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Pitágoras: do xamanismo antigo à nova pesquisa

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Nota preliminar Estes livros são o resultado de um trabalho conjunto das gestões 2011/12 e 2012/3 da ANPOF e contaram com a colaboração dos Coordenadores dos Programas de Pós-Graduação filiados à ANPOF e dos Coordenadores de GTs da ANPOF, respon-sáveis pela seleção dos trabalhos. Também colaboraram na preparação do material para publicação os pesquisadores André Penteado e Fernando Lopes de Aquino. ANPOF – Gestão 2011/12Vinicius de Figueiredo (UFPR)Edgar da Rocha Marques (UFRJ)Telma de Souza Birchal (UFMG)Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR)Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC)Darlei Dall’Agnol (UFSC) Daniel Omar Perez (PUC/PR) Marcelo de Carvalho (UNIFESP) ANPOF – Gestão 2013/14Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N. Brito (UNISINOS)Ethel Rocha (UFRJ)Gabriel Pancera (UFMG)Hélder Carvalho (UFPI)Lia Levy (UFRGS)Érico Andrade (UFPE)Delamar V. Dutra (UFSC)

F487 Filosofia antiga e medieval / Organização de Marcelo Carvalho,

Vinicius Figueiredo. São Paulo : ANPOF, 2013. 650 p.

Bibliografia ISBN 978-85-88072-16-9

1. Filosofia antiga 2. Filosofia medieval 3. Filosofia - História I. Carvalho, Marcelo II. Figueiredo, Vinicius III. Encontro Nacional ANPOF

CDD 100

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

5Sumário

AdriAne dA SilvA MAchAdo MöbbS UFSMAgostinho: natureza e vontade ................................................................................................................9

AMAndA viAnA de SoUzA (GT neoplatonismo)Mística do cotidiano e vida fáctica: Mestre Eckhart e Heidegger ..................................19

AnSelMo TAdeU FerreirA (GT Filosofia na Idade Média)Tomás de Aquino leitor de Agostinho: o caso "De Magistro" ...............................................25

André lUiz brAGA dA SilvA (GT Platão e o Platonismo)Entrelaçamentos entre Divisão e Ontologia em Platão .......................................................33

André lUiz crUz SoUSA (UFrn)A unidade de sentido da autarkeia e a inteligibilidade da eudaimonia em Aristóteles .................................................................................................................................................45

AnA roSA lUz (UFF)O Fedro de Platão e a escala terminológica dos termos Eros, Epithymia e Philia (sugerida por Drew A. Hyland) ............................................................................................61

bernArdo veiGA de oliveirA AlveS (UFrJ)A felicidade natural em Tomás de Aquino .......................................................................................69

biAncA ToSSATo AndrAde (PUc-rio)Considerações acerca de Universais e Objetos Espácio-Temporais ...................................81

ceSAr AUGUSTo MAThiAS de AlencAr (PPGlM/UFrJ)A philosophía na pólis - Sócrates pela Comédia? .........................................................................89

conSTAnçA bArAhonA (UFrJ/PPGF)Definição da definição - Analíticos Posteriores II ....................................................................99

dAniel loUrenço (GT Aristóteles)Demonstração circular e demonstração de tudo: Algumas ponderações sobre os capítulos 3 e 19 dos Segundos Analíticos de Aristóteles .............................. 105

dAniel SiMão nAciMenTo (GT Platão e o Platonismo)Akrasia e hedonismo no Protágoras de Platão.......................................................................... 117

edy KléviA FrAGA de SoUzA (GT Filosofia na Idade Média)As funções da linguagem na obra De Magistro de Santo Agostinho ............................. 125

V. 1. Filosofia Antiga e Medieval

8 Sumário

renATA AUGUSTA Thé MoTA cArneiro (UFc)O papel da dialética na paidéia esboçada na república de Platão ................................. 491

renATo MAToSo ribeiro GoMeS brAndão (GT Platão e o platonismo)Participação, imitação e as críticas do diálogo Parmênides aos modelos de interpretação da relação sensível-inteligível.................................................................. 497

renATo doS SAnToS bArboSA (UFrn)A relação entre as noções de autárkeia e par’hemás na filosofia de Epicuro ....... 511

ricArdo dA coSTA (GT Filosofia na Idade Média)"O sonho" (1399) de Bernat Metge e suas considerações filosófico-oníricas ........ 519

rodriGo PinTo de briTo (GT Filosofia Helenística)A física da stoá ............................................................................................................................................. 533

roGerio GiMeneS de cAMPoS (USP)PlATãO E OS ASTrOS - ENTrE O MITO E A FíSICA ........................................................................ 565

viviAnne de cASTilho MoreirA (GT lógica e ontologia)Observações sobre mediania e contínuo na Ética Nicomaqueia ...................................... 579

WeriqUiSon SiMer cUrbAni (GT Platão e o platonismo)A Metafísica Platônica como Estética Inteligível: considerações sobre imagem e visão nos livros VI e VII da república .......................................................................................... 593

yolAndA GloriA GAMboA MUñoz (GT Ética e Filosofia Política)Cenários no Império greco-romano .................................................................................................. 601

MArIANA PAOlOzzI SÉrVUlO DA CUNHA (UFSC)Agostinho: Filosofia ou Teologia? .................................................................................................... 615

NICOlA STEFANO GAlGANO (USP)Pitágoras: do Antigo Xamanismo à Nova Pesquisa .................................................................... 629

lUciAno coUTinho (UNIVErSIDADE DE COIMBrA – UC)GABrIElE COrNEllI (UNB) (GT Platão e o Platonismo)O Cármides de Platão: o embrião da teoria sobre o processo psicossomático..........643

lINCOlN MENEzES DE FrANçA (UFSCar)Hegel leitor de Aristóteles: a Ideia que a Si retorna, o motor imóvel, o movimento circular e teleologia....................................................................................................651

629Pitágoras: do antigo xamanismo à nova pesquisa

Pitágoras: do Antigo Xamanismo à Nova Pesquisa

Nicola Stefano Galgano* * Doutorando USP.

ResumoEste artigo pretende mostrar, na passagem do mito ao logos, um aspecto do papel fundamental que Pitágoras assume, embora não isoladamente, onde as antigas formas de sabedoria, cujas fontes devem ser procuradas no xamanis-mo ancestral, recebem um novo tratamento a partir do logos. No xamanismo, a sabedoria é recebida pelo xamã diretamente dos deuses. A proposta de Pitá-goras, de formação xamanística, mas também instruído no iluminismo jônico, é a inversão da direção de aproximação entre o homem e o deus: não mais os deuses descem até os homens, através de práticas mágicas, instruindo--os, mas os homens se elevam até os deuses pelo conhecimento do mundo, através da pesquisa orientada pelo logos. O artigo justifica assim, de forma teorética, a tradicional atribuição a Pitágoras da invenção do termo ‘filosofia’.Palavras-chave: Pré-socráticos, Pitágoras, xamanismo, Parmênides, mito, logos.

Muitos estudiosos atuais – em atitude oposta aos estudiosos do final do século XIX e início do XX – tendem a amenizar as diferenças entre pen-samento mítico e filosofia e, por conseguinte, tendem a amenizar os

elementos de ruptura do novo pensamento filosófico em relação ao antigo pensa-mento mítico. Amenizar ou acentuar essas diferenças é uma querelle que podemos evitar assumindo aqui a seguinte posição: há uma diferença entre pensamento mí-tico e pensamento filosófico; sem recorrer à quantificação ou qualificação dessa diferença – grande, pequena, parcial, total, superficial ou radical – assumimos ape-nas que ela existe, por menor que possa ser, e que ela deve definir um período an-tes dela, onde certo assunto é tratado de certa forma, e outro período a partir dela, onde o mesmo assunto é tratado de outra forma. A assunção desta diferença está

630 Nicola Stefano Galgano

apoiada nos textos. Por um lado temos alguns textos dedicados à pars destruens, como por exemplo alguns versos de Xenófanes:

Mas os mortais acreditam que os deuses são gerados,

que como eles se vestem e têm voz e corpo. (DK B 14)1

E ainda:Os egípcios dizem que os deuses têm nariz chato e são negros,

os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos. (DK B 16)2

Xenófanes expõe claramente a tendência antropomórfica das várias religiões e, sem temor e nem rodeios, diz que o homem cria os deuses a sua imagem e seme-lhança; para os Trácios, que eram um povo ruivo, os deuses eram ruivos, e para os etíopes (egípcios), de etnia negra, os deuses eram negros. Por fim, para não deixar dúvidas sobre suas intenções críticas, Xenófanes conclui que:

Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões

e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens,

os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois,

desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam

tais quais eles próprios têm. (DK B 15)3

Mas além da crítica lúcida às religiões e ao antropomorfismo, Xenófanes pro-põe também uma pars construens: uma cosmovisão inovadora a partir do novo na-turalismo jônico. Outros filósofos também narram que o mundo divino não é mais suficiente para os homens. Vemos isto em Platão, no mito de Prometeu contido em seu diálogo ‘Protágoras’, ou ou ainda em Ésquilo, na trilogia da ‘Oréstia’. Em ambos os casos, os deuses decidem que é chegada a hora deles se retirarem em seus mun-dos e de deixar aos humanos as questões de governo, isto é, de determinar quais são as leis que regem as coisas e, portanto, as leis que devem reger as condutas e as organizações humanas. E essa mesma visão é apresentada de forma lapidar e com nitidez máxima por Parmênides no seu Poema Peri Phýseos, ‘Da natureza’. Como se sabe, nesse Poema uma deusa (sem nome) instrui o discípulo (kouros) a respeito de todas as coisas: tanto a respeito das coisas verdadeiras quanto a respeito da opinião dos mortais. Em certo momento de sua explanação, a deusa diz:

1 XENÓFANES, Sátiras, DK B 14.

(Trad. PRADO, in CAVALCANTE DE SOUZA, 1978: 64)2 Ibidem. <φασι πέλεσθαι>.

631Pitágoras: do antigo xamanismo à nova pesquisa

....mas discerne em discurso4 controversa tese

Por mim exposta.(DK B 7, 5-6)5

O fato é extraordinário: é a própria deusa que diz ao discípulo ‘não se fie por princípio das minhas palavras, mas procure entender pelo raciocínio a tese contro-versa que eu expus’. É evidente que algo novo acontece em relação ao pensamento tradicional, onde tão somente a fé e a crença irrestrita e sem dúvidas, mantinha coesa a fragmentária e multicolorida visão de mundo oferecida pela mitologia. A deusa diz: pense com sua própria cabeça. Por um lado temos uma deusa que é sábia e, falando o que sabe, oferece seu conhecimento aos homens, e esta é a visão tradicional: os deuses descem até os homens e os instruem. Por outro lado, é a pró-pria deusa que diz que o conhecimento pode e deve ser alcançado pelo homem por meio de um instrumento muito especial, o logos, o raciocínio. Não é aqui o caso de aprofundar a vexata questio sobre a natureza do logos, ou mais especificamente so-bre a natureza do logos na filosofia grega ou nos pré-socráticos ou em Parmênides. O que nos interessa aqui é o fato de que Parmênides diz que não é mais a sabedoria divina que deve descer até o homem, mas é o homem que pode alcançar com suas forças o conhecimento verdadeiro ou, em outras palavras, a sabedoria divina. Ora, Parmênides é anterior a Platão e é anterior a Ésquilo também. Será esta uma ideia sua? Ou tal ideia é ainda anterior a Parmenides? Pugliese Carratelli afirma que o primeiro a propor esta inversão de direção foi Parmênides. Se nos limitarmos aos documentos escritos, certamente Pugliese Carratelli tem razão. Mas, se resolver-mos fazer um passo para trás veremos que o primeiro deve ter sido Pitágoras6. Veremos que coube a ele a tarefa de inverter a direção da união entre o divino e o humano: antes dele, do divino para o homem, depois dele, do homem para o divino. Mas Pitágoras é figura extremamente controversa e, antes de tudo, teremos que tracejar sumariamente a questão pitagórica.

A questão PitagóricaPela falta de documentos confiáveis referidos ao próprio Pitágoras, os estu-

diosos de História da Filosofia Antiga preferem falar de pitagorismo. Mas mesmo 4 Cavalcante de Souza traduz “em discurso” a expressão ‘λόγωι’; a maioria dos autores traduz: pelo raciocínio («pour rasoinner», ZAFIROPULO, 1950: 134: «col ragionamento» UNTERSTEINER, 1979: 143; «by argument», BARNES, 2000: 170; «mediante el razonamiento», CORDERO, 2005: 219.). Na verdade, a tradução é controversa e, de fato, a expressão parmenidiana não pode ser entendida como raciocínio no nosso sentido atual. Mesmo assim, a expressão faz referência à força do discurso que tem que se impor como critério de persuasão; a essa força nós damos atualmente o nome de racio-cínio argumentativo, o que, para além das arestas filológicas, confirma essencialmente as traduções aqui propostas. 5 PARMÊNIDES, DK B 7, 5-6: (Trad. CA-VALCANTE DE SOUZA, 1978:141)6 O próprio Pugliese Carratelli é um partidário daquela linha de pensamento que vê no pitagorismo uma corrente religiosa órfica, reformista em relação ao orfismo tradicional. Então, antes de tudo, o pitagorismo propõe uma crítica ao orfismo. Se isto estiver certo, em algum momento há um conflito entre o orfismo tradicional e o pitagorismo e que sucessivamente se resolve com uma reforma.

632 Nicola Stefano Galgano

em relação ao pitagorismo há muitas questões e dúvidas documentais.7 Em geral costuma-se dividi-lo em dois momentos, o primeiro pitagorismo e o segundo pita-gorismo. O primeiro se refere aos discípulos diretos de Pitágoras ou aos discípulos de discípulos. Já o segundo pitagorismo costuma ser referido, já a partir de Philo-lau de Crotona e até Aristoxeno de Tarento, numa época que acompanha a Acade-mia platônica até o Liceu aristotélico e pouco mais.

O pitagorismo é uma filosofia extremamente rica e fecunda e desde seu fun-dador encontrou seguidores e admiradores. Ao longo dos séculos existiram, e até hoje existem, no mundo círculos pitagóricos seguindo e difundindo a ‘sabedoria pitagórica’; nenhuma outra filosofia teve sucesso popular quanto a assim chama-da ‘filosofia pitagórica’. No entanto, surge a primeira questão. Em que consiste a filosofia pitagórica? A resposta é extraordinariamente interessante. Em relação ao pitagorismo acontece um fato, apontado por Zeller, que é o inverso do que acon-tece com a maioria dos autores da antiguidade clássica e pré-clássica. Diz Zeller: “...a tradição a respeito do pitagorismo e do seu fundador sabe dizer tanto mais, quanto mais se afasta no tempo dos fatos históricos relativos, e ao contrário, ela é na mesma proporção tanto mais silenciosa na medida em que nos aproximamos cronologicamente de seu objeto próprio.”8

O primeiro problema do pitagorismo consiste exatamente nesta ‘tradição’, a qual se avoluma na medida em que se afasta cronologicamente de Pitágoras: uma quantidade enorme de textos, máximas, orações e regras atribuídas a Pitágoras, de origem certamente espúria em sua quase totalidade. Aqui vamos tentar contornar este problema da seguinte forma, utilizaremos apenas os testemunhos mais anti-gos e mais confiáveis, a saber: Xenófanes, Heráclito, Platão e Aristóteles.

Um segundo problema consiste na vida de Pitágoras. Trata-se de uma vida lendária e pareceria simples resolver o problema apenas desconsiderando a bio-grafia. No entanto, a lenda da vida de Pitágoras faz parte de sua atitude filosófica e, por certos aspectos, pode ser considerada central em seu pensamento. Aqui toma-rei apenas alguns elementos do bios pitagórico, principalmente aquela parte citada por Platão na República.

Um terceiro problema é determinar qual é a filosofia pitagórica. Este é tema dos mais controversos e de nenhuma maneira pode ser abordado aqui, conside-rando que há milhares de livros volumosos discutindo o assunto. Limitar-me-ei apenas a um dos temas clássicos da doutrina pitagórica: o tema do número.

Que sabemos de Pitágoras? Com certeza, sabemos muito pouco. As citações claras mais antigas se devem a Heráclito. De fato, no fragmento DK B 40 ele diz: 7 A grande problematicidade da questão pitagórica pode ser vista num livro de recente publicação – CORNELLI, G. (2011) “O pitagorismo como categoria historiográfica” – onde o autor faz um notável apanhado do complexo emaranhado dos estudos sobre pitagorismo nos últimos 150 anos. O livro consegue o grande resultado de apresentar de forma crítica e ordenada uma imensa quantidade de materiais, tornando-o, na prática, um manual indispensável ao estudioso por permitir uma consulta historiográfica que, de outra forma, é quase sempre uma tarefa das mais árduas.8 ZELLER, 1950: 299.

633Pitágoras: do antigo xamanismo à nova pesquisa

“A polymathia não ensina a ter inteligência; pois a teria ensinado a Hesíodo e a Pitágoras, e depois a Xenófanes e a Eucateu.”9

Mas a censura de Heráclito não para nisso (DK B 81): “(Pitágoras) ancestral dos charlatães”10.

Há ainda outro fragmento (DK B 129) que nos fala diretamente da atitude de Pitágoras:11

“Pitágoras, filho de Mnesarco, praticou a pesquisa científica (historie) mais do que qualquer outro e tendo feito uma seleção desses textos, realizou sua própria sabedoria: compilação sábia, arte enganadora.”

O aspecto interessante, e que confere grande valor a esses fragmentos, é o fato de Heráclito – diferentemente da grande maioria das referências a Pitágoras feitas por outros pensadores da antiguidade – assumir uma postura extremamen-te crítica. Chamando-o de polímate na verdade o acusa falsa sabedoria. Mas como é possível ver pelo fragmento B 40, Heráclito critica não Pitágoras, mas a polimatia, então podemos aceitar o fato de que Pitágoras era um sábio, daquele tipo versa-do em muitas coisas, isto é, um polímate, ainda que Heráclito ache que a polima-tia seja uma falsa sabedoria. Por outro lado, no fragmento DK B 129, Pitágoras é apresentado como alguém que se dedicou à pesquisa mais do que ninguém. Então, Pitágoras não era um sábio nos moldes tradicionais, como eram os sábios sacerdo-tes que apenas aprendiam um conjunto de saberes, em geral de um único mestre, reproduzindo os conhecimentos já adquiridos e retransmitindo-os: Pitágoras era um novo tipo de sábio e é nossa tarefa explicitar essa novidade. Voltando ao fr. B 129, a expressão grega κακοτεχνίη (kakotechnie), que literalmente quer dizer má arte, tem sido entendida por alguns estudiosos como uma dedicação de Pitágoras ao xamanismo.12 Tal referência não é descabida, mas requer alguns reparos.

9 Heráclito, DK B 40.

10 DK B 81 Este fragmento na verdade é deduzido de um fragmento mais longo: “O ensino dos oradores tende a isto com todos seus preceitos e é, segundo o ditado de Herácli-to, “criador de chartlatães”. Outros chamavam kopídes os artifícios de oratória, entre os quais Timeu, que escreve assim: Resulta então claro que não é Pitágoras o criador das verdadeiras kopídes, nem daquelas das quais Heráclido o acusou, mas que o próprio Heráclito é o charlatão.” Portanto, disso se deduz como fragmento de Heráclito: Ancestral dos charlatães (Pitágoras).11 Heráclito, DK B 129.

Diels considerou este fragmento espúrio, mas sucessivamente foi recuperado por Reinhardt e Wila-movitz. Cf. Marcovitch, 2001: 68-70 e Kahn, 1979: 113-4.12 Por exemplo, Burkert, citado por MARCOVICH, 2001: 70.

634 Nicola Stefano Galgano

XamanismoUma pergunta que vem sendo repetida com mais frequência nos últimos

anos é a seguinte: o que havia antes dos pré-socráticos?13 A resposta é muito com-plicada porque os textos dos pré-socráticos se encontram no início da escrita na Grécia, então antes dos pré-socráticos a cultura era oral, o que exclui imediatamen-te a pesquisa padrão de história da filosofia antiga, que é realizada normalmente através de textos diretos ou citações e fragmentos dos doxógrafos. Para a pesquisa de cultura não escrita é preciso recorrer a outras disciplinas, quais a arqueologia, a etnologia e a antropologia. Para o histórico da filosofia antiga isso se apresenta como uma grande dificuldade a mais, já que tais disciplinas têm seus instrumen-tos e metodologias próprios. No entanto não há como escapar, já que Homero e Hesíodo, os únicos textos anteriores ao que nos resta dos pré-socráticos, não são suficientes para fornecer um quadro cultural satisfatório.

Sabe-se que a transmissão cultural entre gerações significa uma enorme van-tagem, em sentido evolucionista, em relação àqueles povos que não dispõem desse recurso. De fato, os conhecimentos relativos às técnicas de caça, que era praticada não por um homem sozinho mas por um grupo de homens, representando a for-mação social daquele grupo, tinham que ser passados adiante no grupo. A maneira que foi encontrada foi a maneira ritualística e o conhecimento acabou confiado a uma pessoa, de agora em diante responsável pela tribo inteira. A transmissão oral foi estruturada ao lado de outro tipo de memória, chamada de memória externa: o rito. E, ademais, o rito de caça tinha que expressar o vigor da atuação do grupo em vista da caça, ou seja, eram rituais violentos que incluíam sacrifícios humanos rituais e canibalismo ritual. Estas práticas foram cristalizadas em volta do rito, qual memória externa e numa textualidade confiada a um certo indivíduo, com poderes diferenciados, como memória interna; o todo imergido num ambiente cognitivo de aprendizagem atualmente conhecido como abdução.

Esse homem de poderes diferenciados e superiores aos de cada elemento do grupo é o sábio-médico-sacerdote. Atualmente, em ambiente antropológico essa figura social recebe o nome de xamã, o qual não é mais referido apenas ao xamã da Ásia central siberiana, estudado por Mircea Eliade, mas é uma denominação muito mais genérica. Para deixar mais claro, podemos distinguir duas definições: para a primeira, latu sensu, xamã indica um “indivíduo dotado de prestígio e de ca-risma mágico-religioso dentro de uma sociedade ‘primitiva’.”;14 já para a segunda definição, strictu sensu, xamã é aquele homem que, através de uma técnica arcaica do êxtase, entra em contato com o mundo sobrenatural “para resolver uma crise so-ciocultural, um conflito, um problema individual ou de grupo, que esteja acontecendo ou que se presume que irá acontecer. O xamã é antes de tudo um intermediário pro-fissional, um perito em técnicas extáticas que permitem colocá-lo em comunicação

13 Veja-se a respeito a excelente discussão de Michela Sassi em Gli inizi della filosofia: in Grecia. Milão 2010, de próxima tradução em português pela Loyola.14 COSTA, 2008: 146.

635Pitágoras: do antigo xamanismo à nova pesquisa

com outros mundos para resolver os problemas espirituais e práticos dos homens.”15 O xamã recebia sempre uma dupla instrução, uma de ordem extático (sonhos, tran-ses, etc.) e outra de ordem tradicional: técnicas rituais, nomes e funções dos espí-ritos, mitologia e genealogia do clã, linguagens secretas, cantos, etc. No final de sua instrução, o xamã se tornava uma personagem de referência espiritual do grupo e acumulava as funções de:

“médico e terapeuta; adivinho; psicopompo; feiticeiro da caça e ‘senhor dos animais’; sacerdote atendente aos sacrifícios; poeta, músico, cantor, mímico, dançarino guardião da cultura e da literatura oral; místico e viajante extático; sábio naturalista, aquele que tudo conhece.”16

Pitágoras responde a alguns dos itens dessa descrição. Sem recorrer à ‘tradi-ção pitagórica’ e ficando com os testemunhos mais antigos, ao menos o último item (aquele que tudo conhece) atende à acusação de polimatia feita por Heráclito. Mas é hora de conhecer as referências de Aristóteles: “Uma vez, quando estava senta-do num teatro - conta Aristóteles - levantou-se e mostrou aos que estavam sentados sua coxa de ouro.”17 Ter uma parte do corpo de ouro é uma das características dos xamãs. O que se quer evidenciar até aqui é que a lenda da vida de Pitágoras, lenda já viva na época de Aristóteles, indica que ele recebeu uma instrução tradicional no sentido xamânico da palavra. Não sabemos em que consistiu essa instrução, porque as tradições xamânicas variavam de clã a clã. Entretanto, a formação de Pitágoras em Samos, sua cidade natal, na Jônia, aconteceu numa época especial marcada pelo surgimento de um tipo de pensamento com forte componente natu-ralista. Conta a tradição que ele estudou com Tales ou com Anaximandro. Mesmo que esta tradição não corresponda à verdade, é inevitável admitir que a sua ins-trução tradicional foi fortemente influenciada pelo pensamento naturalista jôni-co18. Agora, e aqui chegamos no cerne da nossa questão, ao contrário da reação de muitos estudiosos, os quais se escandalizam em pensar nesses primeiros filósofos como xamãs ou místicos ou sacerdotes, eu penso, pelo contrário que a aprendiza-gem sacerdotal ou de alguma forma ligada a práticas religiosas não era a exceção naquela época mas a regra. De forma que, me parece, não há nenhuma novidade em descobrir que Pitágoras era um ‘xamã’ em sentido lato ou estrito que seja. A verdadeira novidade consiste exatamente na passagem do pensamento xamânico (ou sacerdotal ou mítico) para o pensamento naturalista e filosófico. No caso de Pi-tágoras essa passagem é das mais interessantes e não é por acaso que sua filosofia foi e é fascinante, como veremos agora.

15 Ibidem: 146-7.16 Ib. 152-3.17 Aristóteles, “Dos Pitagóricos” obra perdida cujos fragmentos são recolhidos em Rose, Aristotelis Fragmenta, 190-205:

18 Veja-se, a respeito, o excelente artigo de Rossetti: ROSSETTI, L. (2013) When Pythagoras was still Living in Samos (Heraclitus, frg. 129). In (ed. Cornelli, G.; McKiraham, R.; Macris, C.) On pythagoreanism, De Gruyter, Berlim, no prelo.

636 Nicola Stefano Galgano

O numero e a harmoniaAntes de passar a examinar mais de perto a questão da harmonia, que é a

essência da mensagem pitagórica, vamos expor a questão do número nos Pitagóri-cos e sucessivamente algumas questões de ordem antropológica. O que é número? Ouçamos de novo Aristóteles19:

“Contemporâneos a estes filósofos, e até mesmo anteriores a estes, são os assim chamados Pitagóricos. Eles foram os primeiros a se dedicar às matemáticas e as fizeram progredir [...] e, por fim, já que parecia a eles que todas as coisas, em toda a realidade, fossem feitas a imagem dos números e que os números fossem aquilo que é primeiro em toda a realidade, pensaram que os elementos dos números fossem elementos de todas as coisas, e que todo o céu fosse harmonia e número”.

O que quer dizer que “pensaram que o céu fosse número”? Para nós essa afir-mação soa demasiado estranha, pois podemos admitir que as coisas sejam ordena-das pelo número mas não que elas próprias sejam número. O mistério se desfaz se analisarmos a evolução do conceito de número desde formas de cultura muito pri-mitivas. De fato, para a mentalidade primitiva o número é algo que pertence às coi-sas. As pesquisas antropológicas dos estados pré-lógicos de pensamento, mostram amplamente que, na ausência total ou parcial de abstração, o número é uma qua-lidade das coisas e não algo separado que é utilizado para enumerar. Lévy-Bruhl, num livro famoso20, no capítulo V, analisa a função da numeração nas sociedades pré-lógicas. Utilizando as pesquisas de vários antropólogos, ele evidencia que em muitas tribos (Austrália, América do Sul, etc.) há nomes apenas para os números 1, 2 e às vezes 3. Mais do que isto, para estas tribos, é uma multidão.

Já nas sociedades com estruturas lógicas incipientes, o número é mais abs-trato mas ainda muito ligado aos objetos e se configura como número-conjunto, ou seja um número cujo nome varia em função do tipo de objeto que é nomeado; cada grupo de objetos recebe um prefixo que é utilizado apenas para aquele tipo de objetos. Nesse tipo de sociedade mais avançada, os números que têm nome não se limitam aos primeiros dois ou três, alcançam e ultrapassam a dezena; no entanto não são numa série indeterminada como no nosso caso. Foram coletados casos de nomes de números que inicialmente significavam um certo número e depois passaram a significar um número maior, como por exemplo, primeiro significavam 10, depois 100 e depois ainda 10.000; onde se chegou à conclusão que este nome--número significava o número-limite, sendo o sucessivo um “inumerável”. Isto sig-nifica que este número-limite não é um número, mas uma palavra que expressa uma representação mais ou menos vaga de um grupo de objetos que excede os

20 LÉVY-BRUHL (1951).

637Pitágoras: do antigo xamanismo à nova pesquisa

“conjuntos-nomes” dos quais se tem uma noção precisa e familiar. E assim conti-nua Levy-Bruhl: “Conforme a numeração faz progressos, esse termo se torna um número, e um número cada vez mais elevado. Quando enfim a numeração é feita por meio de números abstratos, como os nossos, este termo limite desaparece. O número se diferenciou totalmente das coisas numeradas. As operações do pensa-mento lógico substituíram os procedimentos da mentalidade pré-lógica”21.

Mais adiante Levy-Bruhl se dedica à análise da mística dos números. “Quan-do os números são nomeados, quando uma sociedade dispõe de um sistema de numeração, disso não segue que os números são, ipso facto, concebidos abstrata-mente. Pelo contrário, eles permanecem geralmente ligados à representação dos objetos mais comumente computados.” Mas é preciso levar em conta que nas so-ciedades primitivas a vertente mística é forte e abrange tudo que é percebido. De forma que o número, conforme vai sendo dissociado do objeto de referência, con-forme vai sendo abstraído “ele é representado necessariamente com uma virtude e um valor místico que pertencem àquele número e somente a ele, por causa de participações igualmente místicas. Os números e seus nomes são indistintamente os veículos destas participações.”22

Cada número assume então uma fisionomia individual própria, uma espécie de atmosfera mística, um campo de força que é específico dele. Portanto, desse ponto de vista, os números não se constituem numa série homogênea e, de fato, são impróprios para as operações lógicas ou matemáticas, por mais simples que sejam. As únicas operações que admitem são as operações místicas, não submeti-das, como as aritméticas, ao princípio de não contradição: “Em suma, pode-se dizer que, para a mentalidade das sociedades inferiores, o número é indiferenciado (com graus diversos) de dois pontos de vista. No uso prático, ele é ainda mais ou menos aderente aos objetos numerados. Nas representações coletivas, o número e seu nome participam ainda tão estreitamente das propriedades místicas dos conjuntos representados, que eles são mais propriamente realidades místicas eles próprios, que unidade aritméticas.”23

Até aqui Levy-Bruhl. Um complemento para estas considerações pode ser en-contrado no trabalho de Cassirer “Filosofia das formas simbólicas”. Aqui apenas co-locaremos algumas rápidas anotações. Cassirer mostra como as estruturas espaço, tempo e número são primordiais na nossa cognição e como contribuíram e evoluí-ram na nossa cultura. Especificamente em relação ao número, Cassirer ressalta que se por um lado o número teorético “significa o grande laço de união que pode aglu-tinar os conteúdos mais heterogêneos para reduzi-los à unidade do conceito”24, por outro lado, no pensamento mitológico “aparece inteiramente como uma ‘entidade’ originária e comunica a sua essência e seu poder a tudo aquilo que é submetido a

21 Op. cit., p. 230.22 Ib., p. 236.23 Ib., p.237.24 CASSIRER, E. (1998), p. 181.

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ele”25. Pois, continua Cassirer, “enquanto que para a ciência o número se converte em critério da verdade, em condição e preparação de todo conhecimento rigorosamente “racional”, aqui (no pensamento mitológico) imprime o caráter de mistério a tudo que cai dentro de sua esfera, a tudo que entra em contato e se mistura com ele; de um mistério cuja profundidade não é alcançada pela sonda da razão.”26

Estes dois aspectos do número, o concreto e o abstrato, na linguagem de Levy-Bruhl, ou teorético e mitológico, na linguagem de Cassirer, representam as duas vertentes de pensamento que, tendo como origem o “mesmo” fenômeno, o número, se desenvolvem e trabalham em esferas que se intersecam muito pou-co ou quase nada. Quando o número – de início, uma qualidade das coisas – se destaca do objeto, quando passa a ter uma autonomia, ele se apresenta em veste totalmente mística; somente muito depois ele começa a assumir o aspecto quanti-tativo que hoje nós conhecemos. E na aurora do pensamento racional, portanto, o número não podia não estar envolvido pela aura de misticismo. Por conseguinte, podemos dizer que erram aqueles críticos que não conseguem enxergar em Pitá-goras o rasgo súbito da intuição teorética do número: a intuição racional pitagórica em relação ao número, ela se constitui em verdadeira e genuína ciência, no sentido moderno da palavra; uma intuição que se diferencia radicalmente do imenso pano de fundo totalmente mágico-místico.

Esclarecido que o número, quando é qualidade do objeto então ele é o objeto, assim como a cor azul deste livro é o livro (o livro é azul), fica mais fácil entender a afirmação de que as coisas são números e que o céu é número. E é possível identi-ficar a origem antiga dessas concepções e ao mesmo tempo reforçar a ideia de um Pitágoras instruído na sabedoria antiga mágico-religiosa de tipo xamânico do qual falávamos antes. Porém, por outro lado, como vimos pelo testemunho de Heráclito, Pitágoras pesquisou mais que qualquer outro, como que insatisfeito pelos conhe-cimentos já adquiridos e como que em busca desse algo mais.

A pesquisa histórica mais recente estabeleceu que muito provavelmente Pi-tágoras pertencia ao grupo religioso do orfismo. Não é o caso de falar aqui destas pesquisas e de como isto foi estabelecido, porque nos levaria longe demais. Mas vamos aceitar esse dado, fornecido por grandes estudiosos como, mais antigamen-te, Guthrie e mais recentemente Burkert, Kingsley, West, Pugliese-Carratelli. Na verdade, antes de tudo é necessário distinguir Orfeu dos Órficos. Orfeu é um poeta trácio de uma geração anterior a Homero, mas é impossível imaginar o orfismo sendo tão antigo ou surgindo na Trácia27. Os dados mais seguros colocam os Órfi-cos apenas no VI século a.C. e em duas regiões, em Atenas, com Onomácrito e no Sul da Itália com os Pitagóricos. A doutrina órfica28 afirmava que o homem tinha

25 Ibidem, p. 184.26 Ib., p. 188.27 GUTHRIE (1950), p. 314.28 Ibidem, p. 307 e passim.

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dois aspectos, o titânico que era mau e o dionisíaco que era bom. E prescrevia uma vida organizada segundo um regime de pureza que incluía a abstenção do alimento cárneo; o motivo estava ligado à doutrina da reencarnação. Este tipo de prescri-ções aliadas a práticas ascéticas permitiam ao indivíduo purgar o aspecto titânico (símbolo do corpo) e preservar o aspecto dionisíaco (símbolo da alma) e, portanto, escapar do ciclo das reencarnações.

Deixando de lado a questão da reencarnação, que adiamos para uma próxima oportunidade, vamos nos concentrar sobre o que de órfico existiria no pitagoris-mo. E de órfico, a tradição – aquela tradição que se avoluma na medida em que se afasta cronologicamente de Pitágoras – nos diz que os pitagóricos possuíam o con-ceito de harmonia. Neste caso, a sorte ajudou o historiador. Nos anos 60, em Der-veni, perto do Mar Negro, foi encontrado um papiro do século IV; desde os anos 60, só recentemente foi publicado integralmente.29 O assunto do papiro é exatamente uma exegese de um texto órfico muito mais antigo, podendo chegar à primeira metade do século V, ou seja, à época de Parmênides. O autor do papiro explica os símbolos contidos numa lenda órfica. Além de um material riquíssimo e até mesmo um fragmento de Heráclito, em certa passagem, na Coluna XXI, se faz referência à deusa Harmonia.30 O Papiro de Derveni é o texto direto mais antigo que possuímos da inteira história da filosofia (século IV e referido seguramente à segunda metade do século V e talvez à primeira metade) e ele nos fala da deusa Harmonia relaciona-da aos órficos. Isto significa que o conceito de harmonia é seguramente pitagórico, pois eles atuavam plenamente exatamente nesse século, e é de origem órfica. Cabe então entender o que significa harmonia para esses pensadores.

A origem indo-europeia do termo harmonia está bem estudada e documen-tada desde o fim do século XIX.31 A palavra deriva da raiz indo-europeia *ar e que aparece na palavra grega ararisko, estar junto, juntar, ligar. A conexão entre harmo-nia e ararisko é feita pelo termo harmozo que por sua vez deriva de harma ou, como é usado por Homero, ao plural, harmata e significa ‘carro’. Analisando termos mais arcaicos, como certas inscrições micênicas, o termo (h)armo significava ‘trabalho em conjunto’, como um braço onde partes móveis se juntam para compor uma peça mecânica, como é o caso da roda do carro. A partir desse sentido mecânico de jun-ção, já em tempos remotos, harmonia passou a ter também sentido metafórico.32 Assim em Homero temos o sentido de ‘conveniente’ ‘concordância’ (cf. Il. 22. 254-55). E nos tempos pós-homéricos Harmonia continuou sendo usada em sentido material e intelectual, e o radical *ar acabou dando origem a várias palavras: ar-tus, junção (de onde o latim artus, articulus); harmos, na construção, certo tipo de junção de pedras; harmogé, junção; arthmos, ligação (onde também Chantraine, mesmo fazendo derivar aríthmos do tema ri, admite uma ligação possível com ara-

29 KOUREMENOS, PARÁSSOGLOU, TSANSANOGLOU (2006).30 Ibidem: 137.31 ILIEVSKI, 1993: 20.32 Ibidem: 23.

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risko33), mas também amizade. O sentido musical de Harmonia é atribuído pela pri-meira vez a Lasus, mestre de Píndaro, em referência aos acentos e à entonação das palavras; o sentido plenamente musical se encontra em Píndaro, pela primeira vez. De acordo com os pitagóricos (segundo Aristóteles, como vimos acima) e também com Heráclito (DK B XX), a ordem das coisas, o cosmo, apresenta uma Harmonia externa, resultado de uma harmonia interna que não se vê, afanés harmonia, que une os elementos opostos do mundo.34

Vamos voltar agora ao nosso número. O sentido pré-histórico do número, como vimos, é qualitativo e, confundindo-se com a própria coisa numerada, ex-pressa um agrupamento, um conjunto, uma junção. Portanto, o que determina o número, considerado qualitativamente, é exatamente a junção dos elementos, ou seja, a harmonia. Obviamente, unir harmonicamente significa unir coisas diferen-tes, ou seja, a harmonização de coisas, ou até de coisas opostas, não é uma simples justaposição. Por exemplo, para nós um monte de areia não é uma justaposição de grãos de areia, mas uma união com alguma coerência entre todos os elementos que justifica falar em um monte de areia, ao invés de um mais genérico, ‘areias’ ou, outro exemplo, manada ao invés de rezes. A harmonia é algo que une os diferentes, mas não de uma forma qualquer, une de uma forma precisa, segundo uma harmo-nia (*ar, junção) justa (ri, exato). O aríthmos pitagórico é exatamente esta junção exata; hoje nós damos a essa junção exata o nome de proporção.

Depois desse apanhado filológico podemos voltar à questão filosófica. O que esses pré-socráticos descobriram é tão somente o conceito de TODO, conceito nem sempre devidamente estudado pelos historiadores. O que faz do mundo um todo? Para um homem instruído na harmonia órfica, o que faz do mundo um todo é exa-tamente a harmonia. O todo do mundo é visto por Pitágoras como um sistema or-denado pela harmonia. Posto isto, ele cumpriu o grande passo: sabemos que o todo é presidido pela harmonia, a qual é proporção entre diferentes e, portanto, regida por um aríthmos; é suficiente conhecer esse aríthmos para conhecer o mundo.

O bios pitagóricoVamos agora falar do último item partindo de uma citação de Platão. Na úni-

ca passagem em sua obra em que Platão fala de Pitágoras ele diz o seguinte:

“Porém se não na esfera pública, ao menos naquela privada Homero tem fama de ter dirigido a educação de alguns que amaram sua companhia e transmitiram aos descendentes um sistema de vida homérico, como o próprio Pitágoras foi ex-traordinariamente amado por isto e ainda agora seus discípulos, chamado pita-górico o seu modo de viver em certo sentido parecem se distinguir dos outros?”35

33 CHANTRAINE, 1977:108-09.34 Ib. 24 et passim.

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Segundo Platão, Pitágoras estabeleceu um modo de vida, um bios pythagori-kós. Há uma história que pode contribuir a esclarecer em que consistia esse modo de vida pitagórico. É o famoso relato de Dionísio, tirano da Sicília, reportado por Aristoxeno, que diz que o ouviu pessoalmente do próprio Dionísio; trata-se da his-tória de Fintias e Damon;36

Em grego, amizade é philia. A philia, como mostra a história de Fintias e Da-mon, é o traço característico do modo de vida pitagórico, aquela dedicação ao ou-tro, aquela aproximação ao essencial que pode receber também o nome, em sen-tido moderno, de amor. Essa é também a descrição de Platão, a qual agora deve parecer totalmente óbvia: a philia é a dinâmica da harmonia. A harmonia é sua estática é o número e em sua dinâmica é esta devoção ao outro. Mas esse outro não é só o amigo, com Pitágoras esse outro é generalizado a todo ente do cosmo, em re-lação ao qual a philia precisa descobrir a Harmonia. E de fato, ele tinha uma escola, onde era amado pelos discípulos; ali se praticava a philia – ou seja, a harmonia em exercício – não só voltada às pessoas, como diz Platão dos discípulos em relação ao mestre, mas também uma investigação (e, portanto, uma aprendizagem), como nos diz Heráclito, por dedicação ao objeto de estudo. Entretanto, este objeto de estudo não era mais a herança cultural que era transmitida de xamã a xamã para entrar em contato com os deuses e aprender com eles. Agora existia uma noção nova, a harmonia do todo, a qual permitia que qualquer coisa fosse pesquisada com philia, amor, dedicação, que em latim se diz studiare. A atitude de dedicação (studiare), o estudo, é a nova forma de alcançar um saber que já é trans-religioso e trans-tribal. O estudo, pelo método da busca da proporção entre as coisas (a busca da harmo-nia), é agora voltado a todas as coisas, pois todas as coisas pertencem a uma mes-ma ordem. O estudo, essa dedicação, é afinal voltado ao querer saber de todas as coisas do mundo, em suma, é a dedicação à sabedoria. Pelo estudo do mundo, não são mais os deuses que descem até os homens, mas são os homens que se elevam até os deuses, até a sabedoria.

36 JÃMBLICO, 1991: XXXIII, 234-36. “Fintias fora acusado injustamente e o tirano Dionísio mandou chamá-lo e “diante de seus acusadores afirmou que ele tinha sido descoberto numa conspiração, junto com outros, contra ele e isso era testemunhado pelos presentes; assim a indignação do tirano parecia totalmente sincera. A estas palavras, Fintias reagiu com surpresa. Mas, já que o próprio Dionísio afir-mava que fizera todas as certificações e que era necessária a pena de morte, Fintias respondeu que, se ele tinha decidido assim, que concedesse ao menos o resto do dia para ajeitar seus negócios e aqueles de Damon. Os dois homens, de fato, viviam juntos e tinham seus bens em comum, mas Fintias, por ser mais velho, era encarregado da maior parte da administração; e por isso pedia de ser liberado, ofere-cendo Damon como garante. (236) Dionísio - como contava - ficou maravilhado e perguntou se existisse uma pessoa disposta a garantir uma condenação a morte. De Fintias recebeu uma resposta afirmativa. Assim, mandaram vir Damon, o qual, quando lhe contaram os fatos, aceitou de servir de garante e de permanecer alí até a volta de Fintias. Dionísio, de sua parte, contava que ficara maravilhado pela coisa, enquanto aqueles que propuseram colocar os dois à prova, caçoavam de Damon, certos de que seria abandonado e teria servido de cerva sacrifical. Porém, quando já o sol estava a se por, Fintias voltou, pronto para morrer, E todos ficaram estarrecidos. Dionísio - sempre pelo relato que ele fazia - então abraçou e beijou os dois e pediu de ser acolhido por eles como terceiro amigo”.

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O estudo é a philia voltada ao saber, que em grego se diz Sophia, formando filosofia, palavra que, segundo a lenda, foi inventada por Pitágoras. Se, por um lado, é verdade que a lenda pitagórica é em geral pouco confiável e espúria, por outro lado, depois do que se disse até aqui, mesmo não tendo fontes documentais preci-sas ou totalmente confiáveis, parece razoável admitir a possibilidade de que tenha sido Pitágoras a inventar o termo Filosofia.

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