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Elismar Bertoluci de Araujo Anastacio Lora Bertolucci
Hélio Serejo: Por uma literatura entre as orilhas da fronteira
São José do Rio Preto
2014
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Elismar Bertoluci de Araujo Anastacio Lora Bertolucci
Hélio Serejo: por uma literatura entre as orilhas da fronteira
Tese apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora em Letras, Área de Concentração - Teoria Literária junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Orientadora: Prof ª. Drª. Norma Wimmer.
São José do Rio Preto 2014
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE
UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto
Anastacio, Elismar Bertoluci de Araujo. Hélio Serejo : por uma literatura entre as orilhas da fronteira /
Elismar Bertoluci de Araujo Anastacio. -- São José do Rio Preto, 2014 152 f. : il.
Orientador: Norma Wimmer Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
1. Literatura brasileira - História, Crítica - Teoria, etc. 2. Serejo, Hélio, 1912-2007 - Crítica e interpretação. 3. Memória na literatura. 4. Identidade (Conceito filosófico) na literatura. 5. Identidade (Psicologia) na literatura. 6. Realismo na literatura. I. Wimmer, Norma. II. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título.
CDU – B869.09
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Elismar Bertoluci de Araujo Anastacio
Lora Bertolucci
Hélio Serejo: por uma literatura entre as orilhas da fronteira
Tese apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora em Letras, Área de Concentração - Teoria Literária junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto.
Banca Examinadora Prof ª. Drª. Norma Wimmer UNESP – São José do Rio Preto/SP Orientadora Prof ª. Drª. Mail Marques de Azevedo UNIANDRADE - Curitiba/PR Prof . Drª. Giséle Manganelli Fernandes UNESP – São José do Rio Preto/SP Prof. Dr. Manuel Fernando Medina UNIVERSITY OF LOUISVILLE/USA Prof. Dr. Nelson Luis Ramos UNESP – São José do Rio Preto/SP
São José do Rio Preto 2014
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In memoriam
O cachorro Pitoco, o preto Domingos, o petiço Guavira, Nhá Chaló, o velho Cariaga, o bugre amigo, Nhá Chamé e muitos outros ficaram na memória de Hélio Serejo. Da minha, exala infância recheada de histórias contadas e vividas por Tomaz “Aguero” e “Dona Tomassa” (Tomassa Benites), nativos, que me anteciparam como conto de fadas, as narrativas fronteiriças perpetuadas nas Obras Completas de Serejo.
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Aos meus pais e irmãos.
Com amor, por amor a vocês: Loreanna, Pedro
e Alfredo. Pagarei em dobro, com abraços,
afagos, festas, alegria, tal como o Joãozinho ao
receber o “dono” no portão.
7
Agradeço, eem especial, a minha querida
orientadora Norma Wimmer e aos doutores, além
docência: Lucilene Machado, Giséle Manganelli
Fernandes, Arnaldo Franco Junior, Danglei
Pereira, Nelson Luis Ramos, Adir Casaro, Maria de
Lourdes Ibanhes e Maria Celeste Tommasello
Ramos, fundamentais na “investida contra o
misterioso desconhecido percurso1” desta tese.
Muito obrigada aos amigos do coração: Maysa
Brum Bueno, Ruberval Franco Maciel, Fabrício
Ono e Valéria Beretta e todos que estiveram comigo
nos momentos em que me sentia “ziguezaguenado
no trilho estreito que parecia não ter fim2”.
1 Livro 34, p. 134. 2 Livro 34, p. 138
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RESUMO
O presente estudo tem como objetivo geral investigar, em narrativas de Hélio
Serejo (1912-2007), a maneira como a fronteira está inserida e as formas
pelas quais se relacionam os sujeitos que passam a transitar na “fronteira
abandonada” em tempo de pós-Guerra e ocupação territorial. Para tanto,
selecionamos as seguintes obras do autor: Homens de aço: a luta nos ervais
(2008), Vida de Erval (2008), Pelas Orilhas da Fronteira (2008), Caraí (2008),
O Tereré que me inspira (2008), Pialando...no Más (2008), Carai Ervateiro
(2008) e No Mundo Bruto dos Ervais (2008), uma vez que os contos, causos,
crônicas, os textos inseridos nessas obras, deslocam-se, sobretudo, da/na
fronteira Brasil – Paraguai e seus personagens reais/ficcionalizados vivem
uma espécie de nomadismo dispersivo em uma zona de fronteira imaginária,
entrecortada – mata adentro - pelos caminhos da Companhia Matte
Larangeira (1877-1944). A possibilidade de analisar, nos vãos que se abrem,
a partir do cruzar – contínuo e temporal – o sujeito fronteiriço, poderá levar-
nos a reconhecer possíveis representações identitárias ainda pouco
estudadas. Sustentará esta investigação, o enfoque teórico-crítico advindo
dos Estudos Culturais tendo como referência os autores: Bhabha (2003), Hall
(2003) Canclini (2003) e Achugar (2006), pois trataremos de uma temática
que transita pelas relações entre literatura e aspecto de formação identitária.
Defendemos que o fazer literário serejiano esteja no narrar aquilo que viu e
ouviu, o que aconteceu e o que teria acontecido na lembrança e no resgate
do esquecido. Estudar a obra de Hélio Serejo é uma forma de (re)descobrir
aspectos de “posições de sujeitos” velados pela história oficial, ainda mais
quando se trata de uma fronteira “onde o Brasil, já foi Paraguay”.
Palavras-chave: Hélio Serejo; fronteiras; identidade; memória; literário; “novos
sujeitos”.
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ABSTRACT
The current study aimed at investigating through Helio Serejo´s narratives
(1912-2007), the way border is inserted and the way by which subjects who
transit in the “abandoned border” in times of postwar and territorial occupation.
In order to do so, the following plays were selected: Homens de aço: a luta
nos ervais (2008), Vida de Erval (2008), Pelas Orilhas da Fronteira (2008),
Caraí (2008), O Tereré que me inspira (2008), Pialando...no Más (2008),
Carai Ervateiro (2008) and No Mundo Bruto dos Ervais (2008), due to the
tales, stories and chronics, texts inserted into these plays shift particularly in
the borders of Brazil-Paraguay and their real and fiction characters experience
a sort of dispersive nomandism in an imaginary border zone, – in the forest –
by the paths of Matte Laranjeira company (1877-1944). The possibility of
analyzing through the spaces, from the crossing – continuous and by the time
– the border subject may lead us to recognize possible identity representations
with few studies. The investigation lies on the critical theoretical approach
based on the cultural studies: Bhabha (2003), Hall (2003) Canclini (2003) e
Achugar (2006), once the main themes transit by the relationship between
literature and the identity formation aspects. We argue that serejian literary
work is in narrating what was seen and listened, what happened and what
would have happened in the memory and in the forgiven revival. Studying
Hélio Serejo play is a way of (re)descovering aspects of
“subjects´positioning” hidden by official history, particularly when the “border
Brazil was once Paraguay” is concerned.
Key words: Hélio Serejo; borders; identity; memory; literary; “new subjects”.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Mensú.......................................................................................................12
Figura 2 - Capa do livro Caraí ervateiro................................................................... 22
Figura 3 - Carta trocada entre Serejo e Nenito Brizueña......................................... 31
Figura 4 - Capa original do livro No mundo bruto da erva-mate.............................. 67
Figura 5 - Caminhos percorridos pelas primeiras comitivas ervateiras de Thomaz
Larangeira no Brasil, a partir de 1888...................................................................... 75
Figura 6 - “Mensu”, “minero”, peão, ser humano capaz de suportar até 150 quilos nas costas.............................................................................................................. 96 Figura 7 - Capa original do livro Heróis da erva ................................................... 106
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 12 2 CAPÍTULO I - CARAÍ HÉLIO SEREJO: O AUTOR DA FRONTEIRA ................. 22
1.1 O ERVATEIRO ESCRITOR ........................................................................... 23 1.2 PATRONSITO DO ERVAL ............................................................................ 34 1.3 A CRÍTICA DE MÃO EM MÃO ...................................................................... 46 1.4 A LITERATURA DE GALPÃO NA FRONTEIRA ACADÊMICA ...................... 55
3 CAPÍTULO II - A FRONTEIRA, A ERVA E O HOMEM.........................................67
3.1 A FRONTEIRA SEREJIANA...........................................................................68 3.2 CAAPÊ-HETA LA CAÁ...................................................................................80 3.3 O ANDARIEGO...............................................................................................84 3.4 EM TRÂNSITO NOS ERVAIS ....................................................................... 87
3.5 ENTREMEANDO............................................................................................92 4 CAPÍTULO III - LITERATURA ENTRE FRONTEIRAS.......................................106
4.1 PRENÚNCIO LITERÁRIO............................................................................107 4.2 A MEMÓRIA................................................................................................116 4.3 PRODUÇÃO DO PRÓPRIO MEIO..............................................................121
4.4 O OLHAR DE TOCAIA.................................................................................125
4.5 AS DIGITAIS SEREJIANAS: ENTRE O VIVER, RELEMBRAR E
CONTAR.....................................................................................................129
CONSIDERAÇÕES..................................................................................................140 REFERÊNCIAS........................................................................................................145
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INTRODUÇÃO
Veio e ficou para escrever com seu sangue, seu suor e suas lágrimas, uma das páginas mais dramáticas, repleta de bravura, desprendimento e resignação da história grandiosa, referente ao povoamento do extremo sul de Mato Grosso, a região ervateira principalmente, que a todos enfeitiçava. (Livro 34, p. 71).
3 Figura 1 - MENSÚ - Fonte: (GRESLLER, 2005, p. 100).
3 O trabalhador encarregado do corte dos galhos da árvore e do transporte da erva-mate denomina-se mineiro ou mensú (Palavra de origem espanhola). A foto foi tirada na década de 1930. (Fonte: GRESSLER, 2005, p. 100).
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A epígrafe acima serve de referência para localizarmos a temática desta
pesquisa: a fronteira e as “gentes” que chegaram onde Hélio Serejo (1912 - 2007) já
estava, de onde saiu e depois contou, pelo viés da lembrança, o que viveu o que viu
e o que ouviu do homem em trânsito, naquele “complexo de afazeres, um mundo
diferente dos demais de que tinha conhecimento,” como o autor assinala em Caraí
(Livro 34, p. 75)4. Um mundo que, segundo o autor, lhe sorvia a agressividade
daquele mister que até então lhe era completamente desconhecido (Livro 34, p. 75),
mas nos dá a conhecido, pois Serejo recupera, pela memória e pelo esquecimento,
aquilo que não está na História oficial.
Embora não esteja explícita, a produção de Serejo tem muita relação com o
que afirma Achugar (2006, p. 143) em relação à hegemonia do tipo “consagrado” de
intelectuais, “[...] na construção de uma espécie de macrorrelato da história e da
cultura que privilegiou a produção elitista das belas letras e das belas-artes, em
detrimento das manifestações populares ou massivas”.
Hélio Serejo (1912-2007), autor de mais de sessenta escritos, nasceu em
Nioaque/MS e cresceu Ponta Porã/MS, primeiros núcleos habitacionais localizados
no espaço em que ocorreu a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). Assim o autor
se define: “Eu sou o homem fronteiriço [...] Sou misto de índio vago, cruza-campo e
trota-mundo. [...] Vim [...] dos entreveros da fronteira, dos ervais sombrios, dos
caminhos perdidos...”.5 Cresceu acompanhando seu pai na lida dos ervais: “hoje
aqui, amanhã ali, íamos rompendo o sertão, tangidos pelo vento cruel de um destino
sempre ingrato” (CAMPESTRINI, 2008, p. 19), convivendo com a cultura da lei do
mais forte, do mais vingativo, da ponta da faca. Daí, saltaram da boca escumenta
dessa gente, paras páginas de uns livrinhos as histórias de bravura, misto de
crendices, fatos históricos desenredados, aumentados, distorcidos, incorporados à
vivência rude dos ervais em que se aglutinam, diversidades culturais, formadas por
fugitivos da justiça, nativos de diferentes etnias, exploradores de mão-de-obra
trocada por fumo, pinga...“extraordinários irmãos paraguaios, exemplos de
perseverança, decência, cavalheirismo e amor ao trabalho” (Livro 30, p. 125.) No
meio disso tudo, há ainda a “valente mulher paraguaia” que veio no desejo de
4 Optamos por citar a obra de Hélio Serejo da forma como está organizada em Obras Completas, num total de cinquenta, organizados em nove volumes. 5 CAMPESTRINI, H. O trilhador de todos os caminhos: Vida e obra de Hélio Serejo. 2008. p. 19. Texto Extraído do discurso de posse do autor na Academia Mato-Grossense de Letras (IX/1790).
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“encontrar meios de ganar com conpensación para ahorrar algunas platitas porque
la viejez llegará com el pasar del tiempo...” (Livro 34, p. 154).
Serejo equilibra-se nas fronteiras das relações reconhecidas como
credenciais para o livre acesso social, tais como: Academia de Letras, coronéis
latifundiários, Empresa Erva Matte Larangeira6 (18827 - 1943), e o homem simples
com o qual conviveu, quando viveu nos ervais. O autor se intitula e afrima “Filho dos
ervais. Por essa razão, ama os simples e respeito os que, gerados do nada, grandes
se fizeram, através de atos nobres, peripeciosa caminhada da vida” (Livro 20, p.
261). A sapiente possibilidade de trânsito livre entre explorados e exploradores,
construída pela ação do contar fatos de homem de “honra, bravura e pujança”, quer
sejam patrões ou peões, (des)centraliza o narrador hegemônico e abre as portas a
outros novos sujeitos, no dizer de Achugar (p. 143).Valeremo-nos das narrativas de
Serejo, no propósito de conhecer mais e melhor esses “novos sujeitos” deslocados
de suas naturalidades e em trânsito interno na fronteira.
Esse propósito se aguça a partir do desejo de estudarmos, com mais
extensão, a obra de Serejo por termos como hipótese que o fazer literário do sujeito
fronteiriço à margem dos padrões estéticos da época, esteja na escolha temática de
algumas realidades da fronteira, tais como: o tempo em que a fronteira do Estado do
Mato Grosso do Sul começou a ser povoada após a Guerra do Paraguai e a
extração da erva mate pela Companhia Matte Larangeira. Neste contexto, está o
homem local – representado pelo narrador/autor/Hélio Serejo – e o homem em
trânsito motivado pelo processo capitalista; o lugar particular, aquele que o próprio
autor conheceu, e o espaço que passa a fazer parte da narrativa, credenciando os
acontecimentos, as atrocidades, as relações de poder, de sujeição, o local que se
6 Embora Hélio Serejo adote a grafia Mate Laranjeira e Tomas Laranjeira, optamos por grafar, quando não se tratar de citação da obra serejiana, Matte Larangeira e Thomaz Larangeira considerando a grafia contida no Decreto nº 436 C, de 04 de julho de 1891, que concedeu autorização a Thomaz Larangeira para organizar uma sociedade anônima sob a denominação de Companhia Matte Larangeira; “O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, attendendo ao que requereu Thomaz Larangeira resolve conceder-lhe autorização para organizar uma sociedade anonyma sob a denominação de Companhia Matte Larangeira,...” (MAGALHÃES, L. A. M. Retratos de uma época: os Mendes Gonçalves & A Cia. Matte Larangeira. Ponta Porã, Mato Grosso do Sul: Gráfica e Editora Alvorada, 2013, p. 42). 7 Segundo o historiador Magalhães (2013, p. 30), Thomaz Larangeira criou no ano de 1877 a Empresa Larangeira S. A., em Concepción, Paraguay. Em Mato Grosso, As explorações ervateiras começaram imediatamente após as primeiras concessões imperiais, datadas de 1882, Decreto Imperial nº 8799, de 9 de dezembro, quando Thomaz passou a instalar ranchadas em Potrero Laguna Capiibary - há três léguas da divisa – em território paraguaio - e no Potrero São Thomaz no lado brasileiro...”.
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abre ao mundo, onde homens se lançam – ou se lançaram – ao incerto, em busca
de “dias melhores” em locais que prometem o progresso.
A leitura da obra de Serejo leva-nos à hipótese de que Serejo
autor/narrador/personagem cria um universo narrativo permeado pelo contexto
histórico do qual afirma ter conhecimento, uma vez que vivenciou o desbravar dos
ervais; identifica-se com os fatos e atos contados em suas narrativas de enredos
relativamente planos; conta, por meio da aparente retratação do real, procurando
referendar a vida nos ervais: “Arregalaram-se-me os olhos [...] Nada escapara dos
meus olhos interrogantes. Era, em verdade, um meninote, que tudo queria saber.”
(Livro 34, p. 75).
Na fronteira de suas experiências de fato, e na confluência dos fatos criados
pelo ato de narrar, autor/narrador/personagem e sujeito histórico se integram em prol
de uma realidade transfigurada pelo real. No entremeio de fatos vividos e recriados
está o fazer literário de um sujeito aparentemente descompromissado com a
denúncia, um narrador que se passa por um eterno apaixonado pela escrita e pela
vida rústica de mata adentro. Um olhar magnetizado pela terra, como ele próprio
define em Ronda do entardecer (Livro 11, p. 09): “[...] o cheiro forte dos brejais, o
gorjeio festivo da passarada, o mormaço que se dilui aos poucos, o aroma das
flores, os ruídos da terra...”. Todavia, nas narrativas estão incrustadas histórias de
exploração, de coragem, de medo, da “lei do mais forte”. Advém, daí, a hipótese:
Serejo revela, além da cor local, questões para além do exótico e do pitoresco.
Insere, “no mundo bruto da erva”, o homem e a vida do homem explorado, aquele
que passa a se aventurar na fronteira Brasil-Paraguai, motivado pela possibilidade
de trabalho na Companhia Erva Matte Larangeira (1882-1943), empreendimento
desencadeador do trânsito na fronteira.
A fim de que possamos investigar as temáticas em discussão, recortamos da
vasta produção de Hélio Serejo alguns textos das obras: Homens de aço: a luta nos
ervais (2008), Vida de Erval (2008), Pelas Orilhas da Fronteira (2008), Caraí (2008),
O Tereré que me inspira (2008), Pialando...no Más (2008), Carai Ervateiro (2008),
No Mundo Bruto dos Ervais (2008), entre outros, uma vez que as narrativas contidas
nessas obras deslocam-se, sobretudo, na fronteira Brasil - Paraguai e seus
personagens “O ervateiro, brasileiro, paraguaio” - (Livro 34, p. 154), sujeitos
ficcionalizados por Serejo, vivem uma espécie de nomadismo dispersivo em uma
zona de fronteira seca, imaginária, entrecortada – mata adentro – pelos trilheiros da
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Companhia Matte Larangeira. Ao contar as histórias desses “heróis anônimos,”
(Livro 9, p. 231), Serejo retrata não só a vida, mas procura descrever os hábitos e
costumes de um tempo em que a fronteira passou a se constituir espaço habitado.
Pelo fio de sua narrativa, correm vozes abafadas devido às circunstâncias sócio-
históricas. Entendemos que nessas narrativas transparece um olhar sobre o local,
que flerta com o exótico e o pitoresco, mas se apresenta como construção de uma
identidade local, sul-matogrossense, relacionada à identidade do fronteiriço em um
sentido mais amplo. Sobressai a presença da vida local cuja temática, sobretudo,
Candido (2006b, p. 212-213) tanto criticou dos românticos em se tratando da anulação
do aspecto humano, em benefício de um pitoresco que se estende também à fala e
ao gesto, tratando o homem como peça da paisagem, envolvendo paisagem e
homem no mesmo tom de exotismo. Esse enfoque, para o crítico, resulta em uma
alienação do homem dentro da literatura, “uma reificação da sua substância
espiritual, até pô-la no mesmo pé que as árvores e os cavalos, para deleite estético
do homem da cidade”.
Serejo é o reverso, já que prenuncia pela voz do narrador, entrecortada pelo
balbuciar de anônimos braçais a vida na “terra abandonada8” e seus dilemas, em um
contexto atípico à vida urbana. Paisagem e vida em condições de trabalho exaustivo
se integram nas narrativas e o erval, espaço personificado, passa a fazer parte de
condutas e comportamentos das personagens, umas das quais Serejo, também, se
diz ser.
Machado de Assis (CANDIDO, 2006b, p. 368-369) já dissera que uma
literatura nascente deve, principalmente, alimentar-se dos assuntos que lhe oferece
a região. No conjunto da obra de Serejo fica evidente a temática fronteiriça; também
encontramos respaldo na preocupação de Machado de Assis em exigir do escritor
certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país. Nas
narrativas de Serejo, vislumbramos possibilidade de conhecer o tempo de
8Esclarecemos que o uso da expressão “terra abandonada” ou “fronteira abandonada”, ao longo desta tese, está diretamente relacionado à obra Nas fronteiras de Matto Grosso – Terra abandonada, obra lançada em 1933 por Umberto Puiggari, uma edição da Casa Mayença/SP. Ao longo dos vinte e três textos o autor/narrador conta fatos vividos na fronteira - a mesma de Serejo - entre o Brasil e o Paraguai. Assim que lançou seu livro, o autor mudou-se para Londrina/PR. Há relativa similaridade – algumas iremos relacionando ao longo deste estudo – entre Serejo e Puiggari, tanto que a personagem “Sismório” aparece na obra dos autores. Entretanto o tom de denúncia difere, em muito, em Puiggari, haja vista o ataque às autoridades.
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povoamento do local que hoje é Mato Grosso do Sul. Não será a nossa história de
mata adentro anterior à história das cidades?
Considerando a fronteira como espaço em que transitam diferentes
identidades constituídas pelas condições de sobrevivência histórica, não nos
ateremos, nesta pesquisa, em investigar a formação territorial da fronteira Brasil-
Paraguai. Nosso objetivo centraliza-se em investigar “como a imensa fronteira
abandonada” (Livro 4, p. 93) está representada pelo contar do homem local que se
integra e multifaceta em autor-narrador-personagem. Achugar considera que “Os
novos narradores que começaram a contar suas histórias fizeram estourar a unidade
monológica do relato hegemônico anterior. Eles o fizeram de diversos modos, ora
recontando e corrigindo o esquecido, ora recordando os relatos que antes existiram.”
(p.144). A pretensão advém da desconfiança de que a aparente mesmice da voz
que conta as narrativas serejianas, contenha histórias que foram esquecidas. A
arbitrariedade que o estético estabelece com a realidade no intuito da criação,
reforçada por Candido (2006, p. 22), aparece nas narrativas de Serejo de forma não
muito comumente usada ao “fazer literário”. A arbitrariedade advém, sobretudo, de
outras instâncias, muito “além” ao texto – escolhas e combinações – e começam a
fazer sentido, quando resgatamos a história de vida ficcional do autor, narrador,
personagem contada por ele mesmo e pelos amigos. Essa ação não acontece em
uma obra específica, mas vai sendo construída aos poucos, ao passo que vai
escrevendo “os livrinhos”.
O nosso interesse recai, em específico, sobre o “homem cruza-campo e trota-
mundo” e sua relação com o local, já que queremos compreender, com mais
extensão, como a mulher guarani, o peão paraguaio, o quatrero, o comiteveros, o
mayordomo, o barbaquazeiro, o monteador, os mineiros “criaturas humanas que, na
data longeva, enfrentaram estoicamente toda sorte de martírios, na grande e
vigorosa arrancada da épica penetração ervateira” (Livro 23, p. 69) são construídas
pelo contar, aparentemente, espontâneo de Serejo. Sobretudo, por considerarmos
que, por meio da produção do autor estudado, podemos recolher vestígios
identitários do continuum interseccionado processo de deslocamento (HALL 2003,
p.28) realizado pelo homem, independentemente do local em que está. É o caso
das personagens de boa parte das narrativas de Serejo, representadas por entre
fronteiras do contar, permeando fragmentos históricos preenchidos pela memória.
Com isso, o fazer literário de Hélio Serejo se transfiguraria por meio do vivido em
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local em que ele – o autor – se fez sujeito, e pelo plano da expressão. A forma
como escreve conduz-nos a avaliar traços de performance do sujeito em trânsito,
com facão na mão, abrindo picadas para o progresso, sem ter muita consciência da
“Ordem e progresso” do país, já que há “gente vindo de todo lado”. Entretanto, “essa
gente” sobressai, ao longo das narrativas, como representante da história da
formação de um lugar. Esta região, Serejo a perpetua, ao destacar o desbravamento
com olhos e sentimentos a que denominamos de engajamento literário entre
fronteiras.
Argumentamos que Serejo irá antecipar, inconscientemente, o que tanto
discutem, sobretudo, os autores cuja nacionalidade advém de locais que, por muito
tempo, estiveram à margem: “O sujeito, previamente vivido como tendo uma
identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma
única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”
(Hall, 2003, p.28).
Povoas (Livro 4, p. 165), ao prefaciar a obra de Serejo, assinala que a
fronteira descrita pelo autor “transformou-se num laboratório social dos mais
interessantes”, uma vez que transitam por este espaço índios, donos da terra,
povos de origem e língua espanhola; gaúchos, cuiabanos, “[...] mineiros que se
alongavam à procura de campos para criar, todos se amalgamaram, misturando seu
sangue, seus costumes, seus idiomas, suas tradições, seu folclore, sua música, daí
resultando uma civilização fronteiriça de características inconfundíveis”. Essa
“civilização fronteiriça”, representada em alguns textos da obra de Serejo, vai se
constituindo pelos contratos de boa – nem sempre – convivência, tendo como limite
o poder da Companhia Matte Larangeira, os latifundiários, e os conflitos gerados
pelo lócus fronteiriço.
Neste espaço de proliferação de contatos, pacíficos ou não, está o erval
direcionando as ações de homens, mulheres e crianças que se unem,
momentaneamente, na labuta extrativa do mate. Entendemos que, ao contar essas
ações, Serejo recria, por meio da memória, a história dos desbravadores pelo
entremeio da posição de sujeito duplamente constituído pelo viés do colonizador-
colonizado. Nos entremeios, sobretudo, do que existiu e do como foi contado; na
fronteira, pois, no histórico e no ficcionalizado há espaço para investigação do fazer
estético serejiano que corre pelo fio do discurso do “[...] já dito sobre o qual qualquer
discurso se constrói. Isso quer dizer que o discurso não opera sobre a realidade das
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coisas, mas sobre outros discursos. Todos são, portanto, “atravessados”,
“ocupados”, “habitados” pelo discurso do outro. (AUTHIER-REVUZ-, 1990, p. 25 - 7).
Estamos caminhando em prol da construção da defesa de que há, na
produção de Serejo, a consciência do local, com razoável respaldo na segunda
geração do Modernismo. Esta consciência e conhecimento do espaço em que se
está, no caso, a fronteira, permite a descrição do espaço geográfico no qual está
inserido o andante que passa a habitá-lo e a modificá-lo. Entre a representação do
vivido-ficcionalizado, do autor-personagem, do local-global, entre vozes oral-escrita
que, de tão expressivas, embora periféricas, teimam em sobressair na artificialidade
do discurso escrito.
Neste prenúncio histórico-estético está a história do homem local e os
homens que sempre existiram; está a história do povoamento do Mato Grosso do
Sul e parte da História Geral, em que homens em trânsito desbravaram e povoaram
novos lugares.
No Capítulo I, iremos relatar a trajetória da obra serejiana, o contexto em que
foi produzida e a recepção pelo viés dos amigos/leitores, por considerarmos arte,
com base em Candido (2006, p. 47), um sistema simbólico de comunicação inter-
humana, uma vez que pressupõe o jogo permanente de relações entre autor, obra e
público os quais “formam uma tríade indissolúvel” e passam a fazer parte da
interpretação estética da obra.
Candido (2006, p. 31) defende o percurso para a primeira tarefa investigativa
de uma obra, salientando influências concretas exercidas pelos fatores
socioculturais. Para o crítico (2006, p. 31), esses fatores marcam os quatro
momentos da produção: “a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior,
orienta-o segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos tema; c) usa certas
formas e d) a síntese resultante age sobre o meio”. Com isso, teremos condições de
avaliar melhor a repercussão da obra de Serejo e a sua feitura, as quais nos darão
condições para reconhecermos os elementos estéticos.
Ainda no Capítulo I, além do público, autor e obra, inserimos o
crítico/estudioso da obra, uma vez que será este a interpretar a “relação arbitrária e
deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade” (CANDIDO, 2006, p.
22).
Organizamos o Capítulo II em torno da fronteira, da erva e do andante, e o
deslocamento que se inicia com a caminhada comercial de Thomaz Larangeira e
20
resulta nas andanças do peão ervateiro, da mulher guarani, do bugre, do peão de
fazenda e de muitas outras figuras que irão transitando pelas trilhas da fronteira
ressignificadas pelas narrativas de Hélio Serejo. Trataremos, ainda, das relações
entre o ir e vir, uma movimentação constante no corpus selecionado. Por isso,
discutiremos o homem e suas relações com o erval.
Já no Capítulo III, argumentaremos que a literatura serejiana, irregular, sem
planejamento, produto local, intersecciona-se com o contexto da “fronteira
abandonada”, e é uma espécie de metáfora do próprio meio. Levantaremos, ainda,
os argumentos que respaldam a relação entre o vivido e o ficcionalizado, com base
no enfoque teórico-crítico advindo dos Estudos Culturais tendo como referência os
autores: Bhabha (2003), Hall (2003) Canclini (2003) e Achugar (2006). Esses
estudiosos preconizam que escrever o passado de fatos orais, observados, quase
sempre, in locu e guardados na memória do tempo, pode nos parecer um risco de
criação estética, por presentificar, pela memória, a história.
Ao final, trataremos de fundamentar a tese do “O homem cruza-campo e
trota-mundo”, um andante em fronteiras representado pela aparente simplicidade de
contar de Hélio Serejo. O modo de condução da narrativa, as escolhas e
combinações linguísticas, a descrição da paisagem, a organização dos textos e a
construção da personagem em trânsito são recursos internos de alguns textos de
Serejo, como bem orienta Antonio Cândido (2006, p. 14) “[...] importa, não como
causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel
na constituição da estrutura [...].”
Para estudar o corpus descrito, recorreremos, ainda, aos Estudos Culturais
por se tratar de fundamentos teóricos além estrutura do que está escrito. Bhabha,
por exemplo, afirma que “A razão pela qual um texto ou sistema de significados
culturais não pode ser auto-suficiente é o ato de enunciação cultural – o lugar do
enunciado – é atravessado pela différance da escrita” (2003, p. 65) e que tem como
característica “se aproveita [rem] de quaisquer campos que forem necessários para
produzir o conhecimento exigido por um projeto particular” e que “ a escolha de
práticas de pesquisa depende das questões que são feitas, e as questões
dependem de seu contexto” (NELSON; TREICHELER; GROSSBERG, 1995, p.9 ).
Esse enfoque possibilitará conhecer com mais profundidade a fronteira
enquanto espaço de trânsito, de troca, de contrabando, de (des)acordo, de morte;
21
fervilhar de diferenças que nem sempre se aglutinam, constituindo, com isso, “novos
signos de identidades”, (HALL, 2003b, p.50) não só do tempo dos ervais, mas na
continuidade dos tempos.
A justificativa que nos levou a pensar esta pesquisa, desejo exposto na
graduação, está, primeiramente, no vínculo afetivo-histórico com o contexto da
fronteira Brasil-Paraguai; embora este não seja suporte para um trabalho científico é
como sujeito histórico que cresceu ouvindo da boca da peonada paraguaia os
causos do homem “cruza-campo e trota-mundo”, que nos colocamos como leitores
de uns “livrinhos” que chegavam às fazendas fronteiriças pelas mãos de um andante
comprador de muares como “oferta singela do autor Hélio Serejo”.
De lá para cá, o tempo se encarregou de modificar, paulatinamente, alguns
espaços: Mato Grosso se bipartiu, a obra de Serejo foi compilada (2008)9 pelo
Instituto Histórico Geográfico de Mato Grosso do Sul, Hélio Serejo começa a ser
estudado e a leitora dos “livrinhos” coloca-se como pesquisadora.
Dessa forma, justificamos a presente pesquisa tendo como referência,
sobretudo, a constituição da identidade do homem sul-mato-grossense, uma vez
que, ainda, são esparsos os trabalhos cuja temática esteja direcionada à formação
do novo Estado. Estudar a obra de Hélio Serejo é uma forma de descobrir, nos
interstícios, aspectos sócio-culturais velados pela história oficial, ainda mais, quando
se trata de uma fronteira “onde o Brasil, já foi Paraguai”. A história posta em ata
pode ser reescrita no recontar de Serejo, mais ainda, quando ficcionaliza a vida do
homem e de uma região pelo viés da verossimilhança.
9 Campestrini (2008, p.53) autor do projeto que organizou as Obras Completas de Hélio Serejo, conta em livro que acompanha a coletânea, Trilhador de todos os caminhos: Vida e obra de Hélio Serejo, que o autor “Organizou suas produções numa coletânea encadernada, colando na capa, embaixo, uma etiqueta com a data que ele considerou de publicação ou gravando-a tipograficamente. São cinqüenta e nove livros, deixando um inédito, nas mãos do editor.[...]. Esta coleção, reconhecida pelo autor como definitiva, serviu de base para todo o projeto OBRAS COMPLETAS. [...] Não se consideraram as diversas listas (obras) que apareceram em vários livros, porque, além de apresentarem diferenças, trazem obras que não foram publicadas e algumas publicadas com outro título. Ocorre também que os outros autores que sobre ele escreveram fazem listas diferentes, mesmo porque não devem ter tido acesso à coleção ao autor. Com a autorização de Hélio Serejo, as obras foram organizadas em cinqüenta livros, compreendendo somente a produção do autor, eliminando-se qualquer texto alheio (mantido, obviamente, o da introdução e do prefácio). [...] Os textos foram integralmente revistos, sempre com a preocupação de conservar a originalidade do estilo do autor. Procurou-se padronizar a ortografia, até porque, ao longo dos anos, foram diferentes revisores, cada um utilizando um critério. [...]. A pontuação original não obedecia a critérios, mesmo que mínimos. Mesmo assim, consertaram-se somente os casos mais graves, não só quanto às regras também quanto à clareza”. O projeto foi desenvolvimento pelo Instituto Histórico Geográfico de Mato Groso do Sul.
22
CAPÍTULO I – CARAÍ HÉLIO SEREJO: O AUTOR DA FRONTEIRA
Eu sou o homem fronteiriço que na infância atribulada recebeu nas faces sangüíneas os açoites desse vento, vadio e haragano [...].Eu vim dos ervais [...].Eu sou filho da jungle, sou gaudério de todos os pagos [...]. Eu vim de longe, sou misto de poeira de estrada [...]. (Livro 49, p.149).
10
Figura 2 - Capa do livro Caraí ervateiro
10 Capa do livro Caraí ervateiro, 1990, 96 p.,miolo datilografado em papel comum. A obra foi produzida pela Editora Versiprosa, de Tupi Paulista/SP.
23
1.1 O ERVATEIRO ESCRITOR
Aprendemos muito, muito mesmo, e nos tornamos, então, um caraí ervateiro, como tantos outros, que não se acovardaram ante a selva bruta, e amaram a caá, tal como se ama uma china que sabe prender e por feitiço no kuimbaê (Livro 34, p. 24).
Estudar a produção de Hélio Serejo equivale a abrir uma gaveta recheada de
fotografias que não foram clicadas por quem as vê, mas, em seu verso, há
impressões de quem viveu o momento, quer como fotógrafo, quer como fotografado.
Assim, há referências situacionais, em específico na obra de Serejo, ao plano
histórico, vinculado a acontecimentos de fronteira, Brasil – Paraguai, em um tempo
de pós Guerra da Tríplice Aliança, sendo o autor sujeito do local de que fala na obra
– fotógrafo e fotografado.
Para Chalhoub & Pereira (1998, p. 8), uma obra literária possui evidência
histórica objetivamente determinada está situada no processo histórico. Em
detrimento disso, apresenta propriedades específicas que possibilitam
questionamento. Para tanto, devemos averiguar as condições de produção, as
intenções do autor, quem é o autor no contexto da escritura, sua relação com o
meio. Cândido (2006, p. 17-22) em Literatura e sociedade detalha, com bastante
precisão, a polêmica de se estudar uma obra agregando aspectos internos e
externos, uma vez que conferir, tão somente, a realidade exterior para entender uma
obra, pode resultar em uma simplificação causal. O crítico defende, então, o reverso
do processo adotado pelas teorias tradicionais de estudo de texto literário, já que o
social – externo – não é espelho por meio do qual uma obra reflete uma realidade,
mas interfere na constituição de sua estrutura, tornando-se, portanto, interno.
Compreender o enfoque mais abordado pelo autor, a escolha e entendimento
da temática, a compreensão e a expansão de determinado tema; compreender as
condições em que a obra foi escrita, significa interpretar os aspectos estéticos,
sendo que, externos e internos, passam a integrar a estrutura total da obra.
Por isso, optamos por abrir um capítulo no ensejo de conhecer melhor a obra
de Hélio Serejo tendo como referência “os três elementos fundamentais da produção
24
artística”, segundo Cândido (2006, p. 33): “autor, obra e público”. Nossa opção
também se respalda em Sevcenko (2006, p. 34), para quem a literatura deve ser
avaliada, sobretudo, como interpretação do contexto social pelo autor e sua
manifestação artística latente na obra. Defende, ainda, que a exposição se dá em
diferentes graus, e sofre interferência de alguns fatores externos e internos ao autor,
tais como: o gênero de preferências, a escola literária a qual pertence – se pertence
–, como se dá seu relacionamento intelectual, o local de onde fala, de onde publica,
de onde se manifesta, como ocorre seu relacionamento afetivo e familiar, sua
condição de vida – outrora – bem como no momento em que se faz escritor e ao
longo do processo.
Daí, compreendemos a necessidade de iniciar os argumentos de tese pelo
viés externo, vida do autor, recepção da obra e nossas impressões. Com respaldo
em Candido (2006, p. 23) compreendemos que aferir a obra com a realidade exterior
não é suficiente, bem como “[...] ficar restrito à sua constituição literária, constituição
de linguagem,” uma vez que “o movimento é duplo”. Eneida Souza (2007, p. 24)
salienta, ainda, que para estudar uma obra, precisamos ter ciência de que o texto
ultrapassa a fronteira literária e se projeta para outros campos.
Neste estudo, tomaremos como possíveis e variáveis projeções a fronteira do
vivido e do recriado, a produção, circulação e recepção por defender que estão
vinculadas às condições de vida de Hélio Serejo, além dos fatos históricos que
perpassam um ambiente de fronteira em tempo de povoamento, motivado por
acontecimentos políticos e econômicos já mencionados. Em específico, quando se
trata de local em fase inicial de povoamento fronteiriço, motivado por necessidade
de mão de obra braçal: “O caraí ervateiro paraguaio veio de sua Pátria para o início
de uma nova vida no eldorado da caá”, alimentado pelo desejo de “[...] trabajar em
los yerbales de Mato Grosso, comenzando como guaino, para después, com el
tiempo, transformarse em un minero de calidad, ganar dinero, tener muchos amigos
y ser respetado en su trabajo, no temiendo ni al mal tempo”. (Livro 38, p. 57).
Além dos que vieram impulsionados pela possibilidade de trabalho, muitos
outros também se colocaram em trânsito de destino certo: a fronteira. Serejo conta
que, assim que terminou a cruenta Guerra do Paraguai, em específico, os
componentes da coluna do general Câmara, quase todos sulinos, tomaram
conhecimento das comentadas, porém pouco povoadas cordilheiras de Maracaju e
Amambaí. Após a desmobilização das tropas imperiais, inúmeros riograndenses,
25
participantes da Guerra, voltaram ao seu local de origem. Muitos outros, entretanto,
ficaram na região fronteiriça com a intenção de até residir. (Livro 31, p. 180).
No livro Palanques da terra nativa (2008), em um dos vinte e um textos,
intitulado “Início da fixação”, com forte referência histórica, Serejo conta que muitos
retornaram aos locais de origem, após a Guerra, e levaram a notícia das
possibilidades propícias ao agropastoril da região: “Cartas dos que aqui se achavam
seguiram que viessem, pois a largueza despovoada havia lugar para todos, sendo
que as terras eram devolutas e a obtenção do registro da posse não era difícil”.
(Livro 31, p. 180).
Conflitos políticos internos – Brasil – acrescentam-se aos citados: “Irrompe,
no Rio Grande do Sul, em 1893 a revolução federalista, saindo vencedores da brutal
contenda os republicanos. Foi uma luta selvagem, cheia de ódios, traições e
vinganças, que teve seu fim em 1895” (Livro 31, p. 180). Com isso, muitas famílias
fogem para a Argentina, Paraguai e algumas chegam ao Mato Grosso: “Uma
odisséia a viagem das comitivas rumo ao tão falado sul de Mato Grosso!
Atravessando dois países, Argentina e Paraguai, quando tudo corria bem
alcançando o ponto desejado em dois meses” (Livro 31, p. 182).
Diante desse recorte sócio-histórico, já temos uma sintética noção de como
se deu o início do povoamento da fronteira pelo prisma do olhar daquele que se
situa cronologicamente após a Guerra – cresceu ouvindo resquícios de guerra – e
que nasceu e cresceu no apogeu da extração da erva mate. Conta que muitos
vieram, mas há aqueles – além dos indígenas – que já estavam instalados no local,
como é o caso de Serejo, um nativo da fronteira.
Neste fervilhar de fatos históricos, Serejo vai agir em sua obra como sujeito
que ouviu a história e como sujeito processo da história, na perspectiva de quem
esteve em um tempo e local, e, quando já retirado, o elege como referência nas
narrativas. Na intersecção de fatos realizados, ocorridos, e o reconto, está o entre-
lugar do fazer literário serejiano que se faz, ademais, pela atipicidade da inserção de
dois aspectos à sua obra: insere fatos vividos por ele e por seu pai às narrativas e
possui, ao longo de 60 livros, significativo material referente à recepção da obra
realizada por amigos e admiradores de um tempo muito próximo às primeiras
edições dos livros.
Com isso, as realidades se sobrepõem: vivido e recriado são enredos de uma
mesma história, possuem ponto de contato e afastamento, típicos de ambiente de
26
fronteira. Esses entremeados – ouvi, vi, vivi, revivi – interessam nos a fim de que, na
afirmação de Valmir Batista Correa, “Nesta terra de poucas memórias” (1995, p.36),
possamos recolher vestígios, pelo viés da literatura, de nossa identidade. Hélio Serejo (1912 - e 2007)11, nasceu na fazenda São João, município de
Nioaque, um dos primeiros núcleos habitacionais de Mato Grosso, local histórico,
palco da Guerra da Tríplice Aliança e primeiro movimento divisionista do Estado12.
Nasceu mato-grossense. Com a divisão do Estado, em 1977, passou a ser sul-mato-
grossense. Identidade conclamada pelos habitantes de MS, pois mesmo com quase
40 anos da divisão, ainda há pessoas que se referem ao Estado de Mato Grosso do
Sul como se fosse Mato Grosso, embora a necessidade e o empenho de divisão
date de 1900.
Quando criança, sua família mudou-se para Ponta Porã13, fronteira seca, de
um lado Brasil, do outro, Paraguai. Segundo Campestrini (2008, p. 19), Hélio Serejo
cursou o antigo primário em Ponta Porã e, parte do ginásio, em Campo Grande.
Manteve contato com o mundo da escrita ao trabalhar, aos 13 anos, no jornal Folha
do Povo, em Aral Moreira/MS14; ali já publicava seus textos. Ele próprio conta, ao
escrever o livro Meus bisnetos:
Nasci na fazenda São João, no município de Nioaque. Com dois anos de idade, mudei-me com minha família para Ponta Porã, onde aprendi a andar, a falar, e onde cursei o primeiro ano, apaixonando-
11 Em pesquisa realizada em outubro de 2013 junto ao serviço registral e notarial da cidade de Nioaque/MS verificamos que consta na certidão de nascimento a grafia de ELIO SEREJO, sem a letra “H”, portanto. 12 Mato Grosso do Sul tormou-se Estado separado de Mato Grosso em 11 de outubro de 1977 devido à “dificuldade em desenvolver a região diante da grande extensão e diversidade". Em 1900, rompeu em, Nioaque, o primeiro movimento revolucionário de caráter divisionista, em conseqüência, sobretudo, “[...] do isolamento físico e social do sul de Mato Grosso, além da inexistência de transporte e de vias de comunicação, a prepotência do Grupo Laranjeira/Murtinho com os brasileiros que chegavam de outros Estados, principalmente, do Rio Grande do Sul”. Tolentino, T. L. Ocupação do sul do Mato Grosso antes e depois da Guerra da Tríplice Aliança. São Paulo, Fundação Escola da Sociologia e política de São Paulo, 1986. 13 O Decreto-lei n.° 5 812, que criou o Território Federal de Ponta Porã, estabeleceu que o mesmo fosse formado pelo município de Ponta Porã (onde foi instalada a capital) e mais seis outros sendo eles: Porto Murtinho, Bela Vista, Dourados, Miranda, Nioaque e Maracaju. Com articulações políticas, a capital foi transferida para Maracaju em 31 de maio de 1944 (Decreto-Lei n.° 6 550), e novamente volta a Ponta Porã em virtude de Decreto de 17 de junho de 1946. Nesse período articulações e interesses políticos fizeram com que prevalesse a força da fronteira. O território foi extinto em 18 de setembro de 1946 pela Constituição de 1946, e reincorporado ao então Estado de Mato Grosso. (http://brasiguaionews.com/artigo/artigo-ponta-pora-da-republica-velha-a-territorio-federal-revolucao-constitucionalista-na-era-do-estado-novo-de-getulio-vargas). Acessado em: 20/08/2013. 14 Cidade fronteiriça, aproximadamente, 50 quilômetros de Ponta Porã. Na época em que Serejo escreveu, deveria ser um pequeno povoado, pois foi distrito de Ponta Porã até 1976.
27
me desde então pela melodia dos pássaros, pelas majestosas árvores, pelos animais silvestres, pelos mansos córregos, pelos rios, pelas cascatas, pelos campos floridos, pelo sibilar dos ventos, pelo barulho ensurdecedor das tormentas, e pela magnificência do pôr-do-sol, a voz da natureza... (Livro 49, p. 149).
No povoado, desde muito cedo, acompanhava seu pai nos ervais e foi
trabalhar na ranchada de Porto Baunilha, região de Ivinhema/MS, em uma de suas
propriedades: “Tinha eu treze anos de idade quando, pela primeira vez, pernoitei em
uma ranchada ervateira, conhecida por todos como trabalhado da Empresa Mate”
(Livro 34, p. 76). Continua em “Eles”:
Nada escapara dos meus olhos interrogantes. Era, em verdade, um meninote, que tudo queria saber. Aquele complexo de afazeres, um mundo diferente dos demais de que tinha conhecimento com suas originalidades, me empolgava. Em cada peão e nas cunhas martirizadas, eu sorvia a agressividade daquele mister que até então me era completamente desconhecido. Não perdia, até ao anoitecer, um minuto sequer. (Livro 34, p. 76).
Serejo confidencia que, tudo o que via, anotava em um caderninho e na
memória de jovem atento e sensível, ao ponto de observar ações corriqueiras e
transformá-las em poesia, como é o caso de “A Cacimba”, soneto produzido,
segundo Reis (1980, p. 103), em 1933, aos 21 anos, com o qual conquistou o 1.º
prêmio do concurso “Poetas moços militares do Brasil”, no Rio de Janeiro:
Sempre em borbulhar, numa eterna mágoa, Eu vejo, cristalino, esse olho-d´água; E como é triste e alvo como o linho Um olho-d´água à beira do caminho!... Ali é a cacimba... rústica e isolada, Dos noitibós, esplêndida morada; Onde, fugindo da aridez do campo Em rondejar o alegre pirilampo. À tarde, na figueira, a passarada, Numa enervante e louca revoada, Senta... esvoaça...em lúbrica contenda. Faz dez anos que ali a preta amada, Com a grosseira saia arregaçada, Cantando, lava a roupa da fazenda...
28
A cadência emparelhada dos decassílabos intensifica a nostalgia do olhar do
poeta pela vida simples e natural da fazenda e demonstra que, desde muito cedo, o
autor integra o homem – “a preta amada” – à natureza. Além disso, a personificação
do ambiente – Sempre a borbulhar, numa eterna mágoa – é constante nas
narrativas, fortalecendo, ainda mais, a relação homem-meio, ao ponto de um adquirir
características do outro devido à integração natural. Outro aspecto reincidente está
no homem em trânsito, em movimento, “Um olho-d´água à beira do caminho” visto
pelo olhar de quem transita pelo caminho.
O hábito de tudo anotar resultou em sessenta e quatro cadernos guardados
como relíquia, na acepção de Reis (2008, p. 134), os quais possuíam registro da
vida nos ervais. Segundo Serejo, serviram como fonte de consulta e inspiração para
escrita de seus livros. Além dos cadernos, das anotações, das lembranças, ficaram
as amizades, como é o caso do “bugre Choié”, um mestiço de notáveis qualidades,
companheiro de viagem, que evoca, mesmo depois de tantos anos, recordações:
“guardo até hoje na memória” (Livro 34, p. 75). Ou, ainda, as amizades com
moradores da região fronteiriça, os quais passam a ser uma espécie de consultores:
“Segue mais uma cartinha pedindo ajuda” (MAGALHÃES, 2011, p.110), sobretudo, o
amigo Wilfrido Brizueña, o Don Nenito, uma espécie de informante-mor, como
veremos mais adiante.
Confirmando a temática histórico-regionalista praticada desde o princípio da
vida literária, em 1936, participou do concurso “Paisagens do Brasil” promovido
pelas revistas “Boa Nova” e “Vida Doméstica” com o poema “Caboclo de minha
terra”, por meio do qual obteve o primeiro lugar. Reis (2008, p. 1004) informa que
Graciliano Ramos e Augusto Meyer fizeram parte da comissão julgadora.
Sua vida pessoal foi entrecortada por problemas de saúde. Por isso, Elpídio
Reis, amigo de longa data, apelidou-o de “bolicho de doenças”. Outro aspecto que
perpassou sua existência foi o acontecimento real, ficcionalizado em “Bode
expiatório”, vivido pelo jovem Serejo, em 1935, no Rio de Janeiro; narrado em 1986,
1.ª edição em O tererê que me inspira (Livro 35). A história gira em torno de um
grande desejo de Serejo, “[...] ser engenheiro para construir pontes”, “um moço,
vibrante de amor pátrio [...] que lutou, bravamente, para vir a ser, um dia, tenente da
Arma de Engenharia!” (Campestrini, 2008, p. 185). Para tanto, inscreveu-se –
morava em Ponta Porã/MS - como voluntário no 3.º Regimento de Infantaria, na
Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, “[...] sai de Ponta Porã, em 18 de outubro de
29
1932. Tinha tudo bem planejado, pois contava com a cooperação cristã do primo
capitão Lauriano Gomes Monteiro, que servia no 3.º R.I. Ao chegar fui incorporado,
como voluntário [...]” (Livro 35, p. 182); porém, seu sonho finda em 1935, após ter
concluído o curso de sargento; “por estar na hora errada no lugar errado”, acabou
preso como comunista, na Intentona, tentativa de golpe militar contra o governo de
Getúlio Vargas, realizada em novembro de 1935 pelo Partido Comunista Brasileiro
em nome da Aliança Nacional Libertadora. Até ficar provada a sua inocência,
permaneceu seis meses preso, na “Ilha das Flores”, de “onde saiu mais morto que
vivo” devido às privações e maus-tratos a que fora submetido. Foi expulso do
Exército e retornou, tristemente, a sua terra natal. Foi reintegrado ao Exército, ainda
em vida, em 2006, como primeiro-sargento.
Este fato marcará para sempre sua história de vida, não muito diferente da de
Graciliano Ramos, preso em 3 de março de 1936, em Maceió, segundo cada qual –
Graciliano em Memórias do Cárcere, Serejo em Bode expiatório15 - conta sua
história, nunca souberam ao certo por que foram detidos, nunca sofreram um
interrogatório. Certamente, como avalia o cabo voluntário, “por estar na hora errada
no lugar errado, acabou preso como comunista, na Intentona”. (Livro, 35, p. 132).
O desejo de construir pontes foi revigorado em 1955, ocasião em que o
Rotary Clube de Presidente Venceslau/SP, lançou a propaganda “Pró-construção da
ponte sobre o rio Paraná”. Hélio Serejo foi o presidente da comissão e seu empenho
foi tamanho que as ações mediadas por ele reverteram em 12 grossos volumes
encadernados, onde estão arquivados os documentos jornalísticos, fotográficos e
expedientes oficiais desenvolvidos pela Comissão. Ao final de 5 anos, a ponte foi
inaugurada. Novamente, Serejo se vê ludibriado pela sorte, pois a indicação de seu
nome para a ponte não foi aceita pelo governo federal, além de ter sido barrado à
entrada do “banquete em regozijo pela inauguração da importante obra.” (Livro 49,
p. 153)16. O reconhecimento veio em 2012 por meio da Lei nº 12.610, de 10 de Abril
15 Na narrativa Um que o destino marcou (Livro 26, p 284-293), Serejo recupera parte da história pessoal vivida em Bode expiatório ao contar a história do amigo, “um farrapo humano”, o único que foi lhe visitar na Ilha das Flores, ocasião em que esteve preso. 16 A ponte Hélio Serejo foi inaugurada sobre o rio Paraná, entre os estados brasileiros de Mato Grosso do Sul e São Paulo, possui 2.5501 metros de extensão e, até a inauguração da ponte Rio-Niterói, era a mais extensa do Brasil.
Foi publicada, em 11 de abril de 2012, no Diário Oficial da União (DOU) a lei que muda o nome da ponte sobre o rio Paraná que liga o estado de São ao de Mato Grosso do Sul, entre Presidente Epitácio e Bataguassu, de Mauricio Joppert da Silva para Hélio Serejo. Até
30
de 2012, quando esta recebeu o nome de Ponte “Hélio Serejo”. Com isso, os méritos
de homem que lutou para que o acesso entre os dois Estados - MS e SP - fosse
facilitado, foram outorgados.
Em conformidade com Elpídio Reis, biógrafo, amigo, confrade e conterrâneo,
Serejo viveu a maior parte da sua vida em cidade do interior paulista, Presidente
Venceslau/SP, de 1948 a 2005, e não foi muito de vida social; fez seu percurso
literário à custa de estudo exaustivo permeando lembranças do local em que viveu,
com investigação de dados como já anunciamos, usufruindo da boa amizade
fronteiriça.
Gabriel Otávio de Souza, em orelha do livro De Galpão e Galpão (s.d.) conta
a ocasião em que Hélio chegou à redação, com um pacote de livros cujos títulos lhe
chamaram a atenção e levaram-no a inferir “É um cabra que pega a gramática, para
aprender regras de escrita [...]”. (Livro 18). Tomava a sua produção como trabalho
árduo, de pesquisa, sobretudo, retórica, como se pode perceber na parte estrutural
de suas narrativas, em que exercita o modelo aristotélico – exórdio, introdução e
conclusão. Na década de 1980, Serejo intensificou pesquisa sobre o erval. Constam no
livro O karaí de Sanga Puitã, do historiador Magalhães (2011, p. 108 -110), cartas
trocadas entre Serejo e Nenito Brizueña, amigo desde 1926, quando, ainda, vivia no
erval de Posto Baunilha. Foram muitas as consultas e pedidos ao amigo, desde o
pedido da Ata de fundação da Cooperativa do Mate de Ponta Porã, até a consulta de
nome de raízes usadas para curar maleita, como se pode avaliar na figura 2.
então, a ponte homenageava um engenheiro e político do Rio Janeiro, que foi ministro dos Transportes na década de 1940 e nada teve a ver com a obra que interligou os Estados. Passa a levar o nome de Hélio Serejo, um escritor e jornalista que nasceu em Nioaque e passou os últimos anos de sua vida em Presidente Venceslau. Ele foi o principal defensor da construção da ponte interligando os Estados, chegando a ser o presidente da “Campanha de Propaganda Pró-Construção da Ponte sobre o Rio Paraná”.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ponte_H%C3%A9lio_Serejo. Acessado em 20/01/2013).
31
Figura 3 – Carta trocada entre Serejo e Nenito Brizueña Fonte: (MAGALHÃES, 2001, p.104).
O amigo retribui, inclusive, com um desenho de próprio punho explicando como era o
procedimento de um barbaquá17 e Serejo prestou-lhe “Homenage de reconocimiento...”:
Um autêntico paraguaio-brasileiro, um ervateiro de tradición,
caraí de muitas lidas, amigo leal, servidor, sempre cavalheiro, nasceu no ano de 1902, quase debaixo de um pé de erva, segundo seu próprio registro;...
[...] Vive contente pelas orilhas da fronteira, rememorando fatos
passados e falando sobre o mundo bruto da erva, evocando a vivência dessa época de tantos sacrifícios.
Nas minhas campereadas ervateiras, sempre tive, na pessoa do buenhaco Nenito Brizueña, um cooperador infatigável.
Quero abraça-lo macanudamente, um abraço de amigo e hermano, nas páginas deste modesto livro que cheira a perchel, barbaquá, arrastras, raídos e mbureô18 de mensu19 preocupado.(Livro 41, p. 67).
17 Jirua - espécie de mesa um pouco mais alta – de forma côncava, erguido sobre um buraco, destinado à secagem da erva-mate. O nome vem de boberacuá: o que brilha muito. (Livro 50, p. 253). 18 Grito de satisfação e entusiasmo do peão do erval. Alguns imitam animais ou pássaro. Meio do ervateiro s comunicar dentro do erval (Livro 50, p. 272).
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Pelos fatos, Serejo usa a memória e as relações pessoais para pesquisar
dados históricos, hábitos e costumes no intuito de escrever a monografia. A prática
de pesquisa, certamente, aprendeu com o pai, Francisco Serejo, o qual, por mais de
30 anos, pacientemente, dividido entre os afazeres do erval, à luz de lamparina,
escreveu o Dicionário dos charadistas e cruzadistas contendo mais de 3.000
páginas datilografadas (Reis, 1980, p. 44). O registro ímpar de Reis, merece
destaque por ilustrar a prática da pesquisa e a relação de um sujeito do erval em
diálogo com o mundo das letras:
O que há de mais interessante na vida desse homem é que ele, ao mesmo tempo, que se entregava ao pesadíssimo trabalho dos ervais – tão pesado que só os que já nasceram nele eram capazes de suportá-los – cercavam-se de montes de livros, empilhados pelo chão, e mesmo à noite, sob a luz de lamparina, ou nos momentos vagos durante o dia [...] ia pacientemente pesquisando e colhendo dados para a elaboração de um DICIONÁRIO DOS CHARADISTAS E CRUZADISTAS. Levou 30 anos neste trabalho. [...] Na impossibilidade de editar tão volumosa obra com recursos próprios, o autor, em 1950, doou os originais a uma Organização de Charadistas e Cruzadistas, de Belo Horizonte, a qual, também, por falta de recursos, não publicou o dicionário.
Reis salienta a dificuldade para conseguir comprar um livro, quando uma
carta levava um mês para chegar a São Paulo, além das condições físicas e de
disponibilidade para pesquisa e produção, tanto que foram 30 anos de trabalho
pesquisando sobre “Todos os reis, rainhas, príncipes e princesas do mundo; os
grandes generais, os navios que naufragaram, mitologia; os grandes inventores; os
vulcões do mundo; as maiores e mais encarniçadas baralhas de todos os tempos
[...]”. Reis registra, ainda, que a pesquisa do ervateiro-dicionarista chegou até o ano
de 1930.
Em 13 pontos de Hélio Serejo, Reis conta, de forma muito bem humorada, os
percalços da vida do amigo e conterrâneo, aquele que “acertou em cheio na Loteria
da vida” (1980, p. 12). Uma passagem pouco conhecida diz da sociedade formada
entre pai e filho, e, em 1944, já no final da 2.ª Guerra Mundial, quando “[...] acharam
de montar uma fábrica de óleo de laranja azeda. “O óleo seria destinado a aviões
19 Homem que faz o corte das folhas da erva mate. Um profissional de respeito sempre. Sobre até seis metros de altura, mantendo equilíbrio perfeito. É o elemento chave em todas as organizações ervateiras. (Livro 50, p. 273).
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que lutavam na Guerra”. Para tanto, o pai – Dom Chico – vendeu uma tropa de
burros cargueiros e arrendou uma gleba à margem do Rio Vacaria, a fim de
transformar a laranja azeda, nativa neste local, em combustível. Depois de muito
trabalharem, com 28 funcionários paraguaios – mão de obra barata – para
montarem a usina, tiveram que vender as máquinas em Sorocaba/SP, pois a Guerra
havia acabado e não havia mais compradores para o produto produzido pelos
empreendedores fronteiriços.
Uma singularidade em Serejo está na inserção, em suas publicações, de
trechos de correspondências recebidas de seus amigos e/ou admiradores quando
estes ganhavam os volumes ofertados pelo autor. Com isso, há, em boa parte de
seus livros, notas de agradecimentos, saudações, apreço, trechos de cartas e
bilhetes. Outro hábito peculiar está na divulgação e publicação dos exemplares,
quase sempre, financiada por recursos próprios, muito natural, por se tratar de autor
à margem.
Por adotar a prática da inserção de correspondência recebida, Serejo foi
construindo, dentro de sua obra, uma espécie de fortuna crítica entrelaçada às
narrativas. Essa peculiaridade abre espaço para investigarmos a recepção das
narrativas que se referem ao regional, ao local, uma vez que seus possíveis leitores
reconhecem o laço – ou nó – que une os planos do inventado e do reconstruído.
Isso se dá em decorrência da proximidade do fato histórico ocorrido com a leitura,
bem como pelo conhecimento que os leitores possuem do contexto histórico.
Compreendemos que Serejo envaidecia-se com as cartas, com as
saudações, com os bilhetes que recebia; entretanto, não parece que as publicava no
intuito de se enaltecer, mas de divulgar, como forma de confirmar a leitura e a
interação de seu texto com seus possíveis leitores. Embora tivesse acesso aos
jornais, rádios, editoras, esses veículos não tinham projeção além da local, pois
eram periféricos.
Percorrendo a obra de Serejo, fica evidente que o fazer literário de homem
simples, de pouco estudo formal, de valores morais e religiosos convencionais, de
princípios calcados na relação colonizado/colonizador, foi motivado pelo prazer que
dedicou ao seu fazer literário.
Esse fazer reverteu no que ele denomina “rosário de divagações literárias”
(Livro 22, p.9) e que coloca, “humildemente”, nas mãos seus patrícios”. Encerra a
apresentação de Contas de meu rosário julgando-se um predestinado: “Em cada
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conta está um pouco da predestinação que Deus me deu”: Assemelha-se à figura de
um escolhido por Deus a serviço daqueles que não receberam o mesmo “dom” que
ele. O tom de voz textual ressoa com timbre sertanejo, pausado, calmo, típico ao
ritmo do nativo da região fronteiriça. Também deixa vazar uma relativa humildade
cristã, do bem, de homem de paz, necessária, haja vista o lócus em que estava, de
onde enunciava: fala da fronteira para a fronteira. Voz que ressoa a meio timbre,
nem por isso, abafa as condições trágicas de fronteira discutidas por Martins:
As concepções centradas na figura imaginária do pioneiro deixam de lado o essencial, o aspecto trágico da fronteira, que se expressa na mortal conflitividade que a caracteriza, no genocida desencontro de etnias e no radical conflito de classes sociais, contrapostas não apenas pela divergência de seus interesses econômicos, mas sobretudo pelo abismo histórico que as separa. (1997, p. 15).
Serejo sabia dos procedimentos alfandegários de fronteira, bem como do
mérito em ser um homem do bem, conforme os preceitos católicos. Portanto, seguia
firme na crença de que sendo do “bem” receberia as glórias divinas e o privilégio
para gozar de seu mais sublime desejo: ser escritor. Pensamento e ação cultural dos
povos catequizados e colonizados pelo movimento europeu que se alastrou pelo
mundo. Essa herança cultural – fé, devoção, preceitos católicos – vai fundamentar o
posicionamento do escritor e sobressairá nas narrativas por meio da condutas dos
personagens.
1.2 PATRONSITO20 DO ERVAL
Em duas semanas, já sabia eu das coisas de uma ranchada: os costumes, crendices e os tipos característicos. Também o que era do seu dia-a-dia: arrias, arrastras, ataqueio, arroba-carém, arrieiro, arboleras, aoaô [...] changá-y, caá caiguê...(Livro 34, p.76).
Para Puccineli21 (Livro 34, p. 03), Serejo eterniza o sul de Mato Grosso do
início do século 20, destaca o “mundo bruto da erva-mate”, local em que “viveu por
20 Nome pelo qual Hélio Serejo ficou conhecido nos ervais do sul de Mato Grosso. (Livro 50, p. 276).
35
anos e do qual nunca mais se separou”. Para maior clareza, diríamos “nunca mais
se separou” literariamente, já que perpetuou possibilidades interpretativas de um
tempo, sujeitos e local no trajeto de sua produção literária.
No dizer de Bakhtin (2004, p. 79) “nenhuma enunciação verbalizada pode ser
atribuída exclusivamente a quem a enunciou”, uma vez que resulta como produto da
inter-relação entre falantes “produto de toda uma situação social em que ela surgiu”.
Então, a obra de Serejo surge ao passo que vai recolhendo contas espalhadas pela
lembrança e junta-as pela memória, em um tempo e espaço já distanciados, como
insiste em explicar ao leitor: “Anotamos e... anotamos sempre, infatigavelmente, sem
mesmo saber por quê. Havia, dentro de nós, um desejo mórbido de conhecer, em
minúcias, aqueles homens brutos, mas tementes a Deus e aquela luta de martírios
que não tinha fim” (Livro 34, p.24).
Com isso, o narrador reconhece o “outro”, demonstra desejo imenso de
conhecer “aqueles homens brutos” com os quais vai conviver e aprender:
“Aprendemos muito, muito mesmo, e nos tornamos, então, um caraí ervateiro, como
tantos outros, [...]” (Livro 34, p. 26). Entretanto, não é um caraí, tornou-se “um caraí
ervateiro. Está no entre-meio das partes: não era e passa a ser, mas não é o “Caraí”
é um outro, um terceiro. Um sujeito que aprendeu com o “caraí”, no texto, “Eles”
(Livro, 34, p.76). Serejo aponta detalhe de como foi o processo: “A assimilação ou
costumbriamiento não foi fácil. Tinha no meio ambiente uma escola ao vivo.
Ensinadores de boa vontade, pacientes, é que não faltavam.”
Ao entremear suas memórias, sua história pessoal à história do outro, Serejo
auxilia-nos a justificar a necessidade de saber de sua história – aspectos externos
ao texto, uma vez que reconfigura em sua obra, por meio de sua experiência de
vida, as relações com o outro; compara-se com o outro, aceita o outro, vê o outro em
si mesmo. Faz-se um ervateiro e assume o “nobre” ofício. Para os teóricos,
sobretudo, Achugar (2006) a aceitação do outro é um prenúncio para a existência
desse um que se propõe diverso. É na comparação com o outro que existe esse um,
e é nessa negociação, que se gesta o tipo de identidade a ser constituída. Serejo vai
mediando, pela voz do narrador, “essas negociações” entre seus personagens que,
às vezes, ele também se faz.
21 André Puccineli, governador do Estado de Mato Grosso do Sul, apresentou as Obras Completas de Hélio Serejo organizadas pelo Instituto Histórico Geográfico de MS em 2008.
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As circunstâncias – políticas, de localização, formação – que impulsionaram
Serejo, diante de tanta adversidade contextual, a assumir a iniciativa das obras
escritas ao longo da vida está, aparentemente, na satisfação de se fazer contador de
histórias que, antes de serem ficcionalizadas, existiram de fato, em um tempo e local
pouco propícios à possibilidade de registro escrito. Primeiro, pela dificuldade de
acesso ao contrato da escrita, em se tratando das circunstâncias advindas do
mundo sertão; segundo, pela concepção de belo. Quem se interessaria por contar,
por escrito, os dramas e as tragédias de mais uma épica aventura humana vivida por
personagens anônimos, de um local “entregue a toda sorte”, como se pode apreciar
na crônica relâmpago em “Vida de erval”, narrativa em que Serejo potencializa as
fronteiras do histórico e ficcionalizado, dos contratos de hábitos e costumes
fronteiriços? Vejamos: Foi rápida a cena. O ingênuo aconcágua22, com o intuito de
divertir os festantes, toma nos braços a formosa cunhã e sai rodopiando espalhafatosamente pela sala. Pelo rancho aberto e iluminado por piscolejantes lampiões de querosene, reboam estridentes gargalhadas, abafando os acordes da típica do trio Ojeda Parra.
Nesse ínterim, alguém, salta de um canto, feroz como uma suçuarana acuada num claro traiçoeiro da mata bruta. Um silêncio de morte cai sobre o ambiente. Ninguém respira. Só o vento agita as tranças das folhas de pindó que cobrem a rústica pérgula.
Um mineiro arrojado, ágil como a urutu, tenta evitar a tragédia. Vai de encontro ao monstro enfurecido, mas chega demasiadamente tarde. Uma faca longa e filosa reluz no ar três vezes seguidas. Ouve-se um grito macabro e angustioso. Um corpo sem cabeça cai pesadamente no chão. Nessa mesma noite fez-se o velório enquanto a farra prosseguia como se nada houvesse acontecido. São as tragédias vulgares das fronteiras abandonadas. (Livro 5, p. 112).
Com base em Candido (2006, p. 35) respaldamos a hipótese de que Serejo
avançou muito além do que disseram seus fiéis amigos, confrades e admiradores
em seu fazer textual, sobretudo, quando as aparentes histórias individuais, de
personas ou do próprio Serejo “[...] adquirem significado social na medida em que as
22 Em Homens de aço, Serejo explica em que consiste ser um Aconcágua: “é uma espécie de palhaço, é um personagem infalível nos festejos dos ervais; embriagado quase que de ordinário, desempenha os mais ridículos papéis que se possa imaginar. Corteja insistentemente, tornando-se uma verdadeira sarna, as trêfegas e debochadas cunhatais que lhe dão corda, retribuem os seus grosseiros galanteios para depois, numa rasteira de mestre, jogá-lo no chão esmagado por um seco e brutal no quiero bailar”.(Livro 09, p. 255). Ao final do texto O aconcágua, o autor insere “Vida de erval”, já citado por nós.
37
pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas, agindo, permitem por sua
vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando repercussão no grupo”.
Aparentemente, autor de um passado histórico, transeunte pelo contexto
fronteiriço, de quando o sul do Mato Grosso do Sul começou a ser mais povoado
devido à extração da erva mate, como “meninote que tudo anotou”, toma as
lembranças e o conhecimento adquirido e reconstrói as experiências, individuais ou
coletivas, em narrativas escritas. Para maior clareza, sua “insistência” em ser
escritor resplandece pelo viés da “predestinação que Deus me/lhe deu”, pela
satisfação do exercício da escrita e no ensejo de perpetuar o seu “grande amor pelo
sertão”, como afirma em “Meus bisnetos” (Livro 49, p. 151): “Desde meninote fui
assim: um enamorado, em grau muito elevado, das paisagens sertanejas, portanto,
dos mistérios das coisas charruas”. Graças a essa “predestinação”.
Todavia, há no conjunto de sua obra uma amostragem significativa da
formação do sul do Mato Grosso do Sul e das muitas relações do homem com o
meio, ainda, a desbravar. Uma dessas relações revela-se no paradoxo sentimental
que vive o homem em trânsito – aquele que vem e vai – oferecendo seu precioso
trabalho braçal em troca de pouco mais do que um rancho e alimentação diária.
“O autor – joão-ninguém da poesia e da prosa –”, como ele mesmo se auto
denomina ao proferir seu discurso de posse na Academia Mato-Grossense de
Letras, diz, primeiramente, quem é, pela constituição do local:
Eu sou o homem fronteiriço que na infância atribulada recebeu nas faces sangüíneas os açoites desse vento, vadio haragano, que, no afirmar da lenda avoenga, nasce nas terras incaicas, num recôncavo do mar, varre o altiplano boliviano, penetra o imenso aberto do Chaco paraguaio, para depois, exausto do bailado demoníaco, numa cólera e estrupício de tormenta, arrebentar, cortante e gélido, na cidade de Ponta Porã, a Princesa da Fronteira, sentinela avançada das terrarias mato-grossenses. Eu vim dos ervais, meus irmãos, dos bailados divertidos, dos entreveros dos bolichos das estradas, do mais hirsuto da pailama seca, do pôr-do-sol campeiro, dos doutos, das encruzilhadas e das distâncias perdidas. (Livro 49, p. 149).
Ser homem fronteiriço significa sorver, tragar, ser açoitado pelos ares
avoengos que vêm de muito longe e trazem o gélido para a região mais fria do Mato
Grosso do Sul, devido à localização. O sujeito que ali está recebe o que vem de fora
em seu estado de ser local. Com isso, entre o vento que veio e o vento que estava
instaura-se uma nova sensação climática. Um outro possível reconhecimento.
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Metáfora de um entre-lugar constituída pela possível relação entre o chegante e o
nativo, os quais irão povoar a fronteira, como veremos no segundo capítulo.
De início, no discurso de posse, já podemos notar a ideia de diferença dos
“ares” fronteiriços, além daquilo que, ao contrário do autor, nasceu fora do espaço
de fronteira, o vento que vem das Cordilheiras dos Andes e adentra fronteira. Não é
o vento habitual, é diferente, embora seja reconhecido pelo que está distante de
onde o vento se originou. É o vento típico da fronteira – Ponta Porã, Bela Vista... – O
fronteiriço reconhece essa atipicidade em relação ao restante do Estado, devido ao
calor intenso. A fronteira se faz diferente não só pela exposição geográfica, em
relação ao restante do Estado, mas transfigura-se em além espaço físico ao tratar
de aspectos sócio-culturais representados nas histórias ficcionalizadas.
A continuidade do discurso de posse auxilia-nos a principiar com reflexões
advindas de Achugar (2006, p. 314):
O arquivo, a tradição, a filiação, a genealogia, o testamento, o legado são formas de estabelecer vínculos: sou filho de, natural de, familiar de, amigo de; esses são meus herdeiros, meus descendentes, meus filhos, meus alunos. Mas, também, são formas de conseguir desvincular-se. Se sou daqui, não sou de lá [...]. Se creio em Maomé, não creio em Jesus, se tenho a pele branca, não sou negro, se asiático. Mas essa é a forma fácil. Há vínculos mais complexos. Sou alfa e ômega, branco e preto, homem e mulher, canhoto e destro.
À maneira de Achugar, indagamos: Se eu sou assim como será o outro? “Há
um “eu” e há também esse Outro “eu”, esse outro sujeito que é o Outro”. A afirmação
da identidade perante a Academia de Letras/Cuiabá-MT em noite solene “Eu vim
dos ervais [...] do fogo dos barbaquás, do canto triste e gemente dos urus, dos
entreveros dos bolichos das estradas [...] Eu sou filho da jungle23, sou gaudério de
todos os pagos,...e cria de todos os galpões da terra” (Livro 49, p. 149) poderá
revelar a incorporação do outro, do todo representado no/pelo escritor. Para
Achugar, “Uma forma de pensar no tema do ‘todo’ passa pelas noções que falam de
‘discursos minoritários’, de ‘línguas’ ou ‘literaturas menores’, de ‘culturas de
resistência’, de ‘legitimação’, de ‘aceitação’ [...] (p. 317); sustentamos que essa
23 Serejo usa por diversas vezes o vocábulo em Inglês, jungle, que significa "deserto, floresta, terra inculta", do sânscrito Jangala-s "árido, pouco crescido com árvores". Sentido específico de "terra coberto por vegetação em um emaranhado selvagem" é registrado pela primeira vez em 1849. (? ).
39
representação evidencia-se na obra de Serejo, quando este assume sua identidade
perante a sociedade dos confrades e confreiras.
Ao assegurar “Serei aqui, caboclo rústico, de gestos desengonçados, homem
fronteiriço que foi embalado na infância pelo vento haragano vindo de terras
distantes índio cruzador de todos os pagos...” (Livro 49, p. 18) Serejo resgata a
memória dos esquecidos, dos que vivem à margem – e faz da minoria, uma
representação majoritária por meio do fortalecimento de suas origens, da
sustentação de que ser “misto” (“fui, no perpassar inexorável do tempo, obreiro de
crença, fé e esperança, fui, também, imagem viva de desesperança, revolta e
sofrimento” (Livro 49, p. 17) agrega em si, não apenas o “eu”, mas, sobretudo, traz
consigo o vão para investigar o “outro”, daquele que veio “[...] dos entreveros da
fronteira, dos ervais sombrios, dos caminhos perdidos, do pôr-do-sol que magnetiza,
dos galpões das estâncias, do chão poirento e das encruzilhadas”. (p.19).
Entretanto, há vão para outras leituras além do homem “sou” e “serei”, se
considerarmos que este se forma pelas relações que trava, ao longo, da vida, com o
outro e o outro com ele. Isso não significa, tão somente, o estreitamento do diálogo
face a face, prática interlocutória. Resulta ainda na dialogização interna da palavra;
na palavra em uso está o discurso do outro que se fez em mim. No discurso de
Serejo, enunciador, está o discurso de outros, ressoam vozes constitutivas nas
marcas afirmativas de presente e futuro.
A insistente afirmação clama pelo reconhecimento do que não sou. Eu sou
aquilo que eu sou e não aquilo que a Academia acha que eu não sou. Aqui, eu sou
facetado e sou inteiro porque me faço acadêmico e não deixo de ser. “Sou misto,
também, de índio vago, cruza-campo e trota-mundo” (Livro 49, p.150). Se assim eu
sou, então, está na academia um homem e sua identidade. A cadeira de número tal
será ocupada por um sujeito sob cuja palavra há outras palavras, outros homens, os
quais também farão uso da palavra pelo discurso de Serejo.
Seu discurso é entremeado pela posição de todos somos filho de alguém,
tinha procedência – Dom Chico Serejo – dono de ranchada, com a posição das
experiências nas funções ervateiras exercidas, por onde passou, foi “[...] um pouco
de tudo: guaino, uru auxiliar, condutor de arrias, percheleiro, fazedor de puchos,
atacador, custureador, provistero, cuestero, comissário e até moyordomo.” (Livro 50
p. 217), bem como, pela sua história de boa amizade com os senhores fazendeiros e
40
políticos, que viviam na fronteira, com os quais Serejo continuou mantendo relações,
mesmo afastado do convívio local.
Este permear deixa passar os contratos necessários para viver bem em
ambiente onde a Lei se faz lei a partir da força da ordem: “A ordem que elas –
patrulhas volantes – recebiam não variava nunca: prender, se possível; ou matar,
caso houvesse tentativa de fuga...Acontecia que o malfeitor encontrado sempre
tentava fugir” (Livro 38, p. 44). Com isso, a sabedoria de Serejo está em não afrontar
os que estão em seus postos de comando, mas em eleger para suas histórias, com
mais intensidade, aqueles que, como ele, estiveram sujeitados ao convívio com “[...]
hombres valientes que no temiam La muerte [...] (Livro 38, p. 45), tendo, quase
sempre, o cenário fronteiriço como grandiloquente no intuito de respaldar as
histórias de martírios e sofrimentos dos transeuntes de uma região fronteiriça
entregue a toda sorte. No entrelaçar das histórias contadas e das esquecidas,
sobressai a ação do colonizador sobre o colonizado; o segundo, acreditando que lhe
foi dada uma grande oportunidade de trabalho tenha consciência de sua condição
de explorado. Tanto que, em raras exceções ouviremos um ressoar de voz de
personagens.
A relação de Serejo com as realidades em que esteve inserido: erval e
cidade, oral e erudito, ervateiro e escritor – experiências que lhe renderam, segundo
ele, ingrediente para suas narrativas –, leva-nos a reconhecer possíveis
representações identitárias, ainda pouco estudadas nas literaturas locais, como é o
caso do próprio fazer literário serejiano. Em seus textos, Serejo incorpora, ao seu
português fronteiriço, vocábulos em Guarani, Espanhol, da região sulina do Brasil,
entre outros.
Assim, a peculiar escritura fica sendo, segundo Barzotto (2009, p 32), muito
mais do que um recurso poético ou um estilo do autor, uma vez que o processo de
hibridação cultural vivenciado pelos fronteiriços transparece no texto, o qual passa a
ser um instrumento de denúncia, de sobrevivência e garantia da posteridade de uma
dada realidade, porque nela o registro da história se faz possível. Objetivo
deliberadamente explicitado pelo autor ao longo da obra, como vemos em “O
passado, em verdade, está presente, não morrerá nunca”. (Livro 49, p. 152).
Entretanto, mal sabia que, na sua condição de colonizado, descreveu muito
mais do que “[...] o selvático, o descampado, os cômoros, os brejais infindáveis, [...]
as sinfonias das taboas nos alagadiços, o barulho cantante da queda d´água no
41
coração das brenhas...[...]” (Livro 49, p. 152), uma vez que se manteve inserido no
espaço-temporal, no espaço – de fronteira – e no tempo, em que a fronteira
começou a ser povoada, revelando-se como um sujeito do entre-meio, da fronteira.
Um homem que vem de longe e, paulatinamente, vai se firmando – ou não – no
local, como bem diz: “Vim de longe, sou um misto de poeira de estrada, de fogo de
queimada, de aboio de vaqueiro [...]” (Livro 49, p. 150). Um misto, um possível
homem formado pelos contatos e desacordos, uma metáfora de sua própria obra.
Como se pode avaliar no trecho do discurso de posse, além do contexto
territorial, Serejo transita pela fronteira linguística com muita fluência e naturalidade,
tal qual o momento da produção da fala. As escolhas e combinações não interferem
na compreensão do texto; ao contrário, abrem espaço para interpretar. Segundo
Canclini (2003, p. 24), as relações de sentido se reconstroem nas misturas das
partes estabelecidas por diferentes sujeitos em variadas situações. A inserção de
vocábulos em Guaraní ou Espanhol metaforiza o convívio na fronteira territorial,
reflete a hibridação e cria uma representação de um estado de fronteira incorporada
ao texto, de tal forma que a tessitura revela a supremacía do fato histórico, uma vez
que o narrador, embora fronteiriço, está contando um fato, do lado da orilla que
ganhou a guerra. Por isso, o colonizado é o chegante paraguaio, sua participação no
discurso é muito menor em relação ao brasileiro, embora também sobressaia sua
descendência.
Para Campestrini (2008, p.231), “Hélio foi o trilhador de todos os caminhos
[...] da região explorada, povoada, emancipada, pela Empresa Mate Laranjeira.
Trilhador, porque, trabalhando com o pai como ervateiro, transitou por todas aquelas
picadas...”. Em noite solene, continua abrindo caminho por meio do qual a palavra
em uso se tornará presente de um passado histórico que pouco aparece na história
oficial, todavia, está na forma como Serejo organiza o contar.
Em particular, Serejo é a ponte que une passado e presente da identidade
sul-matogrossense. Por isso, instiga-nos a pensar a trajetória de luta de um homem
de pouco estudo formal perante a Academia, aparentemente desconfortável quando
chega a um local pouco conhecido. Comporta-se, pois, como “legítimo bugre”,
contido, humilde; entretanto, a linguagem de seu discurso justifica o assento
acadêmico.
Em Trilhador de todos os caminhos: Vida e obra de Hélio Serejo, livro que
acompanha a Obras Completas de Hélio Serejo, Hildelbrando Campestrini conta:
42
Voltando, certo dia, de Santa Catarina para Campo Grande, senti-
me na obrigação de visitar aquele velho amigo, em Presidente Venceslau. Foram poucas horas de conversa. Já quase nonagenário, muito lúcido, ao mostrar-me a coleção de seus escritos, deixou-me transparecer – o que não era comum nele – uma certa decepção pela falta de divulgação de seu trabalho. Ao despedir-me, no final do dia, prometi-lhe todo esforço para publicar aquilo tudo. Coloquei mãos ao trabalho, que durou quase quatro anos: digitar, revisar, conferir, pesquisar, padronizar a linguagem e, por derradeiro, distribuir os livros por volumes, diagramar e finalizar o conjunto.
Entrementes, animado com o resultado e com a edição próxima, Hélio Serejo doou os direitos autorais, em caráter definitivo, ao Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul. (p. 07).
E conclui o seu texto de apresentação afirmando que o fez movido pelo
interesse de “colocar à disposição do público a obra completa de Hélio Serejo, que
já começa a ser estudada, principalmente em trabalhos de pós-graduação” (p.08).
Serejo tinha consciência de que sua produção destoava do modelo de obra
cuja organização gira em torno de uma temática ou de um gênero textual, tanto que
a metaforizou da seguinte forma, na introdução de “Balaio de Bugre24”:
Por que o esquisito título de Balaio de Bugre para este livro? Contar-lhe-ei o motivo. Durante longos anos viajei pelo sul de Mato Grosso [...] Por várias vezes, nessas pousadas incômodas, notei o seguinte: um balaio velho, feito de lâminas de taquara, ficava ao lado do bugre mazoro. Qual o seu conteúdo? Quase incrível isto: atadinhos de trapo, chumbo, pólvora, raízes, folhas, milho-pipoca, semente de abóbora, carretel de linha, lenço de chita, pedra de isqueiro, colher, faca, cuia de porongo, pedaço de rapadura, mandioca, pena de arara, unha de gavião, dente de onça e mil bugigangas. Assim sendo, muito bem fica-lhe o título. Está de acordo com seu conteúdo. Muito de acordo mesmo. E por acaso, não é o autor, bugre também? Bugre legítimo com arremedos de homem civilizado. (Livro 39, p. 93).
O esclarecimento do “esquisito título” justificado pelo próprio autor, leva-nos a
inferir, em específico, posições de sujeito conhecedor de padrões tradicionais, de
posições conservadoras, sobretudo, dos possíveis leitores imediatos de seus
24 O termo bugre originou-se num movimento herético, na Europa, durante a Idade Média, representando uma força contrária aos preceitos ditados pela ortodoxia da Igreja. Surgiu no século IX, na Bulgária, tendo sido batizado como bogomilismo, inspirado no nome do padre Bogomil, considerado fundador da seita herética. Aos poucos, no Mundo Ocidental, o sentido da palavra bugre vai se transportando de um mundo religioso para um mundo profano, levando consigo a ideia do bugre como o devasso, o sodomita, o pederasta, o infiel em que não se pode confiar, que representa a porção mais baixa da sociedade européia. (GUISARD, 1999, p. 92)
43
“livrinhos”. Ao metaforizar, eleva a significação do livro, uma vez que o relaciona
contextualmente e dá um caráter de originalidade, legitimando o título com a
identificação identitária: “E por acaso, não é o autor, bugre também? Bugre legítimo
com arremedos de homem civilizado”.
Texto, contexto e autoria estabelecem uma cadeia semântica construída não
pelos aspectos das escolhas e combinações sintáticas. Projetam-se, por meio dos
elementos do discursivo, sobretudo, o contrato de “como” o título foi escolhido e de
“onde” foi resgatado – elementos externos, integrados aos internos. Esse resgate
produz a recriação de uma realidade, um hábito, um costume, uma crença que
passa a transitar de forma poética pelo desuso da plasticidade verbal em detrimento
da imagem ideológica produzida no conjunto dos retalhos textuais que integram
“Balaio de Bugre”. A possível miscelânea é um balaio de bugre, não é uma
miscelânea, pois um balaio de bugre é a representação máxima da identidade
diásporica a ser abordada no terceiro capítulo. Defendemos que estar entre
fronteiras geográficas – Ponta Porã-Brasil e Ponta Porã, como dizia Wilfrido
Brizueña25 - irá propiciar uma literatura de fronteira se tomarmos uma ideia de Hall
(2003, 13): “[...] à medida em que sistemas de significado e representação cultural
se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos
identificar – ao menos temporariamente.” A identificação de que fala Hall poderá ser
compreendida no questionamento/resposta – “E por acaso, não é o autor, bugre
também? Bugre legítimo com arremedos de homem civilizado” – como um prenúncio
de identidade, de reconhecimento das diferenças ou até, mesmo, da formação –
contínua – do andante em estado constante de hibridez.
Assim, aquilo que poderia aparentar um modesto título, misto de justificativa
e explicação, configura-se em um retrato que perpassará quase cem textos, como
se cada “De tudo um pouco” do livro “uns atadinhos de trapo, chumbo, pólvora,
raízes, folhas, milho-pipoca,...”(Livro 39, p. 93) tivesse uma unidade, mesmo
constituída por textos diversificados, agradecimento ao crítico, palavras a um morto,
a morte do último dos Lopes, crendice, oração, ditos, pensamentos folclore, quadra,
palestra e muita história de história ouvida e contada por onde andou e viveu. Além
do expressivo e extensivo título, Serejo rompe com padrões ao apresentar sua 25 Os moradores mais antigos, como Brizueña, não se referiam ao nome de Pedro Juan Caballero. Usavam como anunciamos na passagem transcrita.
44
própria obra e perpetua o hábito do indígena de guardar objetos, aparentemente,
sem utilidade em um balaio. Os objetos ganham unidade ao compor o todo do
balaio, ao se integrarem ao conjunto de coisas encontradas em tempo e espaço
diferenciados, tal qual ao tradicional discurso de posse: “Eu vim de longe, sou um
misto de poeira de estrada, de fogo de queimada, de aboio de vaqueiro [...]. Sou
misto, também, de índio vago, cruza-campo e trota-mundo” (Livro 49, p. 150).
Em Astúrio Monteiro de Lima: Um exemplo de homem (Livro 40), em nota A
fala do autor, Serejo informa que a sua vida nas letras tem sido a mais variada
possível. Nesta nota, já não usa a metáfora para descrever os gêneros produzidos
como fez em Balaio de bugre. Proclama que fez “de tudo um pouco”:
Novela íncola, conto, folclore, lendas, mitos, abusões, poemas, sertanejos, versos xucros, paisagismo, prosa crioula, sonetos, narrativa campeira, poemetos, histórias verídicas, fatos históricos, crônicas folclóricas e campesinas, descrição charrua, modismo, trovas, crendices, paisagens fronteiriça, falação cabocla, pesquisa de crioulismo, poesia de evocação, acrósticos, poemas em prosa, ditos e composições poéticas variadas, desde o metro de duas sílabas até o de doze, ou alexandrino. (p. 235).
Serejo foi “[...] curioso, autodidata, lia tudo que estava ao seu alcance...”
(Campestrini, 2008, p. 1), leitor pesquisador como já foi apresentado. Sua produção
transita em descrição da paisagem; quando retrata, reflete a própria imagem, já que
não se exclui da cena retratada. Às vezes, coloca-se a narrar a trote, a pé ou de
carreta, mas sempre, inserido no local, no modo de vida do fronteiriço ervateiro, na
vida campeira: “Passarão por estes poemas em prosa – tropilha da pátria primitiva –
os gemidos da carreta manchega, o cântico do homem andejo, astúcia do índio
vago, a roda para o chimarrão da amizade, o fogo das queimadas e a paisagem de
todas as querências...” (Livro 11, p. 09).
Quase sempre justifica a sua temática tendo como base o viver “[...] de
homem da sertania, pois foi escrito pela pena nativista de alguém que tem dentro
d’alama a imagem fulgurante da tradição campeira”. ...(Livro 11, p. 09) ou, ainda, em
discurso de posse na Academia Matogrossense de Letras: “Procurei cantar com
ternura e suavidade as belezas incomparáveis do sertão, envaidecido, tropel de
tropilha crioula e índio haragano as paisagens coloridas das estâncias.”
(Campestrini, p.18). Para Salles (1993, p. 182), boa parte do regionalismo
45
novecentista deforma a realidade rural, pois a visão ficcional do escritor é feita de
fora, o autor regionalistacomporta-se como um deslumbrado e exalta o espaço físico
de forma eufemística, com olhar europeizado. Como se a vida da roça fosse vista
pelo turista urbano, não há integração com as partes que compõem o todo da
narrativa. Sobressai o cenário, o pitoresco da natureza, sem que tenha a
movimentação humana. Nas narrativas estudadas, o narrador se integra ao trágico
da vida no erval.
Em Pialo Bagual (Livro 7, p. 167), Serejo apresenta o livro metaforizando a
ação de escrever como o ato de laçar o cavalo ou animal quadrúpede pelas patas
dianteiras, no momento em que está em movimento. Serejo metaforiza: “Neste livro
vão pialos de todos os tipos; só que não são, em absoluto, pialos desferidos por
mãos de campeiro mestre. Que todos tenham complacência para com o mau
pialador”, (p 167). Quase, sempre, em posição de humildade poética, Serejo sente
necessidade de afirmar, de forma carinhosa, o quanto a obra, ainda, é incipiente,
tanto que recorre aos aspectos temáticos em detrimentos ao estético, embora se
incorporem ao longo da obra. Para ele, “Pialo Bagual...ficará, como ficaram os
outros, por ser fagulhas da poesia, da prosa e da tradição” (p. 167).
A voz cândida que estabelece comparativo de sua produção “fagulhas de
poesia” com a “poesia tradicional” permite-nos recuperar a lucidez poética de Serejo.
Mais, ainda: sua humildade não tira de foco o cânone. Seu reconhecimento abre
espaço, sem concorrência, para aqueles que estão à margem, no caso, ele próprio.
Daí, elegermos Serejo como autor que construiu uma “picada” para transitar no
contexto urbano e acadêmico, para estabelecer relação amigável, sem espaço de
disputa. Reconhece que não chega, embora se esforce, a combinações conforme o
modelo consagrado de fazer literatura. Entretanto, não deixa de produzir e ousa
fazer-se poeta, escritor, não só memorialista, ao voltar o olhar de sujeito
compromissado com “pessoas desimportantes” como diz Barros (1990, p. 23).
Pessoas que foram para sempre dispersadas – geograficamente - de sua terra natal,
segundo Hall (2003) que tiveram que aprender a intercambiar de tudo um pouco.
Ainda, em “A fala do autor”, na obra Astúrio Monteiro de Lima: Um exemplo
de homem, escreve sobre sua produção: “De tudo fiz um pouco. Não por erudição.
Gauderiando, lendo e lendo infatigavelmente, fui juntando as imagens e as guardava
avaramente, num cantinho da mente, para depois, envaidecido, a produção foi se
46
encorpando incessante [...]” (Livro 40, p. 235). Serejo reconverte, com isso, um
processo literário em constante estado de hibridação.
1.3 PELAS ORILHAS DA CRÍTICA DE MÃO EM MÃO
Ao juízo do público e da crítica entrego, pois, o seu destino. (Livro 34, p. 24 )
Como já foi evidenciado em algumas passagens transcritas, Serejo se
preocupava com a recepção de seus livros “Se mal recebido for este trabalho, por
suas possíveis falhas, não deixará o autor vencer-se pelo desânimo, pois tem
certeza de que fez pensando ser útil a Mato Grosso e ao Brasil” (Livro 08, p. 229).
Essa preocupação é recorrente em Puiggari “[…] desvendar aos olhos do governo e
do Brasil, esse mundo desconhecido que é a fronteira com o Paraguay, dizendo as
cousas como ellas são e unicamente dentro dos limites da verdade” (Puiggari, 1933,
p. 7).
Serejo não se deixou vencer pelo desânimo, nem questionou a “utilidade”
prestada. A prova é o conjunto de sua produção, assim avaliada por Povoas e citado
por Reis:
Quem se dispuser a um estudo do desbravamento do extremo sul do antigo Estado de Mato Grosso, da região lindeira com a República do Paraguai – hoje estado de Mato Grosso do Sul – não poderá prescindir de uma consulta à obra polimorfa do escritor Hélio Serejo. A penetração dos colonizadores naquele outrora agreste sertão, a aspereza da vida naqueles ermos, a psicologia dos homens de aço, que o povoaram, seus hábitos, as lutas do seu dia-a-dia, sua literatura, sua música, seu folclore, seus abusões, tudo está retratado em seus livros com pinceladas firmes, vigorosas e de absoluta fidelidade. (1980, p. 115).
Nos vãos dessa polimorfia estão possíveis unidades – muitas vezes, díspares
– que elevam o conjunto da obra, em se tratando de um inexistente projeto literário –
porém de relativa regularidade produtiva –, mas que surpreende pelo fio condutor da
voz que conta por meio de variados, fragmentados e recriados gêneros textuais. O
recurso explicativo ou justificativo realizado pelo autor ao lançar uma obra
47
potencializa a sua relação com o lócus enunciativo revelando o posicionamento do
sujeito crítico que se reconhece “cascalho no meio de esmeraldas” (Livro 13, p. 179).
Nem por isso, deixa-se abater, “é um esforçado”. Sobressai, ainda, a satisfação de
ser reconhecido, e, embora não o sendo, continuará escrevendo.
Na última página de Prosa Rude (Livro 13, p. 179), em Palavras finais, Serejo
inicia a nota transcrevendo – sem indicar a fonte, apenas autoria – um texto em que
o professor Othoniel Mota, autor de Selvas e choças se queixa da forma como os
livros são recebidos pela crítica: “[...] Se o autor não tem camarilha literária e é um
desconhecido no meio social, o seu livro geralmente fica no silêncio”. De forma
abrupta, posterior ao desabafo do professor Mota, Serejo questiona o leitor:
Eis aí o livro. Bom? Sofrível? Péssimo? O qualificativo pouco
importa. Se péssimo, irei trabalhar para editar outro um pouco melhor. Se sofrível, fico em parte pago pelas minhas longas noites de vigílias...
Ele aí fica. Acanhado. Humilde. Insignificante. Repleto de senões gravíssimos. Sem gramática. Sem ortografia. E muitas vezes de linguagem rude e grosseira. Mas isto tudo pouco importa: o sacrifício e a boa vontade falarão mais alto.
Ele aí fica: é uma espécie de cascalho no meio de esmeraldas e de safiras (Livro 13, p. 179).
Na nota, apela para que o leitor se posicione e enumera aspectos pouco
apreciativos do livro que, caso o leitor permita, “o sacrifício e a boa vontade falarão
mais alto”. A ideia de sacrifício cunhada no mundo cristão permite-nos inferir que
Serejo se coloca como alguém que oferece algo, o livro, como um presente; para
tanto, sacrificou-se, sofreu e merece ser reconhecido pela tentativa, muito mais do
que pelo texto em si.
Assim, a voz sertaneja de sujeito simples que gosta de escrever e busca o
público, respalda-se em Candido (2006, p. 21) ao defender: “Ora, todo processo de
comunicação pressupõe um comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou
seja, a obra; um comunicando, que é o público a que se dirige; graças a isso define-
se o quarto elemento do processo, isto é, o seu efeito.” Faltando o efeito, não há
obra. O “sacrifício”, as longas noites de trabalho exaustivo, os estudos para
aprimorar a escrita, ficam meio em vão, sem valor. Antônio Candido (2006, p.48) é
taxativo neste aspecto: a obra só está acabada no momento em que repercute e
atua. Serejo sofria dessa dor de busca do leitor. Candido afirma, ainda:
48
Se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência de sua obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição para o autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é sua revelação. Sem público, não haveria ponto de referência para o autor, cujo esforço se perderia caso não lhe correspondesse uma resposta, que é definição dele próprio. (CANDIDO, 2006, p. 48).
Esforço e sacrifício para se achar em si mesmo. Um espelho que reflete
pouco, tendo em vista alguns aspectos, tais como: a pouca consciência histórica do
leitor brasileiro, consequentemente, o desinteresse por obras locais – O Estado há
pouco começou a levantar a sua história; a produção empírica e sem planejamento;
a ausência de meio de comunicação efetivo que pudesse divulgar a obra. Serejo
enviava seus textos aos amigos e conhecidos dos amigos, via Correio –, o círculo
fechado das academias literárias – a diversidade de gêneros – biografia, carta,
narrativas, poemas, sem que tivesse adotado uma estrutura ao gosto do pretenso
leitor da época. Por certo, um aspecto preponderante, de ordem estética, advém da
temática de fronteira e da forma transparente como contava os fatos, muito próxima
à realidade dos inúmeros analfabetos que estiveram nas histórias dos ervais.
Candido salienta, ainda, que:
[...] o escritor se habituou a produzir para públicos simpáticos, mas restritos, e a contar com a aprovação dos grupos dirigentes, igualmente reduzidos. Ora, esta circunstância, ligada à esmagadora maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, nunca lhes permitiu diálogo efetivo com a massa, ou com um público de leitores suficiente vasto para substituir o apoio e o estímulo de pequenas elites. (2006, 94-95).
Em parte, Serejo comunga com essa triagem, sobretudo, porque sua obra
esteve, por muito tempo, presa aos fatos de sua vida pessoal e aos fatos históricos
de um tempo “abandonado”.
Outra incidência de tentativa para se estabelecer relação com o leitor, pode
ser avaliada na forma como o próprio autor apresentava, em boa parte, seus livros,
embora, quase sempre, tenha um prefaciador. Serejo, mesmo em Poucas
palavrinhas, fala ao leitor de sua pretensão. É o caso em Poesia mato-grossense,
quando conclama: “Que a crítica e o público o julguem como melhor lhes parecer!”
(Livro 16), assim como em Carta de Presidente Venceslau ao cumpadre Ansermo
49
(Livro 20, p.261), aberta com poema de 104 estrofes, estabelecendo relação mais
afetiva com o leitor: “Este livro de versos galhofeiros pertence a você, meu querido
amigo de Presidente Venceslau. Escrevi-o na intenção sincera de agradá-lo.”
Considerável, ainda, é o tom de humildade muito presente, como em: “[...]
coloco, humildemente, nas mãos de meus patrícios.” (Livro 22, p. 9) ou em Vida de
erval:
Quando o surrão é grandalhão, de fundo chato, sem dobras, lisito como barriga de pitão de sertanejo caprichoso, vai no bojo da carreta, muito importante, atado no gancho de travessão-macho e sempre do lado esquerdo para dar sorte. [...] Se ele, o surrão crioulo, guarda de tudo em seu bojo, deve guardar também, avaramente, nestes modestos livros crioulos, os frutos das minhas pesquisas e tudo aquilo que a imaginação produziu. Assim, abraçado meigamente ao meu surrão crioulo, eu me sinto como o caboclo feliz. Imensamente feliz. (Livro 23, p.65).
A associação da vida campeira à escrita é uma constante na produção de
Serejo, bem como o desejo de demonstrar ao leitor seu sentimento de satisfação por
ambas. Entretanto, a voz queixosa deixa vazar “os modestos livros crioulos” que não
foram lidos, já que estão guardados, segundo o autor ou “sumiram” com eles, como
confidencia Serejo, na ocasião em que informamos, por carta, o desejo de pesquisar
sua obra: “Veja na Academia de Letras, Rui Barbosa [...] quantos livros estão
catalogados. Sei que deram sumiço em vários. Relacionar pelo título. Tentarei ajudá-
la.”26
Nos textos em estudo, Serejo é porta-voz do homem físico, mão de obra
necessária “[...] no desbravamento da pátria primitiva.” (Livro 18, p. 210). Tem-se,
então, rememorado, parte do que viveu e conviveu: “O conteúdo deste livro é filho
desse andejo sublime, razão pela qual é uma ronda, matizada pelo entardecer.”
(Livro 46, p. 9). Todavia, o conteúdo dos livros, em sua maioria, não estabelece
relação com um público leitor específico.
Para Candido existem dois tipos de arte, a de agregação e a de segregação,
as quais direcionam a possível recepção de uma obra. A primeira visa a um público
coletivo alcançado pelos meios de comunicação e, de uma forma ou de outra,
reforça simbologias vigentes. Já a arte da segregação não está ao gosto do público
26 Carta resposta recebida de Hélio Serejo, datada de 07 de novembro de 2001. Acervo pessoal.
50
vigente e pode não ser aceita, muito menos cotejada, já que poderá conter
perspectiva do “novo” e causar relativo distanciamento do leitor de massa.
Ao apresentar O tereré que me inspira (p.165), Lenine Póvoas critica: “Pena é
que a chamada grande imprensa deste país, que gasta tinta e tanto papel
promovendo inutilidades e dando-lhes dimensões nacionais, desconheça a preciosa
obra do ilustre matogrossense-do-sul (Livro 53, p. 165).
Roig, autora da obra Estampa, no prólogo de Pialando...no más (Livro 38,
p.13) apresenta Serejo como:
De atividade intelectual talentosa, suas copiosas obras escritas, fruto de trabalhosa dedicação são os melhores do documentos que contêm detalhes importantíssimos de toda ordem sobre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero que difícilmente se igualará em variedade e extensão ao que constituem um verdadeiro tesouro como fonte de investigação27.
Catalina Roig julga extraordinária a obra de Serejo, evidenciando o
documental e a fonte de investigação, já que os textos de “Pialando …no más” giram
em torno do contar de hábitos e costumes dos habitantes de duas localidades
fronteiriças, demarcadas por apenas uma linha imaginária: “Dia de carrera, a cancha
ficava apinhada de gente, desde muchachitos, hasta viejitos de pasos vacilantes y
miedrosos. Dia de corrida era dia de negócios, tanto no lado brasileiro como no
paraguaio” (Livro 38, p. 19).
Para Joaquim Ribeiro28, em pequena nota introdutória de Pialando … no más:
Uma homenagem de carinho a Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, diz das
tradições populares. Reconhece, assim, Serejo como autor à margen do processo
tradicional:
27 De actividad intelectual portentosa, sus copiosas obras escritas, fruto de afanosa dedicación son las mejores documentales que contienen detalles importantísimos de todo orden sobre Ponta Porá y Pedro Juan Caballero que dificilmente se logrará igualar em variedad y extensión y constituyen um verdadero tesoro como fuente de investigación. 28 Existe entre La Historia y El folklore una analogia con el destino de dos hermanos gemelos que se repelen. Uno de ellos es el hermano rico. El outro, el hermano pobre. En ambos, sin embargo, core la misma sangre humana. Fue necesario que surgiese una nueva orden de cosas para que las tradiciones populares mereciesen la atención de los cientistas...Y, desde entonces, junto a la História, toda civilización fue revelada em su aspecto popular y tradicional.
51
Existe entre a História e o folclore uma analogia como o destino de dois irmãos gêmeos que se repelem. Um é o irmão rico. E outro, o irmão pobre. Em ambos, no entanto, correm o mesmo sangue humano. Foi necessário que surgisse uma nova ordem das coisas para que as tradições populares merecessem a atenção dos cientistas...E, desde então, junto da História, toda civilização foi revelada em seu aspecto popular e tradicional. (Livro 38, p. 13).
O amigo elucida a polêmica enunciada cuidadosamente por Canclini:
Assim como não funciona a oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão onde estamos habituados a encontrá-los. É necessário demolir essa divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente: a história da arte a literatura que se ocupam do “culto”; o folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especializados na cultura massiva. Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenham esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente (2003, p. 19).
Daí, investimos naquilo que Canclini (2003, p. 23) defende “[...] da mesma
forma, o popular não se define por uma essência a priori, mas pelas estratégias
instáveis, diversas, com que os próprios setores subalternos constroem suas
posições”, levam sua produção à academia, no caso de Serejo, e com ele foram “os
outros”, personagens de histórias periféricas muito parecidas com as histórias
verídicas a que Reis em nota de prefácio de Pelas Orilhas da Fronteira conclama o
leitor: “[...] iniciemos nossos momentos de boa leitura, lendo casos contados por um
escritor que é nosso, sobre fatos que dizem respeito ao nosso passado já meio
longínquo, à nossa gente, à nossa querida fronteira.” (p.101).
O reconhecimento possessivo atribuído ao que é “nosso”, pode ser associado
ao que Freitas discute em relação ao texto cuja temática central está situada em
fatos da História. O traço identificatório entre texto, autor e leitor pode vir do
conhecimento que o leitor possui do tema histórico que norteia a obra, já que
História é um conhecimento público. Com isso, cria-se a possibilidade de relação
muito particular entre o escritor e o leitor, pois ambos conhecem os fatos da História.
Esse argumento fundamentado por Freitas (1989, p. 09) diz da recepção dos seletos
52
amigos leitores da obra de Serejo, “[...] o universo referencial é conhecido por
ambos, e o leitor terá o direito de utilizar suas referências culturais na leitura e/ou no
julgamento da obra”. Ação que podemos notar com muita evidência e significativa
extensão nas cartas recebidas por Serejo, quando seus amigos e leitores avaliam a
obra recebida/lida, uma vez que conhecem a realidade externa, como elucida o
poeta Ney Ocon Braga ao prefaciar Paisagem Sertaneja (Livro 36, 209) “Trata o livro
de documentário valioso: de um registro histórico de uma parte do Brasil,
vanguardeiro e sentinela avançada de muitas fronteiras”. Continuando, o prefaciador
diz da “[...] pureza do verbo [...]. Quer descrevendo o João-pobre nas lides de sua
difícil e teatral existência, quer narrando seus feitos que se emaranham no contexto,
nos momentos garimpados na vivência e observação do autor”.
Considerando as inúmeras evidencias do cruzamento histórico com o
estético, sobretudo, reconhecido, em sua maioria, pelos leitores acadêmicos,
retomamos a continuidade do argumento de Freitas sobre a fronteira ambígua que
separa o real do ficcional, a qual transparece na recepção dos “amigos leitores”.
Com isso, engrossamos argumentos a favor da dupla realidade contida nas
narrativas estudadas. Como bem enfatiza Freitas (1986 p. 10): “[...] uma natureza
híbrida, a meio caminho entre a Literatura e a História.”
Caio Porfírio Carneiro ao se referir à produção do escritor sul-matogrossense
considera que “além de ficcionista, poeta, cronista, folclorista, é também, e em
particular, historiador. Não o que se aproxima da didática. Mas o outro, o que vive a
História [...]”. Argumenta, ainda, que Serejo “consegue tudo isso com ciência,
consciência e raro talento”. (Livro 30, p.97) Esse talento pode ser compreendido, a
partir de Freitas, como transfiguração da realidade, já que “a arte é uma modalidade
do imaginário, e o imaginário não reproduz a realidade exterior, mas a transforma, e,
mais longe ainda, transfigura-a” (p. 113). Em Vida de Erval (Livro 23, p. 65), Hélio
Serejo reafirma que seus modestos livros são frutos de pesquisas e de tudo aquilo
que a imaginação produziu.
A função de historiador atribuída a Serejo pode ser respaldada em Barthes
(1988, p 146), para quem: “Parece que o discurso histórico comporta dois tipos de
embreantes. O primeiro tipo reúne o que se poderia chamar de embreantes de
escuta”. Este aspecto aparece no discurso de Serejo, pois ele usa o seu próprio
testemunho na construção da narrativa. Com isso, difere do discurso que possui um
informante para narrar – segundo embreante. A voz que conta em primeira pessoa
53
“Assisti ao dilúvio de preparativos para o retorno, após una noche bien
farriada...Convivi com essa gente mesclada. Rude. Violenta. Desrespeitadora” (Livro
23, p. 144), exerce dupla função: a de presentificar o que está sendo dito e a de
retomar o ocorrido. Serejo reitera, então, o fato possível de ter ocorrido pela via do
testemunho, da voz de quem diz ter presenciado, atribuindo caráter de verdade,
embora não seja mais o fato ocorrido, mas o contado. Tanto que, para Carneiro
(Livro 30, p. 97), a obra de Serejo tem preocupação “sempre com a verdade, com o
testemunho de seu tempo.
Ainda para Caio Carneiro, “Hélio Serejo é um permanente trabalhador das
letras. Não daqueles que se enclausuram entre quatro paredes, voltados às
elucubrações mentais: “É daqueles que fazem da Arte escrita uma força dinâmica e
criadora, nascida da observação direta com o meio e seus tipos humanos, no qual
vive e com os quais convive” (Livro 30, p. 97). Carneiro reconhece o traço peculiar
de Serejo referente à relação do autor com o contexto de que trata em suas
narrativas. Reis reconhece em Serejo uma literatura que recupera a história
desconhecida ou esquecida:
As histórias que nosso escritor regionalista, folclorista e poeta, nos narra têm todas fundo verídico. Nesse tipo de narração Hélio Serejo se fez mestre, retratista com palavras diretas, por vezes duras, como dura e pesada foi a vida dos que ele nos apresenta com impressionante autenticidade. Tudo isso, para nós, antes dos escritos de Hélio Serejo, era o mundo ignoto. Assim, não fora Hélio, quem irá saber da existência do convertido, simpático e prestativo Viejito Poincaré. (Prefácio Elpídio Reis, p. 101) (Grifo nosso).
Novamente, a verdade é colocada em destaque; a obra de Serejo tem “fundo
verídico” (Livro 30, p.101). Todavia, o espaço entre o fundo verídico e o ser verídico
preenchido pelo ato de narrar do sujeito inserido na circunstância, possibilita
discutirmos o que defende Santiago, (2000, p. 10) “[...] que o “real” e o “autêntico”
são construções de linguagem”. Portanto, recriação do real, não mais o fato em si, já
que “Não existe fato em si. É sempre preciso começar por introduzir um sentido para
que haja um fato”, (Nietzsche apud Barthes, 1988, 155). Se não existe fato em si, o
valor de verdade e de autenticidade passa pela construção do sujeito que conta o
fato.
Para White (1994, p. 122), as narrativas históricas não são apenas modelos
de acontecimentos ocorridos no passado, uma vez que passam por relações de
54
semelhança possíveis de ocorrer: “[...] a escrita pós-moderna da história e da
literatura nos ensinou que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem
sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado”. Segundo o autor o
sentido e as formas não estão nos acontecimentos, mas encontram respaldo nos
sistemas que transformam esses “acontecimentos” passados em “fatos” históricos
presentes. White observa que isso não é um subterfúgio para negar a verdade, “mas
um reconhecimento da função de produção de sentido dos construtos humanos”.
Taborda, citado por Reis (2008, 111), enfatiza a capacidade que Serejo tem
de criar imagens, com as quais consegue prender o leitor, sobretudo quando
descreve uma paisagem ou narra fatos da vida campeira: “Que vigoroso escritor
regionalista possui o estado de Mato Grosso do Sul!” (p. 115). Otávio Gonçalves
Gomes também reconhece o valor regionalista dos textos de Serejo, sobretudo, em
Surrão Crioulo (Livro 44, p. 56): “Somente um regionalista apaixonado encontra
poesia e inspiração em assunto tão árido como um surrão de couro [...]” (Livro 44, p.
117). Há, ainda, os amigos e confrades que avaliam o vigor, a brasilidade, o
“sertanismo” dos textos de um autor que “Não seguiu caminho de ninguém”, de um
autor que, segundo Gervásio Leite (p. 119) reflete em seus livros, com muita
fidelidade, o regionalismo, o folclore, o campeirismo e a vivencia crioula de Mato
Grosso.
As denominações atribuídas a Serejo alcançam maior amplitude significativa ao
avaliarmos o que diz Antônio Candido (2006, p. 127): Na nossa cultura há uma ambigüidade fundamental: a de sermos um povo latino, de herança cultural européia, mas etnicamente mestiço, situado no trópico, influenciado por culturas primitivas, ameríndias e africanas. Esta ambigüidade deu sempre às afirmações particularistas um tom de constrangimento, que geralmente se resolvia pela idealização. Assim, o índio era europeizado nas virtudes e costumes [...] a mestiçagem era ignorada; a paisagem, amaneirada.
Nas narrativas estudadas há uma ruptura desse modelo idealizador, já que as
personagens – quase sempre reais/ficcionalizadas – desempenham ações e se
envolvem com fatos vividos em um contexto, cuja paisagem vem para o plano da
escrita como parte integrante da narrativa. Isso se dá, sobretudo, pelo profundo
conhecimento que o autor possui do local, além da maneira peculiar de
compreender o entorno como fator preponderante para a movimentação dos fatos e
atos narrados.
55
1.4. A LITERATURA DE GALPÃO NA FRONTEIRA ACADÊMICA
29
Insistimos na inserção de nosso posicionamento de leitora da obra de Serejo
na adolescência, sobretudo, porque de lá – de leitora na/da fronteira, Bela Vista
Brasil e Bela Vista Paraguay – para cá – pesquisadora da obra -, há um espaço
temporal rememorável, vários acontecimentos e amadurecimentos teóricos, em
específico, sobre as literaturas de fronteiras, periféricas, que estão à margem.
A literatura que era de “galpão” e a academia, que não tinha aporte teórico
para investigação de tal objeto, paulatinamente, foram se espreitando e se
estreitando por meio de um “balbuciar teórico”, cuja fundamentação deslocou-se
para o local e colocou olhos, ouvidos e bocas em “Muitas povoações ervateiras [...]
transformadas em cemitérios” (Livro 23, p. 74) enterradas em histórias contadas por
quem escreveu no fio da esperança de “ser útil” um dia. Utilidade que vem sendo
(des)construída agregando concepção além do binarismo “útil x inútil”, além, muito
além e bem ali, no entre-meio da fissura de respostas, findas e prontas,
determinadas como dois e dois são quatro.
Vamos recortar uma das noções de utilidade pela vertente do “Mal-estar da
pós-modernidade”, de ebulições borbulhantes, alavanca incômoda, que nos
desmobiliza, mas nos dá sustentação para circunlóquios olhares do nosso entorno
atemporal. Recorremos, então, à Bauman:
Resta agora, à obra de ficção, desvendar essa variedade
particularmente pós-moderna de ocultamento, colocar em exibição o que a realidade tenta socialmente, e com afinco, esconder – esses mecanismos que retiram da agenda a separação entre verdade e falsidade, tornam a busca de sentido irrelevante, improdutiva e dia a
29 Trecho de uma carta recebida de Hélio Serejo em 2001, quando lhe comuniquei o interesse em desenvolver pesquisa sobre a obra dele.
56
dia menos atraente. Num mundo permeado de ironia, é a vez de a arte se tornar séria, defender essa seriedade que o mundo socialmente produzido transformou em quase ridículo. Depois de desmascarar as solenes e melífluas simulações dos modernos legisladores da verdade, a ficção artística, essa grande escola da imaginação, empatia e experimentação, pode então prestar serviço inestimável aos solitários, frequentemente confusos e aturdidos intérpretes pós-modernos do significado e do sentido. (1998, p.89).
A consciência do homem do nosso tempo, atravessada por algumas gerações
letárgicas, vem resultando em um debruçar-se investigativo sobre o espaço em que
se está, de onde se fala, com quem se fala, para quem se fala – se é que há
interlocutores. Movimento que se projeta para a dúvida, para o possível, o provável,
impulsionado por outros atos e fatos encobertos pelo manto da história “Real”, pela
vigência de valores selados em um tempo justificado pela maneira de pensar e agir.
Entretanto, estamos, em um outro tempo que muitos denominam pós-
modernidade. Independentemente do cunho e das vielas escolhidas pelos teóricos,
o fato é – sempre –: estamos em um tempo de auto-reflexão em relação ao que
“antes” havia. Um tempo, em específico, na acepção de Hutcheon (1991, p. 13) que
se abre à auto-reflexão movido por uma "força problematizadora" que desafia e
questiona a cultura, tendo como referência a própria cultura, sem entretanto causar
sua implosão.
Esse incômodo olhar oblíquo vai, ao final do século XX, subsidiar estudos de
obra e autores “de pouco valor literário”, se comparados aos padrões estabelecidos
pela crítica européia. Esse “novo” olhar emerge, sobretudo, da crescente
necessidade de se auto conhecer, de saber da própria história contada por vertentes
não oficializadas - no presente - em uma relação diacrônica, estabelecendo
referência, portanto, com o passado, motivado pela suspeita de que muitos espaços
ficaram em branco no decorrer dos tempos. Achugar (2006, p.47) ajuda-nos a
prosseguir em busca do “tempo perdido” por considerar que “A relação entre
passado e presente é uma relação entre passado e futuro”. Os novos olhares, desse
novo tempo, abrem possibilidade de estudo de um autor que mantém relação
referendada em um contexto histórico de fronteira local e ousa narrar e descrever
suas lembranças, nas quais incorpora muitas outras, esquecidas. Alguns fiapos
desse discurso escrito, perpassado pelo oral, centrado em passagens passíveis de
terem ocorrido em um tempo histórico, poderão levar-nos a indícios de como se deu
a formação de do Estado de Mato Grosso do Sul, além das evidências de
57
maturidade identitária em relação ao sentimento nacionalista do nativo para com sua
terra.
Como se pode perceber no trecho da singela carta – epígrafe – a
sensibilidade do escritor para a vida da fronteira revela-se em sua escrita, quase
sempre, pela via da simplicidade, do amor ao supremo, de um “con permiso” para
adentrar ao contexto da academia. Dessa singeleza, o plano histórico da vida do
autor e da formação do sul do Mato Grosso do Sul, no tempo do apogeu da extração
de erva mate, foram lidos por muito tempo, com mais intensidade, sobretudo, porque
Serejo coloca-se como narrador, aparentemente espontâneo e entremeia, quase
sempre, o viver fronteiriço, à sua vida pessoal, articulando-a a particularidades
lembradas com a generalização, ou a “parte com o todo”, reinventando histórias que
foram contadas.
Se aliarmos as temáticas recortadas, vida de erval e vida de peão de
fazenda transitando de lá para cá, na fronteira, podemos levantar incidências que
nos levam a ampliar a leitura e a estabelecer relativa consonância entre o plano do
conteúdo e o plano da expressão, devido, primeiramente, à apropriação que o
narrador faz dos usos e costumes “dessa gente” inserida em um ambiente de
fronteira. Segundo, a voz que conta é a mesma que vive – ou viveu – a história do
fato; terceiro: os recursos estéticos – ou a ausência estética tradicional – “falam”
pelos fatos, tanto fala por ele. Assim, plano da expressão e plano do conteúdo se
cruzam - nem sempre se fundem –, propiciando um terceiro espaço. Esses
argumentos serão apresentados no terceiro capítulo.
A publicação de Serejo, sempre autônoma, data de 1935 a 2004. Em seus
livros, como já foi afirmado, há de tudo um pouco e revela-se o amor pela poesia,
pelas coisas do sertão, pela beleza da flora e fauna. Compilados em Obras
Completas, em 2009, o conjunto da obra30 tem proporcionado estudos esparsos por
programas de graduação e pós-graduação, com destaque para a Universidade
Federal da Grande Dourados. Entretanto, ainda, os livros de Serejo não são lidos
nas escolas de Mato Grosso do Sul e sua obra é reconhecida, em consenso mais
amplo, como memorialismo histórico. Todavia, desse memorialismo desprendem-se
fiapos de um fazer literário nativo, sustentado pela força da paixão pela escrita,
alimentado pela vaidade e prestígio do reconhecimento de ser autor, muito habitual 30 A Fundação de Cultura/MS doou a todas as bibliotecas escolares de Mato Grosso do Sul as Obras Completas de Hélio Serejo.
58
em contextos emergentes. Os fios desprendidos da tessitura entremeada pela
memória histórica resultam em nuances subjetivas sugestivas de conhecimento da
história encoberto por copiosos capões de erva tão da terra como o autor.
A fim de podermos conhecer o repertório de leitura do autor, realizamos
investigação por meio da Poesia mato-grossense, obra lançada em 1960, na qual
Serejo reuniu vinte e nove poetas do, então, estado de Mato Grosso e propôs uma
espécie de crítica, seguida de síntese biográfica e alguns poemas dos autores
selecionados.
Serejo revela-se ali conhecedor de Valéry, Mallarmé, Baudelaire, Poe,
Heine, da poesia simbolista, parnasiana, do romantismo, conhecedor da poesia da
“nova arte” contida no poema “Greve”, de Rubens de Mendonça (1915): “Veio a
Polícia/ Houve tiros.../Depois só ficou um/trapo da camisa do/operário,/sujo de
sangue/como se fosse ban-/deira vermelha,/a tremular no ar!.../.” Reconhece que o
poeta “oferta versos modernistas tão bem coordenados que não causariam
desdouro se figurassem ao lado das produções desse mesmo gênero da lavra do
excepcional Carlos Drummond de Andrade” (Livro 16, p. 32).
Denomina “modernosos” os poetas Wladimir Dias Pino (1927) e Benedito
Santana da Silva Freire (1928). O primeiro, “[...] como se quisesse descrever,
penetrar, esmiuçar os contornos e o interior de uma pirâmide egípcia, leva ao papel
[...] luz, sombra, calor, pensamento, ação... [...]” (Livro 16, p. 63). Silva Freire, para
Serejo, aproxima-se “à realidade poética contemporânea”, tem lugar assegurado na
“Nova Poesia Brasileira”. Serejo mostra-se encantado pelo vigor e pela “coloração
espontânea” resultante da poesia do cuiabano.
Também soube avaliar a poesia de “versejadores simples”, aqueles que não se
submetem ao verdadeiro rigor formal, entretanto, produzem “maravilhosos poemas
em prosa”, como é o caso de Otávio da Cunha Cavalcanti (1884) ou considerar
Tertuliano Amarilha (1924), poeta da fronteira, cujos versos espontâneos e sinceros,
às vezes de um lirismo ingênuo, próprio de poetas, segundo Serejo, “que vivem
deslumbrados pelo amor ou fustigados, constantemente, pela deusa cruel da
saudade” (p. 127), conquanto, entremeados ao sonho e romantismo de homem
simples.
Para falar da poesia de Pedro Medeiros (1890) recorre a Paul Verlaine “[...]
naquele sentido que o pauvre Lilian tão intensamente sofreu. Boêmia em seu nobre,
generoso e elevado sentido, em que a vida se funde [...], resultando aquela poesia
59
que é a excitratrice d´ acts vitaux” (p. 139). Refere-se ao “Sr. Mário de Andrade” e a
seu empreguismo público. Conclui demonstrando leitura diversificada e clássica:
“Essa vida torturada, incerta incompreendida e dolorosa fica sendo, no fundo, como
o Coração de Pedro Medeiros: – Antro, Caverna, Alcouce e Catedral” (p. 140).
Serejo abre a análise sobre Lobivar de Matos (1915-1947), afirmando que
“Não se pode falar em poesia modernista em Mato Grosso sem se fazer referência a
esse saboroso versejador [...]”. Recorre a Thomas Carlyle (1795 - 1881), “No
apurado conceito carlyleano, o poeta é uma figura heróica pertencente a todas as
idades”. Diz da poesia essência de João Antônio Neto (1920): “O poeta é ao mesmo
tempo Camões, Dante, Casimiro, Luís Guimarães, e pela profundeza dos conceitos
e harmonia da métrica, Manuel Maria Barbosa Du Bocage” (p. 162). No mínimo
levantamento, percebemos que Serejo foi um estudioso da literatura brasileira,
universal, bem como da literatura local de seu Estado.
Serejo revela, com bastante frequência, ao cotejar os poemas em Poesia Sul-
matogrossense, ser um sujeito que se estabelece na mescla da concepção de belo,
enquanto perfeição formal (Livro 16, p. 26), “[...] rigor da majestosa escola
parnasiana que ‘preconizara a perfeição do metro e a justeza da rima’, bem como a
poesia romântica “imagens vivas de um novo mundo poético, [...] que pende,
prazerosamente, para o romantismo” (p.110). Exalta, ainda, os ‘exímios’ sonetos
produzidos pelos conterrâneos, bem como reconhece a cadência de versos livres e
brancos de Drummond e Mário de Andrade.
Sua sensatez em analisar, sem julgamento de valor e com conhecimento
amplo de tendências literárias – romantismo, parnasianismo, simbolismo,
modernismo –, a produção dos autores compilados, revela um sujeito de um
momento histórico – início do século XX – entre fronteiras literárias, sobretudo,
quando analisa o poema sem a preocupação de enquadrá-lo em um movimento
literário. Reconhece traço modernista nos periféricos estudados, mas não os limita a
enquadramento. Tece observações que, para um homem de seu tempo e de
formação informal, deixam transparecer concepções pouco convencionais, como:
“[...] seria um excelente regente de orquestra, pois [...] traz músicas para dentro de
sua poesia, embora seus decassílabos sejam esculpidos ao rigor da escola
parnasiana”. São essas pequenas frestas contidas na obra de Serejo que elevam
sua ação de escritor para além de uma concepção literária, mera representação de
uma realidade.
60
O texto de Serejo é resultante de inspiração na sua mais sublime e ingênua
acepção, com o trabalho exaustivo de recriação de uma realidade local com a qual
conviveu, e inspira, a ponto de se motivar para ir à busca de dados, relatos, fontes
primárias e secundárias permeadas pela memória, pela lembrança. Seu
conhecimento do local não é muito diferente da atipicidade de Franklin Távora,
reconhecida por Candido (2006b, p. 616). Segundo o crítico, a maior virtude de
Távora foi sentir a relevância literária de um levantamento regional; sentir como a
ficção é favorecida pelo contacto de uma realidade concretamente demarcada no
espaço e no tempo, que serviria de referência, de “senso da terra” e em algumas
situações, no Romantismo, de limite corretivo à fantasia. Aspecto censurado em
Alencar por conhecer pouco o cenário geográfico de sua obra. Contrapartida,
Franklin Távora demonstra, na análise de Antonio Candido, além de profundo
conhecimento da área canavieira, “uma vivência regional, uma interpenetração da
sua sensibilidade com a paisagem geográfica e social do Nordeste” (p.615), e soube
descrever com “amor topográfico”. Essa paisagem se completa com a roça, com a
fabricação da farinha de mandioca, com os currais. Ao meio de tudo isso está o
homem no contexto da cana-de-açucar representado por meio de uma literatura
espécie de “argamassa do regionalismo”, nas palavras do admirador e crítico.
A verossimilhança, em Serejo, se efetiva no encadeamento pormenorizado do
descritivo da região, guiado por voz saudosa que impulsiona o leitor a olhar a
paisagem, criando o efeito de real, como se estivesse inserido no local, vendo – e
descrevendo, no caso o autor – um espaço, além paisagem “pano de fundo”, além
figuração:
Acompanhando o declive do terreno, o talhão de pasto nativo, como cerco natural por dois lados, o que favorecia o cuidado dos animais. A jusante, lado poente, aquela moitona de caraguatá, açoita-cavalo, unha-de-gato, tuna rasteira, marmelo brabo, flor-de-espinho, maçaroca, vassoura-de-bugre, e o cipoal verde enredador que põe atrativo no concentrado rústico de colorido extravagante. (Livro 39, p. 163).
Tão real que se chega a imaginar a dificuldade de transitar, de adentrar
naquela moitona que, muitas vezes, impede a passagem dos que se aventuraram
em busca de dias melhores, tal qual o contador dos fatos: “Vivi esse ambiente
arrebatador dezenas e dezenas de vezes na mocidade de muitos pensamentos e de
61
decisão inquebrantável de lutar para ser alguém na vida (Livro 39, 163). A paisagem
virgem, impenetrável ao primeiro esforço para ultrapassá-la, rústica, amplia as
dificuldades de acesso, atribuindo maior grandiosidade aos atos das personagens.
As dificuldades não diminuem o encantamento e reconhecimento que o homem do
local tem pelo seu ambiente e Serejo confirma esse sentimentalismo de louvor:
“Esse foi o meu mundo, durante vários anos. Vivi intensamente essas paragens e as
vias, por gosto, por predileção violenta ao sertanejo, ao meio bruto e ao cheiro
característico das matas, várzeas, cerradais, paludes e campo” (Livro 39, p. 163).
Outros aspectos considerados por nós, em boa parte das narrativas
estudadas, refere-se à forma como Serejo enreda as histórias e a construção da
personagem, quase sempre identificadas por codinomes ou pela origem, com mais
intensidade, pela função braçal que exerce, como é caso do mayordomo,
barbaquazeiro, personagens transfigurados e nomeados pela função exercida no
mundo bruto da erva. O mosaico de vozes – a voz que conta permeada pela voz que
depõe – ao longo das narrativas, surte o caráter de verdade à bravura do destemido,
além de uma espécie de encorajamento já que “O drama do erval alucina-o e
absorve-o” (Livro 23, p.72). Ao interferir na história do que veio – ele que já estava –
transfigura-se em personagem que vai tecendo, nos vãos, “[...] as páginas
dramáticas da história da industrialização da erva-mate, além do “herói anônimo”,
(Livro 23, p. 72) a sua própria história. Os depoimentos, as confirmações do tipo: “Eu
vi, estava ali, conheço essas paragens, andei por longa data por estes lugares...”
além de ampliar as dificuldades, como já foi afirmado, presentificam a saudade do
homem distanciado de seu meio de origem, “[...] é fazer o passado, presente, numa
satisfação de caboclo que, revivendo, sente-se compensado dos tormentos da vida.”
(Livro 23, p. 172).
Ao se referir a si próprio e aos que vieram – como seu pai – e fincaram
raízes, escolhe um vocábulo híbrido, mistura de linguagem oral, com forte sotaque
guarani e de uso do vocabulário gaúcho: “Povuero é o musgo da árvore centenária e
o musgo, a ela se incorpora e passa a viver de sua mágica incorporação vegetativa.
Segue, tempos afora, agarrado à umidade de líquido alimentador, enfrentando as
intempéries” (Livro 39, p. 112). Andante – que ele também se torna – e povueiro –
esteio poderoso – alicerce, que finca raízes, que gruda, solidariamente ajudaram
“[...] a construir a pátria charrua” (p. 172), na visão do sujeito que deseja o
progresso, mesmo vivendo em condições de exploração. Revela, ainda, a influência
62
do modelo positivista na formação sócio-política brasileira, uma vez que o progresso
justifica as ações, descaracteriza os vínculos, enaltece os atos, conforta as dores...
Com isso, o anônimo traz o homem coletivo, descentrado, deslocado, sem muita
consciência de onde veio e para onde vai, mas que não deixa de projetar-se no
contínuo movimento incerto da “mata adentro”. Possibilita-nos repensar que a
identidade é formada na interação entre o eu e o lócus enunciativo. Mais, ainda:
rompe com o homem idealizado, contínuo ou idêntico ao longo de sua existência,
evidência o “eu real”, que vai se constituindo em um diálogo contínuo com os
mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem,
segundo Hall (2006, p. 11). Não será Hélio Serejo fazendo uso da palavra para falar
dos homens desbravadores, para contar histórias dele e de todos nós?
Consideramos, ainda, que Serejo transita pacificamente na fronteira entre
“picadas adentro” e na vida da cidade constituída pela localização em que está. É
um sujeito do início do século XX, que se situou na mescla das pequenas
localidades urbanas, possui boa relação com o “mundo das letras” e exercita os
créditos vividos nos ervais de forma aparentemente saudosista, ao recriar
personagens que se integram aos relatos – fato histórico – ambiguamente,
efetivados pela exaltação, pela grandeza do ato, pela bravura pujante. Para tanto,
presta “Homenagem de reconhecimento” ao bravo peão paraguaio e a mulher
guarani, criaturas que, para o autor, enfrentaram a cruel sorte e martírio, “[...] na
grande e vigorosa arrancada da épica penetração ervateira.” (Livro 23, p. 89).
As homenagens, os credenciamentos e inserção das personagens anônimas,
relativamente planas, zelosas de seus deveres, potencializadas em heróis e
heroínas dos ervais, vão revelando, no conjunto da obra, um tempo em que o
homem esteve à mercê da sorte, um tempo em que a fronteira esteve aberta à
entrada de mão de obra barata para não dizer explorada, um tempo em que a
fronteira estava aberta à exploração estrangeira, tanto que a erva era beneficiada na
Argentina.
O homem local que se faz autor das narrativas estudadas – o autor Hélio
Serejo –, não deixa de ser, também, um homem híbrido, se partirmos da perspectiva
de que fala Hall (2003, p. 88-89) ao se referir às pessoas traduzidas, àquelas que se
transportam por entre fronteiras, na acepção etimológica da palavra tradução, do
latim “transferir”. O teórico discute, ainda, o conceito de pessoas traduzidas, pessoas
pertencentes a culturas híbridas, as quais embora dispersadas para sempre de sua
63
terra natal, possuem fortes vínculos com seus lugares de origem, com a sua história,
e são obrigadas, no nosso entendimento, devido às condições de sobrevivência, a
negociar com as outras formas de viver. Passam, pois, a conviver com outras
formas, em outros contextos, em outros locais, situações e fases da vida, em um
processo contínuo. Valemo-nos desse raciocínio para reconfirmar que o autor
estudado também é um “dispersado” fronteiriço e boa parte de sua produção foi
escrita quando não mais residia na fronteira, mesmo que tenha anotado “[...] tudo
no histórico cuaderno argentino”. (Livro 37, p. 267).
Em Contas do meu rosário, obra lançada em 1970, organizada como Livro 22,
em Obras Completas, Serejo resenhou vida e obra de alguns autores, como:
Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Monteiro Lobato e a poesia xucra do Rio
Grande do Sul, com destaque para Jayme Caetano Braun e Dimas Costa. Embora
não seja uma obra que apresenta investigação de tese, contribui para entendermos
um pouco a formação intelectual do autor, tanto quanto o referencial de leitura, os
vínculos e influências, bem como a concepção de autoria, da “predestinação” que
Deus deu ao poeta. Um homem que “Dia e noite, ao entardecer ou na madrugada
fresca e silenciosa”, foi juntando, conta por conta, seu “rosário de divagações
literárias”, por meio das quais exercitava a escrita, o desejo de escrever. Dessa
compilação, avulta-se a preferências – na poesia – e de vocábulos na prosa, da
tradição sulina; traço presente em textos serejianos.
No contexto da Literatura brasileira, Serejo se apresenta como um sujeito
local compromissado com a memória histórica de um tempo, lugar e pessoas com os
quais possui relação identitária. Esse compromisso respalda-se na aptidão inata do
autor para a literatura, no gosto da escrita. Gosto e compromisso fundam uma
literatura de fronteira, mesmo que seja nas produções em que compilou a história da
cidade em que nasceu, Nioaque (Um pouco de sua história), obra escrita, segundo o
autor, de forma despretenciosa, exercício de pesquisa em descoloridos manuscritos,
livros nacionais e estrangeiros, revistas, álbuns e dezenas de publicações formada
também com depoimentos de “valorosos informantes”. Estes constituem extensa
relação de nomes de informantes e ausência das fontes referente às obras
64
consultadas – segundo o autor as obras consultadas constariam do volume II, o qual
não foi escrito31. Nesta obra, o nioaquense explica que:
Nas pesquisas históricas não podemos fugir, é certo, aos pontos obscuros e aos fatos de dupla interpretação, daí surgindo, então, o valor das informações de terceiros, dentre os quais, no peneiramento o pesquisador encontra, invariavelmente, o texto que mais correto e verídico lhe pareça, para registro dos fatos pesquisador nas pesquisas históricas.
[...] No relato histórico procuramos ser fiéis, nos mínimos detalhes, sem adentrarmos a trilha perigosa do “possivelmente” e do “talvez foi isso”.(Livro 33, p. 318).
Como se pode depreender, trata-se de uma obra organizada sob a tutela da
pesquisa, de levantamento e cruzamentos de dados orais e escritos, os quais
passam a integrar um terceiro texto, aquele que diz da interpretação do autor, como
é o caso (Livro 33. p. 258): “O povo foi chegando. E o Apa, o Nioaque, o vale do
Miranda, o Cavo, o Desbarrancado e o Canindé foram tendo suas margens
povoadas. [...] ia se erguendo, nos lindes avançados do Império, uma civilização de
esperanças”. Nestes pequenos vãos textuais, o compromisso com a memória
histórica de um povo se transfigura pelo desejo da escrita.
Como já foi exposto, Serejo não tinha um projeto literário, muito menos optou
por um gênero textual; definia-se como um sujeito que gostava de escrever. Pela
prática da escrita, da consulta aos “compêndios” foi escrevendo. Há muitos e muitos
autores “inspirados”, amadores que escrevem e se fazem poetas, escritores...
Todavia, redigem um ou alguns livros. Quase sempre tematizam amores, dores,
paixões; muitos outros contam a vida familiar, optam por autobiografismo, tornam-se
acadêmicos. Serejo também veio por este caminho. Entretanto, sua uniformidade
está em não ser uniforme em relação ao gênero, pois fez de tudo um pouco, de
forma irregular, se avaliarmos, por exemplo, as narrativas, com base nos elementos
do texto narrativo. Há irregularidades, incompletude, dispersão de elementos. As
probabilidades de que fosse diferente – tivesse domínio pleno de conhecimento de
estrutura textual – são escassas, já que se fez na fronteira. Sujeito de um tempo,
meio e formação, Serejo vai optar por retalhos estruturais muito apropriados aos
fragmentos de histórias ficcionalizadas pelo viés da lembrança de ter vivido, por ter
31 Informação contida na obra que acompanha as Obras Completas: Campestrini, H. Trilhador de todos os caminhos: vida e obra de Hélio Serejo (2008, p. 63).
65
lido e por ter ouvido contar. Incide, assim, uma espécie de originalidade às avessas,
sem que fosse sujeito irreverente, sem que quisesse fundar padrões, mas insiste em
continuar escrevendo da forma como consegue, embora tivesse noção de padrões
estéticos.
Por meio dos retalhos narrativos, o autor manifesta aquilo que Ferdinand
Denis32 tentou dizer aos – dos – autores brasileiros: “[...] a América deve ser livre
tanto na poesia como no seu governo” (DENIS 1826, apud CANDIDO 2006, p. 637).
Serejo, embora estudasse os românticos, fez sua liberdade e escolheu recontar o
que viu e ouviu das histórias transitadas na fronteira.
O fato de não ter visto mais o índio na fronteira, certamente, advém das
condições sócio-culturais. Por não ter idealizado, reafirma sua visão de sujeito
inserido dentro do seu espaço com olhar voltado para o próprio espaço. Sua posição
é original e emancipada duplamente: está em condição literária periférica e enxerga
aquilo que muitos autores demoraram para ver: o próprio lócus enunciativo.
Serejo merece ser melhor e mais estudado, sobretudo, no que se refere à sua
formação intelectual, em específico, relacionada aos autores Visconde de Taunay e
Décio Puiggari. Desses dois autores transcreve trechos, como é o caso do recurso
usado para relacionar a história de Nioaque com o fato histórico da Retirada da
Laguna. Serejo transcreve duas cartas de Taunay, escritas em Nioaque – uma de 07
de fevereiro de 1867 e outra, de 26 de janeiro - enviada à irmã. Entre as notícias,
Taunay confidencia à irmã, que está produzindo um dicionário da língua guaná, do
qual já possuía “mais de dois mil termos em ordem” (Livro 33, p. 286)33 e confessa,
ainda, que não havia cena da natureza que provocasse seus lápis; por isso, tinha
parado um pouco com os desenhos.
Em Prosa Xucra (Livro 10, p 321-322), Serejo ao contar, de forma sintética, a
vida de Guia Lopes, convida o leitor a ver como o “mestre” Visconde de Taunay
descreveu os derradeiros momentos do guia que entrou para a história, e passa a
transcrever trechos de Taunay. Ao transferir a voz do contar ao romancista, Serejo
reforça sua admiração pelo “notável engenheiro e homem de letras da Força
Expedicionária do Brasil (p. 322). O fato narrado (Lopes, antes de morrer, faz um 32 Nota contida em Candido (2006, p. 773) “Quanto a Ferdinand Denis, eis a referência completa da sua obra, nunca reeditada: Résumé de l´ Histoire Littéraine du Portugal suivi du Résumé de L´Histoire Littéraine du Brésil, Lecointe et Durey, Paris, 1826.” 33 Nos livros Modismo do Sul de Mato Grosso (Livro 2, p. 17-23) e Textos Esparsos e Glossário (Livro 50, p. 249-287) há vasta relação de significado de expressões e palavras usadas na região ervateira e de fronteiras.
66
pedido à Taunay) passa de realidade histórica para deleite pessoal do autor Hélio
Serejo. O trecho da obra Retirada da Laguna ganha dimensão além registro dos
últimos momentos do Guia, quando Serejo enaltece a ação de Taunay ao interceder
a favor da família e da viúva de Lopes, demonstrando - o engenheiro - ser um
homem de honra e palavra.
As relações com Puiggari34, como recurso ilustrativo, vêm sendo levantadas
no decorrer deste estudo. Vale ressaltar que a obra de Serejo é posterior ao
lançamento da obra de Puiggari. Observamos marcas recorrentes entre os autores,
tais como: incidências de trechos, personagens, locais e desejo de denúncia.
Entretanto, o filho de Nioaque cria a sua própria obra, sobretudo na forma do
levantamento dos possíveis fatos. Em Sismório: o gringo bochincheiro e bandido35
(Livro 43), personagem que também é descrita por Puiggari; ao final do livro, Serejo
relaciona dezoito informantes, bem como a obra de Umberto Puiggari consultada.
Devemos considerar as datas em que viveram e lançaram as obras: Puiggari 1933,
Serejo 1991. Certamente, o enfoque explícito de denúncia recai, com mais ênfase,
no discurso do primeiro autor, já que retrata uma realidade muito próxima ao
momento em que os fatos ocorreram. Escreve no calor da indignação, do instante
seguinte. Serejo está recuado do tempo - e local - em que os fatos se dão: “Quando
ia em meio o ano de 1906, [...] chega a Pedro Juan Caballero Franck Six Moritz...”.
Sua produção conflui entre a lembrança saudosa da memória esfacelada pelo
tempo. 34 Segundo o historiador Valmir Batista Corrêa “[...] sobre as relações de violência na fronteira sul existe uma verdadeira obra-prima editada em um livrinho despretensioso escrito por Umberto Puiggari, chamado Nas fronteiras de Matto Grosso. Terra abandonada (Ed. Mayença, 1933). Nascido em 1878, Puiggari exerceu atividades comerciais em várias regiões do estado, onde anotou com muita sensibilidade as “conversas de balcão” que escutava. Vivenciou fatos históricos como a participação de Mato Grosso na revolução de 1932. Amigo de Vespasiano Barbosa Martins, Puiggari soube registrar magistralmente o dia-a-dia da terra-de-ninguém mato-grossense.
O livro, de raro acesso pelo fato de ter sido publicado em pequena tiragem, tem seus originais e duas correspondências no cofre de segurança do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, doado pelo ex-governador do estado, Wilson Barbosa Martins. Este livro, por sua importância, deverá ser publicado brevemente pelo IHGMS, acompanhado de um estudo sobre a obra. Puiggari assinava os seus documentos como “H. Puiggari Coutinho”, e escreveu seu livro no verso de papel timbrado da “Pharmacia Brasil de O. Jorge. Rua João Pessoa, 432. Telephone 3”. Na análise desses originais, percebe-se que alguns dos capítulos escritos não foram incluídos na obra publicada. Seria uma autocensura motivada por receio de represálias de pessoas citadas? Talvez, em razão disso, e após muitos anos residindo em Mato Grosso, Puiggari transferiu-se para o estado do Paraná, onde fundou o Jornal de Londrina.” (http://valmirbatistacorrea.blogspot.com.br/2008/02/terra-do-barao-e-cutelo.html. Acessado em 20/03/2013. 35 Livro lançado em 1991, 56 páginas, capa ilustrada, miolo datilografado, em papel comum. A obra foi impressa pela Gráfica e editora Cingral, de Tupã (SP), com revisão de Sebastião Dassi. O autor colou, no verso da folha-de-guarda e na página 55, textos impressos tipograficamente, complementando as informações do livro. (Fonte: CAMPESTRINI, 2008, p. 65).
67
CAPÍTULO II - A FRONTEIRA, A ERVA E O HOMEM
A erva ia avançando, fazendo alvoroço nas orilhas da fronteira...(Livro 34, p. 14).
36
Figura 04
36 Capa do livro No mundo bruto da erva-mate (1991), 168 p., brochura, capa ilustrada..., miolo datilografado, editora Gráfica e Editora Cingral, de Tupã (SP). Na parte inferior da capa está escrito: Explorando o erval pelo rio. O caati pode começar a menos de mil passos. Achado el yerbal de buena comensación, era só descubrir el puerto para o embarque da preciosa riqueza nativa. O produto ensacado representava sempre a esperança sonhada por todos (Livro 44, p. 164).
68
3.1 A FRONTEIRA SEREJIANA
Os eventos político e econômico, a Guerra da tríplice Aliança (1864-1870) e a
exploração dos ervais brasileiros pela empresa Erva Matte Larangeira (1877-1944)
funcionam como uma espécie de jurisprudência para os sujeitos que precisam de
uma rubrica para se lançarem ao trânsito, ao deslocamento. Os dois acontecimentos
históricos se integram ao espaço natural do erval, localizado entre fronteiras, a partir
de onde Serejo irá contextualizar a vida “[...] de uma legião de sofredores [...]” (Livro,
41, p.09), que vieram não se sabe muito bem de onde. Sujeitos, quase sempre
anônimos, sem documento, trazendo histórias de vida que vão sendo reveladas,
quando passam a fazer parte dos livretos de Serejo.
Neste capítulo, trataremos de como, no conjunto da obra de Serejo, emerge a
História da formação e povoamento do sul do Mato Grosso do Sul, que passa pela
história de vida do autor, uma vez que sua produção contém referencias a fatos
históricos e pessoais, além de muitos outros particulares.
A fronteira de que fala Serejo, o local em que Nasceu – Nioaque37 – e o local
em que cresceu – Ponta Porã38 –, os quais ficcionaliza, quando já afastado no tempo
e no espaço, consistiam, segundo Gadelha (p. 46 apud Tolentino, 1986, p. 52),
antes da Guerra do Paraguai, em núcleos habitacionais dispersos na região mato-
grossense, sem proteção oficial e foram surpreendidos com a “trágica guerra”.
Em Nioaque (Um pouco de sua história), Serejo explica ao leitor, em primeiro
lugar, como o próprio título informa, apenas um pouco da história local, embora
tenha realizado pesquisa exaustiva para organizar a obra. Segundo ele, “mister
seriam pesquisas de longos anos e cuidadosa comparação informativa” (Livro 33, p.
231). Ao retomar o passado de sua cidade, Serejo, em determinado momento da
narrativa, explica ao leitor, como se este estivesse suspeitando dele, que para
resgatar os fatos: comparou dados, pesquisou exaustivamente, colocou tudo em
ordem cronológica, “[...] enfim, pesquisas aprofundadas foram efetuadas para
esclarecimento do fato histórico; tudo ficou, porém, no terreno do “papai dizia”, do
“vovô afirmava sempre” ou no terreno enganador do “provavelmente”.(Livro 33, p. 37 Em Nioaque (Um pouco de sua história), vol. I, 1985, Serejo faz referência à grafia correta: Anhuac, que significa clavícula quebrada em origem guaná, língua indígena da tribo aruaque (p. 233). 38
69
249). Avulta-se, com isso, a força da história oral, incidência peculiar na literatura de
Serejo.
O filho da terra, independentemente de ter contado a história em
conformidade com os que viviam à margem direita ou à esquerda, a história de fatos
ou de fato, organiza o “já dito” como homem que se formou ouvindo resquícios de
histórias, retalhos da Guerra, apalpando vestígios de lutas, contrapondo contares,
indagando outros, percorrendo picadas, caminhos, trilheiros, dantes abertos e
trafegados por sujeitos em trânsito, uns sobre as pegadas incrustadas dos outros, de
modo que já não seria mais possível vislumbrar cartesianamente a ordenação dos
fatos. Fatos são os que estão nas narrativas; as verdades se cruzam e se
distanciam e tornam a se integrar na polifonia dos contadores que aparecem na voz
do narrador serejiano ao tecer suas narrativas.
Falar de sua terra natal equivale a contar, no mínimo, duas histórias como ele
mesmo depõe: a parte oficializada pelos vencedores da “trágica Guerra” e os
depoimentos dos que estiveram próximos aos combates, sem ter muita noção dos
motivos deflagradores do evento político que resultou em um Paraguai exposto à
miserabilidade. Equivale, ainda, a contar uma história do lugar onde se esteve
fisicamente, o qual existiu na memória de um sujeito perpassado pelas marcas do
local e muitas outras. Um sujeito que irá contar de um lugar e tempo posterior ao
ocorrido.
Assim, o nativo Hélio Serejo, ao longo de sua obra, deixa transparecer as
fronteiras por meio das quais se constituem histórias de poder, de posse;
entrelaçadas pela tessitura, emergem muitas outras que foram esfaceladas,
desvirtuadas, interrompidas e teimam em sobressair, aos pedaços, ao longo da
obra. Ação que desempenha através do que o autor denomina literatura sertaneja, a
qual prenuncia uma consciência do olhar para uma faixa de fronteira – social e
geográfica – e um sentimento de nacionalidade exaltado, de “um escravo do
nativismo” (Livro 49, p. 151) que se sente incompetente para descrever “[...] o
recôndico da mataria, muitas vezes traiçoeira, o marco de sua intrepidez”.
Com o término da Guerra, aos poucos os núcleos vão sendo reconstruídos.
Nioaque, destruída pelo fogo ateado pelas tropas paraguaias, vai sendo erguida
pelos que se refugiaram, bem como, mais tarde, por famílias gaúchas fugidas do
movimento revolucionário do sul em busca de terras férteis.
70
A hilária anedota Ajudo a meu amigo, metáfora de um tempo entre guerra,
leva-nos a compreender razoavelmente como estava o povoado Nioaque, o mais
próspero ao sul, ao ser atacado pelas tropas paraguaias:
Na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, fronteiriça com
Ponta Porã, onde residi longos anos, travei conhecimento e cultivei mesmo sólidas amizades com vários filhos do país irmão. E de um deles ouvi por várias vezes o fato seguinte.
Quando o capitão Blas Rojas entrou na vila de Nioaque, covardemente abandonada pelo capitão Martinho José Ribeiro [...] encontrou no vilarejo deserto somente duas almas: um espanhol e um português europeu.
Ouvindo seu sotaque, o capitán Rojas perguntou-lhe: - De donde es usted? - De Espanã, mi capitán! Soi sevillano... -Que está haciendo por aça? - Esperava uested, com su caballeria, mi capitán! - Y para quê? O espanhol respondeu com vivo entusiasmo: - Para poner fuego em la vila com ustedes! Blas Rojas, voltando-se para o português, inquiriu-o
asperamente: - E usted? Que hace también? O português, que não havia entendido bem a conversa,
respondeu secamente: - Ajudo ao meu amigo. O capitão guarani, revoltado com o cinismo de ambos, dera-
lhes, então, aquele castigo: com um facho aceso, o português e o espanhol saíram a queimar, moita por moita, o capinzal esturricado das ruas. (Livro 10, p. 334).
Aparentemente, perdido ao final de Prosa Xucra (Livro 10), texto irregular pela
extensão em relação aos demais, aquilo que poderia ser apenas o reconto das
muitas histórias que ficaram incrustadas na história de um local que foi espaço brutal
de guerra deixa confluir fronteiras, tais como, memória coletiva e oficial, fato
real/ficcionalizado, o oral e escrito, além do sentimento de “desamor” do português
em relação à colônia, não muito diferente do terceiro, o paraguaio, uma vez que,
embora inconscientes, todos estão em “estado de Guerra”.
A obra de Serejo é memória de um local e tempo em que esteve. Fazendo-se
narrador, recupera, pela memória individual, aquilo que testemunha ter vivido ou
presenciado, bem como pela memória coletiva, aquilo que dizem ter ocorrido. Para
Ricoeur (2002, p. 107), “memória é passado, e esse passado é o de minhas
impressões; nesse sentido, esse passado é meu passado”. Embora, ao recordar,
Serejo reporte-se ao passado de sua vida pessoal, o recontar do vivido interpenetra
71
sua história com outras histórias ocorridas em um tempo e local, os quais se cruzam
no vão dos tempos – passados e presente, no vão dos enfoques – do particular e
coletivo – e abrem fendas para, por meio da memória – passado –, conhecermos, no
caso de Serejo, um tempo em que o Estado de Mato Grosso do Sul – ainda Mato
Grosso – começou a ser mais povoado. Um tempo presente, sobretudo, no aspecto
sócio-político, argumentos discutidos mais adiante em se tratando de referendarmos
a função da memória e a intersecção do estético com o histórico.
Esse peculiar traço na obra de Serejo leva-nos a lugares que, para Ricoeur,
(2002, p. 58) permanecem como inscrições, monumentos, potencialmente como
documentos, por meio dos quais a ideia de passado passa a ser plural. Assim, a
memória particular e a coletiva se integra em um terceiro conceito de memória. A
memória da identidade do sul-matogrossense reconfigurada pelo discurso histórico
de um autor periférico que, na ânsia de contar histórias, as suas histórias, foi
recolhendo vestígios de um passado que alguns têm na memória - como foi o caso
de Serejo e seus informantes. Todavia, há poucos registros catalogados da memória
anterior ao Estado de Mato Grosso do Sul, sobretudo, pela distância existente entre
a capital Cuiabá/MT e os pequenos povoados que foram se formando em torno da
extração da erva. Além do que, com a divisão do Estado em 197739, boa parte, do
acervo histórico e geográfico ficou sediado em Cuiabá. Por isso, afirmamos que
estudar a obra de Serejo é uma forma de atar as pontas do passado-presente, uma
possibilidade de conhecer, mais e melhor, a identidade do sujeito sul-mato-
grossense pelo homem nativo.
39No dia 24 de agosto de 1977, o então presidente da república Ernesto Geisel enviava a Mensagem n. 91, de 1977-CN, com o projeto de lei complementar de criação do novo Estado. No dia 11 de outubro seguinte, o mesmo presidente assinava, em solenidade histórica, a Lei Complementar n. 31, “criando o Estado de Mato Grosso do Sul pelo desmembramento de área do Estado de Mato Grosso”, com a capital em Campo Grande. Segundo Hildebrando Campestrini, Falar em divisão do Estado é politicamente incorreto. Em momento algum se pretendeu a divisão. Lutou-se, sempre, pela criação do novo Estado, porque se entendia que a lei devia tornar de direito o que já existia de fato. E a lei complementar foi taxativa: “Fica criado o Estado de Mato Grosso do Sul...”. Disponível em:
http://www.amambainoticias.com.br/brasil/dia-11-de-outubro-33-anos-de-mato-grosso-do-sul. (Acessado em 14 de outubro de 2013).
72
A memória de fronteira reconstruída por Serejo, e, a que nos interessa,
estende-se, com mais amplitude, para espaço de trânsito, de entrada, de
deslocamento, distanciado dos locais onde se centralizavam o poder político e
econômico oficiais, devido à extensão territorial e concentração habitacional ao norte
do estado de Mato Grosso. Com isso, fica evidente a vulnerabilidade à entrada e ao
desbravamento sem que as “autoridades oficiais”, tanto de lá como de cá, tivessem
controle, possibilitando, com isso, a Lei da fronteira.
Reis (1980, p. 53) narra que costumava ver “[...] um rapaz de uns 18 anos [...]
quase sempre vestido de terno branco, gravatas lindas e chapéu de palheta,
daqueles que constituíam moda na década de 20, 30, por aí.” Muito tempo depois,
Reis vai compreender que o rapaz, cujo irmão era seu amigo, era Hélio Serejo:
“Passados uns dois meses na cidade, partia de novo para o sertão bruto...”. Conta,
ainda, em Os 13 pontos de Hélio Serejo (1980), que a casa dos pais de Serejo, em
Ponta Porã, ficava à margem esquerda da rua, no Brasil e, na outra margem, estava
o Paraguai, espaço de trânsito livre e fraterno, embora entre países diferentes que
estiveram em guerra em época não muito distante do momento em que Serejo
residiu na fronteira.
Além das referências nas narrativas, inferimos que Serejo transitava pelos
espaços fronteiriços erval-cidade, Brasil-Paraguai, assim como suas personagens:
“A família morava na rua principal da cidade”, a rua tinha ‘no outro lado’, isto é, na
calçada em frente, um outro país, o Paraguai. Embora situado entre dois países, os
limites geográfico, cultural, histórico, linguístico são representados como unidade
nas narrativas, impulsionados pela oportunidade de mão de obra gerada pelo boom
econômico atribuído à empresa Matte Larangeira.
A acepção de fronteira representa sentido de divisa, limite entre dois
territórios, dois espaços. Todavia, se pensarmos que a rua que demarcava o espaço
entre os dois países – pós-guerra -, também permitia que o de lá viesse para cá, e o
de cá fosse para lá, teremos fronteira como espaço que possibilita o trânsito
ambivalente, independente da necessidade de se deslocar, das condições que
impulsionam o deslocamento. Além disso, fronteira divisa, delimita espaços,
demarca território, estabelece posse; a contrapartida possibilita a integração, como
pode ser percebido na visita obrigatória à namorada brasileira ou paraguaia em
“Medir los passos” (Livro 38, p. 33): “Paraguaios e brasileiros mediram os passos,
atravessando a fronteira e realizaram o sonho acalentado”, para conquistar o
73
corazón de lãs elegantes y jovenes brasileñas ou em direção contrária o encontro
con las rubias y hermonas morochas.
O sentido de fronteira, ponto de contato – e não significa de imediato,
integração – é muito mais abrangente nas narrativas em relação aos conflitos de
violência. A obra é perpassada pela noção de sujeitos irmanados cujas
nacionalidades podem ser ilustradas pelo desejo diplomático explicitado pelo Barão
do Rio Branco para Brazílio Ituberê da Cunha, embaixador brasileiro no Paraguai,
em ofício datado de 01/02/1905, no qual o Barão reafirma a amizade do Brasil e
assegura que “Não há conflito de interesse entre os dois países. O que desejamos
mui sincera e convencidamente é que todos eles vivam em paz, prosperem e
enriqueçam. Vizinho turbulento é sempre um vizinho incômodo e perigoso”
(DORATIOTO, 2012, p, 4).
Não há julgamento das intrigas, pois as histórias de violência fazem parte do
cotidiano da fronteira de forma que “olho por olho, “dente por dente”, “quem faz tem
de pagar”, “detino...és detino...” são representações contextuais favorecidas pelo
cruzar da fronteira – fugitivo de lá ou de cá –, como é o caso da personagem “Juca
Peba”, “um homem de bem, e um bom em todos os sentidos”. Certa ocasião, Peba
foi xingado em guarani por um correntino e, em legítima defesa, sacou a arma e o
tiro no meio das duas sobrancelhas fez os miolos escorrerem até a boca (Livro 36, p.
218). O homem do bem, feito assassino, “Viajou com destino a Encarnación, deste
local, facilmente pisaria chão brasileiro, se necessário fosse.” E a narrativa
prossegue sempre no dualismo – homens do mal contra o “Pobre do Juca, José ou
Juca Peba”, um paraguaio que sempre nutriu amizade sincera com os brasileiros e
morreu degolado pelos irmãos do homem por ele assassinado. Mas o padrinho
contratou a pessoa certa para vingar a morte de Peba: “O primeiro tiro de
espingarda partiu. Logo, o outro. O estrondo foi varando a mata, cortando as suas
entranhas....”, e ainda não satisfeito degolou os dois irmãos, os assassinos de Peba
(Livro 36, p. 222).
Neste entrevero, mais do que dual, há uma voz que sabe tudo e adentra pelas
encruzilhadas percorridas pelo tocaiador e tocaiado, vingador e vingado no intuito de
contar os fatos, de dar as cartas à história que se passa na fronteira. Assim, o
contexto de fronteira se encarrega de compactuar com as partes envolvidas de
forma que as intrigas sejam narradas como rotina de um tempo e local. Ocorre algo
semelhante na trágica cena em que Serejo narra o assassinato de um aconcágua:
74
velório e baile comungam do mesmo espaço e instauram um estado de sentimento
subvertido – baile e velório – que o narrador não dá conta de explicar. Todavia, a
fronteira, o local de onde se fala, financia e trata de dissipar a concepção dual de
vida/baile, morte/velório. Surge daí, um “mal estar” inenarrável desestruturando
concepções e contratos entre vida e morte, abrindo passagem para um lócus
intermediário, nem de lá, nem de cá, nem vida, nem morte, mas que justifica os fatos
e as ações das personagens, nas “[...] nas tragédias vulgares das fronteiras
abandonadas”. (Livro 5, p. 112). Um terceiro estado de ser que dá margem para
outras instâncias interpretativas. Ao reconhecer a fronteira como “abandonada” e a
aparente rotina típica com a qual parecia conviver como, “tragédias vulgares”, o
narrador – como veremos – vai se distanciando da realidade, revelando o quadro
social caótico vivenciado na fronteira. Assim, a história que parecia contar um hábito
cultural, ratifica o abandono a que estava exposta a população, ao ponto de
desconsiderar alguns princípios mínimos de convívio humano como forma de
regulação de comportamento.
Serejo atribui, ainda, boa parte das intrigas, à invídia – inveja – a qual
“desgraçou centenas de lares da região sulina mato-grossense”. Defende que, nos
ervais da fronteira: a inveja foi de crueza terrível: perseguiu, humilhou, tocaiou, deportou, incendiou, agrediu covardemente, prendeu, fez intrigas políticas, levantou calúnias, forjou furtos, violentou criaturas indefesas, aleijou a muitos e ...matou. Principalmente matou. Quantos? Não se sabe ao certo. Foram centenas e centenas, isto é incontestável. (Livro 23, p. 59).
Essa arma humana manuseada por déspotas, sanguinários, desalmados e
covardes, segundo Serejo, agiu devido à cobiça por um quinhão de campo
apropriado para criação ou uma faixa de terras onde as vistosas ervateiras
clorofilavam o ambiente. O impactante disso tudo é a defesa em favor do assassino:
quase sempre, quem mata o faz por um motivo justificável, uma vez que a lei da
fronteira é regida pela ordem às avessas: matar ou morrer.
Ainda em Bhabha (2003, p. 24) podemos avaliar fronteira como espaço, local,
a partir do qual algo começa a se fazer presente, algo começa a ter sentido, começa
a ser compreendido, começa a ser visto como movimento de trajeto ambivalente.
Fronteira pode ser compreendida como local em que transitam “balaios de bugres”,
contendo traços unificadores dentro das diferenças que os constituem como sujeitos
75
de um momento sócio-histórico. Esse momento, para Serejo, centraliza-se no
povoamento do sul do Mato Grosso do Sul da faixa que vai de Porto Murtinho a
Amambaí, como se pode ver na obra recentemente publicada, Retratos de uma
época: Os Mendes Gonçalves & a Cia. Matte Larangeira (2013), organizado a
pedido da filha de um dos donos da empresa Matte Larangeira, pelo historiador -
também fronteiriço - Luiz Alfredo Marques Magalhães.40
Figura 5 - Caminhos percorridos pelas primeiras comitivas ervateiras de Thomaz
Larangeira no Brasil, a partir de 1888.
Há nas narrativas selecionadas um transitar por entre fronteiras – espaço de
trânsito –, que se transfigura na atuação narrativa de Serejo, quando, de autor ele se
faz personagem e, ao mesmo tempo, narrador. Ou, ainda, na fronteira do local
regional que se abre ao universal, na fronteira da memória do lembrado e do 40 Segundo nota contida na obra Retratos de uma época (2013, p. 235), Luiz Alfredo foi criado na fazenda Lagunita/MS e conheceu ainda na infância a atividade ervateira; seu avô materno era amigo e compadre de Heitor Mendes Gonçalves, dono da Matte Larangeira e pai de Mario Mendes Gonçalves cuja filha, Elza Mendes Gonçalves, teve a ideia de organizar um livro contando a saga da Matte e dos Mendes Gonçalves. Dona Elza ainda possui a fazenda Margarida, a qual foi requerida por Thomaz Larangeira em 1888 e passou a fazer parte da Cia. Matte Larangeira em 1892; após 1903, seria da Larangeira Mendes e Cia. Área original: 135, 404 hectares.
76
esquecido e da relação entre o histórico e o ficcionalizado. Nas retas – caminhos –
há um entrecruzar, que se aglutina em um terceiro espaço, segundo Bhabha (2003)
p. 65), o lócus enunciativo, o qual poderá resultar em discursos que estão na
exterioridade do que foi dito. Este terceiro espaço abrirá fendas para que as
narrativas se estendam “além” do contar fatos, causos, lendas, vivências de
anônimos – homem do erval –, bem como de pessoas identificadas pelo nome ou da
descrição exuberante da flora do sul do Mato Grosso do Sul. É o caso do discreto
texto “Ajudo a meu amigo”, no qual a lembrança da guerra foi-se transformando,
passando de “fato ocorrido” para anedota contada entre amigos, o que pode ser uma
forma de negação dos fatos, um apagamento das atrocidades ocorridas durante La
Gran Guerra ocorrida entre 1865 e 1870.
No livro didático História de Mato Grosso do Sul (2005, p, 73-86), capítulo 08,
“A guerra do Paraguai e Mato Grosso do Sul”, além do encadeamento dos textos
contidos nesta obra estarem de forma fragmentada e anacrônica, subentende-se da
leitura do título do referido capítulo, “A guerra do Paraguai e Mato Grosso do Sul”,
que a Guerra ocorrida entre Brasil, Argentina e Uraguai contra o Paraguai, deu-se,
de fato, entre o país vizinho e o Estado de Mato Grosso do Sul. Todavia os autores
não contextualizam o fato histórico, a fim de dar condições do aluno/leitor
compreender a formação do Estado; consequentemente, do Brasil. Com isso,
inferimos que as causas e consequências da Guerra da Tríplice Aliança,
transformadas em anedota, como vimos em Ajudo ao meu amigo, não difere muito
dos estilhaços históricos contidos no Manual adotado pela rede de ensino do
Estado. Vale ressaltar as cinco linhas reservadas para “Consequências da guerra”:
Depois de cinco anos de luta (1865 -1870), a população do Paraguai foi praticamente dizimada: dos 800 mil habitantes restaram apenas 194 mil. Cerca de 96% da população masculina foi morta. De república próspera e progressiva, o país converteu-se em uma “espécie de colônia sem patrão”, nas palavras de Augusto Roa Bastos, o escritor paraguaio de maior expressão internacional (GRESSLER, 2005, p. 84).
Os farrapos da memória da “Grande Guerra” repercutem, ainda em: “Mato
Grosso espera/esquecer quisera/O som dos fuzis/Se não fosse a guerra/quem sabe
hoje era/Um outro país/41. Em Ajudo a meu amigo a lembrança anedótica representa
41 Letra e música de Almir Sater e Paulo Simões.
77
um apagamento visando a um recomeço, como é o caso da personagem El viejito
poincaré. Entretanto, o passado não se subtrai pelo desejo de apagá-lo, já que
passado e presente são palcos da mesma história.
Prenuncia-se, com isso, em Serejo, uma literatura na fronteira da exaltação
nativista e da representação heterogênea do regional, muito próxima das tendências
da segunda geração do modernismo. Serejo retrata o homem e suas adversidades
contextuais de forma que a aparente exaltação contrasta com a realidade das
personagens que passam a viver em local pouco propício e acessível ao ser
humano, a fronteira Brasil- Paraguai no início da primeira colonização do Estado de
Mato Grosso.
Ademais, a paisagem que vai sendo modificada pelo homem em trânsito
proporciona ao narrador um sentimento catártico, uma espécie de bálsamo
minimizador do destino “cruel e ingrato” de homens e mulheres desbravadores. Nem
por isso o narrador se exime a recontar a realidade.
Na fronteira, pois, de suas experiências de fato e na confluência dos fatos
criados pelo ato de narrar, autor, narrador, personagem e sujeito histórico se
integram na criação de uma realidade transfigurada pela experiência de vida, pelo
conhecimento que se tem do lugar. No entremeio de fatos vividos e recriados está o
fazer literário de um sujeito aparentemente descompromissado com a denúncia. Um
narrador que se apresenta como eterno apaixonado pela escrita, com olhar
magnetizado pela terra. Todavia, nas narrativas estão, também, histórias de
exploração, de coragem, de medo, da “lei do mais forte”. Advém daí a hipótese:
Serejo revela, além da cor local, questões para além do exótico e do pitoresco.
Insere o homem e a vida do homem explorado, aquele que passa a se aventurar na
fronteira Brasil-Paraguai motivado pela possibilidade de trabalho na Companhia Erva
Matte Larangeira.
Machado de Assis (1959, p. 28-34) preconiza que “Naturalmente os
costumes do interior são os que conservam melhor a tradição nacional; [...] Por outro
lado, penetrando no tempo colonial, vamos achar uma sociedade diferente, e dos
livros em que ela é tratada, alguns há de mérito real”. O efeito colonialista projeta-se
ao longo do contínuo processo colonizador, tanto que as personagens – os
anônimos dos ervais – são heroicizados para compensar a participação na
arrancada civilizatória. Posicionamento natural, advindo de concepção histórica do
pensamento ocidental, calcado no dual: civilizado x não civilizado, na perspectiva de
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quem chega traz o melhor, sabe mais, possui “cultura mais forte”, civilizado,
portanto.
Entretanto, Serejo surpreende ao reconhecer a alteridade, ao avaliar as
contribuições trazidas pelos paraguaios no cultivo da erva mate, uma vez que a
extração no país vizinho foi anterior ao processo do Brasil. Vale ressaltar que os
paraguaios vieram em consequência da Grande Guerra, sujeitam-se às condições
de exploração, de expatriação (in)voluntária. Com isso, há uma diferença nos
padrões de contato de povoamento, do processo de colonização europeu, pois há
relativa unidade social, histórica e econômica – povoamento pós guerra, pós
demarcação de fronteira – entre os que chegaram e os que estavam. Assim, pelo fio
de sua narrativa, correm vozes abafadas devido às circunstâncias sócio-históricas,
ainda que estas elas explicitem relações pacíficas entre nacionalidades – sem muita
consciência de quem é quem. A fronteira é livre, aberta, propícia o povoamento
“irmanado”, particularidade de um tempo e local que favorece o contato. Sobressai,
dessa relação, o encontro, já que para Martins (1997, p. 151) “O desencontro na
fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos
está situado diversamente no tempo da História.” Situação relegada na narrativa
serejiana, devido à conivência histórica em que se dão as relações entre os
habitantes da fronteira do sul de MS: todos são parte de um mesmo tempo e
história, como se pode avaliar na anedota Ajudo ao meu amigo. Entretanto, cada
qual carrega consigo muitas outras marcas de histórias, uma das quais a história
pessoal, nem sempre revelada de imediato, pelo contador; traço peculiar nas
narrativas serejianas como veremos no estudo de algumas estruturas. Martins
(1997, p. 150) discute, com bastante veemência, o ledo engano fronteiriço de
unidade e de local de encontro:
[...] a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso o que faz dela uma realidade singular. A primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado
79
diversamente no tempo da História. (MARTINS, 1997, p. 150-151).(Grifo nosso).
Veremos, mais adiante, a consonância teórica de Martins com boa parte das
narrativas selecionadas. Realmente, à primeira vista, a fronteira se abre ao encontro,
ao passo que vai acorrendo o convívio, as histórias vão se desencontrando,
sobretudo, quando o narrador revela a procedência de personagens fugidias.
Além da alteridade, transparece, ao longo do conjunto da obra, um olhar
sobre o local, que flerta com o exótico e o pitoresco. Sobressai, pois, a presença da
cor local, da vida local, temática recorrente daquilo que Candido tanto criticou dos
românticos:
[...] tende a anular o aspecto humano, em benefício de um pitoresco que se estende também à fala e ao gesto, tratando o homem como peça da paisagem, envolvendo ambos no mesmo tom de exotismo. É uma verdadeira alienação do homem dentro da literatura, uma reificação da sua substância espiritual, até pô-la no mesmo pé que as árvores e os cavalos, para deleite estético do homem da cidade. (2006, p. 614-657).
Em Serejo ocorre o reverso, já que abre passagem para o homem e seus
dilemas em um contexto atípico à vida urbana. Paisagem e vivente se integram nas
narrativas, e o espaço do erval passa a dar significado a condutas e
comportamentos das personagens, as quais vivem uma espécie de nomadismo
dispersivo, entrecortado pelas trilhas do caati – erval –, um verdadeiro labirinto na
mata bruta, um sistema caprichoso de estrada, que se cruza em todos os sentidos,
segundo o ervateiro e autor (Livro 9, p. 234).
Machado de Assis (apud CANDIDO, 2006, p. 368 - 369) já dissera que uma
literatura nascente deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a
região. No conjunto da obra de Serejo fica evidente a temática fronteiriça contada
por um fronteiriço misto de homem cruza-campo e trota-mundo em trânsito em que
“[...] a luta espaço-temporal assume com frequência traços de luta social. O tempo
parece amordaçado, ou escravizado pelo espaço, e por mais que o elemento
ecológico absorva o primeiro plano da estrutura da obra, os valores humanos se
destacam sempre...”. Assim, encontramos respaldo na preocupação de Machado de
Assis em exigir do escritor certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu
tempo e do seu país. Nas narrativas, há vestígios de um tempo de povoamento de
80
um local que hoje se faz Mato Grosso do Sul. Um tempo de fronteira entre dois
países, de conflitos, de contato entre diferenças, de história de cada qual, sobretudo
porque em cada tempo há situações por meio das quais são evidenciadas
circunstâncias de alteridade.
Assim, a literatura de Serejo vai se configurando no limite tênue de uma
literatura de fronteira produzida por um autor nativo, à margem dos grandes centros,
sem muito planejamento literário, tanto que sua produção resultou em um “balaio de
bugre”. Todavia, os aspectos de vida integram-se aos elementos internos da obra,
sobretudo, pela relação do autor com o local e tempo, no caso, a fronteira do sul do
Mato Grosso do Sul em um tempo de desbravamento.
Com isso, avaliamos que a ideia de fronteira geográfica, espaço territorial, por
onde se processa o contato, o trânsito, ambivalências, e alteridades sócio-culturais,
ganha dimensão figurada, no conjunto da obra de Serejo, e se projeta para o campo
da conotação, ao avultarmos a possibilidade de Serejo ter escrito motivado,
inconscientemente, pelo viés da dupla acepção contida na noção metaforizada de
fronteira.
Algumas relações entre os planos – real/figurado – podem ser estabelecidas
na visibilidade, na inserção que Serejo dá ao “outro” – ao anônimo, ao pioneiro, aos
fronteiriços – a ele mesmo em suas narrativas. Além disso, demonstra ausência de
planejamento literário, embora não fique à espera e vá trilhando sua história de
escritor periférico, acadêmico, homem do erval, não muito diferente da perspectiva
em que se encontra o sujeito descentrado, “errante”, recuperado pelas narrativas.
Tal conjectura agrega valor estético à temática “vulgar” de pessoas que passam a
conviver na “fronteira abandona”.
3.2 CAAPÊ-HETÁ LA CAÁ42
Ao se falar em elaboração da erva -mate, um nome surge logo como pioneiro: Tomás Laranjeira – o Tigre dos Ervais. (Livro 23, p. 67).
42 Expressão que se ouve frequentemente nos ervais e que quer dizer: aqui tem muita erva. (Livro 50, p.255).
81
O entrecruzar das personagens serejianas dar-se-á, com maior intensidade,
no decorrer das ações conduzidas pelo homem de negócios, “sereno nas decisões,
mas extremamente arrojado quando se fazia mister uma penetração por lugares
desconhecidos, cheio de charcos, cipoal denso [...]” (Livro 34, p. 14), Thomaz
Larangeira43. Para o reconvertido narrador serejiano Livro 34, p. 14), foi “homem de
fôlego de sete gatos e têmpera de aço”, tinha conhecimento da qualidade dos ervais
nativos de Amambaí, Iguatemi da margem direita do rio Paraná e soube explorar a
qualidade de “Uma yerba de bueno gusto que hace bien al espiritu” (Livro 34, p. 16)
como diziam os argentinos, ao se referirem ao sabor do produto brasileiro
comparado àquele produzido em seu país.
Nascido em Santa Catarina em 1840, Thomaz Larangeira participou da
Guerra do Paraguai como responsável pelo suprimento das tropas brasileiras
fornecendo mantimento, representante de uma firma de Porto Alegre. Terminada a
Guerra, estabeleceu-se no Paraguai. Em 1870, os governos que tinham estado em
conflito, constituíram a Comissão Mista de limites Brasil-Paraguai, no ensejo de que
fosse demarcada a linha divisória entre os dois países. Na ocasião, Thomaz
Larangeira, segundo Serejo (Livro 34, p. 67), foi convidado pelo coronel Rufino
Enéias Gustavo Galvão para desempenhar a função de seu secretário, posto que
ocupa durante pouco tempo, uma vez que seu faro de comerciante o levará a ser
responsável pelo abastecimento alimentício da expedição. Passa, então, de
secretário, a fornecedor de víveres.
Em, Caraí, monografia redigida para participar de um concurso promovido
pelo núcleo regional de Mato Grosso do Sul do Instituto Euvaldi Lodi sobre o ciclo da
erva-mate, reconvertida em livro, Serejo enfatiza que:
Foi no desempenho deste mister, em seu giro de muitas e penosas léguas, que Tomás Laranjeira descobriu, nas bacias dos rios Iguatemi e Amambaí, grandes ervais nativos, formados de riquezas arboleras. Guardou silêncio por uns tempos, mas continuou cruzando aqueles ermos e mais ervais foi encontrado. Sentiu a grandeza descoberta, e como tinha nas veias o tino do comerciante arguto, e sendo já conhecedor da industrialização e comércio da IIex que, mais tarde, seria batizada coma denominação
43 Optamos por seguir a grafia adotada pelo historiador Luiz Alfredo Marques Magalhães, autor de Retratos de uma época: Os Mendes Gonçalves & a Cia. Matte Larangeira (2013), por utilizar fonte de pesquisa com base no Colégio Brasileiro de Genealogia realizada por Élida Hernandes Garcia, professora da cidade de Bagé/RS.
82
de Ilex paraguariensis, teve a idéia: requereria do governo de Mato Grosso permissão para explorar esses ervais nativos, que deslumbravam pela folhagem intensamente clorofilada e exuberância de porte.
E assim fez. Com a fixação dos limites entre os dois países, parte
considerável dos ervais que se encontravam em território neutro foi denominada
como erval brasileiro. Em, 1878, Thomaz Larangeira começa o empreendimento;
obtém concessão do governo por meio do Decreto n. 81799, de dezembro de 1882.
Em O mayordomo de Capivari (Livro 44, p. 168), narrativa em que conta as
atrocidades do correntino responsável pela primeira ranchada ervateira, o qual
morreu com uma faca carniceira, Três Estrelas, enfiada no pescoço por um brasileiro
para vingar sua pátria, Serejo inicia o texto referindo-se ao primeiro comando da
Empresa Mate na estrada de Chirigüelo, localidade próxima a Ponta Porã.
A empresa prospera e o mentor da ideia se une aos irmãos Manuel, Francisco
e Joaquim Duarte Murtinho, no ano de 1902, em Buenos Aires. A firma Larangeira,
Mendes e Cia adquire todos os bens pertencentes à Companhia Matte Larangeira.
Com a Proclamação da República, Antonio Maria Coelho, amigo de Thomaz
Larangeira, assume o governo de Mato Grosso e proporciona mais favorecimento44
à Companhia do amigo da época em que participaram da comissão demarcatória. A
indústria expandiu-se a ponto de tornar-se uma potência dentro do próprio estado. A
Companhia reconhece que alavancou o desenvolvimento da região fronteiriça,
outrora, abandonada, construiu pontes, estradas, a fim de transportar seu produto.
Muitas cidades que nasceram após a guerra desenvolveram-se no auge da erva-
mate. Entretanto, Thomaz Larangeira, foi muito favorecido, com “as benesses dos
políticos e a mão de obra baratíssima do paraguaio e dos índios” (p. 94).
44 “A Matte Larangeira tinha origem na concessão, feita em 1882 e renovada seguidas vezes, a Thomaz Larangeira para explorar a erva-mate no Mato Grosso. O objetivo dessa concessão, segundo Decreto de 23 de junho de 1890, era o de estimular o progresso econômico mato-grossense, promovendo o aumento da renda pública com a cobrança de impostos sobre o mate exportado e sobre a importação. A Matte Larangeira, porém, adotou procedimentos que frustraram esse objetivo, ao criar depósitos em Vella Concepción, no Paraguai, que eram abastecidos de erva-mate mato-grossense por carretas. Estas atravessavam grande extensão de território paraguaio, valorizando-o, transferindo-lhe os benefícios do trânsito que o governo brasileiro esperava fosse reservado ao Mato Grosso. As estações paraguaias para abastecimento dessas carretas acabaram por tornarem-se núcleos populacionais, praticando a agricultura e comércio, em detrimento do vizinho Estado brasileiro”. (Tese de Francisco Doratioto, RELAÇÕES BRASIL - PARAGUAI: afastamento, tensões e reaproximação (1889-1954).
83
Em Caraí, Serejo confirma a “força poderosa, com mando absoluto” da
Companhia, tanto que esta se transformou, eleitoralmente, em uma fonte de
consulta e indicação de cargos políticos, além de fonte de “voto de cabresto”, já que
os pequenos fazendeiros, comerciantes, ervateiros dependiam da erva. Com isso,
“[...] não foi difícil formar um eleitorado obediente disciplinado. Um eleitorado da
mais alta valia, que cumpria cegamente as ordens, não traindo nunca” (p.18). Afirma
ainda:
Passou a dominadora organização industrial ervateira a indicar governador, vice, deputado estadual, deputado federal e senador. Escolhia e os elegia na certa, o que é de conhecimento de todo mato-grossense. Nunca foi surpresa a vitória, nas urnas, dos indicados, pois seu prestígio, que não conhecia barreiras, aumentava de ano para ano. Removia e demitia funcionários, nomeava autoridades, determinava acertos, punha por terra com apenas algumas linhas descabidas pretensões de adversários ferrenhos, elegia prefeitos com espantosa facilidade. Estendia o seu poderio político até São Paulo e Rio, traçando diretrizes para este ou aquele cometimento e sempre se avantajando na sentença final. (Livro 34, p. 19).
Em contrapartida, possibilitou o povoamento da região, abriu caminhos,
estradas, abriu portos, construiu pontes, para a erva poder ser transportada e para
que a mão de obra de que a Companhia precisava, chegasse aos longínquos locais
de extração. Esta mão de obra personifica-se no homem cruza-campo e trota-mundo
de que tanto fala Serejo, homens, mulheres, e “[...] todos, indistintamente, eram
tratados como animais, com toda espécie de tirania, porque, pelas leis dos ervais,
era preciso que houvesse produción, e produção de erva de primeira qualidade, sem
qualquer mancha, e na maior quantidade possível” (Livro 23, p. 74). Neste quadro de
sofrimento físico e compensação nostálgica, aparece a voz dual de Serejo referente
à Companhia Matte Larangeira:
Tudo isso houve, sim, e até mesmo em dramas inenarráveis, tragédias hediondas, engolfadas em sangue de inocentes, porém o mate, incontestavelmente, serviu de alavanca poderosa para que se desbravasse e se povoasse a região sulina mato-grossense. (Livro 23, p. 74).
No mesmo parágrafo em que aponta os “sacrifícios” reconhece que as “[...]
conseqüências eram coisas de somenos.” O entre-lugar transparece no
reconhecimento do progresso: “Governo algum faria o que fez essa legião de
84
homens barbarescos”, ou “Dois nomes gigantes, entre muitos outros, pelo lado da
visão e do arrojo, ficaram nessa dantesca epopéia: Tomás Laranjeira e Francisco
Mendes Gonçalves”. Pelo outro “lado” “Nessa época de atrocidade e violências, o
conchavaco, indefeso e miserável, era obrigado a carregar às costas, por caminhos
quase que intransitáveis, los miembros de la administración, zelosos sempre por seu
corpo e por sua saúde.” (Livro 23, p. 74).
Com isso, fluirá em boa parte das narrativas a visão de homem/capitalista que
reconhece a Matte como empreendimento substancial responsável pela geração de
múltiplas frentes de trabalho a sujeitos que não tinham outras perspectivas, além do
cultivo agrícola de subsistência ou mão de obra em latifúndios. Perpassam as
narrativas, ainda, nuances reflexivas de um sujeito/nativo/personagem que, também,
é agraciado pela oportunidade, ou como filho de pequeno ervateiro ou como peão na
Companhia. Transparece, também, a vertente de autor/narrador que registra
histórias de um empreendimento culturalmente constituído como espécie de dar a
“essa gente” abandonada, dispersa pela fronteira Brasil-Paraguai, “aquilo” que seria
função do governo. Em detrimento dessa doação, desse magnífico empreendimento
reconhecido pelo homem capitalista, desejoso do progresso avultam-se fatos que,
por mais rentáveis que sejam para a bolsa da erva, não justificam a desumanização
a que se sujeitam os andantes serejianos.
3.3 O ANDARIEGO...
É um nômade, sem querer! E assim, vai andando...andando...dia e noite [...]. (Livro 18, p. 205).
As histórias narradas tratam de personagens “comuns”, as quais se deslocam
de um local para outro, de um limite territorial para outro, de uma distância para
outra, de um desejo para o outro, naquela “[...] fronteira de linha seca, na qual
ninguém sabia, outrora, onde terminava o Brasil e onde começava o Paraguai”.
(Livro 35, p. 165). Local que, segundo Póvoas, “transformou-se num laboratório
social dos mais interessantes” (Livro 35, p. 165). Assim descrita por Serejo:
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Velhos, moços e crianças e embrenhavam na selva bruta enfrentando, estoicamente, o ambiente hostil – e as ranchadas ervateiras, os trabalhadores, foram surgindo aqui e ali. Primeiro, na estrada dos caatins e, depois, nos cafundós da mata, no verdadeiro inferno verde da ambiciosa aquifoliácea, esperança de todos: dos patrões que viviam em campanário, Guaíra, Conceição, Posadas e Buenos Aires – e da peonada que veio e ficou para escrever com sangue, seu suor e suas lágrimas, uma das páginas mais dramáticas, repleta de bravura, desprendimento e resignação, da história grandiosa, referente ao povoamento do extremo sul de Mato Grosso, a região ervateira principalmente, que a todos enfeitiçava. (Livro 41, p. 11).
A extensão do trânsito e do deslocamento de pessoas para o sul do Mato
Grosso do Sul, na obra de Serejo, pode ser representada, primeiramente, na própria
história da vida familiar do autor, uma vez que seu pai, tenente Francisco Serejo,
nascido em Cuiabá, aos 20 anos de idade foi designado pelo Presidente da
República, Campos Sales, para chefiar, de início, no posto de tenente da guarda
nacional, em Corumbá e mais tarde, como conta Reis (2008, p. 42-43), o
destacamento de Ponta Porã, um arraial composto de várias casas e algumas
taperas, o qual precisava de um destacamento policial por se tratar de fronteira em
que o contrabando e o banditismo de toda ordem proliferava. Assim, se inicia a ideia
de movimentação: os que vieram de fora e fizeram morada, fixa ou transitória, no
local em que se darão as narrativas. O fora pode ser avaliado como exterioridade
daquilo que estava lá, local de chegada. Certamente, Serejo ouviu seu pai contar
inúmeras vezes suas peripécias de lá – Cuiabá – para cá – Ponta Porã. Aquelas
façanhas foram constituindo o repertório do homem em trânsito, do sujeito que, mais
tarde, irá se ver em trânsito pelos ervais, convivendo, quase sempre, com sujeitos
que também vieram de outros países, Estados da Federação ou do próprio Estado.
Assim, os deslocamentos para a fronteira do sul do Mato Grosso do Sul,
segundo as narrativas de Serejo, acontecem, de forma mais intensa logo ao término
da guerra da Tríplice Aliança (1864 - 1870): “Quatrero veio de longe, dos confins do
território paraguaio” (Livro 4, p.92). “Vieram, quase todos, da República do Paraguay
[...] porque não estava compensando o pagamento na zona ervateira guarani” (Livro
6, p. 19). No Brasil, encontram acolhimento “não só pela poderosa Mate Laranjeira
[...], mas por particulares” (Livro 4, p. 93), devido a oferta de trabalho em um tempo
de desbravamento da região.
86
Há traços que, aparentemente, unificam os sujeitos andantes nas narrativas,
tais como o vir, a ação de sair de um local, realizar o percurso sob condições
adversas e chegar a um local desconhecido, como é o caso do pai do autor em
estudo. Dom Chico Serejo, como mais tarde ficou conhecido, viajou pelo rio
Paraguai, de Cuiabá a Porto Murtinho, daí a Ponta Porã, de carreta puxada por 5
juntas de bois e duas de reserva, em 1900. Outro aspecto, pode ser o fator
motivador da ação de se colocar em movimento rumo a local incerto, quase sempre
influenciado pelo desejo de dias melhores, de condições de trabalho, uma vez que
“A pobreza, o subdesenvolvimento, a falta de oportunidade – os legados do Império
em toda a parte – podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento
– a dispersão.” (Hall, 2001, p. 28). Ao referendar o motivo de trânsito entre
fronteiras, Serejo aponta justificativas tendo como suporte os acontecimentos –
Guerra e Matte Larangeira – já apontados, recepciona os personagens chegantes
do lado brasileiro e vai com eles percorrer ranchadas, cruzar caminhos, visar à
entrada credenciada pela necessidade de produção, independente da “ficha
criminal”, como podemos avaliar na passagem transcrita:
Os primeiros mineros maestros dos ervais de Tomás Laranjeira vieram de Tacuru, vários deles asesinos de alta periculosidade. Ensinaram os segredos da elaboração da erva aos primeiros participantes. Foram úteis, devemos reconhecer. Nunca, porém, regressaram ao Paraguai. Tiveram, como sepultura, o chão bruto dos ervais sulinos (Livro 34, p. 153).
Em contrapartida, aos traços unificadores apresentam-se, também, as
particularidades heterogêneas dos sujeitos históricos que vieram. Sujeitos que
passaram a viver entre fronteiras culturais, entre a história de vida que se tinha e a
história de vida que passam a ter a partir de uma relação intercultural. Esse aspecto
pode ser ilustrado por Hall (2003, p.37) quando salienta que a nação não é apenas
uma entidade política, mas um sistema de representação cultural, aquilo que produz
sentido nas relações de troca, de participação mútua, quando se precisa sobreviver
em uma dada realidade, como é o caso de muitas personagens serejianas que
deixaram para sempre sua terra natal e passam a intercambiar experiências além de
suas origens (Hall, p. 39), motivados por perspectiva de “dias melhores”. Este
processo contínuo evidencia-se “no caminhar contínuo” (Livro 34, p. 155) que,
embora fosse desgastante e sofrido, segundo o narrador serejiano, estava ajudando
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o povoamento de uma região desconhecida, além de contribuir para formar “a
grandeza de um Estado, que viria a ser, com o passar do tempo, o berço de seus
filhos” (Livro 34, p 155). O vir a ser, o porvir, a ideia de compensação de um tempo
de desbravamento – diríamos de exploração inconsciente – perpassa as narrativas e
refrata a acepção de patriotismo pelo viés do narrador que comanda as personagens
expatriadas. Ressoa, ainda, com tom bastante reticente o fluxo contínuo em busca
de algo, sobretudo, de um local para fazer dele “a terra prometida”, mesmo que
esteja no além, mais para frente, “com o passar do tempo, o berço de seus filhos”
(Livro 34, p 155).
Bhabha (2003, p.19) considera que estar no ‘além’ é habitar um espaço
intermédio que se constitui em “um retorno ao presente para redescrever nossa
contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica;
tocar o futuro em seu lado de cá.” Um futuro intersticial formado pelo vão das partes,
um futuro “que emerge no entre-meio entre as exigências do passado e as
necessidades do presente” (Bhabha, p. 301). Serejo é porta-voz desse intervalar
sócio-histórico, quando dá luz à vida dos que viveram, trilhando os caminhos
encobertos pela extração da erva e isso se confirma, além das narrativas, pela
representação de ações enunciativas escolhidas para títulos de seus livros, tais
como: De Galpão em galpão – O sujeito em trânsito - Pelas orilhas da fronteira – o
sujeito à margem –, Balaio de bugre – a identidade híbrida –, e outros.
3.4 ...EM TRÂNSITO NA FRONTEIRA
Daí a razão de cruzarem a fronteira, semanalmente, grandes levas de paraguaios que esperavam por dias melhores, mesmo sofrendo e derramando o seu suor no mundo bruto e selvagem da erva-mate. (Livro 47, p.112).
Thomaz Larangeira, sendo ele próprio um homem em trânsito,“[...] passou a
enviar correspondência para os mais diferentes rincões, onde sabia da existência de
conhecedores de ranchadas ervateiras” (Livro 34, p. 70). Com isso, despertou o
interesse de “milhares de criaturas ligadas à elaboração do mate. Também de
88
terceiros ansiosos por se fixarem em ponto qualquer para início de uma nova vida”
(Livro 34, p. 71).
Segundo Serejo, “caraí ervateiro, o homem de aço”:
[...] veio dos mais longínguos rincões: Misiones, Santa Fé, Reconsquista, Dolores, San Nicolás, Território da Formosa, Bela Vista, San Rafael, Resistência, Paso de Los Libres, San Ferenando del Valle de Catamarca – República Argentina; Assunção, Conceição, San Pedro, Vila Encarnación, Capilla Horqueta, Vila Rica, San Miguel, Caazapá, Caazapú e Pedro Juan Caballero – República do Paraguai. (Livro 41, p. 10).
No decorrer de um ano, já havia um “legião de quatro mil criaturas, dos mais
variados tipos, hábitos e costumes” (p. 11). Esse quantitativo chega, em 1934, após
profundas modificações, a “dezoito mil empregados”, capital e renda superior à
arrecadação do Estado, que chegou a emprestar dinheiro ao, então, Mato Grosso,
razão pela qual se cogitava a possibilidade de a região constituir-se como estado
independente.
Usando como recurso o questionamento para si próprio “De onde vieram
esses peões e por quê?”, o autor responde que vieram do Paraguai, devido à
remuneração insatisfatória nos ervais guaranis. Entretanto, outros vieram como
fugitivos de uma revolução derrotada, vieram, ainda, “em grande parte, foras-da-lei,
fugitivos, assassinos de alta periculosidade, marginais, desertores do exército e
desordeiros contumazes” (p. 20).
Em Desordeiro (Livro 18), a figura do chegante começa com “Ele chegou,
ninguém sabe de onde, e ali, na vila se arranchou” ou “Vieram, quase todos, da
República do Paraguai, em dezenas e dezenas de levas...” (Livro 34, p.19). Serejo
revela que a procedência pouco importava, o fundamental era que viessem, não
muito diferente de tantos outros processos em que os países, como o Japão,
importou mão de obra do Brasil e vice-versa.
O movimento do vir e do chegar transpassa as narrativas com bastante
referencialidade ao local em que o chegante passa a habitar: “[...] aportou na
ranchada ervateira Semana-Cuê [...] (Livro 47, p. 78). Evidencia-se, também, a
nacionalidade do forasteiro, quase todos paraguaios “[...] o casal de paraguaios, no
último grau de estafa chegou a esse lugar [...]” (Livro 47, p. 57).
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Como vem sendo considerado, o narrador reforça, de início, assim que o
sujeito chega, a ideia de total hospitalidade, como se o outro fosse muito bem vindo,
muito bem quisto e de conduta exemplar. Todavia, na recepção, em pequenos
trechos ou palavras prenuncia contraposição que resultará no clímax do enredo,
como se percebe em: “[...] Numa tarde de garoa fina, cabulosa, a pé, Kirá chegou
na ranchada pobre e em final de safra [...]” (Livro 47, p. 62). Cabulosa, inoportuna
foi a chegada do jovem que de nada sabia de erva.
Vinha o forasteiro, quase sempre a pé, sem muita identificação, “Para que
documento se o mundo era de todos?”, como é a voz que salva El Viejito Poincaré
do posto de identificação demandada pelo leitor. Essas figuras são identificadas,
quando muito, pelo suposto local de origem: “O peão veio de Posadas. Chegou a
Guaíra em 1937”. (Livro 44, p.172) ou “Procedente da cidade paraguaia de Belem, o
casal de meia-idade, simpático, denotando visível cansaço, aportou na ranchada
ervateira Semana-Cauê” (Livro 47, p. 50), recebeu uma espécie de abono do
passado ou de um tratado surdo e silencioso de não se mexer no que ficou, embora
este esteja estampado, quase sempre, no vir, no movimento de se embrenhar mata
adentro, muitas vezes, por circunstâncias de fuga, um foragido. Entretanto, não se
fala nisso, mesmo porque as notícias demoravam a chegar, de fato, nesses lugares.
Com isso, abona-se, momentaneamente, o passado e o presente circunscreve a
nova história. Segundo Bhabha:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia de novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (2003, p. 27).
Neste local de contato e de conflitos, a personagem serejiana representativa
da fronteira, passa a “Transitar espaços incertos, essa é a sina” (Achugar, 2006, p.
09) “– Pra que morar num lugar só? Estrada foi feita para o tranqueio do cavalo [...]
Pra que casa? Carancho não tem casa, e vive.” (Livro 9, p. 55). Assim é o “xucro”, o
carneador “viveu sempre, de fazenda em fazenda, de rancho em rancho”, o padre,
salvador de almas – “Lá vai ele, rumo ao sertão – a mulher quitandeira, guaxa
surrada da vida, sempre andante, sem pouso certo” (Livro 9, p. 56).
90
O homem peregrinante dos ervais determinado pelas condições de vida de
seu tempo, foi constituindo-se como sujeito cercado pelos contratos de convivência,
tendo como limite o poder da empresa Matte Larangeira, os latifundiários, e os
conflitos gerados pela constituição do lócus fronteiriço por onde transitam o nativo e
o transeunte, o que veio o que já estava e o que fica temporariamente de ranchada
em ranchada, de margem a margem. Além do homem, está a mata virgem que, aos
poucos vai se redesenhando, pelo machete, foice, pés descalços, carretas ou a
“Serviço de Engenharias rasgando o deserto, abrindo estradas, construindo
pontes...para facilitar o surgimento de novas cidades” (Livro 3, p. 57). Ação que,
segundo o narrador serejiano, não permite o sentimentalismo, pois se trata de uma
função técnica em prol do progresso da região. Em Jabuna (Livro 3, p. 45-62), nem
mesmo a defesa do padre em nome de “Deus Nosso Senhor” foi respeitada, ao
pedir ao militar, responsável pela estrada planejada, que o trajeto fosse desviado e
não passasse em cima do túmulo da madrinha, mãe adotiva de Jabuna. Ao impedir
a passagem do “monstro de ferro e aço” sob o campo santo daquela que cuidara de
seu sarampo e catapora, Jabuna tombou atingido por um tiro certeiro pelo militar,
ação justificada em prol da abertura de estradas...
O transeunte paraguaio, mão de obra barata e melhor qualificada na extração
do mate, quase sempre se desloca, mesmo sem ter muita noção do que poderá
encontrar “[...] o casal de paraguaios, no último grau de estafa, chegou a esse lugar
conhecido pelo nome de Tacuru, [...]” (Livro 47, p.57). Embora, os riscos fossem
grandes, segundo Serejo “Quando o mercado e os Estados Unidos começaram a
exigir da Argentina erva-mate...mais erva-mate, os produtores brasileiros,
capitaneados pela Empresa mate, quase que endoideceram” (Livro 47, p 111), e
correu a notícia de que nos ervais fronteiriços havia trabalho, preferencialmente,
para aqueles que tinham experiência na extração. Como o Paraguai começou antes
do Brasil a explorar os ervais nativos, lá estava o profissional desejado. Por isso,
cruzavam a fronteira: [...] semanalmente, grandes levas de paraguaios que esperavam por dias melhores, mesmo sofrendo e derramando o seu suor no mundo bruto e selvagem da erva-mate.
Muitos vieram, sim, em propósito de aventura. Se desse certo, elevariam lós agradecimientos a Diós; caso contrário, retornariam ao local de origem. E foram, em número considerável, os que pegaram o caminho de volta, como desiludidos e fracassados. (Livro 47, p. 112).
91
A extração da erva mate vai impulsionar o processo de povoamento da
fronteira Brasil-Paraguai: “Talvez fosse a erva o seu mundo triunfador...” (Livro 47,
p. 120.), de forma acelerada e sem planejamento, tanto que o constante “ir e vir”
advém das condições habitacionais, já que ficar em determinado lugar, quase
sempre, significava estar a serviço de. Por isso, moradia e trabalho eram
interdependentes.
Neste trânsito, Serejo vê personagens como “Chopito”: que viera ao mundo
predestinado a vencer as distâncias, transpor as dificuldades e cruzar os ermos.
Uma espécie de caminheiro, como bem descreve Serejo:
Quando o mocinho atingiu quinze anos nessa lida, admirado e querido por todos, era já um autêntico estradeiro, visto que cruzar estradas e enfrentar intempérie cunharam o seu fadário sertanejo. [...] foi vivendo assim como peão estradeiro: não temia os imprevistos que porventura surgissem da longa caminhada que tinha pela frente. [...] O peãozinho cortador de campos e cerrados era grandemente estimado [...].O chopito vinha dos vales dos bugres, onde existia um passarinho de pouca pena [...] O mocinho seguia em direção da linha da fronteira onde existia um pequeno curso d água, ao lado de um capão. (Livro 48, p. 140).
Trânsito entre o chegar e o partir. Serejo vai tratar, em boa parte de sua obra,
de sujeitos em trânsito contínuo, quer seja o peão vaqueiro “O giro de galpão em
galpão é coisa que muito agrada ao vaqueiro” (Livro 18, p. 205), quer sejam figuras
que ilustram a vida longe das cidades, tais como, o adivinhador, “cruzando mundo,
pedindo pousada embaralhando cartas, ganhando a vida...” (Livro 21, p. 293); o
contador de potoca que veio, segundo, Serejo, sentado no recavém da carreta
quando os homens começaram a abrir o sertão, ou mulheres que colocaram o corpo
torneado à venda, em troca de um sorriso, uma moeda ou um instante de prazer. Já
“Velhinha encarquilhada” põe-se a andar pelas festas do sertão ou até mesmo
figuras como o “Gadeiúdo”, uma espécie de andarilho contador de causos, “um
espantalho inofensivo”, “Destino é destino. Vai andando...” (Livro 18, p. 229). Ou,
ainda, personagens que já transitaram por outras obras, como o mascate que vai
furando o sertão na obra do Visconde de Taunay.
O efeito “formigueiro circunlóquio” se dá quase sempre em torno de
localidades de Ponta Porã, Pedro Juan Caballero, Ranchada Mbacaraí, Porto Don
Carlos, Nhu-Vera, Porto Felicidade, Campanário, Asunción, Vila Encarnación, Bela
92
Vista, Sanga-Puitã, espaços que margeiam a fronteira Brasil Paraguay, no final do
século XIX.
Além dos logradouros, recorre, ainda, a nome de pessoas, de fazendas;
entretanto, preenche a narrativa com acontecimentos recuperados pela memória de
um sujeito que possui relações afetivas com a fronteira, dimensão que se projeta em
Pelas Orilhas da fronteira pela composição das personagens – começam
referendadas, todavia as datas, lugares, pessoas desprendem-se do passado vivido
e transfiguram-se em realidades ficcionalizadas que permitem, ao leitor, conhecer
uma possibilidade, um viés da história, por meio das ações das personagens – dos
que não estavam na história oficial, mas à margem, nas orilhas da fronteira, nas
beiradas. Com isso, Serejo traz, no falar de Achugar, “Um cenário onde a história foi
apagada, demolida ou reconstruída, de forma eficiente ou, pelo menos, favorável
aos desígnos do discurso hegemônico [...]” (Livro 5, p. 309).
3.5 ENTREMEANDO...
E guardo ainda até hoje, bem viva na memória, a impressão...(Livro 9, p.259).
Serejo usa as lembranças para recuperar o cenário fronteiriço. Ao contar o
que viu, ouviu, viveu, reviveu nos ervais fronteiriços, traduzidos pela diversidade
étnica, de gênero, de cultura, de nação, Serejo abre veredas para, no falar de
Canclini (2003, p. 24), “Estudar processos culturais [...] mais do que levar a afirmar
identidades auto-suficientes, serve para conhecer formas de situar-se em meio à
heterogeneidade e entender como se produzem as hibridações”.
Nas narrativas de Serejo, temos pessoas que foram “dispersadas para
sempre de sua terra natal”, [...] embora conservem “fortes vínculos com seus lugares
de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado” (Hall,
2006, p. 88), como é o caso dos sujeitos que irão servir de mão de obra nos ervais
“Certa feita, vieram quinhentos e trinta na maior e mais dramática leva, uns de Vila
Rica e outros de Robledo. Tempos depois, menos de dois anos, somente vinte
retornaram aos seus povoados...” (Livro 23, p. 74), pessoas que, por questões de
sobrevivência, passaram a intercambiar experiências em um contexto de fronteira
93
territorial movimentado, no mínimo, pelo contato dos vãos entre duas línguas,
“Bênção brasileira ou bendición Paraguaia” que se manifestam entremeadas “[...]
naquele seu castelhano todo enrolado: – U pingarda, patrón, é nobita, mui linda,
seguramente que guena de tiro; u rede...ê...ê...ê u rede...dois colores...ancha...no
vais dormir la tarimba de palo...e el ponchilho, lizito, bonitón, uma barbaridá...(Livro
30. p. 128).
Para Brait (2009, p. 11) caso queiramos conhecer alguma coisa referente à
personagem, precisamos “encarar frente a frente a construção do texto”. Precisamos
investigar a forma como o autor fez para construir o ser inventado. Descoberta a
forma, aí, sim, devemos “pinçar a independência, a autonomia e a ‘vida’ desses
seres de ficção”. Mais: diz da personagem como um “ser de papel”, como ser de
palavras, linguístico; portanto, não existe fora do texto, embora represente pessoas.
Parte da premissa de que é uma figuração de uma realidade inventada, possível de
acontecer, de ter ocorrido, mas não é a realidade, assim como uma fotografia não é
a pessoa, é a imagem da pessoa que se projeta pelo viés da perspectiva do olhar de
quem vê e do instante em que se registrou a imagem. Não é o ser, é a imagem do
ser. Assim, há na obra de Serejo a imagem do ser, do sujeito entre fronteiras.
Valeremo-nos, mais ainda, do questionamento de Brait (p.12) referente à
forma com que o criador da realidade ficcional passa da realidade concreta para o
universo ficcional, capaz de sensibilizar o leitor para fazer crer no real, na existência
no plano das possibilidades identificáveis com a vida em curso. Questiona: que tipo
de manipulação o autor usa para inventar, recriar seres que o leitor confunde com
seres humanos, “com a complexidade e a força dos seres humanos”. Serejo cria a
personagem de suas narrativas “à sua imagem, semelhança” e discrepâncias, uma
vez que há, na obra, uma incidência relevante de personagens, “criaturas humanas”,
como denomina, transfiguradas em peão paraguaio, quatrero, comiteveros,
mayordomo, barbaquazeiro, monteador, mineiros, “[...], criaturas humanas que, na
data longeva, enfrentaram estoicamente toda sorte de martírios, na grande e
vigorosa arrancada da épica penetração ervateira” (Livro 23, p.69). Realidade em
que o autor/narrador também viveu e com quem conviveu.
Suas personagens, misto de homem vivido e inventado pela voz do contador,
resultam em sujeitos em trânsito, que ganham dimensão representativa ao serem
ficcionalizados pelo viés de contratos linguísticos, sociais, políticos e culturais do
lócus fronteiriço. Os contextos se integram e favorecem o caráter de verdade aos
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fatos e ações, resultando em uma configuração histórica de descobrimento do Brasil
pelo brasileiro partícipe da descoberta, no caso, o narrador serejiano. Ao descobrir a
personagem perdida na memória do império ervateiro, o ser de papel dá luz ao que
argumenta Memmi (2007, p. 124). Segundo o estudioso a coletivização é a marca do
colonizado produzida pelo processo de colonização. Esse movimento agrupa o
indivíduo como corpo coletivo, sendo que sua individualidade ou particularidade se
reconfigura em um todo homogêneo para o colonizador. Espécie de utensílio que
“deveria passar a existir apenas em função das necessidades do colonizador, isto é
transformar-se em colonizado puro” (p.124).
São muitas as evidências de que a literatura de Serejo, permeada entre a
história e a ficção, configura-se na representação de mais uma saga colonizadora,
entretanto, não mais de esquadra que vem pelo mar, visando “[...] salvar esta gente”.
A saga dos fragmentos narrados diz de sujeitos que se cruzam a/na fronteira, que
vêm de fora, não necessariamente imigrantes, como é o caso de brasileiros que
desconhecem o vasto território da própria nação e são atraídos pelas várias
possibilidades. É o caso dos gaúchos, por exemplo, bem elucidado por Serejo, dos
quais vamos herdar o cultivo de grandes plantações, bem como a lida campeira, a
maneira elegante e garbosa do peão se trajar, misturando peças do vestuário da
cultura paraguaia com a cultura dos pampas - faixa na cintura, o poncho/pala, a
bombacha, além do manuseio de hábitos e costumes com o gado, o uso do laço
comprido, o vocabulário gauchesco, o mate amargo/chimarrão/tereré...
Assim, com mais intensidade, a incidência aflorada das marcas de lembrança
do narrador serejiano reporta-se à lida dos ervais, ao homem deslocado de
ranchada em ranchada, ao homem descentrado, em deslocamento. Essa
personagem marca as constantes, recorrentes e indefinidas situações de
reconversão a que estão expostos os sujeitos como a personagem “Zé Antônio”,
“que fora garimpeiro, oleiro, seringueiro”, ia agora tentar sorte com a ILEX. Afundou-
se no caati, disposto a vencer” (Livro 9, p. 268). Não muito diferente da experiência
de Serejo, segundo ele mesmo, nas ranchadas ervateiras por onde passou; foi
“guaino, uru auxiliar, condutor de arrias, percheleiro, fazedor de puchos, atacador,
custureador, provistero, custero, comissário e até mayordomo”. De tudo fez um
pouco no erval, até se tornar um ervateiro. (Livro 50, p. 217). (Fez de sua
experiência as suas personagens, como já dito). Não era, pois, ervateiro, passou a
ser, sem que tenha deixado de considerar a anterioridade, quando não era, bem
95
como o processo transcorrido até chegar a ser. No histórico e aparente discurso
autobiográfico emerge, espelhado no fato histórico de extração da erva, uma
possibilidade de compreensão de como ocorreu a transição de práticas, hábitos e
costumes entre os sujeitos fronteiriços diante da necessidade de mão de obra e de
oportunidade de trabalho. Justifica-se a modificação da vida do nativo – no caso,
Serejo. O entre-meio da possibilidade e da necessidade resulta em ser ervateiro. Ou
ainda: entre o “não ser ervateiro”, o “aprender a ser” e o “vir a ser” vislumbram-se
indícios de que a vida dos fronteiriços, vai sendo modificada culturalmente. Vale
ressaltar que esta modificação não implica avaliar se o antes era melhor ou pior.
Não há, pelo que se pode ler nas narrativas, o tradicional saudosismo de um tempo
que passou. Avulta-se a leitura de um estado de ser sujeito de um tempo,
independente de rótulos – sujeitos pré-moderno, moderno ou pós – mas que
possuem traços constitutivos do ser humano em exposição ao contínuo e
interseccionado processo capitalista, bem como ao contínuo processo de
constituição identitária.
O sujeito localizado no entre-meio territorial – Brasil-Paraguai –, no entre-
meio econômico da extração ervateira que não existia e passa a existir, aparece,
nas narrativas aqui estudadas, representado, primeiramente, pela parte que compõe
o quadro econômico da época: erval/ervateiro. Conforme vamos colando elementos
internos aos externos, flutuam, na superfície das narrativas, os “novos sujeitos”,
cujas partes se formaram no entre-meio – antes e depois. O “novo sujeito” nas
narrativas está para o desbravador, não para um tipo que espera a oportunidade. A
sorte foi lançada com o empreendimento da Matte. Está o sujeito incompleto, em
busca de algo, que não se sabe ao certo o quê é o sujeito do vão das partes, dos
interstícios, o sujeito que se movimenta e movimenta o local movido pela força do
trabalho bruto. Está o sujeito braço, força e coragem que “Traz às costas, qual
Hércules, com suas passadas de orangotango, a colheita do dia. Vem tateando,
apoiando-se aqui e ali, pois uma pisada em falso poderá ocasionar a pronta ruptura
de algum órgão” (Livro 9, p. 238), uma vez que seu fardo é muito maior do que um
ser humano pode aguentar como podemos observar na imagem abaixo:
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Figura 6 45– “Mensu”, “minero”, peão, ser humano capaz de suportar até 150 quilos nas costas. Acervo: (MAGALHÃES, 2011, p.113).
Ou ainda, em “Dois Hércules”: Ia anoitecendo. Uma chuvinha fina, lentamente, umedecia a
vegetação. Do lado da mata vinha um surdo vozear. Eram os mineiros que regressavam. O primeiro a apontar no estirão da mata foi Centurión, depois Ibarra e logo em seguida uma imponente fila verde se formou. Vinham calados agora, atentos na trilha perigosa.
- Chaque ibiquá! - gritou Centurión. Ibarra deu uma passada larga, soltando um grito: - Anãmbyrê!
Saí à porta da vendinha da estrada e pus-me a observar: belo, edificante espetáculo: aquele extenso e movediço cordão verde se aproximava cada vez mais. Dom Nazário, ao pé da balança, com ares de senhor feudal, ia contando vagarosamente: - Um...dois...três...oito...nove.
Alongou a vista para os lados do caati e perguntou a De La Cruz, o índio impassível, que tinha por todo corpo profundas
45 Legenda da fotografia: “Uma das fotografias mais folclóricas do mundo ervateiro é a do homem, chamado de ‘mensu’, que leva o fardo de folhas de erva-mate chamado ‘raído’. Estimulado pela competição – ser o mais forte e também porque seu pagamento era proporcional do que conseguisse carregar – um ‘mensu’ era capaz de suportar até 150 quilos nas costas, o equivalente a 15 arrobas paraguaias. Acima disso é pura lenda, ‘o ñe embarei...’ Marques Magalhães, L. A. M.O Karaí de Sanga Puitã. Ponta Porã, Mato Grosso do Sul: Gráfica e Editora Alvorada, 2011, p.113.
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cicatrizes, de uma luta horrível contra tigre em Panadero: - Maó oimé Carapeí?
O índio voltou-se bruscamente. Um brilho estranho perpassou por seu olhar. Atirou ao solo o raído e saiu apressado, blasfemando. Vinte minutos depois voltava, com um novo raído, e o corpo já sem vida, de Carapeí, o seu minúsculo guaino de treze anos de idade. Uma cascavel, que se aninhara entre as folhas do raído, picara-o mortalmente no pulso.
Dom Nazário pesou, pesou mesmo assim, o produto do seu último corte, e a romana acusou 118 quilos. Sim, 118 quilos, conduzidos na cabeça, por um menino de apenas treze anos. Era, entretanto, a carga comum desse pequenino hércules.
Enquanto os vizinhos colocavam nova indumentária no corpo do heroico mineirinho, o velho Nazário, chorando em silêncio, ia procedendo à pesagem. De La Cruz transportara, nesse dia, o maior raído de sua vida: 328 quilos.
Desorientado coma perda do seu valente guaino, o índio impassível abandonou a luta dos ervai e voltou para o seu país. Morreu meses depois, em cruento combate, no Chaco paraguaio (Livro 9, p. 276-277).
Neste entre-meio em que “os novos sujeitos” passam a conviver e a exercer
múltiplas e variadas funções braçais, de desgaste físico, aparecem outras instâncias
intervalares das quais a voz do narrador serejiano se faz portadora. Sobressai, por
exemplo, a posição de quem conta permeada pelo discurso da informação com base
em fatos possíveis de terem ocorrido. Por meio da informação, podemos ler, além;
denúncia, por exemplo. Mas, aqui, preferimos apontar um sujeito reconvertido,
destituído de noção paralela consciência/ausência de consciência referente ao que
está ocorrendo consigo mesmo – indivíduo – devido à exposição exploratória. Este
estado letárgico transparece em passagens narradas pela voz serejiana,
entrecortada por testemunho da vítima, no caso, o peão ervateiro – que não se
sente vitimado pelo explorador. Selecionamos, dentre muitos, o trecho em que o
narrador conta como era a lei dos ervais e como o peão ervateiro empenhava
esforço desumano para diminuir a conta “[...] e obtener permisión para salir a fuera e
festejar el santificado.” (Livro 34, p. 25). Convém salientar que esta realidade
também está muito bem representada em Selva Trágica46 (1960). Porém, nem
sempre realizava esse desejo, uma vez que pagar conta alta era tarefa sempre
difícil. O autor revela, pois, uma das estratégias da Empresa para segurar o peão
46 Selva Trágica (1960), romance de Ernâni Donato, conta a história da exploração sofrida por homens e mulheres no ervais da Matte Larangeira. Em 1963, inspirou um filme homônimo de sucesso, dirigido por Roberto Farias. Segundo Serejo (Livro 41, p. 65), seu amigo “Nenito Brizueña foi o secador, o barbaquazeiro, o uru, peça de imenso valor numa ranchada”.
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nos locais de trabalho por mais tempo, bem como para que produzisse com maior
rendimento. Endividado, o braçal precisava produzir mais. Para tanto, precisava de
mais provisões, adquiridas em conta mensal, exposto, pois, à exploração cíclica.
Outra forma de permanência forçada e violência de livre arbítrio, sobretudo,
para um andante, era a distância entre as ranchadas. Por estarem léguas e léguas
afastadas umas das outras, o contato entre o ervateiros era impossibilitado, mesmo
em casos de urgência.
Em obra dedicada exclusivamente aos Homens de aço, imagem de empunhar
o facão com agilidade para realizar o corte da erva, Serejo descreve a rotina dos
“heróicos e audazes” homens, heróis anônimos, que fazem o corte da erva
equilibrando-se em média a seis metros de altura, sustentados por galhos fracos.
Além do corte, cumprem a função de transportá-lo “[...] até uma distância de três mil
passos”, nas costas, como se pode ver nas Figuras 01 e 06.
Na apresentação da obra, explica que seu livro é despretensioso e que nunca
lera sobre cultura ou industrialização da erva mate. Valer-se-á das informações de
experimentado ervateiro que foi durante a época em que esteve nos ervais na região
de Ponta Porã. Em Homens de aço: a luta nos ervais de Mato Grosso, obra escrita
em 1946, justifica-se, caso o trabalho contenha falhas, já que tem certeza de que a
fez pensando ser útil a Mato Grosso e ao Brasil. E fica: Serejo se refere à que
concepção de utilidade?
Na descrição do “protótipo do homem” dos ervais, com maior intensidade,
nesta obra, Serejo sugere a interpretação de utilidade, ao escolher e combinar
palavras que, enviesadas, produzem o efeito de misto de denúncia e exaltação. Não
explicita exploração, de imediato. Vai, paulatinamente, permeando a lida diária do
mineiro47 ou barbaquazeiro48 com as exposições exploratórias vividas, de tal forma
que o erval – floresta nativa – passa a ser vilão do contexto, como podemos avaliar
na passagem:
47 Homem que faz o corte das folhas da erva-mate. Um profissional de respeito sempre. Sobe até seis metros de altura, mantendo equilíbrio perfeito. [...] É o elemento chave em todas as organizações ervateiras. Sem o mineiro, peão especializado, não há produção de erva-mate. Ele é como um seringueiro, um homem adestrado para uma função extremamente delicada. (Livro 50, p. 273). 48 Peão que trabalha no barbaquá. Desempenha papel importantíssimo numa ranchada ervateira. É o homem-chave para se conseguir um produto de excelente qualidade. (Livro 50, p. 253).
99
Perigo mil enfrenta, ele nessa lida gigantesca. A jungle arma-lhe a cada passo uma cilada. Aqui, uma gleba imensa de terra apodrecida; ali, uma muralha intransponível de espinhos; mais além, um rio temporário, formado pelas enchentes. Mas tudo ele vence. Maior que os obstáculos da natureza selvática é a sua fibra de aço (Livro 09, p. 270).
Com isso, bonifica e avaliza a Matte. “Ela” que em um audacioso
empreendimento ligou o “Estado de Mato Grosso com várias nações vizinhas,
desbravou e povoou o sul e fez a terra de Pascoal Moreira Cabral conhecida e
admirada em outros continentes”. Fez muito mais, segundo o filho da “terra
abandonada”: “Abriu escolas, fundou núcleos de população, deu assistência médica
gratuita aos seus empregados, aumentou a minguada renda estadual e levou a
civilização para o sertão” (Livro 09, p. 277); além de ter feito, sozinha, em pouco
tempo, aquilo que o Governo não conseguiria fazer em quarenta anos em Ponta
Porã (p. 278).
Memmi (1977, p. 101) ajuda-nos a compreender os efeitos advindos do
processo de colonização na constituição do sujeito colonizado: “Apesar de tudo, o
colonizador não abriu estradas, não construiu hospitais e escolas?”. Inferimos que o
texto de Serejo é porta voz de uma realidade que não nos cabe mais, como bem
defende Memmi (p.102), avaliar “do que teria sido o colonizado sem a colonização”,
uma vez que a discussão não mais se sustenta por binarismo ou pela análise de
causa e consequência. Sua posição de escritor revela a hegemonia do
“desbravador” e a emboscada vivida pelo “escritor colonizado”: encarnar “todas as
ambiguidades, todas as impossibilidades do colonizado, levadas a um grau extremo”
Memmi (1977, p. 98).
Elucidam-se características. Bem mais do que “O sertanejo é antes de tudo
um forte”, Serejo qualifica os ervateiros como “Leões” no “drama do erval”; compara
a vivência a uma epopéia, bem mais sofrida do que a dos seringueiros, uma vez que
o ervateiro é “Cativo e sem esperança, no mais recôndito de uma floresta bruta e
ingrata” (Livro, 9, p. 231).
Os “super-homens”, “heróis anônimos”, que têm a missão como transformar
folha em ouro, ganham dimensão maior ainda, quando inseridos na paisagem do
caati:
100
Quem adentra no seu perigoso labirinto, sente-se, horas depois, fatalmente dominado por estranho pavor. Pára. Circunvagueia o olhar pelos trilhos circunjacentes e, em tudo encontrando a mesma uniformidade, julga-se perdido. Ascende a uma palmeira e grita uma, duas, três vezes; e o morrer longínquo do eco aumenta-lhe ainda mais o justo desespero (Livro 9, p. 235).
A personificação do eco e a denominação das estradas em labirinto
contribuem para aumentar os perigos que o peão ervateiro enfrenta na extração da
erva. Em: “Pára. Circunvagueia o olhar pelos trilhos circunjacentes” remete a um giro de
360 graus em torno de si mesmo em busca do caminho apropriado para seu percurso.
Na tentativa de demonstrar a “paisagem do erval”, Serejo recupera a descrição de
Umberto Puiggari sobre a “paisagem traiçoeira do caati:
O caati (erval) é um verdadeiro labirinto na mata bruta. Há nele um sistema caprichoso de estrada, que se cruzam em todos os sentidos. A estrada maior, limpa, destocada, ampla, denominada tape-guassú, que o atravessa em várias direções, é destinada ao trânsito de caminhões ou carretas, que recebem a erva já ensacada e mandada à vaqueria – racho principal. No tape-guassú morrem os tape-hacienda (caminhos de cargueiros), que servem de comunicação entre o barbaquá (forno subterrâneos para secar erva) e o tape-guassú. Nessas estradas, sombrias cobertas pela ramaria exuberante, transitam, sem cessar, homens conduzindo, a pé, folhas de erva para barbaquá, e bestas carregadas de bolsas (sacas) de erva já prontas para os caminhões. Atravessando os tape-hacienda, em múltiplas direções, existem uma infinidade de tape-poí, caminhos estreitos, verdadeiros trilhos de cabras por onde os mineiros (colhedores de folhas) trazem o produto de seu labor ao tape-hacienda, que lhe corresponde (Livro 9, p. 234).
O fato de a organização do livro ser feita através de subtítulos resulta em uma
ausência coesiva entre as partes, no que se refere ao fio narrativo condutor – contar
fatos com progressão temporal. Não há continuidade sequencial entre as partes,
embora, em todos os subtítulos, Serejo tematiza o homem e a lida no erval. Serejo
subtrai a possibilidade de denúncia, mesmo quando testemunha a vida no erval:
Quem viveu nos ervais, como vivi, ouvindo, sentindo e de tudo indagando com vontade de saber, muita coisa vê que lhe comove e punge a alma. Aqui são homens entisicados que lutam desesperadamente pelo pão quotidiano; ali são mulheres anêmicas, autênticas múmias, redivivas, corroídas por enfermidades várias, que gastam as últimas energias à beira de um riacho, batendo, de sol a sol, a roupa grosseira da peonada (Livro 9, p253).
101
Aparentemente contraditório na mesma obra, Serejo enaltece “As heroínas
dos ervais”; permeando aspectos de perseverança, fé e predestinação, eleva-as a
“verdadeiras sentinelas de granito na luta peripeciosa dos ervais” (Livro 9, 245). A
comoção sobrepõe-se aos fatos que levam a pungir a alma. Embora esteja recuado
do tempo do possível fato vivenciado – tempo em que esteve no erval – recorre ao
advérbio “aqui” e “ali” para generalizar que, em toda parte do erval, tanto homem
como mulher, sobrevivem em condições exaustivas de trabalho. Entretanto, coloca-
se como “pintor” da imagem, de um quadro sociológico e não levanta voz a favor
dessas criaturas, muito menos “pinta” a expressão dos explorados ou dá voz aos
que sofrem nos ervais. Salientamos, então, que Serejo reconstrói o momento
histórico da vida no erval na condição de sujeito, também, sujeitado,
Essa posição leva-nos a inferir a incapacidade para mudar a realidade.
Mesmo impotente diante do poder velado, não deixa de demonstrar profunda
admiração pelo homem do erval, um sentimento nostálgico e impotente, já que é
passado, tempo ocorrido, não existe mais, não há mais lida nos ervais. Restam-lhe,
apenas, memórias daquilo de que pode se lembrar. Daí, como um empolgado pela
vida, replica imagens concretas, vida de papel, tanto que quase nunca dá voz aos
seus personagens, mas fala por eles, testemunha por eles. Chega a opinar, a
“achar”: “Acho que ele bem merece a estima e afeição de todos nós brasileiros. Sua
missão de transformar folhas em ouro é altamente nobre e sublime” (Livro 9, p. 209).
A ação é nobre, mas as condições são de miserabilidade.
Serejo descreve, ainda, a rotina da extração da erva e os perigos a que o
homem está exposto. Os hábitos e costumes diários são contados com detalhes,
desde a alimentação, reforçando que o tereré e o fumo compõem o cardápio, tanto
quanto a carne e a graxa. Relata, em pormenor, como o ervateiro faz para gastar o
pouco que consegue juntar na lida da extração: “Nas desregradas orgias dos
jeroquis, esquece tudo, e com o adoudado companheiro gasta à mão-cheia para
depois, durante longos meses, auxiliar a amortização do débito, batendo nas
cacimbas a grosseira indumentária da peonada” (p. 246).
A Semana Santa, tradição paraguaia, reforça a permanência do sujeito
ervateiro ao erval sem que tenha noção, ao certo, do que seja lazer e alforria. Na
transcrição abaixo podemos perceber o significado deste tempo santo, misto de
102
festa religiosa regada à alimentação típica, seguida de baile. Nessas ocasiões,
quase sempre, ocorria baixa de mão de obra no erval:
Há uma época do ano em que o peão do erval tudo esquece. É quando se aproxima a semana santa. Aí ele, abandonando o caati, a pé ou a cavalo, alegre e satisfeito, procura o primeiro bolicho da estrada e vai gastar, em sete dias, todo o pecúlio que conseguiria fazer em onze meses de trabalho árduo e penoso. Sim, com sete dias, pois, não raro, muito antes de expirar o prazo, já torrou as economias e contraiu dívida para muito tempo. (Livro 9, p. 253).
A Semana Santa, para o paraguaio, segundo Serejo (Livro 9, 253) tem
representação equivalente ao Natal. Há um ritual em comemoração aos mortos,
regados a comidas típicas, como: sopa Paraguai, a chipa, caburé. Vive-se em
função da celebração, bebe-se muito. Tudo para, até mesmo o fogo – à lenha – não
é aceso na sexta-feira santa. O ritual, lembrado pelo narrador, implica esquecimento
de “tudo.” Como se fosse, um “stop”, o sujeito coloca a melhor roupa, o melhor
perfume, encilha o melhor cavalo, com a melhor tralha e vai ao povoado mais
próximo comemorar com o bolso cheio. Vive uma espécie de estado catártico,
necessário para que exista um breve e intenso apagamento da realidade
“sangrenta”. Momento para que o peão possa iludir-se a custo alto e viver alguns
dias de jeroky – baile – e bebida, como forma de compensar a vida dura que leva.
Este estado de liberdade inspira-nos a estabelecer a posição do sujeito do entre
meio erval-cidade ou mata/povoado. Seu direito ao convívio urbano – entre mais
habitantes – é concedido, uma vez ao ano, devido à realização da festa religiosa.
Comemoração que castiga quem se arriscar a trabalhar nesta época.
Comportamento e crença que revelam um possível e entremeado sentido para
trabalho: abençoado por dar condições de se ter o que gastar; todavia, quem
trabalhar na ocasião comemorativa está sujeito à maldição.
De primeira leitura, podemos considerar os sujeitos como mártires,
desbravadores, personagens que com “sangue, suor e lágrimas” construíram a
historia de um povo, de um tempo heroico. De fato, essa é uma versão! Entretanto,
temos de considerar “[...] que a amiga e providencial ajuda” (Livro, VIII, p. 12), dos
que “[...] chegaram aos ervais, numa luta de bravos, para que a terra fosse
desbravada, cortada por milhares caminhos, e povoada”, advém de um estado de
extrema exploração, gerada pelo processo de modernização e desbravamento do
103
local antes não habitado. Para habitá-lo “Homens, mulheres e crianças, por um trilho
escuro e estreito, passam conduzindo os trastes, numa alegria desenfreada. É a
coroação do triunfo por nova terra conquistada” (Livro 9, p 241). Muito natural para
quem está inserido no processo – ou esteve –, o reconhecimento àqueles que
trouxeram o progresso e com ele, maiores e melhores condições de vida – conforme
modelo capitalista – mesmo que seja para poucos, sobretudo, aos patrões. O
reconhecimento traduz-se em homenagem, uma espécie de monumento:
Aos meus irmãos sofredores; aos que sangraram os pés furando o sertão desconhecido; os que dormiram sobre um baixeiro debaixo da árvore agasalhadora [...] aos que foram resolutos e estoicos e venceram os espinhais, os charcos, o areal sem fim, a terra podre, traiçoeira, as fera, o mosquitame azucrinante, a febre que matava, o índio espreitador e a tocaias covarde na boquinha da noite, ofereço o meu PROSA XUCRA. (Livro 10. P.281).
No verso da homenagem, podemos ler, alertados por Benjamin (1994, p. 34)
“por trás de todo monumento de civilização há um ato de barbárie”. Mas há um
reconhecimento, mesmo que seja hipócrita. A barbárie só se faz consciência depois
do tempo passado. E aí, a memória falha. Precisa do monumento para celebrar seus
“heróis” que já não são os mesmos que cruzaram a fronteira. São os que a história
de um lugar e tempo contou. No caso, os heróis são, “Homens de aço”, porque só
estes suportaram o trabalho forçado, o cárcere vivido involuntariamente por meio
das “retiradas do bolicho” dos administradores das ranchadas, “[...] pois o desejo de
todos era ter a certeza de que teriam o alimento garantido, fosse ele qual fosse”.
(Livro 23, p. 93). Estratégia de manutenção e de permanência da quantidade de
braços necessários à extração da erva.
O último texto de Homens de Aço intitula-se Duas palavras, uma espécie de
“dois dedinhos de prosa”, uma permissão ao leitor para sair – o autor, não mais o
narrador - em defesa branda da Empresa Matte Larangeira:
Muita propaganda injusta da Empresa Mate Laranjeira, essa preciosa organização industrial, tem sido feita no Brasil. Tem havido mesmo jornalistas profissionais, que mantiveram, por longos anos, campanha de agressão contra ela. Nunca pude compreender por que isto.
Ela, num audacioso empreendimento, ligou Mato Grosso com várias nações vizinhas, desbravou e povoou o sul e fez a terra de
104
Pascoal Moreira Cabral conhecida e admirada em outros continentes. Mas não parou por aí. Abriu escolas, fundou núcleos de população, deu assistência médica gratuita aos seus empregados, aumentou a minguada renda estadual e levou a civilização para o sertão. (Livro 9, p.277-278).
De fato, o empreendimento da empresa Matte Larangeira possibilitou o
povoamento do sul do Estado, entretanto, não muito diferente e considerado como
natural processo de colonização: muitas vidas foram ceifadas, sobretudo, vidas de
homens simples e desconhecidos. Novamente é exemplar o caso da personagem
Poincaré em El Viejito Poincaré, primeiro texto da obra Pelas Orilhas da Fronteira
(2009). De início, ocorre a apresentação da personagem a partir do momento em
que ela adentra o cenário em que se encontra o narrador: “As sombras estavam
envolvendo o dia em uma roupagem escura. Era a noite que se
aproximava...Justamente, nesse lusco-fuco [...]” (p.11) chega “aquele homem
miudinho, sem barriga, cabelos loiros, rosto liso, boca pequena, dentes graúdos e
fortes, [...], fala macia, olhar de vivacidade leonina chegou a Pedro Juan Caballero”.
Nota-se o contraste do ambiente com a figura do chegante. Um entre meio dia/noite
– lusco-fusco – entre fim/começo – de uma história que ficou, para outra que irá
começar – entre escuridão e detalhes nítidos, revelando – ou camuflando – uma,
misto de traços físicos frágeis com “vivacidade leonina”.
Em El Viejito Poincaré está o entrecruzar do que veio – deslocado – e do que
estava – estático –; está o local que necessita de mão de obra e o andante em
busca de oportunidade, está a rotina da vida na fronteira em tempos de povoamento
visando à exploração de um produto, enquanto o homem fica relegado a segundo
plano, uma vez que a “erva” tem valor de mercado.
Além das personagens já apresentadas, entre as que se ambientaram ao
mundo da erva, Serejo diz também daqueles que abandonaram o torrão pátrio por
pressão política e, por não terem se adaptado aos ervais, tiveram que fugir das
ranchadas. Revela, então, que a única forma de trabalho estava centralizada na
extração do vegetal e “Não podendo os fugitivos dos ervais retornar ao Paraguai, e
não tendo como ganhar para o sustento, se envolveram em furto de gado” (LIVRO,
23, p. 92) Com isso, surge uma outra realidade, a qual vai modificando o contexto,
tanto que (LIVRO, 23, p. 94) “Da pilhagem veio logo em seguida o assassínio.
Matavam para roubar”. O malfeitor que existe em toda história humana vai
105
transfigurar-se na figura do “quatrero”, função resultante do contexto histórico
motivado pelo processo de povoamento e facilitados pela localização fronteiriça: “Os
malfeitores insistentemente perseguidos ora estavam no Brasil, ora se homiziavam
em território paraguaio.” (Livro 23, p. 94).
O sujeito do entre-meio nas narrativas serejianas tipifica-se em personagens
como El Viejito, cujas marcas são reconfirmadas em muitas outras narrativas, como
a história dos los ermanos Arce: “Seus nomes? Nada mais. Na época, ninguém
portava documentos. Apenas a palavra autorizava o registro. Quem era e de onde
procedia, pouco interessa”. (Livro 23, p. 97). O conhecimento do “ofício de extrair
mate” concedia passe livre para adentrar fronteira, desde que tivesse braços, força e
coragem.
106
CAPÍTULO III - LITERATURA ENTRE FRONTEIRAS
O lugar pouco importa. O nome do bolicheiro também. O válido é que se trata de fato verídico, por muitos conhecido (Livro 35, p.185).
49 Figura 7
49 Segundo Campestrini (2008, p. 63), Heróis da erva, 1987, é igual a Caraí (até na numeração das
páginas:49-194, na realidade é uma separata), com a inclusão de apresentação com o título “Os
Heróis Anônimos” (que está em TEXTOS ESPARSOS).Brochura, capa ilustrada, com orelhas, com
textos de Renato Báez, Francisco de Vasconcelos, Otávio Gonçalves Gomes e Elpídio Reis. O
“capeamento e a complementação” foram executados por ARTES Gráfica Bachega, de Presidente
Venceslau. Como o texto já está em CARAÍ, HERÓIS DA ERVA foi desconsiderado (Das OBRAS
COMPLETAS). Fonte: CAMPESTRINI, H. O trilhador de todos os caminhos: vida e obra de Hélio
Serejo. Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2008, p.63.
107
4.1 PRENÚNCIO LITERÁRIO
Nos capítulos anteriores, realizamos um apanhado geral de alguns aspectos
históricos que norteiam a obra de Hélio Serejo, resgatando a fronteira Brasil-
Paraguai do início do século XX, quando se deu o povoamento, com mais
intensidade, do sul do Estado de Mato Grosso do Sul em detrimento aos fatos
históricos, Guerra do Paraguai e extração da erva mate realizada, pela companhia
Matte Larangeira. Referendamos, ainda, o homem em trânsito, por entre fronteiras
Brasil-Paraguai –, trabalhando nos ervais do sul do Mato Grosso do Sul.
Neste capítulo, ampliaremos a acepção de fronteira, a fim de cotejar as
narrativas produzidas por entre fronteiras, uma das quais transita na relação entre
“[...] o plano inventado e o reconstituído e esta oscilação constitui poderoso
elemento de verossimilhança”, segundo Candido (2006, p. 619).
Na confluência das partes, Serejo deixa vazar indícios de um prenúncio
literário bem mais próximo à realidade do Brasil esquecido, da fronteira abandonada,
em um tempo de colonização. O ímpar em Serejo está em não dramatizar a vida na
fronteira, mas em configurar os conflitos vivenciados pelo viés da realidade vista
pela ótica do fronteiriço recuado no tempo e espaço. Traço peculiar, em se tratando
de um autor da fronteira, um escritor daquilo que ele mesmo viveu, viu ou ouviu
contar. Vale lembrar que o complicador apontado por Candido (2006, p.618),
sobretudo ao referir-se ao autor que escreveu sobre o regional sem ter muita noção
do lócus para/de onde escreve, também pode ser avaliado de outra forma: o
conhecimento literário de Serejo se deu empiricamente; fez-se escritor pela paixão
que tinha por escrever. Motivado pela arte da palavra buscou formação, como se
pode avaliar no capítulo I, em autores de seu tempo, os quais, ainda viam “os
problemas do Brasil” pela ótica do estrangeiro. A paisagem “exótica” e a natureza
exuberante, primitiva, formada pela concepção dos relatos dos europeus, impingiu
uma tradição, um modelo para as gerações que fizeram a história literária brasileira
até o século XIX. Essa tradição unifocal descreveu o Brasil do europeu, do
estrangeiro, que se “bestifica” diante das belezas naturais, as quais cegam o olhar
para aquilo que não convém ser visto, uma vez que não se tem consciência crítica
da situação. Trata-se, portanto, de uma questão de processo cultural.
108
No conjunto da obra, em específico nas narrativas em que ficcionaliza a lida
bruta nos ervais, Serejo prenuncia, paulatinamente, o entremear de uma consciência
nacional, de homem inserido ao local, ao narrar a “vida como ela é” na extração da
erva, com relativo olhar exaltado da bravura desse homem explorado. O autor
reconhece a contribuição que o anônimo, exposto a toda e qualquer situação de
subsistência, irá dar ao engrandecimento da “nação”. Por um lado, registra muito
bem as relações de trabalho exaustivo do ervateiro exposto ao meio “infernal do
erval”; em raras passagens explicita a exploração e aponta o opressor. Todavia,
deixa espaço para o leitor inferir, sobretudo, quando narra “o drama do erval” que
alucina e absorve o viver do ervateiro (Livro 23, p. 72).
A colonização e o desbravamento da região sobrepõem-se ao fator humano
em uma relação creditada pelo capitalismo, o qual carrega, como princípio, a força e
organização da propriedade privada – Matte Larangeira. A concentração individual
ou social dessa força movimenta a fronteira ocasionada pela necessidade de mão
de obra barata, já que pagar o mínimo possível pela matéria-prima – a erva – e a
pela mão de obra – o homem – resultará na propagação – povoamento – do próprio
sistema capitalista.
Sem a intenção de esgotar a discussão histórica e com consciência de
estarmos tomando, apenas, a visão macro da história – Guerra e Companhia Matte
Larangeira – de um tempo e um local ficcionalizados pelos textos serejianos, neste
capítulo, analisaremos, em específico, as narrativas contidas em variados livros, mas
que possuem unidade temática e recurso estético que nos possibilitarão avançar em
nossa argumentação em defesa de um fazer literário resultante do desejo,
aparentemente espontâneo, de (re)lembrar o passado vivenciado em um local
marcado pelas relações de poder, em detrimento do processo de colonização da sul
do Estado de mato Grosso do Sul.
De fato, a obra de Serejo perpassa um tempo e local já referendados.
Todavia, Serejo, ao ficcionalizá-los, avança além da representação dos locais
datados, dos nomes de pessoas, do fato histórico, da exaltação nativista. Encoraja-
nos a prosseguir validando boa parte de sua produção, sobretudo, pela história do
homem local, contada pelo homem local; atitude que deixa vazar um leve sinalizar
de consciência histórica, de ruptura de padrões literários. Isso se evidencia, com
109
significativa projeção, em seu discurso de posse na Academia de Letras em Cuiabá,
já mencionado.
Com isso, Serejo desvia um olhar sobre o local, flertando com o pitoresco,
mas apresenta a construção de uma identidade sul-matogrossense relacionada à
identidade do fronteiriço, em um sentido mais amplo, o qual passaremos a analisar
nas narrativas cuja temática evidencia o homem e a erva por entre fronteiras do
narrar vivido e do recriado.
O primeiro traço de uma literatura de fronteira – e fronteiriça –, produzida pela
força das “paixões”, encontra vazão sentimental, ao passo que o sujeito – autor – vai
exercitando suas paixões, apontadas como: paixão pela vida da fronteira em um
tempo de povoamento, paixão pela paisagem que abrigava os ervais e por onde
ocorria o trânsito dos chegantes. Por último, a paixão que reúne as demais: escrever
livros.
Assim, as paixões contextuais – geográfica e histórica – se configuram em
ingredientes que impulsionam o autor a prosseguir em sua paixão maior, escrever,
independentemente de sua produção; seguir modelos vigentes de escrita literária,
embora o autor, como já vimos, demonstre preocupação e zelo para com sua escrita
e possua consciência de que é um autor periférico em relação à História literária do
Brasil.
A junção das paixões irá resultar em uma literatura produzida no vão
fronteiriço, entre a fronteira do vivido e do recriado, que se biparte em contar e ser
personagem, em narrar e informar, e na organização ficcional do espaço histórico e
geográfico descrito pelo homem local, perpassado pela formação de escritor
empírico, homem simples, cuja formação já foi apresentada no capítulo I.
Salientamos ainda que, embora não seja uma literatura alicerçada nos
princípios da “arte da palavra”, sua obra revela a concepção de um sujeito/autor
autônomo em relação à produção de autores consagrados que, embora tivessem
formação intelectual, não tiveram consciência de sua formação cultural e viram o
geográfico pela ótica exaltada e unilateral do colonizador, do estrangeiro.
Estrangeiros, eles haviam sido dentro do próprio país. Como bem discute Candido
(2006, p. 639), em Consciência literária, ao revisitar a crítica romântica de Ferdinand
Denis e Garret: “Daí um persistente exotismo, que eivou a nossa visão de nós
110
mesmos até hoje, levando-nos a nos encarar como faziam os estrangeiros,
propiciando, [...] a exaltação do pitoresco no sentido europeu [...]”.
Salles (1993, p. 180) contrapõe-se ao que colocamos em discussão em
Serejo, ao confirmar que o universo da ficção novecentista regional foi sempre
grotesco, caricato, desprovido de dimensão humana e revelador do pitoresco
canhestro em primeiro plano. O crítico explica, ainda, que o escritor regionalista agiu
como se a vida da roça fosse vista pelo turista da cidade. A capacidade criativa
serejiana, não só integra o homem ao ambiente local, como também personifica a
grandiosidade e a força da natureza, em detrimento à coragem e à bravura do
homem em trânsito, ao se aventurar para desbravar mato adentro. Em uma relação
similar ao processo de desbravamento no qual homem e natureza são a força bruta,
a “paisagem” – que Serejo tanto admira – ameniza a dor do homem e o impulsiona a
lutar mais e mais, como veremos nas narrativas.
Com isso, Serejo amplia seu fazer estético além de representar uma dada
realidade, já que exercita, em boa parte das narrativas, a ação de contar, constituída
pelos elementos do discurso, os quais compõem o sentido do texto. É o caso das
personagens deslocadas da fronteira: raramente possuem nome próprio, exercitam
pouco a voz, são conduzidas pelo narrador que, em raras passagens, abre um fio de
esperança ao reproduzir – ou deixar ressoar sua voz – quase sempre em Espanhol
ou Guarani: “Sempre que mexia na sua guaiaca, de muita estimação, pronunciava
estas palavras: – Mi barajo...mi barajo. Era, por assim dizer, a razão do seu viver”
(Livro 30, p. 130). A naturalidade com que insere a voz da personagem “–Yo soy Pio
Ramirez” (Livro 47, p.60) recupera a atmosfera fronteiriça atribuindo um caráter
verossímil aos fatos, favorecido pelo sotaque da personagem.
São várias as incidências de um prenúncio fronteiriço entre tradição e
ruptura, uma das quais diz da relação afetiva com a fronteira onde nasceu, cresceu,
onde conviveu com ervateiros, ao trabalhar no erval. Essa relação transparece em
um sentimento atípico à sua possível formação literária (se considerarmos a
formação referência e estudo sobre os autores, principalmente, do Romantismo),
embora no momento do início de sua produção, a intelectualidade brasileira – de
centro – já tivesse relativa compreensão do processo colonizador e das influências
dessa herança na produção literária brasileira. Todavia, temos de convir que
formação cultural e pensamento intelectual se constituem como processo paulatino;
111
leva tempo para que ocorra mudança na maneira de pensar e agir em uma dada
realidade/comunidade. Além disso, o autor Hélio Serejo não integrava essa elite,
muito menos tinha livre acesso às ideias e aos ideais vanguardistas. Fez-se escritor
na solidão do desejo de escrever. Para tanto, ia aos “mestres” e neles se “inspirava”
embora reconhecesse “a pobreza” de seus “minguados recursos poéticos” (Livro 14,
p. 262). Tanto que, em boa parte de sua obra, Serejo pede: “Perdoe-me, leitor
amigo, pelos cochilos e deslizes...” (Livro 14, p. 262) ou “Jamais poderá ser isto uma
crítica, um estudo”. Refere-se a um texto sobre Euclides da Cunha. "Poderíamos,
sim, classificá-la como uma simples e trôpega divagação literária, de um apagado
João-ninguém das letras pátrias, sobre personalidades marcantes...” (Livro 8, p. p.
210).
Mesmo assim, asseguramos que há prenúncios de uma literatura nascente
original na escrita serejiana, na concepção do sujeito que se traduz para cantar sua
pátria. Um desses prenúncios está no tratamento dado à temática da saudade –
muito reincidente no Romantismo, seja em Casimiro de Abreu “Oh! que saudades
que tenho/Da aurora da minha vida,”/ ou em Gonçalves de Dias: “Minha terra tem
palmeiras”, os quais exaltam a terra natal e queixam-se do tempo que passou ou do
distanciamento.
Nas narrativas serejianas, o “eu” ultrapassou a visão “queixosa” da geração
do Romantismo e reconhece-se como sujeito de um tempo real, compreendido como
aquele que, embora não conviva mais diretamente com o local, continua vinculado
aos dramas do erval e configura-se como porta voz da história perpassada por
ações do cotidiano da fronteira. Do mundo de que fala, o autor também já foi parte.
A vivência local o fez conhecedor das histórias, quer as contadas por
diferentes sujeitos, quer a vivida – a versão de quem viu, viveu... –, ou ainda
pesquisada em documentos – informações. Daí, avulta-se uma outra peculiaridade:
o cruzamento da informação com a ação do contar, recurso textual sui generis, se
avaliarmos o contexto – histórico e cultural – em que está aquele que escreve – no
caso, Hélio Serejo. Primeiro: Serejo coloca-se como pesquisador, procura a
informação, levanta dados para escrever boa parte de sua produção, como vimos no
capítulo I. Essa informação também vem perpassada por dados cujos registros
foram oficializados, bem como por dados contados por informantes.
O ápice da originalidade dessa confluência entre o contar e o informar está na
averiguação do elemento externo ao texto. Para Benjamin (1994, p. 202), o contexto
112
sócio-histórico irá influenciar – e fundar - uma nova forma de comunicação – no
caso, a informação de cujo fator propulsivo a imprensa se faz responsável. Aos
poucos, encontramos argumentos para justificar o estudo da vida do autor. Sua
iniciação literária, ou com o mundo da escrita, inicia-se por meio da imprensa, aos
treze já escrevia para um jornal de uma cidadela próxima a Ponta Porã. Essa prática
irá influenciar a elaboração de seu texto, convertendo-o em misto de informação,
descrições detalhadas, de quem conhecia o local e hábitos descritos, sequenciadas
pela inserção de hábitos e costumes da fronteira, local de muitas histórias, das quais
conta algumas, sobretudo, aquelas que correm de boca em boca, em um tempo
pretérito ao possível acontecimento.
O exercício criativo e as possibilidades estéticas deste autor estão na
tessitura do entrecruzar dessas histórias que, no vão das partes, dão vazão ao
ficcional, abrindo um vislumbre crítico do ocorrido, por vezes, reconhecido pelos
seus raros leitores: “Os seus cantos, meu caro Hélio, são pedaços da vida,
recortados na carne sangrenta da realidade. Vivem neles, palpitantes e frementes
[...] os tipos e costumes, o fraseado e as paisagens [...]”. (Livro, 13, p. 91).
A realidade a que se refere o acadêmico, José de Mesquita50, pode ser
entendida como relação afetiva que o narrador possui com o local: “Difícil, muito
difícil mesmo, a gente encontrar coisa mais bonita que a paisagem sertaneja, no
amanhecer crioulo ou na hora do entardecer [...]” (Livro 34, p. 37), mas que, nem por
isso, mascara a “realidade”: “O meio era selvagem, com bicharame de todas as
espécies, razão pela qual só o arrojado, o forte, se ambientava, permanecendo no
inferno verde do caá” (Livro 34, p. 39). Assim, o estado de quase êxtase do narrador,
ao descrever um dos aspectos com o qual possui vínculo afetivo, a natureza dos
ervais, não lhe tira a consciência do olhar crítico; nem por isso, ausenta-se de
retratar as dificuldades encontradas na vida do erval, mesmo que seja um texto
simples, misto de menção honrosa, apologética à “Ranchada ervateira”, habitação,
“sem estética”, que “[...] mais parece um polvo com seus tentáculos escondidos nos
confins da jungle amedrontadora, para abrigar os ervateiros” (Livro 18, p. 226).
Todavia, não deixa de reconhecer a função da Ranchada para “povoamento da terra
50 Presidente da Academia Mato-Grossense de Letras, amigo de Hélio Serejo. Serejo recupera no prefácio de Prosa Rude (Livro 13, p. 91-92) uma carta recebida do amigo em 1952, na ocasião em que o poeta e jornalista conta ao amigo o prazer de ler os livros presenteados por Hélio.
113
virgem”. Chega ao ponto de abrir interlocução com a Ranchada, personificando a
moradia: Você, ranchada ervateira, pode representar uma época em que o homem era escravo do homem, em que dominava a lei do mais forte e em que saía com vida aquele que primeiro apertava o gatilho. [...] Você foi edificada com lágrimas e teve o seu batismo com sangue, porém, com isso não será desmerecida. Era da época. Para se construir era necessário aniquilar, destruir, arrasar...(Livro, 18, p. 227).
No mesmo texto em que ousa descrever a moradia escondida nos confins e
reconhecer seu valor como abrigo para os ervateiros, demonstrando escolha
temática original, revela-se multifacetado, misto de complacência de homem
favorável ao progresso da região com o desvão da denúncia de um tempo de
barbárie. Advém, daí, a intersecção dos planos da História e da ficção, traços que
perpassam a narrativa: esta “terá, portanto, uma dupla realidade, ou seja, uma
natureza híbrida, a meio caminho entre a Literatura e a História (Freitas, 1986 p. 10).
A consciência dessa realidade sobrepõe-se ao escapismo melancólico dos
românticos e abre passagem para um olhar direcionado para a realidade rural “não
como natureza morta” e artificial, mas como habitat que acompanha as mudanças,
como podemos avaliar em El griton (Livro 18, p. 224), texto em que descreve o
hábito cultuado pelo paraguaio que se adaptou aos ervais como se fosse um “um
filho da terra”. O conhecimento que o eu lírico tem da flora e da fauna sobressai na
forma autêntica de alertar que o tempo passará, que muitas mudanças ocorrerão. A
construção metafórica da relação cultural Brasil-Paraguai amplia-se em detrimento
da descrição, paulatina e detalhada, sob o olhar de quem conhece a natureza, como
se pode notar em:
O relógio do tempo continuará marchando. O pé de guavira se cobrirá, novamente, de frutos. O ipê majestoso receberá mais outra carga de flores. Novos ninhos serão construídos nos galhos das árvores. As ervateiras continuarão morrendo. As ranchadas irão se despovoando. A vegetação luxuriante fechará os caminhos. Virá o desolamento. O grande silêncio da morte reinará. Uma coisa, porém, perdurará: a imagem do gritador. Sim, el griton não sucumbirá...Seu grito é uma página de real fulgor da grande história dos ervais. (Livro 18, p. 224).
O vigor do grito associa-se ao “fulgor da grande história dos ervais”, cujo eco
está vivo na cultura e na História do sul-matogrossense. Vale lembrar que a herança
114
cultural de el griton ressoa instantaneamente na vida do filho da terra. Basta que,
para tanto, se toque uma polca paraguaia, um rasqueado ou um chamamé, que el
griton atravessa a fronteira, cruza os ervais da memória e “arrebenta o peito” em
uma demonstração de identidade fronteiriça. (Livro 18, p. 224).
Como já foi explicado, em muitos livros de Serejo, há textos de extensão, tipologia e temáticas variadas; entretanto, estes dialogam ou mantêm relação fronteiriça entre o ato de lembrar, não só dos fatos históricos e pessoais, mas da lembrança daquilo que, como afirma Barros (2001, p. 13) “A nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima”. Embora a provocação literária de Manoel de Barros fundamente-se em uma proposta centrada na pós-modernidade, em concepções advindas dos efeitos do pós guerras mundiais, sobretudo, o esfacelamento do poeta que agora quer afastar-se dos acontecimentos e perscrutar o lado obscuro da vida, Serejo, em sua simplicidade, mostra-se ousado ao escolher para sua matéria literária história de gente “sem documento”, sem destino certo, sujeito como ferramenta, peça chave braçal que ajudou a desbravar uma parte do Brasil que, por pouco, não foi riscada do mapa.
A matéria de suas narrativas (além dos anônimos, que fizeram a história do povoamento, recuperados pela informação, quase sempre, advinda dos latifundiários), é constituída por descrição de plantas, comportamentos, hábitos, lugares, que ficaram na memória. “Além de tudo anotar”, Serejo possuía conhecimento e profunda presença da imagem na memória, como podemos observar na descrição de uma frutinha denunciadora de chão seco, o juá (Livro 21, p. 290), ou da planta que serve de veneno à saudade, o Cipó ou, ainda, quando ilustra a ambiguidade – ou falso cognato – do vocábulo Reviro, um tipo de sorobô51 do almoço de domingo das grandes famílias, o qual, segundo Serejo (Livro 21, p. 298), “é o verdadeiro alimento da raça primitiva”. Além de “comitiva de várias iguarias”, para o peão da fronteira que arranha o guarani, reviro-cunhã é o que ele mais aprecia quando sai para farrear. Descreve, ainda sugestivamente, a Velha Figueira, o hábito da queimada, o vento típico da fronteira, a performance do pássaro Chupim, “desgraciado” quando desce em uma plantação: “Uma nuvem negra, em forma de ovo invertido, esgalhiçada e disforme, se aproxima e cobre de preto, num segundo, a roça toda” (p. 305). Só mesmo um observador muito refinado, à frente de seu tempo, para transformar a “prática, rústica, perigosa às vezes” para colocar a tropa em Forma (Livro 21, p. 309) em perfeita e sugestiva descrição com
51 Mistura de sobra de alimento.
115
nuances de lirismo da lida campeira ao ponto de personificar ações da tropa, quando “petiço desmoraliza forma de xucro”, fazendo a tropa se envergonhar e ficar furiosa “[...] e...num arranco violento na corda, fura a forma. [...]. E a correria pelo potreiro, aos pinchos e às relinchadas vitoriosas, nos dá a impressão de uma legião de duendes enfurecidos, tentando destruir e arrasar a terra” (p.309). A expressividade entre a ação de descrever a prática e a realidade da prática podem ser notadas nas expressões em grifadas:
Para cavalo gavião, burro refugador ou égua aporreada, que não deixa pegar assim no más, nada há melhor que a forma. Forma é laço ou sovéu estirado, preso num poste da cerca, ou no moirão da mangueira, para nele se encostar a bicharada inquieta e, sujugá-la, convenientemente. [...] Encosta o peito na corda, ergue a cabeça, dilata as ventas e...se põe a olhar alto, com ares de superioridade... Com a continuação, a tropa fica “especial de amestrada”. É só o peão autoritário gritar Forma para que os quadrúpedes se alinharem, numa ligeireza de raio de chuva de verão... [...] Petiço desmoraliza forma de xucros. Potro bagual pisa nele. Ele vira o corpo com medo e bate a bunda na corda. È aí que vem coisa. A tropa se envergonha, fica furiosa, dana a meter pataços, relincha sem parar, bufa e... num arranco violento, fura a forma. E a correria pelo potreiro, aos pinchos e às relinchadas vitoriosas, nos dá a impressão de uma legião de duendes enfurecidos, tentando destruir e arrasar a terra. (Livro 21, p. 309).
A lida do homem campeiro e ervateiro e a natureza em seu entorno compõem a temática central da obra serejiana, assim como a compõem os “loucos de estandarte” e muitos “homens jogados fora”, os quais, não podendo ser mão de obra produtiva nos ervais, o “Tarová”, “aquele que sofre das faculdades mentais, louco, doido, criatura encontradiça em regiões ervateiras, que vive esquivamente” e por precaução se conserva sob vigilância nas ranchadas (Livro 23, p. 78).
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4.2 A MEMÓRIA
O passado, em verdade, está presente, não morrerá nunca. Viverei com ele, com certa angústia, tocando-me o peito, com o que reviverei as lembranças e sentirei a emoção sacudindo as entranhas...(Livro 47, p. 44).
A memória é referência recorrente nas narrativas de Serejo. É comum o autor iniciar um texto fazendo menção à recordação de fatos vivenciados “Ainda bem que me recordo daquelas noites longevas, quando nos reuníamos [...] sempre me recordo com saudade...” (Livro 4, p. 110). Segundo Ricoeur (2012, p. 459) “uma recordação surge ao espírito sob a forma de uma imagem que, espontaneamente, se dá como signo de qualquer coisa diferente, realmente ausente, mas que consideramos como tendo existido no passado”, como podemos notar nesta passagem de Quatro Contos (Livro 4, p. 118): “Hoje vamos relembrá-la, embora longos anos hajam decorridos. Forçaremos a memória e procuraremos recompô-la. O nosso intento é tão somente comprovar que muito de verdade havia em tudo isso.” Nesta ação de recordar a imagem, para Ricoeur, encontram-se reunidos três traços de forma paradoxal: a presença, a ausência, a anterioridade.
Nas narrativas de Serejo, a saudade a que se refere, puxada pela memória,
funciona como um tipo de motivação para desencadear uma narrativa, que é iniciada
a partir de uma lembrança de um lugar, como é o caso do conto “Jasy Taperê”, em
que o autor identifica o local “[...] ali naquele espaço de chão que havia recebido, há
tempos, o nome de Caarapó” (Livro, 23 p. 42) ou “Na cidade mato-grossense de
Campo Grande conheci, certa feita...” (Livro 8, p. 198). Além de localidades, reporta-
se a acontecimentos vivenciados como recurso para desencadear, prosseguir,
finalizar e dar caráter de verdade às narrativas: “Ainda guardo nas recordações
desse período remoto o frio que se me corria pela espinha e a tremura, incontrolável,
que fraquejavam as pernas...” (Livro, 23, p.96).
Para Ricoeur (2012, p. 58) os lugares funcionam como uma espécie de marco
que aguça a lembrança e não nos deixa esquecer. É como se fosse um disparador
para puxar as recordações e desencadear as lembranças. A acepção condiz, em
muito, com a estrutura da narrativa em estudo, uma vez que Serejo a inicia
117
reportando-se a um local e, em seguida, envereda pelo contar, já não localizado.
Partindo do local, a narrativa prossegue, quase sempre, no tempo passado – “E
assim foi” – entrecortada pela recorrência à memória presente na escrita, e cria, com
isso, o espaço da memória que irá localizar-se em lugares onde Serejo esteve,
quando ainda era criança ou em idade jovem, como podemos observar na
introdução de “O velho Pastrana”:
Longos anos já decorridos e eu guardo, ainda bem vivos na retina, esses quadros dramáticos da minha inquieta meninice. Esse poder jovial de retenção vive no confuso emaranhado das células cerebrais de todo homem. Um fato passado em nossa primeira infância nos parece, muitas vezes, recentíssimo, porque é nessa fase da nossa formação que fixamos, com maior precisão, aquilo que nos feriu a sensibilidade vibrante. [...] E como recordar é viver, trazendo-nos à mente aclarada a beleza remota da paisagem, eu vou relembrar, aqui, um pouco de minha infância atribulada e enferma, uma passagem evocativa, das muitas que vivi, e que jamais me abandonou no escoar indefinido do empo; um quadro vivo, real, cujos contornos estiveram sempre iluminados pelo clarão aurifulgentes da lua da saudade (Livro 3, p.62).
Entre os espaços – tempo ocorrido e presente da escrita – confluem os
planos da lembrança e do esquecimento. Para lembrar, Serejo recorre a um lugar
situado no mapa da memória, como se pode observar no trecho acima, ocasião em
que exercita o plano das lembranças para desencadear uma narrativa vivenciada
pela molecada de seu tempo que se reunia “para estabelecer e fixar perigosos
planos de combate” (p. 63) entre as tropas brasileiras e paraguaias formadas por um
exército sugestivamente divisado: “Cinco tampinhas de garrafas de cerveja pregadas
sobre o ombro: coronel; quatro tampinhas, major; três, capitão; duas tampinhas,
tenente.”(p. 64). Um jogo em que “estava em jogo o nome do Brasil” (p. 64), e que o
amor à pátria lhe rendeu um golpe sangrento: “Um traiçoeiro caco de garrafa,
desferido, com estilingue, de alguma moita próxima, atingiu-lhe o pulso direito, bem
próxima à artéria” (p. 67).
Na superficialidade do conto fica a saudosa lembrança das brincadeiras
ocorridas “Naquele aformigado terreno baldio da formosa cidade fronteiriça” (p. 63);
todavia, ao passo que o narrador vai se distanciando do início do fato principal, vai
adentrando em níveis mais profundo de possibilidades de tessitura textual.
118
Dado este recurso, o espaço geográfico funciona como rubrica que autoriza a
autenticidade do ato de lembrar, dando credibilidade ao contexto histórico, onde
aconteceu. O leitor menos avisado aprecia, tão somente, o plano da lembrança
situado no local em que o fato aconteceu. Todavia, além da lembrança de dias que
se foram e da saudade do lugar que já não é mais, há outros planos vinculados, por
exemplo: o povoamento do lugar, a formação da fronteira do Mato Grosso do Sul, a
construção da identidade das personagens envolvidas em um momento sócio-
histórico fundamentado no capitalismo, enviesado pela justificativa de progresso e
de “dias melhores”, de que o texto serejiano é porta voz. O leitor com maior
conhecimento histórico poderá avaliar, ainda, por meio dos depoimentos do
autor/narrador ao longo da narrativa, a barbárie realizada pelo poder dos que
detinham o domínio dos ervais. Como podemos apreciar em “Kurusu paño”:
Pano imitando um lenço; lembra o de Verônica, mulher judia
que, como nos afirma a tradição, limpou o rosto do Senhor, quando este subia ao Calvário. Considerado sagrado porque as suas feições ficaram estampadas nele.
O peão paraguaio dos ervais tem respeito imenso pelo kurusu paño. No mundo perdido dos ervais, amarrado a uma cruz, ele atesta morte violenta ou um cristão que morreu de doença e ali foi sepultado. Sendo três, na mesma cruz, e de tamanho diferentes, pode-se atestar que ali se acham enterrados pai, mãe e filho.
[...] Encontrei, nas minhas andanças com meu pai, por
tenebrosas regiões ervateiras, inúmeros kurusu paño... [...] Triste e doloroso é lembrar que inúmeros dessas cruzes
cravadas no silêncio aterrador do deserto eram frutos da sanha bestial e sanguinária dos ignóbeis comitiveros. Guardo na lembrança muitas delas...” (Livro 23, p. 95-96).
Em primeiro plano de leitura, sobressaem às lembranças do narrador, uma
espécie de saudade “daquele tempo” em que viveu no erval ou, ainda, o contar de
hábitos e costumes do viver fronteiriço. Entretanto, no decorrer da leitura, no
cruzamento das palavras, dos fatos e no conjunto da obra de Serejo,
compreendemos que recordar equivale a uma sensação de impunidade aos que
foram sacrificados “no silêncio aterrador” de um tempo e local em que apenas a voz
do mais forte ressoa. Aparentemente, Serejo quis recordar a sua relação com o
meio, todavia, revelou injustiças cometidas, sobretudo, pela “polícia sem farda,
especializada na perseguição do fugitivo dos ervais. Sua história é tenebrosa. Uma
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mancha negra e odiosa na produção do mate, fato que cristão algum poderá
contestar.” (Livro 23, p. 101).
Lugares, além de puxarem a memória para que o sujeito/narrador possa se
lembrar, sustentam a aparente veracidade da narrativa, uma vez que possuem
existência concreta e podem ser encontrados em qualquer mapa geográfico
(FREITAS, 1985, p. 15), criando efeito de cumplicidade entre narrador e leitor. Mais:
dão guarida ao homem em trânsito, que vai povoando provisoriamente “[...] a vilinha,
composta de meia dúzia de casuchas...” (Livro 23, p.67). Ou ainda, justificam as
ações das personagens, ainda mais quando espaço e tempo formam um conjunto
em que “[...] o aqui e o lá do espaço vivido da percepção e da ação e o antes do
tempo vivido da memória se reencontram enquadrados em um sistema de lugares e
datas do qual é eliminada a referência ao aqui e ao agora absoluto da experiência
viva” (Ricoeur, p. 156), ressignifcando-se em “aqui” e “agora” ficcionalizados, não tão
somente os lugares e tempos datados. Comportam significação mais ampla,
configuradas na totalidade do texto. Assim, o texto se abre para o plano da
conotação em cuja leitura o leitor poderá evocar outros “tempos e locais”.
O lembrar-se do vivido, do tempo passado, da infância e mocidade é fato
comum em boa parte das narrativas de Serejo. Essa experiência é um instrumento
de (re)significação de (re)conhecimento e de (re)criação do contexto lembrado,
bem como de si mesmo, resultando, pois, em uma outra realidade. Num plano
teórico mais amplo, Riedel (1988, p. 24) discute a inclusão da possibilidade, na
leitura de um texto narrativo, de que os acontecimentos a que a voz que conta se
reporta, faça parte do passado dessa voz. Sendo, pois, passado, dá crédito à leitura
ficcional. Com isso, há pacto entre autor e leitor, o qual avaliza a ficcionalidade dos
fatos em se tratando de invenção do que foi, mesmo que o narrador/autor, deixe
evidentes pegadas pessoais sobre o transitar da personagem, como se verifica no
andamento da leitura, da história de Poincaré.
De início, o leitor irá conhecer o sujeito que chegou ao povoado, em que o
narrador estava, e foi aceito na ranchada de Dom Francisco Serejo, pai de Serejo.
Ao processo de ampliação do enredo, que vai sendo tecido linearmente, já que o
narrador não tem interesse em saber do passado, por ora, dá-se a impressão de que
o fato tem muita relação verídica com a vida do autor. Todavia, quando o enredo
começa a desenredar, paulatinamente, o passado vai (re)construindo a personagem.
Esta passa, de trabalhador prudente a exilado de guerra, de bondoso e honesto a
120
sanguinário e cruel. Quando ocorre essa transformação perfomática não há mais
espaço para o vivido mas apenas para o ficcional, embora possa ter ocorrido alguma
relação com as ações vivenciadas em experiências, por Serejo, em sua lida
ervateira. Ocorre, ainda, que o texto é uma manifestação linguística a qual possui
unidade entre as partes: as inserções do “eu”, como recurso de um depoente,
reconfiguram, no conjunto geral das partes que compõem o todo do texto, a história
de mais um andante que transita pela/na fronteira. Com isso, o contrato textual
estabelecido entre narrador e leitor, entre a história pessoal – um chegante na
ranchada do pai de Serejo – e o plano da invenção distancia-se do real e vai
direcionando-se no decorrer do contar para o plano do “possível de acontecer”, do
jogo da verdade inventada que se faz por meio do universo da palavra.
Embora o plano da História respalde as ações das personagens e
posicionamentos do autor, as referências aos locais, quase sempre lugarejos, não
funcionam, tão somente, como espaço geográfico, já que o tempo histórico configura
a ambientação do espaço transformando-o em um espaço situacional, cenário
representativo ou argumentação figurativa que dá crédito ao contar serejiano. Como
podemos notar nas atitudes e comportamentos das personagens justificados pelo
contexto físico em que os fatos ocorrem. Natural, por exemplo, a conduta da
personagem Jabuna, “Uma ovelha das mais puras” (Livro 3, p.45) do rebanho
cristão, um anjo abençoado pelo bondoso padre. Entretanto, “o anjo bom”, em um
determinado momento da vida, encontrou-se com um dos muitos andantes
representados ao longo dos sessenta livros de Serejo. Por um momento,
cavalgaram “a trotito, emparelhados”, conversando como dois caminheiros.
Entretanto, foi só o companheiro explodir “numa debochada gargalhada”, devido ao
fato de o “anjo bom” tirar o chapéu da cabeça, diante de um túmulo à beira da
estrada – “Se tivesse uma vela ia acendê” – que “Os olhos de Jabuca fuzilaram de
ódio. Felizmente, havia deixado sua garrucha de caçar tatu, se não...” (Livro 3, p.
50). Mais natural, ainda, “A vingança do menino”, um mitã-i com sua faquinha de
picar fumo honrou a cruel morte de seu pai (Livro 44, p. 230).
Com isso, há uma intersecção entre tempo histórico e espaço geográfico os
quais, além de marcar cronologia e geografia, adicionam valor literário à produção
de Serejo, uma vez que representam noção de brasilidade tão desejada pela
literatura oitocentista. A noção de nação, de falar do Brasil, de buscar a identidade,
de ter consciência de onde se está, amplamente difundida e almejada pelo projeto
121
nacionalista de autores do Romatismo e que levou Machado, ainda muito jovem, a
formular aporte crítico para tal projeto. Essa peculiaridade dialoga, em parte, com a
produção de Serejo, se considerarmos o enfoque dado pelo autor para a história de
um tempo e local, vista por um nativo que presencia o processo de povoamento com
o qual, também, envolve-se como nativo que vê no chegante a mão de obra
necessária para o desbravamento da região.
Esse envolvimento vai resultar na produção de muitos livros, os quais contêm
significativa e similar característica dos “defeitos e Excelência” a que se refere
Machado, quando critica o projeto literário oitocentista:
Aqui termina esta notícia. Viva imaginação, delicadeza e força de sentimentos, graças de estilos, dotes de observação e análise, ausência às vezes de gosto, carência às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as Excelências da atual literatura brasileira que há dado bastante e tem certíssimo futuro. (MACHADO, 1986, p. 809).
Embora, nem de longe, queiramos comparar a escola literária do Romantismo
ao “ir escrevendo” serejiano, avaliamos que o vigor crítico de Machado em defesa de
uma literatura brasileira produzida por brasileiros com consciência de onde se está,
deixar transparecer, em textos de Serejo, indícios de que os laços maternais com a
literatura de Portugal começam a se desatar, mesmo que seja por um autor
fronteiriço, mas que preconiza, no conjunto de sua obra, a cultura e a história de um
tempo e local.
4.3 PRODUÇÃO DO PRÓPRIO MEIO
Sou um narrador, um prosador
feliz. Muito feliz mesmo. (Livro 49, p. 151).
Como já mencionado, a voz que conta as narrativas serejianas conflui em
uma espécie de partícipe ocorrido, embora narre com mais extensão o ocorrido com
o outro do que consigo mesmo. Inesperadamente, quebra a narrativa de terceira
122
pessoa e, em uma espécie de depoimento, introduz a voz de primeira pessoa. Na
tentativa de ilustrar, citamos um trecho bem peculiar do discurso serejiano:
Entre os homens da vivência ervateira, a conversação possui, geralmente, cunho característico. A fala é produto do próprio meio. Chama a atenção de qualquer um pela originalidade. Nada, nesse ambiente, procedeu da cultura dos livros.
[...]
Bate-papo que chega, muitas vezes, a empolgar aquele que pouco ou nada conhece desse lidar de tanta agressividade e sobressalto. Fomos, ao longo do tempo, anotando essa conversação, esses hábitos, esses costumes, exóticos, bem como ditos, que marcam a luta brava e o nascer de um linguajar que veio da erva [...]. Vejamos.
Dois peões, enquanto tragueiam, vão conversando. Então longe da vigilância, portanto, o traguear é libre. Assim: - No hai por que se tênar miedo. Que uno caraí qualquiere tine derecho de viver su vida sin agajazar molestación (Livro 34, p. 122).
Como se vê, na citação, a voz que conta inicia contextualizando a
ambientação de um ritual típico da “vivência ervateira”; paulatinamente, o narrador
vai fechando a cena e trazendo o foco para a imagem “dois peões [...] conversando”.
(p. 122). Antes disso, em uma declaração, misto de explicação e justificativa, insere
a voz pessoal: “Fomos, ao longo do tempo, anotando essa conversação”. Assim, o
texto vai sendo construído por meio da interposição de vozes, nem sempre,
centradas na ação narrativa, mas que, no conjunto, resultam em sua composição
geral.
Diante desse recurso, uma espécie de adaptação oral para o contrato da
escrita, cria-se um estilo de discurso produto do próprio meio. A aparente ausência
de uniformidade do foco narrativo torna-se original devido à mudança da voz que,
em um processo metalinguístico, diz do hábito e costume advindo da fala do
ervateiro, intercalada pela inserção das personagens e dos recortes de diálogos
entre eles. Instaura-se, assim, a originalidade que não “precedeu da cultura dos
livros”, mas autentificou o discurso do sujeito que conta, impingiu na narrativa a
marca do narrador, (BENJAMIN, 1994, p. 205). As digitais do narrador serejiano
estão na tessitura da recriação do hábito e costume do ervateiro, por meio do plano
da expressão do discurso. O que poderia representar ausência de uniformidade,
ressignifica-se em criação sui generis, já que o narrador consegue demonstrar o
cruzamento de posições de sujeito: a voz que informa o hábito e costume, que conta
e fala. A construção do texto, entremeada por mudança de foco ou inserção de outra
123
voz, reflete a estrutura do hábito do “prosador”. Típico de quem conta história aos
ouvintes, meio ao estilo do “narrador aos seus ouvintes” ou participantes da prosa.
Em outro contexto linguístico, em outro gênero textual, poderia ser avaliado como
ausência de uniformidade; todavia o contexto discursivo externo de onde Serejo
retira os fatos – da fronteira, o oral – e o prosador que diz ser, bonificam o sugestivo
e possível desvio linguístico, ao ponto de integrá-lo ao ambiente daqueles que não
precedem da cultura de livros.
O efeito resulta na exposição daquilo que já aparece na declaração da voz
que comanda a cena: a liberdade era vigiada, um homem tem direito de viver sua
vida ao menos, para prosear. E a liberdade do prosador está no direito da
expressão, sobretudo, quando se põe a contar sobre os comitiveros, tipo de guardas
armados dos ervais, cuja missão era perseguir fugitivo das ranchadas ervateiras,
uma vez que “Contratos vultuosos haviam sido assinados em Buenos Aires” (Livro
23, p. 100) e não se podia pensar em fracasso. No intuito de contar o quanto tais
“policiais” eram “sádicos desumanos, cruéis e sedentos de sangue”, Serejo vai
intercalando à história dos irmãos paraguaios, ordeiros de pouca fala, conformados
com tudo, bons serviçais, portanto, que foram degolados não se sabia por quem,
muitos outros fatos que lhe foram contados por velhos, experimentados e idôneos
ervateiros (Livro 23, p.96).
Depois de contar muita ação de degola, matança de homem, mulher e
criança, além de, inesperadamente, inserir o tradicional depoimento para confirmar
que também passou por aqueles lugares onde os fatos ocorreram, confirma-se mais
um indício de percurso narrativo oral – poderia ser compreendido como ausência de
planejamento de enredo – o narrador lembra-se da história inicial e avisa ao leitor
que irá conclui-la: “E o moço encarnacento, apontado como o degolador dos irmãos
Arce? (p. 105). O desfecho síntese surpreende e reconfirma a fama da fronteira:
“olho por olho, dente por dente”. Mesmo depois de 22 anos, o filho achou os
assassinos do pai e cumpriu a promessa feita à mãe: matou degolados los ermanos
Arce, aqueles que o narrador havia prenunciado serem trabalhadores, mas de uma
esquisitice...
Narrativas como estas representam, com bastante precisão, a performance
oral com o ajustamento para a reprodução escrita. Tanto que o narrador, por vezes,
interpela a si próprio no intuito de dar progressão à narrativa, recurso habitual no
discurso oral. Além de que, a mínima inserção da voz da personagem poderá ser
124
compreendida como “liberdade vigiada” vivida pelos peões ervateiros. Vale lembrar
as inúmeras referências indicativas de fuga dos ervais reveladas por Serejo ao longo
de seus textos, sobretudo, quando narra a ação dos comitiveros. Se havia fuga é por
que se sentiam – ou eram – prisioneiros, não tinham liberdade para ir e vir.
Outro aspecto revelador está nos recuos temporais. Conta o que passou,
aquilo que presenciou, anotou. Entretanto, traz o fato para o presente da escrita,
criando um efeito de presentificação, o qual podemos avaliar melhor, com base em
Benjamin (1994, p. 205) quando discute o desinteresse da narrativa em falar do
“puro em si”, do fato, do ocorrido. Benjamin defende que o fato perpassa a vida do
narrador, “[...] mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele”.
Neste ato, impingem-se na narrativa, as marcas do narrador. Á partir daí, a narrativa
é contada pelo viés do narrador, e já não apenas o fato, mas o discurso criado pelo
narrador.
Esse discurso se constitui da lembrança de um tempo em que a extração da
erva movimentava e dirigia as ações de homens de poder – uns sobre os outros – os
quais controlavam a forma de viver de conviver daqueles que se submetiam às
ordens desse poder. A fronteira é lembrança de um tempo de impunidade, de
ambígua exploração – erva e homem – e o autor/narrador/personagem constituiu-se
pelas relações de poder. Portanto, não levanta voz contra as ações de barbárie, não
se faz mártir de um tempo ou modo de viver. Serejo narra! Narra as lembranças de
uma forma tão complacente que, um leitor mais aguçado, poderá compreender que
o ex-ervateiro é um fingidor e chega “a fingir que é dor, a dor que deveras sente”,
assim como alertou Pessoa.(1972, p.164).
Embora Serejo anuncie recordações pessoais, ao contar, incorpora os fatos
de sua vida como elemento de referencialidade para os demais acontecimentos
contados. Com isso, a inserção de fragmentos de possíveis fatos ocorridos, a
pormenorização, a lembrança do detalhe, do momento, do ano, as referências aos
lugares, criam efeito do real, estabelecem vínculo com a realidade construída. Os
“detalhes” ressignificam uma outra realidade, com fortes vínculos com as
aparências, com o possível de ter ocorrido. O pacto com a verossimilhança avaliza o
caráter verdadeiro, já que verdade é aquilo que se projeta no enredo criado por meio
da construção da linguagem.
Devemos considerar que o ato de contar incide em fazer uso da palavra para
representar o ocorrido, o já realizado, mesmo que seja em um instante posterior.
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Com isso, conta-se não o fato em si, mas o que pode ter ocorrido, uma possibilidade
apreendida do fato pela perspectiva do sujeito que conta. O sujeito é, pois, outro
aspecto considerável, um ser resultante dos diálogos que trava ao longo da vida na
concepção bakhtiniana. Além de não estar isento de julgamentos, o sujeito que
conta enxerga aquilo que quer e pode, já que é dialogicamente constituído pelo
contexto coletivo e individual, como sintetiza Baccega (2007, p. 22), quando
esclarece que a subjetividade nada mais é do que o resultado da polifonia, das
muitas vozes sociais que cada indivíduo “recebe” e tem a condição de “reproduzir”
e/ou reelaborar. Ao exercitar o desejo de se fazer escritor, Serejo nos traz retalhos
dolorosos de histórias com as quais conviveu e por meio das quais foi constituindo
seus vínculos e desvínculos: “Delas me lembrarei, comovidamente, até o dia do
juízo final. [...] Viverão em minha memória, porque fazem parte de minha formação”
(Livro 23, p. 96).
4.4 O OLHAR DE TOCAIA
[...] olhos que jamais se fatigaram em ver o silvestre, o intocável, da realidade vivenciada outrora (Livro 31, 208).
O homem pós-guerras vai se apresentar em um sujeito que, a cada dia,
fragmenta-se, estraçalha-se e se desmemorializa. Sendo, pois, o homem processo
de seu tempo, ao contar, em específico, por meio da palavra ficcional, terá grande
chance de fazer valer as marcas do sujeito de seu tempo. Melhor: se fragmentado,
em relação ao homem clássico, se efêmero, em relação ao conhecimento mais
paulatino, aquele que demorava mais para ser refutado, se “homem abreviado”,
certamente, ao exteriorizar, irá fazer escolhas e combinações reveladoras do
homem que está sendo. Assim, o homem do presente conta fato ocorrido em um
tempo passado como homem que está presente. Com isso, fica o entremeio
passado-presente para que o narrador possa transitar e preencher o campo aberto
por meio da memória traduzida em palavras, não mais o fato, mas a palavra, a qual
se faz do fato.
126
Segundo Leite (1991, p. 6) “Quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que
testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou. Por isso,
narração e ficção praticamente nascem juntas” e, a partir daí, ocorre a criação de
uma representação que, embora porte referências à realidade, poderá abrir espaço
para a leitura interpretativa dessa mesma realidade. Em específico, o narrador
serejiano é hibridado em contador e informante que tudo sabe, e se não sabe,
pergunta – ou pesquisa –, a fim de saber e informar ao ouvinte/leitor, filtra a História
de acontecimentos de um tempo e local, e escolhe o que pode ver, saber, mexer, o
que quer “involuntariamente” ver, o que consegue saber, recordar, lembrar...Por
outro prisma, refuta outras histórias, outras concepções... Acontece que, às vezes, a
memória falha. Fato que pode transparecer no plano da escrita, como é o caso, da
lembrança viva dos pioneiros – exploradores e explorados, caraí e che patron –. Das
matas, rios, plantas e paisagem exuberante, que não se modificaram com o passar
do tempo, haja vista que a recordação ficou estacionada em um tempo definido e
contador não voltou para reatar os tempos, não voltou para averiguar se o preço da
exploração, pago com o sofrimento humano e com a devastação dos ervais, trouxe
benefício, além do enriquecimento de poucos com grande concentração de renda.
Não voltou porque foi expulso de seu próprio reino, já que “lá” estavam as possíveis
melhores condições de vida um pouco mais digna...E fica, nos vãos das partes, com
base em Leite (1991) o mascaramento da incógnita que o leitor não sabe ler: por
que Serejo optou pelo chegante que veio “fundar” a fronteira? Por que não teve
história, sobretudo, histórias orais, para contar sobre os que aqui já estavam, os
indígenas, no caso? Por que consegue “glorificar” o homem branco arrojado,
destemido, aventureiro, gaúcho, correntino, paraguaio... e dá pouca vazão ao
nativo? Reconhece-se bugre pela força da incorporação de hábitos e costumes, mas
não índio.
Em Pequenas anotações sobre a história da erva (Livro 34, p.85-105), Serejo
conta as dificuldades encontradas pelo mentor da companhia Matte Larangeira na
implantação da empresa Larangeira. Na visão do nativo e autor, “[...] teve que se
empenhar em duas refregas contra os índios habitantes da região [...]”. Diz, ainda,
que estes silvícolas, verdadeiros donos da terra, já faziam uso do caá. Em outro
subtítulo, “Os bugres”, menciona a animação de Laranjeira com a descoberta de
novos ervais e transcreve – sem indicar fonte – que o capitalista resolveu ensinar
aos ‘bugres mansos e de bom trabalho a lidarem com erva’. O registro de como
127
achar os bugres e como fez para selecionar os mais aptos, abre um vão imenso na
história da formação do Estado - não muito diferente da história de todo território em
que o nativo já estava, quando da colonização, como se pode notar no trecho
abaixo:
Não foi difícil ao bugre assimilar os ensinamentos [...] Sempre
bem mandados, procuravam executar as ordens com perfeição, porém, num vagaroso e enervante ritmo, atributo próprio da raça bugrina.
Uma coisa, entretanto, espantava a todos: o quanto comiam, por dia, esses bugres, mesmo os menores. Vem daí certamente, o velho ditado fronteiriço: preferível alimentar cinqüenta cavalos, com pindó e alfafa, do que dez bugres com feijão, arroz e carne. Não há muito exagero, não! (Livro 34, p. 89-90).
Conclui a passagem, em que discute a importância da mão de obra nos
ervais, em específico, informando que muitos construtores de estrada e ervateiros
renegaram o peão bugre, pelo rombo que causavam na provisteria. Certamente, o
capitalismo lhe turvou o olhar para a compreensão das diferenças culturais. Serejo
não especifica os sacrifícios elevando, com isso, os vão, os interstícios, abrindo a
obra para outras leituras, uma das quais podemos estender às atitudes e às ações
de homens que fizeram a história à custa de trabalho exaustivo, em prol da
construção de estradas, ranchadas... Em detrimento do progresso, vidas foram
silenciadas, etnias foram massacradas, pejorativamente marcadas para sempre,
“Porque bugre que não rouba é bugre doente. [...] Pra bugre soltar uns grunhidos,
imitando choro, é preciso que apenhe de facão, da polícia. Gente dura de se
entender, essa” (Livro 34, p.90).
Não em defesa, mas em análise do posicionamento de um autor nativo da
região, de um tempo em que a mão de obra produtiva era a peça chave, avaliamos
que a compreensão de Serejo, em relação ao indígena, condiz com a formação
histórica brasileira do colonizado; não poderia ser diferente. O autor é filho do local e
aprendeu a conviver de forma “natural” com a concepção de que o indígena não
possui aptidão para o serviço braçal. Nessas mínimas e possíveis frestas, que
sinalizam hábitos e costumes de uma época da qual o autor faz parte, e, à qual, pelo
menos, não se opõe, inferimos que, embora seja um homem situado no contexto
sócio-histórico, principia um olhar um pouco à frente de seu tempo, em se tratando
do exercício da escrita de textos ficcionais. Seus “capões” literários, rareados em
128
seguida, estão nas singelas e vigorosas descrições de lugares, coisas, objetos
típicos da fronteira, como já mencionamos. O fato de olhar para o local, para si
próprio é uma forma de autoconhecimento, de consciência de sua - do nativo -
participação na história que vem sendo construída.
O leitor de Serejo poderá exercitar o tradicional “caçador de indícios”, como
podemos perceber nas sugestivas informações contidas na monografia/livro já
referida. Em As engomadas (provando o percurso do narrar com base na
informação: “Devo estas informações aos meus valorosos colaboradores [...]” (Livro
34, p. 102) prossegue afirmando que, em 1912, a erva estava com bom preço. Por
isso, “os conchavadores, muitos deles de arrogância assustadora” saíram em busca
de mão de obra”. Até aí, seu texto não diverge muito do discurso do historiador.
Entretanto, desvia o olhar para as saias engomadas das índias e das paraguaias,
que, segundo um informante considerado enciclopédico “chegavam a formar rodas,
tal e qual asas de perus quando estão querendo galar”. O luxo das “inúmeras e
vistosas rendas” em contraste com os “pés no chão, representavam coisinha de
nada” (Livro 34, p. 103) e enfeitiçavam muitos caraí. Mais uma vez, realidade
histórica e figuração estética confluem pelo viés do desejo que tinha de escrever, ir
escrevendo... O narrador reconta que não se conchavava peão que tinha, por
companheira, mulher engomada, já que era “elemento” inútil nas ranchadas, não
serviam nem para a cozinha, pois eram chinas para cercanias de poblaciones. E
reconfirma, “não serviam mesmo!”
No conjunto das narrativas estudadas, encontramos textos em que o narrador
lança mão, naturalmente, da incorporação de “um acontecimento, de uma situação,
de uma personagem” histórica ao contexto interno da obra, “fazendo dela uma
realidade estética”, como sugere Freitas (1986, p. 09). Tanto que a fronteira, espaço
físico, se multifaceta e se integra em muitas outras fronteiras. Por isso, defendemos,
com base no trabalho da estudiosa (p. 113), que os objetivos que levaram Serejo a
buscar matéria para sua ficção em um contexto atípico aos padrões e gosto literários
da época, diz da relação direta estabelecida, ancestralmente, com o local de
fronteira. Um espaço anônimo, vago, recém confirmado em demarcação posterior à
Guerra e se transfigura em um transitar intenso no conjunto da obra em estudo,
como já anunciamos.
O pioneirismo de Serejo está em falar, justamente, da vida e homem da
fronteira fazendo uso de uma estrutura linguística proveniente da linguagem oral,
129
perceptível, sobretudo, quando o narrador vai intercalando informações,
descrevendo personagens, paisagens e narrando fatos intercalados a sugestivas
descrições da maneira de viver e conviver do fronteiriço. Muito além das histórias
estão as nuances de observação com que registrou, na memória, aspectos que,
para a época, não seriam objeto de matéria de escrita – ou de poesia, no dizer de
Manoel de Barros. Em Palanques da terra nativa (Livro 31) lançado em 1983, Serejo
dedica-se a descrever o “Chuchamin”, “ato de cutucar os bois com um ferrão...”(p.
2004). Descreve, também, como funciona o “Fogão nativo” que esquentou sua
meninice, assim como a gaita chorona; diz, ainda, do “Taá”, espírito bom que orienta
peão ervateiro. Em “Lírio-do-campo”, texto do Livro 31, demonstra exaustivo esforço
de pesquisa sobre todos os tipos de lírios existentes: “Quando a gente consulta os
livros dos mestres” (p. 207) e faz tudo isso para dizer de sua “agonia de desespero”
devido a dor causada pela constatação de que os lírios não existem mais como
antes, já que o “patear das tropilhas, depois a queimada de todos os anos e, por fim,
as máquinas da civilização, indiferentes e barulhentas,...” destruíram a natureza (p.
211). Neste singelo livro, em que há poucas histórias, sobressaem minuciosas
descrições por meio das quais o autor fronteiriço demonstra o refinado olhar para
aspectos mínimos, visão micro, como bem declara Serejo: “olhos que jamais se
fatigaram em ver o silvestre, o intocável, da realidade vivenciada outrora” (Livro 31,
208). O próprio Serejo reconhece, em plural de modéstia: “Somos observadores,
temos vivido de observações, fomos sempre reparando e anotando”(Livro 31, p.
209).
4.5. AS DIGITAIS SEREJIANAS: ENTRE O VIVER E O CONTAR
Por que não mencionar seu nome, se verdadeiro é o relato? Por que ocultar a personagem? Se ainda vivo, residindo em algum pronto do território de Misiones, seu torrão natal, e tomando conhecimento dos fatos, não se negará em confirmá-los, tenho certeza. (Livro 30, p. 129).
A metáfora de Benjamin (1994, p. 204) referente à ação de narrar com a ação
do oleiro que impinge no vaso suas digitais, pode ser uma boa imagem para
representarmos a escrita de Serejo. Suas digitais são reconhecidas na
personificação da fronteira como tributo que referenda as ações das personagens.
130
Benjamin (p. 205) enfatiza, ainda, que “Os narradores gostam de começar sua
história com uma inscrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos
[...], a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica”. É
o caso de Bode expiatório52, da obra O tereré que me inspira (Livro 35). Aqui o
narrador/autor/Serejo recupera, pela memória narrativa, um fato vivido por ele em
1935.
Neste texto o autor precisa datas – “27 de novembro de 1935”, “18 de outubro
de 1932”, “12 de novembro de 1935” – nomes – “Getúlio Vargas”, “General João
Gomes Ribeiro”, “Luis Carlos Prestes”, “Hélio Serejo” – lugares – “Rio de Janeiro”,
“Ponta Porã”, “Praia Vermelha”, “Ilha da das Flores” –, em um vai e vem de
recorrências anacrônicas referenciadas em uma história particular, embora exista
referência, de fato, ao ocorrido, já que a Intentona – tentativa desequilibrada
realmente existiu; todavia, a narração desses fatos, de forma relativamente
desarticulada, revelam um narrador perdido em suas lembranças, tanto que
interpenetram mundo vivido e reinventado pela ótica da vivência experimentada,
característica recorrente em literaturas de fronteira.
A estrutura narrativa de Bode expiatório também revela o empenho do
narrador/Serejo/autor em contar sua história meio enigmática em relação à
identificação da personagem. Neste texto, fica bem evidente a confluência daquelas
fronteiras já levantadas, as quais dizem da forma dual: contar e informar. Sobressai,
também, o entrecruzamento da inserção do “eu” na narrativa que vinha sendo
conduzida em terceira pessoa, permeando informação com reflexão.
O narrador, emergido da vivência do autor, revela-se na voz queixosa,
injustiçada, sensivelmente amargura “Triste, infeliz e odiosa concepção!”. Seus
questionamentos são vagos, ecoam enfraquecidos pelo texto, embora revelem o
fortalecimento de uma ideologia forjada pela prisão de “uma legião de pobres
inocentes que procuravam uma profissão, uma carreira digna, comendo, não
raramente, o pão que o diabo amassou com os pés” (Livro 35, p.184):
Provavelmente, 5% saberiam responder o que era o comunismo, onde ficava a Rússia, como poderiam vender o Brasil e, finalmente, quem era Luís Carlos Prestes, o chamado Cavaleiro da esperança. Por que, então, comunistas, aqueles pobres soldados, cabos e
52 Em Um destino que marcou (Livro 26, p. 284-293), Serejo recupera trechos e informações contidas em Bode expiatório, ao narrar, intercalando reflexões, a demonstração de amizade de um amigo de quando esteve preso na ilha das Flores no Distrito Federal.
131
sargentos, que sofreram toda sorte de humilhação pelos maus-tratos recebidos? (Livro 35, p.184).
O narrador assume a dor coletiva, não individualiza a sua experiência, fala em
nome daqueles “pobres soldados, cabos e sargentos”, solidariza-se com eles, para,
posteriormente, narrar a experiência “do cabo” n. 3.488, em um ziguezague não-
linear das ações vividas que se confundem entre o “passado do relato e o presente
do discurso” (LEITE, 1991, p. 80) “Agora a ilha, a vassoura sempre em ação, [...]”. E
os questionamentos vagos aparecem, aparentemente postiços, em parágrafos
repetidos “O cabo varredor e auxiliar de cozinha, [...] foi, como tantos outros, o bode
expiatório. Pagou pelo que não fez...sofreu o que nunca deveria ter sofrido” (Livro
35, p. 184).
Ao final, há o agravante da voz do narrador de terceira pessoa que procura
demonstrar o quão exemplar era a conduta, “do moço de força de vontade
inquebrantável”, “modelo de disciplina”, “com adentrado amor cristão”, “dia e noite
abraçado aos seus cadernos” que recebeu a “humilhante esmola do prejudicial pela
fraqueza dos homens [...] (Livro 35, p. 185). No último parágrafo, o narrador une-se
à causa do moço “Oro por eles, sempre, genuflexo, pedindo ao senhor que revele
seus erros e principalmente o grande mal que causaram ao moço fronteiriço [...]”
(p.185).
Podemos inferir que em Bode expiatório há a presença marcante dos lados:
justiça-injustiça, passado-presente, mágoa-perdão, realização- decepção,
alternativo-integrado, vivido-sonhado... como se fossem dois planos de narrativas:
uma história que estava desenhada, pretendida, esperada e outro rumo da história,
cuja interferência se deu por questões meramente históricas de cunho sócio político.
Com isso, o narrador recria, em partes, a história que poderia ter sido, bem como a
que passou a ser, como uma possibilidade de atar as pontas da vida. Bode
expiatório promove na narrativa de Serejo o efeito discutido por Benjamin (1994, p.
212): “O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade
quando percebe a unidade de toda a sua vida...na corrente vital de seu passado,
resumida na reminiscência”.
Na obra de Serejo instaura-se uma voz que conta, abrindo trilha com foice ou
facão, porque retrata o homem que não está para personagem de textos literários,
não há herói, muito menos heroínas. Há pessoas que “para sempre foram
132
dispersadas de sua terra natal” e adentram fronteira, abrindo picadas, enfrentando
de forma - aparentemente - natural dificuldades de toda ordem. O bom senso do
escritor está em não se escandalizar diante dos fatos de morte, injustiça, descaso
humano, exploração e abandono social. Entretanto, sua literatura permite a
investigação de atos e fatos que não estão nos compêndios oficiais, instiga o leitor a
indagar, a ter o desejo de averiguação de sua própria história, caso seja um
brasileiro ou sul-matogrossense.
Souza assim diz da forma com que seu conterrâneo constrói o estilo de sua
escrita:
Serejo não “costura pelo avesso”, para usar uma expressão de Clarice Lispector, indicadora de como em sua obra ela tece a contradição. Em Serejo, a costura é linear e “por fora”,ou seja, sem contradições, como “faca cega” ou a literatura de dois gumes de que fala, Antonio Cândido sobre as literaturas consentidas, isto é, as que desempenham papel saliente no processo de imposição cultural. Mas, curiosamente, ao fazer isso é que o autor expõe as contradições, as quais só se revelam, todavia, ao gume afiado da crítica social. É isso que faz dele um clássico. (SOUZA, 2009, p. 130).53
As considerações avalizam a obra de Serejo à margem do fazer literário, já
que “Apesar dos esforços poéticos, não vai além da rima pobre e do nacionalismo
ufanista” (SOUZA, 2009). Disso Serejo tinha consciência, embora não deixasse de
escrever, além de estudar os autores do Romantismo ao ponto de resenhar “Vida e
obra” de alguns. Entretanto, uma escola literária se constitui por meio do homem que
vive e pensa aquele tempo ou que rompe com o vigente e antecipa um novo fazer. A
concepção de literatura, como “arte da palavra” compreendida como “[...] mediações
estéticas presentes nas grandes tramas que surpreendem [...]”, pode não ocorrer no
fazer serejiano. Por isso, segundo Arguelho, seus contos acabam “[...] caindo mais
no domínio da crônica memorialística, o que confere à sua palavra um caráter mais
documental do que literário.” Entretanto, a pesquisadora abre fenda para estudo que
vai além dos aspectos estéticos fundamentados na acepção literal de literatura. A
arte do texto de Serejo está na apropriação da linguagem como mosaico em que
transitam vozes de sujeitos dialógicos, constituídos pelas circunstâncias discursivas. 53 SOUZA, A. A. A. de. O balaio do bugre Serejo: história, memória e linguagem. UNESP – FCLAs – CEDAP, v. 5, n.2, p. 114-132- dez. 2009 ISSN – 1808–1967. https://www.google.com.br/#q=ana+arguellho+helio+serejo. Acessado em 20 de março de 2013.
133
O desafio de estudar a obra serejiana reside em desvendar o que está no (in)visível,
aquilo que o discurso camufla ao insistir inserir o outro pela própria voz – do autor –
“que sabe tudo”, como já ilustramos em várias passagens deste estudo.
Para Souza (2007, p. 118): “[...] os discursos dos colonizados se constroem
no contexto dos discursos dos colonizadores e vice versa, que por sua vez,
constituem as condições de existência do texto – de sua escritura tanto na sua
produção quanto na sua recepção”. Ainda exaurindo a metáfora avaliamos, com
base em Bhabha (2003, p. 136), que a “[...] questão da representação do colonizado
nas literaturas coloniais e pós coloniais precisa ser vista no contexto de um conceito
de literatura como prática ou processo discursivo e não meramente mimético”.
Provocação e desafio a que nos lançamos, sobretudo, quando Serejo narra pelo viés
de seu ponto de vista, colocando palavras na boca de suas personagens ou tirando-
lhes a autonomia da voz, quando fala por elas. Esse emudecimento vai ressoar bem
mais do que se fosse dada voz, autonomia e iniciativa aos sujeitos dos ervais.
El Viejito Poincaré (Livro 30, p.103) o narrador de terceira pessoa conduz a
apresentação do local de origem da personagem pela voz do “disse-me-disse”:
“Dizia a todos que viera em uma comitiva no bojo de uma carreta paraguaia”. Em
seguida, a voz de terceira pessoa dissipa-se, e abre espaço para um narrador-
reflexivo, um defensor da nômade personagem. José Aleixo ao prefaciar Palanques
da terra nativa, livro 31, avaliza: “Hélio Serejo, porque a sua voz é a voz do Brasil
esquecido” (Livro 31, p. 176). Um Brasil onde um Estado (Mato Grosso) começa a
ser formado pela força da mão de obra de sujeitos “sem lenço e sem documento”,
como o Poincaré e tem na voz do narrador o visto para seguir em frente. Com isso,
Serejo se coloca como porta-voz de um “Brasil esquecido” e sai em defesa “de
personas” que “perderam”, momentaneamente, a identidade, pois “A pobreza, o
subdesenvolvimento, a falta de oportunidade podem fazer as pessoas a migrar, o
que causa o espalhamento, a dispersão” (HALL, 2003, p. 28).
Com essa declaração, inicia-se a preparação para o enigma da trama ou
antecipação do drama vivido pela personagem. O narrador começa a antecipar as
suspeitas e faz isso por meio da indagação – espaço aberto, portanto, para o leitor
interpretar, posicionar-se, já que, mais adiante, este poderá recuperar seu
posicionamento ao conhecer a identidade do chegante que não tinha documento de
identificação, mas cuja história vai sendo revelada por meio de seus atos, ações,
pela sua relação trabalhista.
134
O fato de se produzir uma personagem inicialmente de memória fraturada, um
homem “ximbo”54, e fazê-lo aceito pela realidade de linguagem, poderá ser
compreendida como os questionamentos levantados por Achugar (2006, p. 317)
referentes aos vínculos e (des)vínculos entre o eu e o outro. Questionamos: não
será Hélio Serejo o “eu” vendo-se no “outro”, ou o “outro” sendo o próprio “que veio
de longe, como vemos na seguinte passagem: “Os ventos do destino – maus e bons
levaram-me a pagos distantes” (Livro 23, p. 17).
Depois de revelar a identidade da personagem, o narrador trata de inseri-la ao
mundo dos ervais, em seguida “[...] Poincaré veio a conhecer meu pai [...]” e “Uma
semana depois – isto em 1936 – três cavaleiros partiam de Ponta Porá” (Livro 30, p.
103) – Serejo, seu pai e Poincaré. A narrativa prossegue em terceira pessoa, e a voz
que narra o fato passado, vivido por Serejo, já não é mais a voz do jovem filho do
Chico Serejo, todavia, cá está a recuperação da experiência, vivida por meio da
memória. Para Ricoeur (2002, p.76) “A narrativa de ficção é quase histórica, na
medida em que os acontecimentos irreais que ela relata são fatos passados para a
voz narrativa que se dirige ao leitor”. O questionamento da voz que apresenta a
personagem, procura abonar o passado e dar crédito a favor da “bravura”, da
utilidade que o braço forte do homem físico de que o erval precisava para fazer
progresso capital.
A história de Poincaré vai sendo montada pela relação afetiva com que o
narrador-personagem a vivenciou durante o tempo em que conviveram. Elpídio Reis,
prefaciador da obra referendada, considera que “Seu Viejito Poincaré” para nós,
fronteiriços, nada mais é do que o retrato de tantos outros amigos paraguaios com
quem convivemos irmanados na mais doce amizade” (Livro 30, p. 101).
Para estender a relação, misto de compaixão e amizade, entre as
personagens, devemos considerar o contexto histórico em que ocorreu a Guerra e
as consequências pós guerra. Na fronteira Brasil-Paraguai do sul do Mato Grosso do
Sul, não se propagou animosidade entre os habitantes, entre os poucos habitantes
da fronteira. Para Tolentino (1986, p. 95): “A ocupação paraguaia trouxe ao solo do
sul de Mato Grosso completa devastação e vazio populacional dos raros núcleos
existentes na época. Foi, portanto, um retrocesso na lenta marcha da ocupação
dessa região”.
54 Terminologia usada pelos fronteiriços para designar um sujeito sem documentação, sem família, sem origem.
135
Serejo reafirma essa irmandade no conjunto de sua obra ao resgatar,
constantemente, personagens que saíram do Paraguai “Eram todos de
nacionalidade paraguaia, inclusive “Caraícho, meu parceiro no jogo de “bolita”, e
companheiro de soltar “pandorga” ou “Na história da erva, sempre, existirá um lugar
para os Balbuenas, esses extraordinários irmãos paraguaios, exemplos de
perseverança, decência, cavalheirismo e amor ao trabalho” (Livro 31, 58).
Ao longo da narrativa, Serejo vai dando competência performática ao
Poincaré ao ponto de transformá-lo em um faz-tudo-e-mais-um-pouco da ranchada:
“Um homem que o dia todo, não parava. Era um azougue. Fazia de tudo, sempre
lesto, divertido, atencioso, animadíssimo: Poincaré” (p.106).
Mas “A desgraça do Poincaré foi essa traiçoeira maleita...”.
O desfecho da história – aguardado pelo leitor – revela-se pela voz do
condutor dos fatos vividos pela personagem. Se, no início da narrativa, tinha-se a
ilusão de que Serejo estava contando um fato realmente vivido por ele e seu pai, no
andar da narrativa, pode-se se inferir que já não se trata tão somente de ocorrência
datada, factual, uma vez que a história da personagem foi incorporada pela relação
que o narrador estabeleceu com o contexto histórico-afetivo da época em que os
fatos foram produzidos, à custa de linguagem. Para Freitas (1986, 13) “Não se pode
conhecer o que já foi, através de documento, senão solicitando da imaginação os
seus recursos topológicos. Mediante esses recursos, o historiador conhece
reconstruindo, mas sua reconstrução é uma figuração”. Essa figuração resulta no
que aponta Freitas (p.13) ao dizer que quando um escritor se volta para o passado
motivado pela memória “[...] ele vai visar a exprimir desse passado aquilo que ainda
não foi dito, aquilo que dele está reprimido ou latente, para assim explorá-lo em
todas as suas virtualidades e prolongá-las”. Essa relação pode ser perceptível
quando Serejo reconta a dramática história que a personagem confidenciou ao seu
pai na época em que viviam nos ervais. Mais uma vez, sobressai uma voz de
clemência em defesa do homem sofrido, daquele cuja identidade foi esquecida,
como é o caso do teniente-secundo, o próprio Poincaré:
A longa conversa foi amistosa, porém franca. Era necessário [...] Poincaré, humildemente, contou tudo [...] efetivamente tinha o posto de teniente-secundo, num regimento revoltoso, organizado às pressas, para, numa ação rápida derrubar o governo. [...] Contou que, com o posto que tinha, comandou tropas, aprisionou, surrou,
136
feriu e matou centenas de civis e militares, fiéis ao execrando governo que dirigia os destinos do Paraguai. [...] Tendo por lema na guerra como na guerra, nunca teve complacência. O que queriam era vencer, esmagar para sempre o partido dominante. (p.109).
Com isso, a conduta da personagem se justifica pelas circunstâncias
históricas do acontecimento: “E as ordens dos superiores eram severíssimas: atacar
sem piedade, destruir o que representasse estorvo e...matar. Foi o que ele fez,
cumprindo ordens”. Se histórico ou ficctício não é colocado em discussão. Após
revelar a sua identidade “teniente secundo de caballeria, a data e...Asunción del
Paraguay (p.109), a mesma voz que havia “esquentado” a identidade de Viejito ao
se revelar quem era, começa a desconstruir conceitos que, até então, foram
desconsiderados: “El Viejito” um desertor das fileiras do Exército paraguaio? Ou, um
fugitivo da última revolução de tanta ferocidade e sangue? O vão identitário da
personagem começa a ser preenchido e o narrador receptivo, muda de opinião
“Tinha responsabilidade – está se referindo ao pai Serejo que abrigou o viajante sem
saber sua procedência – porque, afinal de contas, estava abrigando em sua
ranchada um desconhecido. (p. 110). Após contar sua história, a personagem se
afasta do convívio dos demais e vai ter como único companheiro o bugre Likaua, o
qual confessa a Dom Serejo que o companheiro “ta ficando médio loco”. Realmente,
Viejito enlouquece e, finalmente, passa de “contador de história, o jovial, o
eternamente bem humorado, para um frangalho humano, imagem dolorosa de uma
revolução hediondamente sangrenta, enfim, um psicopata, provavelmente,
irrecuperável...” (p. 111).
Entregue ao exército paraguaio, recebe a sentença de fuzilamento por ter sido
“[...] um assassino execrável, uma besta-fera, cujo maquiavelismo aterrorizava a
todos” (p. 113). Embora sua identidade, “um tipo hediondo”, seja revelada, a
narrativa se encerra homenageando a personagem, a qual emprestará o nome à
ranchada “Rancho Poincaré” devido ao “preito de gratidão. Assim, a narrativa
serejiana traz a luz do presente um tempo histórico em que a fronteira Brasil –
Paraguai estava sendo constituída por chegante, em específico, por um sujeito
procurado pela polícia do Paraguai devido aos crimes cometidos em seu país.
Prática muito comum na história da humanidade em se tratando de recomeçar a vida
em outro lugar.
137
A interface entre “conhecer” o vivido – acontecimento individual – e a
transformação da vivência em experiência que se materializa por meio da narrativa,
pode ser reconhecida no texto de Serejo, quando o narrador adianta ações, suprime
partes, conduz seu escrito de tal forma que o leitor aceite o “drama” vivido pelo
velhinho.
A fronteira entre o vivido e o contado configura-se na atuação dupla do
narrador que conta “seus fatos” – personagem, portanto: “Fiquei em Guairá, aos
cuidados do Dr. Batista, único médico da localidade, tratando de um berne
arruinado” (p.113) e sem protocolo retoma a narrativa em terceira pessoa, contando
o que o pai viu, falou e concluiu na viagem que fez à Vila Encarnación, embora o
narrador não estivesse presente esta viagem realizada por seu pai para saber
notícias do ex-Poincaré, agora louco. A estrutura narrativa descrita em El Viejito
Poincaré está presente, em boa parte das narrativas, bem como a posição de
narrador complacente, espécie de guia condutor do chegante.
Ao contar o bárbaro crime que “[...] denegriu Mato Grosso, como também
enxovalhou a própria nação” (Livro 26, p. 268), o narrador estrutura a narrativa, Satu
(Livro 26, p. 265-275), usando os mesmos recursos de enredo já descrito em El
Viejieto Poincaré. O narrador, misto de contador com função de quem registra os
fatos em uma audiência, recepciona o chegante: “Estamos em abril de 1932. Ao cair
da tarde, escoltado ...chega a Ponta Porã o barbaquazeiro ...” e para contar o
assassinato do pobre moço, amigo de crianças, prestativo, com aptidão para várias
atividades braçais – tal qual Poincaré – vai intercalando fragmentos de acertos de
conta entre assassinos, promesa a cumplir feita aos pés de La Virge de Los
Milagros (Livro 26. P. 275).
Em defesa da injustiça sofrida pela personagem Satu, Serejo surpreende ao
depor que o crime na “fronteira abandonada” propagou livremente, sobretudo, nos
trabalhados ervateiros, local em que o “[...] mando e a lei, inexorável, a sanguinária
comblein e o teyu ruguái, terrível chicote feito com o rabo de lagardo-papo-amarelo”
(Livro 26, p. 269).
Abre uma espécie de jurisprudência para os assassinatos se justificarem.
Nem mesmo a personagem “eu”, o guri Serejo, aquele que ao completar catorze
anos ganhou um petiçinho de seu pai, o Guavira, deixou de sentir o gosto da
vingança do “monstro de pala” que lhe derrubou de seu petiço, ocasionando um
“tombo de afrouxar os intestinos”, em atitude de covardia. Mas, na fronteira o
138
castigo, quase sempre, vem a galope e o espetáculo contínuo do acerto de contas
está incorporado aos hábitos e costumes dos viventes da região.
Em outra ocasião, “o rapagote de dezesseis anos, que há bastante tempo já
convivia com os heróis anônimos e que sofria também o sofrimento de cada um,”
(Livro 30, p. 146), tentou defender um velho coitado pedindo ao desalmado ervateiro
que não deixasse o velho amarrado. Recebeu um não: “– O que você sabe das
coisas, porcaria de menino fedido?” (p. 146), referindo-se ao cheiro do enxofre que
Serejo usava para tratar de uma sarna brava. O barbaquazeiro recebeu violentos
chicotaços, mas... “Muitos anos se passaram”... e o destino, segundo o narrador, é
muito caprichoso: o ervateiro monstro foi assassinado pelo neto do barbaquazeiro
que dormira amarrado e “tivera o corpo lanhado de chicotaços pelo hediondo crime
de haver se apossado de uma garrafa de pinga especial” (Livro 30, p. 146).
Para Benjamin (1994, p. 221) “O narrador é a figura na qual o justo se
encontra consigo mesmo”, e no caso de Serejo, que há muito vem sendo discutido,
o autor/narrador/personagem proporciona o encontro das alteridades que passaram
a constituir a identidade do sul-matogrossense – que Serejo também é – em uma
dinâmica bem mais ampla do que o binarismo, brasileiro-paraguaio,
branco/indígena, erval/cidade, uma vez que “a hibridização não é metáfora, tão
somente, dos encontros, fusões ou da mestiçagem cultural, estética ou política. É,
de forma crítica, uma bricolagem movediça dos múltiplos mundos culturais” (GADEA,
2007, p. 45). Múltiplos que se aglutinam - ou não – na formação processual e
contínua de identidade que se revela nas relações estabelecidas pelas personagens
resgatadas pelo narrador serejiano. Tanto que o próprio narrador reconhece-se um
sujeito multifacetado, em processo contínuo de formação: “Sou um pouco de cada
um. Não poderia ser diferente. Sou produto desse meio bravio. Na violência
inopinada. Na quentura do sangue. Na mesclagem que carrego comigo, como se
fosse a minha própria sombra” (Livro 30, p. 144).
Assim, o nativo da fronteira, o jovem que se viu obrigado a retornar à terra
natal e enfrentar os ervais, produziu, ao longo de 60 livros, uma literatura por meio
de possíveis “cochilos, falhas e os pequenos equívocos” (Livro 33, p. 305), bem mais
ampla que a representação binária de sujeitos que chegaram e foram recepcionados
pelos sujeitos que já estavam no sul do Mato Grosso do Sul. Serejo avança “além”
concepção dual iluminista. Embora, o contexto central de sua obra esteja
perpassado pela tradicional relação de poder entre colonizado e colonizador,
139
particulariza enfoque “sociológico de uma região e de uma época” (Livro 31, p. 176),
muito peculiar, sobretudo, nas narrativas em que o processo contínuo das relações
pessoais vai desenhando o traçado da história do sujeito em construção constante.
Em se tratando, dos Estudos Culturais é a maneira mais compreensível de se
abordar a complexidade do viver fronteiriço, e lidar com a identidade, com os traços
culturais e históricos de um tempo, povo e lugar, entrelaçados com a memória de um
filho da terra que um dia teve de partir, mas não deixou de honrar uma possibilidade
da história imaginada pelo “eu” do fronteiriço que se faz escritor.
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS Por isso, quando um andante
Se faz chegada, Avante! Já vem o aperto de mão.
Se chega com o sol bem alto, O fronteiriço num salto
Oferece-lhe o tereré.
Mistura junto da erva Um jujo do mato, forte!
[...]
[...] Terra de guasca valente, Mistura de muita gente.
Bertolucci, Lora. “Terra fronteiriça”. In: Eu, e o mundo meu.1984.
Recuperando o desejo geral deste estudo: como “[...] a imensa fronteira
abandonada” (Livro 23, p. 93) está representada pelo contar do homem local que se
integra e multifaceta em autor/narrador/personagem, avaliamos indícios de que
Serejo tenha resenhado, no conjunto de sua obra, com mais incidência, as relações
de força, mando e comando de um estado de poder exercido pela Companhia Matte
Larangeira dentro do próprio Estado do, então, Mato Grosso. Essas relações, pelo
olhar do fronteiriço, recuado no tempo e local, fortalecem o convívio entre os que
estavam e os que “foram chegando”, os quais passam a viver dominados pela força
do trabalho braçal.
Os que vieram e se “converteram” em “homens de aço” fizeram da pretensão
de dias melhores, do “além”, tão discutido por Bhabha, um “espaço de intervenção
no aqui e no agora”. A atitude de reconverter a expectativa do “além”, no hoje, pode
ser compreendida como a ausência de perspectiva além vida no “inferno do caá”.
Recuperando, então, a vida do autor e os fatos históricos, atribuímos a
Serejo, no conjunto de sua obra, a “bravura”, “perseverença” e “fé” em não se deixar
corromper pelos ideais literários acadêmicos, tanto que avisa a Academia na
ocasião de posse: “Serei aqui, caboclo rústico, de gestos desengonçados, homem
fronteiriço...” (Livro 50, p. 183) e continua escrevendo, mesmo sem ter um projeto
literário, embora tenha desejo de escrever muitos livros.
Acontece que as ações de vida de Serejo, as quais consideramos como
aspectos externos, preponderantes para a interpretação da obra, levaram-nos a
141
avaliar considerações relevantes, tais como: O Trilhador de todos os caminhos,
denominado por Campestrini, é metáfora de sua própria obra e sendo filho da
fronteira, transfigura-se em metáfora da história da formação do Estado.
Depois, a experiência e o conhecimento da voz que conta, permeando
inserções de histórias pessoais com histórias reinventadas de sujeitos em trânsito na
fronteira de mata adentro, ressoa polifônica, um mosaico de trilheiros de vozes que
dizem da formação da fronteira. Se quisermos ouvir a voz do nativo, para sabermos
suas considerações referente à Guerra e ao empreendimento da Matte, ouviremos
a voz de Serejo dando “carta branca” aos que vieram do país vizinho, sobretudo, por
dois motivos – experiência na extração da erva e desprestígio social, político e
econômico em tempo de Guerra perdida. Ouviremos, ainda na voz de Serejo, a força
do ideal colonizador e a extensão de lastro cultural até mesmo em “fronteiras
abandonadas” e início de século XX.
Transparecem em atitudes, ações e comportamentos do
narrador/sujeito/cidadão/Serejo as marcas do império colonizador, as quais fincam
raízes e brotam em narrativas em que as personagens – e o próprio Serejo – estão
sempre muito agradecidas pelos que vieram servir de mão de obra para explorar o
capital nativo e reconhecidas por explorarem – no caso, a Matte – aquilo que o
Estado não deu condições para os que aqui estavam explorar devido à miséria
intelectual, cultura e social. A história de vida de Thomaz Larangeira representa
muito bem as razões que o levaram a realizar o maior empreendimento da História
da Fronteira: era um “homem viajado”, tinha conhecimento, foi beneficiado
politicamente; adicionou tais privilégios ao “faro” comercial e ficou para a História
como mártir dos ervais, embora muitos anônimos tenham sido martirizados.
Outro aspecto merecedor de olhar por debaixo das trilhas, incide na
possibilidade advinda de teorias periféricas, as quais alargam a visão e permitem a
relação da vida com a obra, sem que se tenha de “matar o autor”. Em consequência
disso, avaliamos a história pessoal do autor: não era Serejo um “homem viajado”,
também? Não será o deslocamento um fator contribuinte para que tivesse saudade
e, saudoso, se recordasse e, ao recordar refizesse parte de sua história que é parte
da história local, do Estado e das demais histórias de povoamento?
Retomemos, então, as partes já analisadas: Serejo começa a vida em
trânsito, já que a família se desloca da fazenda em que nasceu, São João – do rural
– para o povoado de Ponta Porã aos dois anos e lá cresce fronteiriço de passadas
142
secas. Ao passo que vai crescendo, não se sabe ao certo, começa a “pespegar
gosto” pelas coisas de leitura e escrita, tanto que, como já anunciamos, escreve – do
conteúdo pouco se sabe – para um jornal de uma currutela próxima a Ponta Porã.
Como seu pai, ele também tinha relativa experiência de vida em trânsito, e já tinha
exercido função política; possivelmente, essas experiências lhe proporcionam
condições para que pudesse, embora em escala menor, montar um
empreendimento, de bolicheiro; passa, então, a dono de ranchada. Em El viejito
Poincaré, há boa referencia a este tempo. Nesta ocasião, o jovem Serejo, vai aos
poucos – primeiro tudo anota e fica alarmado com a realidade –, se adaptando ao
trabalho no erval ao ponto de se “tornar um verdadeiro ervateiro”, experimentando
pela força da necessidade, várias funções. Além do trânsito nas trilhas, Serejo
“sobrevive” à dramática e lendária aventura na Ilha das Flores, contada em Bode
expiatório. O cabo escritor que havia estreado “nas letras” em 15 de novembro de
1935, volta ao seu local de origem “Um farrapo humano”. Seu primeiro “livreto”,
Tribos revoltadas, espécie de “novela íncola” com 199 exemplares55 foi “juntamente
com milhares de papéis transformado em cinza, produzida por uma bala de canhão
que acertou o prédio da casa de ordem e as chamas se alastraram [...]” (Livro 1, p.
p.7). Ao chegar em sua terra natal “mais morto do que vivo” “afunda-se no erval”.
Muitos outros deslocamento sucederam-se. Já pai de família e, finalmente, sem
planejar, fixa morada em cidade do interior paulista, de onde passa a escrever boa
parte de seus sessenta “livretos”.
A recapitulação consciente, além de servir como recurso para assegurar a
junção das partes de sua história transcritas da obra, funciona como argumento para
defendermos o atrelamento da história da vida à história da escrita serejiana. O
trânsito entre fronteira do ir – ao erval – e vir – a cidade – e os vários deslocamentos
ao longo da vida fazem parte da constituição do sujeito transculturado, misto de
“bugre com arremedos de homem civilizado” que convive com o paradoxal drama
defendido por Memmi (1997, p. 126): “amor pelo colonizador e ódio de si mesmo”,
sobretudo, quando não levanta voz contra a empresa Matte Larangeira e narra a
passividade com que as personagens submetem-se ao trabalho forçado em prol do
progresso da região.
55 Segundo o autor, “Um único exemplar foi retirado, tendo-o ofertado, a José de Almeida Cardoso, no dia seguinte, em nome do autor, à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro” (Livro 1, p.7).
143
Assim, em seus textos, há vestígios do pensamento do homem local,
colonizado, explorado, desejoso por dias melhores. Do outro lado da constituição
fronteiriça de sujeito distanciado, emerge como força de água borbulhando da terra,
como em Cacimba, as ebulições reflexivas – prenúncio de consciência – de sujeito
misto de “homem-cruza campo e trota-mundo”, que devido às relações
estabelecidas como sujeito em trânsito, começa a “balbuciar” o passado, sem ter
pressa de julgar “a própria sorte”, mas as palavras já explodem, mesmo que
intercaladas pela voz de quem conta pelo outro. O balbuciar teórico fundamenta a
versão de que Serejo, sujeito condoreiro, faz-se voz daqueles andantes “planetas
sem boca” (Achugar) que balbuciam, quando muito, expressões soltas, as quais
Serejo faz questão de cunhar com sotaque, timbre e força vocabular nas narrativas
que compõem sua obra. O que poderia ser considerado ausência estética, mostrado
pelo avesso, resulta em fiapos sui generis da produção de um sujeito destituído da
desgastada classificação binária, brasileiro ou paraguaio, patrão ou peão, colonizado
ou colonizador....Esses fiapos podem ser lidos como a própria formação do sujeito
contemporâneo tão discutido pelos teóricos, aquele que se forma nos vãos das
partes pela hibridação cultural.
Para Canclini (2003, p.34), em locais em que chega a possibilidade de
modernidade, chega, também, a hibridação, fenômeno social que não rompe o
tradicional, entretanto insere-se mesclando características por meio da justaposição
de diferentes temporalidades, artefatos e lugares, sendo que o processo de
hibridação resulta na (re)configuração dos lugares e das identidades. A simplificação
e naturalidade com que Serejo conta as histórias de um tempo e lugar, diferenciam-
se do esforço de muitos autores do início do século XX, os quais defendiam “Um
Brasil brasileiro” pela ótica do olhar estrangeiro.
Serejo pincela na aquarela literária brasileira um ponto vital das discussões
do início do século XX: a bandeira por uma consciência nacionalista, contrária ao
ufanismo patriótico, sem causa, motivado pela ideia de exaltação da pátria,
demonstrada nos textos pela descrição exacerbada, pela visão unilateral da
realidade, cuja expressão se dava por meio de construções, por vezes carregadas
de escolhas e combinações ao gosto europeu. Embora tenha estudado os
românticos, Serejo distancia-se destes e pega trilheiros linguísticos mais
costumeiros à sintaxe e ao vocabulário do homem fronteiriço. Vale ressaltar que
muitos foram os desvios – de toda ordem “corrigidos” na revisão da obra, quando do
144
projeto de organização das Obras Completas. Daí, vagueia a indagação: não seria
desvio estético? Mas isso é plano para mais um estudo.
No caminhar dessas considerações, recorremos a Achugar e nos
posicionamos meio ao estilo interrogativo do teórico: será que pensar o passado
implica pensar a construção do presente ou o presente é construção do passado?
Considerando que há muito espaço para exercitar possíveis respostas, optamos
pela alternativa indicativa de um representante da vertente de que o presente é
passado em tempo posterior aos fatos transcorridos: no caso, o autor Hélio Serejo
ao dedicar a vida escrevendo aquilo que viu, ouviu sobre os que ontem, hoje e
amanhã, nas páginas dramáticas da história da industrialização da erva-mate, serão
heróis anônimos (Livro 23, p. 72).
Diante da realidade ressurgida por meio da obra serejiana, uma forma de
pensarmos a construção das personagens, advém do que assinala Hall: “A
identidade é um desses conceitos que operam ‘sob rasura’, no intervalo entre a
inversão e a emergência: uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas
sem a qual, certas questões-chave não podem ser sequer pensadas” (2003, p.104).
Assim, o meio capitalista, a necessidade de braços para a extração da erva resultou
na movimentação habitacional na fronteira, ao ponto de ir urbanizando o espaço,
favorecendo o agrupamento, modificando o local e impulsionando o povoamento do
Estado. Por meio das relações estabelecidas entre os chegantes contínuos e
estabilizados no local, as quais geraram, sobretudo, trocas (ou não) foi se formando
a identidade do sujeito sul-matogrossense. Consideramos, para tanto, identidade
como processo contínuo, decorrente das relações que vão sendo estabelecidas,
sem que tenha de se despir de vínculos para suplantar outros; concepção antiga que
nos dá sustentação para entender a formação dos “novos sujeitos” sem que
tenhamos de “classificá-los” como “sem identidade”, mas na categoria de “novos
sujeitos”.
145
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