13
O AUDIOVISUAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: O DOCUMENTÁRIO “ESCOLARIZANDO O MUNDO” Andréa Thees UNIRIO [email protected] Fábio Lennon Marchons UFF [email protected] Resumo: Este artigo relata uma experiência vivenciada na disciplina de Matemática na Educação, no curso de Licenciatura em Pedagogia da UNIRIO, na qual se investigou de que forma o audiovisual pode favorecer a construção de saberes por aqueles sujeitos que se encontram em processo de formação docente. O objetivo era apresentar aos estudantes uma das tendências na Educação Matemática, a Etnomatemática, buscando relacionar os conceitos teóricos do campo (D´AMBROSIO, 2009), com a exibição de um documentário sobre como se desdobra o processo de (re)construção cultural em uma dada sociedade, pela via da educação. Concluímos que a atividade teve uma repercussão positiva, favorecendo não apenas a compreensão do tema proposto, mas também desenvolvendo, no futuro professor, uma real conscientização do caráter social, favorecendo sua consciência crítica e repensando sua futura atuação na sociedade. Palavras-chave: Educação e mídia; Formação de professores; Etnomatemática; Educação matemática. 1. Introdução If you wanted to change a culture in a single generation, how would you do it? You would change the way it educates its children. CAROL BLACK, diretora do documentário. A motivação para a escrita deste artigo nasceu da intenção de compartilharmos uma experiência com audiovisual, ocorrida na formação inicial de professores, e que foi incorporada à fase exploratória da pesquisa de doutorado intitulada “Produção e consumo do audiovisual nas práticas profissionais de professores de matemática”, que está sendo desenvolvida pela autora principal junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO. Como forma de introduzir as discussões acerca de algumas das ideias relativas ao Programa Etnomatemática, consideramos pertinente exibir o documentário “Schooling the world” 1 1 Título original do documentário.

O AUDIOVISUAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: O DOCUMENTÁRIO \" ESCOLARIZANDO O MUNDO \"

  • Upload
    unirio

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

O AUDIOVISUAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: O

DOCUMENTÁRIO “ESCOLARIZANDO O MUNDO”

Andréa Thees

UNIRIO

[email protected]

Fábio Lennon Marchons

UFF

[email protected]

Resumo:

Este artigo relata uma experiência vivenciada na disciplina de Matemática na Educação,

no curso de Licenciatura em Pedagogia da UNIRIO, na qual se investigou de que forma

o audiovisual pode favorecer a construção de saberes por aqueles sujeitos que se

encontram em processo de formação docente. O objetivo era apresentar aos estudantes

uma das tendências na Educação Matemática, a Etnomatemática, buscando relacionar os

conceitos teóricos do campo (D´AMBROSIO, 2009), com a exibição de um

documentário sobre como se desdobra o processo de (re)construção cultural em uma

dada sociedade, pela via da educação. Concluímos que a atividade teve uma repercussão

positiva, favorecendo não apenas a compreensão do tema proposto, mas também

desenvolvendo, no futuro professor, uma real conscientização do caráter social,

favorecendo sua consciência crítica e repensando sua futura atuação na sociedade.

Palavras-chave: Educação e mídia; Formação de professores; Etnomatemática;

Educação matemática.

1. Introdução

If you wanted to change a culture in a single generation, how would you do it?

You would change the way it educates its children.

CAROL BLACK, diretora do documentário.

A motivação para a escrita deste artigo nasceu da intenção de compartilharmos

uma experiência com audiovisual, ocorrida na formação inicial de professores, e que foi

incorporada à fase exploratória da pesquisa de doutorado intitulada “Produção e

consumo do audiovisual nas práticas profissionais de professores de matemática”, que

está sendo desenvolvida pela autora principal junto ao Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Como

forma de introduzir as discussões acerca de algumas das ideias relativas ao Programa

Etnomatemática, consideramos pertinente exibir o documentário “Schooling the world”1

1 Título original do documentário.

para uma turma da disciplina Matemática na Educação I, do curso de Licenciatura em

Pedagogia da UNIRIO, seguido de um debate.

Para embasar teoricamente as discussões e com o intuito de apresentar a

temática aos graduandos de maneira reflexiva, foi indicada a leitura do Capítulo IV –

Etnomatemática na civilização em mudança, do livro “Etnomatemática: elo entre as

tradições e a modernidade”, de Ubiratan D´Ambrosio (2009). A justificativa para a

escolha deste capítulo deveu-se ao fato de, neste trecho específico, o autor dissertar

sobre temas relevantes para o debate pretendido como o caráter holístico da educação, a

universalização da matemática e o encontro de culturas, que poderiam dar mais

significado à atividade proposta. O planejamento desta atividade levou em consideração

a possibilidade de articular o conteúdo e os depoimentos do documentário com a

perspectiva e as ideias da Etnomatemática apresentadas neste capítulo do livro.

Desta forma, o debate após a exibição do documentário foi mediado pela autora,

com a participação de outros dois docentes da mesma instituição e um convidado

externo, professor da rede pública e doutorando da Universidade Federal Fluminense,

que é co-autor deste artigo. O desenvolvimento da atividade completa será descrito

detalhadamente mais adiante, assim como a dinâmica proposta e os resultados

observados. Por hora, apresentaremos alguns aportes teóricos que originaram os

questionamentos e embasaram as reflexões neste artigo.

2. Síntese do documentário

O documentário Escolarizando o Mundo2– O Último Fardo do Homem Branco,

com sessenta e quatro minutos de duração, é uma coprodução americana e indiana,

dirigida por Carol Black, que trata a questão da colonização cultural pela via da

educação escolar/institucional.

O filme realiza uma crítica ao processo de homogeneização cultural que, em

muitos casos, conduz homens e mulheres à pobreza extrema. Desprezam-se as

diferentes linguagens culturalmente constituídas em prol do ensino da língua inglesa

como modelo hegemônico. Os valores e as práticas locais específicas são abandonados,

esquecidos ou minimizados, enfatizando-se uma educação descontextualizada histórica

e geograficamente.

2 Tradução nossa. Disponível em: <http://schoolingtheworld.org>. Acesso em: 20 de junho de 2014.

Tanto a negação da possibilidade de sobrevivência e sustento pelo trabalho

dentro da própria comunidade, quanto o não fornecimento de meios eficazes de se

inserirem e participarem no sistema socioeconômico dominante, a saber, o sistema

econômico global imposto pelo capitalismo avançado, americanizado e com

predominância da língua inglesa, acarreta uma existência esvaziada em relação aos

valores ancestrais e desconectada da diversidade do mundo. Para exemplificar a

problemática descrita, pode-se observar o seguinte depoimento, exibido aos trinta e três

minutos:

Eu venho da região central do Himalaia, que é chamada Garhwal. As

mulheres de Garhawal trabalhavam arduamente para terem certeza de que

seus filhos tivessem uma escolarização. Mas uma escolarização institucional

do tipo que não ensina nada sobre a sua ecologia local, a sua cultura local, a

sua economia local, ou a sua habilidade de ser produtivo. Ela te ensina

basicamente a ser um semialfabetizado para outro sistema, ao qual você não

tem acesso, porque você não pertence a classe certa, ao privilégio certo, etc.

Elas são pessoas excluídas, e elas estão caindo pelas rachaduras de um

mundo excludente.3

Este documentário, mais que denunciar uma forma de dominação social pela

superposição cultural a partir de um determinado modelo de educação escolar, faz-nos

refletir sobre os limites e possibilidades de uma educação igualitária e democrática.

Elementos do roteiro nos remetem a pensar nas formas de agressão à dignidade e à

identidade cultural daqueles subordinados a essa estrutura, conforme nos alerta

D´Ambrosio:

Chegamos a uma estrutura de sociedade, a conceitos perversos de cultura, de

nação e de soberania, que impõe a conveniência e mesmo a necessidade de

ensinar a língua, a matemática, a medicina, as leis do dominador aos

dominados, sejam esses índios ou brancos, pobres ou ricos, crianças ou

adultos (...). Uma responsabilidade maior dos teóricos da educação é alertar

para os danos irreversíveis que se podem causar a uma cultura, a um povo e a

um indivíduo se o processo for conduzido levianamente, muitas vezes até

com boa intenção, e fazer propostas para minimizar esses danos.

(D’AMBROSIO, 2009, p.80)

Além disso, o filme possibilita refletir criticamente sobre o papel da formação

humana em sua relação com o trabalho, principalmente na perspectiva ocidental que

adota o sistema econômico capitalista. A educação institucional cria o aparente

paradoxo da formação escolar que desqualifica o homem para o trabalho assalariado

dentro de um modelo de sociedade. Por outro lado, a não formação escolar pode vir a

assegurar, pelo relativo isolamento cultural, a sobrevivência do homem não

escolarizado, mesmo que este se encontre em condição subalterna em relação a uma

3 Transcrição nossa.

classe que detém os meios de produção. No entanto, a escolarização se apresenta como

alternativa de superação dos condicionantes socioeconômicos impostos pelo sistema

hegemônico capitalista global.

3. Algumas articulações teóricas

Uma das heranças da modernidade é a crença irrestrita no poder da ciência como

possibilidade de melhoria da vida do homem na Terra, ou seja, uma crença que a

ciência, e em particular a matemática como linguagem própria do campo científico e

tecnológico, teria o poder de controlar a natureza e conduzir toda a humanidade a um

avanço nunca antes alcançado. O homem moderno assumiu que uma transformação

global só poderia realizar-se a partir da escolarização formal, oficial e institucional

baseada em uma educação homogênea e democrática, diga-se igualitária, universal, a

partir de certos parâmetros culturais e educacionais voltados para o progresso da ciência

e da tecnologia. Herda-se da modernidade uma consciência epistemológica que recusa

qualquer reflexão sobre as condições sociais da produção e reprodução do

conhecimento científico. Sustenta-se a ideia de que o campo científico é uma prática em

si mesma, neutra, isenta de valores morais ou interferências sociais. Despreza-se, neste

quadro, a experiência social como potencializadora para produção e reprodução de

conhecimentos válidos em diferentes contextos socioculturais e, consequentemente,

descarta-se a ideia da existência de diferentes epistemologias.

Boaventura de Souza Santos, ao tratar do discurso científico, percorrendo alguns

caminhos que vão da modernidade à pós-modernidade, e buscando contestar o modelo

racional que se pautava em um tipo de conhecimento único e distante do campo social,

afirma que:

As deias que presidem à observação e à experimentação são as ideias claras e

simples a partir das quais se pode ascender a um conhecimento mais

profundo e rigoroso da natureza. Essas ideias são as ideias matemáticas. A

matemática fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de

análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de

representação da própria estrutura da matéria [...]. Deste lugar central da

matemática na ciência moderna derivam duas consequências principais. Em

primeiro lugar, conhecer significa quantificar [...], em segundo lugar, o

método científico assenta na redução da complexidade. (SANTOS, 2010,

p.26-28)

No entanto, esta ciência da modernidade que se pretendia neutra e supostamente

isenta de valores morais e sociais contribuiu para a construção de armas, algumas de

destruição em massa, e que efetivamente tem exterminado multidões de pessoas no

decorrer do século XX e início do XXI.

Em fins do século XIX já se pronunciava no campo filosófico uma posição de

crítica ao modelo positivista de constituição das ciências, como, por exemplo, em

Nietzsche (2012). Mas foi principalmente após a Segunda Grande Guerra que se passa a

questionar e criticar no campo intelectual de produção dos saberes científicos os

(supostos) benefícios desta educação e desta ciência.

Por outro lado, a mesma ciência tem contribuído para melhorias no campo da

medicina e no tratamento de diversas doenças, promovendo um potencial aumento da

expectativa de vida dos seres humanos e, portanto, uma educação voltada para

permanência destes saberes parece ser extremamente coerente. Não se pode, portanto,

adotar uma posição radicalmente contrária ao avanço da ciência e da tecnologia a partir

das críticas ao modelo positivista de ciência herdado da modernidade.

Uma crítica que se pode fazer sobre este modelo epistemológico (uma teoria do

conhecimento hegemônico ocidental que se afasta das crenças, percepções,

subjetividades, mitos, lendas e práticas específicas) é a competência atribuída a um

grupo restrito de pessoas para o estabelecimento dos parâmetros culturais e

educacionais que devem ser assumidos como únicos e universais para todas as pessoas

de um dado espaço-tempo. Quem decide sobre o que é certo ou não, relevante ou não,

pertinente ou não para a escolarização de todos? Cabe ao intelectual da academia

decidir tais parâmetros? Assumindo-se que estes intelectuais seguem as práticas sociais

do grupo ao qual pertencem e, portanto, são afetados pelos valores morais e éticos

destes grupos locais, estariam em posição de decidir os rumos de toda uma população?

Bourdieu (2004), por exemplo, ao tratar da produção do campo científico, põe

em destaque o papel dos intelectuais que, conscientemente ou não, são influenciados

pelo contexto socioeconômico em que se dá a produção intelectual. Ele afirma que:

O mundo da ciência, como o mundo econômico, conhece relações de força,

fenômenos de concentração do capital e do poder ou mesmo de monopólio,

relações sociais de dominação que implicam uma apropriação dos meios de

produção e de reprodução, conhece também lutas que, em parte, tem por

móvel o controle dos meios de produção e reprodução específicos, próprios

do universo considerado. (BOURDIEU, 2004, p.34)

O debate que gira em torno da democratização da educação e que busca

fortalecer uma educação multicultural, plural e de superação do modelo hegemônico

ocidental-capitalista, por exemplo, não pode se afastar das questões que atravessam o

campo científico da produção e reprodução simbólica de ideias e conceitos. Existe uma

disputa pelo poder material e imaterial que decorre da produção simbólica os saberes.

Parece-nos importante, portanto, assumir uma postura de crítica e suspeita diante dos

dogmatismos científicos e das verdades supostamente inabaláveis do campo de

produção e reprodução do conhecimento. As complexas relações econômicas, sociais e

políticas que se acham amalgamadas no processo educacional (local e global) podem

contribuir para a construção (desconstrução) de certos saberes locais. Não se pode

supor, por exemplo, a ausência de forças externas e internas na orientação e

direcionamento dados à construção destes saberes específicos.

A partir desta breve apresentação, uma problemática se apresenta no cenário

educacional contemporâneo ao tratar das possibilidades e limites de uma educação

multicultural global. Assumindo-se que identidades plurais são possíveis e que histórias

não oficiais (ocultas, silenciadas, subjugadas) se apresentam como novos horizontes

para formação humana, permitindo relativizar certezas enraizadas e herdadas da

modernidade ocidental, algumas perguntas podem ser propostas:

Como abordar a temática da democratização da educação afastando-se do risco

de um autoritarismo epistemológico? Como pensar uma formação escolar multicultural

que seja acessível a todos de modo igualitário? Como conciliar os saberes da cultura

ocidental acumulados historicamente pelo homem e os saberes locais e específicos dos

distintos grupos culturais (em espaços-tempos distintos) no processo de escolarização

formal? Como equilibrar e amalgamar os saberes ensinados nas universidades do

ocidente (e aceitos como modelos no campo científico), com os saberes de grupos

culturais distintos? Neste cenário, qual o significado de democratização

(global/universal) da educação? Quais as possíveis consequências para a classe

trabalhadora, a partir das complexas relações entre educação e trabalho, especificamente

no ocidente e dentro do sistema capitalista, de uma educação eminentemente local,

específica e culturalmente localizada? É possível trabalhar a construção do

conhecimento matemático em nível superior, na formação de professores que atuam em

comunidades específicas, de modo a ultrapassar os limites do sistema axiomático

dedutivo a partir das matemáticas locais e plurais?

Estas foram algumas questões que embasaram o debate após a exibição do

documentário, questões “para fazer pensar” sobre a problemática que se apresenta que,

todavia, não representam tópicos a serem desenvolvidos criteriosamente neste artigo. O

objetivo aqui é tratar o consumo do audiovisual em contextos de formação de

professores com foco no desenvolvimento profissional (PONTE, 2013) dos graduandos

de Pedagogia, apoiando-nos nas ideias fundamentais que têm emergido desta prática.

4. Desenvolvimento profissional na formação docente

A formação inicial de professores para a educação infantil e para os anos iniciais

da Educação Básica, oficialmente conhecida como Licenciatura em Pedagogia, constitui

uma base fundamental para o futuro desempenho desta atividade profissional. Esta

formação deve contemplar experiências que proporcionem o desenvolvimento do

conhecimento necessário para essa tarefa, pois, como Kohan e Larrosa (2002),

acreditamos que é a experiência, e não a verdade, o que dá sentido à Educação.

“Educamos para transformar o que sabemos, não para transmitir o sabido” (ibidem, p.5).

A Educação, em um sentido abrangente do termo, independe da modalidade, do

nível ou do segmento a que se destina. Sejam crianças, jovens ou adultos, sejam outros

quaisquer, a Educação é, afinal, sempre uma intervenção na vida de alguém. “Trata-se

de uma intervenção motivada pela ideia de que tornará essa vida, de certo modo,

melhor, mais completa, mais harmoniosa, mais perfeita – e talvez até mais humana”

(BIESTA, 2013, p. 25). Admitindo-se que a Educação é mais do que a simples inserção

do indivíduo numa ordem pré-existente, seria interessante e coerente estarmos sempre

nos questionando de que forma podemos colocar isto em prática na formação de

professores.

Atualmente, o conceito de desenvolvimento profissional tem se destacado em

relação ao conceito de formação docente (NÓVOA, 2008; PONTE, 2013), de forma que

o centro de atenção do conteúdo e do conhecimento a ser apropriado seja deslocado para

os processos de desenvolvimento pessoal. Nestes termos, percebem-se as necessidades e

potencialidades que importam a cada um descobrir, valorizar e promover, sendo que é o

sujeito em questão o principal protagonista do seu processo de crescimento.

Assim, a formação pode ser considerada como um movimento de fora para

dentro, do curso e do formador para o formando, enquanto que o desenvolvimento

profissional compreende um movimento de dentro para fora, do professor ou futuro

professor em formação para o ambiente onde está inserido. No caso do desenvolvimento

profissional, o foco está voltado para as realizações do professor e ao que ele se revela

capaz de fazer. Além disso, a formação é vista de modo compartimentado, disseminada

por assuntos ou por disciplinas, enquanto o desenvolvimento implica perceber o

formando considerando seus aspetos cognitivos, afetivos e relacionais, o que contribui

para o desenvolvimento da sua identidade profissional como um todo.

Para Ponte (2013, p. 4), não é apropriado opor formação docente e

desenvolvimento profissional, mas sim compatibilizar ambos os processos. Neste

sentido, podemos encarar a formação docente de modo a favorecer este

desenvolvimento, sem se subordinar a uma lógica de transmissão de conhecimento.

Contudo, em que condições isso poderia ser concretizado? De que maneira a formação

docente pode estar relacionada ao desenvolvimento profissional?

4.1 A vez do audiovisual na formação docente

Na sociedade da comunicação, da informação e da aprendizagem coletiva, o

conhecimento não é estático, pronto e acabado, mas um processo reflexivo, permanente

e, ao mesmo tempo dinâmico. Como parte constituinte deste processo, estão as formas

de socialização e transmissão de informações que se utilizam das diversas tecnologias

disponíveis. As mídias audiovisuais se encontram no cerne deste debate por fazerem

parte das relações do sujeito com a cultura, sendo uma das linguagens mais

frequentemente utilizadas na interação social.

A apropriação desta audiovisualização pela sociedade como prática social e

cultural, que já faz parte do senso comum, também tem sido adotada nas relações de

ensinoaprendizagem, levando em conta o caráter reprodutor que o espaço escolar revela

ao incorporar as práticas sociais em suas práticas educativas. Isto acaba exigindo que as

instituições educacionais e os sistemas de ensino adotem propostas e atividades algumas

vezes desconsiderando que o conhecimento deve ser construído, refletido, questionado,

apropriado e reconstruído sempre.

Os meios de comunicação audiovisuais se incorporam cada dia mais ao

cotidiano das várias camadas sociais da população, indistintamente. Os diversos

conteúdos, conceitos e definições utilizados são tão absorvidos que ocupam horas e

viram temas de conversas diárias. Os profissionais da educação também sentem o

impacto desta cultura, tanto quanto seus alunos. Enquanto parte dos professores prefere

não se envolver com esta perspectiva de construção de conhecimento mediada pelo

audiovisual, outros têm se dedicado a utilizar linguagens alternativas, a buscar

diferentes caminhos de diálogo e novas opções pedagógicas na abordagem de

conteúdos.

Da maneira análoga, limitando-se esta temática – Educação e Mídia, ao contexto

das tendências em Educação Matemática, surgem iniciativas de professores de

matemática na busca por inovação dentro e fora da sala de aula. São práticas educativas

que englobam a produção e o consumo do audiovisual e se apresentam como

alternativas interessantes por sua capacidade de ressignificar crenças e concepções pré-

existentes a respeito da matemática.

Assim como acontece em outras disciplinas, parece natural que a interação entre

o audiovisual e a Educação Matemática também esteja presente nas práticas

profissionais dos professores de matemática. A partir desta constatação, levantam-se

algumas questões em torno da problemática da produção e consumo do audiovisual,

posto que “a linguagem audiovisual desenvolve múltiplas atitudes perceptivas: solicita

constantemente a imaginação e reinveste a afetividade com um papel de mediação

primordial no mundo” (MORAN, 1995).

4.2 Pensando uma proposta que valoriza o saber

Uma das práticas letivas que mais influenciam a dinâmica das aulas é a maneira

como o professor realiza a gestão curricular, as escolhas que faz quando seleciona o

conteúdo e elabora o plano de aula. Do ponto de vista do desenvolvimento profissional,

esta tarefa torna-se mais complexa, pois compreende pensar o que se pretende “ensinar”

e o que se espera “vir a saber”, dentro de uma perspectiva bem mais ampla do que

apenas apresentar um determinado conteúdo.

Bernard Charlot (2000, p. 60-65) nos lembra de que, no campo da educação,

podemos colocar em escala de valor-de-aprender três categorias: a informação, o

conhecimento e o saber. Estas categorias são nossas conhecidas, mas não exatamente o

processo de sua aquisição e a relação que se estabelece entre elas. A informação é a

categoria mais sumária, menos complexa e dialógica, a mais conhecida nos meios de

comunicação de massa, a mais instrumental. A informação é acumulativa, podendo-se

prever o nível de instrução e a capacidade prática de alguém para lidar com algo. O

conhecimento é o resultado de uma experiência pessoal, de uma informação da qual o

sujeito se apropria. Conhecer implica refletir, incorporar ideias e pensamentos,

possibilita a interpretação, o desacordo, o diálogo, através do qual o que se aprende não

é exatamente o que foi lido ou ensinado. O saber é produzido pelo sujeito confrontado

com outros sujeitos. Em outras palavras, “a ideia de saber implica a de sujeito, de

atividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo (...), de relação desse sujeito

com outros, que se co-constroem, controlam, validam, partilham esse saber”.

(CHARLOT, 2000, p. 61).

Assim, procurou-se elaborar e planejar atividades que pudessem efetivar os

processos de aquisição da informação, do conhecimento e do saber, cientes que

poderiam ser constituídas diversas relações durante estes processos: com nosso próprio

eu pessoal (as relações subjetivas dos estudantes com sua própria construção pessoal);

com os “outros” não presentes (os autores), cujas mensagens nos desafiam, sejam por

palavras escritas ou por ações gravadas em audiovisual; com os “outros” presentes, que

estabelecem situações de diálogo “ao vivo e a cores”.

4.3 As articulações entre a Etnomatemática e a Escolarização do Mundo

O primeiro momento delineado para as atividades ocorreu conforme o planejado,

com a exibição do documentário “Escolarizando o Mundo”. Nesta etapa, destacaram-se

os processos de aquisição de informações e conhecimentos através das relações com o

próprio eu pessoal e com os outros não presentes (a equipe de criação do

documentário). Após este momento, durante a realização do debate, um saber

convergente, construído objetivamente por todos os presentes, começou a ser

compartilhado entre os participantes, não sendo exclusivo de uma única pessoa, como

acontece com o conhecimento. Esta imagem do saber que ultrapassa a dimensão

individual, como algo que flui entre e através de nós, sem pertencer a ninguém e ao

mesmo tempo pertencendo ao coletivo, é a imagem do saber que Charlot nos faz refletir.

Assim, pode-se dizer que o saber construído coletivamente, levou a maioria a

compartilhar certa decepção pela escolha da carreira docente, pois, analisando pelo

prisma do documentário, a escolarização é vista como uma forma perversa de

homogeneização das culturas e exclusão da diversidade. As opiniões de cada aluno,

apesar de variadas, não divergiram em relação à valorização do “sucesso individual” a

despeito do “fracasso social” conduzido pela educação institucional.

Dando continuidade ao planejamento, a etapa seguinte seria a leitura do Capítulo

IV para posterior discussão em aula e, para isto, os alunos tiveram o prazo de uma

semana. Novamente, informação e conhecimento foram adquiridos nas relações com o

próprio eu pessoal e com o outro não presente (o autor do livro, Ubiratan D´Ambrosio).

Contudo, a integração de informações e conhecimentos, originados na leitura indicada,

carece do diálogo que a sala de aula deve estar sempre criando e recriando, para

convergir em saberes. Durante a aula, através de uma postura participativa, cada

educando apresentou suas reflexões e análises acerca do que tinha entendido sobre

Etnomatemática, e todos compartilharam dos processos interativos de trocas na

construção do saber. Nesta ocasião, perceberam-se nas falas dos alunos aproximações

consistentes entre as revelações do documentário e a perspectiva Etnomatemática

presente na leitura do capítulo.

Como atividade de fechamento, foi solicitado que cada estudante escolhesse uma

parte do documentário e um trecho do livro de Ubiratan D´Ambrosio sobre

Etnomatemática, para produção individual de um texto, buscando articular criticamente

as duas perspectivas apresentadas. Notou-se, pelo nível dos textos elaborados, que as

interações e trocas de conhecimentos realizados durante os momentos de debate e

diálogo, foram fundamentais na criação e construção do saber coletivo. Para ilustrar este

relato foram selecionados trechos de dois trabalhos que, a nosso ver, são representativos

da atividade proposta:

Impossível especificar uma só fala do documentário, pois podemos relacioná-

lo inteiro com o livro de D´Ambrosio. Algumas dessas falas são bem

marcantes como as jovens relatando que não conhecem a sua cultura original,

que quando vão para as escolas tendem a esquecer a sua cultura ou, ainda,

que são punidas ao usarem outro idioma diferente do inglês. Nesses trechos

do documentário ficam evidentes os danos à cultura e aos indivíduos.

Segundo D´Ambrosio (2009, p. 70), a Etnomatemática não significa apenas

“estudo de matemática das diversas etnias”, e sim, que existem várias formas

de entender e de explicar e de conviver com as diferentes realidades

socioeconômicas dos variados povos. Sendo assim, não há um saber

soberano. O autor critica essa falsa soberania cultural e denuncia a agressão

que os povos vêm sofrendo ao longo da história, sendo catequizados e

doutrinados, perdendo suas raízes culturais, suas crenças, sua arte, sua

medicina e sua origem. É também um alerta aos educadores, pois a mudança

pela qual a humanidade está passando, afetará não somente o

comportamento, mas também as ações e valores e, sobretudo a Educação.

D’Ambrosio entende que o estudo da matemática não está dissociado da

formação integral do ser humano. Ele defende a ética como norteadora dessa

formação e é nesse sentido que o educador possui um papel importante. 4

Selecionei o fragmento exibido próximo aos trinta e nove minutos do

documentário, no qual Doris Lessing compartilha seu pensamento dizendo

que “você está no processo de ser doutrinado. Nós ainda não desenvolvemos

um sistema de educação que não seja um sistema de doutrinação”, para

relacionar com o Capítulo IV livro de Ubiratan D´Ambrosio. D´Ambrosio

(2009, p. 79-81) nos revela que o encontro de culturas está presente nas

relações humanas e que chegamos a uma estrutura de sociedade perversa, de

nação e soberania onde se impõe a necessidade de ensinar a língua, a

matemática, a medicina, as leis do dominador. Isto nos leva a questionarmos

que tipo de educação nós estamos desenvolvendo em nossa sociedade. Será

que não estamos sendo levados a um ensino de dominação? Para que

precisamos estudar em uma universidade? Será que esta não está servindo ao

modelo de educação dos dominadores? São questões que devemos discutir

em nossa sociedade para não sermos levados por uma onda de interesses das

corporações mundiais. Entretanto, não devemos ser ingênuos a ponto de

acharmos que sem a educação teremos pessoas com práticas reflexivas, com

capacidade crítica. Como diz D´Ambrosio (2009, p.81), “a intervenção do

educador tem como objetivo maior aprimorar práticas e reflexões, e

instrumentos de crítica”. Porém nada poderá ser por imposição, mas pela

4 Retirado do texto da aluna Christiane Angélica da Silva Louvera, cursista do 6º período da Licenciatura

em Pedagogia, da UNIRIO. A aluna autorizou a utilização de parte do trabalho final neste artigo.

escolha de cada grupo social. Porém, se não houver conhecimento de outras

opções, como poderá haver escolha?

O conhecimento não se pode ser restrito a apenas um grupo, pois “o acesso a

um maior número de instrumentos materiais e intelectuais dão, quando

devidamente contextualizados, maior capacidade de enfrentar situações e

resolver problemas novos” (D´Ambrosio, 2009, p. 81). Chamou-me a atenção

a capacidade crítica dos entrevistados, porém os mesmos não seriam capazes

e nem teriam esta competência se não passassem por um processo de

educação. Refletir sobre a educação e analisá-la dentro do contexto social é o

desafio de cada educador para que este não seja, também, um instrumento de

dominação dos interesses das classes dominadoras. 5

Em resumo, as informações se acumulam como um banco de dados na mente, os

conhecimentos interagem transformando quem não apenas sabe, mas pensa crítica e

criativamente a partir do que passou a conhecer. O saber é um passo além. E é na

construção coletiva deste saber que vislumbramos ser possível o desenvolvimento

profissional do futuro professor.

5. Considerações Finais

Durante o período em que a disciplina Matemática na Educação I foi lecionada,

outros assuntos referentes à ementa também foram abordados de maneira dialógica,

porém sem tanta ênfase na construção coletiva do saber, como teve a temática a qual se

refere este artigo. Para encerrar as aulas e a título de avaliação, os alunos escolheram

livremente um entre os dez temas trabalhados e elaboraram uma síntese. Dos vinte e três

alunos que frequentaram as aulas da disciplina, vinte escolheram escrever sobre

Etnomatemática, o que representou 87% da turma, o que pode ser uma indicação da

força do audiovisual na formação de professores, quando escolhido criticamente e

utilizado de maneira significativa.

A partir de uma intervenção orientada e intencionalmente planejada, aconteceu

um profícuo debate discente em torno de aspectos socioculturais relativos a uma

educação multicultural. Uma possibilidade para que isto ocorra com mais frequência é,

a partir de uma perspectiva etnomatemática, assumir uma construção coletiva do

conhecimento e que esta seja culturalmente compartilhada pelo grupo discente.

Acreditamos que, dentro do contexto do debate estabelecido neste texto, torna-se

relevante assumir uma postura docente de humildade epistemológica e, neste sentido,

proporcionar aos futuros professores a consciência da necessidade de revisão crítica de

5 Retirado do texto do aluno Vane Tavares do Nascimento, cursista do 6º período de Licenciatura em

Pedagogia, da UNIRIO. O aluno autorizou a utilização de parte do trabalho final neste artigo.

suas crenças, práticas e discursos. E para finalizar, ponderamos que o desenvolvimento

profissional do futuro professor pode ser construído a partir de uma prática docente que

considere os objetivos perseguidos em tal formação, na qual se assume que o saber não

pode ser transmitido de uma pessoa para outra, o saber se constrói na coletividade.

6. Referências

BIESTA, G. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro

humano. Tradução: Rosaura Eichenberg. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo

científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre:

Artmed, 2000.

D’AMBROSIO, U. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. 3 ed. Belo

Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

KOHAN, W. e LARROSA, J. Apresentação da Coleção. In: RANCIÈRE, J. O Mestre

Ignorante – cinco lições sobre emancipação intelectual. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica

Editora, 2013.

MORAN, J. M. O vídeo na sala de aula. Comunicação & Educação. São Paulo, v. 1, n.

2, p. 27-35, jan/abr, 1995. Disponível em: <http://www2.eca.usp.br/moran/wp-

content/uploads/2014/03/vidsal.pdf>. Acesso em: 07 set 2014.

NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das letras, 2012.

NÓVOA, A. O regresso dos professores. In: PORTUGAL, Ministério da Educação.

Desenvolvimento profissional de professores para a qualidade e para a equidade da

aprendizagem ao longo da vida. Lisboa. p. 21-28. 2008.

PONTE, J. P. Formação do professor de matemática: perspectivas atuais. In: Seminário

Práticas Profissionais dos Professores de Matemática, 2013, Lisboa. Disponível em:

<http://p3m.ie.ul.pt/seminario-2013>. Acesso em: 28 abr 2014.

SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Editora Cortez, 2010.