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II SEMIC - Seminário Mídia e Cultura Processos midiáticos e narrativas culturais 11 e 12 de novembro de 2010 Universidade Federal de Goiás – Goiânia - GO 1 Música, cinema e o limite da sanidade: Análise da canção na trilha sonora do filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky 1 Geórgia Cynara Coelho de Souza SANTANA 2 Lisandro Magalhães NOGUEIRA 3 Universidade Federal de Goiás / Universidade Estadual de Goiás, Goiânia, Goiás Resumo O presente artigo propõe a análise da trilha sonora do filme brasileiro Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodanzky, 2001), tendo como foco o uso da canção popular no filme. O trabalho tem por objetivo demonstrar a indissociabilidade entre som/música e imagem no discurso cinematográfico e o valor dramático, afetivo e narrativo da canção no cinema brasileiro, inserindo a obra no atual contexto dos estudos do som em produções audiovisuais nacionais. Fundamentam o estudo pesquisas sobre história e estética da trilha sonora em cinema e a música na comunicação audiovisual. Palavras-chave: cinema brasileiro; trilha sonora; canção popular; Bicho de Sete Cabeças Abstract This article brings an analysis of the Brazilian movie Bicho de Sete Cabeças’ soundtrack (Laís Bodanzky, 2001), by focusing on the use of popular songs in the film. This study has the purpose to demonstrate the sound/image inseparability in the audio-visual and cinematographic discourse and dramatic, affective and narrative values of the songs in nacional movies, by placing the film in the current Brazilian movie sound studies’ context. Researches about movie soundtrack’s history and aesthetics and music in audio-visual communication substantiate this article. Keywords: Brazilian movies; soundtrack; popular song; Bicho de Sete Cabeças 1 Trabalho apresentado no GT2 – Representações sociais do II SEMIC – Seminário Mídia e Cultura, realizado em 11 e 12 de novembro de 2010, em Goiânia – GO. 2 Mestranda em Mídia e Cultura pela Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (Facomb/UFG); docente das disciplinas de Som e Teorias da Comunicação do curso de Comunicação Social – Habilitação:Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG); graduada em Comunicação Social – Habilitação: Jornalismo pela Facomb/UFG, e-mail: [email protected] 3 Orientador do trabalho. Professor do programa de pós-graduação da Facomb/UFG, linha de pesquisa Mídia e Cultura, e- mail: [email protected]

Música, cinema e o limite da sanidade: Análise da canção na trilha sonora do filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky

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Música, cinema e o limite da sanidade:

Análise da canção na trilha sonora do filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky1

Geórgia Cynara Coelho de Souza SANTANA2 Lisandro Magalhães NOGUEIRA3

Universidade Federal de Goiás / Universidade Estadual de Goiás, Goiânia, Goiás Resumo O presente artigo propõe a análise da trilha sonora do filme brasileiro Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodanzky, 2001), tendo como foco o uso da canção popular no filme. O trabalho tem por objetivo demonstrar a indissociabilidade entre som/música e imagem no discurso cinematográfico e o valor dramático, afetivo e narrativo da canção no cinema brasileiro, inserindo a obra no atual contexto dos estudos do som em produções audiovisuais nacionais. Fundamentam o estudo pesquisas sobre história e estética da trilha sonora em cinema e a música na comunicação audiovisual. Palavras-chave: cinema brasileiro; trilha sonora; canção popular; Bicho de Sete Cabeças Abstract This article brings an analysis of the Brazilian movie Bicho de Sete Cabeças’ soundtrack (Laís Bodanzky, 2001), by focusing on the use of popular songs in the film. This study has the purpose to demonstrate the sound/image inseparability in the audio-visual and cinematographic discourse and dramatic, affective and narrative values of the songs in nacional movies, by placing the film in the current Brazilian movie sound studies’ context. Researches about movie soundtrack’s history and aesthetics and music in audio-visual communication substantiate this article. Keywords: Brazilian movies; soundtrack; popular song; Bicho de Sete Cabeças 1 Trabalho apresentado no GT2 – Representações sociais do II SEMIC – Seminário Mídia e Cultura, realizado em 11 e 12 de novembro de 2010, em Goiânia – GO. 2 Mestranda em Mídia e Cultura pela Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (Facomb/UFG); docente das disciplinas de Som e Teorias da Comunicação do curso de Comunicação Social – Habilitação:Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG); graduada em Comunicação Social – Habilitação: Jornalismo pela Facomb/UFG, e-mail: [email protected] 3 Orientador do trabalho. Professor do programa de pós-graduação da Facomb/UFG, linha de pesquisa Mídia e Cultura, e-mail: [email protected]

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1 EM BUSCA DA SANIDADE Bicho de Sete Cabeças é um filme urbano em suas cores e sons. A densidade e a

agressividade das texturas visuais e sonoras da cidade evidenciam uma relação íntima do

protagonista Neto (Rodrigo Santoro) com as ruas por onde corre, os prédios que picha, o beco

onde encontra seus amigos, o quarto onde constrói seu mundo adolescente, lugares em que ele

se refugia e busca sua identidade. Tal intimidade com a crueza do ambiente urbano marginal

constrasta com a distante relação do personagem com a mãe, Meire (Cássia Kiss) – que,

apesar de buscar compreender o filho e amenizar o conflito em casa, mantém-se impotente –,

e com o pai, Wilson (Othon Bastos) – figura conservadora, autoritária e ausente, grande

responsável pela falta de diálogo na famíla e pelos traumas de Neto ao longo da trama.

Ao descobrir que o filho é usuário de drogas, Wilson o interna, à força, num hospital

psiquiátrico. O desespero e a resistência de Neto, que quer resgatar sua liberdade, são

interpretados pelos enfermeiros como comportamento agressivo típico de dependentes

químicos. A equipe do hospital encobre o desinteresse do doutor Cintra (Altair Lima) e os

maus tratos aos internos ante às famílias engordando-os e acalmando-os com remédios, o que

gera ainda mais indignação em Neto e a adoção de procedimentos cada vez mais agressivos

pelos enfermeiros.

A fotografia, a cenografia, a montagem, a interpretação dos atores, a utilização não

realista do som no filme, entre outras escolhas da diretora Laís Bodansky, demonstram, por

meio da linguagem cinematográfica, o processo de enlouquecimento de Neto, separado da

família e de si mesmo por um abismo irreversível.

Na trilha sonora de Bicho de Sete Cabeças, a música original de André Abujamra e as

canções de Arnaldo Antunes e outros artistas mantém uma relação de complementaridade.

Ambas são utilizadas com economia e cautela em benefício da polifonia audiovisual, de modo

a se contrapor aos momentos de “silêncio” (prevalência do som ambiente em detrimento da

fala) e, assim, valorizar, organicamente, sua inserção na trama. Dentro ou fora da diegese,

música instrumental, canção e silêncio respondem tanto pela intensificação do desespero

quanto pela evidência da loucura/apatia desenvolvida gradativamente por Neto, cujo vão

esforço de conhecer a si mesmo e experimentar a adolescência dá lugar a uma delirante e

quase perdida luta – porém repleta de poesia – contra a apatia provocada por um estado

vegetativo forçado.

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2 MÚSICA, SOM E CANÇÃO NO CINEMA

De acordo com Máximo (2003) e Gorbman (1987), a linguagem musical sempre

esteve presente no discurso cinematográfico, antes mesmo do advento do som no cinema –

herança dos dramas musicados (melodramas), óperas e operetas, gêneros musicais de grande

sucesso entre os séculos XVI e XIX. Com o advento do som no cinema, no final da década de

1920, o cinema pode reformular sua linguagem, descobrindo novas possibilidades estéticas,

de acordo com Prendergast (1992). No entanto, havia incompatibilidade entre as câmeras

pesadas, obsoletas e ruidosas da época – que impediam os movimentos de câmera, a agilidade

da cena e a captação de som – e as exigências de cada vez mais ritmo e velocidade da banda

sonora. Acrescente-se que a novidade era temida por alguns artistas e teóricos receosos de que

o som diminuísse a força poética da banda visual e desmontasse o complexo de códigos não-

verbais do cinema, fazendo dele um ‘teatro filmado’, conforme explica Carrasco (2003)4.

2.1 Os musicais: a canção sob holofotes

A febre dos musicais em Hollywood data de meados da década de 1930 e vigorou por

cerca de 20 anos. A pesquisadora em tango-canção Heloísa Valente (2003) atribui o sucesso

desse gênero cinematográfico, entre outros aspectos, à boa receptividade do público às

operetas e outros tipos de dramas musicais que o antecederam5.

A autora, citando o compositor e musicógrafo Michel Chion (1995), destaca a

predominância de protagonistas e vozes masculinos – como os cantores Bing Crosby, Fred

Astaire, Frank Sinatra –, dada a estridência das vozes femininas, devido às deficiências da

tecnologia de fonocaptação de então para a gravação de sons de alta frequência (agudos).

Playback e dublagem passaram a ser adotados para solucionar um outro problema,

desta vez de ordem estética: a falta de segurança ou de afinação dos atores-cantores. Outra

4 Enquanto em 1926 William Fox testava o Movietone – método criado por alemães e suíços em que o som era gravado no próprio filme –, os irmãos Warner a Bell Telephone e a Western Electric já vinham trabalhando no Vitaphone: o som era gravado em disco de 40 cm de diâmetro e sincronizado com o filme por meio da conexão dos motores da vitrola com o do projetor. Esse processo foi usado pela primeira vez no filme Don Juan (1926), de Alan Crosland. Historiadores do som no cinema atribuem a The Jazz Singer (EUA, 1927), também dirigido por Crosland, o título de primeiro filme totalmente cantado do cinema, após o fracasso total ou parcial de experiências anteriores, como em Don Juan. Em 1928, foi exibido o primeiro filme inteiramente falado, Lights of New York, dirigido por Bryan Foy. Um ano depois, a Fox aperfeiçoou o Movietone, possibilitando a gravação sonora na própria película de celuloide. 5 Valente explica que, desde o surgimento do cinema sonoro, os cantores são convidados a encenarem papéis principais ou coadjuvantes. “O mero sucesso de um cantor é suficiente para que protagonize um filme, mesmo se não revela talento dramático” (VALENTE, 2003, p. 119).

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característica interessante dos musicais levantada por Valente é o envolvimento da dança e da

coordenação coletiva dos atores-figurantes-bailarinos e a sincronização de suas performances

com a música. Rio Rita (Luther Reed, 1929), The Vagabond Lover (Marshall Neilan, 1929) e

The Rogue Song (Lionel Barrymore, 1930) figuram entre os primeiros musicais de sucesso;

Cantando na chuva (Stanley Donen, 1952) representa a segunda fase de auge do gênero.

Entre as fases dos musicais de 1930 e 1950, a trilha sonora para cinema era comparada

aos poemas sinfônicos de Richard Strauss, tal a sua grandiloquência e seu caráter épico. O fim

dos anos de 1940 foi marcado pelo uso da música em função do gênero: os filmes noir, os

suspenses e os romances eram ambientados pela música conforme suas peculiaridades

estéticas e narrativas, com o objetivo de gerar determinados efeitos sensoriais no público.

Na década de 1960, a música popular é plenamente incorporada à trilha sonora

cinematográfica, quando a música orquestral recua para funções subjacentes. Trata-se da fase

aurea dos cancionistas no cinema, como Burt Bacharach, Lalo Schifrin e Henry Mancini. As

canções ora substituíam a música sinfônica e a trilha sonora original – movimento que fez

explodir, em 1970, musicais como Jesus Christ Superstar (Norman Jewison, 1973) e Hair

(Milos Forman, 1979) que usavam a música pop e o rock’n’roll para pontuar cenas de ação na

trama – ora, compostas para o filme, eram lançadas como canções-tema “a serem vendidas em

singles, em partituras (hoje muito raramente)” (VALENTE, 2003, p. 119).

Chion (1995) revela que a concepção de uma canção-tema vem desde os anos de 1950,

quando eram lançados compactos de 45 rpm6 – como por exemplo, As Time Goes By, de Max

Steiner, canção-tema do filme Casablanca (Michael Curtiz, 1943). Constata-se, assim, que

desde o início de seu uso, a canção original já é composta para ser comercializada como um

desdobramento da produção cinematográfica7.

Nas décadas seguintes, a música pop foi intensamente explorada, até que filmes como

ET (Steven Spielberg, 1982) e Amadeus (Milos Forman, 1984) devolveram a partitura

orquestral à narrativa cinematográfica. Assim, a partir da década de 1990, a música

orquestrada passou a conviver com a música pop e as canções-tema nos filmes.

2.2 Som, música e canção no cinema brasileiro

6 Rotações por minuto. 7 Uma alternativa comercial à ausência de uma canção-tema, é a retomada da trilha de abertura do filme e sua transformação em canção e disco, como no caso de Laura, composta por David Raskin para o filme Laura (Otto Preminger, 1944). Já filmes mais recentes, como O guarda-costas (Mick Jackson, 1992) – protagonizado por Whitney Houston, intérprete da canção I Will Always Love You (música emblemática da película) – e The Doors (Oliver Stone, 1990) – que narra a vida do grupo homônimo, – aproveita-se de canções de sucesso do passado, em nova versão, conforme analisado por Valente (2003).

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De acordo com a radialista e pesquisadora Marcia Carvalho (2008), o cinema

brasileiro, mesmo em sua fase não falada, sempre foi acompanhado de música popular.

Embasada nos escritos do historiador José Ramos Tinhorão (1972), a autora relata a

participação de músicos e compositores como Ernesto Nazaré, Pixinguinha e Ari Barroso na

execução de peças musicais nas salas escuras de projeção ou nas salas de espera dos cinemas,

aproximando-os dos músicos eruditos: “(…) a própria barreira entre músicos eruditos e

populares desapareceu, permitindo ouvir num cinema o flautista José do Cavaquinho (...), e

no outro o futuro maestro Villa-Lobos manejando um violoncelo” (TINHORÃO, 1972, p.

229).

Na primeira década do século XX, surgiram os filmes cantantes, geralmente de curta

duração, nos quais músicos populares – estratégia para a conquista de público – interpretavam

personagens que dublavam o som da própria voz cantada no momento da exibição, atrás da

tela. Nhô Anastácio chegou de viagem (1908) é considerado a primeira película do gênero8,

marcado pela apresentação de canções ou apropriação de espetáculos teatrais e trechos de

dramas musicais.

Carvalho aponta o filme Paz e amor (1910) como um exemplo de “evolução” estética

na utilização som no cinema brasileiro, com a presença de ruídos e diálogos. Apenas na

década seguinte haveria a seleção ou composição de “temas musicais articulados ao

desenrolar das estórias dos filmes” (CARVALHO, 2008, artigo publicado no nº 0 da Revista

Universitária do Audiovisual-Unicamp) – como em Barro Humano (Adhemar Gonzaga,

1927) e Limite (Mário Peixoto, 1930).

Segundo Viany (1959), o primeiro longa-metragem brasileiro com cenas sonorizadas foi

Enquanto São Paulo dorme (Francisco Madrigano, 1929), e Acabaram-se os otários (Luís de

Barros, 1929), o primeiro filme totalmente sonorizado e sincronizado do cinema nacional. Em

1931, Coisas nossas, dirigido pelo norteamericano Wallace Downey, seria consagrado como

o primeiro sucesso do cinema falado9 brasileiro, principalmente devido à presença de estrelas

do rádio, como Paraguassu, Batista Júnior, Jararaca e Ratinho. Fica evidente, a partir de então,

a influência dos musicais de Hollywood no cinema nacional, como analisa o jornalista e

crítico João Máximo (2003):

8 De acordo com o crítico Alex Viany (1959). 9 Viany relata o grande volume de argumentos contra o cinema falado por parte da imprensa brasileira, para a qual a essência do cinema estava apenas na instância imagética.

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[o gosto pelos musicais] é mantido durante as duas décadas subsequentes pelas chanchadas da Atlântida e a partir de 1960 pelas “comédias montadas em torno da popularidade da Jovem Guarda, dos humoristas de TV e das apresentadoras de programa infantil” (MÁXIMO, 2003, v. 02: 121).

Com a esperança de que o cinema sonoro impulsionaria a indústria cinematográfica

nacional, o produtor mineiro Adhemar Gonzaga funda a Cinédia, responsável pela

implantação do sistema Movietone (gravação do som na película) no país, em 1932. O som

traz novos custos para filmes e exibidores e reforça a dependência tecnológica em relação à

indústria norteamericana, ao mesmo tempo que estimula a produção de comédias, muitas com

temática carnavalesca, compostas por vários números musicais. A imagem icônica de

Carmem Miranda se destaca nesse período, em filmes como A voz do carnaval (Adhemar

Gonzaga e Wallace Downey, 1933) e Alô, alô Brasil (idem, 1935), assim como as figuras de

Lamartine Babo, Noel Rosa, entre outros artistas do rádio. Também nessa época, é composta

a primeira trilha musical original do cinema brasileiro – por Villa-Lobos, para O

descobrimento do Brasil (1937).

A Atlântida, criada em 1941 por Moacyr Fenelon e parceiros, consolidou a relação entre

música, rádio e cinema no Brasil, seguindo a linha da maior parte das produções da Cinédia –

a comédia musical popularesca – que deu origem à chanchada, gênero de grande aceitação

que perdurou até a década de 1950 – quando foi absorvido pela televisão – e foi retomado em

1960, em São Paulo, por Amacio Mazzaropi.

Nos anos de 1950, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, fundada por Franco

Zampari e Assis Chateaubriand, em São Paulo, tentou implantar no país um sistema

efetivamente industrial de produção cinematográfica, por meio da realização de “dramas

universais com produções luxuosas e caras, de forte apelo comercial e conservador, no melhor

estilo hollywoodiano e com forte investimento norte-americano” (CARVALHO, 2008, ibid) –

projetos para os quais a companhia contava com uma equipe técnica estrangeira.

Compositores como Radamés Gnattali, Francisco Mignone, Gabriel Migliori, Guerra Peixe e

Enrico Simonetti eram contratados para criar as trilhas musicais dos filmes da Vera Cruz, que

seguia o método tradicional hollywoodiano do uso dramático dos temas.

Em oposição às produções de estúdio influenciadas por Hollywood surge o Cinema

Novo, caracterizado por produções inspiradas nas vanguardas europeias dos anos de 1960 e

realizadas por críticos e cineastas independentes, como Nelson Pereira dos Santos e Glauber

Rocha. Sobre a música utilizada nesses filmes, Carvalho (2008) frisa a presença constante do

samba de Zé Kéti e de canções de protesto.

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Máximo (2003) aponta a influência francesa no uso de canções em filmes brasileiros

não enquadrados no gênero musical. De acordo com o autor, as canções parecem oscilar entre

um recurso gratuito, sem função em trilha incidental, e um elemento funcional: [a maioria dos

nossos cineastas] não sabem o que querem musicalmente; acham que qualquer coisa serve

desde que consigam colocar música num filme, seja esta ouvida ou não (MÁXIMO, 2003, v.

02: 142).

3 A MÚSICA EM BICHO DE SETE CABEÇAS

3.1 A marca sonora da loucura

De acordo com Caznok (2003), a música, por si só, já aponta a necessidade de

indiferenciação, uma vez que ela é, ao mesmo tempo, melodia (audição), textura (tato) e

movimento (visão). Desse modo, quanto maior a indiferenciação de sentidos ao assistir ao

filme, maior a fruição.

Como dissemos, a inserção da música no filme é marcada pela economia, opção que

valoriza as ocorrências musicais, o silêncio, os diálogos, enfim, a instância sonora como um

todo – o que, para Michel Chion (1993), contribui para o valor agregado pelo

som à imagem. O conceito de valor agregado proposto pelo autor refere-se a um valor

expressivo e informativo com o qual o som imprime significado à imagem, de modo a dar a

impressão de que tal informação já estava contida nela. Sequências de fuga, maus tratos e

algazarra, em Bicho de Sete Cabeças, “tornam-se mais reais” com a presença do som

sincronizado e da música, que, assim como a correria dos personagens na imagem, imprime

ritmo e agilidade às cenas.

A trilha musical original do compositor e músico André Abujamra revela toda a

violência psicológica de que trata o filme, ainda nos créditos iniciais. O correr de Neto pela

cidade, seja depois de uma discussão com o pai, seja tentando fugir da polícia após a pichação

de edifícios, tem sua dimensão ampliada pelo predomínio de frequências graves, pelas batidas

eletrônicas em alta velocidade e pela presença da guitarra distorcida, cuja melodia sombria

remete à relação de Neto com o ambiente urbano, duro e cruel.

As composições de Abujamra oscilam entre o tonalismo e o atonalismo, dada a

combinação ou sequenciação de linhas melódicas simples com texturas sonoras densas e de

origem não convencional. Sons metálicos e intermitentes sugerem atritos ao mesmo tempo

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irregulares e constantes e geram desconforto ao espectador, cuja audição é culturalmente

marcada pela tradição tonal ocidental. Grande pesquisador de sons orientais e world music,

Abujamra tem seu trabalho marcado pela experimentação proporcionada pela tecnologia

digital, de infinitas possibilidades de manipulação, ângulos e superfícies irregulares. Essa é a

marca sonora dos delírios de Neto e de sua relação com o ambiente do hospital psiquiátrico e

as pessoas que ali vivem.

Em algumas sequências em especial essa utilização subjetiva do som e sua integração

com a música original se fazem evidentes: quando Neto é capturado após uma tentativa de

fuga e levado pelos enfermeiros para a sala de choque, a respiração ofegante, o debater-se e o

choro do protagonista constrastam com a frieza dos enfermeiros e do médico – o que é

sublinhado pela ausência de música. No instante do choque, uma nova gama de sons

metálicos e graves da trilha original vêm à tona e acompanham Neto até o final da película,

como uma “cicatriz sonora” deixada por toda a violência a que ele havia sido submetido.

Pequenos fragmentos da composição original – desta vez, em frequências agudas –

passam, então, a substituir as vozes dos personagens que se relacionam com Neto após sua

primeira saída do hospital – o que é percebido pela sincronia entre o movimento das bocas

dos personagens e a ocorrência do som distorcido. Isso ocorre apesar de o som ambiente

prosseguir audível. Fragmentos sonoros dialogam com fragmentos de imagem, os

movimentos de câmera na mão e os jumpcuts10, sobretudo quando da lembrança do pai,

reforçando a ideia de que a experiência do choque e tudo o que a precedeu deixaram marcas

irreparáveis na vida do rapaz. Por meio da audição sinestésica do filme, é possível perceber o

processo de desumanização do personagem, que vai se tornando mais um ser apático a vagar

pelo hospital.

3.2 A canção no filme

As canções de Bicho de Sete Cabeças referem-se aos delírios de Neto, aos lugares

frequentados por ele, às companhias de que desfruta11. Em sua maioria composições de

Arnaldo Antunes, essas peças musicais surgem em momentos estratégicos do filme e

convidam o espectador a uma experiência sinestésica.

10 Tipo de corte que promove a desestabilização e a descontinuidade de uma cena, ao serem excluídos alguns de seus frames. 11 Para ambientar o lugar em que Neto encontra os amigos e caracterizar esse universo adolescente urbano, são utilizadas canções de rap (O Caminho das Pedras – banda Zona Proibida) e punk rock nacional (Satélites – banda Infierno).

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No único momento de leveza entre Neto e Wilson, durante um jogo do Bragantino, a

canção Fora de si, de Arnaldo Antunes, dá o tom do jogo, tanto pontuando a vibração da

torcida e a paixão do brasileiro pelo futebol quanto anunciando, sutilmente, tudo o que

acontecerá com Neto: “Eu fico louco / eu fico fora de si / eu fica assim / eu fica fora de mim”.

Quando Neto viaja com um amigo para Santos, a ambientação da praia ganha novos

contornos com a canção Dinheiro (Arnaldo Antunes e Jorge Benjor), que tem um ritmo

semelhante ao reggae.

Quando Neto está na casa de Leninha, mulher que conhecera num bar, no momento

em que os dois personagens começam a trocar olhares a fotografia de cores quentes se une à

canção O Seu Olhar (Paulo Tatit e Arnaldo Antunes) para revelar a visão subjetiva de Neto,

que volta de ônibus para casa mirando o céu, entrecortada pelas lembranças daquela noite de

amor: “O seu olhar lá fora / O seu olhar no céu / O seu olhar demora / O seu olhar no meu”. A

canção, em mi maior, é marcada por um ritmo de balada e pela presença oitavada de uma voz

masculina (extremamente grave) e outra feminina (extremamente aguda). Esse dueto revela a

distância entre Neto e Leninha, cuja relação, apesar daquele contato, não pode ser duradoura.

Curiosamente, a voz feminina, quase infantil, se remete ao Neto adolescente, enquanto a

masculina se remete à experiência de Leninha, mulher madura que passa a habitar os

pensamentos do rapaz a partir de então.

O tom profético do uso da canção no filme também está na música cantada

interpretada pela voz trêmula de um louco, sem acompanhamento instrumental, dentro da

diegese – Quem vem pra beira do mar, de Dorival Caymmi: “Quem vem pra beira da praia,

meu bem, não volta nunca mais / A onda do mar leva / A onda do mar traz”. A canção

sintetiza a ideia de que a experiência no manicômio faria com que Neto nunca mais “voltasse

para casa” – alusão à apatia e à loucura demonstradas pelo personagem a partir do internato.

Esse sentimento de ausência, presente em cada interno do hospital, tem seu

correspondente, na imagem, nas distorções do quadro, desfoques e movimentos irregulares de

câmera, e, no universo das canções da trilha, em músicas como Carnaval (Arnaldo Antunes),

que se inicia no filme com a cena do médico bebendo despreocupadamente seu whisky e

termina com os loucos, que simultaneamente circulam pelo pátio: “árvore / pode ser chamada

de / pássaro / pode ser chamado de / máquina / pode ser chamada de / carnaval / carnaval /

carnaval”.

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Um dos momentos mais marcantes da canção no filme, no entanto, ocorre quando um

dos internos mais velhos do hospital diz: “A gente até precisa fingir que é louco sendo louco,

fingir que é poeta sendo poeta”. Ele convida Neto a ler as palavras gravadas na parede, que

correspondem à letra da canção O Buraco do Espelho (Edgard Scandurra e Arnaldo Antunes).

A câmera passeia pelas palavras, enquanto a música, “recitada” por Antunes num ritmo

compatível com o movimento da imagem, revela a prisão definitiva de Neto no universo da

loucura e o perigo iminente da morte: “o buraco do espelho está fechado / agora eu tenho que

ficar aqui / com um olho aberto, outro acordado / no lado de lá onde eu caí”. A fala de

Antunes por meio da canção, acompanhada do dedilhado da guitarra e da linha harmônica dos

teclados, revela;se uma extensão da fala do personagem. As imagens distorcidas da parede se

misturam às imagens fixas e em preto e branco da mãe de Neto, em casa, sofrendo com a

ausência do filho.

Depois de voltar para casa carregando suas marcas, o personagem, após perder o

controle em uma festa, é novamente internado, desta vez em outro hospital psiquiátrico, onde

é constantemente desafiado pela agressividade do chefe dos enfermeiros. O som é importante

para externar a sensação de prisão de Neto na solitária, cubículo escuro para onde é levado,

devido a seu “mau comportamento”. Da segunda vez que ele é preso na solitária, ele tenta se

suicidar incendiando o lugar, para o desespero do interno Bil. Quando a porta se abre e Neto,

enfim, consegue respirar, pode-se ouvir, então, a canção que dá nome ao filme – Bicho de

Sete Cabeças (Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Renato Rocha), cantada por Zeca Baleiro –,

que marca o renascimento do personagem, a possibilidade de recomeço, apesar das cicatrizes

e da lembrança negativa do pai: “Não dá pé / Não tem pé, nem cabeça / Não tem ninguém que

mereça / Não tem coração que esqueça / Não tem jeito mesmo / Não tem dó no peito / Não

tem nem talvez ter feito / O que você me fez desapareça / Cresça e desapareça... ”.

A canção embala a saída de Neto do hospício, paralela à cena do pai que, em lágrimas,

lê a carta do filho – a mesma da cena inicial do filme. A sequência descendente de notas do

refrão, repetida e superposta às estrofes da canção, remete ao triste final do personagem e

conclue o ciclo narrativo com o lirismo e a melancolia de uma resignada aceitação do destino.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Utilizando-se outro conceito de Chion (1993), podemos dizer que a trilha musical de

Bicho de Sete Cabeças é fundamentalmente empática: ela participa da cena, imprime ritmo à

imagem, delimita espaços diferentes, é interpretada por personagens, exprime o estágio

psicológico deles. Em relação aos diálogos e ruídos, a economia na inserção da trilha

evidencia todas as ocorrências de som, de modo que a música avança ou recua à medida em

que alguma outra situação sonora torna-se importante.

A música não só fornece pistas narrativas ao espectador – seja por meio das letras das

canções, seja por meio das composições atonais associadas à loucura –, por exemplo – como

conduz a história e promove a continuidade rítmica entre planos e cenas, seguindo os

princípios estéticos propostos por Giorgetti em seu artigo Da Natureza e Possíveis Funções

da Música no Cinema (2008). Todo uso que se faz dela é funcional, totalmente relacionado à

narrativa, evitando excessos e o consequente desgaste do recurso musical.

Destaque para a ampla utilização do som subjetivo – análogo à câmera subjetiva, cuja

ocorrência vai da audição fragmentada da música que toca no fone de ouvido de Neto aos

delírios do personagem, sobretudo após o choque.

A utilização de soundbridge – técnica pela qual o som antecipa a cena seguinte –

também é marcante na obra, sobretudo por meio da música. As canções de Arnaldo Antunes e

composições originais de Abujamra convivem e dialogam entre si e com a imagem, sendo

usadas também como substrato do soundbridge. A fragmentação da montagem vai ao

encontro do concretismo poético de Antunes e do ritmo frenético do ambiente urbano

frequentado por Neto, sublinhado pela trilha musical original.

Especialmente em se tratando da canção-tema – que, por sinal, só é ouvida ao final do

filme –, a música configura-se também como um significante independente de emoções, uma

vez que, independentemente da existência da obra cinematográfica, o espectador-ouvinte

nutre sentimentos e interpretações prévias em relação à canção, ressignificada por Laís

Bodansky para uma finalidade específica.

A estratégia adotada para a música em Bicho de Sete Cabeças converge para o

mercado universo das produções nacionais, em que a trilha sonora, via de regra, promove e é

promovida pelos filmes, por meio da relação com a forte indústria fonográfica do país.

O que se espera com a inovação no uso dos recursos musicais – sobretudo no caso da

canção – trazida pelo filme aqui analisado é que haja estudos mais aprofundados sobre o tema

no Brasil, cuja cultura é riquíssima em termos de música popular. Espera-se também que o

cinema brasileiro faça um uso orgânico dessas canções, aproveitando o potencial narrativo

II SEMIC - Seminário Mídia e Cultura Processos midiáticos e narrativas culturais

11 e 12 de novembro de 2010 Universidade Federal de Goiás – Goiânia - GO

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inerente a elas, e que, desse modo, possa-se falar, com categoria, em funcionalidade da

música popular na produção cinematográfica nacional.

REFERÊNCIAS

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