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1 ODESENHO COMO PONTO DE VISTA EMÍLIA FERREIRA 1 TEXTO DA CONFERÊNCIA APRESENTADA NO 1º COLÓQUIO DESENHO E IMAGINAÇÃO CHAIA, UNIVERSIDADE DE ÉVORA, 2011 1. ALGUMAS NOTAS PRÉVIAS Imaginar é, literalmente, criar uma imagem. Nesse sentido, o desenho é sempre imaginação porque a sua natureza é a criação de imagens. Por muito livre que esse exercício seja, teve sempre, contudo, condicionantes e constrangimentos, desde os materiais aos sociais, culturais e morais. Cada tempo teve os seus saberes, as suas inquietações e exigências. E, consequentemente também, as suas características. Por tudo isso, podemos dizer que o desenho é, como qualquer actividade humana, um ponto de vista. E éo sempre, desde os registos nas grutas de Lascaux ou Altamira, a criações com outras ambições e significado como a Ognissanti Madonna 2 ;o Homem de Vitrúvio 3 , Les Demoiselles d’Avignon 4 ou a Árvore cinzenta 5 . Além da perspectiva do autor e de um certo enquadramento histórico, criar, ver e/ou mostrar desenho é exercer uma abordagem personalizada, marcada por uma visão individual (ou colectiva) o que significa, uma vez mais, o facultar de um ponto de vista. Assim, além da criação artística, também uma exposição é o exercício dessa escolha, o laborar sobre um conceito e um programa, tanto na selecção das obras, como no discurso em que sobre elas se reflecte, como ainda no modo de as dar a ver. É, por isso, o reflexo de vários constrangimentos, desde o que se expõe até ao espaço em que é dado a ver, 1 Curadora da Casa da Cerca e membro do seu Serviço Educativo, desde 2000. 2 Giotto, Ognissanti Madonna, c. 1310, têmpera sobre madeira, 325 x 204 cm, Uffizi, Florença. 3 Leonardo da Vinci, Homem de Vitrúvio, 1490, lápis e tinta sobre papel, 34 x 24 cm, Galleria dell’Accademia, 2 Giotto, Ognissanti Madonna, c. 1310, têmpera sobre madeira, 325 x 204 cm, Uffizi, Florença. 3 Leonardo da Vinci, Homem de Vitrúvio, 1490, lápis e tinta sobre papel, 34 x 24 cm, Galleria dell’Accademia, Florença. 4 Pablo Picasso, Les Demoiselles d’Avignon, 1907, óleo sobre tela, 243,9 x 237,7 cm, Museum of Modern Art, Nova Iorque 5 Piet Mondrian, Árvore Cinzenta, 1912, Óleo sobre tela, Gemeentemuseum, Haia.

O Desenho como Ponto de Vista

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O  DESENHO  COMO  PONTO  DE  VISTA  EMÍLIA  FERREIRA1  

TEXTO  DA  CONFERÊNCIA  APRESENTADA  NO  1º  COLÓQUIO  DESENHO  E  IMAGINAÇÃO  

CHAIA,  UNIVERSIDADE  DE  ÉVORA,  2011  

 

 

1.  ALGUMAS  NOTAS  PRÉVIAS  

 

Imaginar  é,  literalmente,  criar  uma  imagem.  Nesse  sentido,  o  desenho  é  sempre  imaginação  

porque  a  sua  natureza  é  a  criação  de  imagens.  Por  muito  livre  que  esse  exercício  seja,  teve  

sempre,   contudo,   condicionantes   e   constrangimentos,   desde   os   materiais   aos   sociais,  

culturais  e  morais.  Cada  tempo  teve  os  seus  saberes,  as  suas   inquietações  e  exigências.  E,  

consequentemente   também,   as   suas   características.   Por   tudo   isso,   podemos   dizer   que   o  

desenho  é,  como  qualquer  actividade  humana,  um  ponto  de  vista.  E  é-­‐o  sempre,  desde  os  

registos   nas   grutas   de   Lascaux   ou  Altamira,   a   criações   com  outras   ambições   e   significado  

como   a   Ognissanti   Madonna2;   o   Homem   de   Vitrúvio3,   Les   Demoiselles   d’Avignon4  ou   a  

Árvore  cinzenta5.  

Além   da   perspectiva   do   autor   e   de   um   certo   enquadramento   histórico,   criar,   ver   e/ou  

mostrar   desenho   é   exercer   uma   abordagem   personalizada,   marcada   por   uma   visão  

individual   (ou   colectiva)   o   que   significa,   uma   vez  mais,   o   facultar   de   um   ponto   de   vista.  

Assim,   além   da   criação   artística,   também   uma   exposição   é   o   exercício   dessa   escolha,   o  

laborar  sobre  um  conceito  e  um  programa,  tanto  na  selecção  das  obras,  como  no  discurso  

em  que  sobre  elas  se  reflecte,  como  ainda  no  modo  de  as  dar  a  ver.  É,  por  isso,  o  reflexo  de  

vários   constrangimentos,   desde   o   que   se   expõe   até   ao   espaço   em   que   é   dado   a   ver,  

                                                                                                                         1  Curadora  da  Casa  da  Cerca  e  membro  do  seu  Serviço  Educativo,  desde  2000.    2  Giotto,  Ognissanti  Madonna,  c.  1310,  têmpera  sobre  madeira,  325  x  204  cm,  Uffizi,  Florença.  3  Leonardo  da  Vinci,  Homem  de  Vitrúvio,  1490,   lápis  e  tinta  sobre  papel,  34  x  24  cm,  Galleria  dell’Accademia,  2  Giotto,  Ognissanti  Madonna,  c.  1310,  têmpera  sobre  madeira,  325  x  204  cm,  Uffizi,  Florença.  3  Leonardo  da  Vinci,  Homem  de  Vitrúvio,  1490,   lápis  e  tinta  sobre  papel,  34  x  24  cm,  Galleria  dell’Accademia,  Florença.  4  Pablo  Picasso,  Les  Demoiselles  d’Avignon,  1907,  óleo  sobre  tela,  243,9  x  237,7  cm,  Museum  of  Modern  Art,  Nova  Iorque  5  Piet  Mondrian,  Árvore  Cinzenta,  1912,  Óleo  sobre  tela,  Gemeentemuseum,  Haia.  

2    

passando   pelo   projecto   geral   do   catálogo,   pelo   tempo   da   investigação,   por   questões  

financeiras  ou  pela  linguagem  usada  para  a  sua  comunicação.  

Na   Casa   da   Cerca   –   Centro   de   Arte   Contemporânea,   equipamento   cultural   da   Câmara  

Municipal   de   Almada,   aberto   ao   público   em   1993,   a   investigação   e   o   trabalho   expositivo  

decorrente   têm   sido   desenvolvidos   em   torno   da   diversidade   da   expressão   do   Desenho  

contemporâneo6.  Neste  texto,  irei  debruçar-­‐me  sobre  alguns  projectos  construídos  ao  longo  

destes   19   anos,   apontando   algumas   características   que   os   tornaram   relevantes,   do   meu  

ponto   de   vista,   e   também   alguns   constrangimentos   com   que   nos   deparámos   enquanto  

equipa.   Pretendo,   assim,   estabelecer   algumas   linhas   de   partilha   de   experiências,  

nomeadamente  através  da  definição  de  dificuldades  e  da  superação  de  problemas.  

 

 

2.  UM  EDIFÍCIO  ANTIGO  OU  UM  CONSTRANGIMENTO  

 

A   Casa   da   Cerca   –   Centro   de   Arte   Contemporânea   encontra-­‐se   instalada   num   edifício  

solarengo  com  construção  característica  das  quintas  de  recreio  setecentistas  dos  arredores  

de  Lisboa.  Depois  do  seu  uso  secular  como  habitação,  durante  o  qual  pertenceu  a  diversos  

proprietários,  foi  adquirida  em  1988  pela  Câmara  Municipal  de  Almada,  tendo  sofrido  obras  

de  adaptação  aos  novos  fins  propostos.  Aberta  ao  público  a  18  de  Novembro  de  1993,  tem  

mantido  desde  então  uma  oferta  regular  de  exposições  temporárias.  

O   facto   de   este   centro   de   arte   se   encontrar   instalado   num   edifício   adaptado,   com   uma  

construção   de   raiz   cujo   programa   era   substancialmente   diferente   do   actual,   coloca  

necessariamente   alguns   embaraços,   desde   questões   relacionadas   com   aspectos   da  

conservação  preventiva7,  até  aspectos  logísticos,  como  por  exemplo  a  dimensão  (ou  outras  

características   do   domínio   material)   dos   trabalhos   dos   artistas.   Deste   modo,   por   estar  

implantada  na  zona  velha  de  Almada,  o  acesso  à  Casa  da  Cerca  encontra-­‐se  condicionado  

                                                                                                                         6  Entendendo  a  contemporaneidade  dentro  de  uma  divisão  historicista,  ou  seja,  a  partir  de  1789,  a  actividade  da  Casa  centra-­‐se  habitualmente  na  criação  artística  dos  séculos  XX  e  XXI.  7  Erigido  em  cima  da  arriba  sobranceira  ao  Tejo,  exposto  a  ventos  e  a  humidade,  a  construção  antiga  não  está,  de   raiz,   apetrechada   para   as   necessidades   de   um   espaço   de   acolhimento   de   obras   de   arte.   Contudo,   numa  intervenção   recente   (2005-­‐2006)   houve   alterações   no   isolamento   térmico   do   telhado,   tendo   também   sido  instalados  filtros  UV  nas  janelas,  para  diminuir  os  efeitos  nocivos  quer  das  alterações  de  temperatura,  quer  da  prolongada   exposição   à   luz   em  materiais  mais   sensíveis.  Mantém-­‐se,   no   entanto,   a   necessidade   de   instalar  desumidificadores,   sempre   que   o   tempo   se   torna   mais   húmido,   já   que   a   calefacção   das   janelas,   mesmo  recente,  não  é  completamente  eficaz.    

3    

pela  estreiteza  das  vias  circundantes;  além  disso,  a  própria  entrada  no  edifício  é  limitada  ao  

tamanho  das  portas  (que  manteve  o  risco  original)  e,  em  termos  expositivos,  às  dimensões,  

nomeadamente  ao  pé  direito,  das  salas  de  exposição.  

 

8  

 

Ainda  assim,  ao   longo  destes  anos,  a  Casa  da  Cerca   tem  conseguido  oferecer  uma  grande  

diversidade  de  propostas,  entre  mostras  individuais,  colectivas  e  temáticas,  com  abordagens  

espaciais   diferenciadoras.   Em   termos   teóricos,   tem   sido   investigado   o   desenho   dos  

arquitectos,   dos  pintores,   dos  escultores   e  dos  designers.   Embora  o  eixo  da  programação  

permaneça  centrado  no  desenho,  tem  também  sido  dado  espaço  à  fotografia,  instalação  e  

vídeo.  Assim,  aquele  tem  sido  estudado  como  projecto  e  processo  de  investigação,  registo  

expressivo  e  materialização  final  da  criação  artística,  permitindo  ainda  demonstrar  o  quanto  

o   conceito   de   desenho   é   abrangente   e   o   quanto   continua   a   permitir   aos   artistas   a  

exploração  de  media  e  abordagens  diferentes.    

Na  sequência  do  programa  inicial,  proposto  pelo  seu  primeiro  director,  o  pintor  e  professor  

Rogério  Ribeiro,   ele   próprio   um  praticante   incansável   do  desenho  um  artista   com  grande  

                                                                                                                         8  Vista  geral  do  edifício  da  Casa  da  Cerca,  com  o  Tejo  e  Lisboa  ao  fundo.  Nesta  imagem  é  visível  a  planta  em  U,  e  o  enquadramento  geográfico,  com  uma  ala  para  nascente,  outra  para  norte  (a  que  tem  Lisboa  por  trás)  e  outra  para  poente.  Fotografia  de  Joaquim  Nabais.  Arquivo  da  Casa  da  Cerca.  

4    

interesse   na   tradição   e,   numa   política   de   rara   continuidade,   garantida   pela   direcção  

seguinte   e   actual,   da   Drª   Ana   Isabel   Ribeiro,   e   dada   também   a   formação   da   equipa   que  

trabalha  centralmente  no  sector  expositivo  da  Casa  da  Cerca,  maioritariamente  formada  em  

História   da  Arte   (incluindo   a   directora),   houve   sempre  uma   clara   intenção  de  dar   a   ver   o  

desenho   dentro   de   um   contexto   histórico   que   ilumine   a   herança   plástica   e   esclareça   a  

identidade   de   cada   artista   e   de   cada   proposta   curatorial,   oferecendo   aos   visitantes   um  

âmbito  mais  alargado  de   leitura.  Além  disso,  o  desejo  de  diversificar  o   leque  de  pesquisas  

autorais  e  a   vontade  de  manter  uma  programação  de  excelência,   fez   com  que   sempre   se  

tenha  aberto  a  Casa  da  Cerca  a  nomes  artísticos  de  referência.  Prestes  a  terminar  a  segunda  

década   de   actividade,   este   equipamento   conta   já   com   um   número   significativo   de  

concretizações.  

Assim,  desde  1993  e  até  ao  início  de  2012,  foram  realizadas  na  Casa  da  Cerca9  98  exposições  

individuais   e   24   colectivas.   Ao   todo,   já   aqui   expuseram   perto   de   360   artistas   nacionais   e  

internacionais,  ao  longo  destes  anos.  Nessas  122  mostras,  e  mesmo  com  as  condicionantes  

referidas,  os  projectos   foram  variando,  propondo-­‐se  não  apenas  percursos  específicos  das  

obras   (compreendendo   pressupostos   históricos,   artísticos   e   técnicos)   ou   dos   temas,   mas  

igualmente   leituras   e   relações   entre   a   encenação   dos   objectos   artísticos   e   a   reflexão   e  

registo   correspondentes   nos   catálogos;   ou,   ainda,   tentando   encenar   a   Casa   da   Cerca   e  

tornando  cada  percurso  o  mais  flexível  e  diferenciado  possível.    

Um  dos  exemplos  mais  paradigmáticos  e  iniciais  desse  exercício  foi  realizado  em  1995,  com  

a  exposição  O  Desejo  do  Desenho,  colectiva  que,  a  par  de  trabalhos  de  artistas  portugueses  

contemporâneos10,  que  praticam  o  desenho  de  modos  muito  distintos,  fazia  a  ponte  com  os  

estudos   de   geometria   e   perspectiva,   a   tradição   dos   tratados,   a   cartografia,   o   desenho  

                                                                                                                         9  Além  da  área  exterior,  dividida  em  vários  jardins,  a  área  interior  compreende,  na  ala  nascente,  no  piso  térreo,  a   Galeria   do   Pátio,   a   Capela   e   o   Centro   de   Documentação   e   Investigação   Mestre   Rogério   Ribeiro   (no   piso  superior,  encontram-­‐se  os  gabinetes  de  trabalho).  Na  ala  norte,  no  piso  térreo,  existe  o  auditório  e  o  acesso  à  antiga  cisterna,  agora  também  espaço  expositivo.  Na  ala  poente,  passando  a  recepção  (onde,  desde  2009,  se  organizam  exposições  dos  trabalhos  resultantes  dos  ateliers  do  Serviço  Educativo),  chega-­‐se  à  primeira  sala  da  galeria  principal.  Daí  se  tem  acesso  ao  piso  superior,  onde  existe  uma  sala  de  25m  x  5m  (a  maior  área  coberta  expositiva  da  Casa  da  Cerca)  e  de  onde  se  procede  para  duas  salas  da  ala  norte,  ambas  igualmente  usadas  para  fins  expositivos.  10  Nessa   mostra,   além   de   reproduções   de   máquinas   de   desenho   e   de   estudos   perspécticos,   entre   outros,  estiveram   patentes   criações   de   Álvaro   Lapa,   Ana   Hatherly,   Ângelo   de   Sousa,   António   Areal,   António   Sena,  Fernando  Calhau,  Helena  Almeida,  João  Vieira,  Jorge  Martins,  Jorge  Pinheiro,  José  Mouga,  José  Rodrigues,  Júlio  Pomar,  Manuel   Baptista,   Pedro   Cabrita   Reis,   Pedro   Calapez,   Pedro   Chorão,   Rogério   Ribeiro,   Rui   Chafes,   Rui  Sanches  e  Sá  Nogueira,  da  colecção  da  Fundação  Luso-­‐Americana  para  o  Desenvolvimento,  parceria  com  que  a  Casa  da  Cerca  inaugurou  uma  política  de  trabalho  conjunto.  

5    

científico,   a   caligrafia   e   o   ensino   académico   desde   o   Renascimento,   abrindo,   na   Casa   da  

Cerca,  uma  via  de  projectos  de  investigação  histórica  em  torno  da  disciplina  do  desenho11  e  

evidenciando   a   relação   entre   tradição   e   contemporaneidade.   Ao   tempo,   não   havendo  

significativos  estudos  teóricos  sobre  o  desenho,  em  Portugal,  a  investigação  de  O  Desejo  do  

Desenho   revelou-­‐se   da  maior   importância   para   a   divulgação   e   possibilidades   científicas   e  

criativas  desta  disciplina.    

 

12  

 

Seguindo  essa   via,   em  2001,   e   a  pretexto  de  um  enriquecimento  de  que  a  Casa  usufruiu,  

com  a  transformação  do  seu  velho  horto  num  jardim  botânico  com  uma  colecção  de  plantas  

com   características   muito   específicas,   uma   outra   exposição   colectiva,   de   que   nos  

ocuparemos  em  seguida,  permitiu  uma  nova  abordagem  e  a  abertura  de  um  caminho  que  

se  continua  a  investigar  até  hoje.  

 

3.  UM  JARDIM  ÚNICO  OU  UMA  JANELA  DE  OPORTUNIDADE  

                                                                                                                           11  Esse   trabalho   tivera   antecedentes   na   Galeria   Municipal   de   Arte   (1988)   com   exposições   e   catálogos   que  divulgavam  aspectos  do  trabalho  académico  do  desenho.  12  Imagem   de   O   Desejo   do   Desenho   (1995),   Galeria   Principal.   De   notar   como   a   ampliação   de   um   estudo  perspéctico  foi  usada  como  trompe  l’œil  para  criar  a  ilusão  de  infinitude  do  espaço  expositivo.  Arquivo  da  Casa  da  Cerca.    

6    

O   Chão   das   Artes   –   Jardim   Botânico   foi   uma   iniciativa   pioneira   na   especificidade   da  

articulação   das   vertentes   científica   e   artística  —   concretizado   num   projecto   inspirado   no  

jardim   tradicional  português  de  quinta  de   recreio   (origem  da  Casa  da  Cerca,   como  vimos)  

que,   para   além   da   Estufa,   Herbário   e   anfiteatro   de   ar   livre,   se   organiza   em   seis   áreas  

estruturantes,   nas   quais   crescem   plantas   cujos   componentes   vegetais   originam  materiais  

usados  nas  artes  plásticas:  a  Mata   (dedicada  às  madeiras  utilizadas  na  escultura  ou  como  

suporte   de   retábulos);   o   Pomar   das   Gomas   (onde   árvores   de   fruto,   essencialmente   do  

género   Prunus,   produzem   as   gomas   utilizadas   na   pintura);   o   Jardim   dos   Óleos   (onde   se  

encontra   o   rosmaninho,   o   alecrim,   a   alfazema,   além   de   outras   espécies   produtoras   dos  

diversos  óleos  usados  na  pintura);  o  Jardim  dos  Pintores  (no  qual  existem  canteiros  de  flores  

que  citam  o  imaginário  pictórico  de  alguns  artistas  e  onde  todos  os  anos  se  homenageia  um  

pintor  —  Monet   e   a   sua  paleta  de   azuis;   van  Gogh  e   as   suas   searas   e   girassóis;  Gertrude  

Jekyll   ou   Sonia   Delaunay   e   as   suas   cores   vibrantes);   o   Jardim   das   Telas   (aí   se   encontram  

plantadas  espécies  como  o  linho  ou  o  algodão)  e  o  Jardim  dos  Pigmentos  (no  qual  crescem,  

entre   outros,  maravilhas  —  que  dão  um   corante   cor-­‐de-­‐laranja  —  e   lírios,   de   cuja   flor   se  

extraem  corantes  roxos  ou  amarelos  e  de  cujo  rizoma  se  obtém  um  pigmento  violáceo).    

A  inauguração,  em  Junho  de  2001,  deste  novo  núcleo  de  recreio  e  estudo  da  Casa  da  Cerca  

foi   pretexto   para   uma  mostra   documental   e   artística,  Natura   Artis   Magister.   A   natureza  

mestra  das  artes.  Estabelecendo-­‐se  uma  linha  de   leitura  de  cruzamento  entre  História  das  

Ciências   e   uma   História   da   Cultura,   além   de   aspectos   tecnológicos,   abordaram-­‐se   ainda  

temas  do  domínio  da  alquimia,  da  simbologia,  da  ilustração  científica,  da  história  dos  jardins  

e  da  representação  da  paisagem  na  arte  portuguesa  do  século  XIX.  

A   relação  entre  a  exposição  e  o  catálogo   foi,  uma  vez  mais,  pensada  de  modo  a  que  este  

ilustrasse   bem   os   diversos   núcleos   de   saber   e   a   sua   encenação,   que   englobou,  

inclusivamente,  a  imagem  geral  (o  mesmo  verde  usado  nas  paredes  das  salas  foi  repetido  na  

capa  do  catálogo,  e  nos  demais  materiais  impressos;  observou-­‐se,  ainda,  coerência  nos  tipos  

de   letra   escolhidos   bem   como   na   linguagem   iconográfica,   de  modo   a   ser   bem   clara   essa  

relação13).    

                                                                                                                         13  Essa   opção,   geralmente   seguida   nos   discursos   expositivos,   tem   sido  mantida  mas   com   actualizações.   Por  exemplo,  abandonou-­‐se  a  imagem  gráfica  exterior  e  o  formato  sempre  igual  dos  catálogos  e  passou  a  adequar-­‐se   a   publicação   ao   discurso   desenvolvido   no   espaço,   dentro   de   uma   lógica   mais   particularizada   de   cada  projecto.  

7    

Em  2011,   retomámos  o   fio  de   relação  entre  arte  e  natureza.  Desta  vez,  a  colectiva  Sobre-­‐

Natural  –  10  Olhares  sobre  a  Natureza,  evento  central  do  Programa  de  Comemorações  do  

10.º   Aniversário   de   O   Chão   das   Artes   –   Jardim   Botânico   e   prosseguindo   as   questões  

apontadas   em   2001,   propunha-­‐se   voltar   a   olhar   a   natureza,   não   apenas   no   registo  

paisagístico   da   anterior,   mas   do   ponto   de   vista   do   desenho   contemporâneo,   incluindo   a  

ilustração  botânica.    

Tal  como  em  2001  havíamos  contado  com  o  biólogo  e   ilustrador  científico,  Pedro  Salgado,  

que  apresentara  um  texto  sobre  as  características  do  desenho  científico  e  do  seu  contributo  

para   o   conhecimento   da   natureza,   em   2011,   reiterámos   essa   parceria   artística   e   teórica,  

para  uma  abordagem  aos  avanços  realizados  nos  últimos  10  anos,  em  Portugal,  no  âmbito  

da   ilustração   científica,   mais   concretamente   na   botânica.   Reflectindo   as   propostas   da  

investigação,  os  10  autores  (evocando  os  dez  anos  do  Chão  das  Artes)  que  integraram  este  

projecto   (cinco   ilustradores   científicos   e   cinco   artistas   plásticos   contemporâneos)  

concretizaram   um   diálogo   profícuo,   patente   na   colocação   das   obras   no   espaço,   sem  

discursos   de   fragmentação,   conferindo   amplo   pretexto   para   uma   reflexão   abrangente   da  

pluralidade  das  linguagens  e  dos  seus  diferentes  pressupostos.  

A   exposição   revelou-­‐se,   assim,   do   ponto   de   vista   conceptual,   mais   um   pretexto   para   a  

investigação  histórica   (desta  vez  sobre  a  história  da   ilustração  científica14  e  da  sua  relação  

com  o  mimetismo  e  o  conhecimento  nas  artes)  e  propôs-­‐se  também  como  mais  um  espaço  

de  discussão  sobre  a  actualidade  e  a  pertinência  do  desenho,  seja  no  mais  imediato  registo  

                                                                                                                         14  Como  núcleo  histórico,  esta  mostra   foi  complementada  por  outra,  que  funciona  até  hoje  autonomamente.  Intitulada   As   plantas   do   Chão   das   Artes.   Ilustração   botânica   do   séc.   XVI   ao   séc.   XIX   é   constituída   por   um  conjunto   de   reproduções   de   ilustrações   botânicas,   antigas,   pertencentes   à   colecção   do  Museu   Nacional   de  História   Natural   do   Jardim   Botânico   da   Faculdade   de   Ciências   da   Universidade   de   Lisboa.   As   gravuras   em  questão  foram  retiradas  de  Herbais,  Iluminuras,  Receituários,  Registos  de  Expedições,  Diários  de  Exploradores,  Tratados   de   Medicina,   Herbários,   Floras,   Manuais   de   Fitoterapia,   Livros   de   Culinária,   Tratados   de   Pintura,  Compêndios   de   Botânica,   Artigos   Científicos,   sublinhando   os   inúmeros   usos   das   ilustrações   botânicas.   As  reproduções  escolhidas,  que  actualmente  se  encontram  patentes  no  muro  do  Jardim,  representam  plantas  que  existem   no   Chão   das   Artes,   todas   elas   com   utilização   nas   artes   plásticas.   Dada   a   sua   secular   importância  histórica  e  científica,  e  na  impossibilidade  de  aqui  se  expor  quer  os  originais  dessas  gravuras,  quer  os  livros  em  que  foram  publicadas  pela  primeira  vez,   foi  seleccionada  quase  uma  centena  de   ilustrações,  escolhidas  entre  inúmeras   ilustrações   publicadas   numa   dezena   de   obras,   distribuída   por   cerca   de   cinquenta   espécies,   em  trabalhos  de  diversos  autores   (nem  sempre   identificáveis),  que  cobrem  um  período  do  século  XVI  ao  XIX.  Na  grande  diversidade  de  registos  patentes,  oferecem-­‐se  diferentes  olhares  e  técnicas  sobre  a  mesma  espécie.  As  peças   reproduzidas   foram   originalmente   realizadas   em   xilogravura,   calcografia,   litografia   colorida   à  mão   ou  cromolitografia,  evidenciando  as  exigências  de  qualidade  e  as  técnicas  disponíveis  em  cada  época.  Também  por  razões   expositivas,   foram   quase   todas   reproduzidas   em   dimensões   inferiores   às   originais,   apresentadas   por  ordem  alfabética  do  seu  nome  científico  e  –  quando  existem  várias  ilustrações  da  mesma  espécie  –  por  ordem  cronológica.    

8    

expressivo  e  estético,  como  no  traçado  mais  rigoroso  do  projecto  científico  da  explicação  do  

real.    

 

 

4.  A  PROSSECUÇÃO  DA  INVESTIGAÇÃO  

 

Ao  longo  dos  anos,  a  investigação  em  torno  do  desenho  tem  sido  ciclicamente  ampliada  na  

Casa   da   Cerca.   Se,   por   um   lado,   se   tem   realizado   investigação   em   torno   da   actividade  

experimental   e   expressiva   dos   artistas   ou   dos   limites  materiais   da   disciplina,   de   que   são  

exemplo  as  exposições  Artistas  Britânicos.  Trabalhos  sobre  papel,  1956-­‐197115,   com  peças  

da   Colecção   do   Centro   de   Arte   Moderna,   da   Fundação   Calouste   Gulbenkian   (2002),   ou  

Desenho   1993-­‐2003   (na   qual   se   reflectiu   sobre   o   carácter   do   desenho   na  

contemporaneidade  e  se  mostraram  criações  dos  33  artistas  que,  até  então,  tinham  exposto  

individualmente   na   Casa   da   Cerca),   bem   como  Dramaturgias   do   Desenho16  (2004),   foram  

também   pensados   outros   projectos   em   que   abordámos   a   tradição   com   carácter   mais  

historicista.    

Assim,   temos   também   produzido   exposições   como   O   Desenho   Dito   (2008),   na   qual  

recordámos   a   história   das   Academias   enquanto   centros   de   tertúlia   e   aprendizagem   das  

disciplinas   artísticas,   de   que   o   desenho   é   fundador.   Historiograficamente,   passámos   em  

revista  um  modelo  que  nasce  na  Renascença  e  que  seguimos  até  ao  século  XIX,  contribuindo  

de  modo  inequívoco  para  a  criação  do  estatuto  do  artista,  mostrando  ainda  como,  a  partir  

dos   meados   de   Oitocentos,   se   opera   uma   mudança   de   paradigma,   com   a   crescente  

valorização  da  experiência  em  detrimento  de  saberes  escolares  e  modos  de  aprendizagem  

mais   institucionalizados.   Chegámos   assim   à   paixão   vanguardista/modernista   e   ao  

preconceito   anti-­‐académico   que   com   ela   se   instaurou   entre   criadores   e  

críticos/historiadores,   com   consequente   perda   de   prestígio   por   parte   da   Academia   e  

acabámos  no  final  do  século  XX/início  do  XXI,  com  o  regresso  à  relevância  dada  aos  estudos  

académicos   e   à   importância   do   conhecimento   da   tradição.   Incluímos,   nessa   passagem  

                                                                                                                         15  Este  projecto  resultou  de  um  desafio  da  curadora  do  Centro  de  Arte  Moderna  da  FCG,  Ana  Vasconcelos,  e  foi  co-­‐comissariada  por  essa  investigadora  e  por  mim.    16  A  pretexto  dos  vinte  anos  do  Festival  de  Teatro  de  Almada,  reunimos  obras  dos  dez  artistas  que,  até  então,  tinham  sido  convidados  para  criar,  desde  1993,  a   imagem  gráfica  do  festival  e  que,  dada  a  parceria  existente  com  o  festival,  tinham  realizado  na  Cerca  da  Cerca  uma  exposição  individual.    

9    

historiográfica,   o   acesso   das   mulheres   ao   ensino   artístico,   do   Renascimento   à  

contemporaneidade.   E   também   a   história   académica   portuguesa.   Teoricamente,   nessa  

encruzilhada   de   tempos,   saberes,   técnicas   e   pesquisas,   investigámos   a   relevância   do  

desenho   hoje,   apurando   o   papel   que   desempenha   no   processo   criativo   dos   artistas  

convidados.    

Em  termos  expositivos,  à  parte  a  inclusão  de  obras  de  desenho  de  4  artistas  do  século  XVIII  

(para  o  que  contámos  com  a  parceria  do  Museu  Nacional  de  Arte  Antiga),  trabalhámos  mais  

onze   criadores   contemporâneos   (num   total   de   15   nomes   que,   simbolicamente,   remetiam  

para  os  15  anos  de  actividade  da  Casa  da  Cerca,  que  então  comemorávamos).  Evidenciando  

os   diversos   modos   como   os   artistas   contemporâneos   aliam   disciplina   académica   com  

experimentação,   criámos   um   percurso   que   passou   da   informação   histórica   para   as   duas  

salas  em  que  se  colocaram  as  obras  dos  artistas  contemporâneos,  terminando  na  evocação  

da  tradição,  com  os  autores  do  século  XVIII17.    

Em  2009,  com  1/150.  Gravar  e  Multiplicar18,  dedicámos  a  exposição  a  uma  das  disciplinas  

devedoras  do  desenho,  a  gravura.  Recorrendo  a  uma  selecção  de  gravuras  da  colecção  do  

Centro   de   Arte   Moderna   da   Fundação   Calouste   Gulbenkian,   e   problematizando   sobre   a  

pertinência  de  expor  gravura,  tomámos  também  a  braços  o  pretexto  para  fazer  um  pouco  a  

história  desta  disciplina  artística,  incluindo,  como  sempre,  o  contributo  português  para  essa  

história.  Em  termos  nacionais,  e  sendo  raras  as  mostras  de  gravura  em  Portugal,  foi  uma  boa  

oportunidade  para   sublinharmos,   além  do   inestimável   papel   desta   arte  na  divulgação  das  

outras  artes,  o   seu  valor   intrínseco,   artístico,   e   a   sua  qualidade  única  de  objecto  plástico,  

além  de  um  muito  significativo  número  de  criadores  de  indiscutível  qualidade.  

Regressando   ao   exercício   de   inspiração   académica   no   desenho,   no   final   de   2012,   e  

integrando  o  programa  mais  vasto  da  I  Trienal  de  Desenho  –  Desenha  ’12,  de  que  a  Casa  da  

Cerca   é   parceira,   a   exposição   em   que   culminará   a   investigação   deste   ano   em   que  

                                                                                                                         17  Por  razões  da  própria  estrutura  do  edifício,  estas  obras  tiveram  de  ficar  na  última  sala  do  percurso.  Assim,  este   não   foi   cronológico,   mas   temático.   Depois   de   uma   primeira   sala   didáctica,   com   ampla   informação,  também  iconográfica,  que  reflectia  uma  perspectiva  cronológica  da  história,  as  grandes  salas  do  primeiro  andar  acolhiam  o  núcleo  de  representação  do  corpo,  da  natureza  e,  finalmente,  do  século  XVIII.  18  Este  projecto  também  resultou  de  um  repto  que  me  foi  lançado  pela  curadora  do  Centro  de  Arte  Moderna,  Ana  Vasconcelos.  Dadas  as  dificuldades  técnicas  que  a  gravura  coloca,  à  parte  a  escolha  das  peças  por  critérios  artísticos   de   que   ambas   nos   encarregámos,   foi   convidado   o   artista   plástico   e   gravador   António   Canau   para  comissário  científico.  Sendo  o  CAM  detentor  de  uma  significativa  colecção  de  gravura,  com  grande  diversidade  de   autores,   técnicas   e   expressões,   que   permaneciam   pouco   divulgadas   e   estudadas,   a   oportunidade   de  trabalhar  e  expor  parte  significativa  desse  acervo  revelou-­‐se  da  maior  importância  para  ambas  as  instituições  envolvidas.  

10    

homenageamos  Leonardo  da  Vinci,  e  que  será  centrada  no  cânone,  intitular-­‐se-­‐á  A  Ciência  

do  Desenho.  Tratar-­‐se-­‐á  de  uma  colectiva  que  pretende  explorar  as  técnicas  do  desenho,  tal  

como   estas   foram   utilizadas   ao   longo   dos   séculos   (desde   a   Antiguidade   até   à  

contemporaneidade)   para   a   obtenção   do  maior   rigor   científico   e   do  máximo  mimetismo  

possível  na  representação,  tal  como  foi  praticado  a  partir  do  Renascimento.  

Assim,   trataremos   não   apenas   as   questões   teóricas   da   perspectiva   e   demais   aspectos   da  

ciência   do   desenho,   como   também   os   materiais   com   que   é   elaborado,   considerando   a  

invenção  da  câmara  escura  e  a  vulgarização  do  papel,  a  grafite,  o  carvão  ou  as  tintas,  com  as  

suas  consequências  na  prática  do  desenho,  bem  como  aspectos  técnicos  mais  particulares  

da  pintura,  como  a  utilização  do  óleo,  a  descoberta  de  novos  pigmentos,  o  uso  de  madeiras  

e   telas.   Para   tanto,   iremos   socorrer-­‐nos   de  bibliografia   histórica   e   de  novas   investigações  

entretanto   publicadas.   De   modo   a   cobrir   um   espectro   figurativo   significativo,   e   tendo   o  

homem   sido,   a   partir   do   Renascimento,   a   medida   de   todas   as   coisas,   esta   será   uma  

exposição   centrada   na   representação   da   figura   humana,   nos   estudos   da   proporção,   de  

anatomia  e  na  codificação  da  figuração.  

Se  em  O  Desenho  Dito  explorámos  a  história  dos  lugares  de  ensino  do  desenho  (academias)  

e   a   sua   relevância   como   centros   de   tertúlia   e   aprendizagem   das   disciplinas   artísticas,  

estudando-­‐o  desde  o   seu  surgimento  na  Europa  do  Renascimento  e  acompanhando  essas  

instituições   até   ao   século   XIX,   evocando   também   o   quanto   foram   importantes   no  

desenvolvimento   e   mudança   do   próprio   estatuto   do   artista,   nesta   nova   proposta  

pretendemos  olhar  para  dentro  das  oficinas  e  das  Academias  e  ver  que  conselhos  se  davam  

para  a  boa  realização  das  obras  dos  seus  aprendizes.    

 

 

5.  DIFERENTES  TEMAS,  DIVERSIDADE  DE  ENCENAÇÕES  E  LEITURAS  

 

A   vontade   de   diversificar   a   programação,   faz   com   que,   necessariamente,   nem   sempre   as  

exposições  patentes  se  debrucem  sobre  temas  históricos.  Assim,  além  de  ser  também  dado  

lugar   à   expressão   individual   dos   artistas   que   concorrem  para   que   o   trabalho   do   desenho  

seja  o  mais  abrangente  possível,  é  também  dado  espaço  à  realização  de  mostras  temáticas  

ou  de  áreas  do  desenho  em  geral  menos  exploradas   tradicionalmente  pela   investigação  e  

política  expositiva.  Desse  modo,  tem  sido  também  significativa  a  investigação  em  torno  da  

11    

obra   de   alguns   arquitectos,   sendo   de   salientar   as   exposições   sobre   os   arquitectos   Raul  

Chorão  Ramalho  (1997),  Alvar  Aalto  (1998  –  esta,  realizada  em  parceria  com  o  Museu  Alvar  

Aalto,  no  centenário  do  nascimento  do  arquitecto  –  com  uma   importante  componente  de  

design   que   se   reflectiu   na   encenação   espacial),  Manuel   Tainha   (2000),   Vilanova   Artigas  

(2000),  João  Correia  Rebelo  (2003),  Francisco  Silva  Dias  (2006)19,  Luís  Vassalo  Rosa  (2007)20,  

José  Santa-­‐Rita  (2009)21,  José  Forjaz  (2010)  e  Sidónio  Pardal  (2011)22.    

Embora  menos  explorado,  o  design   tem   também  sido  objecto  do   trabalho  da  Casa,   como  

aconteceu   com  a   colectiva   de  designers   portugueses  O  Design   como  Desígnio   (1995)23  ou  

com  a   primeira   apresentação  dedicada   a   um  núcleo   significativo   da   colecção   do   designer  

Paulo   Parra,   Ícones   do   Design   (2003)   ou   ainda   com   a   mais   recente   mostra   dedicada   à  

colecção  de  máquinas  polaróides  do  designer  Raul  Cunca,  A  Magia  da  Poloróide  (2012)24.    

Com  raras  excepções,  todas  ostentaram  sempre  percursos  e  opções  cenográficas,  pensadas  

pela  equipa  da  Casa  da  Cerca,  que  permitiram  alterar,  com  recurso  a  um  mínimo  de  custos,  

a  imagem  do  espaço.  Nas  exposições  de  arquitectura,  por  exemplo,  foi  sempre  tentado  um  

claro   equilíbrio   entre   informação   documental   e   iconográfica,   insistindo-­‐se   na  

contextualização   da   obra   no   seu   tempo   de   criação   e   na   relação   do   desenho  

esquisso/projecto   com   a   sua  materialização   (da  maquete   ao   documento   fotográfico).   No  

caso   das   exposições   de   design,   o   espaço   foi   organizado   de   modo   a   que   os   objectos  

pudessem  ser  dispostos  de  modo  claro,  cronológica  e  tematicamente.  

                                                                                                                         19  Exposição  sobre  a  obra  do  arquitecto  homenageado  no  âmbito  do  Prémio  Municipal  de  Arquitectura  Cidade  de  Almada.  Primeira  edição.    20  Exposição   realizada   no   âmbito   do   Prémio   Municipal   de   Arquitectura   Cidade   de   Almada.   Arquitecto  homenageado.  21  Exposição   realizada   no   âmbito   do   Prémio   Municipal   de   Arquitectura   Cidade   de   Almada.   Arquitecto  homenageado.  22  Exposição   realizada   no   âmbito   do   Prémio   Municipal   de   Arquitectura   Cidade   de   Almada.   Arquitecto  homenageado.  23  Em  parceria  com  a  ESBAL.  24  Esta   exposição   constitui   uma   excepção   a   esta   regra   já   que   toda   a   montagem,   incluindo   o   desenho   das  vitrines,  é  da  responsabilidade  e  traço  do  coleccionador  e  designer.  

12    

25  

 

Em  1998,  a  exposição  do  arquitecto  e  designer  finlandês  Alvar  Aalto  foi  paradigmática  pela  

sua   encenação   espacial26.   Patente   na   ala   nascente   da   Casa   da   Cerca,   onde   se   encontra   a  

galeria  de  maiores  dimensões,  decorreu  ainda  numa  fase  da  história  do  edifício  em  que  era  

notória   a   antiga   compartimentação   de   pequenas   salas   (notar   a   presença   das   velhas  

ombreiras  de  pedra  que  pontuam  a   sala  no   sentido  do   comprimento).  As  paredes   foram,  

contudo,  parcialmente  cobertas  por  painéis  de  madeira  clara,  sem  ângulos  vivos  (mimando  

as   criações   do   próprio   autor)   e   os   objectos   foram   expostos   em   estrados,   sugerindo  

ambientes  mais  próximos  e  caseiros  do  que  os  tradicionais  plintos.  Como  aqui  se  percebe,  o  

que  poderia   constituir  uma   limitação   foi  encarado  como  desafio  e,  mesmo,   como  ajuda  à  

cenografia  do  espaço.  

 

 

6.  O  PONTO  DE  VISTA  DOS  ARTISTAS  E  PERSPECTIVAS  EXPOSITIVAS  

 

As   exposições   individuais   podem   constituir  momentos   de   grande   experimentalismo   tanto  

do  ponto  de  vista  das  obras  como  no  que  à  sua  montagem  diz  respeito.  Não  se  trata  apenas  

de  pensar  o  desígnio  de  um  artista,  de  expor  a  diversidade  do  seu  trabalho  de  desenho  —                                                                                                                            25  Exposição  Alvar  Aalto.  Arquitecto.  1898  100  [1998],  vista  da  Galeria  Principal,  onde  se  encontrava  patente  o  núcleo  O  Elogio  da  Madeira.  Arquivo  da  Casa  da  Cerca.    26  Até  2004,  inclusive,  a  concepção  das  montagens  na  Casa  da  Cerca  foi  sempre  da  responsabilidade  de  Rogério  Ribeiro.  

13    

embora   isso   seja   sempre  central  na  actividade  da  Casa  da  Cerca  —  mas   também  o  modo  

como  esse  trabalho  vai  ser  dado  a  ler.  Não  apenas  na  sequência  das  obras,  na  sua  posição  

face  ao  visitante,  mas  também  nas  diferentes  formas  de  abordagem  às  mesmas.  

Dadas   as   características   da   programação   da   Casa   da   Cerca,   as   individuais   foram   quase  

sempre  pensadas  como  modos  de  sublinhar  a  diversidade  de  experiências  plásticas  operada  

em   torno   do   desenho  —   chegando   à   gravura   ou   à   instalação.   Assim,   foram   organizadas  

exposições   com   programas,   materiais   e   técnicas   tão   diversas   como   as   de   Carlos   Botelho  

(1999,   no   centenário   do   seu   nascimento),   Vespeira   (2001),   Paula   Rego   (2001)27 ,   José  

Rodrigues28  (2001),   Henry  Moore   (2001)29,   Ofélia  Marques   (2002)30,   Ana   Pimentel   (2002),  

Sofia   Areal   (2002)31,   Vera   Castro   (2002)32,   António  Quadros   (2002)33,   Luís   Dourdil   (2002),  

Pedro   Chorão   (2002),   André  Gomes   (2003)34,   José  David   (2003),   Rogério   Ribeiro   (2003)35,  

Álvaro   Siza   (2004),   Leonor  Antunes   (2004),   Ana  Vidigal   (2005)36,  Manuel  Vilarinho   (2006),  

Carlos   Nogueira   (2006),   David   Almeida   (2006),   José   de   Guimarães   (2006),   Rui   Sanches  

(2007),  Pedro  Calapez  (2008),  Fátima  Pinto  (2009),  Vasco  Araújo  (2009)37,  Maria  Pia  Oliveira  

(2009),  Cristina  Ataíde  (2010)  ou  Alberto  Carneiro  (2011)  —  só  para  citar  alguns.  Em  todos  

estes  casos,  o  desenho  de  cada  autor  foi  tomado  como  pretexto  para  a  reflexão  em  torno  

do  seu  exercício  como  disciplina  mãe,  na  sua  relação  com  as  artes  plásticas,  com  a  literatura  

e  a   tradição  cultural  em  geral,  no  diálogo  que  estabelece  com  a  pintura,  a  escultura  ou  a  

instalação  e  ainda  na  investigação  das  suas  técnicas  e  suportes  tradicionais  e  dos  limites  (ou  

liberdade)  a  que  o  levam  as  novas  possibilidades,  incluindo  as  tecnológicas  —  associando-­‐o,  

por  exemplo,  a  projecções  vídeo.    

                                                                                                                         27  Parceria  com  a  Fundação  Arpad  Szènes-­‐Vieira  da  Silva.  28  Parceria  com  a  Cooperativa  Árvore.  29  Projecto  e  investigação  de  Ana  Vasconcelos,  com  peças  de  gravura  da  Colecção  do  Centro  de  Arte  Moderna,  da  FCG.  30  No  centenário  do  seu  nascimento.  Parceria  com  o  CAM,  FCG.  31  Exposição  integrada  no  Festival  de  Teatro  de  Almada.  32  Exposição  integrada  no  Festival  de  Teatro  de  Almada.  33  Parceria  com  a  Cooperativa  Árvore.  34  Exposição  integrada  no  Festival  de  Teatro  de  Almada.  35  Esta  exposição  também  tinha  algumas  surpresas  no  percurso,  ao  contar,  por  exemplo,  com  um  núcleo  que  remetia  para  o  atelier  do  pintor  e  com  um  outro  em  que,  através  de  uma  pequena  mostra  fotográfica  de  Rosa  Reis,  se  documentava  o  trabalho  do  artista,  na  sua  relação  com  a  pintura,  o  desenho  e  o  azulejo  e  ainda  na  sua  cumplicidade  pessoal  com  alguns  profissionais  de  carpintaria  da  Câmara  Municipal  de  Almada,  com  que  a  Casa  da  Cerca  conta  invariavelmente,  há  anos,  para  a  montagem  das  exposições.    36  A  exposição  da  artista  Ana  Vidigal,  integrada  no  Festival  de  Teatro  de  Almada,  foi  realizada  no  Convento  dos  Capuchos,   dado   a   Casa   da   Cerca   ter   estado   encerrada   ao   público   ao   longo   desse   ano,   para   a   realização   de  obras.    37  Exposição  integrada  no  Festival  de  Teatro  de  Almada.  

14    

Tal  como  nas  exposições  colectivas,  em  que  as  obras  são  distribuídas  pelos  diversos  espaços  

da   Casa   da   Cerca   de   acordo   com   as   suas   características   (projecto,   dimensões,   técnicas),  

também  os  desafios  lançados  aos  artistas  para  as  exposições  individuais  (ou  propostos  pelos  

artistas 38)   correspondem   a   um   discurso   de   montagem   que   permita   não   apenas   uma  

correcta  leitura,  como  uma  encenação  adequada  e  sedutora.  

Ou   seja,   em   termos   expositivos,   o  modo   como   as   obras   são   apresentadas   tenta   criar   um  

envolvimento  com  estas,  e  facilitar  a  compreensão  dos  pressupostos  de  cada  autor.    

Assim,  por  exemplo,  em  2000,  o  pintor  Domingos  Rego  expôs  na  Casa  da  Cerca  um  conjunto  

de   sete   obras   de   pintura   e   de   outras   tantas   de   desenho.   Os   dois   núcleos,   expostos   em  

diálogo,  abordavam  dois  temas  complementares:  as  sete  virtudes  (pintura)  e  os  sete  vícios  

(desenho).   As   pinturas,   de   dimensões   generosas   das   pinturas   foram   colocadas,   como  

habitualmente,   nas   paredes   da   galeria.   Os   sete   desenhos,   de   dimensões  mais   diminutas,  

ficaram   resguardados   em   vitrinas.   A   inclinação   da   superfície   destas   permitia   uma   visão  

confortável;   e   as   vitrinas,   colocadas   ao   lado   das   pinturas,   ofereciam   aos   desenhos   que  

guardavam  um  contraponto  evidente  que,  não   cortando  a   linha  de   visão  das   telas,   criava  

uma   segunda   linha   de   observação,   que   simultaneamente   iluminava   a   sua   leitura   e  

sublinhava  o  seu  carácter  intimista,  complementar  à  obra  pictórica.  

39  

Ao   longo   dos   anos,   a   cada   projecto   expositivo,   nos   diferentes   espaços   da   Casa   da   Cerca,  

correspondeu   uma   nova   aposta   na   adaptação   do   espaço.   Considerando   os   diferentes  

espaços  expositivos  do  edifício  e  as  suas  características  (acesso,  dimensões,  iluminação,  tipo  

de  chão,  paredes  ou  tecto),  a  montagem  das  obras  tem  sempre  de  ter  em  conta  todas  essas                                                                                                                            38  A  Casa  da  Cerca  recebe  inúmeras  propostas  de  artistas  para  a  realização  de  exposições.  Essas  propostas  são  sempre   analisadas,   sendo   ponderada   a   sua   adequação   ao   programa   geral,   anual,   elaborado   pela   equipa   da  Casa.   A  maior   parte   das   vezes,   porém,   as   exposições   partem   de   convites   lançados   aos   artistas   pela   própria  instituição.  39  Exposição  Sete  Virtudes.  Sete  Vícios.  Domingos  Rego  (2000),  Galeria  do  Pátio.  Arquivo  da  Casa  da  Cerca.  

15    

variantes.   Por   exemplo,   obras   que   devam   ser   expostas   na   capela,   na   qual   existem   vários  

elementos  decorativos  (painéis  azulejares,  o  altar),  onde  o  pé  direito  apresenta  dois  níveis  

de   grandeza,   em   que   a   iluminação   coloca   alguns   obstáculos   e   cujo   acesso   é   feito  

directamente  a  partir  da  rua  (como,  aliás,  acontece  na  Galeria  do  Pátio),  têm  de  considerar  

todos  esses  aspectos.  Do  mesmo  modo,  na  Cisterna,  há  a  considerar  o  acesso  (mais  estreito  

do   que   qualquer   outro   na   Casa),   a   humidade   intrínseca   do   espaço,   e   o   desenho   da   sala,  

condicionado  pela  planta  de  secção  circular.    

As   características   dos   espaços,   embora   problematizadoras,   podem   tornar-­‐se   mais-­‐valias  

num  projecto  expositivo.  No  caso  da  Capela,  são  de  destacar  as  intervenções  realizadas  no  

contexto  das  individuais  de  Rui  Sanches  e  de  Pedro  Calapez.  No  primeiro  caso,  as  peças  de  

escultura   foram   colocadas   em   estratégico   diálogo   formal   com   a   envolvente,   em   plintos  

estreitos   que   permitiam   a   circulação   e   criavam  um  percurso   livre;   no   segundo,   desenhos  

que   remetiam   para   os   exercícios   preparatórios   das   obras   criadas   por   Calapez   para   o  

santuário   de   Fátima   foram   expostos   em   altura,   estabelecendo   linhas   paralelas   à  

verticalidade  do  altar  e  fazendo  uma  actualização  simbólica  e  plástica  dos  temas  religiosos  

abordados.  O  quase  exclusivo  uso  do  branco  nestes  desenhos  criava  um  excelente  diálogo  

com  o  cenário  pré-­‐existente.  

Na   Cisterna,   salientam-­‐se   as   intervenções   de   Fátima   Pinto   (2009)   e   de  Maria   Pia  Oliveira  

(2009).  No  primeiro  caso,  a  exposição  de  desenho  e  pintura  de  Fátima  Pinto  foi  dividida  por  

dois   espaços:   o   Salão  Nobre,   onde   figurou   a  pintura,   e   a   Cisterna,   onde   ficaram  patentes  

cinco  cadernos  moleskine.  Dada  a  configuração  do  espaço  e  também  as  características  dos  

cadernos,   foram   concebidas   vitrinas   desenhadas   em   linhas   curvas   que   assim  

acompanhavam   o   traçado   da   cisterna   e   acolhiam,   como   se   fossem   leques,   os   cadernos  

abertos,  revelando  os  desenhos  realizados  em  sequência  panorâmica.  O  efeito  cenográfico,  

acentuado   pela   iluminação   e   pela   inserção   de   um   vermelho   museu   no   fundo   desses  

expositores  —  um  tom  usado  em  pormenores  de  alguns  cadernos  e  que  deu  também  mote  

a   apontamentos   de   design   gráfico   do   catálogo   —   ficou   assim   amplamente   servido,  

permitindo  simultaneamente  uma  boa  leitura  desses  trabalhos  de  cerca  de  dois  metros  de  

comprido.    

 

16    

40  

No  segundo  caso,  a  escultora  Maria  Pia  Oliveira  em  relação  com  a  instalação  de  exterior,  em  

que  uma  película  reflectora  “captava”  o  céu  sobre  o  muro  da  Cerca,  optou  por  “aprisionar”  

uma  nuvem  no  interior  da  cisterna.  O  moroso  labor  de  um  desenho  trabalhado  pela  artista  

ao   longo   de   várias   semanas,   na   criação,   com   fios   de   nylon,   de   uma  nuvem  que   tombava  

num  espaço   improvável,  ofereceu   também  um  dos  pretextos  expositivos  para  a  discussão  

entre   os   limites   do   desenho/escultura/instalação.   Cenograficamente,   o   aspecto   simbólico  

de   uma   nuvem   ‘aprisionada’   numa   cisterna   tornava-­‐se   uma   experiência   de   surpresa   e  

encantamento.    

41  

                                                                                                                         40  Exposição  Margens.  Fátima  Pinto  (2009),  Cisterna.  Esta  exposição  teve  dois  núcleos:  um  de  pintura,  no  antigo  Salão  Nobre   (piso   superior,   ala  norte)   e  de  desenho,  na  Cisterna.  Aqui,   vista  parcial   da  Cisterna.   Imagem  do  período  de  montagem.  Arquivo  da  Casa  da  Cerca.  Fotografia  de  Rosa  Reis.  

17    

No  final  de  2004,  um  sismo  que,  escassas  semanas  depois,  causaria  a  derrocada  de  parte  do  

telhado  da  área  expositiva  (a  nascente  do  edifício),  propiciaria  obras  de  renovação  nas  alas  

nascente  e  norte,  que  alterariam  significativamente  o  aspecto  e  as  possibilidades  da  galeria  

principal.  Em  termos  de  salubridade,  a  inclusão  de  isolamento  térmico,  no  telhado  das  alas  

nascente  e  norte,  contribuiu  para  melhorar  as  condições  espaciais.  Além  disso,  no  caso  da  

ala  nascente,  o  pé  direito  da  área  expositiva  aumentou  bastante,  dada  a  opção  de  manter  

aparente  o  travejamento42,  não  o  ocultando  com  um  tecto  rebaixado  como  acontecia  antes  

da   intervenção.   Passou   assim   a   ser   possível   a   exposição   de   peças   de   dimensões   mais  

generosas.  Desapareceram  também  por  completo  os  vestígios  da  antiga  compartimentação  

do  espaço,  existindo  actualmente  uma  nave  única,  marcada  apenas  pela   fenestração   (que  

pode  ou  não  ser  camuflada,  recorrendo-­‐se  a  painéis  móveis)  e  que  permite  uma  plasticidade  

muito  maior  do  espaço,  pela  inclusão  ou  remoção  de  paredes  divisórias.  No  conjunto,  estas  

alterações   permitem   hoje   mais   flexíveis   opções   de   montagem.   Mais   uma   vez,   de   um  

embaraço  conjuntural,  nasceram  soluções  que  melhoraram  o  equipamento.  

 

43  

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         41  Exposição  Clothilde   e   Celeste.  Maria   Pia  Oliveira   (2009),   Cisterna.  Arquivo  da  Casa  da  Cerca.   Fotografia   de  Rosa  Reis.  42  Obras  com  risco  da  Arquitecta  da  CMA,  Maria  José  Lopes.  43  A   exposição   Suspender   o   Ar.   Cristina   Ataíde   (2010)   ocupou   toda   a   Casa   (com   a   excepção   da   Cisterna)   e  compreendeu  ainda  uma  instalação  no  Chão  das  Artes-­‐Jardim  Botânico.  Aqui,  vista  da  Galeria  Principal,  onde  ficou  exposto  este  desenho  de  25  m  de  comprimento,   feito  de  propósito  para  o  espaço.  Arquivo  da  Casa  da  Cerca.  Fotografia  de  Rosa  Reis.  

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44  

 

 

7.  DISCURSOS  DIVERGENTES.  ALGUNS  EXEMPLOS  PEDAGÓGICOS.  

 

Uma  exposição  é  sempre  um  discurso  dotado  de  várias  complexidades.  Por  um  lado,  lida-­‐se  

com  a  obra  de  um  ou  mais   artistas  —  e,   consequentemente,   com  as  expectativas  que  os  

próprios  autores  têm  em  relação  ao  modo  de  comunicar  o  seu  trabalho.  Por  outro,   lida-­‐se  

também  com  o  ponto  de  vista  daquele  ou  daqueles  que  a  pensaram.    

Sendo   uma   exposição   o   resultado   do   esforço   de   um   vasto   colectivo,   a   questão   da  

comunicação   é   também   um   dos   elementos   mais   sensíveis   a   gerir.   Por   um   lado,  

considerando  o  facultar  de  informação  eficaz  para  o  exterior,  para  a  necessária  divulgação,  

seja  sob  a   forma  de  cartazes,  convites,  anúncios  ou   informação  à   imprensa.  Por  outro,  no  

circuito   interna   da   instituição,   tanto   em   termos   pedagógicos,   na   relação   com   o   Serviço  

Educativo  (face  da  comunicação  do  estabelecimento  com  os  diferentes  públicos),  como,  ao  

chegar  ao  momento  em  que  é  preciso  encenar  esses   sentidos  no  espaço,   com  a  ajuda  de  

vários  outros  profissionais.  Além  dos  constrangimentos  financeiros  que  é  imperativo  ter  em  

conta  desde  o  início,  há  outros  aspectos  a  considerar.    

                                                                                                                         44  Vista  da  Galeria  Principal  durante  a  exposição  Sobre-­‐Natural:  10  olhares  sobre  a  Natureza  (2011).  Arquivo  da  Casa  da  Cerca.  Fotografia  de  Rosa  Reis.  

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Para  tanto,  saber  ouvir  os  diferentes  especialistas  é  algo  absolutamente  necessário.  Pensar  

uma   parede   de  madeira   sem  o   saber   específico   de   carpinteiros,   quanto   à   resistência   dos  

materiais,  por  exemplo,  pode  sair  caro.  Saber  que  uma  determinada  tinta  precisa  de  várias  

demãos  e  de  X  tempo  para  secar  para  ficar  em  condições  de  receber  as  obras  (ou  textos  de  

vinil,  por  exemplo,  que  não  colam  sobre  superfícies  húmidas)  é  igualmente  significativo.  Ter  

uma  clara  noção  da  luz  a  usar  (intensidade,  temperatura,  recorte,  modo  de  incidência,  etc.)  

e   das   condições   existentes   para   todas   as   necessidades   concernentes   à   utilização   de  

aparelhos  electrónicos   (imagem  e/ou  som)  é  também  determinante  e  não  apenas  quando  

existem  núcleos  de  vídeo.  Definir,  ainda,   se  os   textos  de  parede   (e  demais   informação  de  

exposição,  como  folhas  de  sala  ou  tabelas)  vão  ser  traduzidos  ou  não  (e  contar,  desde  logo,  

com  o  tempo  não  apenas  da  sua  redacção,  mas  também  da  sua  tradução,  além  do  design  e  

impressão);   manter   uma   clara   noção   da   relação   entre   os   vários   elementos   (cor   geral   —  

branco  ou  encenação  cromática  mais  forte?),  decidir  em  relação  à  existência  de  expositores,  

molduras,   plintos   (ou   ausência   de   todos   estes   elementos?45 ),   em   suma,   definir   uma  

montagem   (e   tudo   o   que   à   exposição   diz   respeito)   é   contar   com   um   sem   número   de  

pormenores  que  concorrem  para  uma  clara  leitura  do  projecto  artístico  e  curatorial.  Ora,  é  

aí  que  entram  os  obstáculos.    

Em  2008,  a  mostra  colectiva  O  Desenho  Dito  revelar-­‐se-­‐ia  um  processo  bastante  complexo.  

Por   um   lado,   dadas   as   suas   exigências   em   termos   expositivos   (a   presença   de   obras   de  

desenho   português   do   século   XVIII,   oriundas   da   colecção   do   MNAA,   obrigou   a   cuidados  

extra,  tanto  em  termos  de  montagem  como  de  conservação  preventiva  e  até  de  segurança),  

colocou  desafios  concretos  que  não  se  prenderam  apenas  com  o  percurso  e  a  cenografia  do  

espaço,  incluindo  a  iluminação.  Do  ponto  de  vista  gráfico,  revelou-­‐se,  assim,  uma  das  mais                                                                                                                            45  Que  discurso  e  que  perspectivas  se  pretende  passar?  A  obra  a  expor  deve  sublinhar  o  seu  carácter  museal  —  daí   o   plinto,   a   moldura  —   ou   o   artista   e/ou   o   curador   pretende(m)   uma  mais   evidente   dessacralização   do  objecto,  um  discurso  mais  directo,  sem  acessórios  sumptuários  que  distraiam  o  espectador?  E  se  a  peça  ficar  completamente   à  mercê   do   bom   senso   do   visitante   (ou,   noutros   casos,   à  mercê   dos   elementos,   quando   se  trata  de  criações  realizadas  com  materiais  perecíveis  ou  frágeis  e  que  são  expostas  no  exterior,  sem  qualquer  tipo   de   protecção)   no   que   diz   respeito   à   sua   integridade   física,   por   decisão   consciente   do   artista,   como   se  podem  depois  medir  os  eventuais  acidentes?  Algumas  obras  de  arte  contemporânea  têm  morte  eminente.  Pela  sua  natureza  efémera,  algumas  que  são  pensadas  para  viver  da  sua  exclusiva  e  temporal  relação  com  o  espaço  morrerão  ou  desvirtuar-­‐se-­‐ão  ao  ser  desligadas  do  lugar  para  que  foram  pensadas.  Algumas  poderão  voltar  a  ser   expostas   noutro   lugar;   mas,   então,   adquirirão   outra   natureza.   Outras   ainda,   sujeitas   aos   acidentes  meteorológicos,   determinantes   na   aceleração   de   processos   degenerativos,   estão   à   partida   condenadas   a  cessar.   A   responsabilidade   do   curador  —   ou   da   instituição  —   perante   objectos   tão   óbvia   e   definitivamente  perecíveis   deverá   ser   diversa   da   que   tem   sobre   outras   de   assumida   perenidade   e   monumentalidade?   A  resposta  é  obviamente  negativa.  Mas  como  se  avaliam  os   riscos  materiais,  patrimoniais  e  emocionais  dessas  perdas?  

20    

difíceis  mostras   a   coordenar,  mas   também   uma   das  mais   pedagógicas.   Pontos   de   vista   e  

expectativas  muito  distintas  entre  as  duas   comissárias  e  os  designers  envolvidos   (quer  na  

realização  do  catálogo  quer  no  design  gráfico  de  conteúdos  expositivos  —  textos  de  parede,  

títulos,   escolha   de   imagens   históricas   e  modos   de   apresentação)   levantaram  questões   de  

grande   pertinência   no   que   diz   respeito   à   linguagem   formal   que   envolve   a   partilha   e   o  

discurso  teórico  estabelecido  em  torno  de  obras  de  arte.    

O   resultado   final   ficou   aquém   das   expectativas   de   ambas   as   equipas   envolvidas,   mas   o  

balanço  não  pôde  deixar  de  ser  positivo.  Por  um  lado,  em  termos  de  conteúdos  pedagógicos  

e   artísticos,   a  mostra   ganhou  o   interesse   generalizado  do  público   visitante.   Por   outro,   no  

que   diz   respeito   à   comunicação   entre   os   diversos   profissionais   envolvidos   (considerando  

aqui  os  elementos  da  instituição  e  os  exteriores,  responsáveis  pelo  design)  foi  também  um  

passo   importante   na   aprendizagem,   tendo   sido   confirmado,   desde   então,   o   que   se   deve  

fazer  ou  evitar,  na  apresentação  de  um  programa  da  equipa  curatorial  aos  designers.      

 

 

8.  EM  JEITO  DE  CONCLUSÃO  

 

Com   raras   excepções,   todos   os   projectos   expositivos   embatem   em   obstáculos.   Se   o  

desenho,   como   qualquer   expressão   criativa,   enquanto   se   mantém   no   domínio   puro   da  

imaginação,  é  absolutamente  livre  e  possível,  ao  materializar-­‐se  sofre,  como  tudo  na  vida,  as  

contingências  expectáveis,  colocadas  pelo  real.  Ainda  assim,  as  ilações  e  as  lições  a  tirar  são  

positivas.   Um   dado   insucesso   num   determinado   ponto   de   vista   pode,   como   é   desejável,  

tornar-­‐se   uma  mais-­‐valia   de   conhecimento   para   experiências   e   exigências   futuras.   Como  

dizia  um  curador  famoso,  “fazer  a  curadoria  de  uma  exposição  em  que  nada  pudesse  falhar  

seria  uma  perda  de  tempo”46.    

Alguns   poderão   interrogar-­‐se   sobre   a   natureza   desses   riscos.   A   resposta   é   múltipla.   Em  

geral,  há  vários  possíveis  —  e  mais  comuns  do  que  seria  desejável:  o  primeiro  de  todos,  o  de  

não  interpretar  correctamente  a  obra  que  se  quer  expor,  no  contexto  da  produção  do  autor;  

                                                                                                                         46  Curating  a  show  in  which  nothing  could  fail  was,  to  Szeemann,  a  waste  of  time.  In  LEVI  STRAUSS,  David,  “The  bias  of  the  world:  curating  after  Szeemann  &  Hopps”,  in  Cautionary  Tales:  Critical  Curating,  Apexart,  New  York,  2007,  p.  24.    

21    

o   risco   de   a   colocar   numa   situação   espacial   que   a   desvirtue;   o   de   a   dar   a   ler47  de  modo  

excessivamente   obscuro   (tornando-­‐a   inacessível)   ou   excessivamente   claro   e   literal  

(apoucando-­‐a,   destituindo-­‐a   da   sua   inerente   complexidade).   Depois,   há   também   os  

destinatários  do  nosso  trabalho  e  os  modos  de  concretização  da  comunicação:  os  diversos  

públicos  a  que  desejamos  chegar.  Incluindo  os  pares,  outros  artistas,  críticos.  E,  não  menos  

importantes,  os  novos  públicos  que  pretendemos  ganhar.  

Os   museus   são   hoje   internacionalmente   reconhecidos   como   espaços   geradores   e  

agenciadores  de  cultura,  poderosos  dinamizadores  económicos.  Ainda  assim,  em  Portugal  a  

situação  resiste  à  mudança,  havendo  poucos  espaços  museais  que  apresentem  verdadeiros  

block  busters.  Não  queremos  com  isto  dizer  que  todos  os  museus  devam  ter  a  preocupação  

de   atrair   multidões   como   se   disso   dependesse   a   sua   legitimidade   patrimonial,   cultural   e  

artística,  mas  apenas  que  a  vocação  pública  destes  espaços  tem  o  dever  de  ter  em  conta  a  

existência  de  múltiplos  públicos  quando  pensa  a  sua  programação.  Nesse  sentido,  e  cientes  

de  que,  não  se  pode  agradar  a  gregos  e  troianos,  e  cientes  ainda  da  desconfiança  que  tantos  

mantêm   ainda   face   aos   espaços   dedicados   à   arte,   sobretudo   à   contemporânea,   a  

programação   da   Casa   da   Cerca   continua   a   afirmar-­‐se   como   exploratória.   Tentando   não  

sucumbir   a   preconceitos   nem   cair   em  maniqueísmos.   Assim,   acolhemos   o   académico   e   o  

vanguardista,  o  científico  e  o  expressivo.  Sem  juízos  prévios.  Apenas  com  muita  curiosidade  

e   vontade   de   partilhar   o   nosso   ponto   de   vista.   Mantendo   bem   vivo   o   nosso   desejo   do  

Desenho.  

 

                                                                                                                         47  Os   modos   de   dar   a   ler   excedem,   logicamente,   os   aspectos   mais   físicos   da   montagem,   passando   pelas  propostas  mais   abrangentes  do  Serviço  Educativo,  nas  acções  pensadas  para   todos  os  públicos,  dos   infantis,  aos  jovens,  adultos  e  seniores,  seja  em  contexto  escolar  ou  livre.