pode corresponder a uma entidade e
ainda pode ser conjugado com outros como se
pudéssemos arrancar a alma dos seres brutos para
manipularmos estas enteléquias no mundo
apartado das ideias. A matemática é o âmbito
especialmente criado de natureza virtual para
concatenar, relacionar, confrontar e hierarquizar
conceitos quantitativos. A atuária é a ciência da
profecia de nosso tempo pois antecipa no mundo
abstrato o que mais cedo ou mais tarde irá
450
manifestar no mundo concreto se as instâncias
postas permanecerem como estão. Malba Tahan
em O Homem que Calculava exibe um modo de ser
em que tudo é convertido em número e relações
matemáticas. Mas mesmo que tudo seja convertido
em números eles são como as antinomias
kantianas. Sim, porque o número é determinidade e
a nova vida cotidiana é um quebrantamento das
relações exatas. Matemática é o sentimento a
serviço da inteligência e a maioria das outras coisas
é a inteligência a serviço do sentimento. A
matemática é essencialmente procedurística. Sim,
porque ela nos disponibiliza os meios intelectuais
que nos permitem avaliar as situações antes de
ministrar-lhes as soluções. A própria palavra
solução muito usada na matemática é equivocada
porque o resultado numérico não é a solução em si
mesma, mas apenas uma prévia. A matemática é a
técnica de resolução de problemas sugerida e
apregoada pela oumperiforalogia. Mas se
quantificar é pensar, pensar nem sempre e
necessariamente é quantificar. Porque a
451
matemática é um ramo da lógica e a quantificação
é uma das modalidades de formalização do
pensamento. A lógica é um induzir, deduzir,
silogizar e calcular proposicionalmente. O
quantificar é mensurar e delimitar. Mas quantificar é
tão vago e tão impessoal a ponto de lançarmos
números para dentro de calculadora pressionando
botões ainda que os caminhos nos sejam ocultos.
Se a aritmética nos dá a impressão de
trabalharmos com essências platônicas, a
geometria sugere o inverso: é como se
agasalhássemos a extensão sob a lona dos
números e das medidas. A matemática inventa o
espaço embora a noção de espaço preceda o
raciocínio lógico-matemático. Newton trabalha com
espaço e tempo absolutos e Einstein relativiza
estas duas categorias empregando equações tão
matemáticas quanto as absolutizantes. Isto deixa
claro que a matemática tem um caráter
eminentemente instrumental. A partir de premissas
e corolários antagônicos em relação a outras
premissas e outros corolários podem ficar
452
igualmente distintas relações matemáticas porque o
número é essencialmente caminho e parece
desconhecer donde parte e para onde vai. A
matemática é como o GPS do carro: você coloca
sua garagem onde quer e viaja para onde lha
apraza, o aparelho limita-se unir ambas as pontas.
Newton não chegou nem a arranhar a natureza da
gravidade. Dizer que existe uma força de atração
entre dois corpos na razão direta de suas massas e
à base do quadrado da distância que os separa é
uma mera descrição matemática. Mas isto não
explica como um corpo é atraído por outro. Porque
a atração é metafísica e metamatemática, embora
matematizável. A matemática nos oferece
previsibilidade. Se se trata de algo que será
realizado fica no campo da mensuração e se for
algo não dirigido, porém, possível, calcula a
probabilidade. Platão escreveu no frontispício de
sua Academia “quem não for geômetra não entre”.
E muitos são os exemplos de pensadores que
foram ao mesmo tempo filósofos e matemáticos. A
filosofia é a busca por princípios axiomáticos e a
453
matemática também. O axioma é indemonstrável
senão por uma única via que é a refutação que
refuta a si mesma. Pois em se tratando de axiomas
lógicos e matemáticos para alguém rejeitar tais
elementos primeiro precisa admiti-los. A questão
intransponível é esta: aceitamos os princípios pelo
simples fato de os mesmos se assemelharem a
programas indeletáveis e pela razão de que burlam
as nossas tentativas de frustrá-los. Os axiomas são
para o pensamento aquilo que o esforço de Sísifo
representa para o mito de mesmo nome. Os
axiomas são recorrentes, são, de um lado,
exaurientes e, de outro, inesgotáveis. O resultado
desta irrefutabilidade é a concordância que tais
princípios guardam consigo próprios. A matemática
é como um enormíssimo conjunto de engrenagens
em que os músicos executam com a máxima
perfeição os movimentos por terem mãos e pés e
todo o corpo presos a mecanismos de sorte que o
resultado da ação sobre os meios produtores de
sonoridade é a mais bela e simétrica sinfonia. A
matemática impinge à natureza uma ordem que
454
não existe nela, mas que nos permite compreendê-
la, ainda que quase ad hoc-isticamente. A
matemática é uma linguagem bem montada. Seu
defeito é restringir-se anunciar o óbvio e
tautológico. Os avanços da matemática consistem
em levar adiante aquilo que pode ser extraído do já
conhecido e demonstrar certos princípios que se
admitem por conveniência sem que tenham sido
decompostos analiticamente. É difícil inovar em
matemática justamente porque uma disciplina tão
genérica e abstrata gira em torno de poucos
princípios de maneiras que a maioria deles já foram
elucidados. Alguns problemas continuam
incomodando os matemáticos como 1) problema de
Stephen Cook; 2) a conjectura de Hodge; 3) A
hipótese de Riemann; 4) a equação de Yang-Mills;
5) as equações de Navier-Stokes e 6) a conjectura
de Birch e Swinnerton-Dyer. Geralmente tais
problemas nascem pela inversão em que são
postos: ao invés de se chegar neles por raciocínios
matemáticos eles são injetados no reino dos
números pela aparência superficial e empírica.
455
Assim, cria-se um vácuo no pensamento entre os
axiomas mestres da matemática dos quais todos os
outros decorrem e as modernas questões
matemático-simbólicas a um só tempo lógicas e
epistemológicas. Demonstração é método. E não
há problema eu ter primeiro o resultado e depois
elucidar o caminho. Porque muitas vezes sabemos
da correição do resultado por sermos espertos e
jogarmos com os números como se fossem dados
de um caneco. Assim, nos servimos dos tais
resultados como verdades apriorísticas, dirigindo os
processos mentais para escopos já enunciados de
antemão. Havendo lisura no caminho que
compreende o ponto de partida de algo já
demonstrado até a satisfação do paradoxo que se
pretende resolver e harmonizar, então podem ser
tomados de grande proveito todo o
desenvolvimento da linha de raciocínio. Tomás de
Aquino não se debruça sobre números, mas nas
quinquae viae trabalha com conceitos matemáticos
como o infinito ou o máximo bem. Parece não ser,
ao menos do ponto de vista matemático, correto
456
afirmar que Deus é infinitamente bom. Porque
quando se fala em bondade há que haver um zero
absoluto de bondade e uma grandeza máxima. No
sentido de que a bondade de Deus é maior do que
qualquer outra coisa, mas não infinita. Porque o
infinito é uma não noção e portanto inábil a servir
de parâmetro para as noções medianas que só
passam a existir a partir de noções absolutas. É
assim que o espaço e tempo absolutos de Newton
estão cabidos dentro de espaço e tempo relativos
de Einstein que, por sua vez, estão cabidos dentro
de um espaço e tempo absolutos metafísicos que
ainda não foram teorizados. A matemática nunca
este em tão larga escala sendo empregada pela
civilização. No sentido de que a economia mundial
cria músculos e os números são cada vez mais
meteóricos. Paradoxalmente, o mundo que se
organiza numérica e matematicamente está de
costas para a matemática enquanto disciplina
eminentemente teórica em que uma descoberta
neste campo não traria royalties como o
patenteamento de um equipamento industrial. A
457
civilização precisa contornar isto porque muitas
inovações tecnológicas não deslancham porque a
matemática ainda não desenvolveu o potencial que
ela guarda dentro de si. Habermas fala que o
conhecimento está a serviço de um complexo
indústria-exército-governo-sistema de sorte que sua
produção, desde a genética, é condicionada a
interesses prévios. A matemática está livre disso
embora seja a mais idônea das disciplinas no
tocante a isto. No capítulo subsequente
discorreremos sobre economia e aproveitam o
aporte para dizer que a referida ciência é o reino de
conhecimento que faz da matemática uma serva
humilhada e sem direitos. Na economia espanca-se
a matemática para que ela confirme exatamente
aquilo que o inquisidor quer ouvir. O fato de a
matemática ser tão desenvolvida entre árabes é
explicável pela mesma razão que se supõe o
desenvolvimento da teologia e da religião. Numa
cultura cabida numa topografia e num ambiente
climaticamente inóspito e cuja língua é voltada para
a concreção vive-se um acentuamento tão intenso
458
da concreção que é gerada a sua antítese, a
abstração. O mesmo pode ser dito em relação aos
povos germânicos: o ímpeto da barbárie é
canalizado para o ímpeto da civilização. Os
primeiros signos destinados a representar
quantidades nasce na Mesopotâmia junto com a
escrita há seis mil anos. E inclusive os primeiros
ideogramas são ao mesmo tempo desenho, texto e
quantidade. Porque a escrita nasce dentro do paço
real como tentativa de colocar ordem nas reservas
do palácio. A escrita e a matemática nascem da
burocracia, portanto. E até hoje a matemática
continua atrelada a questões de ordem prática,
razão pela qual entendo que nós filósofos somos os
incumbidos em desenvolver a matemática do ponto
de vista teórico. A crítica que os teóricos do Wiener
Kreiss fizeram ao discurso religioso, o tratar-se de
uma linguagem enfeitiçada, faço à linguagem
matemática: ela se separa do mundo real de uma
maneira tão estratosférica que galga uma
autonomia sem lei e sem parâmetro que esbarra
em seríssimos problemas de ordem epistemológica.
459
Isto significa que também a matemática que Kant
relegou à instância puramente apriorística, de igual
maneira ela possui limites oriundos do mundo
empírico. O mundo empírico, incognoscível em sua
essência, é o fundamento último da realidade. E a
matemática, como qualquer outro ramo de
conhecimento, é o resultado da relação
sinalagmática entre sujeito cognoscente e objeto
congnoscível. E o que Comte coloca em termos de
generalidade decrescente e complexidade
crescente nós, nesta obra, colocamos como
subjetividade decrescente e objetividade crescente.
Em que a matemática seria a mais subjetiva das
disciplinas e, concordando com Kant, a
universalidade estaria no sujeito, e a sociologia
seria a mais objetiva em que a produção teórica
estaria mais centrada no fenômeno abordado do
que no abordante. Quando a sociologia trabalha
com estatísticas, que é a matemática aplicada a
fenômenos idiossincráticos da coletividade, busca a
um só tempo a segurança da universalidade
kantiana e o conteúdo informativo do objeto
460
empírico e, portanto, sintético. O sintético e o
analítico se encontrariam, pois. Metanarrativa é
essencialmente isto: analitizar o sintético e
sintetizar o analítico. A matemática é uma
companhia agradável para aqueles espíritos
furiosos tomados pelas paixões calmas. Não foi por
acaso que o filósofo René Descartes afirmou que a
razão é o que há de mais bem distribuído entre os
homens. Ele sabia que qualquer homem, rico ou
pobre, nobre ou de vil nascimento, poderia aplicar-
se às matemáticas e dela extrair a sua dignidade.
Se não fosse a matemática jamais teríamos ouvido
falar de Tartaglia e ele seria sempre um simplório
italiano pobre e insignificante. A matemática
cumpre o magnificat mariano ao exaltar quem por
outros caminhos só poderia se deparar com a
vulgaridade e a trivialidade. A matemática nos
mostra o caminho do erro e do acerto. No sentido
de que quando se chega ao valor de uma variável
posso verificar se ela satisfaz a função, o que
poderá gerar igualdade no caso de acerto e
diferença no caso de erro. O ideal da matemática
461
seria sempre trabalhar com números integrais.
Todavia, o mundo empírico costuma espezinhar o
panlogismo dos pensadores e a constante (h) de
Planck é a grande prova disso, em que h =
0,000000000000000000000000006626. Isto
significa que nem sempre é tão cômodo aplicar
nossos esquemas mentais àquilo que queremos
acomodar dentro deles. Um número como a
constante de Planck que pertine ao mundo do micro
é tão fora da experiência humana como uma
medida astronômica representada por dez elevada
a uma superexponenciação, que se reporta a uma
macro expressão. Protágoras disse que o homem é
a medida das coisas e o que é distante do homem
acaba sendo distante de tudo. A matemática é
parenta da música e da estética. Porque música e
estética são simetria e proporcionalidade. O
matemático não é apenas um homem de
inteligência, mas de bela inteligência. Um cálculo é
mais que uma demonstração, é um ornamento,
assim como as boas letras são sempre belas letras.
Michelangelo e Da Vinci faziam belas obras de arte
462
porque o olho clínico destes gênios dava às suas
esculturas uma simetria tão perfeita que sequer
podemos encontrar na natureza. Aplicando-se a
ciência da computação à biologia pode-se chegar à
conclusão de que a vida é mais velha do que o
planeta. A matemática tem disso: ou se admite que
a vida aterrissou em nosso planeta ou, então, se
admite a explicação retro de que ela teria emergido
dos oceanos primitivos e aí é preciso refazer
cálculos. Isto não é problema, é mérito. Porque os
paradigmas científicos nada mais são do que os
esquemas matemáticos que surgem como
harmonizadores até que sejam relativizados por
novos cálculos. O grande salto de paradigma se
sucederá entre nós quando a matemática atual, que
é uma plataforma lógica, for substituída por outra
plataforma lógica completamente diferente de tudo
o que já vimos até hoje. Até o dia de hoje a
matemática representou progresso, mas quando
este padrão de pensamento tiver cumprido ao
máximo sua função começa a criar problemas e
algo novo terá de ser introduzido na civilização. de
463
qualificação passamos à quantificação e da
quantificação teremos de passar à
metanarradorização.
Economia: a ideia de riqueza
Não é fácil falar sobre economia porque, como bem
reparou Galbraith, muda não só a disciplina e suas
teorias, mas o próprio objeto empírico. Este teórico
observa que no mundo a riqueza das pessoas
jurídicas em sua soma total é maior do que a soma
total das riquezas das pessoas físicas. Mais que o
dobro. Observa ele que o indivíduo entra no
planejamento muito mais como consumidor do que
como poupador. Porque em geral a maioria dos
indivíduos tem dificuldade de gerar um excedente
para si mesmo. Ele concorda com os economistas
críticos de que o capital jungido ao poder gera
usurpação de vantagens. Paradoxalmente, nas
ditas culturas ocidentais o indivíduo recebe lugar de
destaque em detrimento do grupo, mas suas
grandes empresas o que manda é o trabalho em
464
grupo. Contra os economistas planejadores argui
que o desenvolvimento da técnica relativiza a
necessidade de planejamento. Talvez porque o
planejamento o seja em primeiro lugar de atores
sociais e não de bens materiais, sendo que a
tecnologia tem o condão de induzir as pessoas para
postos dados de antemão. O preço, de acordo com
Galbraith, deve emergir naturalmente, o que é uma
afronta ao planejamento que tabela preços. Böhm-
Bawerk também critica os economistas
ideologicamente alinhados com a esquerda e
trabalha com conceitos que se assemelham a
categorias astronômicas. Porque assim como a
astronomia fala em anos-luz, o mencionado
economista fala em milhões de anos-trabalho.
Böhm-Bawerk relaciona hedonismo e preço. Pois
as mercadorias visam à nossa satisfação. O juro
seria uma supervalorização do presente. O juro,
portanto, deixa de ser uma categoria econômica
para ser tido como reflexo de uma categoria
psicológica e existencial do ser humano. Fala
ainda, em coro com muitos outros economistas,
465
dentre eles Walras, em utilidade marginal. Em que
explica o valor de uma mercadoria teleologicamente
e não etiologicamente como o faz Marx. De acordo
com Böhm-Bawerk, no socialismo o Estado é o
dono dos meios de produção e compra a mão de
obra. Daí a expressão justa “capitalismo de
Estado”. Böhn-Bawerk, como bom liberal
sobrevalorizava a experiência e a natureza humana
e correntemente trazia argumentos jusfilosóficos à
moda “argumentum ad hominem”. Na contramão
destes autores Leontief defende o planejamento e
diz que ele consiste basicamente em organizar
entre si o custo e o preço. Porque o antecedente é
componente do consequente. Ele fala da divisão
internacional do trabalho e relaciona-a com a
exportação e a importação. Para Leontief tudo é
insumo, inclusive o capital. Leontief é contra o
investimento em militarismo pois ele gera despesa
que entra como insumo em praticamente todas as
mercadorias produzidas dentro da sociedade.
Bukharin talvez tenha sido o primeiro a falar em
imperialismo e sua relação com a economia
466
mundial. De acordo com Bukharin os monopólios
destroem a livre-concorrência. Há no modo de
produção capitalista a nacionalização do capital, o
que gera concorrência de nações e até mesmo
entre raças, do que o nazismo e o fascismo foram
as maiores provas. Uma característica interessante
do grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) é a
aparição do piro do capitalismo nestas nações , o
agigantamento do Estado, e o pior do capitalismo, a
concentração extrema de riqueza nas mãos de
poucos. Mas parece que esta conjuntura agrada
aos investidores internacionais. Rosa Luxemburgo
foi a grande teórica do expansionismo e
imperialismo que é multifacetado, porém,
predominantemente econômico. De acordo com
Luxemburgo, o mundo capitalista se expande para
o mundo não capitalista onde os meios de
produção e a mão de obra são mais baratos. Ela
critica a teoria da abstinência de acordo com a qual
a acumulação traduz uma postura diligente e
heroica do capitalista. Ela fala que o militarismo
está relacionado com a acumulação do capital pois
467
o vencedor se apropria do despojo de guerra.
Assim como a economia de Luxemburgo mostra a
imoralidade e a anticivilidade do capitalismo,
também o capitalismo critica a, de acordo com ele,
pífia moral das medidas coletivistas, é assim que os
medicamentos são chamados por “ético” ou
“genérico”. Sweezy cita Lukács o qual dizia que a
ortodoxia marxista diz respeito ao método. Isto
significa que os intelectuais que se dizem marxistas
estão livres para produzirem qualquer teoria desde
que apliquem o método de Marx. Como se vê, a
natureza da coisa é espinhosa, pois dizer no que
consiste o método de Marx não é tarefa tão
simples. Sweezy atrela a questão do valor à do
planejamento, na teoria e na prática, e por isso
mesmo é chamado “marxista keynesiano” ou
“keynesiano de esquerda”. De acordo com Sweezy,
o erro de Marx consiste em trabalhar com valores e
transformá-los em preço. Mas o preço seria
universal e deveria já estar imbricado no princípio
da economia e não simplesmente como apenas o
produto do valor. Sweezy cita Grossman que fala
468
que o capitalismo irá sucumbir por falta de mais-
valia, pois o capital constante precisa crescer mais
rápido do que a mais-valia, o que é uma
contradição em termos porque o constante é
produto do variável. Sweezy medita que o
trabalhador inglês é esgotado no processo de
produção para enriquecer o governo e o Estado
inglês para que eles possam explorar e subjugar as
sociedades periféricas. Steindl explica as razões
das crises econômicas do capitalismo. De acordo
com ele, o desenvolvimento da técnica aumentaria
a massa de lucro, mas não chegaria a compensar a
queda da taxa. Assim, se a queda da taxa é mais
veloz que a ascensão da massa, a crise se torna
inexorável. A segunda razão é que o mercado de
ações é crescente. A despesa de administração
aumenta na medida em que se amplia o campo de
investimento e é deduzida do retorno. Como a taxa
de administração é crescente, o retorno é
decrescente. Mitchell explica o ciclo da economia
capitalista. De acordo com ele a economia
capitalista é como uma pessoa drogada que oscila
469
entre a euforia e a depressão. A prosperidade eleva
gradativamente o custo dos insumos, matéria-
prima, maquinário, meios de vida, crédito, até que a
agudização destas circunstâncias gere um crise.
Após a crise há uma queda abrupta do custo das
coisas em geral e está preparada a plataforma
econômica e social para a prosperidade. Ao criticar
o modo de produção capitalista com o chama Marx,
ou simplesmente capitalismo, Marx presta uma
imensa gentileza aos burgueses. Porque ele mostra
quais são os pontos falhos do sistema. O que Marx
profetizara acabou acontecendo, ou seja, o
socialismo científico saiu da teoria e da ideologia e
se tornou uma prática e um modelo de civilização.
Marx fala de capitalismo numa época em que ele
ainda era jovenzinho e o feudalismo não havia sido
totalmente purgado da Europa. A despeito da barba
e do cabelo de Marx que lhe conferiam um feição
leonina, dois comentários: a um quilômetro de
distância era possível saber que Marx era judeu e
ele não fazia do penteado uma singela estética,
mas recordava os pedreiros medievais que
470
deixavam o cabelo e a barba crescer quando
tencionavam aumento de salário. Marx seria o mais
terrível patrão se fosse burguês, porque conhecia
todas as técnicas de exploração: trabalho
extensivo, trabalho intensivo, trabalho por peça e
assim por diante. De acordo com Engels, as duas
grandes ideias de Marx foram a mais-valia e o
materialismo histórico. A mais-valia significa que o
trabalhador consome apenas parte da jornada de
trabalho para reproduzir seu próprio salário e o
trabalho excedente é entrega de valor sem
contrapartida ao empregador. Já o materialismo
histórico é a convicção de que eu primeiro lugar o
homem precisa reproduzir seus próprios nervos,
cérebro, músculos e os aspectos mais basilares da
vida para partir para abstrações. Até aqui concordo
com Marx. Mas o materialismo histórico é mais do
que isto. É a convicção de que a história da
humanidade é o desenvolvimento das forças
produtivas e a noção de que precisamos
desenvolver o aparato material concretizado na
técnica para transcendermos a realidade natural e
471
nos projetarmos em direção à liberdade. É a ideia
de que a religião, a arte, a ciência, a ética, a
estética, o direito, as instituições e as instâncias
culturais de um modo em geral jogam a água benta
sobre relações sociais de escravidão. Trata-se da
superestrutura que ampara ideologicamente a
infraestrutura, a economia. A superestrutura
reprime e legitima modos de pensar que
corroboram e sustentam o status quo da sociedade
dentro da qual nos movemos. Como Marx investe a
dialética idealista de Hegel e propõe um
materialismo dialético que a um só tempo relativiza
a metafísica anterior e estabelece uma nova
metafísica, sua postura filosófica se faz sentir nas
obras econômicas. Porque Marx superestima as
condições objetivas dos países na dianteira do
capitalismo. Isto é um erro tão grande como
desconsiderar as condições objetivas e cair num
completo psicologismo. Os aspectos psicológicos
merecem uma participação de pelo menos 50% das
considerações de um tratadista de economia.
Porque o ser humano não é só alimento, roupa e
472
dono de utilidades. Ele é espírito dotado de
vontade, liberdade, desejo e imaginação. Este lado
é desconsiderado. Os marxistas que leram as obras
do mestre foram os primeiros a desprezar a
extrema objetividade. Na Rússia Lênin capitaneou o
partido bolchevique que defendia a ideia de uma
revolução imediata, antes mesmo que o capitalismo
amadurecesse no referido país gelado. Na China
Mao Tsé Tung rachou com Lênin justamente por
absolutizar aquilo mesmo que Lênin propunha: a
deflagração do subjetivismo atuante e aguerrido.
Na Itália Antonio Gramsci só falava em militância e
articulação e guerra de trincheiras. De minha parte
não me identifico totalmente nem como os
ultraliberais e nem com os marxistas embora
reconheça que ambos os lados têm a ensinar. Nem
os liberais vivem o liberalismo e nem os socialistas
vivem o socialismo. Sou capitalista e penso que o
capitalismo deve ser administrado. Keynes é bem-
vindo aquando da conveniência e oportunidade. A
mais totalizante teoria é sempre parcial, é sempre
uma perspectiva de um dado ponto de vista. E,
473
como dissemos, a economia é dinâmica e mutante.
A economia foi representada por Marx pela
mercadoria, porque ela encerraria uma zona de
relações que o próprio Marx nos explicaria.
Particularmente, penso que o que mais caracteriza
o capitalismo é a pessoa jurídica que visa lucros. O
Código Canônico defina pessoa jurídica como
conjunto de bens e pessoas. Tem bens, tem
pessoas, é também isto, mas é mais do que isto. A
pessoa jurídica é uma ficção. E ela tem vida
própria. E é exatamente por isso que quando ela
sofre um processo falimentar os credores,
preferenciais ou quirografários, não podem querer
expropriar os bens particulares do sócio, mas
limitar-se às forças de solvência da própria pessoa
jurídica. A pessoa jurídica será desconsiderada
apenas quando cumulativamente se configurar
abuso de direito e fraude. A ordem burguesa é uma
ordem jurídica que se desdobra num ordem
econômica. O salário do proletário é forfetário, mas
o ex-patrão não é o único provedor capaz de lhe
oferecer condições de sobrevivência, devendo
474
buscar uma fonte alternativa. O que aprendemos
com os economistas socialistas é que, diferente do
que ensinou Adam Smith, o capitalismo não é um
prolongamento da natureza, coisa que ele tira dos
fisiocratas, e nem sequer a “mão-invisível”, nome
metafórico da lei da oferta e da procura, tudo
consegue equilibrar e manter em harmonia. O
capitalismo não dá certo sem Estado. O Estado é o
gerenciador das instâncias mais profundas dentro
das quais se desenvolve a iniciativa privada. O
capitalismo não é só ideologia como acusam alguns
e nem extensão do mundo físico como dizem os
clássicos e os neoclássicos, mas algo situado entre
estes dois extremos. E sempre temos que ter em
mira a relatividade porque ora a tensão é entre
empregado e empregador e ora entre vendedor e
consumidor, de formas que ninguém é dono da
verdade total. As crises, como disse, é o alerta de
que não devemos deixar as coisas correrem soltas.
E quando se fala em organização de sociedade a
dimensão econômica é apenas uma a ser
considerada, porque todos os aspectos
475
civilizacionais são importantes. Certa vez
perguntaram a dois filósofos porque não se
dedicavam, assim como outros polímatas fizeram,
também à economia. Um respondeu que não tinha
interesse pela economia porque era muito fácil
enquanto que outro justificou o interesse porque era
muito difícil. Como diria Joelmir Beting “em
economia é fácil explicar o passado e mais fácil
ainda prever o futuro, difícil mesmo é explicar o
presente”. Em economia é comum especular sobre
aporias que nunca existiram e até defender
catastrofismo como o fez Thomas Malthus para
quem os alimentos se reproduzem aritmeticamente
e a humanidade geometricamente, o que em curto
espaço de tempo generalizaria a fome. O
crescimento da população mundial sempre foi uma
preocupação. E há quem diga que foram boas
coisas as Duas Grandes Guerras por conter o
inchaço do planeta. Ao que parece, no entanto,
cremos que os chamados países emergentes farão
uma desaceleração assim como aconteceu com os
países europeus. No Brasil é crescente a
476
população idosa e as famílias já não têm tantos
filhos. O que do ponto de vista atuarial inviabiliza
qualquer regime público de previdência social por
razões óbvias. Todavia, a quase totalidade das
projeções malogram justamente por haver mudança
nas tendências antes de ela se efetivar na realidade
assim como no mundo abstrato. A economia deve
ser encarada sempre como uma mediação e não
como um fim em si mesmo. Quando um Hayeck diz
que para um plano econômico dar certo “é preciso
que milhares de pessoas morram de fome”, perdeu
o sentido que deveria atribuir às ciências
econômicas, vez que também elas se justificam
apenas na medida em que facilitam a vida do ser
humano. O rei de Salém pede as pessoas e dá os
bens, mas o objetivo de um homem nobre não é
mercantilizar as pessoas, mas sacrificar os bens
para resguardar o bem supremo que são as
pessoas. Devemos fazer da economia um pretexto
para nos aproximar das pessoas, para ter
comunhão com elas, para justificar unidade de
esforços em nome de interesses comuns.
477
Economia é palco de cooperação entre os seres
humanos.
Capitalismo: a ideia de autorreprodução
O capitalismo é um modo de produção e de
reprodução dos bens materiais indispensáveis à
vida. O grande salto da acumulação primitiva
recebe amplo tratamento histórico em O Capital de
Karl Marx. Penso que estudar capitalismo se
confunde muito com estudar as sociedades
capitalistas e aí os clássicos nos ajudam muito. No
Grundrisse Marx fala que o capital é global e que
espaço e tempo são concomitantemente
achatados. É assim que a cana-de-açúcar veio da
China. Houve traslado de uma série de coisas,
inclusive de epidemias. Os índios passaram para os
europeus o tabaco, o chimarrão e a sífilis e o
branco passou para o negro e o índio a gonorreia e
a gripe. Aliás, muitas vezes a gripe adrede era
passada para os índios como forma de extermínio.a
peste bubônica, também conhecida como peste
478
negra que dizimou um terço da Europa foi trazida
por mercadores da Ásia. O capitalismo é a
exponenciação de fatores e é assim que se
desenvolve uma superbactéria de hospital. A
epidemia que recebeu espaço até na literatura
filosófica, com Albert Camus, era uma realidade tão
presente que exemplificativamente trazemos os
casos de Hegel e Weber: o primeiro morreu de
cólera e o segundo de gripe espanhola. Durkheim
foi um dos grandes nomes abordadores da
sociedade capitalista. Para ele, o objeto de estudo
da sociologia é o fato social. Ele diz que o fato
social é dotado de coesão e coerção. Uma salva de
palmas, mesmo que não apreciemos o espetáculo,
somos quase que obrigados a bater palmas. Para
Durkheim a sociedade é um organismo. E assim
como na biologia sabemos que há processos de
estruturação e reorganização, na sociedade
também há ajustes. Para a acomodação Durkheim
trabalha com o conceito de anomia e para a
patologia usa o termo anomalia. O cinema trabalha
com esta concepção orgânica a ponto de uma
479
determinada película cinematográfica Silvestre
Stalone apontar a arma para um fora-da-lei e dizer
“você é uma doença e eu sou a cura” e puxar sem
piedade o gatilho da pistola. Embora o foco de
estudo de Durkheim esteja voltado para as
sociedades desenvolvidas, ele pode ser aplicado a
diversos contextos. É assim que podemos dizer que
um índio, qualquer que seja ele, isoladamente
representa melhor o seu grupo do que se pinçando
um indivíduo de uma sociedade complexa. As
sociedades primitivas são mecânicas e as
ocidentais são orgâncias. Durkheim ao discorrer em
divisão social do trabalho também aborda conceitos
como segmentação e hierarquização. Enquanto
que numa visão mais rasteira possamos dizer que o
materialismo histórico divide a sociedade em
bandidos e mocinhos, na perspectiva de Durkheim
a sociedade é um grande conjunto de engrenagens
e cada um de nós é uma peça. De modo que só
somos algo em função de conjunto e devemos nos
negar porque o único tipo de afirmação é o social.
Já o Marx abre O Capital abordando a mercadoria
480
no capítulo primeiro. Ele fala que a mercadoria é
encantada e plena de fetiche. Isto fica muito visível
nos comerciais televisivos em que passo a ser
amado por pessoas interessantes porque bebo
determinado tipo de refrigerante. De acordo com
Marx a sociedade caminhava ou para a ampliação
máxima da miséria e aí então voltaríamos para o
estado de guerra e barbárie de uns contra outros ou
de todos contra todos, ou inauguraríamos a história
com a sociedade socialista. Enquanto se costuma
dizer que a história começa com o advento da
escrita, para Marx história começa com a realização
do homem no socialismo. Faz algum sentido por se
tratar de um historicista. Em 1872 deu errado a
Comuna de Paris e isto deixou Marx muito
desesperançoso e frustrado. Ele faleceria logo em
1883. É interessante dizer que, para a época de
Marx o socialismo científico era algo que estava na
crista da onda. Todavia, já não se presta para
explicar os nossos dias. Na sociedade brasileira
contemporânea, e este é uma tendência
mundial,temos mais trabalhadores na prestação de
481
serviços do que empregados na indústria. Nunca a
classe operária consumiu tanta coisa como hoje.
Aumentou o salário, mas todo ele continua sendo
devolvido aos capitalistas. Enquanto Durkheim é
estruturalista e se preocupa com o fato social em si,
Weber é psicologista e acentua a importância da
subjetividade do agente social. Weber, arguto que
é, percebe que proletários e burgueses têm entre si
muito mais coisa em comum do que Marx possa
imaginar. Weber trabalha com a categoria de
“modelos” e diz que o modelo dá sentido à ação.
Estender a mão, por exemplo, é um modelo. Se eu
estendo a mão só o faço porque estou convicto de
que o outro também fará o mesmo. Hitler, por
exemplo, trabalhou com modelos: modelo de raça,
de religião, etc... Ele apregoava que a Alemanha só
perdeu a Primeira Guerra Mundial porque era
governada por judeus que, na real, nunca foram
alemães, e que traíram a Alemanha em prol dos
próprios interesses. E daí que se diz “Deutschland
über Alex”. E ainda “onde houver um alemão
haverá uma Alemanha” e, da mesma forma, “A
482
Alemanha é para os alemães”. A questão de
tipificar o judeu como traidor é algo culturalmente
cômodo. Porque na cultura cristã o judeu é visto
como traidor e deicida. Judas tem o radical “jud”,
que é encontradiço em “judeu”. Estes chavões
foram cunhados por Bismarck que em 1871 unificou
a Alemanha. Bem, todo este exemplo de Hitler e da
Alemanha porque Weber era alemão e porque
Hitler sempre será uma personalidade
reconhecidíssima. Weber chama a atenção para a
ação e para a não ação. Porque quando diminuo a
velocidade de meu automóvel porque o semáforo
avermelhou, estou preocupado em evitar qualquer
tipo de colisão ou abalroamento. Isto vale para o
mundo da economia. E nem precisamos sair do
exemplo para falar de economia,de capitalismo e
de sociedade, porque é um absurdo o que se perde
de vidas humanas e riquezas em acidentes de
trânsito. Mas Weber dá nome aos bois, ele trabalha
com quatro modelos, são eles: 1) Racional-
lógico:que é o comportamento puro e simples,
como o via Durkheim; 2) Lógico em relação a
483
valores: que é o comportamento relacionado a uma
pirâmide axiológica; 3) Emocional: que é o
comportamento enviesado pelo sentimento e, por
fim, 4) Tradicional: que é o comportamento que
espelha a manutenção de uma prática herdada. É
assim que posso ter um forte sentimento negativo
em relação a alguém e planejar sua morte ao longo
de vários meses. Assim como, por exemplo, o
padrão emocional com o racional. Weber fez um
estudo entre operárias alemãs e constatou que as
mulheres mais velhas e casadas eram mais
diligentes e se acidentavam menos. Já as operárias
novas eram menos trabalhadoras e se acidentavam
mais. Mas o que surpreendeu Weber foi um terceiro
grupo, o das novas operárias ainda mais diligentes
do que as veteranas. Elas eram pietistas, o que
significa que a religião desempenha um papel
fundamental nos ditos modelos, repercutindo
diretamente na sociedade em que estas pessoas
estão inseridas, seja ela, a capitalista. Weber ainda
observa que os operários devidamente
sindicalizados se alistavam para a guerra para
484
morrer pelos ideais burgueses, o que indica que
eles tinham mais apreço pelo seu nacionalismo do
que pelo movimento proletário internacional. Os
junkers traíram os alemães. E por isso os
camponeses já não queriam mais trabalhar para
eles. Então eles aumentam o salário dos
camponeses para dez marcos diários, mas os ditos
camponeses preferem mudar seu estilo de vida, ir
para o meio urbano e receber de quatro a cinco
marcos na produção fabril. Quem acabou
trabalhando para os junkers foram os polacos ao
preço de um ou dois marcos por dia. Ao contrário
do que se costuma fazer, isto não prova que os
poloneses se submetiam a condições menos
dignas do que os alemães e aqui resgato a
objetividade de Marx, porque só pode rejeitar
trabalho duro e mal pago quem tem melhor opção.
Feliz a colocação do professor Gilson Costa Aguiar
de acordo com o qual “não podemos criar igrejas
dentro da ciência” e é por isso que troco de autores
como o ar que eu respiro. O importante é
acrescentar conhecimento. E aqui aproveito o
485
espaço para explicar o termo “positivismo”, ele vem
da matemática, no sentido de que o conhecimento
da humanidade é um permanente
acrescentamento. Embora Lakatos, Kuhn,
Feyreband, Popper e outros mostrarão que o
conhecimento é bem mais do que uma simples
soma. Weber classifica o poder de três maneiras: 1)
o racional: que é o instituído; 2) o orgânico: que é o
que reflete as condições e 3) carismático, que
depende de emotividade. É importante trazer estes
elementos à baila até porque no capitalismo há
uma impossibilidade de se isolar problemas. Por
mais que, doutro modo, se tente privatizar o
sofrimento como se o indivíduo fosse algo separado
da sociedade. Em geral, se vê que as culturas mais
fortes são as que possuem melhor prospecção no
capitalismo, mas não ao mesmo tempo as que mais
sofrem. Só se entende o genocídio cometido contra
os japoneses se se considerar que eles se
entocavam nas cavernas das ilhas e de lá não
saíam a qualquer preço de sorte que não havia,
apesar do desequilíbrio de forças, a menor
486
possibilidade de rendição. Com as duas bombas
atômicas sobre o Japão, Hiroshima e Nagasaki o
Imperador pede ao povo que se renda. Além de
país sofrido hoje o Japão é uma das maiores
potências capitalistas. O capitalismo atual é bem
representado hodiernamente pela figura de
franquia. Porque posso beber coca-cola, lanchar
McDonald e calçar Nike mesmo que se trate de
marcas na sua fantasia e abstração nefelibática.
Porque quem produz e vende os produtos não são
as marcas, as marcas são apenas as marcas, um
logotipo identifica um padrão criado midiaticamente.
O capitalismo de nossa era tem uma característica
muito peculiar: ele é global. Sim, o capitalismo
passa por cima de toda e qualquer cultura como um
trator passa por cima de um jardim de margaridas
com suas brutas esteiras. O capitalismo é mutante
e transcultural. O capitalismo é uma invenção das
culturas europeias ocidentais e se apossou do
mundo todo. E os países periféricos deixaram e
estão deixando de ser uma roça para rivalizar com
as velhas potências capitalistas. É assim que os
487
Tigres Asiáticos assombram a União Europeia e os
Estados Unidos. O capitalismo é algo retumbante
que se impõe sobre as culturas, mas ao mesmo
tempo vai sendo culturalmente assimilado. Isto
significa que, ultrapassada a fase de adaptação e
aculturamento a sociedade neocapitalista pode
capitalizar-se socialmente mais do que as
sociedades matrizes. Isto significa que o
capitalismo pode, e efetivamente é o que vem
acontecendo, ser praticado de forma intensificada
de modo que o nível de riqueza acumulada das
sociedades neocapitalistas se aproxime, em parte e
ultrapasse o nível de acumulação, por exemplo, das
sociedades europeias. Como dinheiro é poder,
significa que o centro de poder do mundo é volátil e
dinâmico. Daí que as personalidades mundiais
laboram pela cooperação dos povos como meio de
evitar guerras e conflitos que assinalam os
primeiros tempos da história humana, bárbara e
belicosa, essencialmente instável. O que diferencia
capitalismo de socialismo não é a presença ou
ausência de planejamento, mas o nível de
488
planejamento, porque no comunismo ele desce aos
mínimos detalhes. No capitalismo o planejamento
adstrinje-se a uma espécie de dirigismo da livre-
iniciativa. São traçadas diretrizes gerais que
regulamentam a vida das pessoas pela política de
administração do crédito, do juro, do câmbio,da
emissão de moeda e do mercado de ações cujos
mecanismos são as instituições financeiras,
mormente as bancárias e a própria política estatal
genericamente falando. Os centros de poder são o
Ministério da Fazenda e o Banco Central. O
sistema financeiro é centralizado e evita-se,
mediante lei, a sua pulverização punindo o usurário,
porque quanto mais concentrado o ponto através
do qual se movimenta o dinheiro, maior a
ingerência do poder político sobre o destino dos
cidadãos. É a concentração do sistema financeiro
que permite se trabalhar com políticas
fomentadores do consumo para aquecer a
economia ou praticar políticas mais austeras de
restrição de crédito, de elevação do custo do
dinheiro e de desaceleração em nome da anti-
489
inflação. A inflação é um modelo de crescimento
econômico de pauperização da classe média e
principalmente das classes mais pobres. Porque
quem é dono dos meios de produção ou se aplica
ao comércio pode indexar a carga inflacionária nos
produtos que comercializa. A classe trabalhadora é
só compradora de mercadorias e não vende nada
para que possa transmitir o encarecimento do custo
de vida para terceiros. A única mercadoria que ele
vende é sua força de trabalho e não tem o poder de
tabelar a própria mercadoria. É o patrão, ou melhor,
é o mercado que diz quanto vale a mão de obra. A
inflação, concluindo o raciocínio, é uma sangria das
classes mais pobres para as mais ricas. É a
potencialização da extração de mais-valia das
classes trabalhadoras. O Brasil e outros países da
América Latina adotaram este modelo por muito
tempo. O problema dele, além da pauperização
daqueles que sempre pobres foram é que afasta o
investimento estrangeiro. Porque não é vantajoso
desenvolver atividade econômica num país em que
em dado momento, por exemplo, dólar e cruzeiro
490
se equivalem e seis meses depois o cruzeiro vale
apenas a metade do dólar, o que significa uma
desvalorização de 50% se eu quiser agora
reconverter meus cruzeiros em dólar. Para evitar
estes problemas é que existem mecanismos
financeiros que permitem ao investidor estrangeiro
obter alta taxa de retorno num país razoavelmente
seguro, não tão sólido como nas fortíssimas
economias, mas seguro o suficiente par compensar
o risco que se corre. Trata-se de risco módico e
rendimento muito bom. Hoje as reservas do Brasil
são suficientes para pagar a dívida externa e ainda
fazer restar um considerável remanescente. Mas,
como se diz, dívida externa não se paga, se
administra. Politicamente, às vezes, é interessante
permanecer endividado. Hoje, além de o Brasil não
ser tomador de empréstimo, está a emprestar para
fundos internacionais. O Brasil é, por isso mesmo, o
carro chefe do MERCOSUL e provisoriamente não
conta com o Paraguai no bloco pela maneira pouco
jurídica como Lugo foi deposto da Presidência da
República. O capitalismo funciona muito bem se for
491
sabiamente administrado independente de que seja
o dono dos meios de produção: particulares ou o
próprio Estado. O segredo do capitalismo é a
exploração da natureza e do ser humano através
da técnica. O brocardo kantiano é a exploração da
natureza e do ser humano através da técnica. O
brocardo kantiano “age de tal maneira que o ser
humano seja sempre fim e não meio” não passa de
um belo aforismo filosófico. Porque a lei do mundo
espiritual é fazer de nós mesmos mediações,
pontes, instrumentos. A afirmação da
individualidade passa pela sua negação. O
capitalismo é um fenômeno moderno. Na
Antiguidade, contudo, havia espectros de
capitalismo. A isto Marx chamou de formas
econômicas pré-capitalistas em um manuscrito que
só depois de sua morte seria publicado. Em outros
modos de produção que não o capitalista também
existe a mais-valia, inclusive no socialismo. O que
faz com que o capitalismo seja capitalismo e não
outra coisa é o desembaraço do assalariado dos
vínculos de submissão, sendo juridicamente
492
homem livre e, outrossim, livre no sentido
econômico, no pior sentido, estando numa situação
de quem é dono tão somente de sua própria força
de trabalho. Ou seja, não existe capitalismo sem
ordenamento jurídico capitalista. Isto significa que
posso transformar uma sociedade capitalista em
outra qualquer pela mudança da lei e da
jurisprudência. É assim que declaro o negro livre e
igual porque quem é mão de obra não assalariada
não pode consumir e o capitalista só faz girar a
economia para extrair mais-valia se há quem
consuma o que for produzido, o que requer um
mínimo de dinheiro em mãos. Não podemos dizer
que o capitalismo gera diferença, perpétua porque
a sociedade é complexíssima e chega a ser infantil
dividi-la em apenas duas classes.
Comunismo: a ideia de capitalismo de Estado
Lênin costumava definir o socialismo científico
como síntese de tudo aquilo que o século XIX havia
produzido de melhor: a filosofia clássica alemã, o
493
socialismo utópico francês e a economia política
inglesa. Mas Marx substitui o idealismo da filosofia
pelo materialismo, mas aceita a dialética, o que
difere do materialismo estático de Feuerbach.
Quanto ao socialismo, faz dele uma ciência, o que
difere dos contos de fada anteriores sem
aplicabilidade prática alguma. Quanto à economia
explica ela não pela aparência, mas pela essência,
que até Marx estava oculta ainda que Davi Ricardo
tenha se dado conta da mais-valia de modo
embrionária. O capitalismo figura na obra de Marx
como objeto de análise e crítica e as melhores
abordagens teóricas capitalistas são abordagens de
fracassos. O marxismo é perito em explicar o
fracasso. Marx previa a aparição do socialismo nas
economias capitalistas mais desenvolvidas e
acabou ocorrendo o reverso disso: ele foi
implantado na Rússia, no Leste Europeu, na Ásia,
na África e em alguns países da América Central e
na América Latina. No Brasil a Intentona Comunista
de Prestes em 1935 não deu certo porque os pés
vermelhos nacionais cometeram erros estratégicos
494
olímpicos. Alexander Soljenitsin escreveu
Arquipélago Gulag e mostrou que indústria de
presos políticos é o comunismo. No socialismo real
há uma total falta de liberdade um clima
pesadamente policialesco. Porque o mérito
individual é algo que não existe. Assim, o vendedor
de bolinhos de carne na praça de Varsóvia, ao final
do dia, não podia levar para casa os bolinhos não
vendidos e eles eram jogados fora. Porque se o
vendedor se apropriasse dos tais bolinhos haveria
uma diferença de fruição dos seus vizinhos. Ou o
senhor Jossif que furava a fila de quem queria
consertar a televisão antes, pois pouco importava
quantas televisões consertasse de dia pois o seus
salário seria sempre o mesmo como capitalista,
pois esta era a única maneira de transcender o
trivial. Como dizemos, no socialismo também há
mais-valia. Além do imposto o governo se apropria
da mais-valia. Isto gera dinheiro para se investir ou
planejamento. Mas o que realmente recebe verba é
armamentismo, militarismo e corrida espacial. Em
geral vê-se o trabalhador da sociedade capitalista
495
desenvolvida em melhor situação do que o mesmo
trabalhador no socialismo. Não há hierarquização
de salário com o grau exato de responsabilidade e
conhecimento técnico. Os engenheiros e médicos
são mal pagos. A mais-valia é usada ainda para
tapar buracos. Empresas superavitárias sustentam
empresas deficitárias. Ou seja, toleram-se
empresas que dão prejuízo porque empregam
pessoas. Não há fomento à iniciativa privada.
Todos precisam ser cobrados por fiscais e há até
mesmo o fiscal do fiscal. O planejamento também
não funciona às mil maravilhas porque é preciso
fazer fila no mercador e no restaurante. Nas
olimpíadas é maximizado o desempenho presente
do físico do atleta ao preço de uma morte precoce
do mesmo. O socialismo nega todos para afirmar
todos. Nada mais lógico e perfeitamente dialético.
No capitalismo, pelo menos, alguns são alguma
coisa. Mas no socialismo todos são nada. O
socialismo gera o crescimento da burocracia, mas a
eficiência não cresce na mesma proporção da
estrutura e do pessoal que a estrutura comporta. O
496
socialismo pretendeu ser uma escola de gestão, e
em algum sentido até conseguiu ser com a NEP e
os planos quinquenais, mas faliu por má-gestão. A
Perestroika faliu a URSS porque quis fazer a um só
tempo uma reforma política e econômica. É mais ou
menos como fazer dois grandes procedimento
cirúrgicos num mesmo paciente. O bom senso nos
diz que devemos primeiro fazer um procedimento e,
quando convalescer da primeira intervenção fazer a
segunda. Enquanto houver capitalismo haverá
socialismo enquanto que o socialismo é o eterno
discurso de quem não se conforma à desigualdade
e à injustiça. Como mostraram os filósofos
marxistas culturalistas ou frankfurtianos, o
marxismo é um iluminismo. No sentido de que
pretende organizar a sociedade a partir da razão e
de que vela pela igualdade, fraternidade e liberdade
dos revolucionários franceses. O socialismo
pretendeu reconciliar o homem consigo mesmo,
mas gerou muitos conflitos. O martelo e a foice da
bandeira da URSS significa a resolução da tensão
cidade versus campo. O capitalismo puro e o
497
socialismo puro não são capazes de realizar o
homem, mas a síntese de ambos consegue. A
prova disso é o New Deal e o Wellfare State que é
um capitalismo repleto de políticas públicas e
sociais. É como se os capitalistas abrissem mão
dos anéis para ficar com os dedos. A Constituição
do México e a Constituição de Weimar são ícones
desta ideologia. Quanto, todavia, em 1989 cai o
muro de Berlim e em 1991 cai a URSS com o
fracasso da Perestroika de Mikail Gorbachev, as
políticas do capitalismo social vão à bancarrota. É
interessante perceber que a Constituição Brasileira
é de 05 de outubro de 1988, anterior aos dois
eventos de malogro do socialismo. Trata-se, pois,
de um diploma jurídico calcado em ideais que
perderam o bonde da história. Assim, o que vemos
é uma legislação social reduzida a normas
programáticas pelo Judiciário de um modo geral e
pelas Supremas Cortes. Muitos dispositivos até
hoje não foram regulamentados por lei. E o
mandado de injunção que teria o poder de coarctar
o Legislativo foi relegado à ineficácia pelos
498
Tribunais que lhe tiraram a viabilidade processual.
O legislador às vezes parece esquecer que se
alguém recebe um direito um outro alguém terá de
pagar uma conta ou de alguma forma cumprir um
dever. Por outro lado, quando o capitalista quer
fazer cortes nas saídas a primeira coisa que
vislumbra é o direito do trabalhador assim como os
governos tolhem a verba da educação e da saúde.
Há quem classifique os direitos em gerações.
Primeira geração: legalidade, propriedade.
Segunda: liberdade de pensamento e expressão,
direitos políticos e cidadania. Terceira: os direitos
sociais. Quarta: difusos, do meio ambiente
equilibrado, do consumidor. Temos que zelar por
aquilo que já conquistamos, porque corremos um
sério risco de retroceder. De um modo geral os
direitos sociais têm retrocedido na maior parte do
mundo. Vivemos na sociedade da informação onde
nós mesmos devassamos a intimidade de nossa
vida, onde gastamos todo o nosso tempo de não
trabalho com assimilação de informações que nem
sempre têm outra serventia senão o estar por
499
dentro da fofoca e não nos sobra tempo para
discutir política partidária ou sindicalismo. Engels
compara a formação de um exército de ideólogos
socialistas ao surgimento do cristianismo que
crescia na razão direta do número de mártires. Mas
a URSS se assemelhou mais ao Império Romano
do que às vítimas por ele imoladas. O que do ponto
de vista moral é altamente pernicioso ao
socialismo. Porque a liberdade é tão sagrada
quanto a vida, bem que é atingido no caso de
miséria extrema. Porque sentido algum faz uma
vida materialmente satisfeita e um espírito
embrutecido e carente dos mais elevados ideais.
Hoje o aparato militar é tão mais sofisticado do que
o armamento do Czar que dificilmente uma
revolução comunista teria êxito em qualquer parte
do mundo. Se a exploração tornar-se crescente e
os trabalhadores forem reduzidos à escravidão,
assim como o foram os judeus no Egito, não haverá
força humana ou tecnologia que colocará termo à
infelicidade e extrema opressão, senão um Deus
poderoso como o que humilhou o Faraó, o homem
500
mais poderoso do mundo. E por falar em Deus, o
maior de todos os erros do socialismo científico é
defender o materialismo ateu. Porque não há como
haver libertação voltando as costas ao Libertador. A
religião cristã do tempo de Marx realmente perdeu
o foco ficando alinhavada com o explorador e só
muito tempo depois é que faria a opção preferencial
pelos pobres. De toda forma, parece que estamos
diante de dois erros teológicos e nenhum tem o
condão de anular o outro. Porque Cristo fala dos
pobres em espírito, o que é diferente de ser
simplesmente pobre. Há quem diga que o
comunismo é uma ideologia cristã e há quem
interprete o cristianismo a partir da parábola dos
talentos. Na verdade, o cristianismo ao mesmo
tempo é ambas as coisas e nenhuma. Talvez o
cristianismo seja um socialismo endossado. Sim,
porque o que vemos no socialismo real é a
incapacidade de abolir as classes porque umas
funções exigem mais que outras. Como assinalou
Gramsci, os comunistas não são contra os cristãos,
pelo contrário, querem criar o tão sonhado céu
501
cristão já aqui nesta Terra. cristo disse dos cristãos
que deveriam ser sal da terra, mas sentido algum
tem ser sal de um grande saleiro, é preciso que
haja terra e erro maior ainda é achar que a terra
não precisa de sal. O socialismo é um discurso
extremamente ousado. Porque ele defende
justamente os mais fracos diante dos maiores
poderes deste mundo. Neste sentido ele é corajoso,
belo e heroico. O socialismo é como uma bela flor
que exala delicado odor e está enraizada no
esterco em decomposição. São as mazelas sociais
sendo convertidas em ideologia séria e
comprometida capaz de discursivamente fazer
frente a outros discursos, pois trabalha com
excelentes categorias. Por mais que o marxismo
fale em condições objetivas, ele pode ser definido
como um fenômeno essencialmente cultural. Assim
como a psicanálise: ela diz estar tratando do ser
humano, mas não passa de um dos pontos
possíveis. E não é fácil ser produtor cultural hoje
em dia. Porque em nenhum outro tempo vivemos
uma pletora tão grande de músicas, novelas,
502
cinema, romances e todo tipo de literatura. O
marxismo e a psicanálise ainda são fortíssimos em
nossos dias, mas cada vez mais deixam de ser os
senhores discursos por se tornarem mais um entre
outros. O que também contribui para o
enfraquecimento do socialismo é a ascensão da
escolaridade. Porque se no passado a grande
escola era o sindicato, hoje em dia é raro quem não
tenha curso superior. E o enfoque são os cursos
técnicos. Os tecnólogos se acham tão entendidos
em ser humano, sociedade e tudo o mais quanto os
licenciados e bacharéis das ciências humanas. E
mesmo nas ciências humanas nos cursos de
instituições privadas o socialismo já não é a noiva
de outrora. Com toda razão, pois não faz sentido
desprezar o metal quando é ele que mantém a
universidade e os professores. As instituições de
ensino costumam alardear que quem tem curso
superior tem melhores salários do que quem não
tem. De um lado isto é verdadeiro, mas, de outro, o
que se vê é que as pessoas não têm renda porque
possuem curso superior, mas possuem curso
503
superior em função da renda. O curso superior
parece ser uma das primeiras opções de
investimento hoje em dia. E é justamente esta
qualificação profissional que faz o diplomado ver a
si próprio como artífice do próprio destino e não
mais como mero agregado no empreendimento do
patrão. Porque em alguns casos o patrão depende
tanto do empregado graduado como este daquele.
E o empregado graduado, se não vê a si mesmo
como patrão, também não consegue se identificar
com aquela mão de obra bruta. O problema de um
partido socialista numa sociedade capitalista é que
ele está adstrito a fazer uma boa administração, o
que em tese qualquer partido poderia estar
fazendo. E mesmo que o Partido consiga o
Governo Federal não pode, senão através de
golpe, subverter o Estado de coisas. A ideia de
socialização é só uma das grandes ideias
possíveis, que em função da pluralidade de ideias
fica muito relativizada. Pensamos que chega a ser
uma ideia uma sociedade de capitalistas e um
governo socialista. O problema é que os capitalistas
504
não estão rendidos e patrocinam seus
representantes nos poderes constituídos. Os
próprios partidos de esquerda estão estruturados
muitas vezes a partir de modelos norte-americanos
e o PT é um exemplo disso em que a militância não
pode votar diretamente no candidato quando o
assunto é seleção para cargos estratégicos do
próprio partido. Muitas vezes o discurso de
esquerda é meramente retórico e instrumental de
formas que quando o político de esquerda é o
empoderado não passa de um burguês
simpatizante de ideais atenuantes do sistema, mas
que não derrogam o sistema. Hoje que estou a
almoçar no mercado público da Ilha da Fantasia,
nossa Floripa, capital de nosso Estado, sinto o
quanto é complexo fazer política numa comunidade
em que nas calçadas centrais transitam centenas
de pessoas por minuto. A poucos metros daqui está
a Assembleia Legislativa em que temas centrais de
nossa coletividade são discutidos e em relação aos
quais maior parte dos insulanos estão tão distante
quanto nós interioranos. Encontro-me agora em
505
audiência pública para discutir a radiodifusão
comunitária e a digitalização das rádios. Embora as
rádios comunitárias ostentem discurso de
esquerda, parece que a centralização dos meios de
produção de notícia favorece a um governo tanto
capitalista quanto socialista. Porque é mais viável
barganhar com um só grande do que com vários
pequenos. A mídia enfrenta em linhas gerais o
mesmo problema que o socialismo: combate aquele
que é o seu poder concessor. O PDT é um tipo de
socialismo interessante: sim, porque defende a
legalidade. Porque em dados momentos o
socialismo se tornou o partido dominante pela
legalidade burguesa e então a burguesia subverte a
própria ordem, a própria legalidade e o próprio
regime democrático. Quando o trabalhador reclama
seus direitos trabalhistas não está defendendo o
socialismo, mas o capitalismo. E isso se explica à
Carta di Lavoro italiana e à CLT brasileira. Porque
em certo sentido a defesa do empregado é ao
mesmo tempo a defesa do empregador. Porque
indenizar o empregado significa conciliar conflito de
506
interesses típicos da sociedade burguesa. O
Judiciário limita o afã selvático e maquinal do
capitalismo e faz crer que o Estado é o garantidor
do equilíbrio das relações e da paritariedade
contratual referente à relação laboral. Capitalismo e
socialismo são duas plataformas de pensamento
que se assemelham respectivamente a um bode e
a uma ovelha. E uso estes animais sem intenção de
maniqueísmo. Tratam-se de figuras
complementares de modo que não devo sacrificar
um em nome de outro, mas toda sabedoria consiste
em dividir em iguais feixes o capim apanhado com
o zenzo. E do ponto de vista teórico não fazer
opção entre um e outro é deixar ambas perecer
sem o capim. Penso que individualmente cada um
deve fazer sua opção teórica, mas o parecer
acertado vem da decomposição dos distintos assim
como o asfalto sólido é sobreposto à brita
graduada. Se eu avaliar meus alunos
coletivamente, ou seja, somar todas as notas e
dividir pelo número de alunos, e estas experiências
já foram feitas, a tendência é de queda da nota.
507
Porque os que tiram nota de excelência são
desestimulados. E, além disso, o mau aluno fica
mais acomodado do que já é. Este é o problema da
não meritocracia: o indivíduo só se empenha se é
reconhecido ou se pode converter o resultado do
seu esforço em benefício próprio. Num primeiro
momento foi extinto o direito de herança, mas a
URSS teve de retroceder, pois todos somos
interessados em nós mesmos e o que fica depois
de nós são nossos filhos e netos de modo que
pouco nos importa a impessoalidade da
coletividade e do governo. Nesse sentido o
socialismo é um retrocesso em relação ao
positivismo que santificava os intelectuais, filósofos
e cientistas com um calendário próprio. O bom
socialismo deveria ser uma valorização da pessoa
e não o seu aniquilamento, porque em última
instância tanto o burguês quanto o proletário são
pessoas. E esta nomenclatura tem um sentido
metafísico porque ser pessoa é mais que ser isto
ou aquilo na política ou na engrenagem econômica.
Porque à luz das Sagradas Escrituras todos nós
508
somos pessoas conquanto que ser ou estar em
algum posto é circunstancial e passageiro. Feliz a
colocação de Emanuel Mounier que chama a
comunidade de Pessoa de Pessoas. Ele propõe o
cooperativismo como saída e alternativa às duas
grandes racionalidades. A ideia é excelente, mas a
filosofia de autogestão e autofiscalização, tenho
visto na prática, não funciona. Além disso, estas
cooperativas estão insertas no interior de ordens
fáticas e jurídicas capitalistas. Uma boa política é a
de participação dos trabalhadores nos lucros da
empresa. Se se criar um padrão jurídico
internacional neste sentido, o que entendo, deveria
ser capitaneado pelas grandes potências
capitalistas, não prejudicando nenhuma economia
do ponto de vista concorrencial. É preciso ampliar a
participação do trabalhador naquela riqueza que ele
mesmo produz e é preciso diminuir a jornada de
trabalho. Talvez esta seja uma saída a situações
como a da Espanha que hoje se encontra com 25%
de desemprego. É bem verdade que em tais países
se pratica a granel o seguro-desemprego, porém
509
não sei, mas suspeito, que o efeito psicológico de
uma pessoa que depende da coletividade não é
nada agradável, sobretudo se se trata de pessoa
jovem ou relativamente jovem. Capitalismo e
socialismo estão entre si, um para o outro
reciprocamente, como a espada de Dâmocles que
estava por um fio de crina de cavalo. No entanto,
um precisa do outro enquanto antípodas. Porque o
socialismo é uma antítese ao capitalismo, sendo
que o capitalismo é uma oposição ao socialismo
enquanto inexista a sociedade feudal que veio a ser
a primeira negação do ideal liberal. O esquerdismo
está sendo reinventado e faz uma leitura do
socialismo antigo entendendo que este sempre
esteve a favor do excluído que, dependendo do
espaço, do tempo e das circunstâncias, pode ser o
operário ou o camponês, mas em nossos dias pode
ser o negro, o homossexual, o índio, o cigano e
assim por diante. Como o estar no centro ou na
periferia é sempre relativo, é de se supor que
sempre haverá empoderados e outros alheios às
instâncias de deliberação social. Isto significa que
510
enquanto houver mundo haverá socialismo. Pode
acontecer que os pobres do futuro sejam menos
pobres do que os pobres do presente. Mas
enquanto eu junto R$ 1,00 e outro alguém arrecada
R$ 100,00, mesmo que eu consiga viver
dignamente com R$ 1,00 o discurso socialista me
fará sentido. Nossos avós jamais sonharam que
teríamos uma quantidade de parafernalhas em
nossa cozinha, telefone sem fio e tantos outros
comodities eletroeletrônicos. Nossa felicidade não
depende ou não deveria depender destes produtos,
mas quem se vê privado de multimeios que nas
comunidades mais prósperas são corriqueiras
começa a se sentir alienado. Entala na garganta um
sentimento de não pertença. Isto foi chamado por
Marx de alienação. O nível geral de bem estar
social é crescente. E devemos ter em vista a cada
vez mais rápida popularização destas tecnologias a
fim de que a igualdade técnica reforce aquela
igualdade filosófica e jurídica que tanto
defendemos. Claro, por outro lado a técnica tem
sua independência e o malogro do rádio digital
511
espelha a má vontade do consumidor de pagar de
10 a 20 vezes mais por um receptor mais
sofisticado em nome de uma suposta melhora na
qualidade do som.
Política: a ideia de organização do Estado
A política desde o princípio foi uma preocupação
dos filósofos. Essa parece ser a preocupação
central de Platão em A República e o mito da
caverna em primeiro lugar, antes da metafísica, da
epistemologia e da lógica, se propõe a apregoar a
mensagem de que há um grupo de iluminados que
contemplam a ideia de bem, o Sol, e está
melhormente preparado para liderar a coletividade.
Aristóteles cuida do comportamento em suas
Éticas: Ética a Eudemo e Ética a Nicômaco de
forma a prescrever ao indivíduo, e em A Política
cuida do comportamento social. A política é a arte e
a ciência de dizer quais são os meios de se chegar
ao poder, o que deve ser feito com o poder, ela
rege a procedurística do administrador da coisa
512
pública, aliás, a política se presta a cuidar da res
pública e da convivência social entre os cidadãos. A
única coisa que precedeu o debate político foi o
debate sobre a physis cujo inaugurador foi Tales de
Mileto. O grande objeto de discussão girou em
torno da natureza do governo e suas metas e em
torno de modelos ideais. O que se tem visto é que a
discussão sobre os modelos é a mais frutífera
realizada até agora, mas nenhum modelo se
cumpre sem a intencionalidade dos agentes
políticos. Aliás, os modelos são em certo sentido
impotentes e inócuos de modo que nem o mais
genial dos modelos coisa alguma irá resolver senão
antes o próprio ser humano ser aprimorado. Nos
tempos de outrora na democracia direta grega da
Antiguidade a política era feita de boca em boca. E
até hoje, nós que vivemos na pletora de recursos
midiáticos, vivemos este lado do tête-a-tête da
política. Não nos convencemos apenas ouvindo a
televisão, o rádio, o jornal e a revista, além, é claro,
da internet, mas sentimos a necessidade de trocar
ideias com pessoas que reputamos confiáveis. A
513
política pode ser comparada a um círculo de vinte
fortes homens de mãos dadas que aprisionam
duzentos: ou seja, a minoria domina a maioria
porque é unida e forte. É assim que poucos bodes
levam para onde querem um numeroso rebanho de
ovelhas: dando cabeçadas e espuleteando com
recalcitrância e tenacidade. As massas são
instâncias de manobra em primeiro lugar por causa
da divisão social do trabalho, pois liderar também é
um trabalho. A maior parte das pessoas está
preocupada em cuidar do seus afazeres e trabalhar
pela própria economia,o que lhes subtrai o tempo
de pensar os rumos da sociedade e as prioridades
da coletividade. Assim como há pessoas, e elas
são maioria, que pensam em si mesmas e nos
entes familiares todos os dias do ano, é preciso que
haja quem pense no conjunto o tempo inteiro. É
assim que a riqueza da nação é a soma da riqueza
de seus cidadãos tomados particularmente, sendo
a afirmação da individualidade a afirmação da
coletividade, e é assim que o que nega a si pelo
bem social se torna um homem público, sendo a
514
afirmação do coletivo a afirmação do indivíduo. A
política se assemelha muito às práticas de
mercadologia que enaltece uma marca e o produto
rotulado com a determinada marca. O candidato
vende sua imagem. A relação de sufrágio está se
assemelhando cada vez mais a uma relação de
consumo. Abraham Lincoln falou que o magistério e
a política são para aqueles que fracassaram na
vida. Porque a política é tão meditativa e reflexiva
quanto a filosofia. A vantagem da política em
relação à filosofia consiste em ela receber muito
mais feedback. Todos gostam de opinar, criticar e
sugerir, o que enriquece tremendamente a
racionalidade. A política é altamente concentradora
de inteligência em razão de ser exaurientemente
debatida. Ao lado da escola tradicional, a Igreja e a
política são as maiores escolas pelas quais um ser
humano pode passar. A política recebe muita
contribuição da filosofia, o que é de sumo bem.
Porque em filosofia a pouca quantidade é mais que
compensada pela excelente qualidade dos que a
ela se aplicam. A opinião pública é muito útil na
515
fase preparatória de levantamento de polêmicas e
pontos candentes. E os filósofos tomam da plebe
os problemas suscitados e em seus gabinetes
ruminam as prováveis soluções. A política é tão
poderosa que faz dum homem sem talento um
super-herói. O triste é quando ocorre o inverso
disso: os competentes e diligentes além de não
serem reconhecidos são punidos por estarem
destituídos do carisma. Isto apenas mostra que é
mais respeitado aquele que extrai virtude dos
outros do que o que possui virtude em si mesmo.
Tudo depende de política. Sobretudo se se tomar o
termo “política” na acepção latu sensu. Mas ainda
que o termo “política” seja tomado strictu sensu
deve-se dizer que a relevância da política é
crescente pela tendência de juridicização da vida,
pela burocratização e pela estatização do nosso
cotidiano. O Estado está controlando cada vez mais
as pessoas, mas é raro fiscalizar se da fiscalização
não adviesse a punição para aqueles que são
flagrados pelo sistema praticando infração
administrativa, contravenção, crime, ou até mesmo
516
desleixo meramente moral. A política faz o homem
ser homem. Porque os animais só conhecem a
força bruta para administrar e conciliar conflitos de
interesse. País desenvolvido é aquele que possui
democracia forte. O modelo ideal é aquele que
mescla aristocracia com democracia. Na ótica de
acordo com a qual poderíamos escolher a equipe
ou o líder que reputamos ser o melhor. A política é
a viabilização não só do interesse público, até
porque tudo que é público é uma abstração, mas é
a realização de interesses pessoais e de
segmentos. É assim que um deputado federal que
usa a gráfica parlamentar para publicar o próprio
livro faz um bem a si mesmo e à coletividade se o
material for de razoável qualidade. É assim que o
interesse de uma tribo indígena contempla um
coletivo relativo e diminui para determinado Estado
a área de exploração econômica da qual depende o
desenvolvimento de uma região. A política e a
estratégia de conciliação do individual, do particular
e do universal, ou seja, do um, dos alguns e de
todos a um só tempo. Estas três categorias são
517
como variáveis que flutuam no vácuo de sorte que
em dada época uma se sobressalta em detrimento
das outras duas, sucessiva e alternativamente. A
política depende do voto e da capacidade de
articulação. Como é desgastante ser governo, é
mais esperável o declínio do prestígio de um
político do que o inverso disso de modo que a
relevância da articulação é crescente. José Sarney
ilustra isto muito bem. E o bom articulador é aquele
que se faz liderança entre as lideranças. Isto é
esperteza e malandragem no bom sentido da
palavra e, no caso do Brasil, às vezes, também, no
mau sentido. Não adianta reclamar dos velhos
caciques. Ninguém é forte por si mesmo. Se há
quem seja empossado é porque há quem vote.
Porque veteranos na política mostram que a
comunidade não teve capacidade de produzir
novos líderes. Liderança e comunidade são efeito e
causa um do outro, mas a preponderância deve ser
atribuída à comunidade até pela sua quantidade
majoritária. A política é uma arte. E a prova disso é
que em certos municípios brasileiros o bisavô até o
518
bisneto foram prefeitos. Ora, não é possível que
carisma seja um dom, até porque o que se vê é que
os talentos dos filhos quase sempre são diferentes
do talento dos pais. Política é algo que se aprende,
é algo inculcado e introjetado culturalmente. Até o
modo de se relacionar com as pessoas é algo que
se aprende. Diria que ser herdeiro de uma tradição
política é mais um fardo do que uma chance
grande. Ou melhor, tudo depende do ponto de
vista. Porque o que é bênção para um pode
representar apenas incomodação para outro. De
todo modo, vemos verdadeiras árvores
genealógicas dentro do Congresso, das
Assembleias Legislativas e dos Tribunais. A
genética leva consigo não só informação
cromossômicas, mas também um cabedal de
informações que ficam salvas em memoriais
metacromossômicos. E é por isso que muitas vezes
um ser humano só vai entender quem ele é aos 30,
40 ou 50 anos. A política vem bem a calhar com a
teoria weberiana dos modelos. Sim, porque o povo
faz uma determinada ideia sobre os chamados
519
políticos profissionais e até acerca das famílias de
políticos quando a referida arte é mais arraigada. O
marxismo faz da política uma ciência. Mas o
socialismo científico enquanto teoria revolucionária
despreza as urnas porque entende que o povo está
alienado e a elite do partido deveria comandar a
subversão do estado de coisas pelas armas se
aproximando da estratégia guilhotinesca da
revolução burguesa. Em grande medida a história
de um povo é a História das suas instituições
políticas e das diretrizes firmadas por seus
expoentes ao longo do tempo. É por isso que se diz
que a História é sempre a História dos vencedores.
E como a burguesia conseguiu se impor sobre a
nobreza e o clero, é festejada como a libertadora.
Mesmo que certos apaixonados por número jurem
de pés juntos que a Revolução das Luzes matou
mais pessoas em uma semana do que o Tribunal
da Inquisição em mil anos. Durante muito tempo se
apregoou abertamente o darwinismo social e hoje
há uma crítica muito forte às ideologias eugênicas.
Entrementes, o que se vê é que ainda hoje se
520
pratica darwinismo social, todavia, de forma velada.
E não se faz isto porque o ser humano é mau, mas
porque esta é uma lei natural e as leis naturais são
eco das leis espirituais. A escravidão e a grandeza
de um homem depende de seu pensamento e o
voto reflete o nível de pensamento do sufragante. A
urna é o filtro, é o parâmetro de depuração do
burilamento de pensamento do homem médio.
Escolhemos a quem iremos nos submeter. E a
escolha sempre parte de quem o nosso
representante é melhor do que nós mesmos. Do
contrário, entendo eu, nos lançaríamos candidatos.
A política muitas vezes é dúbia. Isto pode acontecer
inclusive nas políticas eclesiásticas. João Paulo II,
por exemplo, tinha frases bombásticas a ponto de
dizer “a teoria da evolução é mais do que uma
teoria” e acolá “é impressionante como um
esquadro e um compasso podem reunir tantos
homens de bem”, ou seja, o discurso era arrojado,
mas a política de nomeação de bispos e cardeais
era conservadora. O discurso estava lá na frente e
os príncipes católicos egressavam das alas mais
521
conservadoras. João Paulo II foi inteligente, pois
disse o que o mundo queria ouvir e cuidou de não
deixar se criar movimentos separatistas
antirromanos. A estetização da política, em que
pese aquilo tudo que Walter Benjamin escreveu, é
fundamental. Porque numa empresa cerâmica o
patrão tem de falar que a empresa segue padrões
internacionais, que tem este e aquele certificado,
este e aquele reconhecimento, muito embora saiam
pratos tortos dos fornos. O discurso não pode ser
realista porque a função da política é negar a
realidade e não se conformar a ela. A política tem
de ser transformativa e o discurso deve antecipar já
no tempo presente aquilo que o idealizador prevê
para amanhã. Política é mobilização e articulação.
Com os meios virtuais, hoje, mais do que nunca,
ficou relativamente fácil reunir alguns milhões de
assinaturas em prol de uma causa. Vemos que a
política é também – e sempre e necessariamente
em última instância – choque de valores. É assim
que parlamentares de esquerda defendem
interesses homoafetivos e a bancada evangélica o
522
repúdio a padrões diferentes dos que prescrevem
as Sagradas Escrituras. É assim que a bancada
ruralista defende a propriedade, no diapasão do
tríduo tradição, família e propriedade, e os
esquerdistas, somente neste momento uns poucos
radicais a la Trotsky, defendem o movimento dos
trabalhadores sem terra cuja pano de fundo é a
justiça social e a função social da propriedade.
Liberalismo defende liberdade porque a liberdade o
é também de concorrência em desfavor do
protecionismo social e o socialismo defende o
coletivo em desfavor da liberdade. Amarthya Sem
foi sábio ao paradoxalizar as coisas em niti e nyaya.
Ele deixou claro que os princípios que norteiam a
política são contraditórios e desencontradiços. O
papel da política é conciliar o inconciliável. É
realizar o impossível. Sen, seguindo as pegadas
dos utilitaristas, como Jeremy Bentham e John
Stuart Mill diz que a cobertura tem de ser a mais
ampla possível, mas não necessariamente integral.
Habermas endossa a ideia de que a integralidade
pertine à comunidade ideal, sendo que a
523
comunidade real e empírica é sempre e sempre
parcial. O que se vê é que as pessoas muito
conscientes, conhecedoras do próprio vernáculo
em profundidade e de cultura enciclopédica são
liberais justamente por confiarem em si mesmas. E
quando digo isto faço a ressalva de que há pessoas
sábias e experientes tanto entre crentes e ateus,
marxistas e liberais, protestantes e católicos.
Alguns escritores, como Paulo Leminsky, vivem do
ponto de vista bíblico dissolutamente, mas não
estamos autorizados a chamá-los de ignorantes
porque é possuidor de grande conhecimento, ainda
que se trate daquele conhecimento pagão
comumente representado pela coruja babilônica. A
política é esta câmara de gestação e parturição de
ideias. Ideias que agasalhadas por certos conceitos
jurídicos tornam-se regras. E, como tais, impõe-se-
nos sobre o pescoço e quer queiramos ou não
temos de carregá-la. Como diria Aurélio Agostinho
“carrega tua cruz e ela te carregará”. A política é o
marco civilizacional, geralmente exarado nos
diplomas legais, do grau de maturação de uma
524
sociedade. O direito é um marco seguro justamente
porque sempre há um retardo da existência do fato
social que adrede não é observado, até chegar ao
ponto de não se poder não vislumbrá-lo e aí vem a
regulação e a tutela. Não raro, o ordenamento
jurídico apenas chancela aquilo que a praxe
forense mediante a surrada jurisprudência já vinha
sabatinando há muito tempo. Fazer leis é
relativamente simples, difícil é transformar a
sociedade. De minha parte concordo que “um país
se faz com homens e livros” para abraçar-me a
Monteiro Lobato. No geral, a sociedade brasileira
está se tornando cada vez mais tolerante e isto se
deve a coibição legal contra o preconceito e as
políticas de afirmação. A política é a coisa mais
importante no mundo se se pensar que a ciência, a
tecnologia, as garantias fundamentais, os
patamares civilizacionais, a religião, as políticas
sociais, a saúde, a educação, a segurança, a
energia, as finanças, a vida em sociedade e tudo o
que se possa imaginar dependem dele. Ela é a
câmara de deliberação disto tudo. A política é o que
525
faz florescer e que faz esmorecer. Os países
governados por partidos de esquerda nos mostram
que nenhuma outra linha partidária tem uma
capacidade tão grande de mudar a cultura como a
esquerdista. Se pararmos para pensar na crítica
que os frankfurtianos fazem à cultura capitalista, e a
teoria que eles produziram também é cultura, ou
aterrissando aqui no Brasil, se pararmos para
pensar que o nosso país é o oitavo produtor de
livros no mundo e que o governo é o que realiza
mais de 50% das compras de livros, já
entendemos, por exemplo, a importância da política
para a cultura. Quem não for aristocrata não se
meta na política. Tenho visto gente de pouca
cultura, pouca renda e pouca projeção social
metendo-se na política, e acho que representam
muita gente do mesmo naipe, mas o máximo que
conseguem quando conseguem, é um único
mandato e um resto de vida reunido em uma só
linha “perseguição”. Porque o desgaste é muito
maior do que o crédito. Só para exemplificar do
ponto de vista financeiro, emergem do fim do
526
mandato com menos posses, e, às vezes, até
endividados, do que no momento anterior ao
envolvimento político. A grande dificuldade dos
nossos dias, sobretudo para os partidos de
esquerda, por incrível que a informação pareça, é a
formação da militância. Vemos pessoas engajadas
no voluntariado dos partidos de direita e, na outra
ponta, cabos eleitorais cobrando verbas laborais
dos partidos de esquerda. O crédito é assim, as
pessoas reclamam dos bancos, mas fazem igual,
temos à nossa disposição o mais belo e sofisticado
guarda-chuva em dias ensolarados. Em resumo, a
política deve ser a dialética entre teoria e prática,
no dizer de Paulo Freire, “a prática de pensar a
prática”. Enquanto a política forme pedagogos e
pedagogos formam políticos.
Filosofia: a ideia de pensar as ideias
A filosofia se apresenta como a primeira forma de
conhecimento epistemologicamente séria. Sim,
porque antes havia o senso comum, o mito e as
527
crenças religiosas e até um pouco de literatura e
teatro. Digo que a filosofia é séria porque não toma
como suposto aquilo que jamais em tempo foi
demonstrado senão admitido pela tradição. Embora
também a filosofia seja uma tradição a marca maior
dela é a quebra de tradição e do paradigma
anterior. A filosofia sempre pretendeu não crer em
outra coisa senão em si mesma, ou seja, na razão
pura, livre de preconceitos. A filosofia é
essencialmente método. Trata-se de método
racional, sistemático, analítico, despojante e crítico.
Como a filosofia irá demonstrar por si só, a
fraqueza deste método é a dificuldade de construir
conhecimento pragmático. E isto por uma razão
muito simples: o filósofo não conta com outra
ferramenta senão a própria razão. Por isso a
filosofia é só intelecção e discernimento conceitual.
Trata-se de uma inteligência que se move dentro de
si mesma. A razão é sempre relativa e, plantada
dentro desta relatividade, procura ir adiante
perscrutando as próprias premissas e os próprios
corolários.o caminho da elucidação pertence ao
528
homem porque o homem é a medida de si mesmo.
O ócio é o pai da filosofia e talvez seja por isso que
hoje já não se veem os grandões de outrora, todos
estamos muito atarefados e não nos sobre tempo
par nos voltar para aquilo que nos torna humanos:
o pensamento. O pensamento é a chave que abre
todas as prisões. O computador não inventa um
cérebro humano, mas a argúcia mental do homem
constrói um computador. A filosofia é um exercício
de força, ela trabalha com nosso ponto forte, o
pensamento. A libertação do homem está
diretamente relacionada com sensível de
pensamento. Hoje em dia o grande problema de
inserção do iniciante no mercado de trabalho é o
comportamento. Ora, o comportamento é
expressão de nosso pensamento, de nossa
metanarrativa. Se o comportamento não vai bem é
porque antes disso o pensamento é truncado. A
reflexão filosófica só se desenvolveu na Grécia do
século VI a. C. porque naquela sociedade havia
não só muita prosperidade, mas liberdade de
pensamento oriunda de um pluralismo religioso que
529
aniquila a base de uma teocracia ditatorial. Mas
como a filosofia entre em crise ainda no seu
período de formação Platão retorna ao mito e
Aristóteles se mostra racionalista, empirista e
cientista. Com o advento do movimento cultural
chamado cristianismo houve um longuíssimo
período de acomodação entre a perspectiva
religiosa e a filosófica. Houve quem professasse as
duas verdades, ou seja, uma é a verdade filosófica
e outra a teológica e houve Agostinho de Hipona e
Tomás de Aquino, respectivamente neoplatônico e
peripatético. Os referidos teóricos seriam grandes
expoentes de duas subtradições: Patrística e
Escolática. O pensamento filosófico e o
pensamento cristão foram amalgamados de tal
forma que hoje a teologia, mormente a católica, é
impensável sem essa ponte, pois os conceitos e
categorias hermenêuticas são trazidos da filosofia.
A filosofia tem a pretensão de abordar o seu objeto
de estudo, ainda que também não haja consenso
de qual seja o objeto de estudo da filosofia, de
maneira imparcial e livre de tendenciosidade. Isto,
530
enquanto disciplina. Mas o que vemos é que
embora a filosofia possa se ocupar de enteléquias,
os seres pensantes que constroem o debate
filosófico não são enteléquias, mas pessoas reais,
dotadas de emoções, valores, preconceitos e
reféns de experiências e vivências adstritas. O
resultado prático disto é que, não negando o que
dissemos acima, pois é necessário distinguir e até
separar o cultor da cultura, a filosofia sempre está a
favorecer este ou aquele ponto de vista, sempre
espelha pontos de vista limitados e subjetivos. Não
obstante o fato de a filosofia imiscuir-se com os
palpites de seus corifeus, é importante ressaltar
que um meio a cacoetes, nacionalismos,
historicismos, etc, pode-se encontrar princípios
universais atemporais e supraespaciais em todas
as obras dos pensadores de peso. Na filosofia os
conceitos nem sempre estão claros e distintos, mas
por meio de processos abstrativos devem se
liberados de um invólucro. Isto é hermenêutica.
Embora a hermenêutica filosófica seja uma
disciplina, a própria filosofia enquanto discurso
531
complexo carece de suportes oriundos das teorias
de interpretação de texto e contexto. A filosofia é
uma das grandes tradições que jamais irão se
acabar. É importante destacar que antes dos
gregos já havia pensamento filosófico. Não se
admite dizer que krishna, Buda, Confúcio, Lao Tsé
e tantos outros não foram filósofos. Filósofos eles
foram e em algum sentido o que eles disseram
transcende o dito pelos helênicos. Mas o que faz a
filosofia oriental grande é o que lhe põe para fora
da chamada “filosofia pura”. Porque os sábios do
Oriente admitiam princípios não dedutíveis pelos
mecanismos puramente lógicos. Eles se renderam
a uma espécie de intuição mesclada com
iluminação. O filósofo na concepção grega não
pode contar com outra luz senão aquela que vem
de si mesmo, ficando de lado toda transcendência e
todo paralelismo. Justamente pelo fato de a razão
humana ser eleita a juíza de tudo, estando de
costas para instâncias ad hoc é que se diz,
acertadamente, que a filosofia é um humanismo. A
filosofia é um humanismo porque tudo é observado
532
a partir da ótica do humano, mesmo o supra-
humano. Toda a grandeza de Nietzsche consiste
em negar o que não é humano para afirmar o
humano. Nietzsche não é compreendido. Nem o
próprio Nietzsche conseguiu se dar conta de que
em seu íntimo ele nunca foi ateu. A briga de
Nietzsche nunca foi com Deus, mas contra uma
determinada representação de Deus que refletia um
contexto específico, uma época específica e um
tipo, dentre muitos outros possíveis, de vivência
das Sagradas Escrituras, mormente dos
Evangelhos. Schopenhauer foi sábio ao repetir
Buda “o mundo é representação”. E Nietzsche quis
criar uma nova representação. Pois bem, se o
mundo é representação, Deus também o é. E quem
somos nós para querermos engaiolar o infinito
Deus dentro de nossas representações? A
propósito, Deus não é nem finito e nem infinito,
conquanto finitude e nem infinitude seja categorias
lógicas e Deus está acima do plano lógico humano.
A cada um compete eleger sua representação de
mundo ou o conjunto delas, sua metanarrativa.
533
somos livres para escolher, mas escravos das
consequências. A filosofia é esse negócio que se
mete em tudo porque de acordo com ela mesma
quem vê o todo é filósofo e quem não vê não no é.
Essa é de Platão. Assim, quem é filósofo tem de
conhecer o que não é estritamente filosófico e a
variedade de temas desta obra pretende cumprir
este desiderato da totalidade. A filosofia é a
disciplina mais importante dentre todas as demais a
partir do instante em que releva as contribuições de
todos os outros ramos do conhecimento e passa a
se debruçar sobre o sentido disto tudo. O sentido
do que nos rodeia e da nossa própria vida. A
filosofia procura ser a resposta às perguntas
fundamentais, os porquês e para quês, ela quer
saber donde viemos e para onde vamos. Ela quer
saber o que é a realidade, qual o nexo da História,
como devemos nos comportar individual e
coletivamente. Ela quer ser um parecer razoável a
todas as questões de alta indagação proposta pela
civilização. Ela quer agarrar a raiz do próprio
homem. A filosofia é uma antropologia. Mas difere
534
da antropologia moderna por se caracterizar pela
tentativa de romper o mundo fenomênico e também
por debruçar-se sobre o mais civilizado dos homens
e não estar voltada para o bárbaro e para o
primitivo. O filósofo é a consciência máxima de uma
coletividade. Se a filosofia de determinado filósofo é
fraca então é porque em última ratio a comunidade
à qual o filósofo pertence é fraca. O filósofo é o que
pensa a si mesmo pois não há superior que possa
olhá-lo do alto. Precisamente esta noção de que eu
sou o superior a partir do meu próprio ponto de
vista é que encoraja o pensador a propor e impor
seu ponto de vista como o supremo relegando
todos os demais a menores posições. Quando há
dois pontos de vista que estão neste ponto de mira
será a História a dizer qual deles efetivamente é o
mais saliente e funcional. A ideia tem um valor em
si mesma, isto é inegável. Toda boa ideia tende a
prosperar. Ora bem, é preciso dizer que certas
ideias nem são tão boas assim e encontram
guarida entre os clássicos porque seus
sustentadores foram tenazes e ainda conseguiram
535
converter neófitos para praticar proselitismo em
favor dela. O marxismo é genial, mas passa muito
por processos semelhantes àqueles bairristas no
território da religião. A filosofia não é apenas uma
eterna criação de conceitos ainda que também seja
isto. Ela é uma câmara de debate e avaliação de
ideias. Porque do ponto de vista filosófico posso ter
várias concepções de vida e a filosofia não é um
manancial de propostas de vida, é, ainda, a juíza de
todas estas propostas. Porque há um limite a partir
do qual não se trata mais de ideias, mas de valores.
Todavia, uma das disciplinas filosóficas é a
axiologia e os próprios valores em alguma medida
podem ser submetidos ao crivo da razão. A filosofia
é esta tendência de racionalizar inclusive aqueles
âmbitos que se reconhecem não serem muito
racionais como os sonhos, a sexualidade, etc. A
psicanálise ao afirmar o inconsciente é
antifilosófica, mas fica alinhavada com a filosofia ao
fazer catarse coincidir com a conscientização.
Quando um Comte reduz a filosofia a uma
organizadora das ciências porque conhecimento
536
sério e útil de verdade e o científico ou quando
Wittgenstein diz que a filosofia deve silenciar sobre
aqueles temas de que tratou a vida inteira, estão
indo na contramão da filosofia. Porque a filosofia
entra sem bater ou pedir licença. Ela não precisa
ser credibilizada por ninguém, pelo contrário, é dela
que os outros ramos de conhecimento tiram sua
credibilidade. Embora a filosofia, de acordo com o
momento histórico, oscila de “ancilla” a “regina”,
tenho comigo que rainha ela sempre foi e sempre
será. O que às vezes fazemos é dirigir à rainha da
sabedoria um tratamento incompatível com sua
dignidade. De todos os conhecimentos o mais
mundano é o filosófico. Porque os saberes
científicos se colocam na perspectiva de seu objeto
de estudo. Já a filosofia tem como ponto de partida
e de chegada o sujeito pensante. E este pensador
fez um pacto consigo próprio de não autorizar
ingerência na sua visão de mundo que não seja
simples inferências que se reportem sempre e
necessariamente à inteligência nos limites que lhe
são impostos pelo mundo empírico. É por isso que
537
se diz que a filosofia é uma sábia ignorância. Ela só
passa a se constituir saber quando admite que
nada sabe. O que para o homem religioso, e todo
homem do senso comum professa alguma forma de
religiosidade ainda que seja o ateísmo, entra no
discurso como presumido, subentendido e aceito,
para o filósofo não merece guarida enquanto não
for demonstrado. Ele sabe que certos
entendimentos, mesmo não demonstrados, são
partilhados pela plebe, mas ele não é plebe, pois se
plebe fosse não seria filósofo. Uma das marcas da
filosofia, portanto, é a exacerbação da exação
lógica e epistemológicas de critérios reguladores do
discurso. René Descartes levou muito a sério a
questão criteriológica e a sua dúvida metódica só
difere da dúvida pirrônica porque a partir do cogito
ergo sum ele conseguiu afirmar algo positivamente.
Ele não teve fim destrutivo, ou talvez até tivesse,
mas sua tônica é o revisionismo das bases de
nosso conhecimento. Aliás, a dúvida acerca do que
posto está não só é recorrente, mas penso que
todo filósofo de peso deve passar por este
538
vestíbulo. Porque o situar-se dentro da tradição
filosófica significa destinar galardões aos que nos
precederam. De tal modo que acabamos sendo em
grande parte aqueles homens, e o que eles
escreveram, que nós valorizamos. O ponto de vista
é algo tão curioso que mesmo em se tratando de
pontos autoexcludentes, quando nos aprofundamos
num e em outro ponto de vista parece que ambos
são igualmente plausíveis e verossímeis. E é por
isso mesmo que a filosofia contemporânea é feita
de tendências. De modo tal que nunca houvesse
uma variedade tão grande de linhas de pesquisa.
Parece que pelo fato de a filosofia ter se
especializado e se ramificado está mais difícil se
destacar na filosofia hoje. Vivemos num sociedade
de muitos e menores filósofos. Ou, quem sabe, os
vivos raramente recebem as mesmas comendas
dos filósofos já finados. A filosofia, atrevo-me a
dizer isto, é o senso comum imbuído de solenidade
e despojado da irreverência. Porque a reflexão
filosófica nasce do assombro do sujeito diante do
mundo, mas todos nós nos assombramos. E o
539
filosofar é esta postura séria de quem filosofa ou,
para não ser redundante, de quem pensa com
argúcia o que está por detrás do espanto e da
admiração. A filosofia sempre será a mais
importante disciplina quando o assunto é
transdisciplinariedade e generalização. Acorrem .à
filosofia místicos, teólogos, físicos, biólogos,
engenheiros da computação, matemáticos,
antropólogos, astrônomos, escritores, poetas e uma
plêiade incontável de homens de intelecto possante
e vontade boa e bem intencionada. Qual a outra
disciplina que consegue fazer isto? Em
compensação emergem da filosofia, a prima
sciencia, um grupo expressivo de intelectuais que
começam sua carreira analiticamente e acabam
encaminhando-se para zonas gnosiológicas mais
específicas. O método científico nasceu no interior
da filosofia e as ciências empíricas pode se
comparada à filha protestante que se rebela contra
a matriz. A prova disso é o empirismo latente na
filosofia em Aristóteles e o empirismo metafísico da
tradição filosófica anglófona. E por falar em
540
anglofonia, é importante dizer acerca da filosofia
que ela é sempre e sempre um grande idealismo. O
que é o imaterialismo fulcrado no empirismo de
Berkeley senão um idealismo? O que é o ceticismo
de Hume calcado no empirismo levado ao extremo
senão um idealismo? E o que falar da dialética
aplicada à matéria como foi concebida por Marx e
quejandos? É por isso que tanta gente procura na
filosofia respostas às perguntas mais importantes
de suas vidas, porque o homem duvida, crê,
problematiza-se e resolve pelo pensamento. A
filosofia é o âmbito privilegiado onde o ser humano
enquanto ser pensante pode se exercitar, se
emancipar e se autorreconhecer. Talvez melhor do
que uma academia de ginástica para quem almeja
educar e aprimorar o corpo. A filosofia explica o que
é um corpo, para que ele serve, o que devemos e o
que não podemos fazer com ele. A filosofia é uma
paixão da alma assim como a religião é a unção do
espírito. E o homem se sente realizado quando
espírito, alma e corpo se complementam e se
entendem.
541
Epistemologia: a ideia de processo gnosiológico
A epistemologia de certo modo é tão velha como a
metafísica se considerarmos Parmênides o primeiro
grande metafísico. Parmênides supõe, contra a
percepção dos sentidos, o modelo do ser único,
estático, imóvel e imutável para assegurar algum
tipo de cognição. Porque, como observou Popper, o
movimento nega a lógica, raiz epistemológica
última da validade de nosso conhecimento. Em
nossa obra Heráclito versus Parmênides vemos
que o desenrolar da tradição filosófica se
caracteriza pelo alinhavar-se a Parmênides ou a
Heráclito ou a fazer uma síntese de ambos. Porque,
se como quer Heráclito “tudo corre” (panta rei),
como é que poderemos construir um conhecimento
sólido que transcenda o instante em que foi
elaborado? Platão resolve o problema colocando a
alma dos seres no mundo das ideias de forma que
a ideia seja tomada na sua pureza, estreme de
corruptibilidade. Já Aristóteles fala em substância
542
que é o casamento entre corpo e alma e a alma (a
forma) seria a ideia platônica jazendo na imanência.
Assim, enquanto para Platão o mundo empírico
excita a memória e faz-nos recordar do mundo das
ideias, para Aristóteles o sujeito cognoscente é
mais ativo. Pois ele tem de laborar o processo de
abstração que é o prescindir de características
particulares ressalvando a universalidade do ser.
Quanto mais me aprofundo no processo de
abstração mais abrangente meu pensamento,
porém menos específico. Quem ganha na
abrangência perde na especificidade quem ganha
na especificidade perda na abrangência. Agostinho
diria que o processo de conhecimento se dá por
iluminação e Tomás de Aquino diria que nosso
conhecimento é a posteriori via abstração.
Johannes Hessen diz que são cinco os grandes
sistemas de ideias com os quais podemos nos
identificar: espiritualismo, panteísmo, materialismo,
ceticismo e niilismo. Já quanto à possibilidade do
conhecimento, cinco, também, seriam as respostas:
dogmatismo, ceticismo, subjetivismo ou relativismo,
543
pragmatismo e criticismo. Quanto à origem o
conhecimento poderia ser classificado dentro das
seguintes correntes: racionalismo, empirismo,
intelectualismo e apriorismo. Grosso modo, o
conhecimento pode ser inato ou agregado. Ou,
como quer Kant, os esquemas mentais seriam
inatos e o conteúdo imbutido em tais esquemas
seria agregado. A neurologia tem demonstrado que
as ligações sinápticas de nosso cérebro estão
organizadas de maneira a percorrerem o caminho
mais curto. As ligações se assemelham, pois, mais
a fios geometricamente esticados e distribuídos
economicamente do que a uma panela com uma
macarronada dentro. Isto, contudo, não anula
nossa ideia sustentada em Crítica da Razão
Cibernética onde arguíamos que conceitos raiz
estão lado a lado com informações banais. O
conhecimento é algo muito frágil. Descartes foi o
primeiro a demonstrar a limitação de nossas
certezas que não iriam além do cogito ergo sum,
todavia, apenas hic et nunc. Este, colcado ao lado
do racionalismo. Já o empirista David Hume reduz
544
o conhecimento a uma crença e à precipitação de
raciocínios obnóxios e fora da lei tal como o hábito,
a repetição e a contiguidade que transformamos em
causalidade. Para Hume o conhecimento humano é
um fora da lei. Justamente porque para ser
conhecimento deveria atender a certas leis, o que é
metafisicamente impossível. Kant concilia inatismo
e empirismo e com isto é reconhecido como um dos
maiores gênios da humanidade. Daí que a
epistemologia de Kant torna-se metafísica. Pois
para Schelling o sujeito seria o detentor dos a
prioris e do conteúdo dos mesmos. Isto equivale
dizer que o sujeito criaria a realidade. Já Fichte
rejeita o idealismo subjetivo e propõe o idealismo
objetivo de modo que o mundo real e empírico
criaria o mundo subjetivo, ideal e abstrato. Hegel,
por sua vez, com seu idealismo absoluto faria
coincidir o mundo real e o ideal, o exterior e o
interior de modo que sujeito e objeto estão para si
mesmos reciprocamente como criação e criatura,
condição e consequência. O sujeito conhece a si
mesmo. O objeto de cognição se identifica com o
545
sujeito cognoscente. Com Hegel a filosofia chega a
seu máximo e o último suspiro é o marxismo que se
forja dentro da esquerda hegeliana. Piaget
colocaria a formação dos esquemas mentais dentro
de uma perspectiva biológica em que os a prioris
iriam amadurecimento com o desenvolvimento
orgânico e neurológico da criança e Marx colocaria
o conhecimento como método dialético que tem
como meta desfazer contradições. Lukács explica o
conhecimento como algo que nasce como tese, se
exterioriza e se mescla com elementos novos e se
reconstitui e se recupera a si mesmo na síntese. O
problema do conhecimento afeta todas as áreas do
conhecimento, por óbvio, mas em primeiro lugar
afeta a própria filosofia. Porque antes de fazermos
perguntas nos perguntamos se podemos responder
às perguntas que nós mesmos fazemos. O “por
quê?” foi substituído pelo “como?”. A filosofia da
linguagem é a noção de que o conhecimento é uma
linguagem bem construída e que perguntar pela
validade do conhecimento é o mesmo que
perguntar pela validade da linguagem. A filosofia é
546
a grande prova de que em traços largos a filosofia
toda ela foi assentada por Sócrates, Platão e
Aristóteles e tudo o que vem depois disso é mero
feedback. Em regra podemos dizer que a
metafísica, que para Aristóteles era a mais
profunda das ciências por estar além da física, está
calcada sobre a epistemologia, que para os
inauguradores da filosofia moderna era o punctum
dolens, que, por sua vez, esta fulcrada sobre a
lógica. Daí a seriedade do cálculo proposicional.
Daí a importância de se trabalhar com
quantificadores e conectivos. Embora tratá-los ao
mesmo tempo dentro de uma única abordagem
possa gerar complicações seríssimas e aí estar o
nó górdio do conhecimento. Conhecer é organizar
informações. Por isso que Aristóteles foi o grande
sistematizador do conhecimento: ele colocou tudo
em gavetas. E o nosso mundo cibernético tenciona
o mesmo escopo. Os paradoxos do conhecimento
são os paradoxos da taxonomia. Nossa dificuldade
está justamente no basilar, construir assertivas
claras e distintas a partir das quais possamos
547
acrescentar informações complementares.
Episteme é um ideal. Não existe episteme. O que
existe é somente doxa. Algumas doxa são mais
criteriosas e outras são absolutamente feéricas. O
pragmatismo faz grande sentido pois para a maioria
das pessoas importa mais o resultado de
determinada crença do que os parâmetros
certificadores de determinada crença. Uma coisa
que até hoje ficou de fora da pauta dos filósofos
sendo mais abordada pelos sociólogos é a
construção social e jurídica do conhecimento. No
sentido de que é o Estado quem diz o que é e o
que não é conhecimento ao criar um ministério
voltado para credenciamento de pessoas,
instituições e produções teóricas. O problema da
epistemologia é que ela se põe o problema se se
pode construir teorias metafísicas, mas passa ao
largo do fato de que empregamos os mesmos
meios mentais e a mesma linguagem para edificar
esta disciplina que se chama epistemologia.
Dessarte, a racionalidade não consegue
transcender a ela mesma e é a razão que fiscaliza
548
ela mesma e que se autocrítica. Talvez ocorra uma
forma de transcendência quando o que se tem em
mira é a racionalidade individual. Mas esta
transcendência embasada na multilateralidade jaz
dentro da imanência do gênero. Todo trabalho
filosófico é transcendível, mas o humano não passa
ou ultrapassa o humano. A filosofia, assim como a
literatura em geral, à qual mais adiante reservamos
um capítulo próprio, começa a ser valorizada a
partir do momento em que o autor, mais tarde
aclamado como gênio consegue mudar a opinião
da crítica. O filósofo de peso é igual a todos os
outros, mas é diferente. Ele agrega um ponto de
vista distinto acerca da tradição filosófica sem sair
da tradição filosófica. A epistemologia é uma das
disciplinas filosóficas que mais promete. Porque
como a inteligência artificial é reflexo da inteligência
humana, entendemos a nós mesmos entendendo
aquilo que criamos. Porque o mundo virtual é
projeção da inteligência que mora em nós. Os
sistemas de informação são a nossa inteligência
trasladada para objetificação. Podemos olhar para
549
a nossa própria inteligência como uma coisa e a
epistemologia se livra de um dos seus grandes
gravames, o psicologismo. Embora a psicologia
também ela tenha muito a acrescentar do ponto de
vista teórico. Nos dias de hoje a epistemologia se
confunde com a filosofia da ciência enquanto cada
vez mais se tem as ciências empíricas como as
únicas capazes de produzir conhecimento seguro,
aplicável e eficiente. Porque a filosofia produz muito
conhecimento. Mas ele tem pouca eficiência
quando o assunto é majoritariamente pragmático.
Contudo, quando o conhecimento que se procura é
o crítico então a reflexão filosófica é encarada como
a mais formidável das disciplinas, deixando as ditas
“humanas” a comer poeira fina. Do ponto de vista
da cidadania o conhecimento filosófico acrescenta
mais à sociedade e à democracia mais que
qualquer conhecimento científico. Claro, para uma
sociedade de excelência é preciso que haja
profissionais bem preparados inclusive do ponto de
vista científico. O conhecimento se torna ferramenta
de pode e de transformação social quando os
550
cientistas se tornam filósofos e os filósofos se
tornam cientistas. Marx fez isto em economia ao
misturar conceitos econômicos com metafísicos. A
fungibilidade do valor em preço nada mais é do que
a fungibilidade do mundo das essências em mundo
fenomênico. E o procedimento de conversão,
chamado de o problema da transformação, é
complicado. Porque o preço é universal e o
processo de produção e circulação da riqueza
trabalha desde o princípio com a categoria de
preço, pois ele é atemporal e universal. isto tem um
significado epistemológico muito grande: porque
mesmo que conhecêssemos por completo o mundo
fenomênico e o numênico, mas desconhecêssemos
o processo de passagem de uma instância a outra,
o grande problema do conhecimento estaria ainda
por ser resolvido. A própria criação dos termos
“essência” e “aparência” é um esforço intelectual
frustrado. Porque fenômeno é o que eu capto e
coisa-em-si é o que a coisa é em si mesma. Mas
tudo o que eu capto sempre e sempre será
fenômeno. Só ultrapassaremos o nível fenomênico
551
quando deixarmos de ser humanos. E aquilo que
ao longo da tradição filosófica viemos chamando de
essência não passa de imaginação. E por isso
mesmo que Einstein disse que a imaginação é mais
importante que o conhecimento. Vai que, na loteria
da vida, o que imaginamos por sorte coincida com a
natureza mesma da coisa!? O que jamais teremos
certeza é da fidedignidade de nossas teorias. E
mesmo que a teoria consiga prever um evento isto
não a abona de modo absoluto, mas significa que
parte do fenômeno foi explicada e talvez nem seja a
mais importante. O pragmatismo é o
reconhecimento da inutilidade da epistemologia e
admite como válida toda assertiva que guarde em si
o condão de atender aos meus interesses sejam
eles quais forem, independente de em quais
premissas se firma. Aliás, o pragmatismo é o triunfo
das nulidades teóricas. Porque o dizer de si que é
pragmático e que só interessa o resultado é anular
o sentido das discussões puramente teoréticas que,
em nosso ver, são o auge da maturidade filosófica.
É assim que os debates sobre linguagem e lógica
552
são os mais profícuos, mas não devem ser
alienantes a ponto de nos fazer esquecer que
vivemos em sociedades num mundo cheio de
política, religião e todo tipo de interesses. A
epistemologia cumpre um papel não só de
ratificação e metodologia, mas de relativização
também. Porque um discurso político pode ser
falacioso do ponto de vista epistemológico e aí
então compete à epistemologia desmascará-lo. A
epistemologia não é uma disciplina cara apenas às
ciências da natureza. Os bons economistas são
filósofos e é por isso que o trabalho desenvolvido
pelos economistas são, além de verificáveis ou não
verificáveis, sujeito ao crivo gnosiológico conquanto
reconheçamos que a disciplina sofre e sempre
sofrerá uma tendência ontologizante. Tudo o que
há de mais sério se relaciona com a epistemologia.
E embora as Sagradas Escrituras cobrem do
neófito uma grande porção de fé para aí então
sobrevir a compreensão, a Palavra de Deus precisa
ser filosoficamente estudada. Este estudo, então,
daria guarida àquilo que eu chamo de
553
“epistemologia bíblica”. A epistemologia bíblica
seria parceira da hermenêutica em atribuir caráter
de episteme ou de doxa a determinadas
interpretações a partir de certos critérios. Claro,
teríamos, no caso em tela, mais de um padrão de
episteme pelo simples fato de também os padrões
epistêmicos serem variados de acordo com a
engenhosidade mental dos pensadores. Embora a
epistemologia tenha tomado fôlego na idade
moderna, desde o princípio foi preocupação dos
filósofos não reprisar as bobagens do senso
comum. E Cícero disse “não há nenhum ideia, por
mais absurda que seja, que já não tenha sido dita
por um filósofo”. Isto, deveras, é verdadeiro. Mesmo
diante de toda cautela prévia. Imaginou se os
filósofos fossem descuidados! Penso que a
Renascença exemplifica bem as teorias dos
filósofos descuidados. A vantagem de se observar
as cautelas epistemológicas é a durabilidade do
paradigma teórico. Pelo fato de Aristóteles ser
cuidadoso é que ficou por séculos e séculos sem
ser rivalizado por ninguém, pois não havia quem lhe
554
fosse páreo. E mais importante do que isto: quando
um grande autor, um clássico é superado, mesmo
que absolutamente tudo o que ele tenha dito seja
coisa rota, seu nome permanecerá indelével na
tradição porque os tijolos mais altos sempre
pressuporão os mais basilares, isto é, a arqueologia
do saber lhe fará justiça. Porque quando um autor
do passado foi importante precisamos repisá-lo
para entendermos onde chegamos e porque
chegamos. A epistemologia também cuida desta
parte histórica e aponta as gafes dos autores
pretéritos para que ao invés de patinarmos
possamos ir para frente. A epistemologia em geral
prega o impossível: o despojamento intelectual. O
grande problema é que só depois de nos
enfastiarmos de milhares de livros é que nos damos
conta de que é necessário realizarmos o tal
despojamento. Ou seja, depois de nos doparmos
com ópio descobrimos que para o bom andamento
dos trabalhos teóricos é recomendável jamais ter
experimentado ópio. Isto vale para a filosofia de um
modo geral, para o marxismo, a psicanálise e
555
mesmo para a literatura. Descobrimos que o bom
conhecimento é o desumano, mas a busca de
conhecimento firme e robusto só advém depois de
um processo pesadíssimo de humanização intensa
a partir de leituras exageradas. É assim que
pretendemos ser sábios, assimilarmos
conhecimento e, depois da exaustão livresca, nos
damos conta de que nada sabemos.
Estética: a ideia de belo
A palavra estética vem do étimo grego aesthesys,
que significa “sensação”. Foi cunhada pelo filósofo
Baumgarten. A estética nasce no Egito. Por três mil
anos seguidos se praticou um mesmo padrão
estético no Egito. Corpo medianamente alto e
esguio, suavemente moreno, embora também
vejamos a arte retratando o albino e o negroide. Do
Egito nos reportamos à Grécia. Os gregos
exaltavam o corpo que nos dias de hoje chamamos
de “sarado”. Como a cultura grega e latina
acabaram se fundindo podemos falar em estética
556
greco-romana. Acentuavam-se os traços de força
das estátuas, como a separação do corpo em
partes, de modo que era impossível que na prática
alguém tivesse tal físico. A beleza masculina era
mais apreciada que a feminina. Quando o corpo
retratado era o da mulher geralmente víamos um
corpo cheio, quase obeso e de curvas vigorosas. O
padrão de exagerada corpulência só daria lugar a
corpos magros e até mal alimentados aquando do
advento do cristianismo. A exaltação da alma
implicava a negação do corpo. Negava-se o corpo
com o fito de exaltar a alma. A beleza física passa a
ser desprezada em nome da beleza do
comportamento, agora pautado nos evangelhos e
na vida dos santos. Com a Renascença se retorna
para a natureza da qual o nosso corpo faz parte e
surgem os polímatas como Michelangelo e Da Vinci
resgatando os valores da Antiguidade. A arte deixa
de ser arte necessariamente sacra e outros valores
passam a ser cultivados. A arte deixa os céus aos
céus e começa a espelhar o cotidiano real e
concreto das pessoas comuns. Em nenhuma outra
557
área a crítica é tão importante quanto na arte. É a
crítica que faz o mictório de Duchamp virar arte. As
Duas Grandes Guerras Mundiais impactaram
grandemente os movimentos de vanguarda do que
a Semana de Arte Moderna de 1922 no Brasil v em
a ser reflexo e um grito de autonomia em relação
ao Continente Europeu. O ápice da maturação da
arte é quando ela passa do realismo para a
figuração, da figuração para uma mensagem
metafigurativa e da metafiguração para a arte
abstrata. A arte abstrata não pretende usar a arte
para outro fim que não o si mesma, embora possa
fazê-lo ou continuar fazendo. A arte abstrata sequer
quer ser reminiscência de algo concreto. A arte
abstrata é o sentimento estético puro. O seu
objetivo é agradar os sentidos e nada mais. No
fundo, embora não se restrinja a isto, a arte
abstrata reflete a máxima desenvoltura da cultura
burguesa que na contramão da estética socialista,
sempre crítica ou no mínimo ideológica, não se
preocupa em explicar o mundo, mas disponibililzar
a sensação agradável que se pode extrair de tal
558
mundo. Penso que a arte começa sua história para
valer a partir da arte abstrata. Porque algo só
começa a ser o si mesmo quando não se ancora
sobre outros elementos, mas tem o fundamento em
si mesmo e ainda comporta outros elementos que
desta vez entram como acidentes e não como
atributos substanciais. A arte abstrata é a noção de
que o mundo é pródigo de outros meios de
interpretação de maneira que o artista não mais
precisava explicar o mundo, apenas dele prover a
satisfação do expectador. O prazer puro que dá as
costas ao doutrinamento reflete, em última
instância, um mundo saturado de ideologia e
doutrina em que se busca um instante de descanso
em que o intelecto para de beligerar consigo
mesmo e entra em clima de harmonia. A arte
abstrata é a capacidade de atingir a beleza na sua
pureza sem pregar revoluções ou desenhar causas
martiriológicas. Como movimento artístico toma
uma tendência mundial e começamos a ver artistas
abstratos no Ocidente e no Oriente, nas sociedades
capitalistas e nas socialistas. A arte já foi
559
considerada pelos filósofos antigos como Platão e
Aristóteles como imitação, mas ela é mais que isto.
Porque se ela fosse só imitação e o artista vivesse
num mundo feio nada haveria de belo a retratar e a
arte perderia seu objeto. A arte, por isso mesmo, é
criação. No sentido deque a beleza é inédita e os
homens do futuro contemplarão obras de arte que
jamais vimos ou sonhamos. Como o belo é
intrínseco à imaginação e ela não tem limite,
também o belo é ilimitado. Enquanto o
eurocentrismo era a moda do momento ainda
trabalhava-se com padrões estéticos universais.
Mas hoje há um consenso que se generaliza cada
vez mais de que não há um padrão universal de
beleza. E os filósofos que defendem padrões
universais de beleza são chamados pela mídia de
“defensores de causas impossíveis”. Bem, como
explicou Kant, o juízo estético oscila entre o juízo
prático e o juízo universal, pairando uma espécie de
limbo que mescla universalidade e idiossincrasia. É
por isso que o mais belo para um pode ser o menos
belo para outro e vice-versa. Ainda que se diga que
560
a beleza é simetria, parece que a simetria entra
apenas como um dos arquétipos possíveis da
beleza. A beleza é associativa. E como a sequência
de circunstâncias, coisas e pessoas surgem na
nossa vida de acordo com o tempo e o lugar onde
estamos, é possível dizer que a beleza é histórica,
situacional e relativa. Os padrões estéticos seguem
tendências e tendência é algo que muda o tempo
todo. A indumentária que usamos sempre está
refém dos ditadores da moda. As roupas mudam o
tempo todo de modo que nosso armário sempre
está desatualizado. Na sociedade da
superalimentação se pregam ideais de extrema
magreza de forma que nos disputam roupas
exíguas e pratos hipercalóricos. Esta é apenas uma
das contradições da contemporaneidade. Ou
satisfazemos nossa gula ou nos mortificamos, não
em nome de ideais religiosos, para encher os olhos
alheios. Para o público feminino a imposição de
padrões é ainda mais agressiva e violenta.
Sócrates costumava dizer que se algo não fosse
nem verdadeiro e nem útil deveria ser, ao menos,
561
belo. Mas se nem verdadeiro, nem útil e nem belo
fosse deveria ser descartado. Particularmente, se é
que as mulheres querem minha opinião, mulher
inteligente, esta sim, que é bela, desde que evite
ser autoritária e arrogante. A inteligência jungida de
humildade e simpatia faz a moça de poucos
atributos colocar a miss sob a sola de seu calçado.
Eu vos garanto. Embora a maioria dos homens não
erijam a inteligência como parâmetro sempre há
uma minoria esclarecida e esperta. A estética é
altamente misteriosa por traços em nosso intelecto
ligações e associações atípicas e até aberradoras.
As chamadas conexões extremas fazem, por
exemplo, um conceito lógico, que não é nem
estético e nem antiestético, pareça-nos belos ou
feios. O estético está ligado, portanto, ao
paraestético. É assim que tomamos o acessório
pelo principal e o principal pelo acessório,
indistintamente. Do ponto de vista da ética o agir
moralmente é belo e agir imoralmente é feio. E
como há discussão do que venha a ser ético ou
antiético, outrossim, há discussão do que venha a
562
ser belo ou não belo. E assim como em literatura
posso trabalhar um duro tema com belas palavras,
em pintura posso retratar corpos trucidados pela
guerra de forma esteticamente desejável como o
fez Pablo Picasso. A beleza, em arte, passa
muitíssimo pelo como. É assim que numa peça de
teatro o personagem escroto pode ser belamente
representado por um artista talentoso. Eu diria que
a beleza é a sensação de totalidade. É por isso que
no mundo de hoje sejam tão usadas cores
complementares. A obra de arte não pode ser um
capítulo de algo, ela tem de ser em mesma uma
totalidade. Ela não pode pedir complemento porque
já é completa. Claro, isto não significa que ela não
possa transmitir mensagens subliminares. Porque
se a obra de arte for traduzível em uma assertiva é
de se dizer que toda assertiva possui um
antecedente e um consequente, uma premissa e
um corolário. Como em tudo o que se discute na
filosofia, na estética também há a teoria da forma.
Há uma beleza estrutural e principiológica que
confere a uma porção de matéria o princípio da
563
beleza. Mas assim como na metafísica matéria e
forma se unem para ser um sínolo indesfazível,o
mesmo ocorre na estética: o abstrato só se faz
sentir na matéria e a matéria só é apetecível se
estiver imbuída da abstração. A beleza, de acordo
com a teoria das formas, é uma concordância
consigo mesma que gera uma sensação de
concordância no sujeito apreciador. A arte não está,
ainda que se trata de arte abstrata, totalmente de
costas para tudo. Ela faz coro à física. Trabalham-
se, por exemplo, com luzes e sombras, movimento,
ponto de fuga, textura, profundidade, sentido,
tempo, clima, tamanho, estação, e uma série de
outras circunstâncias. A arte pode ser o próprio
contexto ou ela pode ser produzida a partir de um
contexto. A arte sugere zelo, cuidado,
meticulosidade. A arte é apaixonada, apaixonante e
liga um ser humano a outro através de um canal
exclusivo insub-rogável por qualquer outro
caminho. O sentimento estético é único e
infungível. Ele explica ou transmite aquilo que é
intransmissível pelas vias lógicas e discursivas. É
564
assim que alguém pode ficar angustiado, rir ou
chorar diante de uma obra de arte. A obra de arte
pode ser tão terrível como uma agressão física. A
obra de arte cria o ambiente. E quando o ambiente
artístico vem ao encontro de uma psique altamente
sugestionável, obtemos os chamados estados
alterados de consciência. O belo é essencialmente
aquilo que foge da média. Não queremos dizer que
o mediano seja feio, mas que o belo é único pela
beleza que encerra em si. O belo quase sempre é
excepcional. Ele quebra o corriqueiro e o banal. Ele
é algo essencialmente acentuado em alguma
dimensão. Mas este acentuado tem limites. Assim
como um corpo musculoso além da conta foge da
beleza pelo excesso. A estética se une aos
chamados fetiches. Porque não raro ela se reporta
à sexualidade, à fertilidade e ao sentimento
religioso. Ela torna homens fracos e medrosos em
fortes e corajosos. A arte idealiza o mundo. De
formas que quem se apaixona pela arte acaba
querendo que o mundo imite a arte. O nazismo e o
fascismo são isso: a estetização da política. Um
565
mundo padronizado que em todo canto se depara
com Standards fica carente de arte genuína e
quando alguém se apresenta como resgatador da
tal arte genuína é acolhido com grande recepção.
As pessoas gostam mais de arte do que imaginam.
Mas as pessoas pensam que não gostam de arte
pelo simples fato de não terem amadurecido seu
pensamento. A verdade é que na sua abstração a
arte satisfaz uma utilidade e as pessoas acabam
colmatando o espaço lacunoso da estética com
outros artifícios. A arte mexe com aquilo que há de
mais sagrado, a personalidade. Ela extrai da
pessoa o que nenhuma outra prensa é capaz de
extrair. No mundo desencantado de Weber a
estética aparece como um refúgio do
encantamento. O problema de quem está muito
focado é que ele perde a visão periférica e a arte
vem a ser esta visão periférica. A arte, para usar
uma expressão de Terça-Feira Lobsang Rampa, é
a “terceira visão”. E não há felino que rivalize com a
elevação do meu espírito quando estou diante de
uma obra de arte. A arte é uma experiência onírica
566
de quem está em estado de vigília ou em estado
sofrônico. A arte é a mística máxima para quem é
irreligioso. A arte é o texto interpretado pela
protointeligência. A arte é tão democrática que um
analfabeto, embora nem sempre isto ocorra, pode
fazer melhor deleite do que um sujeito culto em
saberes técnicos. Arte é ebulição de emoções, é o
modo de dizer o indizível. Quando a arte é a
fotografia, e estendemos isto a outros gêneros
artísticos, ela deve ter a capacidade de flagrar a
fugacidade do instante. Ao contrário daquele
rebanho de pessoas fazendo cara de feliz para a
câmera. A arte oscila desde uma natureza morte
até o fato social do calçadão, mas eu, sem dúvida
alguma, prefiro ficar com este último tipo de arte. A
arte tem de ser humanista. Porque hoje mais do
que nunca o humano está carente do humano.
Buscamos não só a Deus, mas também ao seu
semelhante que somos nós mesmos. A arte é a
prova de que vale à pena ser homem, humano. A
arte é a manifestação do espírito humano que não
admite a contingência. A arte é um protesto contra
567
a limitação. A arte é o grito que não consegue
percussão na política, na mídia ou em qualquer
outro lugar. A arte é um modo de ser em que o ser
é transfigurado. A arte é a narrativa daqueles que
sem serem cerebrotônicos enveredam pelo
sentimento para cumprir sua missão existencial que
é a metanarrativa. Porque uma coisa é a emoção
traduzida em pensamento e outra o pensamento
traduzido em emoção: respectivamente, filosofia é
arte. A filosofia é o amor que se torna pensamento
e a arte é o amor que se torna sentimento puro.
Como o amar é belo a arte também é bela. A arte é
a beleza da vida e do cotidiano num mundo onde o
tic-tac do relógio veda nossos olhos para aquelas
veredas que só se deixam ver pelos espíritos
calmos e serenos. A arte é o inverso do rush, ela é
uma parada. É um inspirar mais profundo em meio
à atividade fabril ofegante. A arte é o inverso do
estresse do trânsito embora o próprio trânsito possa
ser artisticamente representado. Nesse sentido a
arte é mais do mesmo e é o mesmo visto por
ângulos inéditos e inimagináveis. O desafio da arte
568
é o quefazer artístico profissional. Porque a
profissão está atrelada à ideia de dever enquanto
que a arte é livre inspiração. O artista é um dos
poucos para quem o dever e o lazer são uma só e
mesma coisa. Embora o lazer não deva estar
sempre e necessariamente ligado à ideia de
descompromisso e leviandade. O tema a seguir é o
da lógica e é bom que correlacionemos a estética e
a lógica. A arte pode ser lógica, mas ainda tem a
capacidade de ser supralógica. O surrealismo que o
diga. Porque enquanto Aristóteles define o homem
como animal lógico a arte pretende preconizar o ser
humano ilógico e sensível. A arte vai na contramão
da filosofia da linguagem, do cálculo proposicional,
da matemática e do racionalismo. Ela pretende
assegurar um espaço para uma dimensão do
espírito humano que não encontra guarida na
investigação filosófica, nas ciências e nas religiões.
A arte é o que ela é, não podendo se explicada por
analogias. As artes marciais só são arte porque são
imbuídas de artesanalidade. Para quem não sabe
no que consiste a artesanalidade ela é o antônimo
569
da produção em série. Toda obra artística é única,
irrepetível e irreproduzível. É claro que na época da
produção em série até mesmo as artes são
industrializadas. É assim que posso lançar no
mercado em larga escala uma coletânea de valsas
vienenses e uma grande edição de uma antologia
poética de um clássico de nossa literatura. A arte
pode estar presente em todos os aspectos da vida.
É assim que posso fazer, na qualidade de
advogado, uma contestação que não apenas se
preste a objetivos judiciais, mas ainda um
ornamento do mundo jurídico. É por isso que o
futebol brasileiro é o futebol-arte. Ele tem ginga,
traquejo, pessoalidade. A arte é a síntese do
individual e do universal. E isto se deve ao fato de a
extrema afirmação do individual ser a extrema
afirmação do universal. E o artista, como diria o
poeta russo Maiakovsky, não passa do “seu
cachorro” como se reportava a si mesmo quando
assinava uma carta de amor para sua namorada. E
quando o poeta se suicida é porque resolve tirar a
570
própria vida por um ato de vontade porque a arte é
essencialmente voluntariosa.
Lógica: a ideia de identidade
Nada mais ilógico do que a lógica. No cálculo
proposicional parece haver uma ilógica porque para
obtermos a confirmação de algo precisamos negar
este elemento simbólico. A lógica trabalha com
símbolos. Os símbolos que representam as
assertivas são de pouca importância conquanto
qualquer letra do alfabeto possa o prestar para este
fim. Já os conectivos são importantes e os
quantificadores também. Os conectivos revelam a
natureza da relação entre as assertivas e os
quantificadores revelam se se trata de
individualidade, particularidade ou universalidade. A
tabela de verdade de Wittgenstein mostra que do
ponto de vista conteudístico uma proposição lógica
pode ser apenas verdadeira ou falsa da mesma
forma que o número pode ser positivo ou negativo.
O silogismo peripatético tem uma grande valia para
571
um sermonista. Sim, porque para quem prepara um
discurso homilético as premissas maiores são
dados pelas Sagradas Escrituras e o único cuidado
que devemos ter é de a partir dos dados de
antemão silogizar com perfeição. E assim que parto
da premissa maior de que o homem é imagem e
semelhança de Deus e que devo amar a Deus
sobre todas as coisas e que, por conseguinte, o
amor ao próximo como a si mesmo é um
mandamento semelhante ao anterior justamente
porque quem ama o refletor não tem dificuldade de
amor o refletido. Todavia, se parto da ideia dos
empiristas ou se sou um cientista e admito o
materialismo metodológico, fica difícil, senão
impossível construir conhecimento com a lógica do
velho sábio grego. Porque eu só afirmo algo a
respeito de algum coisa por saber que determinado
grupo tem uma característica e que tal elemento
petence ao grupo. Trata-se de simplesmente cruzar
predicados quando o próprio sujeito é fungível. Daí
que entra o trabalho de Popper. Ele parte da
dedução: a assertiva maior é lançada
572
aleatoriamente e confrontada com a experiência,
donde ela resultará corroborada ou refutada. Ora, a
crítica que se faz a Popper, e parece que Hume
sugere exatamente isto, é que toda dedução é
precedida da indução. Isto é um problema sério.
Porque a indução sempre trai o rigor que a lógica
almeja. Ela é raciocínio obnóxio e perpetra saltos
epistemológicos injustificáveis e teratológicos. Isto
significa que por mais lógico que seja o nosso
conhecimento ele não é seguro. Porque fazemos
da repetição, do hábito e das associações
precipitadas o processo indutivo e dedutivamente, a
posteriori, confrontamos uma hipótese em baterias
de testes que mesmo felizes, não são líquidas e
certas, mas apenas muito prováveis. É por isso que
episteme não existe. Não há verdade real, há
apenas verossimilhança ou verossimilitude. E
Popper é o primeiro a reconhecer isto. Por isso
mesmo que o racionalismo dele se chama “crítico”.
Penso que Popper, ao mesmo tempo em que é um
grande herdeiro do positivismo, rompe com o
positivismo. Porque enquanto o positivismo
573
enaltece sobremaneira e absolutiza as ciências
empíricas, Popper mostra que mesmo que o
conhecimento científico seja o único possível, ele é
relativo e medianamente provável. Não há teste
que me outorgue cem por cento de certeza. Não
existem assertivas científicas claras e distintas. O
problema da lógica é este: ainda que
estruturalmente a lógica pudesse ser tomada como
uma ferramenta perfeita de construir excelente
linguagem, o conteúdo posto dentro das
proposições atômicas são eivadas de subjetividade.
A previsão do raciocínio é combalido pelo canal do
conteúdo sintético, as sensações e impressões,
que nos chegam através dos sentidos. Sentidos
estes que variam de espécie para espécie e, dentro
da espécie humana, de indivíduo para indivíduo. Os
Principia Mathematica de Bertrand Russel e Alfred
North Whitehead são um brinco, uma joia. Mas o
que, afinal de contas, eles informam sobre o
mundo? O que se vê é que quanto mais lógica uma
linguagem menos ela informa sobre o mundo e
quanto mais elas informam sobre o mundo menos
574
lógica ela é. Dentro dessa prisão límbica se move o
conhecimento: o que certifica a veracidade exclui
informatividade e o que enuncia não passa pelo
crivo de ratificação. Quanto mais cobra na
qualidade menos quantidade me sobra e numa
perspectiva de arrocho metodológico nada
transcende o óbvio. Aqui está toda a força do
pragmatismo para o qual a única coisa que
interessa é a entidade, o resultado e a extensão da
cobertura. Os maiores impérios da Terra sempre
foram pragmáticos. Assim foi o Império Babilônico,
o Romano, o Inglês e hoje o é o Norte-Americano.
A lógica, neste sentido, deveria ser casada com o
pragmatismo para antecipar os resultados. A partir
do momento em que antecipa a prosperidade sei
como agilizá-la e quando antecipo intelectualmente
a bancarrota sei o que fazer para evitá-la. O esforço
dos lógicos sempre foi no sentido de arrancar a
alma do pensamento para ao invés de analisar um
ou outro pensamento em particular poder
compreender a única dinâmica que rege todos os
pensamentos. A vantagem de segregar esta
575
dinâmica consiste em vê-la e compreendê-la com
maior clareza. Assim, quando ouço um discurso,
mesmo que ele seja recheado de várias assertivas
corretas posso derribar o mesmo por falhas
estruturais. Porque o bom discurso deve se
preocupar mais em estar de acordo com si mesmo
do que com o mundo, embora ambas as coisas
sejam desejáveis. A lógica é a mais séria de todas
as disciplinas embora poquíssimas pessoas tenham
tido a oportunidade de estudar lógica na sua
pureza. Todo conhecimento é resultado da
aplicação de um método que em linhas gerais
repete a lógica e no que dela difere é porque já
acrescentou a si mesmo preconceitos da ortodoxia
de um determinado viés. O viés é isto: raciocínio
lógico mais superstição que não conta com outra
justificativa senão a intuição. Pelo que tenho visto,
e o marxismo e a psicanálise são provas disso, há
uma solidariedade entre método e resultado de
pesquisa. De modo que produza uma teoria e só
depois de ter escrito o livro inteiro, de trás para
frente insiro um primeiro capítulo sobre metodologia
576
para, artificialmente, fazer as subsequentes
resultarem do anterior a todos. Isto significa que
mui pertinente é a teoria da metanarrativa. Porque
por vezes aceito a premissa, ou aceito a assertiva
mediana porque aprecio o corolário. Em linhas
gerais, aceito o discurso todo porque aprecio uma
de suas peças fundamentais. No dizer do brocardo
popular “levo o porco inteiro para casa por causa da
linguiça”. A lógica é isto: é o encadeamento de uma
sequência de assertivas. Cada elo está entrosado
com outros anteriores e outros posteriores. E
escolher uma peça é escolher a corrente inteira.
Daí a importância de termos linha: porque só é
possível se posicionar diante do mundo a partir de
fios condutores gnosiológicos. O ecletismo é a
posição filosófica mais correta em função de sua
completude, mas tropeça a todo instante em
contradições. O trabalho de um grande intelectual é
mostrar que há em tudo uma concordância de
fundo. É mostrar que a contradição é aparente. Que
num plano de análise mais profundo tudo confirma
as demais coisas, inclusive seus opostos. Foi isso
577
que tentou fazer Hegel, a ponto de criar uma nova
lógica triádica e dialética, assentada em tese,
negação e negação da negação. Foi isso o que
tentou fazer Teilhard de Chardin em O Fenômeno
Humano e é isto o que estamos tentando fazer
aqui. Lógica, ilógica, ciência, arte, religião, filosofia
são linguagens construídas de modo diferente, mas
todas hospedam a verdade. No dizer de Heidegger
“a linguagem é a morada do ser”. A lógica é o
âmbito do consenso. E só existe dissenso porque
nossas diferenças existem em função de diferentes
valores. O valor é aquela parcela da minha
subjetividade que diz o que devo fazer com a
lógica. A organização do mundo passa pela
organização do pensamento, daí a importância da
lógica. Já a câmara de conciliação de valores e
interesses é a política. Por isso que Aristóteles
escreveu o Organom e também A Política. Na
verdade a lógica só faz sentido dentro de um
contexto de uma civilização séria que se autoelege
guardiã do pensamento e, na mão inversa, a lógica
é o último marco regulatório de todo e qualquer
578
discurso político. Questão interessante é a de
classificação dos pensadores. Pois embora a lógica
tenha nascido da filosofia há quem entenda muito
de lógica e quase nada de filosofia. A ponto de os
tais estudiosos se autorotularem de “lógicos”.
“Somos lógicos e não filósofos”. Penso que embora
a filosofia seja o eterno esforço de apreensão da
totalidade ela acabou se especializando. Por mais
desenvoltura que a especialidade tome parece-me
ser mais sábio continuar considerando a
especialidade como filosofia. Porque mesmo que o
galho seja o maior galho da figueira ele não deixa
de ser figueira. Diria que analíticos como nós
somos deveríamos nos aplicar à lógica até mais do
que de costume. A lógica exige do seu praticante
atenção e autoinflexão. Ela que consiste em unir o
diferente, justamente porque nosso cérebro é
analógico, cobra de nós que nos desliguemos do
exterior para nos focar em nosso próprio interior. A
tradição filosófica pode receber infindáveis
abordagens. Uma delas é encarar a tradição
filosófica como uma grande engrenagem lógica. A
579
partir desta ótica poderíamos, por exemplo,
vislumbrar o futuro da filosofia na acepção de que
ela nada mais é do que desdobramento de
premissas. Porque aquilo que outrora num presente
que hoje é passado foi corolário e agora entra como
premissa. Assim poderíamos fazer distensões de
longo alcance no âmbito da racionalidade pura. Por
isso mesmo, o conhecimento é, por definição, um
parecer de durabilidade transitória. Se tudo fosse
lógico não haveria conhecimento. Em poucas
pegadas desvendaríamos os segredos da lógica e
tudo estaria pronto, acabado e resolvido, como a
metafísica de Parmêmides. O conhecimento só
existe porque existe lógica e ilógica. O
conhecimento é essa linguagem que se constrói na
zona lindeira entre panlogismo e ilogismo. Daí a
total procedência das categorias metafísicas de
Aristóteles , sejam elas, matéria e forma. Ou seja,
ilógica e lógica, conteúdo e estrutura. Substância é
síntese, é conjuntura. Haverá no futuro um
ressurgimento da metafísica de Aristóteles. Sim,
porque tudo se resume a principiologias, a
580
enteléquias e a indeterminidades regidas por estes
padrões abstratos. A diferença entre Hegel e
Aristóteles é que a essência para Aristóteles é
imutável e na Ciência da Lógica de Hegel até o
princípio abstrato é mutante. O princípio da
contradição parece ser óbvio, mas antes que
Aristóteles o enunciasse já havia pelo menos 5.000
anos de civilização. Hoje em dia há lógicas que
admitem a contradição, mas reafirmam a não
contradição pelas vias laterais. Isto significa que
numa linguagem figurativa eu também poderia
admitir a contradição desde que eu desse um jeito
de contorná-la. Os filósofos da linguagem
ampliaram o conceito de não contradição
observando que além da contradição puramente
lógica posso ter a contradição pragmática e
performativa. Um exemplo de contradição
pragmática e performativa. Um exemplo de
contradição pragmática: tentar conter a inflação
aumentando a emissão de papel moeda. Ora, a lei
da oferta e da procura deixa o próprio dinheiro mais
caro ou mais barato de acordo com sua raridade ou
581
abundância. Exemplo de contradição performativa:
querer receber afeto através de manifestações de
agressividade. Na contradição pragmática é burlada
a intenção de cunho prático da ação. Já na
contradição performativa a contradição é mais
arraigada a ponto de a própria mediação
empregada ser a contradição daquilo que se
persegue. Isto significa que mesmo eu o meu
discurso, do ponto de vista da lógica pura esteja
coerente e impecável, ele pode ser derrubado
pragmaticamente ou performativamente. O
pragmatismo leva em conta o resultado enquanto a
performação leva em conta a relação instrumental
com o resultado. O grande problema da contradição
pragmática e performativa é que do ponto de vista
simbólico elas não são representáveis como ocorre
na lógica pura. Habermas foi esperto criticando
Hans Albert que defendia as três inviabilidades da
fundamentação última do discurso em bases
puramente lógicas. Ou interrupção abrupta, ou
sequência infinita ou petição de princípio em que
duas assertivas estariam uma para a outra
582
concomitantemente como premissa e corolário. Ele,
refiro-me a Habermas, afirma que quem consegue
sustentar tal discurso já aceitou uma ética mínima
como a abertura ao diálogo, a veracidade e boa-fé
dos dialogantes de formas que na prática e na
performatividade superadas de arrancada estão
estas questões. Habermas tem o mérito de mostrar
que a consciência não é individual, mas
comunitária. A consciência é reflexo do nível geral
de conhecimento da comunidade do que o filósofo
vem a ser a melhor figura. O conhecimento é
partilhado e, antes disso, a inteligência é partilhada.
Isto significa que os grandes problemas teóricos da
lógica e da filosofia sequer um dia existiriam na
prática. Pelo que se pode dizer que seríssimos
problemas teóricos nada representam para a
prática e sérissimos problemas práticos nada
representam para a teoria. Não estou dizendo que
isto é a regra, mas ao inverso disso, operacionalizo
que às vezes estes desencontros acontecem.
Como se vê, Aristóteles foi discípulo de Platão, que
foi discípulo de Sócrates, que foi um crítico dos
583
sofistas, discursistas e oradores por excelência.
Assim, a lógica de Aristóteles deve ser vista como
uma tentativa de botar ordem ao vale tudo dos
sofistas. Do discurso nasce a lógica e na ética
discursiva habermasiana a lógica é novamente
colocada dentro da perspectiva do discurso.
Habermas associa a ética ao pensamento e nisso
resgata Sócrates para quem o conhecimento do
bem equivale ao bom agir. Ora, ainda que eu tenha
o conhecimento do justo posso praticar o injusto.
Mas se sequer conheço o correto terei dificuldade
de praticar a correição, quem sabe eu atinja por
acesso por intuição. Como se vê, a lógica é
importante por servir de substrato à ética, à
epistemologia, à metafísica e a todas as áreas do
conhecimento humano. O desafio da lógica é
principiar por si mesma. Porque a inteligência
humana não começa a partir dela mesma, mas a
partir de instâncias menos sofisticadas do que ela.
E mesmo que façamos um corte para simular um
marco inicial, não haverá como esconder o norte,
ele ficará sempre subentendido. Os medievais
584
fizeram um excelente trabalho de remastigação da
lógica de Aristóteles vislumbrando todas as
possibilidades do silogismo, catalogando e
classificando tais possibilidades. Penso que o
mesmo devemos fazer em relação ao trabalho dos
lógicos contemporâneos. Porque só está preparada
a base para o próximo paradigma quando
conseguimos compreender totalmente o anterior.
Um trabalho importante que ainda deverá ser feito
diz respeito à indução e quem melhor abordou isto
foi John Stuart Mill. Devemos pesquisar a lógica
obnóxia ou a lógica residual. Por exemplo: toda
folha é verde. O morcego é preto, logo não é folha.
Patético? Sim, mas apenas aparentemente. Nos
meios jurídicos pouco se trabalha com silogismo, e
quase o tempo todo se trabalha com lógica
residual. Assim, se a lógica residual é de pouco
apreço por opor-se ao ideal filosófico de perfeição
do raciocínio, ao menos oferece a vantagem de ser
dotada de extremo senso prático e enorme
aplicabilidade pelos jurisconsultos. E digo que esta
não é apenas uma peculiaridade do direito, mas
585
também das ciências empíricas. Porque as grandes
descobertas científicas nascem de associações
anômicas ou com baixo grau de lisura lógica. Isto
relativiza a lógica de um modo geral e chama a
atenção dos filósofos entre a prática científica e
aquilo que colocamos como padrão de raciocínio
para toda a humanidade, máxime, para a
comunidade científica. Talvez seja por isso que é
tão difícil classificar uma pessoa como normal ou
anormal. Porque anormalidade é fazer conexões
fora da lei. Mas estas conexões são encontradiças
na mente dita sã e com grande frequência no
cérebro de profissionais predominantemente
intelectuais.
Psicologia: a ideia de comportamento
A psicologia começa dentro da filosofia sob o nome
de pneumatologia, isto é, o estudo da alma. Mas a
psicologia só a partir do século XIX começa a se
tornar empírica e se afirmar como ciência e como
disciplina autônoma. O objeto da psicologia é
586
amplo. Ela pretende entender a maturação em
todos os seus aspectos do ser humano. Aborda
processos como cognição, moralidade,
sexualidade, pensamento, memória, emoção,
personalidade, hábitos, consciência,
subconsciência, religiosidade, linguagem,
anomalias, disfunções. Propõe técnicas de
aprimoramento dos recursos humanos na educação
especial e tudo o mais. Reserva-se a tratar
terapeuticamente das neuroses, pois as chamadas
psicoses requerem intervenção psiquiátrica. O
bordeline, ou seja, aquele que está na zona lindeira
entre neurose e psicose ainda é objeto, ou melhor,
paciente, do psicólogo. Uma das correntes mais
apreciados dentro da psicologia é a psicanálise. A
psicanálise trabalha com conceitos não verificáveis
e com baixo grau de discutibilidade o que, do ponto
de vista epistemológico, põe em xeque sua
cientificidade. A psicanálise entra como
complemento ou teoria bissexta no consultório
psiquiátrico. A psicologia é uma das mais
importantes disciplinas da noosfera. Ele é um
587
celeiro de ideias mestras. Com ela podemos
inclusive entender melhor outras teorias como o
marximo e conceitos mais recentes como o de
subproletariado. A psicologia, como bem observou
Claude Levi Strauss, assim como qualquer outra
teoria procura trabalhar com invariantes. Como a
psicologia quer ser ciência e não literatura, o
complemento natural do método é a produção
literária enquanto resgate de valores existenciais. E
aqui está o valor do beletrista: ele usa uma
linguagem que desvenda a alma humana, o que
está fora do alcance da psicologia que tende à
objetividade e foge e metáforas. A psicologia é uma
das disciplinas mais disputadas ideologicamente a
ponto de asseclas de uma mesma perspectiva
tratarem-se de confrades e confreiras. As teorias
psicológicas oscilam em grau de cientificidade em
que o comportamentalismo entra como o ramo mais
científico e a psicanálise o menos científico.
Quando falamos em Skinner e Pavlov o problema é
o preço que pagamos pela cientificidade. Porque se
reduz o sujeito ao mais crasso fisiologismo. A
588
psicologia tende a pesar pelo psicologismo. É como
está escrito no Talmude, não vemos as coisas
como elas são, mas como nós somos. A psicologia
tem passado por processos de popularização de
seus conceitos e esta tendência se traduz na
produção artística. Na psicologia o ser humano é
reificado, ele torna-se coisa. O sujeito é encarado
como objeto. De acordo com Kant, depois dele
mesmo a única metafísica factível seria o estudo
dos a prioris e é exatamente isto o que faz a
psicologia. A psicologia pretende ser uma
reprogramação do intelecto. Porque adquirimos
cacoetes mentais e comportamentais e é preciso
descobrir a sua gênese para desengatilhá-los.
como diria Buda, cada um é aquilo que pensa. A
psicologia pretende ser inclusiva. E é aí que o ramo
de conhecimento se torna fator de transformação
social. A psicologia, visando imparcialidade, tem se
apoiado muito em estatísticas. Enquanto a
sociologia quer compreender a coletividade a
psicologia quer entender o sujeito, em que pese a
psicologia social que une ambas as coisas. A tarefa
589
do psicólogo tem se tornado cada vez mais difícil,
pois o indivíduo está cada vez mais complexo. A
projeção da psicologia aponta o desarranjo da
personalidade dos indivíduos cada vez mais
recorrente num mundo que gira rápido demais. Boa
parte de nossos problemas decorre da nossa
limitada capacidade de adequação. A psicologia
constrói pontos não só entre elas e outras ciências
humanas, mas ainda se relaciona com ciências
médicas como a biologia, a genética, a psiquiatria e
a neurologia. Nosso cérebro, em linhas gerais, é
constituído de três partes: reptiliano, límbico e
neocortical. O cérebro reptiliano é o responsável
pelos sinais vitais e pelo funcionamento dos órgãos,
o límbico é responsável pela emoção e pelas
memórias e o neocórtex é a área responsável pelo
pensamento abstrato, pela linguística e por tudo o
que há de mais sofisticado na noosfera. O
inconsciente coletivo de Jung muito provavelmente
deve dizer respeito a estas protoestruturas.
Interessante é que posso ser experto em psicologia
e não ser feliz enquanto um analfabeto pode ser
590
profundamente realizado. Como todo outro ramo de
conhecimento, a psicologia é um castelo de
conceitos. Estes conceitos são altamente
enviesante, pois se antepõe aos nossos olhos
como se fossem as lentes de óculos. O ser
psicólogo, por isso mesmo, cobra do profissional da
área ser mais do que um bom acadêmico, cobra
que ele tenha tato e feeling. Passamos de uma fase
em que a figura do psicólogo era obscura, pela
raridade mesmo, para um estágio de pletora de
profissionais. O mercado de trabalho está saturado.
É que geralmente são as classes mais abastadas
que procuram este tipo de prestação de serviço
embora não se trate de exclusividade. Aliás, o
psicólogo ao lado do assistente social tem sido uma
figura especial ao colmatar lacunas em que
nenhuma peça se encaixava. A psicologia é
transida de um relativismo filosófico que decorre do
seu método. Sim, porque como qualquer outra
ciência ela aplica o materialismo metodológico e
como seu objeto de estudo é o homem, ele fica
reduzido de algum modo a um superanimal, o que
591
faz muitos estudantes entrarem em crise.
Sobretudo se a psicologia é a primeira formação
oficial daquele que é inexperiente em humanidades.
A psicologia também é altamente frustrante como
curso porque o iniciante pensa eu egressará da
universidade estendendo tudo de ser humano e
percebe que passou cinco anos tracejando alguns
rabiscos. Tenho um pensamento que é o de que
todo homem tende para a média que é de dada
socialmente. É assim que procuro me satisfazer
medianamente na alimentação, no sexo e em
outras áreas da vida como a acadêmica e a
profissional. Quando não atinjo a média em alguma
área procuro estar acima da média em outra área.
É assim que aquele que não resolveu sua
sexualidade busca ser um intelectual, por exemplo.
Talvez Adler devesse ser interpretado desta
maneira: a busca de poder seria uma satisfação
para aquele que aliunde é um frustrado. As
biografias de Hitler e de Stalin sugerem exatamente
esta dinâmica. A psicologia aborda ainda questões
orgânicas como a da obesidade em que o
592
alimentar-se compulsivamente é encarado como
meio de compensação aos desprazeres da vida.
Alcoolismo e uso de entorpecentes entram em
semelhantes categorias. Estudos mostram que
quem começa a usar drogas aos 14 anos de idade,
por exemplo, em alguma área de sua personalidade
estaciona nesta faixa etária. A psicologia deveria se
empenhar em descobrir os fatores desencadeantes
do comportamento reto porque o mercado de
trabalho padece por conta de pessoas de mau
comportamento e de ínfimo senso de
responsabilidade. Os marqueteiros exploram muito
a psicologia associando uma marca de cerveja a
mulher bonita ou uma marca de cigarro e muita
aventura e a paisagens paradisíacas. Hoje, além de
as empresas de cigarro não poderem fazer
propaganda sofrem contrapropaganda por conta do
governo que estava cansado de perder demandas
judiciais. A psicologia promoveu a maior
dessatanização do mundo. E o padre Quevedo
terminou o trabalho com seus escritos
parapsicológicos. No sentido de que a mudança de
593
humor é o sintoma de um transtorno de
personalidade e não uma entidade demoníaca. A
psicologia mata Deus e o diabo, portanto. A
psicologia é conservadora e tão conformista quanto
as filosofias de Spinoza, Hegel e dos estoicos. Sim,
porque o papel do psicólogo, em linhas gerais, é
fazer o sujeito se sentir bem consigo mesmo e com
o meio em que está cabido. A psicologia é a
extensão da escola e da família quando nos dá
valiosas dicas de boa convivência. A psicologia
peca por ser estigmatizante. Ela rotula as pessoas
sob conceitos quando todo ser humano é mais que
qualquer conceito. Não raro, o estudante de
psicologia busca o curso para resolver seus
próprios problemas. A psicologia tem esta
característica de o estudioso estar imbricado dentro
da problematização teórica que tem por objetivo
abordar com frieza. É como se o médico fizesse
uma cirurgia em si mesmo. A verdade é que a
psicologia não dá conta dos aspectos existenciais
por ser muito presa a aspectos meramente
fenomênicos. A psicologia de hoje tem novos
594
desafios do que tinha no século XX. Hoje há
pessoas com fobias das mais estranhas e
inusitadas e há compulsividades novas como a de
consumo, a de uso de certas tecnologias como a
internet e assim por diante. A informação em
excesso desnorteia as personalidades da época
contemporânea. As pessoas se sentem em meio a
um fogo cruzado com tanto jornal, revista, televisão,
iphone e não sei mais o quê. A ideia do sistema é
nos manter ocupados o tempo todo. Se no passado
o trabalho engendrava a personalidade do ser
humano, hoje ele não está mais sozinho, mas nos
faz os pés tocarem o chão nos conferindo uma
objetividade que não mais encontrávamos nos
meios virtuais. Dentro de uma perspectiva
sociológica a psicologia pode ser vista como um
mecanismo social, enquanto conhecimento e
prática, de amainamento das tensões sociais. A
psicologia descolore o social e traz tudo para a
esfera do privado. Há uma privatização do
sofrimento. Não é à toa que a psicologia rivaliza
com a religião. A religião, em linhas gerais, cumpre
595
o mesmo papel da psicologia. Fazer com que a
pessoa se sinta em clima de harmonia com aquilo
que a rodeia. A ponto de no Brasil existir o brocardo
“psicólogo de pobre é padre”. Existencialmente
falando parece que a orientação do sacerdote se
afigurava até superior à do profissional da psique.
Mas a secularização do mundo e a consequente
descatolicização da sociedade pediram uma figura
nova, que em linhas mestras, é a do psicólogo. No
mundo da técnica até a alma é tecnicamente
tratada. Aliás, nos meios religiosos tem se
desenvolvido uma psicologia própria, seja na
literatura católica ou evangélica, mas ela passa ao
largo das instituições universitárias. A psicologia
abre horizontes e muda a percepção da realidade
do seu estudioso. O psicólogo sabe que muito do
que ele pensava fazer parte do mundo, no fundo,
fazia parte de si mesmo. A psicologia ao mesmo
tempo traduz um período histórico de irreligião e
também fortalece o sentimento religioso. Porque
quando a psicologia e a religião forem bem
compreendidas elas falarão uma só e mesma
596
língua. A psicologia não ri, não ridiculariza e não
deplora, ela compreende. Ser psicólogo passa por
isso: largar do leiguismo e encarar o outro
cientificamente. O psicólogo não faz juízos morais,
ele orienta e trata. O profissional da psicologia, pelo
seu código de ética, é obrigado a guardar segredo
do que sabe do seu paciente. Isto é não só um
dever, mas um direito. Sim, porque às vezes o
psicólogo, mesmo sem querer, torna-se cúmplice
por não delatar uma conduta criminosa do seu
cliente. A denunciação seria uma traição, uma
quebra de confiança. O psicólogo em regra é cioso
pela intimidade e pelos interesses de seu cliente. A
psicologia, quando comparada à filosofia, produziu
muito de conhecimento sobre nós mesmos em que
pese seu pouco tempo de existência. O grande
problema da psicologia reside exatamente em seu
objeto: a subjetividade humana. Se em física abre-
se o leque para intermináveis discussões acerca do
nível quântico da matéria bruta, o que iremos falar
do espírito humano? Wilhelm Wundt foi o grande
teórico do estruturalismo. Escreveu 490 livros sobre
597
o tema. A crítica que se costuma fazer ao
estruturalismo dentro da psicologia é de três
monismos: reducionismo, por reduzir tudo a
sensações como fez Hume na filosofia,
elementarismo, por perder de vista a complexidade
do todo e mentalismo, por desprezar a capacidade
de introspecção do ser humano. Os textos
psicológicos são explicados para quem faz carteira
de habilitação e para quem ocupa cargos que
cobram refinado senso de orientação. São os
chamados testes psicotécnicos. Uma pessoa pode
ser dotada intelectualmente acima da mídia e ter
dificuldade com o volante, como é o meu caso.
Dançar, para mim, é uma atividade impossível de
ser cumprida. Meu corpo fala uma linguagem
autista, tenho pouco controle sobre ele. É a lei da
média das médias da qual eu falara anteriormente.
Hoje rivaliza com a psicologia a filosofia clínica que
é o esforço de Lucio Packter de dar um sentido
prático à filosofia. Porque o que se vê é que
existem filósofos geniais desconhecidos de um
lado e de outro pessoas atravessando agruras já
598
apreciadas pela tradição filosófica. O filósofo clínico
faz esta ponte entre a tradição filosófica e o
problema prático do cliente. Ao contrário do
psicanalista que pode ouvir uma mesma pessoa por
20 ou 30 anos, o filósofo clínico pretende resolver
tudo em umas poucas sessões. A psicologia é
como um mecanismo de correção no plano virtual
antes mesmo que o problema manifeste-se na sua
concreção. É como eu consertar um texto no
arquivo antes de colocá-lo na lista de impressão. A
psicologia também tem efeito retroativo. Não raro o
adulto chega com problemas ao consultório do
psicólogo com os chamados “traumas” de criança.
Os parapsicólogos trabalham com a regressão a
partir de estados hipnóticos. Dependendo da linha a
regressão abarca uma vida só, na perspectiva
cristã, com várias, na perspectiva kardecista. Não
raro, em estados hipnóticos presenciamos pessoas
falando idiomas que nunca estudaram. Seria uma
bagagem genética, como sugerem cristãos, ou
seria o idioma que eu falei em vidas pretéritas?
Dizem que o inconsciente é muito criativo. Eu,
599
particularmente, não concordo com a ideia de
inconsciente ou subconsciente. Creio que há
diferentes consciências acessíveis em diferentes
estados mentais que podem ser obtidos por
hipnose, sono, cansaço, drogas ou experiências
sexuais ou místico-religiosas. Porque quando estou
hipnotizado o inconsciente é o que chamamos de
consciente. Toda vez que acesso uma área de
minha consciência ela passa a ser a consciência
naquele momento e as áreas dormentes, inclusive
aquela que exibimos em estado de vigília e lucidez,
são os não conscientes. Freud, ao dividir a psique
humana em id, ego e superego procede da mesma
forma que o geógrafo europeu que sem maiores
justificativas coloca a Europa no centro do seu
mapa mundi, que sem justificativa coloca a Europa
e a América no plano superior do mapa e a América
Latina e a África no plano inferior. E os
psicanalistas leem e releem Freud e Lacan e não
se dão conta disso: da relatividade daquilo que
chamamos de consciência e inconsciência, de eu e
não eu. Aquilo que chamamos consciência é
600
apenas um dos modos possíveis de consciência.
Não podemos dizer que outra forma de ser é o não
ser. Como num jogo de xadrez ora uma frente é a
consciência preterindo as demais para consciências
paralelas provisoriamente inertes. Ora, em um
tempo uma área funciona como premissa e as
demais como corolário e, em seguida o que era
corolário passa a ser premissa. Ao criar a categoria
de inconsciente Freud relativizou a consciência. Em
nosso caso não se trata de negar a consciência,
mas de realçá-la, porque ela é poliforme, variegada
e cheia de diversidade. No máximo o que pode-se
falar é em consciência perfunctória e exauriente em
relação ao que haveria presumidos e
subentendidos e, doutra feita, explícitos. A
estruturação da mente é em tipos e níveis de
consciência e não em consciente e inconsciente. E
ainda ao ponto de se dizer que o consciente é a
ponta do iceberg. Pelo contrário, a lucidez é maior
que a escuridão e o conhecimento e a aculturação
desempenham papéis fundamentais no que se
refere a este processo de esclarecimento.
601
Direito: a ideia de justiça
Miguel Reale desenvolveu a teoria tridimensional
do direito afirmando que o mundo jurídico gravita
em torno de três elementos: norma, valor e fato.
Simpatizo com tal teoria embora eu não me vincule
a ela. No meu ponto de vista o maior jurista de
todos os tempos foi o judeu alemão Hans Kelsen.
Ele defende o positivismo jurídico. Já sei o que vão
me perguntar: por que alguém que critica o
positivismo filosófico defenderia o positivismo
jurídico? Simples: porque é a única teoria que
reconhece o direito como área autônoma e
independente que não deve se incardinar a outros
interesses que não seja a própria justiça. Porque o
direito alternativo questiona essa posição e diz que
o direito deve ser tendencioso a favor dos supostos
hipossuficientes. Defendo imparcialidade. Porque o
que vemos é a trucidação das normas processuais
em prol de determinados interesses. A minha luta é
pela legalidade. Porque quando a própria legislação
602
consumerista determina a inversão do ônus da
prova esse princípio não pode ser relativizado. A
lei, ainda que os alternativistas digam que ela é
burguesa, é equânime, o problema está na
aplicação. Porque quando uma parte frágil está a
litigar ela tem de suportar a “dura lex sed lex”. Já a
burguesia relativiza o ordenamento jurídico que ela
própria criou para trapacear seus colaboradores,
isso não pode acontecer. Ouço falar em
modernização da legislação trabalhista. Ressalvo:
modernizar é uma coisa, lograr o trabalhador é
outra. O direito alternativo diz que devemos, às
vezes, passar por cima do direito para fazer
acontecer a justiça. Discordo, isso criaria
insegurança jurídica. O que tenho, entretanto, visto
com frequência é passar por cima do direito para
acontecer a injustiça, o que é igualmente deplorável
ou até pior. No direito penal sou a favor do
garantismo jurídico de Ferrajoli. Está na hora de o
Brasil assegurar um processo penal transparente e
disciplinado aos seus jurisdicionados. A polícia
técnica é mal aparelhada e a condenação sem
603
provas é uma constante. Percebe-se que no direito
civil se cobra da parte, no que se refere à produção
da prova, um rigor maior do que do Ministério
Público no processo-crime. Justamente menor rigor
do Estado que tem a seu favor uma megaestrutura!
Um exemplo de insanidade mental é a obra “Direito
Penal do Inimigo” de Günter Jakobs que sugere a
dinamização do processo penal em detrimento do
zelo pela prova. Absurdo! O processo penal tem de
ser meticuloso e cuidadoso, trate-se de quem tratar.
É o direito penal que faz de mim um positivista
jurídico. Processo penal tem de ter cientificidade.
Se não houver um conjunto de provas científicas
em desfavor do réu ele deve ser absolvido. Na
dúvida sempre em favor do réu. Eu realmente não
sei quem é esse “inimigo” de Jakobs. E no Tribunal
do Júri o in dúbio pro societa deve ser submetido à
prova irrefragável da materialidade e indícios
suficientes de autoria, eles precisam ser
“suficientes”. Sobre a questão da intencionalidade
ou finalismo da ação no direito penal entendo que
quando a interpretação mais favorável ao réu for a
604
finalista será esta a ser aplicada, quando for a da
intenção, então será acolhida a tese da intenção. A
lei no tempo, se se trata de direito penal, deve ser
aplicada conforme resultar em melhor proveito para
o réu que, dependendo das circunstâncias poderá
ser a antiga ou a mais nova. Não basta banir do
vocabulário as expressões “recluso” e “apenado”
colocando “educando” ou “reeducando”. O preso
realmente precisa ser ressocializado.
Preventivamente deve se investir pesadamente em
educação. Há estatísticas que comprovam, e isso
ao longo de décadas, que quanto maior a
escolaridade menor a afronta à lei e que a
incidência de condutas delitivas está na razão
direta dos baixos índices de escolaridade. Ainda
bem que há agravo de instrumento para destrancar
recurso, mas penso que não deveria ser o juízo a
quo a fazer exame de admissibilidade do recurso,
ele já é suspeito por ter prolatado decisão nos
autos e nenhum juiz gosta de ver a própria
sentença reformada ou substituída. Outro problema
grave no Brasil é que há muitos processos por juiz
605
e o critério de ascensão na carreira é a
produtividade. Cobrar muita produtividade
compromete a qualidade, passando da sentença
artesanal para a industrial, e induz o magistrado
fulminar certas ações sem apreciações mais
exaurientes. Sou a favor de boa remuneração de
juízes, promotores e advogados para que os
referidos profissionais possam desenvolver com
dignidade seu ofício. Sou terminantemente contra
compensação de honorários porque é um direito do
advogado e não da parte. Sou contrário a súmula
vinculante porque se de um lado ela uniformiza a
jurisprudência, de outro, ela engessa o direito e o
direito precisa ser dinâmico. Defendo acima de tudo
a imparcialidade. Os parâmetros processuais e,
superados estes, o mérito deve ser apreciado, e
não a vida do advogado ou das partes. Todo
magistrado deveria advogar por pelo menos dez
anos antes de ser juiz. Sou totalmente a favor do
quinto constitucional por trazer às turmas um ponto
de vista diverso. Os cursos de direito no Brasil, de
um modo geral, precisam ter sua qualidade
606
aprimorada. Defendo um acréscimo de formação
humanista na faculdade de direito. Sou totalmente
favorável ao exame da OAB tal como vem sendo
praticado. Defendo nacionalização da anuidade da
OAB em todo país. Sou a favor da faculdade de
Direito no ensino a distância. Quem tem de regular
o número de profissionais no mercado é o próprio
mercado. Quem se submete ao vestibular deve
avaliar a viabilidade de uma profissão antes de dar
o primeiro passo. O Governo Federal deveria criar
uma política de barateamento de todo tipo de livro,
inclusive do livro jurídico. As publicações de todo o
país e de todas as instâncias deveriam ser
fornecidas eletronicamente ao advogado sem custo
algum e todas pelo mesmo eficiente canal. Como a
defensoria pública não consegue cobrir todo o
contingente de pessoas que carecem de seu
serviço em todo território nacional os Estados
deveriam mesclar defensoria pública com
defensoria dativa. Quando houver desvio de
dinheiro dos cofres da OAB a consequência não
deveria apenas ser a eleição de uma chapa
607
contrária, mas ainda deveria ser apurada a
responsabilidade criminal. No que se refere à
campanha eleitoral sinto que a respectiva
legislação impede de conhecer a fundo o candidato,
bem como suas propostas, enfim, está rígida
demais. A Lei Maria da Penha é inconstitucional
porque fere a igualdade entre homem e mulher de
maneira que o homem não pode usar da força nem
para legítima defesa. Tem muita mulher agredindo
varão e ficando impune. Foi um retrocesso a
equalização entre estupro e atentado violento ao
pudor. São níveis de afrontamento de norma
distintos e deveriam os tipificados de forma
especificada, como era antes. É uma afronta à
Constituição exigir custas de remédios
constitucionais, o Conselho Nacional de Justiça tem
que fiscalizar os magistrados para coibir estes
abusos. Refiro-me a habeas corpus, habeas data e
mandado de segurança. No juizado especial o
advogado deveria ser sempre intimado quando do
que se trata é de recolher custas. O advogado
deveria ter no mínimo férias de trinta dias por ano.
608
Estas férias em um único lapso de tempo.
Deveriam ser banidos do ordenamento jurídico os
prazos curtíssimos, pois eles destroem a saúde do
advogado. Deveria haver um piso da categoria
abaixo da qual não poderia ninguém laborar tanto
para a iniciativa pública quanto para a privada.
Como vivemos em uma sociedade capitalista de
livro iniciativa, livre concorrência e liberdade de
expressão não deveria haver vedação na
propagação midiática do serviço que o advogado
presta. Todos os processos de todas as instâncias
deveriam ser digitalizados. Toda vez que o
processo vier acompanhado de farta documentação
deveria ser excepcionada a regra e haver autos
físicos. Sempre que o advogado devolve os autos
em cartório deveria ser-lhe entregue uma certidão
de devolução e recebimento. Deveria haver um
tempo mínimo de permanência de um juiz em uma
comarca porque nas de menos entrância há um
rodízio muito intenso de juízes e promotores, o que
prejudica a marcha processual das ações.
Comprovada enfermidade o advogado deveria
609
possuir um mecanismo de estancar publicações em
sua OAB. Deveriam mudar o nome do
departamento administrativo da delegacia de
trânsito de “setor de imposição de penalidades”
para “junta de apreciação de recursos
administrativos”. A função do órgão é apreciar o
mérito porque, afinal de contas, a multa já foi
imposta, o que cumpre discutir é se ela será
mantida ou não. Os procons deveriam ter poder de
coagir as empresas que passam por cima do direito
consumerista a respeitar ainda que a contragosto o
direito do consumidor. Porque do jeito que está hoje
o órgão pouca coisa resolve. O voto não deveria
ser obrigatório. Porque coloca o voto consciente e o
de má qualidade na mesma balança atribuindo-lhes
o mesmo peso. O voto deveria ser na sigla
partidária e não na pessoa para que o povo
aprenda a votar ideologicamente. Depois de
apuradas as urnas o partido deveria fazer
assembleia para decidir quem iria exercer os
mandatos eletivos. Sou a favor do parlamentarismo
porque tenho visto que, sistematicamente, o povo
610
coloca partidos opostos no Legislativo e no
Executivo, o que gera demanda de mensalões e
barganhas. Trata-se de uma questão de
governabilidade. Reforma tributária já! O sul remete
muitas divisas ao Governo Federal e tem retorno
baixíssimo. Aglutinação aos Estados do nordeste
que estão super-representados. Os integrantes do
Conselho de Sentença do Tribunal do Júri deveriam
todos eles possuir curso superior. Porque quem
tem curso superior também faz parte do povo e
porque tenho visto que as pessoas de baixa
escolaridade têm dificuldade de compreender as
teses de defesa. O país precisa de uma legislação
avançada que discipline o urbanismo, a arquitetura
e as obras de engenharia de um modo em geral
para a modernização estrutural do país. O Brasil
precisa ter uma legislação e um direito penal mais
eficientes e mais duros no combate à corrupção.
Deve haver pena duríssima quando o assunto é
destruição ou falsificação de documentos e de
autos. O que não está nos autos não está no
mundo. Não devem ser acolhidas provas ilícitas. O
611
magistrado deve ser um processualista imparcial,
mas deve abrir ou conceder prazo à parte quando o
vício é remediável. A liberdade de expressão não
deve ser restringida por ação judicial a não ser que
exponha a honra e a intimidade de um indivíduo.
Sempre que possível deve-se preservar o
pensamento e a expressão do mesmo. Os
Tribunais de Contas deveriam fiscalizar com mais
rigor os Municípios, pois quem está no mundo
fenomênico não consegue entender porque o
dinheiro não aparece. Precisa ser revista a
legislação que regulamenta a radiodifusão
comunitária porque o marco regulatório atual
inviabiliza as atividades das referidas entidades.
Acertada foi a decisão do STF que tirou a exigência
do bacharelado em jornalismo para exercer a
profissão de jornalista. Todo ser humano tem direito
de expressar-se e não só o jornalismo. Mesmo
quem é formado em outra área que não o
jornalismo e a comunicação social reúne condições
de produzir e transmitir informação de qualidade. É
preciso ter mais controle sobre as empresas que
612
realizam concurso público para evitar fraude e
beneficiar de antemão quem não tem os melhores
dotes intelectuais, mas é apadrinhado. É preciso
levar a sério as ações de indenização por danos
morais exatamente quando o ofensor é abonado e
possui grande projeção social. A lei não deve
tolerar nenhuma instituição que prega “as leis do
nosso mundo se sobrepõe às leis do mundo
exterior” porque nada e nem ninguém podem estar
acima da lei. Deveria ser criado um plano de
universalização do ensino superior, de fomento à
pesquisa, à ciência, ao desenvolvimento
tecnológico e à produção cultural. E a lei teria o
papel de disciplinar a procedurística deste plano.
Quando o advogado é defensor dativo e é expedida
carta precatória dever ser nomeado defensor ad
hoc na própria comarca deprecada porque o que o
Estado paga não cobre a despesa de
deslocamento. Quando os autos saem da Justiça
Estadual e vão para a Federal deveriam ser os
funcionários de cartório a digitalizar o processo e
não o advogado. Quando o defensor é nomeado
613
para Tribunal do Júri o Estado deve fornecer cópia
fotostática dos autos sem nenhum custo. Nas
regiões de fronteira deveria haver acordo entre as
comarcas para agilizar cartas precatórias e
rogatórias. É lamentável que um Oficial de Justiça
tenha um ganho maior do que o de um advogado.
Ambos são dignos e precisam receber bem, mas a
profissão de advogado cobra mais do intelecto e
por isso deve ser melhor remunerada. O advogado,
em razão da saturação do mercado, passou por
uma proletarização. Ele, não raro, é um pobre
engravatado. Dos profissionais de escritório está
sendo um dos piores pagos. O advogado se move
entre a possibilidade de ser um generalista, cível,
penal e trabalhista, ou trabalhar para os grandes
escritórios em que há um volume enorme de
trabalho e parca remuneração. Se optar pela
primeira posição terá de ser um anônimo entre
outros que já têm algum nome. Parece que a
bacharelização jurídica de nosso país vem atender
a uma demanda oriunda da pletora de direitos da
constituição de 88. Mas o excesso de profissionais
614
gerou não só o efeito almejado, a assunção de
causas de valor econômico irrelevante, mas ainda a
queda do nível de conhecimento médio dos juristas
que estão atuando. O brio do jurista foi substituído
pela produção em série taylorista “operador
jurídico”. O que os filósofos da Escola de Frankfurt
disseram sobre a cultura europeia hoje se aplica ao
direito praticado no Brasil: a mais objetificadora,
desencantadora, reificadora e desumanizante
estandardização.
Teoria da Literatura: a ideia de contexto
Grosso modo, a teoria da literatura gira em torno de
cinco eixos: autor, que é aquele ser humano real
que faz uma experiência concreta e psíquica e
limitada de vida; texto, que é o produto de uma
conjuntura dos ingredientes que o compõem e que,
apesar disso, ao menos nesta perspectiva, tem vida
própria; leitor, que é para quem o texto se dirige;
contexto, que é a metanarrativa dentro da qual tudo
está imbricado e, finalmente, código, que é a
615
estrutura profunda do texto. Estes cinco conceitos
são fundamentais para explicar uma produção
literária, qualquer que seja ela. Vemos com
frequência que os grandes autores, embora isto
não seja uma regra, possuem uma biografia
recheada de fatos inusitados e que em muitos
casos o pôr-se a escrever traduz uma vida rica de
experiências. No sentido de que aquele que
vivenciou uma série de circunstâncias não
consegue guardar tudo isto para si. A questão do
autor pode mostrar um citadino que parou para
pensar na “pauliceia desvairada” ou nas belezas do
Rio de Janeiro das belas praias. A biografia pode
mostrar alguém que optou pelas letras porque não
se vislumbrava opções diferentes desta. A
abordagem do autor vai identificá-lo como russo,
judeu ou alemão. A biografia vai me fazer entender
que o autor foi combatente, apátrida, boêmio ou
membro do clero. A abordagem do autor poderá
vislumbrar um autor que passou fome na vida ou
era herdeiro de uma enorme fortuna como Alain de
Botton. A abordagem do autor é importantíssima
616
porque, como dizem as Sagradas Escrituras, “é
pelo fruto que se reconhece a árvore” e vice-versa.
Não pode uma boa árvore dar frutos maus e nem
uma má árvore dar frutos bons. Ainda que Tomás
de Aquino tenha dito “não importa quem o diz, mas
o que se diz”. Claro, ele era filósofo e trabalhava
com as ideias como se elas fossem coisas. O autor
sempre herda dos pais, dos professores e de
pessoas próximas a religião, a diretriz política, o
time de futebol, e uma série de outros bairrismos.
Isto é jogado para dentro do texto do autor explícita
ou implicitamente. A obra sempre traduz o
etnocentrismo do autor. A idiossincrasia e a
subjetividade, não raro, são apresentadas como
modelo válido, perfeito e universal. Os filósofos são
campeões nisto. Além disso, o autor deve morar
num ponto do planeta e sofrer os cerceamentos da
época em que viveu. Como se vê, é tênue a linha
que separa contexto de autor. O autor faz, ainda,
experiências amorosas, ou experiências de
frustração, como Nietzsche e tantos outros poetas,
vem de uma família e constitui família. O autor,
617
além disso, pode escrever uma obra aos 18 ou aos
85 anos de idade. Pode ser pai de obra única ou
até de centenas de livros. O autor, é óbvio, mas é
bom que se diga, é homem ou mulher. Sim, porque
até recentemente a produção literária se
encontrava encerrada nas mãos dos barbudos. A
ponto de a escritora Clarice Lispector ser elogiada
por uma colega sua com os dizeres “nossa, você
escreve como homem!”. O que se vê é que
qualquer pessoa pode ser escritor, mas sobretudo
nos primeiros tempos de nosso pais havia uma
preponderância, salvo Machado de Assis, Cruz e
Souza e alguns outros, de homens, brancos, ricos,
clérigos, advogados, jornalistas, militares, médicos
e funcionários públicos. Ser escritor, no passado,
não era para qualquer um. Havia uns ricos cultos
de pequena expressão numérica e uma multidão de
pobres analfabetos. A literatura sempre começa
como expressão da supremacia das elites para só
mais tarde se tornar o retrato das mazelas sociais.
Além disso tudo, o autor pode ser sanguíneo,
colérico, fleumático ou melancólico. Pode ser
618
sentimental ou calculista. É inegável, para
compreender a totalidade de um texto é preciso
conhecer a vida real de seu autor. Outra
abordagem possível é a do texto. Sim, porque o
texto pode e deve ser tomado como uma entidade
autônoma, independente e fechada em si mesma.
O texto tem a capacidade de falar por si só. A ponto
de não nos interessar, muitas vezes, com o que o
autor pretendeu dizer, mas com aquilo que ele
efetivamente diz e expressa. Certa vez Renato
Russo foi questionado se era homossexual porque
na letra de uma de suas músicas dizia “eu gosto de
meninos e meninas”, ao que ele respondeu, “eu
não detenho a posse do texto, eu o redigi, mas
agora ele não me pertence mais”. A meu ver,
excelente resposta. O texto comporta aquilo que se
chama hermenêutica, que é um conjunto de
técnicas de interpretação. É feita abordagem literal,
gramatical, axiológica e muitas outras do texto. A
filosofia também é usada. E, como diz Carlos
Alberto Hang, filosofia não é ciência, sequer é uma
disciplina, ela é “uma ferramenta”. O texto pode ser
619
rebuscado ou pode estar escrito em uma linguagem
mais moderna, como o estilo jornalístico. O texto
pode ser descritivo, dissertativo ou narrativo. Ele
pode ser prosa ou verso. A poesia pode ser livre ou
ritmada, musicalizada e bem construída. A
estilística pode ser rica ou pobre, principalmente no
que se refere ao uso de figuras de linguagem. O
texto pode ser solene ou alegre e fácil. O texto
pode ser superficial ou denso. Específico ou
genérico. Concreto ou abstrato. O texto pode ser
coeso ou truncado. Claro ou obscuro. Aberto ou
hermético. O texto é uma fonte inesgotável de
interpretação. Porque projetamos no texto o que
nós queremos ver. Nós extraímos do texto e o texto
extrai de nós, isto é hermenêutica. O texto é algo
que se renova. O texto diz muito mais do que o
autor pretendeu dizer. Daí a frase que com
frequência se ouve “sou responsável por aquilo que
escrevo e não por aquilo que você interpreta”. O
texto pode ser religioso, científico, filosófico, literário
propriamente dito ou pode ser um texto da crítica. O
que talvez falte no Brasil seja a crítica da crítica.
620
Porque não se sabe quem deu carta branca para
alguns dizerem o que é de bom alvitre e outros nem
tanto. O bom da crítica é que mesmo quando ela é
negativa chama a atenção para o texto criticado. E
a crítica de amanhã pode pensar de modo diferente
da crítica de hoje. O texto é a foto de um rio em
movimento. Mesmo que vejamos as águas paradas
sonhamos com a correnteza, com o frio da água,
com os peixes, ou a aventura, etc...Outra
perspectiva é a do leitor. No sentido de que o autor
pode escrever de trás para frente, ou seja, pode
antes mesmo de segurar a caneta entre os dedos,
imaginar como o receptor da mensagem irá
conceber a redação. A novela e o cinema são
gêneros literários que trabalham essencialmente
com esta lógica. Há uma espécie de simonia. No
sentido de que a única coisa que se vislumbra é a
vendabilidade do livro e o retorno financeiro que ele
irá trazer. Particularmente, sou contra a ideia de
quer vender sabonetes e livros passam por
processos idênticos. Um livro que se presta a
satisfazer a fruição e o gozo do leitor é um livro que
621
não agrega muita coisa. Tudo aquilo que é cômodo
e que não cobra mudança é como um alimento
gostoso, porém, nada nutritivo. O escrever
enquanto jogada de marketing traduz aquilo que
Martin Heidegger chamou de existência inautêntica.
O leitor deve, sim, ser considerado. Mas quando
um escritor realize um texto hermético ele não está
desprezando o leitor, apenas está dizendo quem irá
ser seu leitor. Nietzsche costumava dizer que seus
leitores eram pessoas especiais. O leitor na é uma
tábula rasa. Ele é carregado de preconceitos e
valores e o escritor pode reafirmar esses eixos ou
relativizá-los e polemizá-los. No geral, a literatura
tem trabalhado pela desconstrução da sabedoria
popular. A literatura tem posto o duvidoso no lugar
do líquido e certo. O leitor está cada vez mais
inacessível. Porque vivemos numa pletora de
literatura e o excesso de excitação dos sentidos os
torna indiferentes àqueles cujo maior interesse é
chamar a atenção e disputar o tempo livre do leitor.
O leitor está cada vez menos inocente. E se no
passado o leitor era desafiado a compreender um
622
romance, hoje é o leitor que desafia o escritor a
desenvolver uma trama cada vez mais complexa,
intrincada, hermética e misteriosa. É claro que
quanto mais bem estruturada e fechada a
antecâmara do clímax, mais orgásmico ele se
torna. Porque a sensação de extravazamento é
precedida de extrema tensão. A marca psicológica
é imprimida somente através do movimento do
texto. O texto precisa arrancar o leitor da sua
postura de expectador e colocá-lo dentro da cena
do livro como se ele estivesse de fato lá e fosse
invisível. O leitor também tem de ser estimulado a
dar conta das mensagens subliminares. De sorte
que se tomando os corolários se chegue às
premissas e, tomando-se as premissas, se chegue
aos corolários. A dificuldade de entender um texto
mais antigo se deve ao fato de os preconceitos do
leitor do passado serem diferentes dos
preconceitos do leitor dos dias de hoje. O pré-paro
do leitor é sempre outro, é mutante e dinâmico.
Assim como no mundo do trabalho há a divisão
social do trabalho, no mundo da cultura há a
623
mesma especialização. A ponto de haver pessoas
que só leem histórias de amor, outros só aventura
policial, outros os investigação, outros só ficção
científica, outros só ufologia e assim por diante. é
claro que isto traz uma vantagem para o escritor.
Pois na medida em que aumenta o universo de
leitores abre demanda para a produção escrita. O
leitor é um ditador poderoso. Porque o escritor
depende da logística de consumo, livraria,
distribuidora e editora. Aliás, as editoras moldam o
padrão do leitor. A maioria das editoras são
temáticas e é por isso que os escritores franco-
atiradores sentem dificuldade de se impor. Na
verdade, a internet vem cada vez mais quebrando
essa classificação dualista leitor-escritor. Estamos
caminhando para uma sociedade em que todos
escrevem e todos leem. Considera-se o marco
divisor entre a Pré-História e a História o advento
da escrita. Adentraremos um dia para o reino da
Super-História. Todos serão leitores e escritores.
Quase nada passará ao largo da escrita, tudo,
absolutamente tudo será exarado. A escrita será
624
não só uma superconsciência, mas também um
supercontrole. Porque uma coisa é inaugurar um
movimento civilizatório e outro é universalizá-lo.
Infelizmente, sabemos que nenhuma garantia
fundamental foi universalizada até agora, nem
mesmo o direito à vida e à liberdade. Enquanto a
escrita não se universaliza quem escreve está na
dianteira. Está sendo revolucionário e vanguardista.
Outra perspectiva, que reputamos de suma
importância é a do contexto. O contexto é aquela
universalidade de situações, coisas, pessoas e
ideias a partir do que o metanarrador construirá sua
metanarrativa. Hegel diz que nenhum autor é maior
do que aquilo que seu contexto permite sê-lo.
Gênio é aquele que consegue captar o contexto na
sua inteireza. E para isto é necessário ter
capacidade de síntese e conseguir eleger aquilo
que realmente é importante. Esta obra que o leitor
está a passar sob seus olhos tenta ser exatamente
isto. Reputamos importante abrir um capítulo sobre
a Teoria da Literatura porque a literatura é uma arte
que possui fortíssimo pode de modificar os hábitos
625
das pessoas. A literatura dita padrões e
comportamentos. Ela é parte intrínseca do contexto
em que o ser humano vive. Porque uma das
instâncias mais importantes da vida humana é a
noosfera enquanto dimensão em que fica refugiado
o pensamento puro, a ideologia, a primeira acepção
histórica da palavra. Assim, se a literatura é parte
do contexto ela é também reflexo do contexto, seja
ele econômico, social, religioso, político, cultural,
filosófico, artístico, etc... A literatura é, destarte,
ativa e passiva, premissa e corolário. Ela sai de si
mesma torna-se realidade e é colhida da realidade
para novamente tornar-se arte. Que prato cheio
para um quejando de Hegel. Essa é a verdadeira
direita hegeliana. O pensamento que se objetifica e
o objeto que se idealiza. O contexto é algo em
construção e por isso mesmo a própria literatura se
assemelha ao avião que se constrói no ar.
Genialidade é um Miguel de Cervantes ridicularizar
o que está em decadência e um Marx vislumbrar
por completo aquilo que outros autores só viam em
parte. Quando um contexto está prestes a se
626
perfectibilizar é porque o seu sucessor já está na
reta final de gestação. E que duro é o parturir de
um novo contexto, o Terror guilhotinesco que o
diga. A inteligência começa como embrutecimento
e a luz como treva. Para se sair da barbárie se
intensifica a barbárie. Platão diz “quem consegue
ver o todo é filósofo”. Que poderia ser substituído
por “quem consegue ver o contexto é filósofo”. Este
é o papel do intelectual: ver o contexto. Mas o
homem comum sempre tem sua visão parcial da
realidade. O contexto ainda comporta lados e
subcontextos. Pois uma coisa é o capitalismo visto
pelo capitalista e outro é pela ótica do proletário.
Uma coisa é o catolicismo visto como fenômeno
universal e outra é vê-lo pela ótica do monge há
vinte anos enclausurado. Uma coisa é encarar
tecnicamente a seca no nordeste e outra é vivê-la
existencialmente. Do que se aproxima a poesia.
João Cabral de Melo Neto que o diga. Diferente é
falar de cristianismo na época da Igreja Primitiva e
falar dela na Alta Idade Média e nos dias atuais.
Não há texto sem contexto. Enfim, era esta a
627
grande mensagem. A quinta perspectiva é a do
código. Sim, porque uma coisa é marxismo, outra é
existencialismo, outra é empiriocriticismo, mas
todos eles são materialistas. Isto equivale dizer
que, em que pese as discordâncias mais
pormenorizadas, há uma concordância de fundo
entre todas estas vertentes. Assim como
cristianismo e kardecismo conflitam quando o
assunto é ressurreição e reencarnação, mas estão
de acordo quando do que se trata é de afirmar a
existência de Deus e a imortalidade da alma. Os
códigos são hierarquizados, podendo, inclusive,
comportar numerosas gradações. E a leitura
profunda de um texto consiste em abstrair estes
conceitos e produzir uma hermenêutica
harmonizando todos estes níveis. A teologia, em
linhas gerais, é isto: uma leitura sistemática e
profunda das Sagradas Escrituras. O código
profundo é sempre metafísico e, portanto, filosófico.
O problema da transformação do livro terceiro de O
Capital só chega a ser um problema para quem não
vislumbra a concordância profunda da obra consigo
628
mesma. O mesmo pode ser dito sobre a Bíblia da
castidade recomendada por Paulo de Tarso e o
livro do Cântico dos Cânticos ou o dar a túnica e a
quem não teme o talento único para o que já tinha
dez. Na tradução judaica a concordância profunda
toma um caminho totalmente inusitado. Como no
hebraico a letra possui ao mesmo tempo um valor
alfabético e numérico, casam-se os valores
simbólicos, numéricos e místicos numa verdadeira
transmutação de aspectos quantitativos em
qualitativos e vice-versa. Esta tradição chama-se
cabala. Há quem fale em cabala cristã, que viria a
ser um prolongamento da judaica. O estruturalismo
é um esforço de compreensão profunda não só da
literatura, mas da própria linguagem. Claude Levi
Strauss é o grande nome do estruturalismo
linguístico. Penso que a teoria dos códigos se
aplica à literatura e a todos os ramos do
conhecimento. Toda ciência possui seu código e as
teorias são as tentativas de encontrar estas
invariantes. Tudo, enfim, se resume à criptografia.
O próprio homem que é o inventor e descobridor de
629
códigos é também ele um código. Ao que parece , a
razão de ser da vida inteligente é compreender a si
mesma e nós caminhamos para isso. Quando a
meta for alcançada seremos guindados a uma
condição ontológica superior e aí o desafio será
ainda mais difícil. Não duvido de que haja alguém
nos fiscalizando, e, vez por outra, averiguando
nossos avanços para se certificar em que patamar
estamos como o gourmet que abre a tampa da
panela, cheira e espia a vianda para ver se já está
no ponto ou se precisa ainda ser um pouco mais
aquecida. A literatura é a fragrância que odoriza o
olfato e a inteligência de quem nos avalia. A
literatura não puxa nem para baixo e nem para
cima o progresso da humanidade. Ela apenas é o
sinalizador, o termômetro que registra onde
estamos. A teoria da Literatura é essa
metacognição que disponibiliza a apreciação de um
ramo de atividade humana que aos olhos do leigo
não estaria submetida a nenhum parâmetro
externo. Agora, já sabemo como é que a chamada
“crítica” se apropinqua e discorre sobre a produção
630
de quem escreve por escrever e não para satisfazer
a este ou àquele.
Teologia: a ideia de um Deus racionalizável
O método da teologia é o filosófico. Popper diz que
“a teologia nasceu da falta de fé”. Isto é verdadeiro.
Aliás, há quem não desencadeie crise de fé na
filosofia, mas se vê cindido na teologia. Temos que
entender que Deus está infinitamente acima da
racionalidade humana. Ele se deixa em parte
aprisionar pela razão humana para que nós
possamos compreendê-lo. Mas quando não
compreendemos algo não devemos renegar a fé.
Pelo contrário, é aí que começa a fé. Se existe
mistério não é porque Deus quer nos fazer de
bobos, mas é porque não estamos prontos para
tudo compreender. Assim, a teologia faz aquilo que
é humanamente possível. E sobre as nossas
limitações remeta-se o amável leitor ao campo da
epistemologia. A teologia é um dos campos mais
bem tratados do conhecimento humano embora
631
seja o que mais desconhece o próprio objeto de
estudo. A teologia é ao mesmo tempo a rainha das
ciências e uma miserável. Depende de quem o vê.
Na verdade, a teologia é uma disciplina
extremamente séria, inclusive no que concerne ao
método. Já as críticas que se dirigem a ela se deve
ao fato de ela admitir certas premissas de antemão.
Só um leigo se rebela contra este problema. Porque
quem é profundo conhecedor da noosfera sabe que
todo e qualquer saber antepõe premissas
indemonstráveis àquilo que efetivamente é passível
de ratificação ou refutação. A teologia pode ser a
leitora da realidade à luz da Bíblia ou a leitura da
Bíblia à luz da realidade. As duas leituras são
válidas. A teologia pode sofrer a influência de
praticamente tudo, desde teoria econômica,
políticas, movimentos sociais, até experiências
místicas e emotividade. A liturgia pode fazer caber
dentro de si as pastorais ou as pastorais subjugam
a liturgia. Há, ora uma acentuação da fé ora uma
acentuação do agir. Há o esperar e o iniciar. Acima
de qualquer linha ideológica deve prevalecer a
632
obediência, a caridade e a noção de que tudo
passa, menos a verdade. Entre Reformas,
Contrarreformas, arrefecimento e avivamento deve
prevalecer o Cristo, o mesmo de ontem, de hoje e
de sempre. O cristianismo deve dar conta de
produzir psicologias cristãs. A ponto de a maioria
dos padres e pastores psicólogos serem
psicanalistas, o que não se acomoda com a postura
ateia de Freud. A teologia é uma antropologia. O
homem é interpretado a partir de sua origem. De
sorte que pode-se falar que nós não vamos para o
céu, nós viemos do céu. A teologia é relativizante.
Mas ela ajuda a relativizar também quem lhe faz
frente. Tudo passa a ser representação. E aí nos
damos conta de que não podemos ser escravos de
nossas próprias representações. Nietzsche não
matou Deus, ele matou um Deus. Ou seja, fulminou
uma determinada falsa representação do
verdadeiro Deus. Diria que Nietzsche fez um favor
a serviço do Reino de Deus, porque embora tenha
arrancado muito trigo junto, jogou no fogo um
punhado considerável de joio. O mesmo pode ser
633
dita em relação a Sartre, Freud, Carnap, Feuerbach
e toda esquerda hegeliana, céticos, agnósticos e
similares. Embora há séculos atrás vários autores
tivessem dado por encerrada a discussão acerca
de Deus, optando pela inexistência do mesmo, o
que se vê é uma busca intensa por Deus e por
Cristo, e, não obstante a diáspora católica, a missa
matinal dominical tem lotação garantida a ponto de
faltarem bancos para os mais jovens. A teologia
relaciona-se com a riqueza de dois modos: pela
teologia da libertação e pela teologia da
prosperidade. De fato, Deus é um Deus Libertador.
Mas o que importa para Deus é ser pobre em
espírito e uma aliançado com Deus pode ser rico
inclusive na acepção deste mundo. Já a teologia da
prosperidade acerta quando reconhece que a
bênção vem do Abençoador, mas deveria ensinar
que é melhor ter o Abençoador do que a própria
bênção. A teologia ao mesmo tempo é dogmática e
sistemática. Na verdade, uma coisa depende da
outra. Porque a palavra “dogma”, apesar de ter sido
introduzida na Língua Portuguesa é latina e
634
significa decreto. Trata-se de uma premissa de que
não se pode abrir mão. Já a ideia de sistema
significa que um único furo teórico invalida o
sistema inteiro. A ideia de sistematicidade está
atrelada à de perfeição. O trabalho do teólogo é
encontrar um sistema filosófico subentendido nas
Sagradas Escrituras. E a Bíblia é tão promissora e
tecida de tantos níveis que isto é factível numa
leitura profunda e dela podem ser extraídos
enésimos sistemas de ideias. Uma denominação
religiosa faz constar em seus estatutos uma
doutrina e muitíssimas são as suas doutrinas a
partir dos mesmos textos. É assim que se fala em
teologia judaica, teologia católica, teologia
protestante, teologia mórmon e assim por diante. a
teologia é interpretação e reinterpretação. Porque
da interpretação são deduzidos conceitos e os
conceitos são usados como mecanismo de análise
dos mesmos textos que lhe deram causa. Uma das
grandessíssimas razões pelas quais a
hermenêutica da palavra é inextinguível é a
permanente criação de conceitos que não tem fim.
635
Enquanto houver humanidade haverá criação de
conceitos. E aí o que faz o hermeneuta? Simples:
coloca o velho vinho em odres novos. Coloca os
mesmos versículos dentro de novas categorias.
Aristóteles chama a mais sublime das disciplinas de
“teologia”, que mais tarde seus seguidores
chamariam de metafísica. Claro, porque a raiz
última de todas as coisas seria o motor imóvel e
tudo o que está relacionado direta ou indiretamente
com ele. A teologia é sempre proselitista e sectária,
oposto da ciência da religião. Ele é sempre um
ponto de vista. E mesmo que haja pluralidade de
interpretações há uma concordância de fundo. A
teologia é tão ou mais ideológica do que a filosofia.
Teologia é tradição judaico-cristã enriquecida pela
perspectiva filosófica grega. É por isso mesmo que
ela é palco de diálogo e síntese. As seitas
neopentecostais se ancoram sobre a Bíblia e
repudiam a teologia. Porque a teologia deixa a
razão entrar, fazendo com que a nossa fé receba e
dialogue com o padrão do mundo. Neste sentido a
fé é uma irracionalidade. O mundo é a nossa casa
636
e não podemos fechar os olhos para aquilo que nos
rodeia, mas entender que o que vemos o fazemos
sob a ótica de um Ser que tem o poder de iluminar
isto tudo. A teologia durante séculos foi o ponto de
vista dentro do qual tudo estava cabido. Ela veio
substituir a filosofia. Hoje as chaves do
conhecimento estão com as ciências. Mas isto
significa que concomitantemente uma e outra
exerce um papel preponderante, mas não implica a
aniquilação das suas duas respectivas
concorrentes. As transformações culturais do
Ocidente e a industrialização repercutiram inclusive
sobre a teologia. As Duas Grandes Guerras
também impactaram a teologia. Vê-se com cada
vez mais clareza que as religiões desenvolvidas
são abertas ao diálogo e ao ecumenismo. O diálogo
reforça a identidade, ao contrário do que muitos
pensam. A Igreja Católica não está retraindo
porque não tem ideias, mas porque tem dificuldade
de implementar as maravilhas cogitadas no âmbito
teológico. Quanto ao amparo da noosfera, há
material abundante e riquíssimo, mas também se
637
vê uma espécie de resfriamento. No sentido de que
a orientação teológica hoje é um ressurgir medieval
porque não deu certo acompanhar o movimento da
maré social. Porque o protestantismo não aceita o
mundo, mas o rejeita e está crescendo a todo
vapor. Está se tentando montar, em toda parte, o
eixo da piedade. Ainda que isto implique cortar a
própria carne, pois sempre há os desgostosos e as
lideranças estão se dando conta de que sempre
seguir a ortodoxia da doutrina a agradar o povo. O
povo gosta de populismo na política, mas não na
Igreja.assim como na Igreja Católica quase só se
ouve teologia e quase nada da Palavra de Deus, no
evangelismo o texto é tudo e não há um espaço
teórico para amenizar o confronto entre a
literalidade do texto e o nosso contexto. Quem sabe
faltaria unir as perspectivas. É preciso evitar os
extremos entre intelectualismo e apelatividade. No
sentido de que não se recaia nos extremos da
divagação e da coação indecorosa. Há como extrair
da teologia, tudo é uma questão de escolha. De
modo geral, não é bom que a Igreja seja nem
638
eclesiocêntrica e nem assembleiocêntrica, mas
antes de mais nada cristocêntrica. A teologia é a
técnica de atualizar a compreensão da Bíblia ao
longo dos tempos. É uma pena que o curso não
seja buscado como uma realização existencial, mas
apenas por aspirantes ao sacerdócio e ao
pastoreio, e, neste último caso, nem todos os
pastores possuem formação superior. A teologia
consegue transmitir melhor do que a filosofia um
cadinho de dignidade ao homem. Somos
importantes por sermos imagem e semelhança do
que há de mais importante no universo. A teologia
abarca diversas subdisciplinas como hermenêutica
teológica, antropologia teológica, hamartiologia,
História da Igreja, pastoral, liturgia, direito
canônico,cristologia, pneumatologia, administração
paroquial, escatologia, ecumenismo, catequese, e
tantas outras. A bibliologia é a mais focada para as
Sagradas Escrituras. Um dos grandes ganhos da
ascensão do pentecostalismo no Brasil é a
facilidade de se fazer um curso de teologia,coisa
que no passado ficava adstrito aos aspirantes ao
639
presbiterato. Existe uma vontade diretiva e uma
permissiva da parte de Deus. Na diretiva Deus
adrede faz acontecer. Na permissiva ele só
concorre no resultado por anuência ou omissão. A
Reforma foi uma maneira que Deus encontrou de
fazer chegar a palavra para quem estava carente
da palavra e enfastiado da burocracia. A letra mata
e o espírito vivifica. A Reforma reflete o
descompasso entre o exercício ministerial focado
para o poder e uma comunidade carente de bens
espirituais. Mas mesmo no que se refere ao espírito
a Igreja Católica continua cumprindo um importante
papel porque há quem nela se encontre
plenamente. A começar pelos seus próprios
dirigentes. O ensino da teologia está sujeito a
políticas pedagógicas que traçam diretrizes para o
conteúdo e para a didática. A teologia é colocada
na perspectiva da pregação, do ensino e da obra.
Há uma diferença entre pregação e ensino, pois
enquanto que a primeira é aconselhativa,
imperativa, exortativa e admoestativa o ensino não
quer trabalhar tanto o coração, mas o intelecto.
640
Para clarificar conceitos e elidir heresias. O
neoconvertido é um animal feroz e a teologia
suavemente o domestica. Porque a espiritualização
da fé educa a paixão. A teologia nos deixa mais
centrados. A teologia relativiza o fanatismo. A
teologia amplia compreensões e horizontes,
contextualiza nossa fé em todos os sentidos,
inclusive culturalmente. A teologia é o esforço do
homem de compreender a Deus, a si mesmo, a
partir da ótica de filho de Deus e a relação de Deus
e o homem. Se a Bíblia é um sinal de trânsito a
teologia é uma tentativa de compreender este sinal.
Não é todo livro que possui um conteúdo tão denso
a ponto de requerer para si uma disciplina
específica. Também não é todo livro que possui
uma estrutura tão coesa a ponto de não naufragar
em função daquilo que poderia vir a ser
contradições. Até as aparentes contradições ou
desencontros da Bíblia guardam um sentido
teológico. Porque sem num evangelho existe um
Simão Cirineu para ajudar a carregar a cruz de
Cristo, noutro evangelho, o de João, Cristo carrega
641
a cruz sozinho para mostrar que Cristo é insub-
rogável. Lendo teólogos famosos, católicos e
protestantes, vejo que o texto é de uma
profundidade, de uma densidade e de uma sutileza
incríveis. Isto é reflexo do acúmulo de
conhecimento amealhado nesta área. Porque a
soma de aspectos quantitativos gera uma mudança
qualitativa. Em que pese Cristo ser a revelação total
dos planos de Deus Pai diria que há uma perene
revelação da Palavra de Deus ao longo do tempo.
Os fatos históricos sacodem e suscitam novos
sentidos à tradição consignada na Palavra de Deus.
A teologia é um misto de obediência e ousadia.
Obediência porque admite como absolutamente
verdadeira a Bíblia e ousadia porque intenta
compreender pela razão aquilo que transcende
toda racionalidade. O duro de ser ao mesmo tempo
teólogo e autoridade eclesiástica é que o que
escrevemos nos deixa pastoralmente limitados. Tal
como aquele doutrinador advogado que protestava
num processo por uma medida que reputava
incabível nas lições do manual de sua autoria.
642
Defender exacerbada ortodoxia em matéria de fé é
como ser partido de oposição que se torna governo
e reprisa o que criticava nos antecessores. Hoje em
dia chega-se a falar em “mercado” dos teólogos
encetando para a capelania hospitalar, escolar e
militar. Na verdade, as tendências apontam uma
procura crescente por este curso e por esta
disciplina. O fato é que o teólogo estuda com quem
ele se relaciona e o que ele faz é muito mais do que
prestação de um serviço. E se o operário é digno
do seu salário, quem ministra a palavra de cura, de
bênção, de profecia e de aconselhamento não deve
fazê-lo pelo vil metal. A teologia ocupa o ápice da
noosfera pura, mas os subníveis teóricos lhe
afetam porque há sempre uma troca entre a
abstração e a concreção. Não raro, se veem padres
marxistas e pastores psicanalistas, embora tanto o
marxismo quanto a psicanálise sejam materialistas
no nível da decodificação. A noosfera é esse
âmbito maior em que os níveis superiores afetam e
são afetados pelos inferiores, assim como os
paralelos são afetados pelos outros paralelos. E aí
643
se chega a uma cesta de valores que gira em torno
de caridade ao hipossuficiente, ao diferente, ao
meio ambiente, ao globalismo, ao ecletismo e aos
valores centrais do cristianismo. Mas os ruralistas
usam o dominai a natureza para justificar a
exploração da Amazônia assim como o amor ao
próximo para os ambientalistas engloba todos os
tipos de vida e não só a humana. O cristianismo
pode ser um “dai a César o que é de César” e pode
ser também “quem sabe faz a hora, não espera
acontecer”. Em nome da melhoria das condições de
vida num ambiente pode se ver maniqueisticamente
o mal na figura do patrão, ou ver a oferta do dízimo
como melhor meio de se alcançar a prosperidade,
ou seja, deduzir 10% daquilo que supostamente já
seria pouco. Posturas antitéticas são igualmente
justificáveis. Os déspotas recorriam a Deus para
justificar seu poder e há quem diga que o céu é
anárquico porque Deus também o é. Esta é uma
das formas possíveis de compreender ma
comunhão dos santos. As perspectivas teológicas
engendram as chamadas congregações. Pois uns
644
são adventistas, outros batistas, outros
assembleanos, outros pentecostais, outros
metódicos, outros protestantes, outros ortodoxos,
outros esotéricos, e assim por diante. Entre todas
elas há uma concordância de fundo. Crê-se em
Deus, Triuno para a maioria delas, na imortalidade
da alma e na moral entendida como amor e
respeito ao próximo. Como tudo na vida, mas com
mais ênfase, a teologia não existe para ser sabida,
mas vivida. Mais fácil chega o analfabeto ao céu
que é piedoso do que o doutor em teologia
dogmática que não superou certas fortalezas em
seu coração e que ainda necessita passar por um
profundo sentimento de quebrantamento.
História do pensamento econômico: a ideia de
evolução nas ciências econômicas
Platão é um dos inauguradores do pensamento
econômico ainda que muito embrionariamente. Em
sua República lança a proposta de socialização da
riqueza. Já Aristóteles diz que é honroso ser uma
645
família rica, porém, de acordo com sua doutrina de
epiqueia reprova duramente a avareza. Aristóteles
aprova o modo de produção escravagista que tem
por suposto a supressão da liberdade da maioria
das pessoas. Quem se destaca no pensamento
medieval é Tomás de Aquino. Discípulo der
Aristóteles, o doutor angélico defende o “preço
justo”. O pensamento econômico, no entanto,
começa a florescer com a formação dos Estados
Nacionais. País forte é país rico. Assim, tudo deve
estar focado na balança comercial. Ela deve ser
superavitária sempre. Deve-se exportar muito e
importar pouco. O mercantilismo teve como uma de
suas grandes expressões Jean-Baptiste Colbert,
Ministro das Finanças de Luís XIV que teorizou este
pensamento. Não importava se o povo era pobre,
era o Estado quem tinha que ser rico. Depois do
mercantilismo e, no diapasão dele, quem se
destaca é François Quesnay com a fisiocracia.
Segundo Quesnay, e temos que ter em mente que
os principais comodities da balança comercial da
época eram produtos agrícolas, a agricultura é o
646
único ramo de atividade que produz riqueza.
Porque na agricultura a semente rende por 30, 60 e
100, para fazer alusão aos evangelhos. Há
multiplicação física. Para os fisiocratas a
manufatura e o comércio nada produzem. Porque
na manufatura só há transformação e não
verdadeiramente produção. Adam Smith contesta
os mercantilistas. Smith é reconhecido
universalmente como o fundador da economia
enquanto ciência moderna. Para Smith o Estado
não deve intervir na economia porque o mercado se
autorregula sozinho pela mão invisível que é a lei
da oferta e da procura. Dizia Smith que a riqueza
de uma nação consiste na soma da riqueza de seus
cidadãos em sua individualidade. Como se vê, há
numa leitura mais profunda um liberalismo que é
não só econômico, mas filosófico também. E por
falar em liberalismo filosófico trago à baila meu
companheiro de letras Jeremy Bentham que
defendia a teoria do utilitarismo. Ou seja, o que
determina o valor de troca de uma mercadoria é o
seu valor de uso. Ele defendia a maior felicidade
647
possível para o maior número possível de pessoas.
E o instrumento de efetivação dessa felicidade seria
inclusive o mercado no seu sentido mais amplo.
Jean Baptiste Say ficou famoso na França por
popularizarf a obra de Adam Smith neste país.
Thomas Malthus ficou célebre por defender a ideia
segundo a qual a população cresce
geometricamente e os meios de subsistência da
agricultura aritmeticamente. Os fisiocratas estavam
errados ao dizer que só a agricultura é produtiva,
mas em uma coisa estavam certos: todos nós,
todas as pessoas de todos os ramos da atividade
econômica são alimentados pela agricultura. Da
mesma forma que todos compramos utilidades
oriundas da produção fabril. David Ricardo teve o
mérito de dizer que são três os ingredientes da
atividade econômica: terra (natureza), trabalho e
capital. David Ricardo antevia inclusive,
perfunctoriamente, a teoria da mais-valia que iria
ser exaurientemente desenvolvida por Marx. Karl
Marx mostra que a origem da riqueza está no
tempo de trabalho extra durante o qual o
648
trabalhador oferece ao dono dos meios de
produção porque já produziu a riqueza necessária
para reproduzir a si própria. A força de trabalho,
leia-se, mão de obra, é a única mercadoria que tem
a prerrogativa de reproduzir a si mesma e além de
si mesma. A mão de obra é capital variável. Marx
discerne capital constate e variável e fixo e
circulante. Marx enaltece a economia como a
rainha das ciências porque o motor da história é o
desenvolvimento das forças produtivas e a história
nada mais é do que a história das lutas de classe.
Os neoclássicos, dentre os quais se acham León
Walras e William Santley Jevons, defendem a ideia
de que a tensão não é entre capitalistas e
proletários, mas entre vendedores e consumidores.
Resgatam as teses de Adam Smith e David
Ricardo. Vilfredo Pareto fala da utilidade marginal.
No sentido de que a utilidade de uma mercadoria
está atrelada à sua quantidade. Quanto maior a
quantidade, menos útil. O ótimo de Pareto é a
identidade entre a real demanda de uma utilidade e
a quantidade exata da oferta. É, em síntese,
649
identidade entre oferta e demanda. A Escola
Austríaca que abarca pensadores como Eugen Von
Böhm-Bawerk, Friedrich Von Wieser, Joseph
Schumpeter, Ludwig Von Mises e Friedrich Hayeck
analisam e explicam os ciclos econômicos. Keynes
também se ocupa de ciclos econômicos, mas
acredita no poder de gerá-los e administrá-los.
enquanto que os autores explicam as crises pelos
ciclos econômicos, Keynes leciona como superar a
crise fazendo com que o Estado intervenha em tais
ciclos. De acordo com Keynes o Estado deveria
comprar as empresas estratégicas falidas e pagar o
salário dos trabalhadores que iriam despender seus
salários na aquisição de bens, o que aqueceria a
economia arrefecida pela crise. Os neoliberais são
os autores que criticam Keynes. De acordo com os
neoliberais o Estado é ineficiente, um enorme
cabide de empregos. As empresas estatais seriam
pouco eficientes devendo ser privatizadas. De
acordo com os liberais as empresas estatais
deveriam ser alienadas a preço de banana porque
só dão despesa, além de não dar lucro. É como se
650
o Estado cumprisse uma importante função num
período de crise e, passada a crise, ele poderia ser
descartado, retirando-se da economia. Os
neoliberais ainda diziam que o Estado atrapalharia
a livre-concorrência por subsidiar empresas, o que
elidiria o desenvolvimento privado destas
atividades. Em linhas gerais, pode-se dizer que a
economia muda porque seu objeto de estudo muda.
E que um discurso que é profundamente
conveniente num momento histórico pode não sê-lo
em outro. A economia está diretamente atrelada à
política porque o Estado é sempre o cidadão mais
rico de um país, além de ser sócio de toda pessoa
física e de toda pessoa jurídica através da
tributação além de ditar diretrizes no mercado
financeiro como câmbio, crédito e normas
bancárias. Não concordamos com o materialismo
histórico, mas anuímos que antes de o ser humano
estudar, orar, dançar e amar ele precisa comer,
vestir-se, adquirir bens indispensáveis à vida e à
saúde.
651
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta obra foi escrita pela neto da Dona Irene Seidel
e, ao que parece, não será nem a primeira e nem a
última obra de sucesso oriunda da feliz e sulfurosa
combinação do fosfato judaico-alemão. De tempos
em tempos a mescla proibida agita as estruturas do
mundo da noosfera. Claro que a obra deixa muito a
desejar. Quanto mais pretensiosa a obra, mais
aquém do seu objetivo e mais facilmente alvejável
pelos críticos. Esta obra é extemporânea, para
tomar um vocábulo caro a Nietzsche. Porque
vivemos na Era da Especialização e a filosofia e
todos os conhecimentos científicos propugnam pela
inalcançabilidade da totalidade. Em nossa teoria
oumperiforalógica defendemos o inverso disso.
Pois metanarrativa é essencialmente totalidade.
Enquanto que em nossa obra “Comportamento
como expressão da metanarrativa” teorizamos
sobre a metanarrativa na sua pureza, aqui não
ficamos na metacognição, ou seja, na teoria acerca
da teoria, mas no nível menos abstrato que é o da
652
teoria em si. Este foi o espaço em que colocamos a
nossa visão de mundo. O leitor pode, calcado na
mesma teoria da metanarrativa, escrever outra obra
tencionando cumprir o mesmo objetivo. É como se
na primeira obra fôssemos Marx e Engels
escrevendo A Ideologia Alemã em que explicam o
materialismo histórico e logo fôssemos Eric
Hobsbawn escrevendo A Era dos Extremos
aplicando o método dialético à concatenação de
uma série de atos. Isto significa que eu a um só
tempo desenvolvi um método e provei que ele é
frutífero do que é produto a presente obra. A
metanarrativa, como vimos, é una e polivalente. Os
pontos de vista são reciprocamente externos. Cada
um deles é o primaz quando o expectador se
posiciona a partir dele. Há uma fungibilidade entre
premissas e corolário. A presente obra é mais do
que uma grande maratona intelectual, conquanto
pensar é a ginástica da alma, é o meu mundo, o
meu universo. Quem sabe, os intelectualmente
mais traquejados pensem: que limitação! Sim, mas
a metanarrativa é dinâmica, ela é como a bola de
653
neve. Aqui está um marco. Mas o marco vai sendo
cada vez mais levado adiante. Esta obra é uma
perfeita metanarrativa, pois é uma narração que
tem a capacidade de transcender a si própria. O
conteúdo narrado traz consigo mais informações do
que aquelas evidentes que saltam aos olhos. Entre
as linhas estão as sublinhas e supralinhas. Cada
linha comporta antecedentes e consequentes
invisíveis. O narrador luta contra si mesmo. Pois
tenciona ampliar horizontes quando ele próprio é
fator chave de limitação. É mais ou menos como
fazer alongamento: estendo ao máximo meus
braços, mas não consigo ir além deles mesmos.
Penso que a Enciclopédia das Ciências Filosóficas
e a Fenomenologia do Espírito de Hegel podem ser
tidas maiores que esta obra pelo simples fato de
terem sido escritas num tempo muito remoto. De
sorte que me arrisco dizer que aqui supero Hegel.
Não porque eu seja mais genial do que ele, mas
porque meu contexto me permite fazer isto. Aliás,
nos alinhamos com Hegel ao postular que tudo é
pensamento, tudo é ideia. Metanarrativa nada mais
654
é do que um plexo complexíssimo de ideias. Mas
enquanto que Hegel coloca a metanarrativa a partir
do Eu Absoluto, nós afirmamos que existem
metanarrativas autotópicas e heterotópicas, sem
haver prevalência de uma ou de outra. Não me vejo
como um clássico, embora amanhã a crítica possa
me reconhecer como tal, mas como um leigo bem
informado. Até porque fazer metanarrativa não seja
prerrogativa de grandes teóricos. Espero que este
meu trabalho desperte o escritor que há em cada
um. A mesma estrutura que encontramos no
sumário poderia ser desenvolvida de milhares de
formas diferentes e é isto o que faz a metanarrativa
ser tão bela. O metanarrador não é um gravador.
Ele pode dizer a mesma coisa de muitíssimas
maneiras diferentes. E como não há sinonímia
absoluta dentro do mesmo idioma e nem mesmo e
muito menos entre idiomas diferentes é que
dizemos o mesmo, o mesmo diferente. Lógico e
ilógico ao mesmo tempo. Nada mais belo do que
aquilo que precisa ser feito e refeito ao longo do
tempo. Porque tudo é treino e já viemos ao mundo
655
de certa forma adestrados pelas gerações
anteriores. Precisamos não tanto aprender, mas
reaprender. E reaprendemos o já feito e agregamos
conhecimento. Para usar um versículo dos
evangelhos, o escritor “é como alguém que tira
coisas velhas de um baú”. O velho, não raro, vem à
tona com gosto de novidade, apesar de vetusto.
Uma obra como esta é um convite a cada estudioso
de cada uma das respectivas áreas a se voltar para
as ciências paralelas sem perder o foco de sua
área de concentração. Quisemos mostrar que o
foco de concentração pode ser qualquer um, de
forma que em última instância, o que determina a
perspectiva matriz é o histórico de vida de cada
estudioso. A filosofia é racional e a economia
também. De modo que há quem se dedique a
ambas. Mas não há nenhum princípio de cunho
estritamente racional que em leve a eleger esta ou
aquela mira como a mira das miras. Embora a obra
tenha tido o escopo de abarcar a totalidade, ela se
moveu de um canto a outro de especificidade em
especificidade. Como se para afirmar uma
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