25
Entre o sagrado e o profano: a ritualização do noivado em uma sociedade em transformação Breno Rodrigo de Oliveira Alencar PPGSA/UFPA Introdução Numa sexta-feira de janeiro do ano de 1994, Thales de Azevedo, publicou no jornal A Tarde um artigo revelando sua profunda preocupação com o namoro, um ritual que tinha pouco a pouco perdido sua magia. De acordo com este antropólogo, e articulista de ocasião, apesar do assunto ter caído no gosto popular com a publicação de sua As regras do namoro à antiga, em 1975, "Pouco resta do namoro propriamente dito. Há ainda namoro, felizmente. Mas a palavra cobre e caracteriza uma realidade bastante diversa. E talvez a saudade do verdadeiro namoro, a necessidade de algo daquele gênero, romântico, poético, delicado, que faz recordar o velho relacionamento afetivo e afetuoso em ordem ao casamento. Transformaram-se as relações entre os sexos numa direção crua, imediatista e, muitas vezes, quase sempre sem a perspectiva de honesta, apaixonada, união conjugal. A saudade desse relacionamento, a curiosidade por aquilo que foi possivelmente um dos atrativos atuais do namoro à antiga. Não que este possa voltar com a universalidade que gozou, porém, o retorno a algo idealista, simples, sem deixar de ser complexo, respeitoso e exploratório dos temperamentos, das idéias, dos sonhos dos implicados. Esse foi, sob aquela inspiração, um tempo de sonhos, de esperanças, de planos que se completariam no compromisso, no, pedido, no noivado, finalmente, no casamento e numa realização tranqüila, paciente, realista." (Jornal A Tarde, xxxxx 1994) Sem que nos deixemos levar pela tentação do anacronismo, é preciso reconhecer que o tom saudosista e até certo ponto moralista presente nesse texto revela uma personagem situado num contexto social conservador, mas que tensionado pela relação entre tradição e modernidade, fora capaz de perceber com seu olhar "treinado", as mudanças vividas pela sociedade da qual ele fazia parte e na qual exercia um profundo protagonismo. Suas opiniões carregavam consigo o som de vozes sufocadas pelo tempo. Thales de Azevedo era um homem de formação religiosa e criado num meio intelectual, cuja visão de mundo o aproximava muito dos pensadores que vislumbravam um projeto de interpretação do Brasil, que no contexto da segunda metade do século XX passava por um profundo processo de transformação em sua estrutura social, econômica

Paper - ALAS. Breno

Embed Size (px)

Citation preview

Entre o sagrado e o profano: a ritualização do noivado em uma sociedade em transformação

Breno Rodrigo de Oliveira Alencar

PPGSA/UFPA

Introdução

Numa sexta-feira de janeiro do ano de 1994, Thales de Azevedo, publicou no jornal A Tarde um artigo revelando sua profunda preocupação com o namoro, um ritual que tinha pouco a pouco perdido sua magia. De acordo com este antropólogo, e articulista de ocasião, apesar do assunto ter caído no gosto popular com a publicação de sua As regras do namoro à antiga, em 1975,

"Pouco resta do namoro propriamente dito. Há ainda namoro, felizmente. Mas a palavra cobre e caracteriza uma realidade bastante diversa. E talvez a saudade do verdadeiro namoro, a necessidade de algo daquele gênero, romântico, poético, delicado, que faz recordar o velho relacionamento afetivo e afetuoso em ordem ao casamento. Transformaram-se as relações entre os sexos numa direção crua, imediatista e, muitas vezes, quase sempre sem a perspectiva de honesta, apaixonada, união conjugal. A saudade desse relacionamento, a curiosidade por aquilo que foi possivelmente um dos atrativos atuais do namoro à antiga. Não que este possa voltar com a universalidade que gozou, porém, o retorno a algo idealista, simples, sem deixar de ser complexo, respeitoso e exploratório dos temperamentos, das idéias, dos sonhos dos implicados. Esse foi, sob aquela inspiração, um tempo de sonhos, de esperanças, de planos que se completariam no compromisso, no, pedido, no noivado, finalmente, no casamento e numa realização tranqüila, paciente, realista." (Jornal A Tarde, xxxxx 1994)

Sem que nos deixemos levar pela tentação do anacronismo, é preciso reconhecer que o tom saudosista e até certo ponto moralista presente nesse texto revela uma personagem situado num contexto social conservador, mas que tensionado pela relação entre tradição e modernidade, fora capaz de perceber com seu olhar "treinado", as mudanças vividas pela sociedade da qual ele fazia parte e na qual exercia um profundo protagonismo. Suas opiniões carregavam consigo o som de vozes sufocadas pelo tempo.

Thales de Azevedo era um homem de formação religiosa e criado num meio intelectual, cuja visão de mundo o aproximava muito dos pensadores que vislumbravam um projeto de interpretação do Brasil, que no contexto da segunda metade do século XX passava por um profundo processo de transformação em sua estrutura social, econômica

e política. A principal delas atingia a população que migrava para as cidades, cujo contato com novos valores e estilos de vida alterou significativamente a composição de sua paisagem mental.

Tratado por alguns como sociólogo e em certos círculos como um antropólogo Thales de Azevedo foi certamente um dos primeiros pesquisadores a notar que essa paisagem mental não era condicionada ipsis litteris pelas forças irresistíveis da economia capitalista. Sua ênfase se dirigia então, para as margens do processo civilizatório, tendo transitado com habilidade entre o domínio das normas e dos ritos que que compõem a cultura e nos permitem identificar os pontos de mutação social.

A escolha de sua obra neste trabalho tem com fulcro, portanto, compreender a transição entre o tradicional e o moderno no que se refere as relações afetivas, que entendemos ser o átomo das relações sociais seja porque permitem identificar os traços da socialização e da noção de pessoa presente numa dada sociedade, como também condicionam a formação da unidade familiar, seja ela biológica ou afetiva, elemento indispensável na análise da reprodução social. Portanto, situamos este trabalho no âmbito de um estudo comparativo que pretende ser ao mesmo tempo histórico e antropológico voltado para a compreensão da interação sócio-afetiva no contexto do namoro e do noivado, tomando como referência o modelo tradicional presente nos escritos de Thales de Azevedo e as observações obtidas a partir de um estudo etnográfico sobre o noivado em Belém, capital do Pará, entre os anos de 2009 e 2015. A técnica de pesquisa utilizada no primeiro cenário é o da leitura e revisão bibliográfica enquanto o segundo se baseia na observação participante, entrevistas e uso de questionário. A observação participante se deu em cursos de noivos oferecidos por duas paróquias católicas de Belém1. As entrevistas e os formulários foram aplicados a casais católicos e não católicos de forma direta e/ou indireta.

As questões que orientaram a abordagem do objeto envolveram principalmente a configuração do noivado dito tradicional em comparação ao noivado tratado como moderno e as variáveis que condicionaram tanto um como outro. Pretendemos demonstrar que as transformações presentes no interior das relações sócio-afetivas não opõem tradição e modernidade, mas, pelo contrário, permitem a comunicação entre valores, cuja tensão resultante favorece o exercício da reflexividade sobre a relação entre indivíduo e sociedade ao mesmo tempo que imprime no ideal da conjugalidade um traço da cultura brasileira.1 Os dados obtidos neste segundo cenário se dão no âmbito do projeto de pesquisa “Entre o sagrado e o profano: práticas rituais contemporâneas em contextos de socialização pré-nupcial” desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará e que tem como escopo a compreensão acerca do significado cultural dos ritos pré-nupciais contemporâneos e os elementos simbólicos que estão presentes no processo de construção da identidade conjugal. Em busca de uma sistematização que permitisse compreender o fenômeno do noivado como experiências ritual, o trabalho orientou sua análise baseado em três métodos: o estatístico, baseado na aplicação de formulários semiestruturados; o histórico, baseado na consulta a fontes documentais históricas; e o etnográfico, baseado no registro em Diário de Campo de minha experiência como sujeito da pesquisa e membro da Equipe de Preparação para a Vida Matrimonial pertencente à Pastoral Familiar da Paróquia da Santíssima Trindade da Pastoral. O objetivo alcançado com estas metodologias foi traçar o perfil social dos noivos, o significado histórico e cultural do noivado, bem como identificar as práticas e representações dos sujeitos envolvidos por este fenômeno.

Noivado Tradicional?

O mês de maio em Belém, como em qualquer outro lugar do Brasil (e suspeito que na maioria dos países do Ocidente) guarda uma peculiaridade em nosso calendário. Ele é tradicionalmente conhecido como o “mês das noivas”, onde se alimenta a crença de que a celebração do casamento neste período é auspicioso e pode influir positivamente na vida do novo casal. Verdade ou superstição o fato é que a fim de atender noivos ansiosos, milhares de feiras e eventos voltados para o mercado do casamento tem se espalhado pelo país nesse período. Em recente passagem por Recife tomei conhecimento de uma feira que segundo os organizadores era considerada a maior desse ramo no Norte e Nordeste do Brasil. Dias antes tinha acontecido em São Paulo a maior feira da América Latina.

Estas feiras são normalmente organizadas em grandes centros de exposição, recrutam milhares de funcionários, possuem uma programação variada, apresentam inovações no setor de bolos, decorações, roteiros de lua-de-mel e apresentações de palestrantes considerados verdadeiros gurus na área. Tudo para deixar os noivos mais seguros e tranquilos (!) na hora de experimentar o que o slogan desses eventos considera ser “o momento mais especial da vida de um casal”.

Sem perder de vista que se estamos falando de uma tradição estamos abordando um fenômeno histórico, portanto socialmente construído, cabe perguntar se maio sempre foi considerado o mês das noivas? Porque ele é tradicionalmente considerado o mês das noivas?

Em pesquisa anterior (ALENCAR, 2008), ficou demonstrado que o número de casamentos no mês de maio representou 16,6% do total de casamentos religiosos entre os anos de 1995 e 2006. Os trabalhos de Campos (2003) e Nadalin (1994) enfatizam que a escolha deste mês para a celebração do casamento envolve um simbolismo religioso marcado pelo calendário litúrgico. Assim, o mês de abril, por exemplo, é, deste ponto de vista, pouco atraente para a celebração litúrgica do casamento devido estar envolvido pelo período do advento (páscoa), isto é, tempo de reclusão espiritual e carnal, portanto impróprio para os inevitáveis festejos que prosseguem a este tipo de ritual. Da mesma forma Marcílio (1977), no contexto da demografia histórica, aponta para o fato de que o movimento sazonal dos casamentos no período colonial e até bem recentemente encontrava-se em íntima relação com a concepção cristã de que o período entre o Advento e a Quaresma é um “tempo proibido”, ou seja, uma época em que deveriam ser evitados os casamentos e as práticas sexuais. Também Nauffal Filho e Andreazza ao abordarem a obra de Gautier e Henry observam que “em função da interdição religiosa de se casar durante a Quaresma e durante o Advento, existiam muito poucos casamentos em março e abril e quase nenhum em dezembro. Os casamentos eram celebrados em fevereiro e em novembro; entre estes dois picos maiores, situa-se o pico agudo de julho precedendo a crise dos meses de grande trabalho” (NAUFFAL FILHO, 1994). Acreditamos que por Belém ser uma cidade com forte influência mariana, em razão do fator exponencial que o Círio de Nazaré exerce sobre a consciência de seus habitantes, que o casamento neste mês, o "mês de Maria", tem forte

fundo religioso2. Logo, se é verdade que no passado o casamento em Belém era realizado por motivos religiosos e tinha o mês de maio, tradicionalmente conhecido como o mês de Maria, no atual cenário ele se dá em dezembro, por motivos econômicos. Neste mês a maioria dos noivos recebem décimo terceiro, e aqueles que desfrutam das tradicionais festas de final de ano e das férias de janeiro, utilizam seus recursos para viagens de lua-de-mel para viajar ao hemisfério sul (sul e sudeste do Brasil, Motevideo no Uruguay, Buenos Aires na Argentina e Santiago no Chile) onde é verão, ou para ir ao Hemisfério Norte, Europa ou Estados Unidos, onde a temporada de inverno atrai muitos casais. Aqueles que não desfrutam de tamanho recurso, aproveitam para descansar ou organizar o novo lar.

Entretanto, mais interessante do que saber o motivo para casar neste ou naquele mês é curioso observar que as pessoas renovam, seja lá em que mês for, a crença no casamento. Quem casa acredita ou espera que ele que ele dê certo, de que vale a pena unir-se a alguém supondo que viverão felizes para sempre ou, numa versão mais moderna, enquanto houver química. Quando observo pessoas prestando culto ao casamento através da crença em meses auspiciosos, pagamento promessas em procissões pelo encontro da “alma gêmea”, em afogamentos de estatuetas, tenho curiosidade em saber se elas leem jornais, consultam estatísticas oficiais ou possuem diário, porque um dos temas mais comuns de nossa época atual é a existência de um crise envolvendo o casamento e a família. Fala-se (e escreve-se) muito sobre separações, a crescente onda de divórcios, casamentos infelizes, famílias desestruturadas, filhos de pais separados que, psicologicamente abalados, tornam-se mais suscetíveis ao uso de drogas e ao cometimento de crimes. A lista é enorme e quase tão grande quanto o otimismo daqueles que rejeitam a relação entre família, casamento e uma suposta crise de valores.

Havendo uma representação generalizada de que há uma crise de valores a pergunta que surge é: de que valores estamos falando? Que normas ou regras parecem estar sendo quebradas? Se podemos encontra-las onde e quando encontraremos os eventos que marcam sua ruptura. Sugerimos que Thales de Azevedo apresenta até o presente momento o melhor esclarecimento sobre a temática, uma vez que debruçando-

2 De acordo com Bassanezzi (1998), o ritmo sazonal dos casamentos revela claramente a adesão das pessoas às normas impostas pela sociedade. Reflete costumes, tradições, mentalidades religiosas, atividades econômicas, etc. Por isso, o impedimento ou estímulo para que os casamentos se realizem, neste ou naquele período, pode variar de época para época, de região para região e apresentar-se de maneira diversa entre as diferentes categorias sociais (BASSANEZZI, 1988, p. 146).

se sobre o que diz ser “ritos de afeto”3 buscou compreender a evolução do modo tradicional ou “à antiga” dos relacionamentos amorosos.

Segundo Souza, o “namoro à antiga” e os modos de vida burgueses teriam chegado ao Brasil com a mudança da Corte portuguesa e da maior comunicação com os países estrangeiros, devido à abertura dos portos e à ida dos filhos das camadas abastadas para as universidades europeias. Esses eventos teriam colocado a sociedade brasileira, até então dominada pela ideologia patriarcal e religiosa, em contato com os valores individualistas4. Como consequência ao longo do século XIX, paulatinamente, os casamentos arranjados segundo os ditames patriarcais, em que predominava o

3 Há certamente um equívoco na utilização do conceito de rito por Thales de Azevedo, que para ele é usado indiscriminadamente para definir o namoro e o noivado. Por rito entendemos ações roteirizadas, isto é, com padrões fixos e temporalmente limitadas, como escovar os dentes ou participar de uma missa. Ritual, por sua vez, descreve processos de transição entre status, cujas ações estão orientadas para um fim determinado mas que necessariamente não possuem padrões definidos e um tempo certo para sua realização. Esta definição por considerar que apesar de ser ambígua ainda assim ela é útil para nossa descrição e análise. O noivado tal como o conhecemos é, por assim dizer, constituído por inúmeros ritos (troca de alianças, chá de panela, despedida de solteiros) , mas que pressupõe um ritual cujo objetivo é o cumprimento de uma promessas de vínculo conjugal sem data determinada para ocorrer. Na concepção de Durkheim, rituais devem ser compreendidos como regras de ação determinada que prescrevem como os homens devem se comportar diante das coisas sagradas (DURKHEIM, 1996). As coisas sagradas são aquelas que as proibições (tabus) protegem e isolam das coisas profanas. Como estamos tratando o noivado como um rito de transição, caracterizado pela mudança no status de solteiro/a para casado/a, consideramos o casamento e a família as coisas sagradas, pois tanto reúne a crença de que através dele se atinge o espírito conjugal como prescreve modos de agir e se comportar normativamente ajustados em razão das expectativas sobre o papel de marido e mulher. Os modos de agir e se comportar resultam, assim da eficácia simbólica dos ritos, que de acordo com Turner (2008), se caracterizam por promover a morte simbólica do sujeito, onde ele é separado ou se distancia das relações seculares ou profanas e terminam com um nascimento simbólico que os reúne novamente à sociedade. A principal referência para nos estudos sobre ritos de passagem é Van Gennep (2011) que reuniu vários exemplos para demonstrar que em cada ciclo da existência biográfica de um indivíduo é marcada por transições entre status. De acordo com esta definição o noivado seria marcado por eventos de separação (da família procriativa), de margem (preparação que envolve mudanças de comportamento) e de agregação (formação da nova família; conjugalidade). A existência dos rituais como mecanismos de passagem demonstram que toda sociedade é marcada por arranjos padronizados de papeis e posições, isto é, de uma estrutura que, ajustando as biografias segundo os ciclos de vida, criam expectativas entorno das práticas e dos comportamentos de cada um. Neste sentido, o rito distingue-se de outras práticas humanas, mais conhecidas como hábitos e costumes, por sua roteirização dramática, ou seja, trata-se de “um tipo de atividade expressiva e simbólica construída de múltiplos comportamentos que se dão numa sequência fixa e episódica e tendem a se repetir com o passar do tempo. O comportamento ritual roteirizado é representado dramaticamente e realizado com formalidade, seriedade e intensidade interna." (ROOK, 2007, p.83). Na mesma linha, Peirano (2000) e Segalen (2002) nos permitem classificar os ritos como dramas sociais fixos, formalizados, expressivos e rotinizados cuja dimensão simbólica se constitui de tipo especiais (emblemáticos) de eventos, mais formalizados e estereotipados, mais estáveis e, portanto, mais suscetíveis à análise da ação social, cuja codificação em termos nativos, seja por meio da linguagem ou comportamentos específicos, constitui-se como bem comum de um grupo. Possuem, assim, “uma certa ordem que os estrutura, um sentido de acontecimento cujo propósito é coletivo, uma eficácia sui generis, e uma percepção de que são diferentes” (Peirano, 2002, p. 8) e devem ser considerados "como um conjunto de condutas individuais e coletivas relativamente codificadas, com suporte corporal (verbal, gestual e de

interesse à solidariedade dos grandes grupos de parentesco, vão cedendo espaço para as exigências do amor romântico e dos casamentos por amor, “ainda que este continuasse a depender bastante das obrigações morais e até jurídicas do privatismo familial e das tradições patriarcais”.

Esse processo de mudança que tanto pode ser encontrado na literatura5 como nas revistas e jornais foi analisado por Thales de Azevedo que se destacou como pesquisador, entre outras coisas, por sua sensibilidade em explorar temas que eram incomuns às ciências sociais de sua época. Como adverte Damatta, ele abordava o cotidiano e a intimidade através do mais inusitado, do aparentemente banal, mostrando o quanto há de simbologias e significados presentes nas atividades do dia-a-dia, chamando sempre a atenção para as regras e os ritos que ordenam o comportamento humano. Influenciado pelas ideias de Herskovits, sua ideia de rito é aquela que serve para manter vivo o sentimento de pertença a um grupo, conservar a adesão aos seus modos coletivos, para unir mais estritamente seus membros e para afirmar e reforçar sua significação e sua estrutura. (Ver “Ciclos da vida, ritos e ritmos”)

A peculiaridade de Thales de Azevedo em As regras do namoro à antiga está no fato dele desnaturalizar o familiar mostrando o complexo sistema de normas, técnicas, táticas, funções e simbologias que constituem os ritos de afeto desde seus antecedentes em Portugal e no Brasil colonial. Neste sentido, aborda o namoro como

postura), caráter repetitivo e forte carga simbólica para atores e testemunhas" (Segalen, 2002, p. 32). O rito é, portanto, um fenômeno plástico, polissêmico, capaz de acomodar-se à mudança social nos termos de uma “economia da prática”, isto é, sistemas de ação (coletivos) regulados, codificados e significativos, desenvolvidos através do seu acionamento repetido por comunidades específicas e associados às suas condições de existência. O seu caráter performativo, gerado pelo envolvimento de diferentes agentes no seu progressivo aperfeiçoamento (possível pela incorporação de uma parte das suas normas e procedimentos), confere-lhes uma “lógica interna” que escapa parcialmente à consciência dos atores e que vai moldando, segundo sistemas de disposições geradoras de práticas e representações, o habitus (BOURDIEU, 2009), isto é, disposições corporais, mentais e emocionais, tornando-os mais seguros e eficientes. O fato de ser polissêmico faz do rito um componente fundamental para a maleabilidade social do noivado ao longo da história ocidental, pois seja entre indivíduos, seja entre famílias, ele sempre acomodou no interior das diferentes estruturas sociais uma espécie de vínculo de honra cujo caráter de promessa insere os sujeitos numa rede de relações. Devido essa característica elementar é que se pode dizer que os ritos pré-nupciais estão entre os mais antigos rituais da humanidade e, talvez seja um dos poucos (além da proibição do incesto), a ser geral na extensão de qualquer sociedade. 4 Na perspectiva dumontiana o individualismo é consagrado pela modernidade sendo o portador moral da autonomia e da independência ambos entendidos como valores supremos, onde a expressão da subjetividade no trato das coisas intramundanas oferece a cada indivíduo em particular a reponsabilidades por suas próprias escolhas. Fala-se de uma agência que se opõe ao holismo das sociedades arcaicas ou tradicionais (sociocentrismo) onde os desejos, as vontades e as escolhas dos indivíduos são limitados ou cerceados em nome da ordem social. 5 A literatura do período é exemplar neste sentido. De Joaquim Manuel de Macedo, passando por José de Alencar até alcançar Machado de Assis se desenvolve uma paisagem mental em que cada vez mais sujeitos devem exercer o domínio sobre seus próprios destinos, serem protagonistas de suas próprias escolhas e, obviamente, assumir as consequências nesse processo. Não se pode esquecer no entanto que essa literatura aponta personagens que vivem a tensão dessa transição levando-as a agirem por meio de estratégias que ao mesmo tempo expressem suas convicções pessoais, afetivas e valorativas mas sempre sobre o julgo das considerações morais que ainda pesam sobre suas escolhas.

uma tradição que varia segundo critérios e normas derivadas da organização social, dos sistemas de parentesco e dos tabus do incesto, que determinam, segundo padrões culturalmente estabelecidos, os cônjuges preferenciais à formação de um casal. Todo casamento termina por ser assim um encontro entre indivíduo e coletividade que mutuamente se ajustam a fim de garantir a reprodução social. Assim, a primeira fase do namoro, o flirt, era caracterizado pela troca de olhares, gestos e códigos expressivos, de forma cautelosa e discreta, evitando-se os encontros inconvenientes aos "bons costumes". O flirt seria, portanto, uma etapa anterior ao namoro, definido como uma espécie “namoro inofensivo” – um namoro sem consequências, mas que na definição de Olavo Bilac (1906) poderia não se limitar ao exercício da palavra e do olhar: às vezes, vai um pouco mais longe, até o beijo, passando pelas estações intermediárias do aperto de mão e do roçar de pé. Tratava-se de uma fase exploratória, em que “via de regra os olhares provocativos partem dos moços e são preâmbulo de palavras amáveis, de ditos chistosos, de pés-de-conversa, com os quais se firma o relacionamento”. Esses contatos iniciais poderiam acontecer nos passeios de lazer e consumo, na ida à igreja ou da janela da casa da moça, onde ficava a menina “penteada e faceira” esperando o bonde passar com o seu pretendente. Namoro elegante na rua, namoro do bonde para a janela, flirt eram tolerados entre os jovens das camadas superiores da nova sociedade burguesa e convenientes ao novo sentido do casamento. Visto como um compromisso suficientemente sério a ponto de se exigir a autorização do pai da pretendida, o namoro tinha duração certa e limitada, ocorria no domínio da casa e sob a vigilância dos parentes. Era comum o primeiro namorado ser também o futuro e único esposo, daí porque em muitos casos eles era precipitados, seja pelos pais em vista de alguma vantagem política ou econômica, ou pelos enamorados que buscavam se libertar da opressão familiar. Em virtude disso, nem poderiam durar muito pois poderiam trazer "intimidades inconvenientes", nem correr muito célere para o noivado, que já era um "compromisso indissolúvel". O namoro nesse contexto tinha a duração prevista de 1 a 3 anos.

O noivado, por outro lado, se trata de uma fase de aproximação e associação desses candidatos à cônjuge, cuja finalidade era perceber se o potencial ajuste atendia às expectativas dos interessados. Ele, porém, diferentemente do namoro, tinha uma caráter simbólico muito proeminente, sendo muito comum entre as famílias abastadas sua celebração por meio de banquetes, festas e até celebrações litúrgicas6. Ocasião para a troca de alianças, eles retratavam um compromisso solene estabelecido entre os pretendentes e seus respectivos grupos de parentes. O preço das alianças, sua origem e composição além da quantidade de brilhantes tinham o mesmo valor que o prestígio dos pretendentes, razão pela qual seu significado comportava grande influência sobre tal ato, que exercia um controle significativo na transição da vida de solteiro para a de casado. Na classe média e alta brasileira, o valor das alianças de noivado estava presente na qualidade e tipo de joias, além disso, estava associado a signos de classe e de posição social. Simbolicamente, o noivo demonstraria à família e à sociedade, o padrão de vida 6 Até o Concílio Vaticano II era muito comuns a celebração de bênção dos noivos, tão significativo era este eventos no seio da comunidade católica. Com a flexibilidade nos relacionamentos trazida pela revolução sexual das décadas de 60 e 70 e o consequente aumento no número de rompimento desses vínculos, a igreja impôs alguns critérios para oferecer tal bênção, como exigir data certa para a realização do matrimônio, o que frustrou um significativa parcela dos casais que ainda não estavam preparados para levar tão a sério sua relação.

a ser proporcionado a sua futura esposa. Neste sentido, nos mostra Azevedo, que havia uma tendência para que os homens se casassem com mulheres abaixo de seus status econômicos, isto também acontecia com relação ao nível educacional, no que se refere ao gênero. O pedido de casamento ocorria invariavelmente quando o homem reconhecia possuir as condições financeiras para assegurar uma boa estabilidade financeira na vida como casal, o que lhe exigia renda compatível, emprego fixo e moradia certa. O pedido gerava uma expectativa objetiva de união conjugal, pois durando não mais que 1 ano, tinha como certo o apoio familiar, já que era autorizado pelo pai, e a previsão de datas e condições para ser oficializado. Predominava o imaginário da fusão afetiva, tendo como representação o prestígio simbólico do casamento religioso que por sua indissolubilidade exigia apurada e reflexiva conscientização sobre o significado da escolha conjugal.

Nesse processo homens e mulheres eram transformados em maridos e esposas por meio de uma rígida disciplina (mais exigida entre as mulheres do que entre os homens) que afetava diretamente seus comportamentos, como a introspecção sexual, destinada a manter o zelo da intimidade de si e do casal (pode ser compreendida como o tabu em falar sobre sexualidade); a submissão, como forma de exercitar a obediência ao parceiro; o isolamento de gênero, caracterizado pela evitação ao vínculo com pessoas do sexo oposto não pertencentes ao círculo de parentes e do emprego; e, principalmente, a renúncia-de-si, no qual se deve desenvolver a habilidade em controlar os próprios sentimentos ou impulsos, a fim de garantir a harmonia entre o casal.

No padrão tradicional tanto o namoro como o noivado são caracterizados por retratar a intensa divisão entre os sexos, o controle exercido pela família e a igreja sobre as práticas e o disciplina no exercício das funções sociais. As ações e as expectativas decorrentes delas eram, portanto, de interesse comum. Um importante dispositivo utilizado nesse domínio foram os manuais de savoir vivre que hoje são conhecidos como manuais de etiqueta. De caráter religioso, mas com forte componente moral, estes manuais instavam os noivos a identificar traços de caráter que premeditassem eventuais prejuízos a relação conjugal. Também tratados como guias de casamento, a exemplo da Folhinha Eclesiástica e Civil, do arcebispado da Bahia, e o Compêndio de Civilidade Cristã, de Dom Macedo Costa, arcebispo de Belém, esses manuais refletiam um projeto já muito estimulado, principalmente nos séculos XVI e XVII (é só lembrar o manual Da Civilidade em Crianças, 1530, de Erasmo de Rotterdam), onde eram recomendadas várias atitudes e comportamentos a fim de que os casamentos dessem certo e fossem “bons”, estimulando preferencialmente as uniões intraclasses e afastando os interclasses com penalidades (LEVY, 2009, p. 118).

Na transição para o amor romântico esses manuais acabaram por amortecer e controlar a passagem do domínio público para o privado, isto é, substituíram o controle exercido diretamente pela família e pela igreja e passaram a servir de referência ou “conselhos” que os próprios interessados poderiam consultar quando lhes convir. Ou seja, a escolha do (a) parceiro (a) passava dos genitores e do círculo de parentes para os interessados, mas sob a supervisão ideológica da sociedade. Seguindo de perto a contribuição de Viveiros de Castro e Araújo (1977) - mesmo que isto não fique evidente em seu texto -, Thales de Azevedo se deixa orientar por uma análise que entende as relações amorosas como relações sociais, logo compreendidas num cenário mais amplo

e complexo que ao mesmo tempo pode tanto explicar como as interações se alteram, como diagnosticar que essas interações são o reflexo de mudanças sociais de larga escala. Ou seja, ainda que o amor seja o vetor para a formação de vínculos entre indivíduos que estão produzindo sua subjetividade na tensão entre holismo e individualismo, por si só é incapaz de explicar a natureza desse mesmo vínculo. Prevalece o contexto e a rede de relações que os indivíduos constroem em torno de si tendo como mediador esse sentimento que ainda é só um discurso. Por isso sua preocupação não é com as experiências dos que orientam suas práticas por representações amorosas, mas com as fases e sequências, cada uma, por sua vez, com suas normas e regras, que terminam por acompanhar as mudanças observadas nas relações estruturais, como a econômica, a política e a ideológica.

Neste cenário o principal motor das mudanças que levaram a uma profanação desse modelo "à antiga" foi a urbanização que como efeito da modernização passou a influenciar as relações amorosas de forma significativa especialmente através do footing, do passeio das moças da alta sociedade pelas novas ruas, pela frequência as “matinées”, ao teatro, às modistas, ao dentista. Argumentando entorno das mesmas questões que notabilizaram Simmel em seus ensaios sobre modernidade e urbanização, podemos notar que para Azevedo a intrincada rede de relações que se cria com o advento da maior interação social no espaço urbano está na origem do que supomos ser para ele uma expressão da profanação das relações à moda antiga. Basta lembrar que ele fora testemunha ocular das primeiras décadas após as reformas urbanas como as protagonizadas no governo de J. J. Seabra na Bahia, Antônio Lemos em Belém e Pereira Passos no Rio de Janeiro, que passaram não só a favorecer uma maior exposição pública, como ofereceram meios para uma sociabilidade “mais civilizada”, fundando uma nova ordem de valores e expulsando para as periferias as práticas marginais. Isso afetou decisivamente as relações entre os gêneros, pois se até então o domínio público era privado às mulheres, os novos bulevares favoreceram e até certo ponto exigiram delas uma maior circularidade em razão da expansão econômica com oferta de postos de trabalhos exclusivos para elas. Nas escolas que antes separavam as turmas por sexo quando não destinadas a um só destes públicos, este movimento, apesar de toda resistência das famílias conservadoras e parte do clero, promoveu ao mesmo tempo a inclusão das mulheres como fez recuar a ideia muito difundida de que elas deveriam ser preparadas exclusivamente para serem prendadas e com isso honradas para serem boas esposas7. Em outras palavras, serem escolhidas.

Ver e ser vista, para as mulheres - e também para os homens -, foi portanto uma conquista política que face a expansão sistema produtivo teve um efeito cultural 7 O aumento gradual dos efetivos femininos na rede escolar pública ocorreu durante o século XIX, quando estatisticamente havia uma menina para cada três alunos nas escolas públicas ao final do referido século. A criação das escolas “mistas” regidas por professoras no final do Império, fez aumentar significativamente a contratação de mulheres. Houve a regulamentação da carreira do magistério durante os governos provinciais e o estabelecimento de escolas normais para a formação de professores (as) nas últimas décadas do período imperial, que passaram a ser frequentadas quase que exclusivamente por moças. Houve também a implementação dos grupos escolares, na primeira década do século XX, onde o corpo docente, neste momento, já era predominantemente feminino. (Ver Stamatto, M. Um olhar na história: a mulher na escola)

significativo por favoreceu a construção de uma sociabilidade caracterizada pelo reconhecimento dos indivíduos como sujeitos públicos que deveriam ser conquistados face a concorrência que passou a se desenvolver, tal o poder que isto exerceu no imaginário de uma sociedade onde o amor não era despertado pela troca de olhares ou pelo desejo do outro, mas pelo benefício de negociações que se davam à sombra dos interessados.

A conclusão provisória que podemos chegar a partir disso é que do ponto de vista da tradição o rito dos afetos que caracterizam o namoro e o noivado no Brasil de acordo com a perspectiva de Thales de Azevedo em suas Regras são reconhecidos por terem um caráter normativo e integrarem uma rede estruturada de símbolos e significados onde os sujeitos, ainda que dotados de um reconhecimento sobre seus próprios interesses e valores encontravam-se limitados pelos interesses e valores familiares. Ele porém reconhece que a urbanização como efeito da modernidade desempenhou um papel singular nesse processo admitindo entre os pretendentes a cônjuge uma maior autonomia em seu processo de escolha e vivência afetiva. Queremos saber a partir disso como se configuram e caracterizam as relações de namoro e noivado no século XXI. Em que elas mudaram em relação as relações identificadas por Thales de Azevedo? Até que ponto ele está certo em afirmar que a modernidade exerce influência nessas práticas? Ou melhor, não estaríamos creditando a ideia de mudança social uma ilusão de que os fenômenos se alteram em virtude de um conceito um tanto quanto arbitrário, como o de modernidade?

O noivado na atualidade

Os ideais contemporâneos de relação socioafetiva enfatizam mais a autonomia e a satisfação de cada parceiro do que os laços de dependência entre eles. Por outro lado, segundo Cunha, constituir um casal demanda a criação de uma zona comum de interação, de uma identidade conjugal. Assim, o casal contemporâneo é confrontado, o tempo todo, por duas forças paradoxais. Se por um lado, os ideais individualistas estimulam a autonomia dos cônjuges, enfatizando que o casal deve sustentar o crescimento e o desenvolvimento de cada um, por outro, surge a necessidade de vivenciar a conjugalidade, a realidade comum do casal, os desejos e projetos conjugais.

Giddens afirma que o compromisso e a história compartilhada devem proporcionar algum tipo de garantia aos parceiros de que a relação será mantida por um período indefinido. No entanto, ele contrapõe esta ideia com o contexto social contemporâneo. Postula que o casamento não é mais considerado como uma “condição natural”, e que a relação é durável enquanto houver satisfação suficiente. Denomina este tipo de relação de “relacionamento puro”, o qual pode ser encerrado a qualquer momento por um dos parceiros. Assim como Bauman denomina a fugacidade do amor contemporâneo de “amor líquido”, Giddens a denomina de “amor confluente”, que se caracteriza pela finitude do laço, no momento em que este deixa de ser vantajoso para um dos parceiros, e que presume igualdade na doação e no recebimento emocional.

Esta igualdade de investimento para a manutenção da relação é descrita por Heilborn, quando afirma que os valores da família das camadas médias vêm sofrendo

mudanças significativas, devido à ideologia igualitária. A partir de seus estudos, a autora conclui que este ideal igualitário promoveu transformações nos modelos familiares e também na desvalorização do papel da família. Os valores que interferem no comportamento e na interação entre os indivíduos estão calcados na singularidade e na liberdade individual. Isto desencadeou a recusa da distinção hierárquica entre os gêneros e a explicitação da homossexualidade. Além disso, em nome dos valores individualistas, houve um aumento no número de divórcios e de recasamentos, bem como o surgimento da não obrigatoriedade de ter filhos e da coabitação como regra conjugal.

Willi afirma que para o desenvolvimento pessoal de cada cônjuge, é necessária uma redefinição de papéis, regras e funções. É importante que as regras não sejam totalmente rígidas para a funcionalidade da relação. A construção de uma realidade compartilhada é necessária já que os membros do casal levam consigo um sistema de crenças baseado em valores, regras e mitos de suas famílias de origem. Esse sistema de crenças precisa ser remodelado aos poucos para que se forme a identidade conjugal do novo casal.

Tanto a construção de uma realidade compartilhada como a formação de uma identidade conjugal são portanto, ritualizadas. A esse fenômeno damos o nome de noivado, que geralmente ocorre na atualidade quando o parceiro masculino ou o casal em negociação acredita que está preparado para formar uma nova unidade familiar. Assim, podemos afirmar com certa convicção que diferente do que ocorria nos relacionamentos à moda antiga, onde o casamento era uma condição para o reconhecimento social, aqueles que noivam no cenário atual escolhem a conjugalidade como projeto e estilo de vida.

Como projeto porque, segundo Gilberto Velho, noivar se caracteriza como uma ação que implica uma avaliação de meios e fins vinculada, ao mesmo tempo, a uma realidade objetiva e externa e a uma avaliação consciente das condições subjetivas de realização individual. Assim, como num portfólio de oportunidades, as pessoas elaborariam durante o noivado roteiros de vida, e com isto projetos pessoais, tendo como parâmetro as possibilidades de alcançar tais e quais objetivos. Estas possibilidades se fariam presentes por que seriam criadas dentro de campos de ação, não como um fenômeno puramente interno e subjetivo, mas formulado e elaborado tanto em termos da própria noção de indivíduo como dos temas, prioridades e paradigmas culturais existentes. Em diálogo com Dumont (1993), esta perspectiva nos ensina que cada indivíduo é um locus de tensão entre os constrangimentos da cultura que pedem o enquadramento a padrões, e outros constrangimentos de cultura que pedem ao indivíduo autonomia e singularidade. A noção de projeto, portanto, nos permite entender o noivado como uma estratégia de sociabilidade (fusão afetiva) em sistemas monogâmicos, cujas expectativas (representações) sobre a aliança refletem padrões de sociabilidade culturalmente valorizados.

Por outro lado, escolher o casamento como via para conjugalidade também representa um estilo de vida na medida em que reflete um modo de comportamento socialmente determinado por um cenário constituído por grupos que competem entre si por possibilidades de trajetória e expressão social. Com isto podemos chamar atenção

ao fato de que em sociedades urbanas integradas entre si por complexas redes de comunicação e transporte, ideias e formas de sociabilidade cada vez menos alternativas em relação aos tipos ideais tradicionais, avançam terreno sobre o imaginário da vida e tornam a vida de um casal que escolhe casar uma entre muitas possibilidades de trajetória social. Inserido num portfólio de relações o casamento compete, portanto, com o que os censos tem cada vez mais demostrado ser um tendência contemporânea: o aumento significativo de unidades residenciais formadas por solteiros, o surgimento de parcerias amorosas poliafetivas, uniões estáveis e parcerias orientadas para a geração de prole, etc. Em todos estes casos, os indivíduos reconhecem a existência do noivado, mas decidem não realizá-lo, seja por motivações religiosas, morais ou ideológicas.

Infelizmente (ou felizmente!), diferentemente de quem casa, quem decide noivar (assim como quem namora ou fica) não figura nos bancos de dados dos institutos de estatísticas governamentais ou em arquivos paroquiais, razão pela qual qualquer inferência sobre este fenômeno é sempre especulativa. Nestes casos, ainda que sob suspeita, o pesquisador precisa ter como orientação em sua análise o fato de que todos aqueles que escolhem casar assumem algum tipo de compromisso com o seu parceiro e que ao tornarem isso público assumem que dali em diante estão se preparando para constituir uma nova família. Isso significa que na ausência de informações quantitativas sobre a taxa de noivados deve-se dar atenção especial para o sistema de crenças que orienta a representação dos indivíduos sobre o compromisso que estão estabelecendo, isto é, para o vínculo formado entre duas pessoas que alimentam a crença de que o que estão fazendo tem como objetivo celebrar a união através de uma cerimônia oficial, seja ela em um cartório ou em uma igreja, que lhes permitirá compartilhar sob o mesmo teto o conjunto de experiências afetivo-sexuais e o cuidado e educação de sua prole, ao que damos o nome de unidade familiar ou família.

É, portanto, a partir da importância que o casamento e a família exercem sobre o imaginário coletivo e a forma como ele afeta a crença dos indivíduos nestas instituições que devemos partir para compreender que significado esse compromisso exerce sobre a vida de quem escolhe noivar. Para o presente trabalho, que não é um tratado sobre o casamento ou a família, situaremos nossa análise sobre dados e referenciais recentes onde é possível observar que o compromisso firmado entre um casal fora suficientemente importante para que entre 1999 e 2008 ele tenha revertido uma tendência de redução das taxas de nupcialidade legal das duas décadas que antecederam o período passando a representar 6,6 casamentos por 1000 habitantes. Por outro lado se o número de uniões aumentou8 a taxas geral de divórcios, medidas para a população com 20 anos ou mais de idade, seguiu a mesma tendência chegando a 1,5‰, a maior em três décadas. Simultaneamente, frente ao crescimento da taxa de divórcios e acompanhando a tendência da elevação da taxa de uniões, aqueles indivíduos que

8 Este aumento vem sendo atribuído à melhoria no acesso aos serviços de justiça, particularmente ao registro civil de casamento, à procura dos casais por formalizarem suas uniões consensuais, incentivados pelo Código Civil, renovado em 2002, e pelas ofertas de casamentos coletivos promovidos desde então, iniciativas que facilitaram o acesso da população nos aspectos burocrático e econômico. (IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira: 2010, p. 138)

poderiam ter se desiludido com o casamento optaram por casar novamente. Por essa razão, os recasamentos representaram, em 2008, 17,1% do total das uniões formalizadas em cartório. Em 1999, este conjunto de formalizações das uniões totalizava apenas 10,6%.

Além de demonstrar que sua incidência é significativa no conjunto da população podemos afirmar que o casamento ocupa um espaço na vida financeira e contábil da maioria dos casais brasileiros. Visto como um "sonho", o casamento movimentou um mercado de mais 15 bilhões de reais em 2015 no Brasil.

Associar família com sonho é algo bastante comum entre os noivos brasileiros. Entre eles há uma crença generalizada de que estão casando porque vão formar uma família, mesmo que essa noção varie muito entre classes, etnias e gêneros. Não podemos, porém, limitar nossa compreensão sobre o desejo dos casais em formar uma família pelo paradigma dos modelos clássicos de família patriarcal (Freyre) ou de família nuclear (Parsons), pois estes padrões normativos encontram resistência na ocorrência bem documentada por Fonseca (2003) de formas paralelas e até alternativas de arranjos familiares ao longo da história brasileira. Logo, seja qual for o modelo, ideal ou indefinido, podemos considerar que a família é um projeto de vida para quem se compromete (e promete) a viver o noivado como etapa de "adaptação" ou "preparação" para a mesma.

Deve-se, no entanto ressaltar, que mesmo ocupando um lugar de destaque na maneira em que a maioria de nós vemos e vivemos o mundo, a instituição familiar passou por mudanças significativas, principalmente nos âmbitos cultural e ideológico, pois a medida que as convenções morais de outrora cederam lugar a valores modernos, centrados na auto-realização e satisfação emocional, as relações conjugais – tanto no seu início quanto no seu final – tornaram-se abertas à negociação. Desta forma, conforme analisa Fonseca (op. cit.) já não são as obrigações de honra e compromissos familiares que orientam relação do casal, mas a mútuo afeição. Sob esse ponto de vista, a família é vista como funcional na medida em que proporciona a cada um de seus membros as condições para seu desenvolvimento pessoal (ver Segalen 1995, Singly 2000).

Vale dizer, no entanto, que, paradoxalmente, enquanto muitos casais alimentam o "sonho" de casar e formar uma família os mesmos vivem a tensão de uma crise generalizada que se instala sob o signo da crítica (sob a forma de discurso ideológico) aos valores familiares e conjugais que elites políticas, veículos de informação e movimentos religiosos tradicionalistas acreditam responder por boa parte dos problemas sociais enfrentados pela sociedade brasileira. Os discursos que alimentam esse imaginário incluem os inúmeros exemplos de famílias desestruturadas, como as monoparentais, a expressiva onda de violência doméstica, o aumento na taxa de divórcios, a emergência dos movimentos em defesa da homossexualidade e seus supostos efeitos nocivos a reprodução e a incapacidade das famílias em educar para a cidadania. Neste cenário, quando se fala que a "família está em crise" quer-se dizer que

ela deixou de exercer sua função de núcleo estruturante da organização social, isto é, perdeu, parafraseando Thales de Azevedo, sua “magia”9.

É, portanto, diante deste cenário que surge a motivação para responder a questão: porque ainda se casa? Ou mais especificamente: porque as pessoas se preparam para formar um casal ou uma família que ao que tudo indica tem grande chance de produzir mais dúvidas, sofrimento e dor do que garantir a felicidade e a realização pessoal?

Primeiro, porque os riscos que as pessoas resolvem correr ainda são menores que os benefícios que elas esperam alcançar. Apenas para dar um exemplo, que só poderá ser melhor observado na parte etnográfica (por vir), quem escolhe casar tem um projeto de vida que ao ser negociado com o parceiro possibilita a realização de interesses pessoais. É o caso de quem noiva com expectativa de ascensão social ou daqueles que noivam, paradoxalmente, para atender expectativas familiares e com isso adquirir prestígio entre os mesmos.

Segundo, porque as pessoas tendem a procurar em suas trajetórias de vida os exemplos positivos e mais significativos que lhe servem de modelo para a realização de suas escolhas afetivas. É assim que posso definir o que encontrei em minha pesquisa sobre as variáveis presentes na escolha do cônjuge (ALENCAR, 2011). Neste trabalho, os noivos demonstravam que mesmo tendo convivido com casos desafortunados de relações familiares eles baseavam sua opção pelo casamento tendo como referência parentes que conseguiram estabelecer vínculos que consideravam sólidos e capazes de permitir a realização pessoal dos parceiros.

E terceiro, porque o noivado possui um valor em si mesmo e como tal permite aquele que promete e a quem é prometido uma nova posição no cenário da distribuição de papeis. Em decorrência desse fator é que podemos dizer que noivar expressa um poder simbólico entre os agentes envolvidos, pois não só lhes permite reconhecerem-se e serem reconhecidos como "escolhidos", "selecionados", "prometidos" como assegura-lhes a potencialidade de assumir, através do compromisso firmado, as responsabilidades de formar uma novo núcleo familiar que num sistema de crenças predominantemente individualista e neolocal é caracterizado pelo planejamento das bodas, pela capacidade em estabelecer moradia, pela aptidão em prover os meios de subsistência do parceiro e pela capacidade de garantir a manutenção dos vínculos afetivos e sociais com o parceiro e seus familiares.

Essa valorização que o noivado movimenta, como dito antes, um mercado bilionário capaz de mobilizar não só noivos como também os familiares e sua rede de relações, dando-lhe um caráter público e exercendo sobre cada um dos parceiros uma pressão pelo cumprimento da promessa. Por essa razão não são raros os casos de noivos 9 Para elucidar esta visão temos como exemplo a discussão mais recente sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, cuja origem fora fortemente influenciada por programas de televisão que cultuam as instituições policiais, tendo sido posteriormente encampada por lideranças policiais e que após eleitos formam hoje o que se conhece como “bancada da bala”. Associada com a “bancada da bíblia” ela tem alimentado a ideologia de que para solucionar um suposto problema de violência generalizada que afeta e ofende o “cidadão de bem” e a família brasileira as famílias desestruturadas devem confiar ao estado a terceirização da educação e da punição ao sistema penitenciário Estatal.

que frequentam terapeutas, recorrem a manuais de autoajuda ou, em casos limites, retardam o casamento para conseguirem lidar com a tensão do ritual.

Por toda sorte de circunstâncias, há também casos de rompimentos de noivados que normalmente geram grande tensão entre os casais e seus familiares. Nestes casos, dada a importância que este ritual possui na sociedade brasileira, tem se desenvolvido o entendimento jurídico de que o mesmo possui o caráter de união estável, uma vez que os noivos agem como se já fossem casados, seja porque manifestam entre si a promessa de vida futura compartilhada ou porque assumem compromissos financeiros que afetam o patrimônio particular de cada um, e que por essa razão dão ensejo a indenização por danos materiais e morais ou restituição ao parceiro que se sentiu penalizado pela ruptura.

Quem noiva?

O campo de pesquisa no qual situam-se os rituais é sempre efêmero. Se não estivermos "lá" para vê-lo se manifestar cabe-nos, como alternativa metodológica, imaginá-los "aqui". Ou, por outro lado, coligir sua regularidade para mapear suas estruturas e compreender, como nos ensina Geertz, "o que diabos as pessoas estão fazendo". Digo isso, porque literalmente um noivo não sabe ou não tem como prever que um casal ficará noivo. O máximo que um pesquisador pode (e deveria) fazer nestes casos é recolher as evidências (quase sempre simbólicas) deixadas pelos sujeitos.

Isto necessariamente implica numa questão metodologica singular: como recolher os indícios da manifestação do noivado? A primeira solução é deitar pena sobre o que as pessoas pensam sobre esse fenômeno. Nas descrições realizadas em trabalhos anteriores (ALENCAR, 2011 e 2014a e 2014b) concluímos que o noivado é uma condição indispensável para a oficialização da união, pois se manifesta em torno dele a crença generalizada de que as pessoas precisam se preparar, através de um processo de ajustamento recíproco, para a mudança de status que as tornará aptas ao casamento. Portanto, se há alguma mudança de status é preciso saber que variáveis estão envolvidas neste processo, ou seja, de quem estamos falando.

A segunda solução para a questão apresentada é identificar o perfil dos sujeitos que na sua generalidade assumem o noivado como ritual de preparação para o casamento. Porém, antes de chegarmos aos dados concretos pelo menos dois outros problemas devem ser apontado quando pretendemos realizar o mapeamento destes perfis. a) De que casamento estamos falando? b) Onde encontramos as pessoas que estão noivas?

A primeira questão é sabidamente complexa e não poderia ser respondida em um só parágrafo. Em todo caso pelo menos uma consideração pode ser esclarecedora. Afirmar que o casamento é uma questão complexa, significa dizer que, segundo os relatos colhidos pelos noivos com quem estabeleci diálogo no decorrer de minhas pesquisas, mesmo que eles desejem casar (e gerem esta expectativa quando anunciam o noivado), não é o desejo, nem a expectativa que norteia, determinantemente, suas práticas. Como dito anteriormente, os casais que escolhem o noivado como forma de sociabilização pré-nupcial, em sua grande maioria o fazem num jogo de tentativa e erro.

Como diria um informante qualificado sobre a questão (porque é casado) "Casamento é beleza e paciência. Se der certo, beleza. Se não, paciência."

Ora, num contexto onde a tradição já não esconde as chaves da “jaula de ferro”, o casamento não é um fim em si mesmo para quem decide noivar. Ele é um "sonho" (como bem descreve a maioria das 42 noivas que foram vítimas de um decorador brasiliense no início de 2015). E como um sonho, entendo que ele represente para os noivos um projeto de vida, um estilo de vida, cuja dimensão sagrada, isto é, idealizada, separa-o do universo ordinário constantemente polemizado sob o signo do "olha onde você está se metendo", "deixa eu te falar a verdade...", "mas na minha época...", "tão novo(a), pra que casar".

Essa separação é simbólica (como tudo o que é sagrado enseja). Logo, quando os noivos - particularmente os de primeiras núpcias - estão falando de casamento, não fica claro se eles estão falando da cerimônia ou da vida conjugal, isto é, da experiência como casal. Somente uma observação baseada na experiência desses sujeitos pode nos revelar que ao noivar, eles, ao mesmo tempo, dão início a um duplo planejamento: o que culminará com o rito público de celebração de um projeto de vida conjugal, que tanto pode ser caracterizado por ser de "papel passado" ou "ao pé do altar"; e o que resultará na vida sob o mesmo teto.

A ritualização da cerimônia, que marca simbolicamente a passagem do status de solteiro para o de casado, possui uma distinção bastante clara. O casamento de "papel passado", isto é, o casamento civil, tem sua eficiência baseada no acordo de vontades, logo é passível de ruptura. Mesmo útil e necessário, ele não consegue fazer frente ao casamento religioso, que é culturalmente cultivado como espetáculo e para o qual os noivos se dirigem prestando um culto as bênçãos que pretendem obter por apresentarem à Deus sua "melhor escolha" ou a "escolha definitiva". A valorização do casamento religioso, portanto, tem sua eficiência associada ao poder místico do sacramento, que tanto pode ser explicada através do simbolismo que a pureza das primeiras núpcias exerce sobre a noiva (o sujeito da cerimônia) como pelo sistema de dádivas, onde os noivos, ao estilo de um potlacht kaikutl, renunciam ao capital econômico em proveito da comunidade expondo seus bens e a si próprios na esperança de obter dela o capital simbólico do reconhecimento capaz de tornar eficaz e fazer circular o prestígio que a incorporação ou a doação de um parente tem para a mesma. Porém, é preciso dizer que essa renúncia se manifesta imediatamente antes e imediatamente depois da cerimônia, quando passa a prevalecer as tensões criadas pela racionalidade instrumental da vida ordinária: austeridade financeira justificada pelas dívidas acumuladas com o financiamento da cerimônia, da lua-de-mel ou da nova moradia; troca de presentes, mudança, compra de móveis, etc.

Neste sentido, as diferentes representações sobre o casamento permitem sua abordagem sob três óticas distintas: a do casamento como valor, a do casamento como contrato e a do casamento como experiência conjugal ou "rotina", nas palavras de um noivo. Pretendo concentrar a análise no casamento religioso, pois é através dele que podemos acessar os discursos que orientam sua valorização numa dimensão místico-religiosa. E, por essa razão, bem como respondendo a segunda questão, é nesse campo que conseguimos encontrar os sujeitos desta pesquisa.

A preferência por abordar a temática com pessoas que optam pelo casamento religioso ou que manifestam o interesse pelo mesmo, tem como principal motivação metodológica o fato de podermos acessar discursos com maior zelo de convicção sobre o tema. Ou seja, trata-se de casais que manifestam um conjunto de práticas e representações voltadas para o que se admite ser um projeto ou estilo de vida. A fim de garantir maior confiabilidade na análise dos dados foram excluídos os casais que noivam em segredo ou se dizem que o fazem não assumem o compromisso de casar. Por outro lado, ainda que o senso comum julgue uma pessoa que usa aliança no dedo anelar da mão esquerda como pertencendo a classe dos noivos, procurei não realizar tal distinção, pois o que melhor representa a relação de compromisso entre os noivos é o fato dela ser pública e notória.

A consolidação dos dados que me permitiram analisar o perfil dos interlocutores deste estudo ocorreu em três momentos. O primeiro deles entre 2009 e 2010 quando, durante minha pesquisa sobre a relação entre o perfil dos cônjuges e a representação sobre o parceiro ideal, entrei em contato com o Curso de Noivos da Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém. Na oportunidade fui levado pela curiosidade em saber como se organizavam estes cursos e se de alguma maneira eles estariam repercutindo os valores e as representações que os noivos tinham sobre o tipo ideal de parceiro. Através de um formulário contendo 19 questões que versavam essencialmente sobre o perfil social dos noivos, o processo de interação entre os mesmos e com suas famílias e o planejamento do casamento, entrevistei 12 casais.

O segundo momento ocorreu entre 2013 e 2014 e foi caracterizado, primeiro por uma imersão no ritual como noivo, uma vez que encontrava-me em preparação para o meu próprio casamento, e depois como pesquisador. Na ocasião, participei ao lado de 23 casais do 283° Curso de Preparação para a Vida Matrimonial da Paróquia da Santíssima Trindade, também localizada em Belém. Como noivo pude não só experimentar a dinâmica do ritual como também notar que os cursos de noivos - como são mais conhecidos - tem um triplo caráter: são uma estratégia da igreja católica em evangelizar os noivos, com a finalidade de fazer com que os mesmos reflitam sobre o casamento de um ponto de vista espiritual e, se possível, venham a fazer parte das pastorais existentes na paróquia; é também uma oportunidade, conforme descreve Souza (2002), de a igreja passar seus ensinamentos buscando atingir a intimidade e o lar dos casais; por fim, o curso pode ser interpretado como um rito expiatório, onde os noivos compensam suas faltas para com os rituais católicos, sobretudo por seu distanciamento de práticas religiosas, isto porque, conforme se sabe – e esta é a visão dos coordenadores do curso –, muito dos noivos que participam do curso só pisarão na igreja no dia do casamento.

Partindo dessa percepção e tentando situar a questão numa perspectiva dialógica, posteriormente ao curso, passei a entrar em contato por telefone com os noivos tendo conseguido obter informações de 16 casais10. Vale dizer que apesar de ser um excelente insight metodológico é um recurso que só deve ser utilizado em último caso, pois apresentou, particularmente às minhas intenções, mais desvantagem do que

10 Importante informar que recorri ao uso do telefone como metodologia de acesso aos dados num contexto em que me encontrava em dúvidas sobre qual objeto iria abordar em meu projeto de pesquisa para o Doutorado.

vantagens. Apesar da familiaridade obtida por termos realizado o curso juntos, os noivos não autorizavam com isso uma invasão, mesmo que mínima, em sua intimidade. Isso porque, apesar do noivado ser um tipo de vínculo que nomeadamente tem caráter público, ele o é para quem pertence a rede social dos noivos. Fora dessa rede qualquer curioso se transforma em "enxerido"¹. Mesmo assim, consegui obter dados esclarecedores para as 20 questões apresentadas e que já estavam contidas no formulário anterior. A diferença ficou por conta da maior profundidade com que analisei a experiência de interação entre os noivos antes da iniciativa de noivar.

Por fim, o terceiro momento está em fase de execução e teve início em janeiro de 2015, logo após minha aprovação no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Pará. Orientado pela experiência com o campo e principalmente pela inquietação provocada pelas leituras acerca da temática, recorri novamente ao formulário, mas desta vez resolvi aplicá-los com pessoas próximas a mim ou que pertencem ao meu círculo de amizades.

De modo preliminar, mantive as questões anteriores, mas sem realizar o preenchimento diante do entrevistado. Esperava com base nas conversas informais que a própria discussão do tema promovesse o surgimento de novas questões. E foi o que ocorreu, pois o número de questões saltou de 20 para 70, que foram divididas em três categorias: perfil social, processo de relacionamento e religiosidade e noivado. Paralelamente a isso, de maneira negociada, integrei a equipe de preparação para a vida matrimonial que pertence a pastoral familiar da Paróquia da Santíssima Trindade. Meu objetivo com esta metodologia foi obter, por meio do registro etnográfico em diário de campo, acesso ao universo simbólico que orienta a produção das representações sobre família, casamento e conjugalidade dos membros que formam este grupo e que servem de mecanismo de socialização dos casais que participam do curso de noivos ofertada pela pastoral.

Se por um lado o acesso aos dados a partir deste momento deu-se entre pessoas com as quais mantive uma maior familiaridade, é necessário considerar que as observações tornam-se mais profundas e as entrevistas permitem um maior refinamento das informações. Pelos limites impostos a este texto e pela natureza do evento ao qual o mesmo se propõe, será dado ênfase a interpretação das observações e dos dados recolhidos.

***

Os casais que colaboraram com a pesquisa são pares heterossexuais que na ocasião da aplicação do formulário declararam que estavam noivos e o casamento ocorreria dali a 6 meses. A maior parte deles nasceu e morou em Belém ou cidades do interior do estado do Pará. Um número menor representou os noivos provenientes de de outros estados, principalmente da região nordeste e sudeste. Nota-se uma grande homogamia racial entre os noivos que chegou representa 3/4 da amostra. Assim, mais da metade dos noivos se autodeclara parda e estava noiva de um parceiro pardo. 1/4 dos

noivos é formado por casais que se autodeclaram brancos. O restante é formado por brancos e pardos.11

A faixa etária dos noivos varia entre 25 e 29 anos, período no qual eles encontram-se empregados ou em fase de conclusão dos estudos. Os homens são de 1 a 2 anos mais velhos que as mulheres. Vale notar que essa diferença de idade vem diminuindo ao longo do tempo. Comparando os dados de CANCELA sobre os perfis matrimoniais da virada do século XIX para o XX em Belém com os obtidos em pesquisa anterior (ALENCAR, 2008a) na virada do XX para o XXI, nota-se que se num primeiro momento mais de três quartos de homens e mulheres católicos casavam antes dos 30 anos, com uma tendência para que as mulheres assim o fizessem em idades precoces, até os seus 20 anos, e homens em idades mais avançadas, entre os 21 e 25 anos, hoje isso se alterou e esta população se reduziu para pouco mais da metade (cerca de 60%). Isto é influenciado, sobretudo, pelo adiamento em cerca de cinco anos na realização das uniões. As mulheres, neste caso, foram as que mais influenciaram essas mudanças. Se antes a maioria (cerca de 37% delas) casavam entre os 14 e 20 anos, hoje esse quadro se alterou e a maioria (35%) casa entre os 21 e 25 anos, além de terem proporcionalmente duplicado em relação a faixa etária de 26 a 30 anos, uma vez que nesta faixa representam cerca de 30% da amostra analisada (ALENCAR, 2008, p. 7).

O noivado dura cerca de 1 ano. Fora o noivado condicional, geralmente ocasionado por uma gravidez não planejada, o casal estabelece o momento ideal para noivar cerca de quatro anos após o início do namoro. É após esse período que eles se sentem “preparados” para superar uma das etapas do relacionamento, ou seja, assumir um compromisso mais sério. A noção de seriedade numa relação envolve geralmente a maturidade do casal, a idade, a aceitação seguida da cobrança por parte dos familiares, e, sobretudo, as "realizações" ou "conquistas" pessoais que, segundo afirmam os noivos, tem a ver com o nível de instrução e a estabilidade financeira. Como consequência, prevalece entre os noivos o perfil de profissionais assalariados com nível superior, que exercem funções liberais como médicos, advogados e engenheiros, servidores públicos e estudantes em fase de conclusão dos estudos, cuja renda nominal média gira em torno de 1 a 5 salários mínimos.

Como o casamento ocorre cerca de um ano após o noivado, ao longo desse período espera-se que o casal reúna as condições para arcar com as despesas da cerimônia e da "vida de casado". Entretanto, quando um dos parceiros observa que o outro já reúne essas condições o pedido de casamento torna-se um tema recorrente nas conversas do casal e deles com seus respectivos amigos e familiares. O pedido de casamento surge então como uma premissa do interesse pela manutenção do vínculo (geralmente questionado pela noiva). Este fato leva em conta a noção de que há um “tempo de vida útil” do namoro, algo como “validade” do relacionamento e que, portanto, exige do mesmo uma superação de fase, referendando a noção de passagem presente neste momento da trajetória social dos noivos. Caso um noivo demore em pedir a parceira em casamento considera-se que ele está empatando-a. O empatar é, neste sentido, uma categoria que explica o fato do relacionamento amoroso ser um rito

11 A pesquisa utilizou como referencial para este item a denominação padrão presente no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que subdivide as cores em branca, parda, amarela e preta. Entretanto deixou uma opção em aberto para autodeclaração.

regulado, cuja eficácia é codificada por temporalidades. Há um tempo para tudo. A preocupação com a demora no pedido de casamento é muito comum entre noivos que se consideram "velhos demais para casar" ou que observam os parceiros "entretidos" demais com interesses pessoais: como carreira profissional, estudos, lazeres, etc.

Na atualidade, podemos identificar três etapas no processo de socialização para a conjugalidade, o que inclui nelas fases ou tipos de relações intermediárias12: 1. Flerte ou “ficar”13, onde ocorrem os primeiros contatos e um período de avaliação ou reconhecimento do parceiro; 2. Namoro, em que pode ou não haver o pedido de namoro seguido de um longo processo de convívio e aproximação sócio-afetiva; e 3. Noivado, compromisso de caráter público que visa a união conjugal formal.

O namoro é a mais longa das três fases e é nele que se define o tipo de cônjuge ideal (ou cônjuge preferencial), portanto é a partir dele que se origina o noivado. Segundo Azevedo (1986) o namoro pode ser considerado como a manifestação inicial da tendência biológica à formação de pares por atração sexual, que se desenvolve no homem a partir das mudanças orgânicas da adolescência e da puberdade. A tomada de consciência acerca das diferenças físicas e de personalidade entre as pessoas de um e outro sexo ocasionariam, por essa razão, as primeiras tentativas de sedução e de estimulação afetiva recíproca. Por essa razão, o namoro normalmente tem início quando as sensações psíquicas causadas pela atração física e afetiva se ajustam a ideologia afetivo-sexual presente no contexto social dos sujeitos envolvidos. Termos como "legal", "interessante", "bonito/a", "gostoso/a" são muito comuns nas narrativas de quem vive essa experiência, que está geralmente vinculada a sensações afetivo-sexuais. Nesse momento não é comum os casais se comprometem com o casamento, mas com o passar do tempo e a consolidação do vínculo bem como a reunião das condições materiais e das qualidades morais e psicológicas que culturalmente são caracterizadas como ideal para um cônjuge, a promessa de casamento é acionada como recurso a manutenção do vínculo. Evadir-se dela causa insegurança e significa para os noivos uma demonstração de que pouco se pode esperar daquele relacionamento. A intenção tem aí um impacto definitivo, pois, nestes casos, orienta, mutuamente, a ação do outro. Nestes casos, se não for manifestada a intenção de casar, ou se esta ocorrer fora do tempo hábil, o relacionamento, mesmo que longo, tende a ser rompido.

12 De um modo geral podemos destacar como fases intermediárias o compromisso, um tipo de vínculo que antecede o noivado e serve de garantia de que apesar de estar sendo retardado o noivado é eminente, e uma outra forma ainda indefinida, que segundo alguns casais é marcada pela relação de “namorido”, em que duas situação se manifestam: ou o casal possui um namoro ou noivado de longa data e são notoriamente reconhecidos como um casal em união estável ou quando este decidem morar juntos, sem que necessariamente com isso firmem um compromisso de vínculo formal futuro. 13 Ficar é, segundo Heilborn (2006), uma forma de não-compromisso codificado e agregado à classificação das formas de engajamento das pessoas no aprendizado da sexualidade, que surge no final dos anos de 1980. Já para Lago (2002) seria a menor forma possível de relacionamento amoroso entre duas pessoas. De um modo geral os noivos "ficam" no mesmo mês em que conhecem seus parceiros.

Os noivos normalmente afirmam que mantiveram vários relacionamentos amorosos, mas que geralmente namoraram “sério14” entre 2 e 3 pessoas antes de conhecerem seus parceiros. O namoro é tratado como um "relacionamento sério" e que diverge do ficar por caracterizar-se como um vínculo social mais forte e de natureza pública e duradoura. A maioria deles também afirma que já conhecia seus parceiros antes de iniciarem o relacionamento. A escola e a universidade são os locais que mais favorecem a ocorrência desse fenômeno. Uma pequena parte afirma que se conheceu em festas e outra entre familiares ou pela internet. Todos esses ambientes tem em comum o fato de proporcionarem a interação social. Não houve registro de casais que se conheceram sob intermédio de parentes ou que foram forçados a namorar ou noivar por orientação familiar. Há, no entanto, casos em que a aceitação do namorado pelos familiares foi tratada como condição para a manutenção do vínculo.

A aprovação dos familiares, associada com fatores como idade e diferença de idade entre os parceiros, pertencimento étnico, filiação e classe social, projetos de vida e as representações coletivas sobre tipos ideias de cônjuges influenciam, ao longo do relacionamento, se aquele interesse inicial é suficientemente satisfatório para o vínculo ser mantido. Aqueles casais que promovem um ajustamento recíproco de seus projetos de vida, superam eventuais diferenças e, principalmente, saem vencedores na competição pelo parceiro, tornam-se, portanto, aptos para casar. Dá-se lugar, a partir de então, a valorização de qualidades morais e psicológicos em detrimento das qualidades sensoriais. "Personalidade", "responsabilidade", "sinceridade", "objetividade na vida", "caráter", "integridade", "tranquilidade", "carinho", "iniciativa" são termos que, por exemplo, ocupam as narrativas sobre a motivação para escolher o parceiro como cônjuge.

Contudo, apesar de ilustrativa, a divisão que podemos fazer entre ficar, namorar e noivar é apenas didática, pois podemos observar a ocorrência de uma sobreposição entre o namoro e o noivado, que pode ser denominada como fase de compromisso. É nessa fase que a opinião de amigos e parentes ganha relevância e o anel de noivado aparece como assunto do relacionamento. Não se pode generalizar, mas na cultura brasileira, embora seja a mulher quem eventualmente deixa as evidências de sua preocupação com os “objetivos” do relacionamento – entenda-se futuro da relação –, é o homem quem deve assumir o papel de pedi-la em noivado. Porém, isso não é regra e não são raros os casos em que a mulher "força" o parceiro a "tomar uma atitude". Neste sentido a fase que estou denominando como compromisso é entendida pelos noivos como um momento de noivado extraoficial em que os noivos dão início ao processo de avaliação e planejamento da cerimônia, escolha do local onde vão morar, consulta aos amigos e familiares sobre o pedido de casamento.

A fase de compromisso pode significar uma fase dramática na vida dos homens, pois é costume afirmar-se que eles são os principais responsáveis pelo noivado

14 Afirmar que um namoro é ou foi “sério” significa assumir que este relacionamento teve um significado afetivo especial, seja porque durou muito ou porque houve uma expectativa de que ele viesse a se concluir com um casamento. Se distingue da paquera e do namorico, que são relações mais passageiras e que não despertam expectativas por relacionamentos mais longos e duradouros.

acontecer15. São eles que devem cumprir com o protocolo de comprar a aliança, convidar as famílias para fazer o anúncio – quando o mesmo se faz necessário, pois cada vez mais o pedido é feito privativamente, em celebrações de datas que marcam o relacionamento (aniversário de namoro, aniversário da mãe de algum dos namorados, casamentos de familiares, etc.).

Além dos critérios psicológicos e morais os noivos manifestam que entre as motivações que os levam a pedir em ou a aceitar o noivado decorrem:

Tabela 1: Quadro contendo resposta ao item 34 “Motivação para o pedido ou o aceite do noivado”

NOME(INICIAIS) RESPOSTA

B.H. Pensar no futuro da mesma formaC.N.F. Viver a vida toda ao ladoF.K.R.B. A certeza que será ele com quem vou viver pro resto da vida, e que foi deus

quem nos uniu.A.F.O. A compreensão de ambosB.R. Pensar no futuro juntosR.H Querer futuramente construir famíliaF.D.A. Quero ter uma vida com ele, dividir minhas alegrias e tristezas. Ele me

diverte, me irrita muitas vezes... com ele não tem rotina. Nós somos parecidos em muitas coisas e temos os mesmos objetivos. Nossas famílias são ótimas e todos se relacionam bem. Enfim, eu o amo muito.

W.C.F. Avançar na nossa relaçãoL.C.S.F. Minha vontade de ter algo mais sérioM.D.C.P. Passar por uma transição de conhecimento para casar (construção de família)L.C.C. Segurança emocional e financeiraT.B.L. Harmonia na relação, parceria e vontade de construir futuro juntosM.P. Amor, construir a vida juntos.G.C.S.M. Bem, na verdade decidimos casar logo após o namoro, mas devido ele ser

estrangeiro, tivemos problemas para obter e traduzir a documentação necessária (era muito cara na época) por isso fomos morar juntos dois meses após o início do namoro e neste momento nos declaramos noivos.

T.G.S.F Pelo tempo de namoro, por conhecê-lo um pouco mais e saber o quanto es bom pra mim.

B.V.G A necessidade de tornar o compromisso mais sério devido ao seu tempoA.F.A.C. Não queria mais ter um namoro longo, e vi nele a pessoa certa para crescer, ter

estabilidade e companheirismo até o fim da vidaC.C.M.L. O forte amor que sentimos um pelo outro que nunca diminuiu só aumentou e

então decidimos mudar de fase para o noivado que foi a melhor coisa que já aconteceu em nossas Vidas.

A.S.M.S O principal fator foi o amor que sinto por ela, mas não posso descartar que ela preenche a maioria dos requisitos que penso como boa mulher

C.G. Amor e compartilhamento de objetivosH.G.D.X. A vontade de iniciar uma vida de fato nossa, compartilhar mais a vida.F.M.V. O fato de se mostrar um excelente companheiro no dia a dia;

Fonte: Formulário de pesquisa

15 A fase de compromisso não deve ser confundida com a já difundida troca de anéis de compromisso, pois do ponto de vista dos frequentadores dos cursos de noivos a relação estabelecida neste contexto é típica do namoro.

“Futuro”, “construção”, “vontade, “objetivos”, expectativas de uma vida ideal parecem ser o eixos sobre os quais as pessoas constroem suas representações de conjugalidade. Esse fenômeno é marcado pelo fato dos casais entenderem o casamento como uma construção recíproca, baseada no afeto e no reconhecimento do parceiro como parceiro de uma projeto a dois. O fenômeno da igualdade de oportunidades e de acesso as experiências afetivo-sexuais entre os gêneros é uma condição inerente a manutenção dessa visão. Isso representa uma ruptura em relação aos padrões patriarcais, que mesmo ainda se manifestando, tem sido superado, geração após geração, através do empoderamento feminino.

É importante que se diga, porém, que apesar de uma mudança nas relações entre os gêneros, predomina a representação da separação de papeis entre os sexos, no qual as funções tradicionais de homens e mulheres são constantemente acionadas para justificar a escolha do parceiro. Em razão disso, é comum encontrar misturado aos discursos sobre carinho, compreensão e reciprocidade, termos que representam a expectativa de que um homem possa ser capaz de desempenhar a função protetiva, que não necessariamente compactua-se com a função de provedor, haja vista que uma parcela significativa dos noivos possui renda igual ou semelhante. "Ser forte", "ter ímpeto", "ser objetivo", "usar da racionalidade" continuam exercendo forte influência na escolha de um homem como parceiro, bem como justificam a continuidade do relacionamento. Potencialmente gerador de crises no relacionamento, essa situação exige que os noivos pratiquem performances de gênero, onde homens protagonizam cenas de controle e dominação quando, por exemplo, assumem que mesmo se sentindo forçados a casar compraram as alianças e levaram o projeto até o fim. As noivas reagem com cumplicidade, encenando aceitar uma suposta (mas esperada) dominação masculina. Tomar a frente da situação, demonstrando atitude, convocando ambas as famílias, "encarando" o pai da noiva, são índices e evidências simbólicas de que aos homens cabem funções determinadas. O mesmo pode ser dito em relação as mulheres, que assumem, mas não se restringem, a função gerencial dos preparativos para o casamento.

Nos meses que antecedem o casamento, essa encenação ganha o clímax com a tensão gerada pelos contratos (reais ou informais) celebrados com boleiras, empresas de decoração, fotógrafos e empresários de bandas. Não são raros os casos de brigas e separações neste momento. Ocorre que, em função da expectativa gerada pelo "casamento perfeito" (cerimônia, diga-se de passagem), noivas, mães e parentes femininos encontram-se tão envolvidas com os preparativos do casamento que muitos noivos consideram que são consultados apenas porque tem a obrigação de aprovar o que já fora decidido. Isto não significa que não haja negociações, mas quando estas ocorrem é consenso notar que elas se aplicam muito mais ao que vem depois da cerimônia, como o local para onde os noivos viajarão na lua-de-mel e o local de moradia.

Quando ocorrem conflitos entre os noivos ou entre a noiva e seus parentes do sexo feminino com os parentes do sexo feminino do noivo, as reuniões de família tornam-se mais frequentes e passam a ser um importante mecanismo de socialização. São ponderados os custos e benefícios de uma separação na iminência do casamento. Observa-se também que esse é um período onde os casais encontra-se em estado alterado de sensações, o que favorece os conflitos, mas também a infidelidade. Por

insegurança ou tensão os casais recorrem com maior regularidade a amigos, colegas e com eles podem eventualmente encontrar um "consolo" que os alivie de tamanha responsabilidade. Também é nesse momento que uma sequência de "despedidas" são ativadas para assegurar que a passagem seja completa e o novo homem e a nova mulher que vão nascer da noite de núpcias não esqueceram de viver tudo que a "vida de solteiro" tem para oferecer. Isto significa que, se num passado recente era exclusividade dos homens a realização destas despedidas, cada vez mais as mulheres realizam paralelamente ao tradicional chá de panela festas, como o chá de lingerie, cujo conteúdo pode envolver brincadeiras sexuais e até profissionais do sexo. Estas despedidas são potencialmente danosas quando escapam a intimidade daqueles que as organizam, mas não parece que determinam o fim do relacionamento entre casais que estão prestes a subir ao altar, pois há, como demonstram inúmeros casos, maior tolerância para eventuais "escapadas" do noivo ou da noiva nessas situações.

Antes de concluir é importante destacar que o perfil social dos noivos ainda que expresse uma certa regularidade na composição dos casais que escolhem pelo casamento, não é determinante para esta análise. A finalidade do projeto que se vislumbra a partir de minha entrada no Doutorado é tentar não só mapear o universo sociológico dos noivos, mas compreender a subjetividades dos sujeitos que atravessam esse ritual. Indissociado da transformação a que todo indivíduo está submetido em qualquer rito de passagem, a perspectiva que se apresenta é a de identificar mudanças de comportamento que sob a influência de diferentes campos - religião, mercado, conjugalidade - condicionam o sujeito a se adaptar ao novo papel que eles pretendem assumir. Deixando de lado a perspectiva de que o noivado é um rito esquecido (Coulmont) resta-nos perseguir a questão: qual a função deste rito na sociedade contemporânea?

CONCLUSÃO

Como podemos notar, o ritual que enseja o noivado é marcado pela crença em duas instituições correlacionadas: o casamento e a família. Mesmo que sejam insuficientes e imprecisos os dados que dispomos para quantificar sua manifestação, é imperioso afirmar que ele ocupa uma parte importante do imaginário coletivo e orienta as pessoas em suas trajetórias pessoais de vida. É preciso notar, diante disso, que as pessoas que escolhem noivar o fazem porque escolhem instituições e podemos afirmar, com base na bibliografia existente, que são essas instituição que regulam a preferência pelo parceiro. Assim, não se escolhe apenas quem se quer amar, mas também indivíduos capazes de corresponder as representações que se fazem sobre o ideal de unidade conjugal e familiar.

Pesquisando este tema ao longo dos últimos sete anos não posso ser refratário a ideia de que existe uma correlação entre as mudanças no cenário social e as mudanças no âmbito das relações amorosas. Se tudo que existe entre os humanos e que lhes dota da capacidade de viver são vínculos, relações, é, no mínimo, coerente pensar que se algumas mudanças afetam nossos vínculos mais elementares eles certamente afetarão os vínculos amorosos. Logo, existe alguma mudança e essa mudança tem de ser rastreada e compreendida. Mas isto não é suficiente para responder a questão colocada

anteriormente, apenas nos situa de maneira mais esclarecida em relação à ela: porque as pessoas ainda noivam? Ou, porque as pessoas noivam mesmo sendo alertadas de que essa não parece ser a melhor escolha?

Sem querer ser desmancha prazeres (ainda que isso seja o que mais combina com o espírito de um antropólogo, desde Geertz), suponho que as pessoas estão pouco se lixando para o que jornais, manuais e casais divorciadas dizem ser o casamento. O que verdadeiramente importa para elas é que escolhê-lo tem algum significado! Assim, se existe alguma crise, ela é de consciência, e nós que, na condição de pesquisadores lidamos com a tensão entre o pensado e o vivido, não podemos nem devemos nos limitar a pensar que a crise é o real, nem que o imaginado é o ideal. Realidade e sonho muitas vezes se misturam.

As mudanças observadas no modo como as pessoas acionam o casamento como mecanismo de socialização refletem as mudanças ocorridas ao longo dos últimos séculos e estão substancialmente marcadas pelo processo de secularização porque passa esta instituição e os rituais de caráter historicamente religiosos em todo o mundo. Em uma cidade como Belém, situada nas fronteiras do tradicional e do contemporâneo, o fato de maio e dezembro representarem os meses que concentram o maior número de casamentos demonstra que essa mudança é provocada por um movimento ambíguo no cenário da ação social: ao mesmo tempo em que os rituais historicamente religiosos resistem ao progresso da racionalização recorrendo a tradição e a simbolismo que lhe são inerentes eles enfrentam as estratégias de adaptação a um mundo cada vez mais mediado por relações econômicas produzindo novas práticas sociais. Em outras palavras: qualquer que seja a motivação o certo é que as pessoas continuam procurando o casamento como modo de viver suas vidas.

*ver bibliografia x xx x

** Podemos dizer que estas representações afetam principalmente o interesse daqueles que