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1 Elismar Bertoluci de Araujo Anastacio Lora Bertolucci Hélio Serejo: Por uma literatura entre as orilhas da fronteira São José do Rio Preto 2014

Por uma literatura entre as orilhas da fronteira São Jos

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Elismar Bertoluci de Araujo Anastacio Lora Bertolucci

Hélio Serejo: Por uma literatura entre as orilhas da fronteira

São José do Rio Preto

2014

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Elismar Bertoluci de Araujo Anastacio Lora Bertolucci

Hélio Serejo: por uma literatura entre as orilhas da fronteira

Tese apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora em Letras, Área de Concentração - Teoria Literária junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Orientadora: Prof ª. Drª. Norma Wimmer.

São José do Rio Preto 2014

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE

UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto

Anastacio, Elismar Bertoluci de Araujo. Hélio Serejo : por uma literatura entre as orilhas da fronteira /

Elismar Bertoluci de Araujo Anastacio. -- São José do Rio Preto, 2014 152 f. : il.

Orientador: Norma Wimmer Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de

Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas

1. Literatura brasileira - História, Crítica - Teoria, etc. 2. Serejo, Hélio, 1912-2007 - Crítica e interpretação. 3. Memória na literatura. 4. Identidade (Conceito filosófico) na literatura. 5. Identidade (Psicologia) na literatura. 6. Realismo na literatura. I. Wimmer, Norma. II. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título.

CDU – B869.09

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Elismar Bertoluci de Araujo Anastacio

Lora Bertolucci

Hélio Serejo: por uma literatura entre as orilhas da fronteira

Tese apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora em Letras, Área de Concentração - Teoria Literária junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto.

Banca Examinadora Prof ª. Drª. Norma Wimmer UNESP – São José do Rio Preto/SP Orientadora Prof ª. Drª. Mail Marques de Azevedo UNIANDRADE - Curitiba/PR Prof . Drª. Giséle Manganelli Fernandes UNESP – São José do Rio Preto/SP Prof. Dr. Manuel Fernando Medina UNIVERSITY OF LOUISVILLE/USA Prof. Dr. Nelson Luis Ramos UNESP – São José do Rio Preto/SP

São José do Rio Preto 2014

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In memoriam

O cachorro Pitoco, o preto Domingos, o petiço Guavira, Nhá Chaló, o velho Cariaga, o bugre amigo, Nhá Chamé e muitos outros ficaram na memória de Hélio Serejo. Da minha, exala infância recheada de histórias contadas e vividas por Tomaz “Aguero” e “Dona Tomassa” (Tomassa Benites), nativos, que me anteciparam como conto de fadas, as narrativas fronteiriças perpetuadas nas Obras Completas de Serejo.

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Aos meus pais e irmãos.

Com amor, por amor a vocês: Loreanna, Pedro

e Alfredo. Pagarei em dobro, com abraços,

afagos, festas, alegria, tal como o Joãozinho ao

receber o “dono” no portão.

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Agradeço, eem especial, a minha querida

orientadora Norma Wimmer e aos doutores, além

docência: Lucilene Machado, Giséle Manganelli

Fernandes, Arnaldo Franco Junior, Danglei

Pereira, Nelson Luis Ramos, Adir Casaro, Maria de

Lourdes Ibanhes e Maria Celeste Tommasello

Ramos, fundamentais na “investida contra o

misterioso desconhecido percurso1” desta tese.

Muito obrigada aos amigos do coração: Maysa

Brum Bueno, Ruberval Franco Maciel, Fabrício

Ono e Valéria Beretta e todos que estiveram comigo

nos momentos em que me sentia “ziguezaguenado

no trilho estreito que parecia não ter fim2”.

1 Livro 34, p. 134. 2 Livro 34, p. 138

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RESUMO

O presente estudo tem como objetivo geral investigar, em narrativas de Hélio

Serejo (1912-2007), a maneira como a fronteira está inserida e as formas

pelas quais se relacionam os sujeitos que passam a transitar na “fronteira

abandonada” em tempo de pós-Guerra e ocupação territorial. Para tanto,

selecionamos as seguintes obras do autor: Homens de aço: a luta nos ervais

(2008), Vida de Erval (2008), Pelas Orilhas da Fronteira (2008), Caraí (2008),

O Tereré que me inspira (2008), Pialando...no Más (2008), Carai Ervateiro

(2008) e No Mundo Bruto dos Ervais (2008), uma vez que os contos, causos,

crônicas, os textos inseridos nessas obras, deslocam-se, sobretudo, da/na

fronteira Brasil – Paraguai e seus personagens reais/ficcionalizados vivem

uma espécie de nomadismo dispersivo em uma zona de fronteira imaginária,

entrecortada – mata adentro - pelos caminhos da Companhia Matte

Larangeira (1877-1944). A possibilidade de analisar, nos vãos que se abrem,

a partir do cruzar – contínuo e temporal – o sujeito fronteiriço, poderá levar-

nos a reconhecer possíveis representações identitárias ainda pouco

estudadas. Sustentará esta investigação, o enfoque teórico-crítico advindo

dos Estudos Culturais tendo como referência os autores: Bhabha (2003), Hall

(2003) Canclini (2003) e Achugar (2006), pois trataremos de uma temática

que transita pelas relações entre literatura e aspecto de formação identitária.

Defendemos que o fazer literário serejiano esteja no narrar aquilo que viu e

ouviu, o que aconteceu e o que teria acontecido na lembrança e no resgate

do esquecido. Estudar a obra de Hélio Serejo é uma forma de (re)descobrir

aspectos de “posições de sujeitos” velados pela história oficial, ainda mais

quando se trata de uma fronteira “onde o Brasil, já foi Paraguay”.

Palavras-chave: Hélio Serejo; fronteiras; identidade; memória; literário; “novos

sujeitos”.

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ABSTRACT

The current study aimed at investigating through Helio Serejo´s narratives

(1912-2007), the way border is inserted and the way by which subjects who

transit in the “abandoned border” in times of postwar and territorial occupation.

In order to do so, the following plays were selected: Homens de aço: a luta

nos ervais (2008), Vida de Erval (2008), Pelas Orilhas da Fronteira (2008),

Caraí (2008), O Tereré que me inspira (2008), Pialando...no Más (2008),

Carai Ervateiro (2008) and No Mundo Bruto dos Ervais (2008), due to the

tales, stories and chronics, texts inserted into these plays shift particularly in

the borders of Brazil-Paraguay and their real and fiction characters experience

a sort of dispersive nomandism in an imaginary border zone, – in the forest –

by the paths of Matte Laranjeira company (1877-1944). The possibility of

analyzing through the spaces, from the crossing – continuous and by the time

– the border subject may lead us to recognize possible identity representations

with few studies. The investigation lies on the critical theoretical approach

based on the cultural studies: Bhabha (2003), Hall (2003) Canclini (2003) e

Achugar (2006), once the main themes transit by the relationship between

literature and the identity formation aspects. We argue that serejian literary

work is in narrating what was seen and listened, what happened and what

would have happened in the memory and in the forgiven revival. Studying

Hélio Serejo play is a way of (re)descovering aspects of

“subjects´positioning” hidden by official history, particularly when the “border

Brazil was once Paraguay” is concerned.

Key words: Hélio Serejo; borders; identity; memory; literary; “new subjects”.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Mensú.......................................................................................................12

Figura 2 - Capa do livro Caraí ervateiro................................................................... 22

Figura 3 - Carta trocada entre Serejo e Nenito Brizueña......................................... 31

Figura 4 - Capa original do livro No mundo bruto da erva-mate.............................. 67

Figura 5 - Caminhos percorridos pelas primeiras comitivas ervateiras de Thomaz

Larangeira no Brasil, a partir de 1888...................................................................... 75

Figura 6 - “Mensu”, “minero”, peão, ser humano capaz de suportar até 150 quilos nas costas.............................................................................................................. 96 Figura 7 - Capa original do livro Heróis da erva ................................................... 106

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 12 2 CAPÍTULO I - CARAÍ HÉLIO SEREJO: O AUTOR DA FRONTEIRA ................. 22

1.1 O ERVATEIRO ESCRITOR ........................................................................... 23 1.2 PATRONSITO DO ERVAL ............................................................................ 34 1.3 A CRÍTICA DE MÃO EM MÃO ...................................................................... 46 1.4 A LITERATURA DE GALPÃO NA FRONTEIRA ACADÊMICA ...................... 55

3 CAPÍTULO II - A FRONTEIRA, A ERVA E O HOMEM.........................................67

3.1 A FRONTEIRA SEREJIANA...........................................................................68 3.2 CAAPÊ-HETA LA CAÁ...................................................................................80 3.3 O ANDARIEGO...............................................................................................84 3.4 EM TRÂNSITO NOS ERVAIS ....................................................................... 87

3.5 ENTREMEANDO............................................................................................92 4 CAPÍTULO III - LITERATURA ENTRE FRONTEIRAS.......................................106

4.1 PRENÚNCIO LITERÁRIO............................................................................107 4.2 A MEMÓRIA................................................................................................116 4.3 PRODUÇÃO DO PRÓPRIO MEIO..............................................................121

4.4 O OLHAR DE TOCAIA.................................................................................125

4.5 AS DIGITAIS SEREJIANAS: ENTRE O VIVER, RELEMBRAR E

CONTAR.....................................................................................................129

CONSIDERAÇÕES..................................................................................................140 REFERÊNCIAS........................................................................................................145

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INTRODUÇÃO

Veio e ficou para escrever com seu sangue, seu suor e suas lágrimas, uma das páginas mais dramáticas, repleta de bravura, desprendimento e resignação da história grandiosa, referente ao povoamento do extremo sul de Mato Grosso, a região ervateira principalmente, que a todos enfeitiçava. (Livro 34, p. 71).

3 Figura 1 - MENSÚ - Fonte: (GRESLLER, 2005, p. 100).

3 O trabalhador encarregado do corte dos galhos da árvore e do transporte da erva-mate denomina-se mineiro ou mensú (Palavra de origem espanhola). A foto foi tirada na década de 1930. (Fonte: GRESSLER, 2005, p. 100).

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A epígrafe acima serve de referência para localizarmos a temática desta

pesquisa: a fronteira e as “gentes” que chegaram onde Hélio Serejo (1912 - 2007) já

estava, de onde saiu e depois contou, pelo viés da lembrança, o que viveu o que viu

e o que ouviu do homem em trânsito, naquele “complexo de afazeres, um mundo

diferente dos demais de que tinha conhecimento,” como o autor assinala em Caraí

(Livro 34, p. 75)4. Um mundo que, segundo o autor, lhe sorvia a agressividade

daquele mister que até então lhe era completamente desconhecido (Livro 34, p. 75),

mas nos dá a conhecido, pois Serejo recupera, pela memória e pelo esquecimento,

aquilo que não está na História oficial.

Embora não esteja explícita, a produção de Serejo tem muita relação com o

que afirma Achugar (2006, p. 143) em relação à hegemonia do tipo “consagrado” de

intelectuais, “[...] na construção de uma espécie de macrorrelato da história e da

cultura que privilegiou a produção elitista das belas letras e das belas-artes, em

detrimento das manifestações populares ou massivas”.

Hélio Serejo (1912-2007), autor de mais de sessenta escritos, nasceu em

Nioaque/MS e cresceu Ponta Porã/MS, primeiros núcleos habitacionais localizados

no espaço em que ocorreu a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). Assim o autor

se define: “Eu sou o homem fronteiriço [...] Sou misto de índio vago, cruza-campo e

trota-mundo. [...] Vim [...] dos entreveros da fronteira, dos ervais sombrios, dos

caminhos perdidos...”.5 Cresceu acompanhando seu pai na lida dos ervais: “hoje

aqui, amanhã ali, íamos rompendo o sertão, tangidos pelo vento cruel de um destino

sempre ingrato” (CAMPESTRINI, 2008, p. 19), convivendo com a cultura da lei do

mais forte, do mais vingativo, da ponta da faca. Daí, saltaram da boca escumenta

dessa gente, paras páginas de uns livrinhos as histórias de bravura, misto de

crendices, fatos históricos desenredados, aumentados, distorcidos, incorporados à

vivência rude dos ervais em que se aglutinam, diversidades culturais, formadas por

fugitivos da justiça, nativos de diferentes etnias, exploradores de mão-de-obra

trocada por fumo, pinga...“extraordinários irmãos paraguaios, exemplos de

perseverança, decência, cavalheirismo e amor ao trabalho” (Livro 30, p. 125.) No

meio disso tudo, há ainda a “valente mulher paraguaia” que veio no desejo de

4 Optamos por citar a obra de Hélio Serejo da forma como está organizada em Obras Completas, num total de cinquenta, organizados em nove volumes. 5 CAMPESTRINI, H. O trilhador de todos os caminhos: Vida e obra de Hélio Serejo. 2008. p. 19. Texto Extraído do discurso de posse do autor na Academia Mato-Grossense de Letras (IX/1790).

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“encontrar meios de ganar com conpensación para ahorrar algunas platitas porque

la viejez llegará com el pasar del tiempo...” (Livro 34, p. 154).

Serejo equilibra-se nas fronteiras das relações reconhecidas como

credenciais para o livre acesso social, tais como: Academia de Letras, coronéis

latifundiários, Empresa Erva Matte Larangeira6 (18827 - 1943), e o homem simples

com o qual conviveu, quando viveu nos ervais. O autor se intitula e afrima “Filho dos

ervais. Por essa razão, ama os simples e respeito os que, gerados do nada, grandes

se fizeram, através de atos nobres, peripeciosa caminhada da vida” (Livro 20, p.

261). A sapiente possibilidade de trânsito livre entre explorados e exploradores,

construída pela ação do contar fatos de homem de “honra, bravura e pujança”, quer

sejam patrões ou peões, (des)centraliza o narrador hegemônico e abre as portas a

outros novos sujeitos, no dizer de Achugar (p. 143).Valeremo-nos das narrativas de

Serejo, no propósito de conhecer mais e melhor esses “novos sujeitos” deslocados

de suas naturalidades e em trânsito interno na fronteira.

Esse propósito se aguça a partir do desejo de estudarmos, com mais

extensão, a obra de Serejo por termos como hipótese que o fazer literário do sujeito

fronteiriço à margem dos padrões estéticos da época, esteja na escolha temática de

algumas realidades da fronteira, tais como: o tempo em que a fronteira do Estado do

Mato Grosso do Sul começou a ser povoada após a Guerra do Paraguai e a

extração da erva mate pela Companhia Matte Larangeira. Neste contexto, está o

homem local – representado pelo narrador/autor/Hélio Serejo – e o homem em

trânsito motivado pelo processo capitalista; o lugar particular, aquele que o próprio

autor conheceu, e o espaço que passa a fazer parte da narrativa, credenciando os

acontecimentos, as atrocidades, as relações de poder, de sujeição, o local que se

6 Embora Hélio Serejo adote a grafia Mate Laranjeira e Tomas Laranjeira, optamos por grafar, quando não se tratar de citação da obra serejiana, Matte Larangeira e Thomaz Larangeira considerando a grafia contida no Decreto nº 436 C, de 04 de julho de 1891, que concedeu autorização a Thomaz Larangeira para organizar uma sociedade anônima sob a denominação de Companhia Matte Larangeira; “O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, attendendo ao que requereu Thomaz Larangeira resolve conceder-lhe autorização para organizar uma sociedade anonyma sob a denominação de Companhia Matte Larangeira,...” (MAGALHÃES, L. A. M. Retratos de uma época: os Mendes Gonçalves & A Cia. Matte Larangeira. Ponta Porã, Mato Grosso do Sul: Gráfica e Editora Alvorada, 2013, p. 42). 7 Segundo o historiador Magalhães (2013, p. 30), Thomaz Larangeira criou no ano de 1877 a Empresa Larangeira S. A., em Concepción, Paraguay. Em Mato Grosso, As explorações ervateiras começaram imediatamente após as primeiras concessões imperiais, datadas de 1882, Decreto Imperial nº 8799, de 9 de dezembro, quando Thomaz passou a instalar ranchadas em Potrero Laguna Capiibary - há três léguas da divisa – em território paraguaio - e no Potrero São Thomaz no lado brasileiro...”.

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abre ao mundo, onde homens se lançam – ou se lançaram – ao incerto, em busca

de “dias melhores” em locais que prometem o progresso.

A leitura da obra de Serejo leva-nos à hipótese de que Serejo

autor/narrador/personagem cria um universo narrativo permeado pelo contexto

histórico do qual afirma ter conhecimento, uma vez que vivenciou o desbravar dos

ervais; identifica-se com os fatos e atos contados em suas narrativas de enredos

relativamente planos; conta, por meio da aparente retratação do real, procurando

referendar a vida nos ervais: “Arregalaram-se-me os olhos [...] Nada escapara dos

meus olhos interrogantes. Era, em verdade, um meninote, que tudo queria saber.”

(Livro 34, p. 75).

Na fronteira de suas experiências de fato, e na confluência dos fatos criados

pelo ato de narrar, autor/narrador/personagem e sujeito histórico se integram em prol

de uma realidade transfigurada pelo real. No entremeio de fatos vividos e recriados

está o fazer literário de um sujeito aparentemente descompromissado com a

denúncia, um narrador que se passa por um eterno apaixonado pela escrita e pela

vida rústica de mata adentro. Um olhar magnetizado pela terra, como ele próprio

define em Ronda do entardecer (Livro 11, p. 09): “[...] o cheiro forte dos brejais, o

gorjeio festivo da passarada, o mormaço que se dilui aos poucos, o aroma das

flores, os ruídos da terra...”. Todavia, nas narrativas estão incrustadas histórias de

exploração, de coragem, de medo, da “lei do mais forte”. Advém, daí, a hipótese:

Serejo revela, além da cor local, questões para além do exótico e do pitoresco.

Insere, “no mundo bruto da erva”, o homem e a vida do homem explorado, aquele

que passa a se aventurar na fronteira Brasil-Paraguai, motivado pela possibilidade

de trabalho na Companhia Erva Matte Larangeira (1882-1943), empreendimento

desencadeador do trânsito na fronteira.

A fim de que possamos investigar as temáticas em discussão, recortamos da

vasta produção de Hélio Serejo alguns textos das obras: Homens de aço: a luta nos

ervais (2008), Vida de Erval (2008), Pelas Orilhas da Fronteira (2008), Caraí (2008),

O Tereré que me inspira (2008), Pialando...no Más (2008), Carai Ervateiro (2008),

No Mundo Bruto dos Ervais (2008), entre outros, uma vez que as narrativas contidas

nessas obras deslocam-se, sobretudo, na fronteira Brasil - Paraguai e seus

personagens “O ervateiro, brasileiro, paraguaio” - (Livro 34, p. 154), sujeitos

ficcionalizados por Serejo, vivem uma espécie de nomadismo dispersivo em uma

zona de fronteira seca, imaginária, entrecortada – mata adentro – pelos trilheiros da

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Companhia Matte Larangeira. Ao contar as histórias desses “heróis anônimos,”

(Livro 9, p. 231), Serejo retrata não só a vida, mas procura descrever os hábitos e

costumes de um tempo em que a fronteira passou a se constituir espaço habitado.

Pelo fio de sua narrativa, correm vozes abafadas devido às circunstâncias sócio-

históricas. Entendemos que nessas narrativas transparece um olhar sobre o local,

que flerta com o exótico e o pitoresco, mas se apresenta como construção de uma

identidade local, sul-matogrossense, relacionada à identidade do fronteiriço em um

sentido mais amplo. Sobressai a presença da vida local cuja temática, sobretudo,

Candido (2006b, p. 212-213) tanto criticou dos românticos em se tratando da anulação

do aspecto humano, em benefício de um pitoresco que se estende também à fala e

ao gesto, tratando o homem como peça da paisagem, envolvendo paisagem e

homem no mesmo tom de exotismo. Esse enfoque, para o crítico, resulta em uma

alienação do homem dentro da literatura, “uma reificação da sua substância

espiritual, até pô-la no mesmo pé que as árvores e os cavalos, para deleite estético

do homem da cidade”.

Serejo é o reverso, já que prenuncia pela voz do narrador, entrecortada pelo

balbuciar de anônimos braçais a vida na “terra abandonada8” e seus dilemas, em um

contexto atípico à vida urbana. Paisagem e vida em condições de trabalho exaustivo

se integram nas narrativas e o erval, espaço personificado, passa a fazer parte de

condutas e comportamentos das personagens, umas das quais Serejo, também, se

diz ser.

Machado de Assis (CANDIDO, 2006b, p. 368-369) já dissera que uma

literatura nascente deve, principalmente, alimentar-se dos assuntos que lhe oferece

a região. No conjunto da obra de Serejo fica evidente a temática fronteiriça; também

encontramos respaldo na preocupação de Machado de Assis em exigir do escritor

certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país. Nas

narrativas de Serejo, vislumbramos possibilidade de conhecer o tempo de

8Esclarecemos que o uso da expressão “terra abandonada” ou “fronteira abandonada”, ao longo desta tese, está diretamente relacionado à obra Nas fronteiras de Matto Grosso – Terra abandonada, obra lançada em 1933 por Umberto Puiggari, uma edição da Casa Mayença/SP. Ao longo dos vinte e três textos o autor/narrador conta fatos vividos na fronteira - a mesma de Serejo - entre o Brasil e o Paraguai. Assim que lançou seu livro, o autor mudou-se para Londrina/PR. Há relativa similaridade – algumas iremos relacionando ao longo deste estudo – entre Serejo e Puiggari, tanto que a personagem “Sismório” aparece na obra dos autores. Entretanto o tom de denúncia difere, em muito, em Puiggari, haja vista o ataque às autoridades.

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povoamento do local que hoje é Mato Grosso do Sul. Não será a nossa história de

mata adentro anterior à história das cidades?

Considerando a fronteira como espaço em que transitam diferentes

identidades constituídas pelas condições de sobrevivência histórica, não nos

ateremos, nesta pesquisa, em investigar a formação territorial da fronteira Brasil-

Paraguai. Nosso objetivo centraliza-se em investigar “como a imensa fronteira

abandonada” (Livro 4, p. 93) está representada pelo contar do homem local que se

integra e multifaceta em autor-narrador-personagem. Achugar considera que “Os

novos narradores que começaram a contar suas histórias fizeram estourar a unidade

monológica do relato hegemônico anterior. Eles o fizeram de diversos modos, ora

recontando e corrigindo o esquecido, ora recordando os relatos que antes existiram.”

(p.144). A pretensão advém da desconfiança de que a aparente mesmice da voz

que conta as narrativas serejianas, contenha histórias que foram esquecidas. A

arbitrariedade que o estético estabelece com a realidade no intuito da criação,

reforçada por Candido (2006, p. 22), aparece nas narrativas de Serejo de forma não

muito comumente usada ao “fazer literário”. A arbitrariedade advém, sobretudo, de

outras instâncias, muito “além” ao texto – escolhas e combinações – e começam a

fazer sentido, quando resgatamos a história de vida ficcional do autor, narrador,

personagem contada por ele mesmo e pelos amigos. Essa ação não acontece em

uma obra específica, mas vai sendo construída aos poucos, ao passo que vai

escrevendo “os livrinhos”.

O nosso interesse recai, em específico, sobre o “homem cruza-campo e trota-

mundo” e sua relação com o local, já que queremos compreender, com mais

extensão, como a mulher guarani, o peão paraguaio, o quatrero, o comiteveros, o

mayordomo, o barbaquazeiro, o monteador, os mineiros “criaturas humanas que, na

data longeva, enfrentaram estoicamente toda sorte de martírios, na grande e

vigorosa arrancada da épica penetração ervateira” (Livro 23, p. 69) são construídas

pelo contar, aparentemente, espontâneo de Serejo. Sobretudo, por considerarmos

que, por meio da produção do autor estudado, podemos recolher vestígios

identitários do continuum interseccionado processo de deslocamento (HALL 2003,

p.28) realizado pelo homem, independentemente do local em que está. É o caso

das personagens de boa parte das narrativas de Serejo, representadas por entre

fronteiras do contar, permeando fragmentos históricos preenchidos pela memória.

Com isso, o fazer literário de Hélio Serejo se transfiguraria por meio do vivido em

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local em que ele – o autor – se fez sujeito, e pelo plano da expressão. A forma

como escreve conduz-nos a avaliar traços de performance do sujeito em trânsito,

com facão na mão, abrindo picadas para o progresso, sem ter muita consciência da

“Ordem e progresso” do país, já que há “gente vindo de todo lado”. Entretanto, “essa

gente” sobressai, ao longo das narrativas, como representante da história da

formação de um lugar. Esta região, Serejo a perpetua, ao destacar o desbravamento

com olhos e sentimentos a que denominamos de engajamento literário entre

fronteiras.

Argumentamos que Serejo irá antecipar, inconscientemente, o que tanto

discutem, sobretudo, os autores cuja nacionalidade advém de locais que, por muito

tempo, estiveram à margem: “O sujeito, previamente vivido como tendo uma

identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma

única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”

(Hall, 2003, p.28).

Povoas (Livro 4, p. 165), ao prefaciar a obra de Serejo, assinala que a

fronteira descrita pelo autor “transformou-se num laboratório social dos mais

interessantes”, uma vez que transitam por este espaço índios, donos da terra,

povos de origem e língua espanhola; gaúchos, cuiabanos, “[...] mineiros que se

alongavam à procura de campos para criar, todos se amalgamaram, misturando seu

sangue, seus costumes, seus idiomas, suas tradições, seu folclore, sua música, daí

resultando uma civilização fronteiriça de características inconfundíveis”. Essa

“civilização fronteiriça”, representada em alguns textos da obra de Serejo, vai se

constituindo pelos contratos de boa – nem sempre – convivência, tendo como limite

o poder da Companhia Matte Larangeira, os latifundiários, e os conflitos gerados

pelo lócus fronteiriço.

Neste espaço de proliferação de contatos, pacíficos ou não, está o erval

direcionando as ações de homens, mulheres e crianças que se unem,

momentaneamente, na labuta extrativa do mate. Entendemos que, ao contar essas

ações, Serejo recria, por meio da memória, a história dos desbravadores pelo

entremeio da posição de sujeito duplamente constituído pelo viés do colonizador-

colonizado. Nos entremeios, sobretudo, do que existiu e do como foi contado; na

fronteira, pois, no histórico e no ficcionalizado há espaço para investigação do fazer

estético serejiano que corre pelo fio do discurso do “[...] já dito sobre o qual qualquer

discurso se constrói. Isso quer dizer que o discurso não opera sobre a realidade das

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coisas, mas sobre outros discursos. Todos são, portanto, “atravessados”,

“ocupados”, “habitados” pelo discurso do outro. (AUTHIER-REVUZ-, 1990, p. 25 - 7).

Estamos caminhando em prol da construção da defesa de que há, na

produção de Serejo, a consciência do local, com razoável respaldo na segunda

geração do Modernismo. Esta consciência e conhecimento do espaço em que se

está, no caso, a fronteira, permite a descrição do espaço geográfico no qual está

inserido o andante que passa a habitá-lo e a modificá-lo. Entre a representação do

vivido-ficcionalizado, do autor-personagem, do local-global, entre vozes oral-escrita

que, de tão expressivas, embora periféricas, teimam em sobressair na artificialidade

do discurso escrito.

Neste prenúncio histórico-estético está a história do homem local e os

homens que sempre existiram; está a história do povoamento do Mato Grosso do

Sul e parte da História Geral, em que homens em trânsito desbravaram e povoaram

novos lugares.

No Capítulo I, iremos relatar a trajetória da obra serejiana, o contexto em que

foi produzida e a recepção pelo viés dos amigos/leitores, por considerarmos arte,

com base em Candido (2006, p. 47), um sistema simbólico de comunicação inter-

humana, uma vez que pressupõe o jogo permanente de relações entre autor, obra e

público os quais “formam uma tríade indissolúvel” e passam a fazer parte da

interpretação estética da obra.

Candido (2006, p. 31) defende o percurso para a primeira tarefa investigativa

de uma obra, salientando influências concretas exercidas pelos fatores

socioculturais. Para o crítico (2006, p. 31), esses fatores marcam os quatro

momentos da produção: “a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior,

orienta-o segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos tema; c) usa certas

formas e d) a síntese resultante age sobre o meio”. Com isso, teremos condições de

avaliar melhor a repercussão da obra de Serejo e a sua feitura, as quais nos darão

condições para reconhecermos os elementos estéticos.

Ainda no Capítulo I, além do público, autor e obra, inserimos o

crítico/estudioso da obra, uma vez que será este a interpretar a “relação arbitrária e

deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade” (CANDIDO, 2006, p.

22).

Organizamos o Capítulo II em torno da fronteira, da erva e do andante, e o

deslocamento que se inicia com a caminhada comercial de Thomaz Larangeira e

20

resulta nas andanças do peão ervateiro, da mulher guarani, do bugre, do peão de

fazenda e de muitas outras figuras que irão transitando pelas trilhas da fronteira

ressignificadas pelas narrativas de Hélio Serejo. Trataremos, ainda, das relações

entre o ir e vir, uma movimentação constante no corpus selecionado. Por isso,

discutiremos o homem e suas relações com o erval.

Já no Capítulo III, argumentaremos que a literatura serejiana, irregular, sem

planejamento, produto local, intersecciona-se com o contexto da “fronteira

abandonada”, e é uma espécie de metáfora do próprio meio. Levantaremos, ainda,

os argumentos que respaldam a relação entre o vivido e o ficcionalizado, com base

no enfoque teórico-crítico advindo dos Estudos Culturais tendo como referência os

autores: Bhabha (2003), Hall (2003) Canclini (2003) e Achugar (2006). Esses

estudiosos preconizam que escrever o passado de fatos orais, observados, quase

sempre, in locu e guardados na memória do tempo, pode nos parecer um risco de

criação estética, por presentificar, pela memória, a história.

Ao final, trataremos de fundamentar a tese do “O homem cruza-campo e

trota-mundo”, um andante em fronteiras representado pela aparente simplicidade de

contar de Hélio Serejo. O modo de condução da narrativa, as escolhas e

combinações linguísticas, a descrição da paisagem, a organização dos textos e a

construção da personagem em trânsito são recursos internos de alguns textos de

Serejo, como bem orienta Antonio Cândido (2006, p. 14) “[...] importa, não como

causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel

na constituição da estrutura [...].”

Para estudar o corpus descrito, recorreremos, ainda, aos Estudos Culturais

por se tratar de fundamentos teóricos além estrutura do que está escrito. Bhabha,

por exemplo, afirma que “A razão pela qual um texto ou sistema de significados

culturais não pode ser auto-suficiente é o ato de enunciação cultural – o lugar do

enunciado – é atravessado pela différance da escrita” (2003, p. 65) e que tem como

característica “se aproveita [rem] de quaisquer campos que forem necessários para

produzir o conhecimento exigido por um projeto particular” e que “ a escolha de

práticas de pesquisa depende das questões que são feitas, e as questões

dependem de seu contexto” (NELSON; TREICHELER; GROSSBERG, 1995, p.9 ).

Esse enfoque possibilitará conhecer com mais profundidade a fronteira

enquanto espaço de trânsito, de troca, de contrabando, de (des)acordo, de morte;

21

fervilhar de diferenças que nem sempre se aglutinam, constituindo, com isso, “novos

signos de identidades”, (HALL, 2003b, p.50) não só do tempo dos ervais, mas na

continuidade dos tempos.

A justificativa que nos levou a pensar esta pesquisa, desejo exposto na

graduação, está, primeiramente, no vínculo afetivo-histórico com o contexto da

fronteira Brasil-Paraguai; embora este não seja suporte para um trabalho científico é

como sujeito histórico que cresceu ouvindo da boca da peonada paraguaia os

causos do homem “cruza-campo e trota-mundo”, que nos colocamos como leitores

de uns “livrinhos” que chegavam às fazendas fronteiriças pelas mãos de um andante

comprador de muares como “oferta singela do autor Hélio Serejo”.

De lá para cá, o tempo se encarregou de modificar, paulatinamente, alguns

espaços: Mato Grosso se bipartiu, a obra de Serejo foi compilada (2008)9 pelo

Instituto Histórico Geográfico de Mato Grosso do Sul, Hélio Serejo começa a ser

estudado e a leitora dos “livrinhos” coloca-se como pesquisadora.

Dessa forma, justificamos a presente pesquisa tendo como referência,

sobretudo, a constituição da identidade do homem sul-mato-grossense, uma vez

que, ainda, são esparsos os trabalhos cuja temática esteja direcionada à formação

do novo Estado. Estudar a obra de Hélio Serejo é uma forma de descobrir, nos

interstícios, aspectos sócio-culturais velados pela história oficial, ainda mais, quando

se trata de uma fronteira “onde o Brasil, já foi Paraguai”. A história posta em ata

pode ser reescrita no recontar de Serejo, mais ainda, quando ficcionaliza a vida do

homem e de uma região pelo viés da verossimilhança.

9 Campestrini (2008, p.53) autor do projeto que organizou as Obras Completas de Hélio Serejo, conta em livro que acompanha a coletânea, Trilhador de todos os caminhos: Vida e obra de Hélio Serejo, que o autor “Organizou suas produções numa coletânea encadernada, colando na capa, embaixo, uma etiqueta com a data que ele considerou de publicação ou gravando-a tipograficamente. São cinqüenta e nove livros, deixando um inédito, nas mãos do editor.[...]. Esta coleção, reconhecida pelo autor como definitiva, serviu de base para todo o projeto OBRAS COMPLETAS. [...] Não se consideraram as diversas listas (obras) que apareceram em vários livros, porque, além de apresentarem diferenças, trazem obras que não foram publicadas e algumas publicadas com outro título. Ocorre também que os outros autores que sobre ele escreveram fazem listas diferentes, mesmo porque não devem ter tido acesso à coleção ao autor. Com a autorização de Hélio Serejo, as obras foram organizadas em cinqüenta livros, compreendendo somente a produção do autor, eliminando-se qualquer texto alheio (mantido, obviamente, o da introdução e do prefácio). [...] Os textos foram integralmente revistos, sempre com a preocupação de conservar a originalidade do estilo do autor. Procurou-se padronizar a ortografia, até porque, ao longo dos anos, foram diferentes revisores, cada um utilizando um critério. [...]. A pontuação original não obedecia a critérios, mesmo que mínimos. Mesmo assim, consertaram-se somente os casos mais graves, não só quanto às regras também quanto à clareza”. O projeto foi desenvolvimento pelo Instituto Histórico Geográfico de Mato Groso do Sul.

22

CAPÍTULO I – CARAÍ HÉLIO SEREJO: O AUTOR DA FRONTEIRA

Eu sou o homem fronteiriço que na infância atribulada recebeu nas faces sangüíneas os açoites desse vento, vadio e haragano [...].Eu vim dos ervais [...].Eu sou filho da jungle, sou gaudério de todos os pagos [...]. Eu vim de longe, sou misto de poeira de estrada [...]. (Livro 49, p.149).

10

Figura 2 - Capa do livro Caraí ervateiro

10 Capa do livro Caraí ervateiro, 1990, 96 p.,miolo datilografado em papel comum. A obra foi produzida pela Editora Versiprosa, de Tupi Paulista/SP.

23

1.1 O ERVATEIRO ESCRITOR

Aprendemos muito, muito mesmo, e nos tornamos, então, um caraí ervateiro, como tantos outros, que não se acovardaram ante a selva bruta, e amaram a caá, tal como se ama uma china que sabe prender e por feitiço no kuimbaê (Livro 34, p. 24).

Estudar a produção de Hélio Serejo equivale a abrir uma gaveta recheada de

fotografias que não foram clicadas por quem as vê, mas, em seu verso, há

impressões de quem viveu o momento, quer como fotógrafo, quer como fotografado.

Assim, há referências situacionais, em específico na obra de Serejo, ao plano

histórico, vinculado a acontecimentos de fronteira, Brasil – Paraguai, em um tempo

de pós Guerra da Tríplice Aliança, sendo o autor sujeito do local de que fala na obra

– fotógrafo e fotografado.

Para Chalhoub & Pereira (1998, p. 8), uma obra literária possui evidência

histórica objetivamente determinada está situada no processo histórico. Em

detrimento disso, apresenta propriedades específicas que possibilitam

questionamento. Para tanto, devemos averiguar as condições de produção, as

intenções do autor, quem é o autor no contexto da escritura, sua relação com o

meio. Cândido (2006, p. 17-22) em Literatura e sociedade detalha, com bastante

precisão, a polêmica de se estudar uma obra agregando aspectos internos e

externos, uma vez que conferir, tão somente, a realidade exterior para entender uma

obra, pode resultar em uma simplificação causal. O crítico defende, então, o reverso

do processo adotado pelas teorias tradicionais de estudo de texto literário, já que o

social – externo – não é espelho por meio do qual uma obra reflete uma realidade,

mas interfere na constituição de sua estrutura, tornando-se, portanto, interno.

Compreender o enfoque mais abordado pelo autor, a escolha e entendimento

da temática, a compreensão e a expansão de determinado tema; compreender as

condições em que a obra foi escrita, significa interpretar os aspectos estéticos,

sendo que, externos e internos, passam a integrar a estrutura total da obra.

Por isso, optamos por abrir um capítulo no ensejo de conhecer melhor a obra

de Hélio Serejo tendo como referência “os três elementos fundamentais da produção

24

artística”, segundo Cândido (2006, p. 33): “autor, obra e público”. Nossa opção

também se respalda em Sevcenko (2006, p. 34), para quem a literatura deve ser

avaliada, sobretudo, como interpretação do contexto social pelo autor e sua

manifestação artística latente na obra. Defende, ainda, que a exposição se dá em

diferentes graus, e sofre interferência de alguns fatores externos e internos ao autor,

tais como: o gênero de preferências, a escola literária a qual pertence – se pertence

–, como se dá seu relacionamento intelectual, o local de onde fala, de onde publica,

de onde se manifesta, como ocorre seu relacionamento afetivo e familiar, sua

condição de vida – outrora – bem como no momento em que se faz escritor e ao

longo do processo.

Daí, compreendemos a necessidade de iniciar os argumentos de tese pelo

viés externo, vida do autor, recepção da obra e nossas impressões. Com respaldo

em Candido (2006, p. 23) compreendemos que aferir a obra com a realidade exterior

não é suficiente, bem como “[...] ficar restrito à sua constituição literária, constituição

de linguagem,” uma vez que “o movimento é duplo”. Eneida Souza (2007, p. 24)

salienta, ainda, que para estudar uma obra, precisamos ter ciência de que o texto

ultrapassa a fronteira literária e se projeta para outros campos.

Neste estudo, tomaremos como possíveis e variáveis projeções a fronteira do

vivido e do recriado, a produção, circulação e recepção por defender que estão

vinculadas às condições de vida de Hélio Serejo, além dos fatos históricos que

perpassam um ambiente de fronteira em tempo de povoamento, motivado por

acontecimentos políticos e econômicos já mencionados. Em específico, quando se

trata de local em fase inicial de povoamento fronteiriço, motivado por necessidade

de mão de obra braçal: “O caraí ervateiro paraguaio veio de sua Pátria para o início

de uma nova vida no eldorado da caá”, alimentado pelo desejo de “[...] trabajar em

los yerbales de Mato Grosso, comenzando como guaino, para después, com el

tiempo, transformarse em un minero de calidad, ganar dinero, tener muchos amigos

y ser respetado en su trabajo, no temiendo ni al mal tempo”. (Livro 38, p. 57).

Além dos que vieram impulsionados pela possibilidade de trabalho, muitos

outros também se colocaram em trânsito de destino certo: a fronteira. Serejo conta

que, assim que terminou a cruenta Guerra do Paraguai, em específico, os

componentes da coluna do general Câmara, quase todos sulinos, tomaram

conhecimento das comentadas, porém pouco povoadas cordilheiras de Maracaju e

Amambaí. Após a desmobilização das tropas imperiais, inúmeros riograndenses,

25

participantes da Guerra, voltaram ao seu local de origem. Muitos outros, entretanto,

ficaram na região fronteiriça com a intenção de até residir. (Livro 31, p. 180).

No livro Palanques da terra nativa (2008), em um dos vinte e um textos,

intitulado “Início da fixação”, com forte referência histórica, Serejo conta que muitos

retornaram aos locais de origem, após a Guerra, e levaram a notícia das

possibilidades propícias ao agropastoril da região: “Cartas dos que aqui se achavam

seguiram que viessem, pois a largueza despovoada havia lugar para todos, sendo

que as terras eram devolutas e a obtenção do registro da posse não era difícil”.

(Livro 31, p. 180).

Conflitos políticos internos – Brasil – acrescentam-se aos citados: “Irrompe,

no Rio Grande do Sul, em 1893 a revolução federalista, saindo vencedores da brutal

contenda os republicanos. Foi uma luta selvagem, cheia de ódios, traições e

vinganças, que teve seu fim em 1895” (Livro 31, p. 180). Com isso, muitas famílias

fogem para a Argentina, Paraguai e algumas chegam ao Mato Grosso: “Uma

odisséia a viagem das comitivas rumo ao tão falado sul de Mato Grosso!

Atravessando dois países, Argentina e Paraguai, quando tudo corria bem

alcançando o ponto desejado em dois meses” (Livro 31, p. 182).

Diante desse recorte sócio-histórico, já temos uma sintética noção de como

se deu o início do povoamento da fronteira pelo prisma do olhar daquele que se

situa cronologicamente após a Guerra – cresceu ouvindo resquícios de guerra – e

que nasceu e cresceu no apogeu da extração da erva mate. Conta que muitos

vieram, mas há aqueles – além dos indígenas – que já estavam instalados no local,

como é o caso de Serejo, um nativo da fronteira.

Neste fervilhar de fatos históricos, Serejo vai agir em sua obra como sujeito

que ouviu a história e como sujeito processo da história, na perspectiva de quem

esteve em um tempo e local, e, quando já retirado, o elege como referência nas

narrativas. Na intersecção de fatos realizados, ocorridos, e o reconto, está o entre-

lugar do fazer literário serejiano que se faz, ademais, pela atipicidade da inserção de

dois aspectos à sua obra: insere fatos vividos por ele e por seu pai às narrativas e

possui, ao longo de 60 livros, significativo material referente à recepção da obra

realizada por amigos e admiradores de um tempo muito próximo às primeiras

edições dos livros.

Com isso, as realidades se sobrepõem: vivido e recriado são enredos de uma

mesma história, possuem ponto de contato e afastamento, típicos de ambiente de

26

fronteira. Esses entremeados – ouvi, vi, vivi, revivi – interessam nos a fim de que, na

afirmação de Valmir Batista Correa, “Nesta terra de poucas memórias” (1995, p.36),

possamos recolher vestígios, pelo viés da literatura, de nossa identidade. Hélio Serejo (1912 - e 2007)11, nasceu na fazenda São João, município de

Nioaque, um dos primeiros núcleos habitacionais de Mato Grosso, local histórico,

palco da Guerra da Tríplice Aliança e primeiro movimento divisionista do Estado12.

Nasceu mato-grossense. Com a divisão do Estado, em 1977, passou a ser sul-mato-

grossense. Identidade conclamada pelos habitantes de MS, pois mesmo com quase

40 anos da divisão, ainda há pessoas que se referem ao Estado de Mato Grosso do

Sul como se fosse Mato Grosso, embora a necessidade e o empenho de divisão

date de 1900.

Quando criança, sua família mudou-se para Ponta Porã13, fronteira seca, de

um lado Brasil, do outro, Paraguai. Segundo Campestrini (2008, p. 19), Hélio Serejo

cursou o antigo primário em Ponta Porã e, parte do ginásio, em Campo Grande.

Manteve contato com o mundo da escrita ao trabalhar, aos 13 anos, no jornal Folha

do Povo, em Aral Moreira/MS14; ali já publicava seus textos. Ele próprio conta, ao

escrever o livro Meus bisnetos:

Nasci na fazenda São João, no município de Nioaque. Com dois anos de idade, mudei-me com minha família para Ponta Porã, onde aprendi a andar, a falar, e onde cursei o primeiro ano, apaixonando-

11 Em pesquisa realizada em outubro de 2013 junto ao serviço registral e notarial da cidade de Nioaque/MS verificamos que consta na certidão de nascimento a grafia de ELIO SEREJO, sem a letra “H”, portanto. 12 Mato Grosso do Sul tormou-se Estado separado de Mato Grosso em 11 de outubro de 1977 devido à “dificuldade em desenvolver a região diante da grande extensão e diversidade". Em 1900, rompeu em, Nioaque, o primeiro movimento revolucionário de caráter divisionista, em conseqüência, sobretudo, “[...] do isolamento físico e social do sul de Mato Grosso, além da inexistência de transporte e de vias de comunicação, a prepotência do Grupo Laranjeira/Murtinho com os brasileiros que chegavam de outros Estados, principalmente, do Rio Grande do Sul”. Tolentino, T. L. Ocupação do sul do Mato Grosso antes e depois da Guerra da Tríplice Aliança. São Paulo, Fundação Escola da Sociologia e política de São Paulo, 1986. 13 O Decreto-lei n.° 5 812, que criou o Território Federal de Ponta Porã, estabeleceu que o mesmo fosse formado pelo município de Ponta Porã (onde foi instalada a capital) e mais seis outros sendo eles: Porto Murtinho, Bela Vista, Dourados, Miranda, Nioaque e Maracaju. Com articulações políticas, a capital foi transferida para Maracaju em 31 de maio de 1944 (Decreto-Lei n.° 6 550), e novamente volta a Ponta Porã em virtude de Decreto de 17 de junho de 1946. Nesse período articulações e interesses políticos fizeram com que prevalesse a força da fronteira. O território foi extinto em 18 de setembro de 1946 pela Constituição de 1946, e reincorporado ao então Estado de Mato Grosso. (http://brasiguaionews.com/artigo/artigo-ponta-pora-da-republica-velha-a-territorio-federal-revolucao-constitucionalista-na-era-do-estado-novo-de-getulio-vargas). Acessado em: 20/08/2013. 14 Cidade fronteiriça, aproximadamente, 50 quilômetros de Ponta Porã. Na época em que Serejo escreveu, deveria ser um pequeno povoado, pois foi distrito de Ponta Porã até 1976.

27

me desde então pela melodia dos pássaros, pelas majestosas árvores, pelos animais silvestres, pelos mansos córregos, pelos rios, pelas cascatas, pelos campos floridos, pelo sibilar dos ventos, pelo barulho ensurdecedor das tormentas, e pela magnificência do pôr-do-sol, a voz da natureza... (Livro 49, p. 149).

No povoado, desde muito cedo, acompanhava seu pai nos ervais e foi

trabalhar na ranchada de Porto Baunilha, região de Ivinhema/MS, em uma de suas

propriedades: “Tinha eu treze anos de idade quando, pela primeira vez, pernoitei em

uma ranchada ervateira, conhecida por todos como trabalhado da Empresa Mate”

(Livro 34, p. 76). Continua em “Eles”:

Nada escapara dos meus olhos interrogantes. Era, em verdade, um meninote, que tudo queria saber. Aquele complexo de afazeres, um mundo diferente dos demais de que tinha conhecimento com suas originalidades, me empolgava. Em cada peão e nas cunhas martirizadas, eu sorvia a agressividade daquele mister que até então me era completamente desconhecido. Não perdia, até ao anoitecer, um minuto sequer. (Livro 34, p. 76).

Serejo confidencia que, tudo o que via, anotava em um caderninho e na

memória de jovem atento e sensível, ao ponto de observar ações corriqueiras e

transformá-las em poesia, como é o caso de “A Cacimba”, soneto produzido,

segundo Reis (1980, p. 103), em 1933, aos 21 anos, com o qual conquistou o 1.º

prêmio do concurso “Poetas moços militares do Brasil”, no Rio de Janeiro:

Sempre em borbulhar, numa eterna mágoa, Eu vejo, cristalino, esse olho-d´água; E como é triste e alvo como o linho Um olho-d´água à beira do caminho!... Ali é a cacimba... rústica e isolada, Dos noitibós, esplêndida morada; Onde, fugindo da aridez do campo Em rondejar o alegre pirilampo. À tarde, na figueira, a passarada, Numa enervante e louca revoada, Senta... esvoaça...em lúbrica contenda. Faz dez anos que ali a preta amada, Com a grosseira saia arregaçada, Cantando, lava a roupa da fazenda...

28

A cadência emparelhada dos decassílabos intensifica a nostalgia do olhar do

poeta pela vida simples e natural da fazenda e demonstra que, desde muito cedo, o

autor integra o homem – “a preta amada” – à natureza. Além disso, a personificação

do ambiente – Sempre a borbulhar, numa eterna mágoa – é constante nas

narrativas, fortalecendo, ainda mais, a relação homem-meio, ao ponto de um adquirir

características do outro devido à integração natural. Outro aspecto reincidente está

no homem em trânsito, em movimento, “Um olho-d´água à beira do caminho” visto

pelo olhar de quem transita pelo caminho.

O hábito de tudo anotar resultou em sessenta e quatro cadernos guardados

como relíquia, na acepção de Reis (2008, p. 134), os quais possuíam registro da

vida nos ervais. Segundo Serejo, serviram como fonte de consulta e inspiração para

escrita de seus livros. Além dos cadernos, das anotações, das lembranças, ficaram

as amizades, como é o caso do “bugre Choié”, um mestiço de notáveis qualidades,

companheiro de viagem, que evoca, mesmo depois de tantos anos, recordações:

“guardo até hoje na memória” (Livro 34, p. 75). Ou, ainda, as amizades com

moradores da região fronteiriça, os quais passam a ser uma espécie de consultores:

“Segue mais uma cartinha pedindo ajuda” (MAGALHÃES, 2011, p.110), sobretudo, o

amigo Wilfrido Brizueña, o Don Nenito, uma espécie de informante-mor, como

veremos mais adiante.

Confirmando a temática histórico-regionalista praticada desde o princípio da

vida literária, em 1936, participou do concurso “Paisagens do Brasil” promovido

pelas revistas “Boa Nova” e “Vida Doméstica” com o poema “Caboclo de minha

terra”, por meio do qual obteve o primeiro lugar. Reis (2008, p. 1004) informa que

Graciliano Ramos e Augusto Meyer fizeram parte da comissão julgadora.

Sua vida pessoal foi entrecortada por problemas de saúde. Por isso, Elpídio

Reis, amigo de longa data, apelidou-o de “bolicho de doenças”. Outro aspecto que

perpassou sua existência foi o acontecimento real, ficcionalizado em “Bode

expiatório”, vivido pelo jovem Serejo, em 1935, no Rio de Janeiro; narrado em 1986,

1.ª edição em O tererê que me inspira (Livro 35). A história gira em torno de um

grande desejo de Serejo, “[...] ser engenheiro para construir pontes”, “um moço,

vibrante de amor pátrio [...] que lutou, bravamente, para vir a ser, um dia, tenente da

Arma de Engenharia!” (Campestrini, 2008, p. 185). Para tanto, inscreveu-se –

morava em Ponta Porã/MS - como voluntário no 3.º Regimento de Infantaria, na

Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, “[...] sai de Ponta Porã, em 18 de outubro de

29

1932. Tinha tudo bem planejado, pois contava com a cooperação cristã do primo

capitão Lauriano Gomes Monteiro, que servia no 3.º R.I. Ao chegar fui incorporado,

como voluntário [...]” (Livro 35, p. 182); porém, seu sonho finda em 1935, após ter

concluído o curso de sargento; “por estar na hora errada no lugar errado”, acabou

preso como comunista, na Intentona, tentativa de golpe militar contra o governo de

Getúlio Vargas, realizada em novembro de 1935 pelo Partido Comunista Brasileiro

em nome da Aliança Nacional Libertadora. Até ficar provada a sua inocência,

permaneceu seis meses preso, na “Ilha das Flores”, de “onde saiu mais morto que

vivo” devido às privações e maus-tratos a que fora submetido. Foi expulso do

Exército e retornou, tristemente, a sua terra natal. Foi reintegrado ao Exército, ainda

em vida, em 2006, como primeiro-sargento.

Este fato marcará para sempre sua história de vida, não muito diferente da de

Graciliano Ramos, preso em 3 de março de 1936, em Maceió, segundo cada qual –

Graciliano em Memórias do Cárcere, Serejo em Bode expiatório15 - conta sua

história, nunca souberam ao certo por que foram detidos, nunca sofreram um

interrogatório. Certamente, como avalia o cabo voluntário, “por estar na hora errada

no lugar errado, acabou preso como comunista, na Intentona”. (Livro, 35, p. 132).

O desejo de construir pontes foi revigorado em 1955, ocasião em que o

Rotary Clube de Presidente Venceslau/SP, lançou a propaganda “Pró-construção da

ponte sobre o rio Paraná”. Hélio Serejo foi o presidente da comissão e seu empenho

foi tamanho que as ações mediadas por ele reverteram em 12 grossos volumes

encadernados, onde estão arquivados os documentos jornalísticos, fotográficos e

expedientes oficiais desenvolvidos pela Comissão. Ao final de 5 anos, a ponte foi

inaugurada. Novamente, Serejo se vê ludibriado pela sorte, pois a indicação de seu

nome para a ponte não foi aceita pelo governo federal, além de ter sido barrado à

entrada do “banquete em regozijo pela inauguração da importante obra.” (Livro 49,

p. 153)16. O reconhecimento veio em 2012 por meio da Lei nº 12.610, de 10 de Abril

15 Na narrativa Um que o destino marcou (Livro 26, p 284-293), Serejo recupera parte da história pessoal vivida em Bode expiatório ao contar a história do amigo, “um farrapo humano”, o único que foi lhe visitar na Ilha das Flores, ocasião em que esteve preso. 16 A ponte Hélio Serejo foi inaugurada sobre o rio Paraná, entre os estados brasileiros de Mato Grosso do Sul e São Paulo, possui 2.5501 metros de extensão e, até a inauguração da ponte Rio-Niterói, era a mais extensa do Brasil.

Foi publicada, em 11 de abril de 2012, no Diário Oficial da União (DOU) a lei que muda o nome da ponte sobre o rio Paraná que liga o estado de São ao de Mato Grosso do Sul, entre Presidente Epitácio e Bataguassu, de Mauricio Joppert da Silva para Hélio Serejo. Até

30

de 2012, quando esta recebeu o nome de Ponte “Hélio Serejo”. Com isso, os méritos

de homem que lutou para que o acesso entre os dois Estados - MS e SP - fosse

facilitado, foram outorgados.

Em conformidade com Elpídio Reis, biógrafo, amigo, confrade e conterrâneo,

Serejo viveu a maior parte da sua vida em cidade do interior paulista, Presidente

Venceslau/SP, de 1948 a 2005, e não foi muito de vida social; fez seu percurso

literário à custa de estudo exaustivo permeando lembranças do local em que viveu,

com investigação de dados como já anunciamos, usufruindo da boa amizade

fronteiriça.

Gabriel Otávio de Souza, em orelha do livro De Galpão e Galpão (s.d.) conta

a ocasião em que Hélio chegou à redação, com um pacote de livros cujos títulos lhe

chamaram a atenção e levaram-no a inferir “É um cabra que pega a gramática, para

aprender regras de escrita [...]”. (Livro 18). Tomava a sua produção como trabalho

árduo, de pesquisa, sobretudo, retórica, como se pode perceber na parte estrutural

de suas narrativas, em que exercita o modelo aristotélico – exórdio, introdução e

conclusão. Na década de 1980, Serejo intensificou pesquisa sobre o erval. Constam no

livro O karaí de Sanga Puitã, do historiador Magalhães (2011, p. 108 -110), cartas

trocadas entre Serejo e Nenito Brizueña, amigo desde 1926, quando, ainda, vivia no

erval de Posto Baunilha. Foram muitas as consultas e pedidos ao amigo, desde o

pedido da Ata de fundação da Cooperativa do Mate de Ponta Porã, até a consulta de

nome de raízes usadas para curar maleita, como se pode avaliar na figura 2.

então, a ponte homenageava um engenheiro e político do Rio Janeiro, que foi ministro dos Transportes na década de 1940 e nada teve a ver com a obra que interligou os Estados. Passa a levar o nome de Hélio Serejo, um escritor e jornalista que nasceu em Nioaque e passou os últimos anos de sua vida em Presidente Venceslau. Ele foi o principal defensor da construção da ponte interligando os Estados, chegando a ser o presidente da “Campanha de Propaganda Pró-Construção da Ponte sobre o Rio Paraná”.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ponte_H%C3%A9lio_Serejo. Acessado em 20/01/2013).

31

Figura 3 – Carta trocada entre Serejo e Nenito Brizueña Fonte: (MAGALHÃES, 2001, p.104).

O amigo retribui, inclusive, com um desenho de próprio punho explicando como era o

procedimento de um barbaquá17 e Serejo prestou-lhe “Homenage de reconocimiento...”:

Um autêntico paraguaio-brasileiro, um ervateiro de tradición,

caraí de muitas lidas, amigo leal, servidor, sempre cavalheiro, nasceu no ano de 1902, quase debaixo de um pé de erva, segundo seu próprio registro;...

[...] Vive contente pelas orilhas da fronteira, rememorando fatos

passados e falando sobre o mundo bruto da erva, evocando a vivência dessa época de tantos sacrifícios.

Nas minhas campereadas ervateiras, sempre tive, na pessoa do buenhaco Nenito Brizueña, um cooperador infatigável.

Quero abraça-lo macanudamente, um abraço de amigo e hermano, nas páginas deste modesto livro que cheira a perchel, barbaquá, arrastras, raídos e mbureô18 de mensu19 preocupado.(Livro 41, p. 67).

17 Jirua - espécie de mesa um pouco mais alta – de forma côncava, erguido sobre um buraco, destinado à secagem da erva-mate. O nome vem de boberacuá: o que brilha muito. (Livro 50, p. 253). 18 Grito de satisfação e entusiasmo do peão do erval. Alguns imitam animais ou pássaro. Meio do ervateiro s comunicar dentro do erval (Livro 50, p. 272).

32

Pelos fatos, Serejo usa a memória e as relações pessoais para pesquisar

dados históricos, hábitos e costumes no intuito de escrever a monografia. A prática

de pesquisa, certamente, aprendeu com o pai, Francisco Serejo, o qual, por mais de

30 anos, pacientemente, dividido entre os afazeres do erval, à luz de lamparina,

escreveu o Dicionário dos charadistas e cruzadistas contendo mais de 3.000

páginas datilografadas (Reis, 1980, p. 44). O registro ímpar de Reis, merece

destaque por ilustrar a prática da pesquisa e a relação de um sujeito do erval em

diálogo com o mundo das letras:

O que há de mais interessante na vida desse homem é que ele, ao mesmo tempo, que se entregava ao pesadíssimo trabalho dos ervais – tão pesado que só os que já nasceram nele eram capazes de suportá-los – cercavam-se de montes de livros, empilhados pelo chão, e mesmo à noite, sob a luz de lamparina, ou nos momentos vagos durante o dia [...] ia pacientemente pesquisando e colhendo dados para a elaboração de um DICIONÁRIO DOS CHARADISTAS E CRUZADISTAS. Levou 30 anos neste trabalho. [...] Na impossibilidade de editar tão volumosa obra com recursos próprios, o autor, em 1950, doou os originais a uma Organização de Charadistas e Cruzadistas, de Belo Horizonte, a qual, também, por falta de recursos, não publicou o dicionário.

Reis salienta a dificuldade para conseguir comprar um livro, quando uma

carta levava um mês para chegar a São Paulo, além das condições físicas e de

disponibilidade para pesquisa e produção, tanto que foram 30 anos de trabalho

pesquisando sobre “Todos os reis, rainhas, príncipes e princesas do mundo; os

grandes generais, os navios que naufragaram, mitologia; os grandes inventores; os

vulcões do mundo; as maiores e mais encarniçadas baralhas de todos os tempos

[...]”. Reis registra, ainda, que a pesquisa do ervateiro-dicionarista chegou até o ano

de 1930.

Em 13 pontos de Hélio Serejo, Reis conta, de forma muito bem humorada, os

percalços da vida do amigo e conterrâneo, aquele que “acertou em cheio na Loteria

da vida” (1980, p. 12). Uma passagem pouco conhecida diz da sociedade formada

entre pai e filho, e, em 1944, já no final da 2.ª Guerra Mundial, quando “[...] acharam

de montar uma fábrica de óleo de laranja azeda. “O óleo seria destinado a aviões

19 Homem que faz o corte das folhas da erva mate. Um profissional de respeito sempre. Sobre até seis metros de altura, mantendo equilíbrio perfeito. É o elemento chave em todas as organizações ervateiras. (Livro 50, p. 273).

33

que lutavam na Guerra”. Para tanto, o pai – Dom Chico – vendeu uma tropa de

burros cargueiros e arrendou uma gleba à margem do Rio Vacaria, a fim de

transformar a laranja azeda, nativa neste local, em combustível. Depois de muito

trabalharem, com 28 funcionários paraguaios – mão de obra barata – para

montarem a usina, tiveram que vender as máquinas em Sorocaba/SP, pois a Guerra

havia acabado e não havia mais compradores para o produto produzido pelos

empreendedores fronteiriços.

Uma singularidade em Serejo está na inserção, em suas publicações, de

trechos de correspondências recebidas de seus amigos e/ou admiradores quando

estes ganhavam os volumes ofertados pelo autor. Com isso, há, em boa parte de

seus livros, notas de agradecimentos, saudações, apreço, trechos de cartas e

bilhetes. Outro hábito peculiar está na divulgação e publicação dos exemplares,

quase sempre, financiada por recursos próprios, muito natural, por se tratar de autor

à margem.

Por adotar a prática da inserção de correspondência recebida, Serejo foi

construindo, dentro de sua obra, uma espécie de fortuna crítica entrelaçada às

narrativas. Essa peculiaridade abre espaço para investigarmos a recepção das

narrativas que se referem ao regional, ao local, uma vez que seus possíveis leitores

reconhecem o laço – ou nó – que une os planos do inventado e do reconstruído.

Isso se dá em decorrência da proximidade do fato histórico ocorrido com a leitura,

bem como pelo conhecimento que os leitores possuem do contexto histórico.

Compreendemos que Serejo envaidecia-se com as cartas, com as

saudações, com os bilhetes que recebia; entretanto, não parece que as publicava no

intuito de se enaltecer, mas de divulgar, como forma de confirmar a leitura e a

interação de seu texto com seus possíveis leitores. Embora tivesse acesso aos

jornais, rádios, editoras, esses veículos não tinham projeção além da local, pois

eram periféricos.

Percorrendo a obra de Serejo, fica evidente que o fazer literário de homem

simples, de pouco estudo formal, de valores morais e religiosos convencionais, de

princípios calcados na relação colonizado/colonizador, foi motivado pelo prazer que

dedicou ao seu fazer literário.

Esse fazer reverteu no que ele denomina “rosário de divagações literárias”

(Livro 22, p.9) e que coloca, “humildemente”, nas mãos seus patrícios”. Encerra a

apresentação de Contas de meu rosário julgando-se um predestinado: “Em cada

34

conta está um pouco da predestinação que Deus me deu”: Assemelha-se à figura de

um escolhido por Deus a serviço daqueles que não receberam o mesmo “dom” que

ele. O tom de voz textual ressoa com timbre sertanejo, pausado, calmo, típico ao

ritmo do nativo da região fronteiriça. Também deixa vazar uma relativa humildade

cristã, do bem, de homem de paz, necessária, haja vista o lócus em que estava, de

onde enunciava: fala da fronteira para a fronteira. Voz que ressoa a meio timbre,

nem por isso, abafa as condições trágicas de fronteira discutidas por Martins:

As concepções centradas na figura imaginária do pioneiro deixam de lado o essencial, o aspecto trágico da fronteira, que se expressa na mortal conflitividade que a caracteriza, no genocida desencontro de etnias e no radical conflito de classes sociais, contrapostas não apenas pela divergência de seus interesses econômicos, mas sobretudo pelo abismo histórico que as separa. (1997, p. 15).

Serejo sabia dos procedimentos alfandegários de fronteira, bem como do

mérito em ser um homem do bem, conforme os preceitos católicos. Portanto, seguia

firme na crença de que sendo do “bem” receberia as glórias divinas e o privilégio

para gozar de seu mais sublime desejo: ser escritor. Pensamento e ação cultural dos

povos catequizados e colonizados pelo movimento europeu que se alastrou pelo

mundo. Essa herança cultural – fé, devoção, preceitos católicos – vai fundamentar o

posicionamento do escritor e sobressairá nas narrativas por meio da condutas dos

personagens.

1.2 PATRONSITO20 DO ERVAL

Em duas semanas, já sabia eu das coisas de uma ranchada: os costumes, crendices e os tipos característicos. Também o que era do seu dia-a-dia: arrias, arrastras, ataqueio, arroba-carém, arrieiro, arboleras, aoaô [...] changá-y, caá caiguê...(Livro 34, p.76).

Para Puccineli21 (Livro 34, p. 03), Serejo eterniza o sul de Mato Grosso do

início do século 20, destaca o “mundo bruto da erva-mate”, local em que “viveu por

20 Nome pelo qual Hélio Serejo ficou conhecido nos ervais do sul de Mato Grosso. (Livro 50, p. 276).

35

anos e do qual nunca mais se separou”. Para maior clareza, diríamos “nunca mais

se separou” literariamente, já que perpetuou possibilidades interpretativas de um

tempo, sujeitos e local no trajeto de sua produção literária.

No dizer de Bakhtin (2004, p. 79) “nenhuma enunciação verbalizada pode ser

atribuída exclusivamente a quem a enunciou”, uma vez que resulta como produto da

inter-relação entre falantes “produto de toda uma situação social em que ela surgiu”.

Então, a obra de Serejo surge ao passo que vai recolhendo contas espalhadas pela

lembrança e junta-as pela memória, em um tempo e espaço já distanciados, como

insiste em explicar ao leitor: “Anotamos e... anotamos sempre, infatigavelmente, sem

mesmo saber por quê. Havia, dentro de nós, um desejo mórbido de conhecer, em

minúcias, aqueles homens brutos, mas tementes a Deus e aquela luta de martírios

que não tinha fim” (Livro 34, p.24).

Com isso, o narrador reconhece o “outro”, demonstra desejo imenso de

conhecer “aqueles homens brutos” com os quais vai conviver e aprender:

“Aprendemos muito, muito mesmo, e nos tornamos, então, um caraí ervateiro, como

tantos outros, [...]” (Livro 34, p. 26). Entretanto, não é um caraí, tornou-se “um caraí

ervateiro. Está no entre-meio das partes: não era e passa a ser, mas não é o “Caraí”

é um outro, um terceiro. Um sujeito que aprendeu com o “caraí”, no texto, “Eles”

(Livro, 34, p.76). Serejo aponta detalhe de como foi o processo: “A assimilação ou

costumbriamiento não foi fácil. Tinha no meio ambiente uma escola ao vivo.

Ensinadores de boa vontade, pacientes, é que não faltavam.”

Ao entremear suas memórias, sua história pessoal à história do outro, Serejo

auxilia-nos a justificar a necessidade de saber de sua história – aspectos externos

ao texto, uma vez que reconfigura em sua obra, por meio de sua experiência de

vida, as relações com o outro; compara-se com o outro, aceita o outro, vê o outro em

si mesmo. Faz-se um ervateiro e assume o “nobre” ofício. Para os teóricos,

sobretudo, Achugar (2006) a aceitação do outro é um prenúncio para a existência

desse um que se propõe diverso. É na comparação com o outro que existe esse um,

e é nessa negociação, que se gesta o tipo de identidade a ser constituída. Serejo vai

mediando, pela voz do narrador, “essas negociações” entre seus personagens que,

às vezes, ele também se faz.

21 André Puccineli, governador do Estado de Mato Grosso do Sul, apresentou as Obras Completas de Hélio Serejo organizadas pelo Instituto Histórico Geográfico de MS em 2008.

36

As circunstâncias – políticas, de localização, formação – que impulsionaram

Serejo, diante de tanta adversidade contextual, a assumir a iniciativa das obras

escritas ao longo da vida está, aparentemente, na satisfação de se fazer contador de

histórias que, antes de serem ficcionalizadas, existiram de fato, em um tempo e local

pouco propícios à possibilidade de registro escrito. Primeiro, pela dificuldade de

acesso ao contrato da escrita, em se tratando das circunstâncias advindas do

mundo sertão; segundo, pela concepção de belo. Quem se interessaria por contar,

por escrito, os dramas e as tragédias de mais uma épica aventura humana vivida por

personagens anônimos, de um local “entregue a toda sorte”, como se pode apreciar

na crônica relâmpago em “Vida de erval”, narrativa em que Serejo potencializa as

fronteiras do histórico e ficcionalizado, dos contratos de hábitos e costumes

fronteiriços? Vejamos: Foi rápida a cena. O ingênuo aconcágua22, com o intuito de

divertir os festantes, toma nos braços a formosa cunhã e sai rodopiando espalhafatosamente pela sala. Pelo rancho aberto e iluminado por piscolejantes lampiões de querosene, reboam estridentes gargalhadas, abafando os acordes da típica do trio Ojeda Parra.

Nesse ínterim, alguém, salta de um canto, feroz como uma suçuarana acuada num claro traiçoeiro da mata bruta. Um silêncio de morte cai sobre o ambiente. Ninguém respira. Só o vento agita as tranças das folhas de pindó que cobrem a rústica pérgula.

Um mineiro arrojado, ágil como a urutu, tenta evitar a tragédia. Vai de encontro ao monstro enfurecido, mas chega demasiadamente tarde. Uma faca longa e filosa reluz no ar três vezes seguidas. Ouve-se um grito macabro e angustioso. Um corpo sem cabeça cai pesadamente no chão. Nessa mesma noite fez-se o velório enquanto a farra prosseguia como se nada houvesse acontecido. São as tragédias vulgares das fronteiras abandonadas. (Livro 5, p. 112).

Com base em Candido (2006, p. 35) respaldamos a hipótese de que Serejo

avançou muito além do que disseram seus fiéis amigos, confrades e admiradores

em seu fazer textual, sobretudo, quando as aparentes histórias individuais, de

personas ou do próprio Serejo “[...] adquirem significado social na medida em que as

22 Em Homens de aço, Serejo explica em que consiste ser um Aconcágua: “é uma espécie de palhaço, é um personagem infalível nos festejos dos ervais; embriagado quase que de ordinário, desempenha os mais ridículos papéis que se possa imaginar. Corteja insistentemente, tornando-se uma verdadeira sarna, as trêfegas e debochadas cunhatais que lhe dão corda, retribuem os seus grosseiros galanteios para depois, numa rasteira de mestre, jogá-lo no chão esmagado por um seco e brutal no quiero bailar”.(Livro 09, p. 255). Ao final do texto O aconcágua, o autor insere “Vida de erval”, já citado por nós.

37

pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas, agindo, permitem por sua

vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando repercussão no grupo”.

Aparentemente, autor de um passado histórico, transeunte pelo contexto

fronteiriço, de quando o sul do Mato Grosso do Sul começou a ser mais povoado

devido à extração da erva mate, como “meninote que tudo anotou”, toma as

lembranças e o conhecimento adquirido e reconstrói as experiências, individuais ou

coletivas, em narrativas escritas. Para maior clareza, sua “insistência” em ser

escritor resplandece pelo viés da “predestinação que Deus me/lhe deu”, pela

satisfação do exercício da escrita e no ensejo de perpetuar o seu “grande amor pelo

sertão”, como afirma em “Meus bisnetos” (Livro 49, p. 151): “Desde meninote fui

assim: um enamorado, em grau muito elevado, das paisagens sertanejas, portanto,

dos mistérios das coisas charruas”. Graças a essa “predestinação”.

Todavia, há no conjunto de sua obra uma amostragem significativa da

formação do sul do Mato Grosso do Sul e das muitas relações do homem com o

meio, ainda, a desbravar. Uma dessas relações revela-se no paradoxo sentimental

que vive o homem em trânsito – aquele que vem e vai – oferecendo seu precioso

trabalho braçal em troca de pouco mais do que um rancho e alimentação diária.

“O autor – joão-ninguém da poesia e da prosa –”, como ele mesmo se auto

denomina ao proferir seu discurso de posse na Academia Mato-Grossense de

Letras, diz, primeiramente, quem é, pela constituição do local:

Eu sou o homem fronteiriço que na infância atribulada recebeu nas faces sangüíneas os açoites desse vento, vadio haragano, que, no afirmar da lenda avoenga, nasce nas terras incaicas, num recôncavo do mar, varre o altiplano boliviano, penetra o imenso aberto do Chaco paraguaio, para depois, exausto do bailado demoníaco, numa cólera e estrupício de tormenta, arrebentar, cortante e gélido, na cidade de Ponta Porã, a Princesa da Fronteira, sentinela avançada das terrarias mato-grossenses. Eu vim dos ervais, meus irmãos, dos bailados divertidos, dos entreveros dos bolichos das estradas, do mais hirsuto da pailama seca, do pôr-do-sol campeiro, dos doutos, das encruzilhadas e das distâncias perdidas. (Livro 49, p. 149).

Ser homem fronteiriço significa sorver, tragar, ser açoitado pelos ares

avoengos que vêm de muito longe e trazem o gélido para a região mais fria do Mato

Grosso do Sul, devido à localização. O sujeito que ali está recebe o que vem de fora

em seu estado de ser local. Com isso, entre o vento que veio e o vento que estava

instaura-se uma nova sensação climática. Um outro possível reconhecimento.

38

Metáfora de um entre-lugar constituída pela possível relação entre o chegante e o

nativo, os quais irão povoar a fronteira, como veremos no segundo capítulo.

De início, no discurso de posse, já podemos notar a ideia de diferença dos

“ares” fronteiriços, além daquilo que, ao contrário do autor, nasceu fora do espaço

de fronteira, o vento que vem das Cordilheiras dos Andes e adentra fronteira. Não é

o vento habitual, é diferente, embora seja reconhecido pelo que está distante de

onde o vento se originou. É o vento típico da fronteira – Ponta Porã, Bela Vista... – O

fronteiriço reconhece essa atipicidade em relação ao restante do Estado, devido ao

calor intenso. A fronteira se faz diferente não só pela exposição geográfica, em

relação ao restante do Estado, mas transfigura-se em além espaço físico ao tratar

de aspectos sócio-culturais representados nas histórias ficcionalizadas.

A continuidade do discurso de posse auxilia-nos a principiar com reflexões

advindas de Achugar (2006, p. 314):

O arquivo, a tradição, a filiação, a genealogia, o testamento, o legado são formas de estabelecer vínculos: sou filho de, natural de, familiar de, amigo de; esses são meus herdeiros, meus descendentes, meus filhos, meus alunos. Mas, também, são formas de conseguir desvincular-se. Se sou daqui, não sou de lá [...]. Se creio em Maomé, não creio em Jesus, se tenho a pele branca, não sou negro, se asiático. Mas essa é a forma fácil. Há vínculos mais complexos. Sou alfa e ômega, branco e preto, homem e mulher, canhoto e destro.

À maneira de Achugar, indagamos: Se eu sou assim como será o outro? “Há

um “eu” e há também esse Outro “eu”, esse outro sujeito que é o Outro”. A afirmação

da identidade perante a Academia de Letras/Cuiabá-MT em noite solene “Eu vim

dos ervais [...] do fogo dos barbaquás, do canto triste e gemente dos urus, dos

entreveros dos bolichos das estradas [...] Eu sou filho da jungle23, sou gaudério de

todos os pagos,...e cria de todos os galpões da terra” (Livro 49, p. 149) poderá

revelar a incorporação do outro, do todo representado no/pelo escritor. Para

Achugar, “Uma forma de pensar no tema do ‘todo’ passa pelas noções que falam de

‘discursos minoritários’, de ‘línguas’ ou ‘literaturas menores’, de ‘culturas de

resistência’, de ‘legitimação’, de ‘aceitação’ [...] (p. 317); sustentamos que essa

23 Serejo usa por diversas vezes o vocábulo em Inglês, jungle, que significa "deserto, floresta, terra inculta", do sânscrito Jangala-s "árido, pouco crescido com árvores". Sentido específico de "terra coberto por vegetação em um emaranhado selvagem" é registrado pela primeira vez em 1849. (? ).

39

representação evidencia-se na obra de Serejo, quando este assume sua identidade

perante a sociedade dos confrades e confreiras.

Ao assegurar “Serei aqui, caboclo rústico, de gestos desengonçados, homem

fronteiriço que foi embalado na infância pelo vento haragano vindo de terras

distantes índio cruzador de todos os pagos...” (Livro 49, p. 18) Serejo resgata a

memória dos esquecidos, dos que vivem à margem – e faz da minoria, uma

representação majoritária por meio do fortalecimento de suas origens, da

sustentação de que ser “misto” (“fui, no perpassar inexorável do tempo, obreiro de

crença, fé e esperança, fui, também, imagem viva de desesperança, revolta e

sofrimento” (Livro 49, p. 17) agrega em si, não apenas o “eu”, mas, sobretudo, traz

consigo o vão para investigar o “outro”, daquele que veio “[...] dos entreveros da

fronteira, dos ervais sombrios, dos caminhos perdidos, do pôr-do-sol que magnetiza,

dos galpões das estâncias, do chão poirento e das encruzilhadas”. (p.19).

Entretanto, há vão para outras leituras além do homem “sou” e “serei”, se

considerarmos que este se forma pelas relações que trava, ao longo, da vida, com o

outro e o outro com ele. Isso não significa, tão somente, o estreitamento do diálogo

face a face, prática interlocutória. Resulta ainda na dialogização interna da palavra;

na palavra em uso está o discurso do outro que se fez em mim. No discurso de

Serejo, enunciador, está o discurso de outros, ressoam vozes constitutivas nas

marcas afirmativas de presente e futuro.

A insistente afirmação clama pelo reconhecimento do que não sou. Eu sou

aquilo que eu sou e não aquilo que a Academia acha que eu não sou. Aqui, eu sou

facetado e sou inteiro porque me faço acadêmico e não deixo de ser. “Sou misto,

também, de índio vago, cruza-campo e trota-mundo” (Livro 49, p.150). Se assim eu

sou, então, está na academia um homem e sua identidade. A cadeira de número tal

será ocupada por um sujeito sob cuja palavra há outras palavras, outros homens, os

quais também farão uso da palavra pelo discurso de Serejo.

Seu discurso é entremeado pela posição de todos somos filho de alguém,

tinha procedência – Dom Chico Serejo – dono de ranchada, com a posição das

experiências nas funções ervateiras exercidas, por onde passou, foi “[...] um pouco

de tudo: guaino, uru auxiliar, condutor de arrias, percheleiro, fazedor de puchos,

atacador, custureador, provistero, cuestero, comissário e até moyordomo.” (Livro 50

p. 217), bem como, pela sua história de boa amizade com os senhores fazendeiros e

40

políticos, que viviam na fronteira, com os quais Serejo continuou mantendo relações,

mesmo afastado do convívio local.

Este permear deixa passar os contratos necessários para viver bem em

ambiente onde a Lei se faz lei a partir da força da ordem: “A ordem que elas –

patrulhas volantes – recebiam não variava nunca: prender, se possível; ou matar,

caso houvesse tentativa de fuga...Acontecia que o malfeitor encontrado sempre

tentava fugir” (Livro 38, p. 44). Com isso, a sabedoria de Serejo está em não afrontar

os que estão em seus postos de comando, mas em eleger para suas histórias, com

mais intensidade, aqueles que, como ele, estiveram sujeitados ao convívio com “[...]

hombres valientes que no temiam La muerte [...] (Livro 38, p. 45), tendo, quase

sempre, o cenário fronteiriço como grandiloquente no intuito de respaldar as

histórias de martírios e sofrimentos dos transeuntes de uma região fronteiriça

entregue a toda sorte. No entrelaçar das histórias contadas e das esquecidas,

sobressai a ação do colonizador sobre o colonizado; o segundo, acreditando que lhe

foi dada uma grande oportunidade de trabalho tenha consciência de sua condição

de explorado. Tanto que, em raras exceções ouviremos um ressoar de voz de

personagens.

A relação de Serejo com as realidades em que esteve inserido: erval e

cidade, oral e erudito, ervateiro e escritor – experiências que lhe renderam, segundo

ele, ingrediente para suas narrativas –, leva-nos a reconhecer possíveis

representações identitárias, ainda pouco estudadas nas literaturas locais, como é o

caso do próprio fazer literário serejiano. Em seus textos, Serejo incorpora, ao seu

português fronteiriço, vocábulos em Guarani, Espanhol, da região sulina do Brasil,

entre outros.

Assim, a peculiar escritura fica sendo, segundo Barzotto (2009, p 32), muito

mais do que um recurso poético ou um estilo do autor, uma vez que o processo de

hibridação cultural vivenciado pelos fronteiriços transparece no texto, o qual passa a

ser um instrumento de denúncia, de sobrevivência e garantia da posteridade de uma

dada realidade, porque nela o registro da história se faz possível. Objetivo

deliberadamente explicitado pelo autor ao longo da obra, como vemos em “O

passado, em verdade, está presente, não morrerá nunca”. (Livro 49, p. 152).

Entretanto, mal sabia que, na sua condição de colonizado, descreveu muito

mais do que “[...] o selvático, o descampado, os cômoros, os brejais infindáveis, [...]

as sinfonias das taboas nos alagadiços, o barulho cantante da queda d´água no

41

coração das brenhas...[...]” (Livro 49, p. 152), uma vez que se manteve inserido no

espaço-temporal, no espaço – de fronteira – e no tempo, em que a fronteira

começou a ser povoada, revelando-se como um sujeito do entre-meio, da fronteira.

Um homem que vem de longe e, paulatinamente, vai se firmando – ou não – no

local, como bem diz: “Vim de longe, sou um misto de poeira de estrada, de fogo de

queimada, de aboio de vaqueiro [...]” (Livro 49, p. 150). Um misto, um possível

homem formado pelos contatos e desacordos, uma metáfora de sua própria obra.

Como se pode avaliar no trecho do discurso de posse, além do contexto

territorial, Serejo transita pela fronteira linguística com muita fluência e naturalidade,

tal qual o momento da produção da fala. As escolhas e combinações não interferem

na compreensão do texto; ao contrário, abrem espaço para interpretar. Segundo

Canclini (2003, p. 24), as relações de sentido se reconstroem nas misturas das

partes estabelecidas por diferentes sujeitos em variadas situações. A inserção de

vocábulos em Guaraní ou Espanhol metaforiza o convívio na fronteira territorial,

reflete a hibridação e cria uma representação de um estado de fronteira incorporada

ao texto, de tal forma que a tessitura revela a supremacía do fato histórico, uma vez

que o narrador, embora fronteiriço, está contando um fato, do lado da orilla que

ganhou a guerra. Por isso, o colonizado é o chegante paraguaio, sua participação no

discurso é muito menor em relação ao brasileiro, embora também sobressaia sua

descendência.

Para Campestrini (2008, p.231), “Hélio foi o trilhador de todos os caminhos

[...] da região explorada, povoada, emancipada, pela Empresa Mate Laranjeira.

Trilhador, porque, trabalhando com o pai como ervateiro, transitou por todas aquelas

picadas...”. Em noite solene, continua abrindo caminho por meio do qual a palavra

em uso se tornará presente de um passado histórico que pouco aparece na história

oficial, todavia, está na forma como Serejo organiza o contar.

Em particular, Serejo é a ponte que une passado e presente da identidade

sul-matogrossense. Por isso, instiga-nos a pensar a trajetória de luta de um homem

de pouco estudo formal perante a Academia, aparentemente desconfortável quando

chega a um local pouco conhecido. Comporta-se, pois, como “legítimo bugre”,

contido, humilde; entretanto, a linguagem de seu discurso justifica o assento

acadêmico.

Em Trilhador de todos os caminhos: Vida e obra de Hélio Serejo, livro que

acompanha a Obras Completas de Hélio Serejo, Hildelbrando Campestrini conta:

42

Voltando, certo dia, de Santa Catarina para Campo Grande, senti-

me na obrigação de visitar aquele velho amigo, em Presidente Venceslau. Foram poucas horas de conversa. Já quase nonagenário, muito lúcido, ao mostrar-me a coleção de seus escritos, deixou-me transparecer – o que não era comum nele – uma certa decepção pela falta de divulgação de seu trabalho. Ao despedir-me, no final do dia, prometi-lhe todo esforço para publicar aquilo tudo. Coloquei mãos ao trabalho, que durou quase quatro anos: digitar, revisar, conferir, pesquisar, padronizar a linguagem e, por derradeiro, distribuir os livros por volumes, diagramar e finalizar o conjunto.

Entrementes, animado com o resultado e com a edição próxima, Hélio Serejo doou os direitos autorais, em caráter definitivo, ao Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul. (p. 07).

E conclui o seu texto de apresentação afirmando que o fez movido pelo

interesse de “colocar à disposição do público a obra completa de Hélio Serejo, que

já começa a ser estudada, principalmente em trabalhos de pós-graduação” (p.08).

Serejo tinha consciência de que sua produção destoava do modelo de obra

cuja organização gira em torno de uma temática ou de um gênero textual, tanto que

a metaforizou da seguinte forma, na introdução de “Balaio de Bugre24”:

Por que o esquisito título de Balaio de Bugre para este livro? Contar-lhe-ei o motivo. Durante longos anos viajei pelo sul de Mato Grosso [...] Por várias vezes, nessas pousadas incômodas, notei o seguinte: um balaio velho, feito de lâminas de taquara, ficava ao lado do bugre mazoro. Qual o seu conteúdo? Quase incrível isto: atadinhos de trapo, chumbo, pólvora, raízes, folhas, milho-pipoca, semente de abóbora, carretel de linha, lenço de chita, pedra de isqueiro, colher, faca, cuia de porongo, pedaço de rapadura, mandioca, pena de arara, unha de gavião, dente de onça e mil bugigangas. Assim sendo, muito bem fica-lhe o título. Está de acordo com seu conteúdo. Muito de acordo mesmo. E por acaso, não é o autor, bugre também? Bugre legítimo com arremedos de homem civilizado. (Livro 39, p. 93).

O esclarecimento do “esquisito título” justificado pelo próprio autor, leva-nos a

inferir, em específico, posições de sujeito conhecedor de padrões tradicionais, de

posições conservadoras, sobretudo, dos possíveis leitores imediatos de seus

24 O termo bugre originou-se num movimento herético, na Europa, durante a Idade Média, representando uma força contrária aos preceitos ditados pela ortodoxia da Igreja. Surgiu no século IX, na Bulgária, tendo sido batizado como bogomilismo, inspirado no nome do padre Bogomil, considerado fundador da seita herética. Aos poucos, no Mundo Ocidental, o sentido da palavra bugre vai se transportando de um mundo religioso para um mundo profano, levando consigo a ideia do bugre como o devasso, o sodomita, o pederasta, o infiel em que não se pode confiar, que representa a porção mais baixa da sociedade européia. (GUISARD, 1999, p. 92)

43

“livrinhos”. Ao metaforizar, eleva a significação do livro, uma vez que o relaciona

contextualmente e dá um caráter de originalidade, legitimando o título com a

identificação identitária: “E por acaso, não é o autor, bugre também? Bugre legítimo

com arremedos de homem civilizado”.

Texto, contexto e autoria estabelecem uma cadeia semântica construída não

pelos aspectos das escolhas e combinações sintáticas. Projetam-se, por meio dos

elementos do discursivo, sobretudo, o contrato de “como” o título foi escolhido e de

“onde” foi resgatado – elementos externos, integrados aos internos. Esse resgate

produz a recriação de uma realidade, um hábito, um costume, uma crença que

passa a transitar de forma poética pelo desuso da plasticidade verbal em detrimento

da imagem ideológica produzida no conjunto dos retalhos textuais que integram

“Balaio de Bugre”. A possível miscelânea é um balaio de bugre, não é uma

miscelânea, pois um balaio de bugre é a representação máxima da identidade

diásporica a ser abordada no terceiro capítulo. Defendemos que estar entre

fronteiras geográficas – Ponta Porã-Brasil e Ponta Porã, como dizia Wilfrido

Brizueña25 - irá propiciar uma literatura de fronteira se tomarmos uma ideia de Hall

(2003, 13): “[...] à medida em que sistemas de significado e representação cultural

se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e

cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos

identificar – ao menos temporariamente.” A identificação de que fala Hall poderá ser

compreendida no questionamento/resposta – “E por acaso, não é o autor, bugre

também? Bugre legítimo com arremedos de homem civilizado” – como um prenúncio

de identidade, de reconhecimento das diferenças ou até, mesmo, da formação –

contínua – do andante em estado constante de hibridez.

Assim, aquilo que poderia aparentar um modesto título, misto de justificativa

e explicação, configura-se em um retrato que perpassará quase cem textos, como

se cada “De tudo um pouco” do livro “uns atadinhos de trapo, chumbo, pólvora,

raízes, folhas, milho-pipoca,...”(Livro 39, p. 93) tivesse uma unidade, mesmo

constituída por textos diversificados, agradecimento ao crítico, palavras a um morto,

a morte do último dos Lopes, crendice, oração, ditos, pensamentos folclore, quadra,

palestra e muita história de história ouvida e contada por onde andou e viveu. Além

do expressivo e extensivo título, Serejo rompe com padrões ao apresentar sua 25 Os moradores mais antigos, como Brizueña, não se referiam ao nome de Pedro Juan Caballero. Usavam como anunciamos na passagem transcrita.

44

própria obra e perpetua o hábito do indígena de guardar objetos, aparentemente,

sem utilidade em um balaio. Os objetos ganham unidade ao compor o todo do

balaio, ao se integrarem ao conjunto de coisas encontradas em tempo e espaço

diferenciados, tal qual ao tradicional discurso de posse: “Eu vim de longe, sou um

misto de poeira de estrada, de fogo de queimada, de aboio de vaqueiro [...]. Sou

misto, também, de índio vago, cruza-campo e trota-mundo” (Livro 49, p. 150).

Em Astúrio Monteiro de Lima: Um exemplo de homem (Livro 40), em nota A

fala do autor, Serejo informa que a sua vida nas letras tem sido a mais variada

possível. Nesta nota, já não usa a metáfora para descrever os gêneros produzidos

como fez em Balaio de bugre. Proclama que fez “de tudo um pouco”:

Novela íncola, conto, folclore, lendas, mitos, abusões, poemas, sertanejos, versos xucros, paisagismo, prosa crioula, sonetos, narrativa campeira, poemetos, histórias verídicas, fatos históricos, crônicas folclóricas e campesinas, descrição charrua, modismo, trovas, crendices, paisagens fronteiriça, falação cabocla, pesquisa de crioulismo, poesia de evocação, acrósticos, poemas em prosa, ditos e composições poéticas variadas, desde o metro de duas sílabas até o de doze, ou alexandrino. (p. 235).

Serejo foi “[...] curioso, autodidata, lia tudo que estava ao seu alcance...”

(Campestrini, 2008, p. 1), leitor pesquisador como já foi apresentado. Sua produção

transita em descrição da paisagem; quando retrata, reflete a própria imagem, já que

não se exclui da cena retratada. Às vezes, coloca-se a narrar a trote, a pé ou de

carreta, mas sempre, inserido no local, no modo de vida do fronteiriço ervateiro, na

vida campeira: “Passarão por estes poemas em prosa – tropilha da pátria primitiva –

os gemidos da carreta manchega, o cântico do homem andejo, astúcia do índio

vago, a roda para o chimarrão da amizade, o fogo das queimadas e a paisagem de

todas as querências...” (Livro 11, p. 09).

Quase sempre justifica a sua temática tendo como base o viver “[...] de

homem da sertania, pois foi escrito pela pena nativista de alguém que tem dentro

d’alama a imagem fulgurante da tradição campeira”. ...(Livro 11, p. 09) ou, ainda, em

discurso de posse na Academia Matogrossense de Letras: “Procurei cantar com

ternura e suavidade as belezas incomparáveis do sertão, envaidecido, tropel de

tropilha crioula e índio haragano as paisagens coloridas das estâncias.”

(Campestrini, p.18). Para Salles (1993, p. 182), boa parte do regionalismo

45

novecentista deforma a realidade rural, pois a visão ficcional do escritor é feita de

fora, o autor regionalistacomporta-se como um deslumbrado e exalta o espaço físico

de forma eufemística, com olhar europeizado. Como se a vida da roça fosse vista

pelo turista urbano, não há integração com as partes que compõem o todo da

narrativa. Sobressai o cenário, o pitoresco da natureza, sem que tenha a

movimentação humana. Nas narrativas estudadas, o narrador se integra ao trágico

da vida no erval.

Em Pialo Bagual (Livro 7, p. 167), Serejo apresenta o livro metaforizando a

ação de escrever como o ato de laçar o cavalo ou animal quadrúpede pelas patas

dianteiras, no momento em que está em movimento. Serejo metaforiza: “Neste livro

vão pialos de todos os tipos; só que não são, em absoluto, pialos desferidos por

mãos de campeiro mestre. Que todos tenham complacência para com o mau

pialador”, (p 167). Quase, sempre, em posição de humildade poética, Serejo sente

necessidade de afirmar, de forma carinhosa, o quanto a obra, ainda, é incipiente,

tanto que recorre aos aspectos temáticos em detrimentos ao estético, embora se

incorporem ao longo da obra. Para ele, “Pialo Bagual...ficará, como ficaram os

outros, por ser fagulhas da poesia, da prosa e da tradição” (p. 167).

A voz cândida que estabelece comparativo de sua produção “fagulhas de

poesia” com a “poesia tradicional” permite-nos recuperar a lucidez poética de Serejo.

Mais, ainda: sua humildade não tira de foco o cânone. Seu reconhecimento abre

espaço, sem concorrência, para aqueles que estão à margem, no caso, ele próprio.

Daí, elegermos Serejo como autor que construiu uma “picada” para transitar no

contexto urbano e acadêmico, para estabelecer relação amigável, sem espaço de

disputa. Reconhece que não chega, embora se esforce, a combinações conforme o

modelo consagrado de fazer literatura. Entretanto, não deixa de produzir e ousa

fazer-se poeta, escritor, não só memorialista, ao voltar o olhar de sujeito

compromissado com “pessoas desimportantes” como diz Barros (1990, p. 23).

Pessoas que foram para sempre dispersadas – geograficamente - de sua terra natal,

segundo Hall (2003) que tiveram que aprender a intercambiar de tudo um pouco.

Ainda, em “A fala do autor”, na obra Astúrio Monteiro de Lima: Um exemplo

de homem, escreve sobre sua produção: “De tudo fiz um pouco. Não por erudição.

Gauderiando, lendo e lendo infatigavelmente, fui juntando as imagens e as guardava

avaramente, num cantinho da mente, para depois, envaidecido, a produção foi se

46

encorpando incessante [...]” (Livro 40, p. 235). Serejo reconverte, com isso, um

processo literário em constante estado de hibridação.

1.3 PELAS ORILHAS DA CRÍTICA DE MÃO EM MÃO

Ao juízo do público e da crítica entrego, pois, o seu destino. (Livro 34, p. 24 )

Como já foi evidenciado em algumas passagens transcritas, Serejo se

preocupava com a recepção de seus livros “Se mal recebido for este trabalho, por

suas possíveis falhas, não deixará o autor vencer-se pelo desânimo, pois tem

certeza de que fez pensando ser útil a Mato Grosso e ao Brasil” (Livro 08, p. 229).

Essa preocupação é recorrente em Puiggari “[…] desvendar aos olhos do governo e

do Brasil, esse mundo desconhecido que é a fronteira com o Paraguay, dizendo as

cousas como ellas são e unicamente dentro dos limites da verdade” (Puiggari, 1933,

p. 7).

Serejo não se deixou vencer pelo desânimo, nem questionou a “utilidade”

prestada. A prova é o conjunto de sua produção, assim avaliada por Povoas e citado

por Reis:

Quem se dispuser a um estudo do desbravamento do extremo sul do antigo Estado de Mato Grosso, da região lindeira com a República do Paraguai – hoje estado de Mato Grosso do Sul – não poderá prescindir de uma consulta à obra polimorfa do escritor Hélio Serejo. A penetração dos colonizadores naquele outrora agreste sertão, a aspereza da vida naqueles ermos, a psicologia dos homens de aço, que o povoaram, seus hábitos, as lutas do seu dia-a-dia, sua literatura, sua música, seu folclore, seus abusões, tudo está retratado em seus livros com pinceladas firmes, vigorosas e de absoluta fidelidade. (1980, p. 115).

Nos vãos dessa polimorfia estão possíveis unidades – muitas vezes, díspares

– que elevam o conjunto da obra, em se tratando de um inexistente projeto literário –

porém de relativa regularidade produtiva –, mas que surpreende pelo fio condutor da

voz que conta por meio de variados, fragmentados e recriados gêneros textuais. O

recurso explicativo ou justificativo realizado pelo autor ao lançar uma obra

47

potencializa a sua relação com o lócus enunciativo revelando o posicionamento do

sujeito crítico que se reconhece “cascalho no meio de esmeraldas” (Livro 13, p. 179).

Nem por isso, deixa-se abater, “é um esforçado”. Sobressai, ainda, a satisfação de

ser reconhecido, e, embora não o sendo, continuará escrevendo.

Na última página de Prosa Rude (Livro 13, p. 179), em Palavras finais, Serejo

inicia a nota transcrevendo – sem indicar a fonte, apenas autoria – um texto em que

o professor Othoniel Mota, autor de Selvas e choças se queixa da forma como os

livros são recebidos pela crítica: “[...] Se o autor não tem camarilha literária e é um

desconhecido no meio social, o seu livro geralmente fica no silêncio”. De forma

abrupta, posterior ao desabafo do professor Mota, Serejo questiona o leitor:

Eis aí o livro. Bom? Sofrível? Péssimo? O qualificativo pouco

importa. Se péssimo, irei trabalhar para editar outro um pouco melhor. Se sofrível, fico em parte pago pelas minhas longas noites de vigílias...

Ele aí fica. Acanhado. Humilde. Insignificante. Repleto de senões gravíssimos. Sem gramática. Sem ortografia. E muitas vezes de linguagem rude e grosseira. Mas isto tudo pouco importa: o sacrifício e a boa vontade falarão mais alto.

Ele aí fica: é uma espécie de cascalho no meio de esmeraldas e de safiras (Livro 13, p. 179).

Na nota, apela para que o leitor se posicione e enumera aspectos pouco

apreciativos do livro que, caso o leitor permita, “o sacrifício e a boa vontade falarão

mais alto”. A ideia de sacrifício cunhada no mundo cristão permite-nos inferir que

Serejo se coloca como alguém que oferece algo, o livro, como um presente; para

tanto, sacrificou-se, sofreu e merece ser reconhecido pela tentativa, muito mais do

que pelo texto em si.

Assim, a voz sertaneja de sujeito simples que gosta de escrever e busca o

público, respalda-se em Candido (2006, p. 21) ao defender: “Ora, todo processo de

comunicação pressupõe um comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou

seja, a obra; um comunicando, que é o público a que se dirige; graças a isso define-

se o quarto elemento do processo, isto é, o seu efeito.” Faltando o efeito, não há

obra. O “sacrifício”, as longas noites de trabalho exaustivo, os estudos para

aprimorar a escrita, ficam meio em vão, sem valor. Antônio Candido (2006, p.48) é

taxativo neste aspecto: a obra só está acabada no momento em que repercute e

atua. Serejo sofria dessa dor de busca do leitor. Candido afirma, ainda:

48

Se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência de sua obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição para o autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é sua revelação. Sem público, não haveria ponto de referência para o autor, cujo esforço se perderia caso não lhe correspondesse uma resposta, que é definição dele próprio. (CANDIDO, 2006, p. 48).

Esforço e sacrifício para se achar em si mesmo. Um espelho que reflete

pouco, tendo em vista alguns aspectos, tais como: a pouca consciência histórica do

leitor brasileiro, consequentemente, o desinteresse por obras locais – O Estado há

pouco começou a levantar a sua história; a produção empírica e sem planejamento;

a ausência de meio de comunicação efetivo que pudesse divulgar a obra. Serejo

enviava seus textos aos amigos e conhecidos dos amigos, via Correio –, o círculo

fechado das academias literárias – a diversidade de gêneros – biografia, carta,

narrativas, poemas, sem que tivesse adotado uma estrutura ao gosto do pretenso

leitor da época. Por certo, um aspecto preponderante, de ordem estética, advém da

temática de fronteira e da forma transparente como contava os fatos, muito próxima

à realidade dos inúmeros analfabetos que estiveram nas histórias dos ervais.

Candido salienta, ainda, que:

[...] o escritor se habituou a produzir para públicos simpáticos, mas restritos, e a contar com a aprovação dos grupos dirigentes, igualmente reduzidos. Ora, esta circunstância, ligada à esmagadora maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, nunca lhes permitiu diálogo efetivo com a massa, ou com um público de leitores suficiente vasto para substituir o apoio e o estímulo de pequenas elites. (2006, 94-95).

Em parte, Serejo comunga com essa triagem, sobretudo, porque sua obra

esteve, por muito tempo, presa aos fatos de sua vida pessoal e aos fatos históricos

de um tempo “abandonado”.

Outra incidência de tentativa para se estabelecer relação com o leitor, pode

ser avaliada na forma como o próprio autor apresentava, em boa parte, seus livros,

embora, quase sempre, tenha um prefaciador. Serejo, mesmo em Poucas

palavrinhas, fala ao leitor de sua pretensão. É o caso em Poesia mato-grossense,

quando conclama: “Que a crítica e o público o julguem como melhor lhes parecer!”

(Livro 16), assim como em Carta de Presidente Venceslau ao cumpadre Ansermo

49

(Livro 20, p.261), aberta com poema de 104 estrofes, estabelecendo relação mais

afetiva com o leitor: “Este livro de versos galhofeiros pertence a você, meu querido

amigo de Presidente Venceslau. Escrevi-o na intenção sincera de agradá-lo.”

Considerável, ainda, é o tom de humildade muito presente, como em: “[...]

coloco, humildemente, nas mãos de meus patrícios.” (Livro 22, p. 9) ou em Vida de

erval:

Quando o surrão é grandalhão, de fundo chato, sem dobras, lisito como barriga de pitão de sertanejo caprichoso, vai no bojo da carreta, muito importante, atado no gancho de travessão-macho e sempre do lado esquerdo para dar sorte. [...] Se ele, o surrão crioulo, guarda de tudo em seu bojo, deve guardar também, avaramente, nestes modestos livros crioulos, os frutos das minhas pesquisas e tudo aquilo que a imaginação produziu. Assim, abraçado meigamente ao meu surrão crioulo, eu me sinto como o caboclo feliz. Imensamente feliz. (Livro 23, p.65).

A associação da vida campeira à escrita é uma constante na produção de

Serejo, bem como o desejo de demonstrar ao leitor seu sentimento de satisfação por

ambas. Entretanto, a voz queixosa deixa vazar “os modestos livros crioulos” que não

foram lidos, já que estão guardados, segundo o autor ou “sumiram” com eles, como

confidencia Serejo, na ocasião em que informamos, por carta, o desejo de pesquisar

sua obra: “Veja na Academia de Letras, Rui Barbosa [...] quantos livros estão

catalogados. Sei que deram sumiço em vários. Relacionar pelo título. Tentarei ajudá-

la.”26

Nos textos em estudo, Serejo é porta-voz do homem físico, mão de obra

necessária “[...] no desbravamento da pátria primitiva.” (Livro 18, p. 210). Tem-se,

então, rememorado, parte do que viveu e conviveu: “O conteúdo deste livro é filho

desse andejo sublime, razão pela qual é uma ronda, matizada pelo entardecer.”

(Livro 46, p. 9). Todavia, o conteúdo dos livros, em sua maioria, não estabelece

relação com um público leitor específico.

Para Candido existem dois tipos de arte, a de agregação e a de segregação,

as quais direcionam a possível recepção de uma obra. A primeira visa a um público

coletivo alcançado pelos meios de comunicação e, de uma forma ou de outra,

reforça simbologias vigentes. Já a arte da segregação não está ao gosto do público

26 Carta resposta recebida de Hélio Serejo, datada de 07 de novembro de 2001. Acervo pessoal.

50

vigente e pode não ser aceita, muito menos cotejada, já que poderá conter

perspectiva do “novo” e causar relativo distanciamento do leitor de massa.

Ao apresentar O tereré que me inspira (p.165), Lenine Póvoas critica: “Pena é

que a chamada grande imprensa deste país, que gasta tinta e tanto papel

promovendo inutilidades e dando-lhes dimensões nacionais, desconheça a preciosa

obra do ilustre matogrossense-do-sul (Livro 53, p. 165).

Roig, autora da obra Estampa, no prólogo de Pialando...no más (Livro 38,

p.13) apresenta Serejo como:

De atividade intelectual talentosa, suas copiosas obras escritas, fruto de trabalhosa dedicação são os melhores do documentos que contêm detalhes importantíssimos de toda ordem sobre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero que difícilmente se igualará em variedade e extensão ao que constituem um verdadeiro tesouro como fonte de investigação27.

Catalina Roig julga extraordinária a obra de Serejo, evidenciando o

documental e a fonte de investigação, já que os textos de “Pialando …no más” giram

em torno do contar de hábitos e costumes dos habitantes de duas localidades

fronteiriças, demarcadas por apenas uma linha imaginária: “Dia de carrera, a cancha

ficava apinhada de gente, desde muchachitos, hasta viejitos de pasos vacilantes y

miedrosos. Dia de corrida era dia de negócios, tanto no lado brasileiro como no

paraguaio” (Livro 38, p. 19).

Para Joaquim Ribeiro28, em pequena nota introdutória de Pialando … no más:

Uma homenagem de carinho a Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, diz das

tradições populares. Reconhece, assim, Serejo como autor à margen do processo

tradicional:

27 De actividad intelectual portentosa, sus copiosas obras escritas, fruto de afanosa dedicación son las mejores documentales que contienen detalles importantísimos de todo orden sobre Ponta Porá y Pedro Juan Caballero que dificilmente se logrará igualar em variedad y extensión y constituyen um verdadero tesoro como fuente de investigación. 28 Existe entre La Historia y El folklore una analogia con el destino de dos hermanos gemelos que se repelen. Uno de ellos es el hermano rico. El outro, el hermano pobre. En ambos, sin embargo, core la misma sangre humana. Fue necesario que surgiese una nueva orden de cosas para que las tradiciones populares mereciesen la atención de los cientistas...Y, desde entonces, junto a la História, toda civilización fue revelada em su aspecto popular y tradicional.

51

Existe entre a História e o folclore uma analogia como o destino de dois irmãos gêmeos que se repelem. Um é o irmão rico. E outro, o irmão pobre. Em ambos, no entanto, correm o mesmo sangue humano. Foi necessário que surgisse uma nova ordem das coisas para que as tradições populares merecessem a atenção dos cientistas...E, desde então, junto da História, toda civilização foi revelada em seu aspecto popular e tradicional. (Livro 38, p. 13).

O amigo elucida a polêmica enunciada cuidadosamente por Canclini:

Assim como não funciona a oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão onde estamos habituados a encontrá-los. É necessário demolir essa divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente: a história da arte a literatura que se ocupam do “culto”; o folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especializados na cultura massiva. Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenham esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente (2003, p. 19).

Daí, investimos naquilo que Canclini (2003, p. 23) defende “[...] da mesma

forma, o popular não se define por uma essência a priori, mas pelas estratégias

instáveis, diversas, com que os próprios setores subalternos constroem suas

posições”, levam sua produção à academia, no caso de Serejo, e com ele foram “os

outros”, personagens de histórias periféricas muito parecidas com as histórias

verídicas a que Reis em nota de prefácio de Pelas Orilhas da Fronteira conclama o

leitor: “[...] iniciemos nossos momentos de boa leitura, lendo casos contados por um

escritor que é nosso, sobre fatos que dizem respeito ao nosso passado já meio

longínquo, à nossa gente, à nossa querida fronteira.” (p.101).

O reconhecimento possessivo atribuído ao que é “nosso”, pode ser associado

ao que Freitas discute em relação ao texto cuja temática central está situada em

fatos da História. O traço identificatório entre texto, autor e leitor pode vir do

conhecimento que o leitor possui do tema histórico que norteia a obra, já que

História é um conhecimento público. Com isso, cria-se a possibilidade de relação

muito particular entre o escritor e o leitor, pois ambos conhecem os fatos da História.

Esse argumento fundamentado por Freitas (1989, p. 09) diz da recepção dos seletos

52

amigos leitores da obra de Serejo, “[...] o universo referencial é conhecido por

ambos, e o leitor terá o direito de utilizar suas referências culturais na leitura e/ou no

julgamento da obra”. Ação que podemos notar com muita evidência e significativa

extensão nas cartas recebidas por Serejo, quando seus amigos e leitores avaliam a

obra recebida/lida, uma vez que conhecem a realidade externa, como elucida o

poeta Ney Ocon Braga ao prefaciar Paisagem Sertaneja (Livro 36, 209) “Trata o livro

de documentário valioso: de um registro histórico de uma parte do Brasil,

vanguardeiro e sentinela avançada de muitas fronteiras”. Continuando, o prefaciador

diz da “[...] pureza do verbo [...]. Quer descrevendo o João-pobre nas lides de sua

difícil e teatral existência, quer narrando seus feitos que se emaranham no contexto,

nos momentos garimpados na vivência e observação do autor”.

Considerando as inúmeras evidencias do cruzamento histórico com o

estético, sobretudo, reconhecido, em sua maioria, pelos leitores acadêmicos,

retomamos a continuidade do argumento de Freitas sobre a fronteira ambígua que

separa o real do ficcional, a qual transparece na recepção dos “amigos leitores”.

Com isso, engrossamos argumentos a favor da dupla realidade contida nas

narrativas estudadas. Como bem enfatiza Freitas (1986 p. 10): “[...] uma natureza

híbrida, a meio caminho entre a Literatura e a História.”

Caio Porfírio Carneiro ao se referir à produção do escritor sul-matogrossense

considera que “além de ficcionista, poeta, cronista, folclorista, é também, e em

particular, historiador. Não o que se aproxima da didática. Mas o outro, o que vive a

História [...]”. Argumenta, ainda, que Serejo “consegue tudo isso com ciência,

consciência e raro talento”. (Livro 30, p.97) Esse talento pode ser compreendido, a

partir de Freitas, como transfiguração da realidade, já que “a arte é uma modalidade

do imaginário, e o imaginário não reproduz a realidade exterior, mas a transforma, e,

mais longe ainda, transfigura-a” (p. 113). Em Vida de Erval (Livro 23, p. 65), Hélio

Serejo reafirma que seus modestos livros são frutos de pesquisas e de tudo aquilo

que a imaginação produziu.

A função de historiador atribuída a Serejo pode ser respaldada em Barthes

(1988, p 146), para quem: “Parece que o discurso histórico comporta dois tipos de

embreantes. O primeiro tipo reúne o que se poderia chamar de embreantes de

escuta”. Este aspecto aparece no discurso de Serejo, pois ele usa o seu próprio

testemunho na construção da narrativa. Com isso, difere do discurso que possui um

informante para narrar – segundo embreante. A voz que conta em primeira pessoa

53

“Assisti ao dilúvio de preparativos para o retorno, após una noche bien

farriada...Convivi com essa gente mesclada. Rude. Violenta. Desrespeitadora” (Livro

23, p. 144), exerce dupla função: a de presentificar o que está sendo dito e a de

retomar o ocorrido. Serejo reitera, então, o fato possível de ter ocorrido pela via do

testemunho, da voz de quem diz ter presenciado, atribuindo caráter de verdade,

embora não seja mais o fato ocorrido, mas o contado. Tanto que, para Carneiro

(Livro 30, p. 97), a obra de Serejo tem preocupação “sempre com a verdade, com o

testemunho de seu tempo.

Ainda para Caio Carneiro, “Hélio Serejo é um permanente trabalhador das

letras. Não daqueles que se enclausuram entre quatro paredes, voltados às

elucubrações mentais: “É daqueles que fazem da Arte escrita uma força dinâmica e

criadora, nascida da observação direta com o meio e seus tipos humanos, no qual

vive e com os quais convive” (Livro 30, p. 97). Carneiro reconhece o traço peculiar

de Serejo referente à relação do autor com o contexto de que trata em suas

narrativas. Reis reconhece em Serejo uma literatura que recupera a história

desconhecida ou esquecida:

As histórias que nosso escritor regionalista, folclorista e poeta, nos narra têm todas fundo verídico. Nesse tipo de narração Hélio Serejo se fez mestre, retratista com palavras diretas, por vezes duras, como dura e pesada foi a vida dos que ele nos apresenta com impressionante autenticidade. Tudo isso, para nós, antes dos escritos de Hélio Serejo, era o mundo ignoto. Assim, não fora Hélio, quem irá saber da existência do convertido, simpático e prestativo Viejito Poincaré. (Prefácio Elpídio Reis, p. 101) (Grifo nosso).

Novamente, a verdade é colocada em destaque; a obra de Serejo tem “fundo

verídico” (Livro 30, p.101). Todavia, o espaço entre o fundo verídico e o ser verídico

preenchido pelo ato de narrar do sujeito inserido na circunstância, possibilita

discutirmos o que defende Santiago, (2000, p. 10) “[...] que o “real” e o “autêntico”

são construções de linguagem”. Portanto, recriação do real, não mais o fato em si, já

que “Não existe fato em si. É sempre preciso começar por introduzir um sentido para

que haja um fato”, (Nietzsche apud Barthes, 1988, 155). Se não existe fato em si, o

valor de verdade e de autenticidade passa pela construção do sujeito que conta o

fato.

Para White (1994, p. 122), as narrativas históricas não são apenas modelos

de acontecimentos ocorridos no passado, uma vez que passam por relações de

54

semelhança possíveis de ocorrer: “[...] a escrita pós-moderna da história e da

literatura nos ensinou que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem

sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado”. Segundo o autor o

sentido e as formas não estão nos acontecimentos, mas encontram respaldo nos

sistemas que transformam esses “acontecimentos” passados em “fatos” históricos

presentes. White observa que isso não é um subterfúgio para negar a verdade, “mas

um reconhecimento da função de produção de sentido dos construtos humanos”.

Taborda, citado por Reis (2008, 111), enfatiza a capacidade que Serejo tem

de criar imagens, com as quais consegue prender o leitor, sobretudo quando

descreve uma paisagem ou narra fatos da vida campeira: “Que vigoroso escritor

regionalista possui o estado de Mato Grosso do Sul!” (p. 115). Otávio Gonçalves

Gomes também reconhece o valor regionalista dos textos de Serejo, sobretudo, em

Surrão Crioulo (Livro 44, p. 56): “Somente um regionalista apaixonado encontra

poesia e inspiração em assunto tão árido como um surrão de couro [...]” (Livro 44, p.

117). Há, ainda, os amigos e confrades que avaliam o vigor, a brasilidade, o

“sertanismo” dos textos de um autor que “Não seguiu caminho de ninguém”, de um

autor que, segundo Gervásio Leite (p. 119) reflete em seus livros, com muita

fidelidade, o regionalismo, o folclore, o campeirismo e a vivencia crioula de Mato

Grosso.

As denominações atribuídas a Serejo alcançam maior amplitude significativa ao

avaliarmos o que diz Antônio Candido (2006, p. 127): Na nossa cultura há uma ambigüidade fundamental: a de sermos um povo latino, de herança cultural européia, mas etnicamente mestiço, situado no trópico, influenciado por culturas primitivas, ameríndias e africanas. Esta ambigüidade deu sempre às afirmações particularistas um tom de constrangimento, que geralmente se resolvia pela idealização. Assim, o índio era europeizado nas virtudes e costumes [...] a mestiçagem era ignorada; a paisagem, amaneirada.

Nas narrativas estudadas há uma ruptura desse modelo idealizador, já que as

personagens – quase sempre reais/ficcionalizadas – desempenham ações e se

envolvem com fatos vividos em um contexto, cuja paisagem vem para o plano da

escrita como parte integrante da narrativa. Isso se dá, sobretudo, pelo profundo

conhecimento que o autor possui do local, além da maneira peculiar de

compreender o entorno como fator preponderante para a movimentação dos fatos e

atos narrados.

55

1.4. A LITERATURA DE GALPÃO NA FRONTEIRA ACADÊMICA

29

Insistimos na inserção de nosso posicionamento de leitora da obra de Serejo

na adolescência, sobretudo, porque de lá – de leitora na/da fronteira, Bela Vista

Brasil e Bela Vista Paraguay – para cá – pesquisadora da obra -, há um espaço

temporal rememorável, vários acontecimentos e amadurecimentos teóricos, em

específico, sobre as literaturas de fronteiras, periféricas, que estão à margem.

A literatura que era de “galpão” e a academia, que não tinha aporte teórico

para investigação de tal objeto, paulatinamente, foram se espreitando e se

estreitando por meio de um “balbuciar teórico”, cuja fundamentação deslocou-se

para o local e colocou olhos, ouvidos e bocas em “Muitas povoações ervateiras [...]

transformadas em cemitérios” (Livro 23, p. 74) enterradas em histórias contadas por

quem escreveu no fio da esperança de “ser útil” um dia. Utilidade que vem sendo

(des)construída agregando concepção além do binarismo “útil x inútil”, além, muito

além e bem ali, no entre-meio da fissura de respostas, findas e prontas,

determinadas como dois e dois são quatro.

Vamos recortar uma das noções de utilidade pela vertente do “Mal-estar da

pós-modernidade”, de ebulições borbulhantes, alavanca incômoda, que nos

desmobiliza, mas nos dá sustentação para circunlóquios olhares do nosso entorno

atemporal. Recorremos, então, à Bauman:

Resta agora, à obra de ficção, desvendar essa variedade

particularmente pós-moderna de ocultamento, colocar em exibição o que a realidade tenta socialmente, e com afinco, esconder – esses mecanismos que retiram da agenda a separação entre verdade e falsidade, tornam a busca de sentido irrelevante, improdutiva e dia a

29 Trecho de uma carta recebida de Hélio Serejo em 2001, quando lhe comuniquei o interesse em desenvolver pesquisa sobre a obra dele.

56

dia menos atraente. Num mundo permeado de ironia, é a vez de a arte se tornar séria, defender essa seriedade que o mundo socialmente produzido transformou em quase ridículo. Depois de desmascarar as solenes e melífluas simulações dos modernos legisladores da verdade, a ficção artística, essa grande escola da imaginação, empatia e experimentação, pode então prestar serviço inestimável aos solitários, frequentemente confusos e aturdidos intérpretes pós-modernos do significado e do sentido. (1998, p.89).

A consciência do homem do nosso tempo, atravessada por algumas gerações

letárgicas, vem resultando em um debruçar-se investigativo sobre o espaço em que

se está, de onde se fala, com quem se fala, para quem se fala – se é que há

interlocutores. Movimento que se projeta para a dúvida, para o possível, o provável,

impulsionado por outros atos e fatos encobertos pelo manto da história “Real”, pela

vigência de valores selados em um tempo justificado pela maneira de pensar e agir.

Entretanto, estamos, em um outro tempo que muitos denominam pós-

modernidade. Independentemente do cunho e das vielas escolhidas pelos teóricos,

o fato é – sempre –: estamos em um tempo de auto-reflexão em relação ao que

“antes” havia. Um tempo, em específico, na acepção de Hutcheon (1991, p. 13) que

se abre à auto-reflexão movido por uma "força problematizadora" que desafia e

questiona a cultura, tendo como referência a própria cultura, sem entretanto causar

sua implosão.

Esse incômodo olhar oblíquo vai, ao final do século XX, subsidiar estudos de

obra e autores “de pouco valor literário”, se comparados aos padrões estabelecidos

pela crítica européia. Esse “novo” olhar emerge, sobretudo, da crescente

necessidade de se auto conhecer, de saber da própria história contada por vertentes

não oficializadas - no presente - em uma relação diacrônica, estabelecendo

referência, portanto, com o passado, motivado pela suspeita de que muitos espaços

ficaram em branco no decorrer dos tempos. Achugar (2006, p.47) ajuda-nos a

prosseguir em busca do “tempo perdido” por considerar que “A relação entre

passado e presente é uma relação entre passado e futuro”. Os novos olhares, desse

novo tempo, abrem possibilidade de estudo de um autor que mantém relação

referendada em um contexto histórico de fronteira local e ousa narrar e descrever

suas lembranças, nas quais incorpora muitas outras, esquecidas. Alguns fiapos

desse discurso escrito, perpassado pelo oral, centrado em passagens passíveis de

terem ocorrido em um tempo histórico, poderão levar-nos a indícios de como se deu

a formação de do Estado de Mato Grosso do Sul, além das evidências de

57

maturidade identitária em relação ao sentimento nacionalista do nativo para com sua

terra.

Como se pode perceber no trecho da singela carta – epígrafe – a

sensibilidade do escritor para a vida da fronteira revela-se em sua escrita, quase

sempre, pela via da simplicidade, do amor ao supremo, de um “con permiso” para

adentrar ao contexto da academia. Dessa singeleza, o plano histórico da vida do

autor e da formação do sul do Mato Grosso do Sul, no tempo do apogeu da extração

de erva mate, foram lidos por muito tempo, com mais intensidade, sobretudo, porque

Serejo coloca-se como narrador, aparentemente espontâneo e entremeia, quase

sempre, o viver fronteiriço, à sua vida pessoal, articulando-a a particularidades

lembradas com a generalização, ou a “parte com o todo”, reinventando histórias que

foram contadas.

Se aliarmos as temáticas recortadas, vida de erval e vida de peão de

fazenda transitando de lá para cá, na fronteira, podemos levantar incidências que

nos levam a ampliar a leitura e a estabelecer relativa consonância entre o plano do

conteúdo e o plano da expressão, devido, primeiramente, à apropriação que o

narrador faz dos usos e costumes “dessa gente” inserida em um ambiente de

fronteira. Segundo, a voz que conta é a mesma que vive – ou viveu – a história do

fato; terceiro: os recursos estéticos – ou a ausência estética tradicional – “falam”

pelos fatos, tanto fala por ele. Assim, plano da expressão e plano do conteúdo se

cruzam - nem sempre se fundem –, propiciando um terceiro espaço. Esses

argumentos serão apresentados no terceiro capítulo.

A publicação de Serejo, sempre autônoma, data de 1935 a 2004. Em seus

livros, como já foi afirmado, há de tudo um pouco e revela-se o amor pela poesia,

pelas coisas do sertão, pela beleza da flora e fauna. Compilados em Obras

Completas, em 2009, o conjunto da obra30 tem proporcionado estudos esparsos por

programas de graduação e pós-graduação, com destaque para a Universidade

Federal da Grande Dourados. Entretanto, ainda, os livros de Serejo não são lidos

nas escolas de Mato Grosso do Sul e sua obra é reconhecida, em consenso mais

amplo, como memorialismo histórico. Todavia, desse memorialismo desprendem-se

fiapos de um fazer literário nativo, sustentado pela força da paixão pela escrita,

alimentado pela vaidade e prestígio do reconhecimento de ser autor, muito habitual 30 A Fundação de Cultura/MS doou a todas as bibliotecas escolares de Mato Grosso do Sul as Obras Completas de Hélio Serejo.

58

em contextos emergentes. Os fios desprendidos da tessitura entremeada pela

memória histórica resultam em nuances subjetivas sugestivas de conhecimento da

história encoberto por copiosos capões de erva tão da terra como o autor.

A fim de podermos conhecer o repertório de leitura do autor, realizamos

investigação por meio da Poesia mato-grossense, obra lançada em 1960, na qual

Serejo reuniu vinte e nove poetas do, então, estado de Mato Grosso e propôs uma

espécie de crítica, seguida de síntese biográfica e alguns poemas dos autores

selecionados.

Serejo revela-se ali conhecedor de Valéry, Mallarmé, Baudelaire, Poe,

Heine, da poesia simbolista, parnasiana, do romantismo, conhecedor da poesia da

“nova arte” contida no poema “Greve”, de Rubens de Mendonça (1915): “Veio a

Polícia/ Houve tiros.../Depois só ficou um/trapo da camisa do/operário,/sujo de

sangue/como se fosse ban-/deira vermelha,/a tremular no ar!.../.” Reconhece que o

poeta “oferta versos modernistas tão bem coordenados que não causariam

desdouro se figurassem ao lado das produções desse mesmo gênero da lavra do

excepcional Carlos Drummond de Andrade” (Livro 16, p. 32).

Denomina “modernosos” os poetas Wladimir Dias Pino (1927) e Benedito

Santana da Silva Freire (1928). O primeiro, “[...] como se quisesse descrever,

penetrar, esmiuçar os contornos e o interior de uma pirâmide egípcia, leva ao papel

[...] luz, sombra, calor, pensamento, ação... [...]” (Livro 16, p. 63). Silva Freire, para

Serejo, aproxima-se “à realidade poética contemporânea”, tem lugar assegurado na

“Nova Poesia Brasileira”. Serejo mostra-se encantado pelo vigor e pela “coloração

espontânea” resultante da poesia do cuiabano.

Também soube avaliar a poesia de “versejadores simples”, aqueles que não se

submetem ao verdadeiro rigor formal, entretanto, produzem “maravilhosos poemas

em prosa”, como é o caso de Otávio da Cunha Cavalcanti (1884) ou considerar

Tertuliano Amarilha (1924), poeta da fronteira, cujos versos espontâneos e sinceros,

às vezes de um lirismo ingênuo, próprio de poetas, segundo Serejo, “que vivem

deslumbrados pelo amor ou fustigados, constantemente, pela deusa cruel da

saudade” (p. 127), conquanto, entremeados ao sonho e romantismo de homem

simples.

Para falar da poesia de Pedro Medeiros (1890) recorre a Paul Verlaine “[...]

naquele sentido que o pauvre Lilian tão intensamente sofreu. Boêmia em seu nobre,

generoso e elevado sentido, em que a vida se funde [...], resultando aquela poesia

59

que é a excitratrice d´ acts vitaux” (p. 139). Refere-se ao “Sr. Mário de Andrade” e a

seu empreguismo público. Conclui demonstrando leitura diversificada e clássica:

“Essa vida torturada, incerta incompreendida e dolorosa fica sendo, no fundo, como

o Coração de Pedro Medeiros: – Antro, Caverna, Alcouce e Catedral” (p. 140).

Serejo abre a análise sobre Lobivar de Matos (1915-1947), afirmando que

“Não se pode falar em poesia modernista em Mato Grosso sem se fazer referência a

esse saboroso versejador [...]”. Recorre a Thomas Carlyle (1795 - 1881), “No

apurado conceito carlyleano, o poeta é uma figura heróica pertencente a todas as

idades”. Diz da poesia essência de João Antônio Neto (1920): “O poeta é ao mesmo

tempo Camões, Dante, Casimiro, Luís Guimarães, e pela profundeza dos conceitos

e harmonia da métrica, Manuel Maria Barbosa Du Bocage” (p. 162). No mínimo

levantamento, percebemos que Serejo foi um estudioso da literatura brasileira,

universal, bem como da literatura local de seu Estado.

Serejo revela, com bastante frequência, ao cotejar os poemas em Poesia Sul-

matogrossense, ser um sujeito que se estabelece na mescla da concepção de belo,

enquanto perfeição formal (Livro 16, p. 26), “[...] rigor da majestosa escola

parnasiana que ‘preconizara a perfeição do metro e a justeza da rima’, bem como a

poesia romântica “imagens vivas de um novo mundo poético, [...] que pende,

prazerosamente, para o romantismo” (p.110). Exalta, ainda, os ‘exímios’ sonetos

produzidos pelos conterrâneos, bem como reconhece a cadência de versos livres e

brancos de Drummond e Mário de Andrade.

Sua sensatez em analisar, sem julgamento de valor e com conhecimento

amplo de tendências literárias – romantismo, parnasianismo, simbolismo,

modernismo –, a produção dos autores compilados, revela um sujeito de um

momento histórico – início do século XX – entre fronteiras literárias, sobretudo,

quando analisa o poema sem a preocupação de enquadrá-lo em um movimento

literário. Reconhece traço modernista nos periféricos estudados, mas não os limita a

enquadramento. Tece observações que, para um homem de seu tempo e de

formação informal, deixam transparecer concepções pouco convencionais, como:

“[...] seria um excelente regente de orquestra, pois [...] traz músicas para dentro de

sua poesia, embora seus decassílabos sejam esculpidos ao rigor da escola

parnasiana”. São essas pequenas frestas contidas na obra de Serejo que elevam

sua ação de escritor para além de uma concepção literária, mera representação de

uma realidade.

60

O texto de Serejo é resultante de inspiração na sua mais sublime e ingênua

acepção, com o trabalho exaustivo de recriação de uma realidade local com a qual

conviveu, e inspira, a ponto de se motivar para ir à busca de dados, relatos, fontes

primárias e secundárias permeadas pela memória, pela lembrança. Seu

conhecimento do local não é muito diferente da atipicidade de Franklin Távora,

reconhecida por Candido (2006b, p. 616). Segundo o crítico, a maior virtude de

Távora foi sentir a relevância literária de um levantamento regional; sentir como a

ficção é favorecida pelo contacto de uma realidade concretamente demarcada no

espaço e no tempo, que serviria de referência, de “senso da terra” e em algumas

situações, no Romantismo, de limite corretivo à fantasia. Aspecto censurado em

Alencar por conhecer pouco o cenário geográfico de sua obra. Contrapartida,

Franklin Távora demonstra, na análise de Antonio Candido, além de profundo

conhecimento da área canavieira, “uma vivência regional, uma interpenetração da

sua sensibilidade com a paisagem geográfica e social do Nordeste” (p.615), e soube

descrever com “amor topográfico”. Essa paisagem se completa com a roça, com a

fabricação da farinha de mandioca, com os currais. Ao meio de tudo isso está o

homem no contexto da cana-de-açucar representado por meio de uma literatura

espécie de “argamassa do regionalismo”, nas palavras do admirador e crítico.

A verossimilhança, em Serejo, se efetiva no encadeamento pormenorizado do

descritivo da região, guiado por voz saudosa que impulsiona o leitor a olhar a

paisagem, criando o efeito de real, como se estivesse inserido no local, vendo – e

descrevendo, no caso o autor – um espaço, além paisagem “pano de fundo”, além

figuração:

Acompanhando o declive do terreno, o talhão de pasto nativo, como cerco natural por dois lados, o que favorecia o cuidado dos animais. A jusante, lado poente, aquela moitona de caraguatá, açoita-cavalo, unha-de-gato, tuna rasteira, marmelo brabo, flor-de-espinho, maçaroca, vassoura-de-bugre, e o cipoal verde enredador que põe atrativo no concentrado rústico de colorido extravagante. (Livro 39, p. 163).

Tão real que se chega a imaginar a dificuldade de transitar, de adentrar

naquela moitona que, muitas vezes, impede a passagem dos que se aventuraram

em busca de dias melhores, tal qual o contador dos fatos: “Vivi esse ambiente

arrebatador dezenas e dezenas de vezes na mocidade de muitos pensamentos e de

61

decisão inquebrantável de lutar para ser alguém na vida (Livro 39, 163). A paisagem

virgem, impenetrável ao primeiro esforço para ultrapassá-la, rústica, amplia as

dificuldades de acesso, atribuindo maior grandiosidade aos atos das personagens.

As dificuldades não diminuem o encantamento e reconhecimento que o homem do

local tem pelo seu ambiente e Serejo confirma esse sentimentalismo de louvor:

“Esse foi o meu mundo, durante vários anos. Vivi intensamente essas paragens e as

vias, por gosto, por predileção violenta ao sertanejo, ao meio bruto e ao cheiro

característico das matas, várzeas, cerradais, paludes e campo” (Livro 39, p. 163).

Outros aspectos considerados por nós, em boa parte das narrativas

estudadas, refere-se à forma como Serejo enreda as histórias e a construção da

personagem, quase sempre identificadas por codinomes ou pela origem, com mais

intensidade, pela função braçal que exerce, como é caso do mayordomo,

barbaquazeiro, personagens transfigurados e nomeados pela função exercida no

mundo bruto da erva. O mosaico de vozes – a voz que conta permeada pela voz que

depõe – ao longo das narrativas, surte o caráter de verdade à bravura do destemido,

além de uma espécie de encorajamento já que “O drama do erval alucina-o e

absorve-o” (Livro 23, p.72). Ao interferir na história do que veio – ele que já estava –

transfigura-se em personagem que vai tecendo, nos vãos, “[...] as páginas

dramáticas da história da industrialização da erva-mate, além do “herói anônimo”,

(Livro 23, p. 72) a sua própria história. Os depoimentos, as confirmações do tipo: “Eu

vi, estava ali, conheço essas paragens, andei por longa data por estes lugares...”

além de ampliar as dificuldades, como já foi afirmado, presentificam a saudade do

homem distanciado de seu meio de origem, “[...] é fazer o passado, presente, numa

satisfação de caboclo que, revivendo, sente-se compensado dos tormentos da vida.”

(Livro 23, p. 172).

Ao se referir a si próprio e aos que vieram – como seu pai – e fincaram

raízes, escolhe um vocábulo híbrido, mistura de linguagem oral, com forte sotaque

guarani e de uso do vocabulário gaúcho: “Povuero é o musgo da árvore centenária e

o musgo, a ela se incorpora e passa a viver de sua mágica incorporação vegetativa.

Segue, tempos afora, agarrado à umidade de líquido alimentador, enfrentando as

intempéries” (Livro 39, p. 112). Andante – que ele também se torna – e povueiro –

esteio poderoso – alicerce, que finca raízes, que gruda, solidariamente ajudaram

“[...] a construir a pátria charrua” (p. 172), na visão do sujeito que deseja o

progresso, mesmo vivendo em condições de exploração. Revela, ainda, a influência

62

do modelo positivista na formação sócio-política brasileira, uma vez que o progresso

justifica as ações, descaracteriza os vínculos, enaltece os atos, conforta as dores...

Com isso, o anônimo traz o homem coletivo, descentrado, deslocado, sem muita

consciência de onde veio e para onde vai, mas que não deixa de projetar-se no

contínuo movimento incerto da “mata adentro”. Possibilita-nos repensar que a

identidade é formada na interação entre o eu e o lócus enunciativo. Mais, ainda:

rompe com o homem idealizado, contínuo ou idêntico ao longo de sua existência,

evidência o “eu real”, que vai se constituindo em um diálogo contínuo com os

mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem,

segundo Hall (2006, p. 11). Não será Hélio Serejo fazendo uso da palavra para falar

dos homens desbravadores, para contar histórias dele e de todos nós?

Consideramos, ainda, que Serejo transita pacificamente na fronteira entre

“picadas adentro” e na vida da cidade constituída pela localização em que está. É

um sujeito do início do século XX, que se situou na mescla das pequenas

localidades urbanas, possui boa relação com o “mundo das letras” e exercita os

créditos vividos nos ervais de forma aparentemente saudosista, ao recriar

personagens que se integram aos relatos – fato histórico – ambiguamente,

efetivados pela exaltação, pela grandeza do ato, pela bravura pujante. Para tanto,

presta “Homenagem de reconhecimento” ao bravo peão paraguaio e a mulher

guarani, criaturas que, para o autor, enfrentaram a cruel sorte e martírio, “[...] na

grande e vigorosa arrancada da épica penetração ervateira.” (Livro 23, p. 89).

As homenagens, os credenciamentos e inserção das personagens anônimas,

relativamente planas, zelosas de seus deveres, potencializadas em heróis e

heroínas dos ervais, vão revelando, no conjunto da obra, um tempo em que o

homem esteve à mercê da sorte, um tempo em que a fronteira esteve aberta à

entrada de mão de obra barata para não dizer explorada, um tempo em que a

fronteira estava aberta à exploração estrangeira, tanto que a erva era beneficiada na

Argentina.

O homem local que se faz autor das narrativas estudadas – o autor Hélio

Serejo –, não deixa de ser, também, um homem híbrido, se partirmos da perspectiva

de que fala Hall (2003, p. 88-89) ao se referir às pessoas traduzidas, àquelas que se

transportam por entre fronteiras, na acepção etimológica da palavra tradução, do

latim “transferir”. O teórico discute, ainda, o conceito de pessoas traduzidas, pessoas

pertencentes a culturas híbridas, as quais embora dispersadas para sempre de sua

63

terra natal, possuem fortes vínculos com seus lugares de origem, com a sua história,

e são obrigadas, no nosso entendimento, devido às condições de sobrevivência, a

negociar com as outras formas de viver. Passam, pois, a conviver com outras

formas, em outros contextos, em outros locais, situações e fases da vida, em um

processo contínuo. Valemo-nos desse raciocínio para reconfirmar que o autor

estudado também é um “dispersado” fronteiriço e boa parte de sua produção foi

escrita quando não mais residia na fronteira, mesmo que tenha anotado “[...] tudo

no histórico cuaderno argentino”. (Livro 37, p. 267).

Em Contas do meu rosário, obra lançada em 1970, organizada como Livro 22,

em Obras Completas, Serejo resenhou vida e obra de alguns autores, como:

Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Monteiro Lobato e a poesia xucra do Rio

Grande do Sul, com destaque para Jayme Caetano Braun e Dimas Costa. Embora

não seja uma obra que apresenta investigação de tese, contribui para entendermos

um pouco a formação intelectual do autor, tanto quanto o referencial de leitura, os

vínculos e influências, bem como a concepção de autoria, da “predestinação” que

Deus deu ao poeta. Um homem que “Dia e noite, ao entardecer ou na madrugada

fresca e silenciosa”, foi juntando, conta por conta, seu “rosário de divagações

literárias”, por meio das quais exercitava a escrita, o desejo de escrever. Dessa

compilação, avulta-se a preferências – na poesia – e de vocábulos na prosa, da

tradição sulina; traço presente em textos serejianos.

No contexto da Literatura brasileira, Serejo se apresenta como um sujeito

local compromissado com a memória histórica de um tempo, lugar e pessoas com os

quais possui relação identitária. Esse compromisso respalda-se na aptidão inata do

autor para a literatura, no gosto da escrita. Gosto e compromisso fundam uma

literatura de fronteira, mesmo que seja nas produções em que compilou a história da

cidade em que nasceu, Nioaque (Um pouco de sua história), obra escrita, segundo o

autor, de forma despretenciosa, exercício de pesquisa em descoloridos manuscritos,

livros nacionais e estrangeiros, revistas, álbuns e dezenas de publicações formada

também com depoimentos de “valorosos informantes”. Estes constituem extensa

relação de nomes de informantes e ausência das fontes referente às obras

64

consultadas – segundo o autor as obras consultadas constariam do volume II, o qual

não foi escrito31. Nesta obra, o nioaquense explica que:

Nas pesquisas históricas não podemos fugir, é certo, aos pontos obscuros e aos fatos de dupla interpretação, daí surgindo, então, o valor das informações de terceiros, dentre os quais, no peneiramento o pesquisador encontra, invariavelmente, o texto que mais correto e verídico lhe pareça, para registro dos fatos pesquisador nas pesquisas históricas.

[...] No relato histórico procuramos ser fiéis, nos mínimos detalhes, sem adentrarmos a trilha perigosa do “possivelmente” e do “talvez foi isso”.(Livro 33, p. 318).

Como se pode depreender, trata-se de uma obra organizada sob a tutela da

pesquisa, de levantamento e cruzamentos de dados orais e escritos, os quais

passam a integrar um terceiro texto, aquele que diz da interpretação do autor, como

é o caso (Livro 33. p. 258): “O povo foi chegando. E o Apa, o Nioaque, o vale do

Miranda, o Cavo, o Desbarrancado e o Canindé foram tendo suas margens

povoadas. [...] ia se erguendo, nos lindes avançados do Império, uma civilização de

esperanças”. Nestes pequenos vãos textuais, o compromisso com a memória

histórica de um povo se transfigura pelo desejo da escrita.

Como já foi exposto, Serejo não tinha um projeto literário, muito menos optou

por um gênero textual; definia-se como um sujeito que gostava de escrever. Pela

prática da escrita, da consulta aos “compêndios” foi escrevendo. Há muitos e muitos

autores “inspirados”, amadores que escrevem e se fazem poetas, escritores...

Todavia, redigem um ou alguns livros. Quase sempre tematizam amores, dores,

paixões; muitos outros contam a vida familiar, optam por autobiografismo, tornam-se

acadêmicos. Serejo também veio por este caminho. Entretanto, sua uniformidade

está em não ser uniforme em relação ao gênero, pois fez de tudo um pouco, de

forma irregular, se avaliarmos, por exemplo, as narrativas, com base nos elementos

do texto narrativo. Há irregularidades, incompletude, dispersão de elementos. As

probabilidades de que fosse diferente – tivesse domínio pleno de conhecimento de

estrutura textual – são escassas, já que se fez na fronteira. Sujeito de um tempo,

meio e formação, Serejo vai optar por retalhos estruturais muito apropriados aos

fragmentos de histórias ficcionalizadas pelo viés da lembrança de ter vivido, por ter

31 Informação contida na obra que acompanha as Obras Completas: Campestrini, H. Trilhador de todos os caminhos: vida e obra de Hélio Serejo (2008, p. 63).

65

lido e por ter ouvido contar. Incide, assim, uma espécie de originalidade às avessas,

sem que fosse sujeito irreverente, sem que quisesse fundar padrões, mas insiste em

continuar escrevendo da forma como consegue, embora tivesse noção de padrões

estéticos.

Por meio dos retalhos narrativos, o autor manifesta aquilo que Ferdinand

Denis32 tentou dizer aos – dos – autores brasileiros: “[...] a América deve ser livre

tanto na poesia como no seu governo” (DENIS 1826, apud CANDIDO 2006, p. 637).

Serejo, embora estudasse os românticos, fez sua liberdade e escolheu recontar o

que viu e ouviu das histórias transitadas na fronteira.

O fato de não ter visto mais o índio na fronteira, certamente, advém das

condições sócio-culturais. Por não ter idealizado, reafirma sua visão de sujeito

inserido dentro do seu espaço com olhar voltado para o próprio espaço. Sua posição

é original e emancipada duplamente: está em condição literária periférica e enxerga

aquilo que muitos autores demoraram para ver: o próprio lócus enunciativo.

Serejo merece ser melhor e mais estudado, sobretudo, no que se refere à sua

formação intelectual, em específico, relacionada aos autores Visconde de Taunay e

Décio Puiggari. Desses dois autores transcreve trechos, como é o caso do recurso

usado para relacionar a história de Nioaque com o fato histórico da Retirada da

Laguna. Serejo transcreve duas cartas de Taunay, escritas em Nioaque – uma de 07

de fevereiro de 1867 e outra, de 26 de janeiro - enviada à irmã. Entre as notícias,

Taunay confidencia à irmã, que está produzindo um dicionário da língua guaná, do

qual já possuía “mais de dois mil termos em ordem” (Livro 33, p. 286)33 e confessa,

ainda, que não havia cena da natureza que provocasse seus lápis; por isso, tinha

parado um pouco com os desenhos.

Em Prosa Xucra (Livro 10, p 321-322), Serejo ao contar, de forma sintética, a

vida de Guia Lopes, convida o leitor a ver como o “mestre” Visconde de Taunay

descreveu os derradeiros momentos do guia que entrou para a história, e passa a

transcrever trechos de Taunay. Ao transferir a voz do contar ao romancista, Serejo

reforça sua admiração pelo “notável engenheiro e homem de letras da Força

Expedicionária do Brasil (p. 322). O fato narrado (Lopes, antes de morrer, faz um 32 Nota contida em Candido (2006, p. 773) “Quanto a Ferdinand Denis, eis a referência completa da sua obra, nunca reeditada: Résumé de l´ Histoire Littéraine du Portugal suivi du Résumé de L´Histoire Littéraine du Brésil, Lecointe et Durey, Paris, 1826.” 33 Nos livros Modismo do Sul de Mato Grosso (Livro 2, p. 17-23) e Textos Esparsos e Glossário (Livro 50, p. 249-287) há vasta relação de significado de expressões e palavras usadas na região ervateira e de fronteiras.

66

pedido à Taunay) passa de realidade histórica para deleite pessoal do autor Hélio

Serejo. O trecho da obra Retirada da Laguna ganha dimensão além registro dos

últimos momentos do Guia, quando Serejo enaltece a ação de Taunay ao interceder

a favor da família e da viúva de Lopes, demonstrando - o engenheiro - ser um

homem de honra e palavra.

As relações com Puiggari34, como recurso ilustrativo, vêm sendo levantadas

no decorrer deste estudo. Vale ressaltar que a obra de Serejo é posterior ao

lançamento da obra de Puiggari. Observamos marcas recorrentes entre os autores,

tais como: incidências de trechos, personagens, locais e desejo de denúncia.

Entretanto, o filho de Nioaque cria a sua própria obra, sobretudo na forma do

levantamento dos possíveis fatos. Em Sismório: o gringo bochincheiro e bandido35

(Livro 43), personagem que também é descrita por Puiggari; ao final do livro, Serejo

relaciona dezoito informantes, bem como a obra de Umberto Puiggari consultada.

Devemos considerar as datas em que viveram e lançaram as obras: Puiggari 1933,

Serejo 1991. Certamente, o enfoque explícito de denúncia recai, com mais ênfase,

no discurso do primeiro autor, já que retrata uma realidade muito próxima ao

momento em que os fatos ocorreram. Escreve no calor da indignação, do instante

seguinte. Serejo está recuado do tempo - e local - em que os fatos se dão: “Quando

ia em meio o ano de 1906, [...] chega a Pedro Juan Caballero Franck Six Moritz...”.

Sua produção conflui entre a lembrança saudosa da memória esfacelada pelo

tempo. 34 Segundo o historiador Valmir Batista Corrêa “[...] sobre as relações de violência na fronteira sul existe uma verdadeira obra-prima editada em um livrinho despretensioso escrito por Umberto Puiggari, chamado Nas fronteiras de Matto Grosso. Terra abandonada (Ed. Mayença, 1933). Nascido em 1878, Puiggari exerceu atividades comerciais em várias regiões do estado, onde anotou com muita sensibilidade as “conversas de balcão” que escutava. Vivenciou fatos históricos como a participação de Mato Grosso na revolução de 1932. Amigo de Vespasiano Barbosa Martins, Puiggari soube registrar magistralmente o dia-a-dia da terra-de-ninguém mato-grossense.

O livro, de raro acesso pelo fato de ter sido publicado em pequena tiragem, tem seus originais e duas correspondências no cofre de segurança do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, doado pelo ex-governador do estado, Wilson Barbosa Martins. Este livro, por sua importância, deverá ser publicado brevemente pelo IHGMS, acompanhado de um estudo sobre a obra. Puiggari assinava os seus documentos como “H. Puiggari Coutinho”, e escreveu seu livro no verso de papel timbrado da “Pharmacia Brasil de O. Jorge. Rua João Pessoa, 432. Telephone 3”. Na análise desses originais, percebe-se que alguns dos capítulos escritos não foram incluídos na obra publicada. Seria uma autocensura motivada por receio de represálias de pessoas citadas? Talvez, em razão disso, e após muitos anos residindo em Mato Grosso, Puiggari transferiu-se para o estado do Paraná, onde fundou o Jornal de Londrina.” (http://valmirbatistacorrea.blogspot.com.br/2008/02/terra-do-barao-e-cutelo.html. Acessado em 20/03/2013. 35 Livro lançado em 1991, 56 páginas, capa ilustrada, miolo datilografado, em papel comum. A obra foi impressa pela Gráfica e editora Cingral, de Tupã (SP), com revisão de Sebastião Dassi. O autor colou, no verso da folha-de-guarda e na página 55, textos impressos tipograficamente, complementando as informações do livro. (Fonte: CAMPESTRINI, 2008, p. 65).

67

CAPÍTULO II - A FRONTEIRA, A ERVA E O HOMEM

A erva ia avançando, fazendo alvoroço nas orilhas da fronteira...(Livro 34, p. 14).

36

Figura 04

36 Capa do livro No mundo bruto da erva-mate (1991), 168 p., brochura, capa ilustrada..., miolo datilografado, editora Gráfica e Editora Cingral, de Tupã (SP). Na parte inferior da capa está escrito: Explorando o erval pelo rio. O caati pode começar a menos de mil passos. Achado el yerbal de buena comensación, era só descubrir el puerto para o embarque da preciosa riqueza nativa. O produto ensacado representava sempre a esperança sonhada por todos (Livro 44, p. 164).

68

3.1 A FRONTEIRA SEREJIANA

Os eventos político e econômico, a Guerra da tríplice Aliança (1864-1870) e a

exploração dos ervais brasileiros pela empresa Erva Matte Larangeira (1877-1944)

funcionam como uma espécie de jurisprudência para os sujeitos que precisam de

uma rubrica para se lançarem ao trânsito, ao deslocamento. Os dois acontecimentos

históricos se integram ao espaço natural do erval, localizado entre fronteiras, a partir

de onde Serejo irá contextualizar a vida “[...] de uma legião de sofredores [...]” (Livro,

41, p.09), que vieram não se sabe muito bem de onde. Sujeitos, quase sempre

anônimos, sem documento, trazendo histórias de vida que vão sendo reveladas,

quando passam a fazer parte dos livretos de Serejo.

Neste capítulo, trataremos de como, no conjunto da obra de Serejo, emerge a

História da formação e povoamento do sul do Mato Grosso do Sul, que passa pela

história de vida do autor, uma vez que sua produção contém referencias a fatos

históricos e pessoais, além de muitos outros particulares.

A fronteira de que fala Serejo, o local em que Nasceu – Nioaque37 – e o local

em que cresceu – Ponta Porã38 –, os quais ficcionaliza, quando já afastado no tempo

e no espaço, consistiam, segundo Gadelha (p. 46 apud Tolentino, 1986, p. 52),

antes da Guerra do Paraguai, em núcleos habitacionais dispersos na região mato-

grossense, sem proteção oficial e foram surpreendidos com a “trágica guerra”.

Em Nioaque (Um pouco de sua história), Serejo explica ao leitor, em primeiro

lugar, como o próprio título informa, apenas um pouco da história local, embora

tenha realizado pesquisa exaustiva para organizar a obra. Segundo ele, “mister

seriam pesquisas de longos anos e cuidadosa comparação informativa” (Livro 33, p.

231). Ao retomar o passado de sua cidade, Serejo, em determinado momento da

narrativa, explica ao leitor, como se este estivesse suspeitando dele, que para

resgatar os fatos: comparou dados, pesquisou exaustivamente, colocou tudo em

ordem cronológica, “[...] enfim, pesquisas aprofundadas foram efetuadas para

esclarecimento do fato histórico; tudo ficou, porém, no terreno do “papai dizia”, do

“vovô afirmava sempre” ou no terreno enganador do “provavelmente”.(Livro 33, p. 37 Em Nioaque (Um pouco de sua história), vol. I, 1985, Serejo faz referência à grafia correta: Anhuac, que significa clavícula quebrada em origem guaná, língua indígena da tribo aruaque (p. 233). 38

69

249). Avulta-se, com isso, a força da história oral, incidência peculiar na literatura de

Serejo.

O filho da terra, independentemente de ter contado a história em

conformidade com os que viviam à margem direita ou à esquerda, a história de fatos

ou de fato, organiza o “já dito” como homem que se formou ouvindo resquícios de

histórias, retalhos da Guerra, apalpando vestígios de lutas, contrapondo contares,

indagando outros, percorrendo picadas, caminhos, trilheiros, dantes abertos e

trafegados por sujeitos em trânsito, uns sobre as pegadas incrustadas dos outros, de

modo que já não seria mais possível vislumbrar cartesianamente a ordenação dos

fatos. Fatos são os que estão nas narrativas; as verdades se cruzam e se

distanciam e tornam a se integrar na polifonia dos contadores que aparecem na voz

do narrador serejiano ao tecer suas narrativas.

Falar de sua terra natal equivale a contar, no mínimo, duas histórias como ele

mesmo depõe: a parte oficializada pelos vencedores da “trágica Guerra” e os

depoimentos dos que estiveram próximos aos combates, sem ter muita noção dos

motivos deflagradores do evento político que resultou em um Paraguai exposto à

miserabilidade. Equivale, ainda, a contar uma história do lugar onde se esteve

fisicamente, o qual existiu na memória de um sujeito perpassado pelas marcas do

local e muitas outras. Um sujeito que irá contar de um lugar e tempo posterior ao

ocorrido.

Assim, o nativo Hélio Serejo, ao longo de sua obra, deixa transparecer as

fronteiras por meio das quais se constituem histórias de poder, de posse;

entrelaçadas pela tessitura, emergem muitas outras que foram esfaceladas,

desvirtuadas, interrompidas e teimam em sobressair, aos pedaços, ao longo da

obra. Ação que desempenha através do que o autor denomina literatura sertaneja, a

qual prenuncia uma consciência do olhar para uma faixa de fronteira – social e

geográfica – e um sentimento de nacionalidade exaltado, de “um escravo do

nativismo” (Livro 49, p. 151) que se sente incompetente para descrever “[...] o

recôndico da mataria, muitas vezes traiçoeira, o marco de sua intrepidez”.

Com o término da Guerra, aos poucos os núcleos vão sendo reconstruídos.

Nioaque, destruída pelo fogo ateado pelas tropas paraguaias, vai sendo erguida

pelos que se refugiaram, bem como, mais tarde, por famílias gaúchas fugidas do

movimento revolucionário do sul em busca de terras férteis.

70

A hilária anedota Ajudo a meu amigo, metáfora de um tempo entre guerra,

leva-nos a compreender razoavelmente como estava o povoado Nioaque, o mais

próspero ao sul, ao ser atacado pelas tropas paraguaias:

Na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, fronteiriça com

Ponta Porã, onde residi longos anos, travei conhecimento e cultivei mesmo sólidas amizades com vários filhos do país irmão. E de um deles ouvi por várias vezes o fato seguinte.

Quando o capitão Blas Rojas entrou na vila de Nioaque, covardemente abandonada pelo capitão Martinho José Ribeiro [...] encontrou no vilarejo deserto somente duas almas: um espanhol e um português europeu.

Ouvindo seu sotaque, o capitán Rojas perguntou-lhe: - De donde es usted? - De Espanã, mi capitán! Soi sevillano... -Que está haciendo por aça? - Esperava uested, com su caballeria, mi capitán! - Y para quê? O espanhol respondeu com vivo entusiasmo: - Para poner fuego em la vila com ustedes! Blas Rojas, voltando-se para o português, inquiriu-o

asperamente: - E usted? Que hace también? O português, que não havia entendido bem a conversa,

respondeu secamente: - Ajudo ao meu amigo. O capitão guarani, revoltado com o cinismo de ambos, dera-

lhes, então, aquele castigo: com um facho aceso, o português e o espanhol saíram a queimar, moita por moita, o capinzal esturricado das ruas. (Livro 10, p. 334).

Aparentemente, perdido ao final de Prosa Xucra (Livro 10), texto irregular pela

extensão em relação aos demais, aquilo que poderia ser apenas o reconto das

muitas histórias que ficaram incrustadas na história de um local que foi espaço brutal

de guerra deixa confluir fronteiras, tais como, memória coletiva e oficial, fato

real/ficcionalizado, o oral e escrito, além do sentimento de “desamor” do português

em relação à colônia, não muito diferente do terceiro, o paraguaio, uma vez que,

embora inconscientes, todos estão em “estado de Guerra”.

A obra de Serejo é memória de um local e tempo em que esteve. Fazendo-se

narrador, recupera, pela memória individual, aquilo que testemunha ter vivido ou

presenciado, bem como pela memória coletiva, aquilo que dizem ter ocorrido. Para

Ricoeur (2002, p. 107), “memória é passado, e esse passado é o de minhas

impressões; nesse sentido, esse passado é meu passado”. Embora, ao recordar,

Serejo reporte-se ao passado de sua vida pessoal, o recontar do vivido interpenetra

71

sua história com outras histórias ocorridas em um tempo e local, os quais se cruzam

no vão dos tempos – passados e presente, no vão dos enfoques – do particular e

coletivo – e abrem fendas para, por meio da memória – passado –, conhecermos, no

caso de Serejo, um tempo em que o Estado de Mato Grosso do Sul – ainda Mato

Grosso – começou a ser mais povoado. Um tempo presente, sobretudo, no aspecto

sócio-político, argumentos discutidos mais adiante em se tratando de referendarmos

a função da memória e a intersecção do estético com o histórico.

Esse peculiar traço na obra de Serejo leva-nos a lugares que, para Ricoeur,

(2002, p. 58) permanecem como inscrições, monumentos, potencialmente como

documentos, por meio dos quais a ideia de passado passa a ser plural. Assim, a

memória particular e a coletiva se integra em um terceiro conceito de memória. A

memória da identidade do sul-matogrossense reconfigurada pelo discurso histórico

de um autor periférico que, na ânsia de contar histórias, as suas histórias, foi

recolhendo vestígios de um passado que alguns têm na memória - como foi o caso

de Serejo e seus informantes. Todavia, há poucos registros catalogados da memória

anterior ao Estado de Mato Grosso do Sul, sobretudo, pela distância existente entre

a capital Cuiabá/MT e os pequenos povoados que foram se formando em torno da

extração da erva. Além do que, com a divisão do Estado em 197739, boa parte, do

acervo histórico e geográfico ficou sediado em Cuiabá. Por isso, afirmamos que

estudar a obra de Serejo é uma forma de atar as pontas do passado-presente, uma

possibilidade de conhecer, mais e melhor, a identidade do sujeito sul-mato-

grossense pelo homem nativo.

39No dia 24 de agosto de 1977, o então presidente da república Ernesto Geisel enviava a Mensagem n. 91, de 1977-CN, com o projeto de lei complementar de criação do novo Estado. No dia 11 de outubro seguinte, o mesmo presidente assinava, em solenidade histórica, a Lei Complementar n. 31, “criando o Estado de Mato Grosso do Sul pelo desmembramento de área do Estado de Mato Grosso”, com a capital em Campo Grande. Segundo Hildebrando Campestrini, Falar em divisão do Estado é politicamente incorreto. Em momento algum se pretendeu a divisão. Lutou-se, sempre, pela criação do novo Estado, porque se entendia que a lei devia tornar de direito o que já existia de fato. E a lei complementar foi taxativa: “Fica criado o Estado de Mato Grosso do Sul...”. Disponível em:

http://www.amambainoticias.com.br/brasil/dia-11-de-outubro-33-anos-de-mato-grosso-do-sul. (Acessado em 14 de outubro de 2013).

72

A memória de fronteira reconstruída por Serejo, e, a que nos interessa,

estende-se, com mais amplitude, para espaço de trânsito, de entrada, de

deslocamento, distanciado dos locais onde se centralizavam o poder político e

econômico oficiais, devido à extensão territorial e concentração habitacional ao norte

do estado de Mato Grosso. Com isso, fica evidente a vulnerabilidade à entrada e ao

desbravamento sem que as “autoridades oficiais”, tanto de lá como de cá, tivessem

controle, possibilitando, com isso, a Lei da fronteira.

Reis (1980, p. 53) narra que costumava ver “[...] um rapaz de uns 18 anos [...]

quase sempre vestido de terno branco, gravatas lindas e chapéu de palheta,

daqueles que constituíam moda na década de 20, 30, por aí.” Muito tempo depois,

Reis vai compreender que o rapaz, cujo irmão era seu amigo, era Hélio Serejo:

“Passados uns dois meses na cidade, partia de novo para o sertão bruto...”. Conta,

ainda, em Os 13 pontos de Hélio Serejo (1980), que a casa dos pais de Serejo, em

Ponta Porã, ficava à margem esquerda da rua, no Brasil e, na outra margem, estava

o Paraguai, espaço de trânsito livre e fraterno, embora entre países diferentes que

estiveram em guerra em época não muito distante do momento em que Serejo

residiu na fronteira.

Além das referências nas narrativas, inferimos que Serejo transitava pelos

espaços fronteiriços erval-cidade, Brasil-Paraguai, assim como suas personagens:

“A família morava na rua principal da cidade”, a rua tinha ‘no outro lado’, isto é, na

calçada em frente, um outro país, o Paraguai. Embora situado entre dois países, os

limites geográfico, cultural, histórico, linguístico são representados como unidade

nas narrativas, impulsionados pela oportunidade de mão de obra gerada pelo boom

econômico atribuído à empresa Matte Larangeira.

A acepção de fronteira representa sentido de divisa, limite entre dois

territórios, dois espaços. Todavia, se pensarmos que a rua que demarcava o espaço

entre os dois países – pós-guerra -, também permitia que o de lá viesse para cá, e o

de cá fosse para lá, teremos fronteira como espaço que possibilita o trânsito

ambivalente, independente da necessidade de se deslocar, das condições que

impulsionam o deslocamento. Além disso, fronteira divisa, delimita espaços,

demarca território, estabelece posse; a contrapartida possibilita a integração, como

pode ser percebido na visita obrigatória à namorada brasileira ou paraguaia em

“Medir los passos” (Livro 38, p. 33): “Paraguaios e brasileiros mediram os passos,

atravessando a fronteira e realizaram o sonho acalentado”, para conquistar o

73

corazón de lãs elegantes y jovenes brasileñas ou em direção contrária o encontro

con las rubias y hermonas morochas.

O sentido de fronteira, ponto de contato – e não significa de imediato,

integração – é muito mais abrangente nas narrativas em relação aos conflitos de

violência. A obra é perpassada pela noção de sujeitos irmanados cujas

nacionalidades podem ser ilustradas pelo desejo diplomático explicitado pelo Barão

do Rio Branco para Brazílio Ituberê da Cunha, embaixador brasileiro no Paraguai,

em ofício datado de 01/02/1905, no qual o Barão reafirma a amizade do Brasil e

assegura que “Não há conflito de interesse entre os dois países. O que desejamos

mui sincera e convencidamente é que todos eles vivam em paz, prosperem e

enriqueçam. Vizinho turbulento é sempre um vizinho incômodo e perigoso”

(DORATIOTO, 2012, p, 4).

Não há julgamento das intrigas, pois as histórias de violência fazem parte do

cotidiano da fronteira de forma que “olho por olho, “dente por dente”, “quem faz tem

de pagar”, “detino...és detino...” são representações contextuais favorecidas pelo

cruzar da fronteira – fugitivo de lá ou de cá –, como é o caso da personagem “Juca

Peba”, “um homem de bem, e um bom em todos os sentidos”. Certa ocasião, Peba

foi xingado em guarani por um correntino e, em legítima defesa, sacou a arma e o

tiro no meio das duas sobrancelhas fez os miolos escorrerem até a boca (Livro 36, p.

218). O homem do bem, feito assassino, “Viajou com destino a Encarnación, deste

local, facilmente pisaria chão brasileiro, se necessário fosse.” E a narrativa

prossegue sempre no dualismo – homens do mal contra o “Pobre do Juca, José ou

Juca Peba”, um paraguaio que sempre nutriu amizade sincera com os brasileiros e

morreu degolado pelos irmãos do homem por ele assassinado. Mas o padrinho

contratou a pessoa certa para vingar a morte de Peba: “O primeiro tiro de

espingarda partiu. Logo, o outro. O estrondo foi varando a mata, cortando as suas

entranhas....”, e ainda não satisfeito degolou os dois irmãos, os assassinos de Peba

(Livro 36, p. 222).

Neste entrevero, mais do que dual, há uma voz que sabe tudo e adentra pelas

encruzilhadas percorridas pelo tocaiador e tocaiado, vingador e vingado no intuito de

contar os fatos, de dar as cartas à história que se passa na fronteira. Assim, o

contexto de fronteira se encarrega de compactuar com as partes envolvidas de

forma que as intrigas sejam narradas como rotina de um tempo e local. Ocorre algo

semelhante na trágica cena em que Serejo narra o assassinato de um aconcágua:

74

velório e baile comungam do mesmo espaço e instauram um estado de sentimento

subvertido – baile e velório – que o narrador não dá conta de explicar. Todavia, a

fronteira, o local de onde se fala, financia e trata de dissipar a concepção dual de

vida/baile, morte/velório. Surge daí, um “mal estar” inenarrável desestruturando

concepções e contratos entre vida e morte, abrindo passagem para um lócus

intermediário, nem de lá, nem de cá, nem vida, nem morte, mas que justifica os fatos

e as ações das personagens, nas “[...] nas tragédias vulgares das fronteiras

abandonadas”. (Livro 5, p. 112). Um terceiro estado de ser que dá margem para

outras instâncias interpretativas. Ao reconhecer a fronteira como “abandonada” e a

aparente rotina típica com a qual parecia conviver como, “tragédias vulgares”, o

narrador – como veremos – vai se distanciando da realidade, revelando o quadro

social caótico vivenciado na fronteira. Assim, a história que parecia contar um hábito

cultural, ratifica o abandono a que estava exposta a população, ao ponto de

desconsiderar alguns princípios mínimos de convívio humano como forma de

regulação de comportamento.

Serejo atribui, ainda, boa parte das intrigas, à invídia – inveja – a qual

“desgraçou centenas de lares da região sulina mato-grossense”. Defende que, nos

ervais da fronteira: a inveja foi de crueza terrível: perseguiu, humilhou, tocaiou, deportou, incendiou, agrediu covardemente, prendeu, fez intrigas políticas, levantou calúnias, forjou furtos, violentou criaturas indefesas, aleijou a muitos e ...matou. Principalmente matou. Quantos? Não se sabe ao certo. Foram centenas e centenas, isto é incontestável. (Livro 23, p. 59).

Essa arma humana manuseada por déspotas, sanguinários, desalmados e

covardes, segundo Serejo, agiu devido à cobiça por um quinhão de campo

apropriado para criação ou uma faixa de terras onde as vistosas ervateiras

clorofilavam o ambiente. O impactante disso tudo é a defesa em favor do assassino:

quase sempre, quem mata o faz por um motivo justificável, uma vez que a lei da

fronteira é regida pela ordem às avessas: matar ou morrer.

Ainda em Bhabha (2003, p. 24) podemos avaliar fronteira como espaço, local,

a partir do qual algo começa a se fazer presente, algo começa a ter sentido, começa

a ser compreendido, começa a ser visto como movimento de trajeto ambivalente.

Fronteira pode ser compreendida como local em que transitam “balaios de bugres”,

contendo traços unificadores dentro das diferenças que os constituem como sujeitos

75

de um momento sócio-histórico. Esse momento, para Serejo, centraliza-se no

povoamento do sul do Mato Grosso do Sul da faixa que vai de Porto Murtinho a

Amambaí, como se pode ver na obra recentemente publicada, Retratos de uma

época: Os Mendes Gonçalves & a Cia. Matte Larangeira (2013), organizado a

pedido da filha de um dos donos da empresa Matte Larangeira, pelo historiador -

também fronteiriço - Luiz Alfredo Marques Magalhães.40

Figura 5 - Caminhos percorridos pelas primeiras comitivas ervateiras de Thomaz

Larangeira no Brasil, a partir de 1888.

Há nas narrativas selecionadas um transitar por entre fronteiras – espaço de

trânsito –, que se transfigura na atuação narrativa de Serejo, quando, de autor ele se

faz personagem e, ao mesmo tempo, narrador. Ou, ainda, na fronteira do local

regional que se abre ao universal, na fronteira da memória do lembrado e do 40 Segundo nota contida na obra Retratos de uma época (2013, p. 235), Luiz Alfredo foi criado na fazenda Lagunita/MS e conheceu ainda na infância a atividade ervateira; seu avô materno era amigo e compadre de Heitor Mendes Gonçalves, dono da Matte Larangeira e pai de Mario Mendes Gonçalves cuja filha, Elza Mendes Gonçalves, teve a ideia de organizar um livro contando a saga da Matte e dos Mendes Gonçalves. Dona Elza ainda possui a fazenda Margarida, a qual foi requerida por Thomaz Larangeira em 1888 e passou a fazer parte da Cia. Matte Larangeira em 1892; após 1903, seria da Larangeira Mendes e Cia. Área original: 135, 404 hectares.

76

esquecido e da relação entre o histórico e o ficcionalizado. Nas retas – caminhos –

há um entrecruzar, que se aglutina em um terceiro espaço, segundo Bhabha (2003)

p. 65), o lócus enunciativo, o qual poderá resultar em discursos que estão na

exterioridade do que foi dito. Este terceiro espaço abrirá fendas para que as

narrativas se estendam “além” do contar fatos, causos, lendas, vivências de

anônimos – homem do erval –, bem como de pessoas identificadas pelo nome ou da

descrição exuberante da flora do sul do Mato Grosso do Sul. É o caso do discreto

texto “Ajudo a meu amigo”, no qual a lembrança da guerra foi-se transformando,

passando de “fato ocorrido” para anedota contada entre amigos, o que pode ser uma

forma de negação dos fatos, um apagamento das atrocidades ocorridas durante La

Gran Guerra ocorrida entre 1865 e 1870.

No livro didático História de Mato Grosso do Sul (2005, p, 73-86), capítulo 08,

“A guerra do Paraguai e Mato Grosso do Sul”, além do encadeamento dos textos

contidos nesta obra estarem de forma fragmentada e anacrônica, subentende-se da

leitura do título do referido capítulo, “A guerra do Paraguai e Mato Grosso do Sul”,

que a Guerra ocorrida entre Brasil, Argentina e Uraguai contra o Paraguai, deu-se,

de fato, entre o país vizinho e o Estado de Mato Grosso do Sul. Todavia os autores

não contextualizam o fato histórico, a fim de dar condições do aluno/leitor

compreender a formação do Estado; consequentemente, do Brasil. Com isso,

inferimos que as causas e consequências da Guerra da Tríplice Aliança,

transformadas em anedota, como vimos em Ajudo ao meu amigo, não difere muito

dos estilhaços históricos contidos no Manual adotado pela rede de ensino do

Estado. Vale ressaltar as cinco linhas reservadas para “Consequências da guerra”:

Depois de cinco anos de luta (1865 -1870), a população do Paraguai foi praticamente dizimada: dos 800 mil habitantes restaram apenas 194 mil. Cerca de 96% da população masculina foi morta. De república próspera e progressiva, o país converteu-se em uma “espécie de colônia sem patrão”, nas palavras de Augusto Roa Bastos, o escritor paraguaio de maior expressão internacional (GRESSLER, 2005, p. 84).

Os farrapos da memória da “Grande Guerra” repercutem, ainda em: “Mato

Grosso espera/esquecer quisera/O som dos fuzis/Se não fosse a guerra/quem sabe

hoje era/Um outro país/41. Em Ajudo a meu amigo a lembrança anedótica representa

41 Letra e música de Almir Sater e Paulo Simões.

77

um apagamento visando a um recomeço, como é o caso da personagem El viejito

poincaré. Entretanto, o passado não se subtrai pelo desejo de apagá-lo, já que

passado e presente são palcos da mesma história.

Prenuncia-se, com isso, em Serejo, uma literatura na fronteira da exaltação

nativista e da representação heterogênea do regional, muito próxima das tendências

da segunda geração do modernismo. Serejo retrata o homem e suas adversidades

contextuais de forma que a aparente exaltação contrasta com a realidade das

personagens que passam a viver em local pouco propício e acessível ao ser

humano, a fronteira Brasil- Paraguai no início da primeira colonização do Estado de

Mato Grosso.

Ademais, a paisagem que vai sendo modificada pelo homem em trânsito

proporciona ao narrador um sentimento catártico, uma espécie de bálsamo

minimizador do destino “cruel e ingrato” de homens e mulheres desbravadores. Nem

por isso o narrador se exime a recontar a realidade.

Na fronteira, pois, de suas experiências de fato e na confluência dos fatos

criados pelo ato de narrar, autor, narrador, personagem e sujeito histórico se

integram na criação de uma realidade transfigurada pela experiência de vida, pelo

conhecimento que se tem do lugar. No entremeio de fatos vividos e recriados está o

fazer literário de um sujeito aparentemente descompromissado com a denúncia. Um

narrador que se apresenta como eterno apaixonado pela escrita, com olhar

magnetizado pela terra. Todavia, nas narrativas estão, também, histórias de

exploração, de coragem, de medo, da “lei do mais forte”. Advém daí a hipótese:

Serejo revela, além da cor local, questões para além do exótico e do pitoresco.

Insere o homem e a vida do homem explorado, aquele que passa a se aventurar na

fronteira Brasil-Paraguai motivado pela possibilidade de trabalho na Companhia Erva

Matte Larangeira.

Machado de Assis (1959, p. 28-34) preconiza que “Naturalmente os

costumes do interior são os que conservam melhor a tradição nacional; [...] Por outro

lado, penetrando no tempo colonial, vamos achar uma sociedade diferente, e dos

livros em que ela é tratada, alguns há de mérito real”. O efeito colonialista projeta-se

ao longo do contínuo processo colonizador, tanto que as personagens – os

anônimos dos ervais – são heroicizados para compensar a participação na

arrancada civilizatória. Posicionamento natural, advindo de concepção histórica do

pensamento ocidental, calcado no dual: civilizado x não civilizado, na perspectiva de

78

quem chega traz o melhor, sabe mais, possui “cultura mais forte”, civilizado,

portanto.

Entretanto, Serejo surpreende ao reconhecer a alteridade, ao avaliar as

contribuições trazidas pelos paraguaios no cultivo da erva mate, uma vez que a

extração no país vizinho foi anterior ao processo do Brasil. Vale ressaltar que os

paraguaios vieram em consequência da Grande Guerra, sujeitam-se às condições

de exploração, de expatriação (in)voluntária. Com isso, há uma diferença nos

padrões de contato de povoamento, do processo de colonização europeu, pois há

relativa unidade social, histórica e econômica – povoamento pós guerra, pós

demarcação de fronteira – entre os que chegaram e os que estavam. Assim, pelo fio

de sua narrativa, correm vozes abafadas devido às circunstâncias sócio-históricas,

ainda que estas elas explicitem relações pacíficas entre nacionalidades – sem muita

consciência de quem é quem. A fronteira é livre, aberta, propícia o povoamento

“irmanado”, particularidade de um tempo e local que favorece o contato. Sobressai,

dessa relação, o encontro, já que para Martins (1997, p. 151) “O desencontro na

fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos

está situado diversamente no tempo da História.” Situação relegada na narrativa

serejiana, devido à conivência histórica em que se dão as relações entre os

habitantes da fronteira do sul de MS: todos são parte de um mesmo tempo e

história, como se pode avaliar na anedota Ajudo ao meu amigo. Entretanto, cada

qual carrega consigo muitas outras marcas de histórias, uma das quais a história

pessoal, nem sempre revelada de imediato, pelo contador; traço peculiar nas

narrativas serejianas como veremos no estudo de algumas estruturas. Martins

(1997, p. 150) discute, com bastante veemência, o ledo engano fronteiriço de

unidade e de local de encontro:

[...] a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso o que faz dela uma realidade singular. A primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado

79

diversamente no tempo da História. (MARTINS, 1997, p. 150-151).(Grifo nosso).

Veremos, mais adiante, a consonância teórica de Martins com boa parte das

narrativas selecionadas. Realmente, à primeira vista, a fronteira se abre ao encontro,

ao passo que vai acorrendo o convívio, as histórias vão se desencontrando,

sobretudo, quando o narrador revela a procedência de personagens fugidias.

Além da alteridade, transparece, ao longo do conjunto da obra, um olhar

sobre o local, que flerta com o exótico e o pitoresco. Sobressai, pois, a presença da

cor local, da vida local, temática recorrente daquilo que Candido tanto criticou dos

românticos:

[...] tende a anular o aspecto humano, em benefício de um pitoresco que se estende também à fala e ao gesto, tratando o homem como peça da paisagem, envolvendo ambos no mesmo tom de exotismo. É uma verdadeira alienação do homem dentro da literatura, uma reificação da sua substância espiritual, até pô-la no mesmo pé que as árvores e os cavalos, para deleite estético do homem da cidade. (2006, p. 614-657).

Em Serejo ocorre o reverso, já que abre passagem para o homem e seus

dilemas em um contexto atípico à vida urbana. Paisagem e vivente se integram nas

narrativas, e o espaço do erval passa a dar significado a condutas e

comportamentos das personagens, as quais vivem uma espécie de nomadismo

dispersivo, entrecortado pelas trilhas do caati – erval –, um verdadeiro labirinto na

mata bruta, um sistema caprichoso de estrada, que se cruza em todos os sentidos,

segundo o ervateiro e autor (Livro 9, p. 234).

Machado de Assis (apud CANDIDO, 2006, p. 368 - 369) já dissera que uma

literatura nascente deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a

região. No conjunto da obra de Serejo fica evidente a temática fronteiriça contada

por um fronteiriço misto de homem cruza-campo e trota-mundo em trânsito em que

“[...] a luta espaço-temporal assume com frequência traços de luta social. O tempo

parece amordaçado, ou escravizado pelo espaço, e por mais que o elemento

ecológico absorva o primeiro plano da estrutura da obra, os valores humanos se

destacam sempre...”. Assim, encontramos respaldo na preocupação de Machado de

Assis em exigir do escritor certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu

tempo e do seu país. Nas narrativas, há vestígios de um tempo de povoamento de

80

um local que hoje se faz Mato Grosso do Sul. Um tempo de fronteira entre dois

países, de conflitos, de contato entre diferenças, de história de cada qual, sobretudo

porque em cada tempo há situações por meio das quais são evidenciadas

circunstâncias de alteridade.

Assim, a literatura de Serejo vai se configurando no limite tênue de uma

literatura de fronteira produzida por um autor nativo, à margem dos grandes centros,

sem muito planejamento literário, tanto que sua produção resultou em um “balaio de

bugre”. Todavia, os aspectos de vida integram-se aos elementos internos da obra,

sobretudo, pela relação do autor com o local e tempo, no caso, a fronteira do sul do

Mato Grosso do Sul em um tempo de desbravamento.

Com isso, avaliamos que a ideia de fronteira geográfica, espaço territorial, por

onde se processa o contato, o trânsito, ambivalências, e alteridades sócio-culturais,

ganha dimensão figurada, no conjunto da obra de Serejo, e se projeta para o campo

da conotação, ao avultarmos a possibilidade de Serejo ter escrito motivado,

inconscientemente, pelo viés da dupla acepção contida na noção metaforizada de

fronteira.

Algumas relações entre os planos – real/figurado – podem ser estabelecidas

na visibilidade, na inserção que Serejo dá ao “outro” – ao anônimo, ao pioneiro, aos

fronteiriços – a ele mesmo em suas narrativas. Além disso, demonstra ausência de

planejamento literário, embora não fique à espera e vá trilhando sua história de

escritor periférico, acadêmico, homem do erval, não muito diferente da perspectiva

em que se encontra o sujeito descentrado, “errante”, recuperado pelas narrativas.

Tal conjectura agrega valor estético à temática “vulgar” de pessoas que passam a

conviver na “fronteira abandona”.

3.2 CAAPÊ-HETÁ LA CAÁ42

Ao se falar em elaboração da erva -mate, um nome surge logo como pioneiro: Tomás Laranjeira – o Tigre dos Ervais. (Livro 23, p. 67).

42 Expressão que se ouve frequentemente nos ervais e que quer dizer: aqui tem muita erva. (Livro 50, p.255).

81

O entrecruzar das personagens serejianas dar-se-á, com maior intensidade,

no decorrer das ações conduzidas pelo homem de negócios, “sereno nas decisões,

mas extremamente arrojado quando se fazia mister uma penetração por lugares

desconhecidos, cheio de charcos, cipoal denso [...]” (Livro 34, p. 14), Thomaz

Larangeira43. Para o reconvertido narrador serejiano Livro 34, p. 14), foi “homem de

fôlego de sete gatos e têmpera de aço”, tinha conhecimento da qualidade dos ervais

nativos de Amambaí, Iguatemi da margem direita do rio Paraná e soube explorar a

qualidade de “Uma yerba de bueno gusto que hace bien al espiritu” (Livro 34, p. 16)

como diziam os argentinos, ao se referirem ao sabor do produto brasileiro

comparado àquele produzido em seu país.

Nascido em Santa Catarina em 1840, Thomaz Larangeira participou da

Guerra do Paraguai como responsável pelo suprimento das tropas brasileiras

fornecendo mantimento, representante de uma firma de Porto Alegre. Terminada a

Guerra, estabeleceu-se no Paraguai. Em 1870, os governos que tinham estado em

conflito, constituíram a Comissão Mista de limites Brasil-Paraguai, no ensejo de que

fosse demarcada a linha divisória entre os dois países. Na ocasião, Thomaz

Larangeira, segundo Serejo (Livro 34, p. 67), foi convidado pelo coronel Rufino

Enéias Gustavo Galvão para desempenhar a função de seu secretário, posto que

ocupa durante pouco tempo, uma vez que seu faro de comerciante o levará a ser

responsável pelo abastecimento alimentício da expedição. Passa, então, de

secretário, a fornecedor de víveres.

Em, Caraí, monografia redigida para participar de um concurso promovido

pelo núcleo regional de Mato Grosso do Sul do Instituto Euvaldi Lodi sobre o ciclo da

erva-mate, reconvertida em livro, Serejo enfatiza que:

Foi no desempenho deste mister, em seu giro de muitas e penosas léguas, que Tomás Laranjeira descobriu, nas bacias dos rios Iguatemi e Amambaí, grandes ervais nativos, formados de riquezas arboleras. Guardou silêncio por uns tempos, mas continuou cruzando aqueles ermos e mais ervais foi encontrado. Sentiu a grandeza descoberta, e como tinha nas veias o tino do comerciante arguto, e sendo já conhecedor da industrialização e comércio da IIex que, mais tarde, seria batizada coma denominação

43 Optamos por seguir a grafia adotada pelo historiador Luiz Alfredo Marques Magalhães, autor de Retratos de uma época: Os Mendes Gonçalves & a Cia. Matte Larangeira (2013), por utilizar fonte de pesquisa com base no Colégio Brasileiro de Genealogia realizada por Élida Hernandes Garcia, professora da cidade de Bagé/RS.

82

de Ilex paraguariensis, teve a idéia: requereria do governo de Mato Grosso permissão para explorar esses ervais nativos, que deslumbravam pela folhagem intensamente clorofilada e exuberância de porte.

E assim fez. Com a fixação dos limites entre os dois países, parte

considerável dos ervais que se encontravam em território neutro foi denominada

como erval brasileiro. Em, 1878, Thomaz Larangeira começa o empreendimento;

obtém concessão do governo por meio do Decreto n. 81799, de dezembro de 1882.

Em O mayordomo de Capivari (Livro 44, p. 168), narrativa em que conta as

atrocidades do correntino responsável pela primeira ranchada ervateira, o qual

morreu com uma faca carniceira, Três Estrelas, enfiada no pescoço por um brasileiro

para vingar sua pátria, Serejo inicia o texto referindo-se ao primeiro comando da

Empresa Mate na estrada de Chirigüelo, localidade próxima a Ponta Porã.

A empresa prospera e o mentor da ideia se une aos irmãos Manuel, Francisco

e Joaquim Duarte Murtinho, no ano de 1902, em Buenos Aires. A firma Larangeira,

Mendes e Cia adquire todos os bens pertencentes à Companhia Matte Larangeira.

Com a Proclamação da República, Antonio Maria Coelho, amigo de Thomaz

Larangeira, assume o governo de Mato Grosso e proporciona mais favorecimento44

à Companhia do amigo da época em que participaram da comissão demarcatória. A

indústria expandiu-se a ponto de tornar-se uma potência dentro do próprio estado. A

Companhia reconhece que alavancou o desenvolvimento da região fronteiriça,

outrora, abandonada, construiu pontes, estradas, a fim de transportar seu produto.

Muitas cidades que nasceram após a guerra desenvolveram-se no auge da erva-

mate. Entretanto, Thomaz Larangeira, foi muito favorecido, com “as benesses dos

políticos e a mão de obra baratíssima do paraguaio e dos índios” (p. 94).

44 “A Matte Larangeira tinha origem na concessão, feita em 1882 e renovada seguidas vezes, a Thomaz Larangeira para explorar a erva-mate no Mato Grosso. O objetivo dessa concessão, segundo Decreto de 23 de junho de 1890, era o de estimular o progresso econômico mato-grossense, promovendo o aumento da renda pública com a cobrança de impostos sobre o mate exportado e sobre a importação. A Matte Larangeira, porém, adotou procedimentos que frustraram esse objetivo, ao criar depósitos em Vella Concepción, no Paraguai, que eram abastecidos de erva-mate mato-grossense por carretas. Estas atravessavam grande extensão de território paraguaio, valorizando-o, transferindo-lhe os benefícios do trânsito que o governo brasileiro esperava fosse reservado ao Mato Grosso. As estações paraguaias para abastecimento dessas carretas acabaram por tornarem-se núcleos populacionais, praticando a agricultura e comércio, em detrimento do vizinho Estado brasileiro”. (Tese de Francisco Doratioto, RELAÇÕES BRASIL - PARAGUAI: afastamento, tensões e reaproximação (1889-1954).

83

Em Caraí, Serejo confirma a “força poderosa, com mando absoluto” da

Companhia, tanto que esta se transformou, eleitoralmente, em uma fonte de

consulta e indicação de cargos políticos, além de fonte de “voto de cabresto”, já que

os pequenos fazendeiros, comerciantes, ervateiros dependiam da erva. Com isso,

“[...] não foi difícil formar um eleitorado obediente disciplinado. Um eleitorado da

mais alta valia, que cumpria cegamente as ordens, não traindo nunca” (p.18). Afirma

ainda:

Passou a dominadora organização industrial ervateira a indicar governador, vice, deputado estadual, deputado federal e senador. Escolhia e os elegia na certa, o que é de conhecimento de todo mato-grossense. Nunca foi surpresa a vitória, nas urnas, dos indicados, pois seu prestígio, que não conhecia barreiras, aumentava de ano para ano. Removia e demitia funcionários, nomeava autoridades, determinava acertos, punha por terra com apenas algumas linhas descabidas pretensões de adversários ferrenhos, elegia prefeitos com espantosa facilidade. Estendia o seu poderio político até São Paulo e Rio, traçando diretrizes para este ou aquele cometimento e sempre se avantajando na sentença final. (Livro 34, p. 19).

Em contrapartida, possibilitou o povoamento da região, abriu caminhos,

estradas, abriu portos, construiu pontes, para a erva poder ser transportada e para

que a mão de obra de que a Companhia precisava, chegasse aos longínquos locais

de extração. Esta mão de obra personifica-se no homem cruza-campo e trota-mundo

de que tanto fala Serejo, homens, mulheres, e “[...] todos, indistintamente, eram

tratados como animais, com toda espécie de tirania, porque, pelas leis dos ervais,

era preciso que houvesse produción, e produção de erva de primeira qualidade, sem

qualquer mancha, e na maior quantidade possível” (Livro 23, p. 74). Neste quadro de

sofrimento físico e compensação nostálgica, aparece a voz dual de Serejo referente

à Companhia Matte Larangeira:

Tudo isso houve, sim, e até mesmo em dramas inenarráveis, tragédias hediondas, engolfadas em sangue de inocentes, porém o mate, incontestavelmente, serviu de alavanca poderosa para que se desbravasse e se povoasse a região sulina mato-grossense. (Livro 23, p. 74).

No mesmo parágrafo em que aponta os “sacrifícios” reconhece que as “[...]

conseqüências eram coisas de somenos.” O entre-lugar transparece no

reconhecimento do progresso: “Governo algum faria o que fez essa legião de

84

homens barbarescos”, ou “Dois nomes gigantes, entre muitos outros, pelo lado da

visão e do arrojo, ficaram nessa dantesca epopéia: Tomás Laranjeira e Francisco

Mendes Gonçalves”. Pelo outro “lado” “Nessa época de atrocidade e violências, o

conchavaco, indefeso e miserável, era obrigado a carregar às costas, por caminhos

quase que intransitáveis, los miembros de la administración, zelosos sempre por seu

corpo e por sua saúde.” (Livro 23, p. 74).

Com isso, fluirá em boa parte das narrativas a visão de homem/capitalista que

reconhece a Matte como empreendimento substancial responsável pela geração de

múltiplas frentes de trabalho a sujeitos que não tinham outras perspectivas, além do

cultivo agrícola de subsistência ou mão de obra em latifúndios. Perpassam as

narrativas, ainda, nuances reflexivas de um sujeito/nativo/personagem que, também,

é agraciado pela oportunidade, ou como filho de pequeno ervateiro ou como peão na

Companhia. Transparece, também, a vertente de autor/narrador que registra

histórias de um empreendimento culturalmente constituído como espécie de dar a

“essa gente” abandonada, dispersa pela fronteira Brasil-Paraguai, “aquilo” que seria

função do governo. Em detrimento dessa doação, desse magnífico empreendimento

reconhecido pelo homem capitalista, desejoso do progresso avultam-se fatos que,

por mais rentáveis que sejam para a bolsa da erva, não justificam a desumanização

a que se sujeitam os andantes serejianos.

3.3 O ANDARIEGO...

É um nômade, sem querer! E assim, vai andando...andando...dia e noite [...]. (Livro 18, p. 205).

As histórias narradas tratam de personagens “comuns”, as quais se deslocam

de um local para outro, de um limite territorial para outro, de uma distância para

outra, de um desejo para o outro, naquela “[...] fronteira de linha seca, na qual

ninguém sabia, outrora, onde terminava o Brasil e onde começava o Paraguai”.

(Livro 35, p. 165). Local que, segundo Póvoas, “transformou-se num laboratório

social dos mais interessantes” (Livro 35, p. 165). Assim descrita por Serejo:

85

Velhos, moços e crianças e embrenhavam na selva bruta enfrentando, estoicamente, o ambiente hostil – e as ranchadas ervateiras, os trabalhadores, foram surgindo aqui e ali. Primeiro, na estrada dos caatins e, depois, nos cafundós da mata, no verdadeiro inferno verde da ambiciosa aquifoliácea, esperança de todos: dos patrões que viviam em campanário, Guaíra, Conceição, Posadas e Buenos Aires – e da peonada que veio e ficou para escrever com sangue, seu suor e suas lágrimas, uma das páginas mais dramáticas, repleta de bravura, desprendimento e resignação, da história grandiosa, referente ao povoamento do extremo sul de Mato Grosso, a região ervateira principalmente, que a todos enfeitiçava. (Livro 41, p. 11).

A extensão do trânsito e do deslocamento de pessoas para o sul do Mato

Grosso do Sul, na obra de Serejo, pode ser representada, primeiramente, na própria

história da vida familiar do autor, uma vez que seu pai, tenente Francisco Serejo,

nascido em Cuiabá, aos 20 anos de idade foi designado pelo Presidente da

República, Campos Sales, para chefiar, de início, no posto de tenente da guarda

nacional, em Corumbá e mais tarde, como conta Reis (2008, p. 42-43), o

destacamento de Ponta Porã, um arraial composto de várias casas e algumas

taperas, o qual precisava de um destacamento policial por se tratar de fronteira em

que o contrabando e o banditismo de toda ordem proliferava. Assim, se inicia a ideia

de movimentação: os que vieram de fora e fizeram morada, fixa ou transitória, no

local em que se darão as narrativas. O fora pode ser avaliado como exterioridade

daquilo que estava lá, local de chegada. Certamente, Serejo ouviu seu pai contar

inúmeras vezes suas peripécias de lá – Cuiabá – para cá – Ponta Porã. Aquelas

façanhas foram constituindo o repertório do homem em trânsito, do sujeito que, mais

tarde, irá se ver em trânsito pelos ervais, convivendo, quase sempre, com sujeitos

que também vieram de outros países, Estados da Federação ou do próprio Estado.

Assim, os deslocamentos para a fronteira do sul do Mato Grosso do Sul,

segundo as narrativas de Serejo, acontecem, de forma mais intensa logo ao término

da guerra da Tríplice Aliança (1864 - 1870): “Quatrero veio de longe, dos confins do

território paraguaio” (Livro 4, p.92). “Vieram, quase todos, da República do Paraguay

[...] porque não estava compensando o pagamento na zona ervateira guarani” (Livro

6, p. 19). No Brasil, encontram acolhimento “não só pela poderosa Mate Laranjeira

[...], mas por particulares” (Livro 4, p. 93), devido a oferta de trabalho em um tempo

de desbravamento da região.

86

Há traços que, aparentemente, unificam os sujeitos andantes nas narrativas,

tais como o vir, a ação de sair de um local, realizar o percurso sob condições

adversas e chegar a um local desconhecido, como é o caso do pai do autor em

estudo. Dom Chico Serejo, como mais tarde ficou conhecido, viajou pelo rio

Paraguai, de Cuiabá a Porto Murtinho, daí a Ponta Porã, de carreta puxada por 5

juntas de bois e duas de reserva, em 1900. Outro aspecto, pode ser o fator

motivador da ação de se colocar em movimento rumo a local incerto, quase sempre

influenciado pelo desejo de dias melhores, de condições de trabalho, uma vez que

“A pobreza, o subdesenvolvimento, a falta de oportunidade – os legados do Império

em toda a parte – podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento

– a dispersão.” (Hall, 2001, p. 28). Ao referendar o motivo de trânsito entre

fronteiras, Serejo aponta justificativas tendo como suporte os acontecimentos –

Guerra e Matte Larangeira – já apontados, recepciona os personagens chegantes

do lado brasileiro e vai com eles percorrer ranchadas, cruzar caminhos, visar à

entrada credenciada pela necessidade de produção, independente da “ficha

criminal”, como podemos avaliar na passagem transcrita:

Os primeiros mineros maestros dos ervais de Tomás Laranjeira vieram de Tacuru, vários deles asesinos de alta periculosidade. Ensinaram os segredos da elaboração da erva aos primeiros participantes. Foram úteis, devemos reconhecer. Nunca, porém, regressaram ao Paraguai. Tiveram, como sepultura, o chão bruto dos ervais sulinos (Livro 34, p. 153).

Em contrapartida, aos traços unificadores apresentam-se, também, as

particularidades heterogêneas dos sujeitos históricos que vieram. Sujeitos que

passaram a viver entre fronteiras culturais, entre a história de vida que se tinha e a

história de vida que passam a ter a partir de uma relação intercultural. Esse aspecto

pode ser ilustrado por Hall (2003, p.37) quando salienta que a nação não é apenas

uma entidade política, mas um sistema de representação cultural, aquilo que produz

sentido nas relações de troca, de participação mútua, quando se precisa sobreviver

em uma dada realidade, como é o caso de muitas personagens serejianas que

deixaram para sempre sua terra natal e passam a intercambiar experiências além de

suas origens (Hall, p. 39), motivados por perspectiva de “dias melhores”. Este

processo contínuo evidencia-se “no caminhar contínuo” (Livro 34, p. 155) que,

embora fosse desgastante e sofrido, segundo o narrador serejiano, estava ajudando

87

o povoamento de uma região desconhecida, além de contribuir para formar “a

grandeza de um Estado, que viria a ser, com o passar do tempo, o berço de seus

filhos” (Livro 34, p 155). O vir a ser, o porvir, a ideia de compensação de um tempo

de desbravamento – diríamos de exploração inconsciente – perpassa as narrativas e

refrata a acepção de patriotismo pelo viés do narrador que comanda as personagens

expatriadas. Ressoa, ainda, com tom bastante reticente o fluxo contínuo em busca

de algo, sobretudo, de um local para fazer dele “a terra prometida”, mesmo que

esteja no além, mais para frente, “com o passar do tempo, o berço de seus filhos”

(Livro 34, p 155).

Bhabha (2003, p.19) considera que estar no ‘além’ é habitar um espaço

intermédio que se constitui em “um retorno ao presente para redescrever nossa

contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica;

tocar o futuro em seu lado de cá.” Um futuro intersticial formado pelo vão das partes,

um futuro “que emerge no entre-meio entre as exigências do passado e as

necessidades do presente” (Bhabha, p. 301). Serejo é porta-voz desse intervalar

sócio-histórico, quando dá luz à vida dos que viveram, trilhando os caminhos

encobertos pela extração da erva e isso se confirma, além das narrativas, pela

representação de ações enunciativas escolhidas para títulos de seus livros, tais

como: De Galpão em galpão – O sujeito em trânsito - Pelas orilhas da fronteira – o

sujeito à margem –, Balaio de bugre – a identidade híbrida –, e outros.

3.4 ...EM TRÂNSITO NA FRONTEIRA

Daí a razão de cruzarem a fronteira, semanalmente, grandes levas de paraguaios que esperavam por dias melhores, mesmo sofrendo e derramando o seu suor no mundo bruto e selvagem da erva-mate. (Livro 47, p.112).

Thomaz Larangeira, sendo ele próprio um homem em trânsito,“[...] passou a

enviar correspondência para os mais diferentes rincões, onde sabia da existência de

conhecedores de ranchadas ervateiras” (Livro 34, p. 70). Com isso, despertou o

interesse de “milhares de criaturas ligadas à elaboração do mate. Também de

88

terceiros ansiosos por se fixarem em ponto qualquer para início de uma nova vida”

(Livro 34, p. 71).

Segundo Serejo, “caraí ervateiro, o homem de aço”:

[...] veio dos mais longínguos rincões: Misiones, Santa Fé, Reconsquista, Dolores, San Nicolás, Território da Formosa, Bela Vista, San Rafael, Resistência, Paso de Los Libres, San Ferenando del Valle de Catamarca – República Argentina; Assunção, Conceição, San Pedro, Vila Encarnación, Capilla Horqueta, Vila Rica, San Miguel, Caazapá, Caazapú e Pedro Juan Caballero – República do Paraguai. (Livro 41, p. 10).

No decorrer de um ano, já havia um “legião de quatro mil criaturas, dos mais

variados tipos, hábitos e costumes” (p. 11). Esse quantitativo chega, em 1934, após

profundas modificações, a “dezoito mil empregados”, capital e renda superior à

arrecadação do Estado, que chegou a emprestar dinheiro ao, então, Mato Grosso,

razão pela qual se cogitava a possibilidade de a região constituir-se como estado

independente.

Usando como recurso o questionamento para si próprio “De onde vieram

esses peões e por quê?”, o autor responde que vieram do Paraguai, devido à

remuneração insatisfatória nos ervais guaranis. Entretanto, outros vieram como

fugitivos de uma revolução derrotada, vieram, ainda, “em grande parte, foras-da-lei,

fugitivos, assassinos de alta periculosidade, marginais, desertores do exército e

desordeiros contumazes” (p. 20).

Em Desordeiro (Livro 18), a figura do chegante começa com “Ele chegou,

ninguém sabe de onde, e ali, na vila se arranchou” ou “Vieram, quase todos, da

República do Paraguai, em dezenas e dezenas de levas...” (Livro 34, p.19). Serejo

revela que a procedência pouco importava, o fundamental era que viessem, não

muito diferente de tantos outros processos em que os países, como o Japão,

importou mão de obra do Brasil e vice-versa.

O movimento do vir e do chegar transpassa as narrativas com bastante

referencialidade ao local em que o chegante passa a habitar: “[...] aportou na

ranchada ervateira Semana-Cuê [...] (Livro 47, p. 78). Evidencia-se, também, a

nacionalidade do forasteiro, quase todos paraguaios “[...] o casal de paraguaios, no

último grau de estafa chegou a esse lugar [...]” (Livro 47, p. 57).

89

Como vem sendo considerado, o narrador reforça, de início, assim que o

sujeito chega, a ideia de total hospitalidade, como se o outro fosse muito bem vindo,

muito bem quisto e de conduta exemplar. Todavia, na recepção, em pequenos

trechos ou palavras prenuncia contraposição que resultará no clímax do enredo,

como se percebe em: “[...] Numa tarde de garoa fina, cabulosa, a pé, Kirá chegou

na ranchada pobre e em final de safra [...]” (Livro 47, p. 62). Cabulosa, inoportuna

foi a chegada do jovem que de nada sabia de erva.

Vinha o forasteiro, quase sempre a pé, sem muita identificação, “Para que

documento se o mundo era de todos?”, como é a voz que salva El Viejito Poincaré

do posto de identificação demandada pelo leitor. Essas figuras são identificadas,

quando muito, pelo suposto local de origem: “O peão veio de Posadas. Chegou a

Guaíra em 1937”. (Livro 44, p.172) ou “Procedente da cidade paraguaia de Belem, o

casal de meia-idade, simpático, denotando visível cansaço, aportou na ranchada

ervateira Semana-Cauê” (Livro 47, p. 50), recebeu uma espécie de abono do

passado ou de um tratado surdo e silencioso de não se mexer no que ficou, embora

este esteja estampado, quase sempre, no vir, no movimento de se embrenhar mata

adentro, muitas vezes, por circunstâncias de fuga, um foragido. Entretanto, não se

fala nisso, mesmo porque as notícias demoravam a chegar, de fato, nesses lugares.

Com isso, abona-se, momentaneamente, o passado e o presente circunscreve a

nova história. Segundo Bhabha:

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia de novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (2003, p. 27).

Neste local de contato e de conflitos, a personagem serejiana representativa

da fronteira, passa a “Transitar espaços incertos, essa é a sina” (Achugar, 2006, p.

09) “– Pra que morar num lugar só? Estrada foi feita para o tranqueio do cavalo [...]

Pra que casa? Carancho não tem casa, e vive.” (Livro 9, p. 55). Assim é o “xucro”, o

carneador “viveu sempre, de fazenda em fazenda, de rancho em rancho”, o padre,

salvador de almas – “Lá vai ele, rumo ao sertão – a mulher quitandeira, guaxa

surrada da vida, sempre andante, sem pouso certo” (Livro 9, p. 56).

90

O homem peregrinante dos ervais determinado pelas condições de vida de

seu tempo, foi constituindo-se como sujeito cercado pelos contratos de convivência,

tendo como limite o poder da empresa Matte Larangeira, os latifundiários, e os

conflitos gerados pela constituição do lócus fronteiriço por onde transitam o nativo e

o transeunte, o que veio o que já estava e o que fica temporariamente de ranchada

em ranchada, de margem a margem. Além do homem, está a mata virgem que, aos

poucos vai se redesenhando, pelo machete, foice, pés descalços, carretas ou a

“Serviço de Engenharias rasgando o deserto, abrindo estradas, construindo

pontes...para facilitar o surgimento de novas cidades” (Livro 3, p. 57). Ação que,

segundo o narrador serejiano, não permite o sentimentalismo, pois se trata de uma

função técnica em prol do progresso da região. Em Jabuna (Livro 3, p. 45-62), nem

mesmo a defesa do padre em nome de “Deus Nosso Senhor” foi respeitada, ao

pedir ao militar, responsável pela estrada planejada, que o trajeto fosse desviado e

não passasse em cima do túmulo da madrinha, mãe adotiva de Jabuna. Ao impedir

a passagem do “monstro de ferro e aço” sob o campo santo daquela que cuidara de

seu sarampo e catapora, Jabuna tombou atingido por um tiro certeiro pelo militar,

ação justificada em prol da abertura de estradas...

O transeunte paraguaio, mão de obra barata e melhor qualificada na extração

do mate, quase sempre se desloca, mesmo sem ter muita noção do que poderá

encontrar “[...] o casal de paraguaios, no último grau de estafa, chegou a esse lugar

conhecido pelo nome de Tacuru, [...]” (Livro 47, p.57). Embora, os riscos fossem

grandes, segundo Serejo “Quando o mercado e os Estados Unidos começaram a

exigir da Argentina erva-mate...mais erva-mate, os produtores brasileiros,

capitaneados pela Empresa mate, quase que endoideceram” (Livro 47, p 111), e

correu a notícia de que nos ervais fronteiriços havia trabalho, preferencialmente,

para aqueles que tinham experiência na extração. Como o Paraguai começou antes

do Brasil a explorar os ervais nativos, lá estava o profissional desejado. Por isso,

cruzavam a fronteira: [...] semanalmente, grandes levas de paraguaios que esperavam por dias melhores, mesmo sofrendo e derramando o seu suor no mundo bruto e selvagem da erva-mate.

Muitos vieram, sim, em propósito de aventura. Se desse certo, elevariam lós agradecimientos a Diós; caso contrário, retornariam ao local de origem. E foram, em número considerável, os que pegaram o caminho de volta, como desiludidos e fracassados. (Livro 47, p. 112).

91

A extração da erva mate vai impulsionar o processo de povoamento da

fronteira Brasil-Paraguai: “Talvez fosse a erva o seu mundo triunfador...” (Livro 47,

p. 120.), de forma acelerada e sem planejamento, tanto que o constante “ir e vir”

advém das condições habitacionais, já que ficar em determinado lugar, quase

sempre, significava estar a serviço de. Por isso, moradia e trabalho eram

interdependentes.

Neste trânsito, Serejo vê personagens como “Chopito”: que viera ao mundo

predestinado a vencer as distâncias, transpor as dificuldades e cruzar os ermos.

Uma espécie de caminheiro, como bem descreve Serejo:

Quando o mocinho atingiu quinze anos nessa lida, admirado e querido por todos, era já um autêntico estradeiro, visto que cruzar estradas e enfrentar intempérie cunharam o seu fadário sertanejo. [...] foi vivendo assim como peão estradeiro: não temia os imprevistos que porventura surgissem da longa caminhada que tinha pela frente. [...] O peãozinho cortador de campos e cerrados era grandemente estimado [...].O chopito vinha dos vales dos bugres, onde existia um passarinho de pouca pena [...] O mocinho seguia em direção da linha da fronteira onde existia um pequeno curso d água, ao lado de um capão. (Livro 48, p. 140).

Trânsito entre o chegar e o partir. Serejo vai tratar, em boa parte de sua obra,

de sujeitos em trânsito contínuo, quer seja o peão vaqueiro “O giro de galpão em

galpão é coisa que muito agrada ao vaqueiro” (Livro 18, p. 205), quer sejam figuras

que ilustram a vida longe das cidades, tais como, o adivinhador, “cruzando mundo,

pedindo pousada embaralhando cartas, ganhando a vida...” (Livro 21, p. 293); o

contador de potoca que veio, segundo, Serejo, sentado no recavém da carreta

quando os homens começaram a abrir o sertão, ou mulheres que colocaram o corpo

torneado à venda, em troca de um sorriso, uma moeda ou um instante de prazer. Já

“Velhinha encarquilhada” põe-se a andar pelas festas do sertão ou até mesmo

figuras como o “Gadeiúdo”, uma espécie de andarilho contador de causos, “um

espantalho inofensivo”, “Destino é destino. Vai andando...” (Livro 18, p. 229). Ou,

ainda, personagens que já transitaram por outras obras, como o mascate que vai

furando o sertão na obra do Visconde de Taunay.

O efeito “formigueiro circunlóquio” se dá quase sempre em torno de

localidades de Ponta Porã, Pedro Juan Caballero, Ranchada Mbacaraí, Porto Don

Carlos, Nhu-Vera, Porto Felicidade, Campanário, Asunción, Vila Encarnación, Bela

92

Vista, Sanga-Puitã, espaços que margeiam a fronteira Brasil Paraguay, no final do

século XIX.

Além dos logradouros, recorre, ainda, a nome de pessoas, de fazendas;

entretanto, preenche a narrativa com acontecimentos recuperados pela memória de

um sujeito que possui relações afetivas com a fronteira, dimensão que se projeta em

Pelas Orilhas da fronteira pela composição das personagens – começam

referendadas, todavia as datas, lugares, pessoas desprendem-se do passado vivido

e transfiguram-se em realidades ficcionalizadas que permitem, ao leitor, conhecer

uma possibilidade, um viés da história, por meio das ações das personagens – dos

que não estavam na história oficial, mas à margem, nas orilhas da fronteira, nas

beiradas. Com isso, Serejo traz, no falar de Achugar, “Um cenário onde a história foi

apagada, demolida ou reconstruída, de forma eficiente ou, pelo menos, favorável

aos desígnos do discurso hegemônico [...]” (Livro 5, p. 309).

3.5 ENTREMEANDO...

E guardo ainda até hoje, bem viva na memória, a impressão...(Livro 9, p.259).

Serejo usa as lembranças para recuperar o cenário fronteiriço. Ao contar o

que viu, ouviu, viveu, reviveu nos ervais fronteiriços, traduzidos pela diversidade

étnica, de gênero, de cultura, de nação, Serejo abre veredas para, no falar de

Canclini (2003, p. 24), “Estudar processos culturais [...] mais do que levar a afirmar

identidades auto-suficientes, serve para conhecer formas de situar-se em meio à

heterogeneidade e entender como se produzem as hibridações”.

Nas narrativas de Serejo, temos pessoas que foram “dispersadas para

sempre de sua terra natal”, [...] embora conservem “fortes vínculos com seus lugares

de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado” (Hall,

2006, p. 88), como é o caso dos sujeitos que irão servir de mão de obra nos ervais

“Certa feita, vieram quinhentos e trinta na maior e mais dramática leva, uns de Vila

Rica e outros de Robledo. Tempos depois, menos de dois anos, somente vinte

retornaram aos seus povoados...” (Livro 23, p. 74), pessoas que, por questões de

sobrevivência, passaram a intercambiar experiências em um contexto de fronteira

93

territorial movimentado, no mínimo, pelo contato dos vãos entre duas línguas,

“Bênção brasileira ou bendición Paraguaia” que se manifestam entremeadas “[...]

naquele seu castelhano todo enrolado: – U pingarda, patrón, é nobita, mui linda,

seguramente que guena de tiro; u rede...ê...ê...ê u rede...dois colores...ancha...no

vais dormir la tarimba de palo...e el ponchilho, lizito, bonitón, uma barbaridá...(Livro

30. p. 128).

Para Brait (2009, p. 11) caso queiramos conhecer alguma coisa referente à

personagem, precisamos “encarar frente a frente a construção do texto”. Precisamos

investigar a forma como o autor fez para construir o ser inventado. Descoberta a

forma, aí, sim, devemos “pinçar a independência, a autonomia e a ‘vida’ desses

seres de ficção”. Mais: diz da personagem como um “ser de papel”, como ser de

palavras, linguístico; portanto, não existe fora do texto, embora represente pessoas.

Parte da premissa de que é uma figuração de uma realidade inventada, possível de

acontecer, de ter ocorrido, mas não é a realidade, assim como uma fotografia não é

a pessoa, é a imagem da pessoa que se projeta pelo viés da perspectiva do olhar de

quem vê e do instante em que se registrou a imagem. Não é o ser, é a imagem do

ser. Assim, há na obra de Serejo a imagem do ser, do sujeito entre fronteiras.

Valeremo-nos, mais ainda, do questionamento de Brait (p.12) referente à

forma com que o criador da realidade ficcional passa da realidade concreta para o

universo ficcional, capaz de sensibilizar o leitor para fazer crer no real, na existência

no plano das possibilidades identificáveis com a vida em curso. Questiona: que tipo

de manipulação o autor usa para inventar, recriar seres que o leitor confunde com

seres humanos, “com a complexidade e a força dos seres humanos”. Serejo cria a

personagem de suas narrativas “à sua imagem, semelhança” e discrepâncias, uma

vez que há, na obra, uma incidência relevante de personagens, “criaturas humanas”,

como denomina, transfiguradas em peão paraguaio, quatrero, comiteveros,

mayordomo, barbaquazeiro, monteador, mineiros, “[...], criaturas humanas que, na

data longeva, enfrentaram estoicamente toda sorte de martírios, na grande e

vigorosa arrancada da épica penetração ervateira” (Livro 23, p.69). Realidade em

que o autor/narrador também viveu e com quem conviveu.

Suas personagens, misto de homem vivido e inventado pela voz do contador,

resultam em sujeitos em trânsito, que ganham dimensão representativa ao serem

ficcionalizados pelo viés de contratos linguísticos, sociais, políticos e culturais do

lócus fronteiriço. Os contextos se integram e favorecem o caráter de verdade aos

94

fatos e ações, resultando em uma configuração histórica de descobrimento do Brasil

pelo brasileiro partícipe da descoberta, no caso, o narrador serejiano. Ao descobrir a

personagem perdida na memória do império ervateiro, o ser de papel dá luz ao que

argumenta Memmi (2007, p. 124). Segundo o estudioso a coletivização é a marca do

colonizado produzida pelo processo de colonização. Esse movimento agrupa o

indivíduo como corpo coletivo, sendo que sua individualidade ou particularidade se

reconfigura em um todo homogêneo para o colonizador. Espécie de utensílio que

“deveria passar a existir apenas em função das necessidades do colonizador, isto é

transformar-se em colonizado puro” (p.124).

São muitas as evidências de que a literatura de Serejo, permeada entre a

história e a ficção, configura-se na representação de mais uma saga colonizadora,

entretanto, não mais de esquadra que vem pelo mar, visando “[...] salvar esta gente”.

A saga dos fragmentos narrados diz de sujeitos que se cruzam a/na fronteira, que

vêm de fora, não necessariamente imigrantes, como é o caso de brasileiros que

desconhecem o vasto território da própria nação e são atraídos pelas várias

possibilidades. É o caso dos gaúchos, por exemplo, bem elucidado por Serejo, dos

quais vamos herdar o cultivo de grandes plantações, bem como a lida campeira, a

maneira elegante e garbosa do peão se trajar, misturando peças do vestuário da

cultura paraguaia com a cultura dos pampas - faixa na cintura, o poncho/pala, a

bombacha, além do manuseio de hábitos e costumes com o gado, o uso do laço

comprido, o vocabulário gauchesco, o mate amargo/chimarrão/tereré...

Assim, com mais intensidade, a incidência aflorada das marcas de lembrança

do narrador serejiano reporta-se à lida dos ervais, ao homem deslocado de

ranchada em ranchada, ao homem descentrado, em deslocamento. Essa

personagem marca as constantes, recorrentes e indefinidas situações de

reconversão a que estão expostos os sujeitos como a personagem “Zé Antônio”,

“que fora garimpeiro, oleiro, seringueiro”, ia agora tentar sorte com a ILEX. Afundou-

se no caati, disposto a vencer” (Livro 9, p. 268). Não muito diferente da experiência

de Serejo, segundo ele mesmo, nas ranchadas ervateiras por onde passou; foi

“guaino, uru auxiliar, condutor de arrias, percheleiro, fazedor de puchos, atacador,

custureador, provistero, custero, comissário e até mayordomo”. De tudo fez um

pouco no erval, até se tornar um ervateiro. (Livro 50, p. 217). (Fez de sua

experiência as suas personagens, como já dito). Não era, pois, ervateiro, passou a

ser, sem que tenha deixado de considerar a anterioridade, quando não era, bem

95

como o processo transcorrido até chegar a ser. No histórico e aparente discurso

autobiográfico emerge, espelhado no fato histórico de extração da erva, uma

possibilidade de compreensão de como ocorreu a transição de práticas, hábitos e

costumes entre os sujeitos fronteiriços diante da necessidade de mão de obra e de

oportunidade de trabalho. Justifica-se a modificação da vida do nativo – no caso,

Serejo. O entre-meio da possibilidade e da necessidade resulta em ser ervateiro. Ou

ainda: entre o “não ser ervateiro”, o “aprender a ser” e o “vir a ser” vislumbram-se

indícios de que a vida dos fronteiriços, vai sendo modificada culturalmente. Vale

ressaltar que esta modificação não implica avaliar se o antes era melhor ou pior.

Não há, pelo que se pode ler nas narrativas, o tradicional saudosismo de um tempo

que passou. Avulta-se a leitura de um estado de ser sujeito de um tempo,

independente de rótulos – sujeitos pré-moderno, moderno ou pós – mas que

possuem traços constitutivos do ser humano em exposição ao contínuo e

interseccionado processo capitalista, bem como ao contínuo processo de

constituição identitária.

O sujeito localizado no entre-meio territorial – Brasil-Paraguai –, no entre-

meio econômico da extração ervateira que não existia e passa a existir, aparece,

nas narrativas aqui estudadas, representado, primeiramente, pela parte que compõe

o quadro econômico da época: erval/ervateiro. Conforme vamos colando elementos

internos aos externos, flutuam, na superfície das narrativas, os “novos sujeitos”,

cujas partes se formaram no entre-meio – antes e depois. O “novo sujeito” nas

narrativas está para o desbravador, não para um tipo que espera a oportunidade. A

sorte foi lançada com o empreendimento da Matte. Está o sujeito incompleto, em

busca de algo, que não se sabe ao certo o quê é o sujeito do vão das partes, dos

interstícios, o sujeito que se movimenta e movimenta o local movido pela força do

trabalho bruto. Está o sujeito braço, força e coragem que “Traz às costas, qual

Hércules, com suas passadas de orangotango, a colheita do dia. Vem tateando,

apoiando-se aqui e ali, pois uma pisada em falso poderá ocasionar a pronta ruptura

de algum órgão” (Livro 9, p. 238), uma vez que seu fardo é muito maior do que um

ser humano pode aguentar como podemos observar na imagem abaixo:

96

Figura 6 45– “Mensu”, “minero”, peão, ser humano capaz de suportar até 150 quilos nas costas. Acervo: (MAGALHÃES, 2011, p.113).

Ou ainda, em “Dois Hércules”: Ia anoitecendo. Uma chuvinha fina, lentamente, umedecia a

vegetação. Do lado da mata vinha um surdo vozear. Eram os mineiros que regressavam. O primeiro a apontar no estirão da mata foi Centurión, depois Ibarra e logo em seguida uma imponente fila verde se formou. Vinham calados agora, atentos na trilha perigosa.

- Chaque ibiquá! - gritou Centurión. Ibarra deu uma passada larga, soltando um grito: - Anãmbyrê!

Saí à porta da vendinha da estrada e pus-me a observar: belo, edificante espetáculo: aquele extenso e movediço cordão verde se aproximava cada vez mais. Dom Nazário, ao pé da balança, com ares de senhor feudal, ia contando vagarosamente: - Um...dois...três...oito...nove.

Alongou a vista para os lados do caati e perguntou a De La Cruz, o índio impassível, que tinha por todo corpo profundas

45 Legenda da fotografia: “Uma das fotografias mais folclóricas do mundo ervateiro é a do homem, chamado de ‘mensu’, que leva o fardo de folhas de erva-mate chamado ‘raído’. Estimulado pela competição – ser o mais forte e também porque seu pagamento era proporcional do que conseguisse carregar – um ‘mensu’ era capaz de suportar até 150 quilos nas costas, o equivalente a 15 arrobas paraguaias. Acima disso é pura lenda, ‘o ñe embarei...’ Marques Magalhães, L. A. M.O Karaí de Sanga Puitã. Ponta Porã, Mato Grosso do Sul: Gráfica e Editora Alvorada, 2011, p.113.

97

cicatrizes, de uma luta horrível contra tigre em Panadero: - Maó oimé Carapeí?

O índio voltou-se bruscamente. Um brilho estranho perpassou por seu olhar. Atirou ao solo o raído e saiu apressado, blasfemando. Vinte minutos depois voltava, com um novo raído, e o corpo já sem vida, de Carapeí, o seu minúsculo guaino de treze anos de idade. Uma cascavel, que se aninhara entre as folhas do raído, picara-o mortalmente no pulso.

Dom Nazário pesou, pesou mesmo assim, o produto do seu último corte, e a romana acusou 118 quilos. Sim, 118 quilos, conduzidos na cabeça, por um menino de apenas treze anos. Era, entretanto, a carga comum desse pequenino hércules.

Enquanto os vizinhos colocavam nova indumentária no corpo do heroico mineirinho, o velho Nazário, chorando em silêncio, ia procedendo à pesagem. De La Cruz transportara, nesse dia, o maior raído de sua vida: 328 quilos.

Desorientado coma perda do seu valente guaino, o índio impassível abandonou a luta dos ervai e voltou para o seu país. Morreu meses depois, em cruento combate, no Chaco paraguaio (Livro 9, p. 276-277).

Neste entre-meio em que “os novos sujeitos” passam a conviver e a exercer

múltiplas e variadas funções braçais, de desgaste físico, aparecem outras instâncias

intervalares das quais a voz do narrador serejiano se faz portadora. Sobressai, por

exemplo, a posição de quem conta permeada pelo discurso da informação com base

em fatos possíveis de terem ocorrido. Por meio da informação, podemos ler, além;

denúncia, por exemplo. Mas, aqui, preferimos apontar um sujeito reconvertido,

destituído de noção paralela consciência/ausência de consciência referente ao que

está ocorrendo consigo mesmo – indivíduo – devido à exposição exploratória. Este

estado letárgico transparece em passagens narradas pela voz serejiana,

entrecortada por testemunho da vítima, no caso, o peão ervateiro – que não se

sente vitimado pelo explorador. Selecionamos, dentre muitos, o trecho em que o

narrador conta como era a lei dos ervais e como o peão ervateiro empenhava

esforço desumano para diminuir a conta “[...] e obtener permisión para salir a fuera e

festejar el santificado.” (Livro 34, p. 25). Convém salientar que esta realidade

também está muito bem representada em Selva Trágica46 (1960). Porém, nem

sempre realizava esse desejo, uma vez que pagar conta alta era tarefa sempre

difícil. O autor revela, pois, uma das estratégias da Empresa para segurar o peão

46 Selva Trágica (1960), romance de Ernâni Donato, conta a história da exploração sofrida por homens e mulheres no ervais da Matte Larangeira. Em 1963, inspirou um filme homônimo de sucesso, dirigido por Roberto Farias. Segundo Serejo (Livro 41, p. 65), seu amigo “Nenito Brizueña foi o secador, o barbaquazeiro, o uru, peça de imenso valor numa ranchada”.

98

nos locais de trabalho por mais tempo, bem como para que produzisse com maior

rendimento. Endividado, o braçal precisava produzir mais. Para tanto, precisava de

mais provisões, adquiridas em conta mensal, exposto, pois, à exploração cíclica.

Outra forma de permanência forçada e violência de livre arbítrio, sobretudo,

para um andante, era a distância entre as ranchadas. Por estarem léguas e léguas

afastadas umas das outras, o contato entre o ervateiros era impossibilitado, mesmo

em casos de urgência.

Em obra dedicada exclusivamente aos Homens de aço, imagem de empunhar

o facão com agilidade para realizar o corte da erva, Serejo descreve a rotina dos

“heróicos e audazes” homens, heróis anônimos, que fazem o corte da erva

equilibrando-se em média a seis metros de altura, sustentados por galhos fracos.

Além do corte, cumprem a função de transportá-lo “[...] até uma distância de três mil

passos”, nas costas, como se pode ver nas Figuras 01 e 06.

Na apresentação da obra, explica que seu livro é despretensioso e que nunca

lera sobre cultura ou industrialização da erva mate. Valer-se-á das informações de

experimentado ervateiro que foi durante a época em que esteve nos ervais na região

de Ponta Porã. Em Homens de aço: a luta nos ervais de Mato Grosso, obra escrita

em 1946, justifica-se, caso o trabalho contenha falhas, já que tem certeza de que a

fez pensando ser útil a Mato Grosso e ao Brasil. E fica: Serejo se refere à que

concepção de utilidade?

Na descrição do “protótipo do homem” dos ervais, com maior intensidade,

nesta obra, Serejo sugere a interpretação de utilidade, ao escolher e combinar

palavras que, enviesadas, produzem o efeito de misto de denúncia e exaltação. Não

explicita exploração, de imediato. Vai, paulatinamente, permeando a lida diária do

mineiro47 ou barbaquazeiro48 com as exposições exploratórias vividas, de tal forma

que o erval – floresta nativa – passa a ser vilão do contexto, como podemos avaliar

na passagem:

47 Homem que faz o corte das folhas da erva-mate. Um profissional de respeito sempre. Sobe até seis metros de altura, mantendo equilíbrio perfeito. [...] É o elemento chave em todas as organizações ervateiras. Sem o mineiro, peão especializado, não há produção de erva-mate. Ele é como um seringueiro, um homem adestrado para uma função extremamente delicada. (Livro 50, p. 273). 48 Peão que trabalha no barbaquá. Desempenha papel importantíssimo numa ranchada ervateira. É o homem-chave para se conseguir um produto de excelente qualidade. (Livro 50, p. 253).

99

Perigo mil enfrenta, ele nessa lida gigantesca. A jungle arma-lhe a cada passo uma cilada. Aqui, uma gleba imensa de terra apodrecida; ali, uma muralha intransponível de espinhos; mais além, um rio temporário, formado pelas enchentes. Mas tudo ele vence. Maior que os obstáculos da natureza selvática é a sua fibra de aço (Livro 09, p. 270).

Com isso, bonifica e avaliza a Matte. “Ela” que em um audacioso

empreendimento ligou o “Estado de Mato Grosso com várias nações vizinhas,

desbravou e povoou o sul e fez a terra de Pascoal Moreira Cabral conhecida e

admirada em outros continentes”. Fez muito mais, segundo o filho da “terra

abandonada”: “Abriu escolas, fundou núcleos de população, deu assistência médica

gratuita aos seus empregados, aumentou a minguada renda estadual e levou a

civilização para o sertão” (Livro 09, p. 277); além de ter feito, sozinha, em pouco

tempo, aquilo que o Governo não conseguiria fazer em quarenta anos em Ponta

Porã (p. 278).

Memmi (1977, p. 101) ajuda-nos a compreender os efeitos advindos do

processo de colonização na constituição do sujeito colonizado: “Apesar de tudo, o

colonizador não abriu estradas, não construiu hospitais e escolas?”. Inferimos que o

texto de Serejo é porta voz de uma realidade que não nos cabe mais, como bem

defende Memmi (p.102), avaliar “do que teria sido o colonizado sem a colonização”,

uma vez que a discussão não mais se sustenta por binarismo ou pela análise de

causa e consequência. Sua posição de escritor revela a hegemonia do

“desbravador” e a emboscada vivida pelo “escritor colonizado”: encarnar “todas as

ambiguidades, todas as impossibilidades do colonizado, levadas a um grau extremo”

Memmi (1977, p. 98).

Elucidam-se características. Bem mais do que “O sertanejo é antes de tudo

um forte”, Serejo qualifica os ervateiros como “Leões” no “drama do erval”; compara

a vivência a uma epopéia, bem mais sofrida do que a dos seringueiros, uma vez que

o ervateiro é “Cativo e sem esperança, no mais recôndito de uma floresta bruta e

ingrata” (Livro, 9, p. 231).

Os “super-homens”, “heróis anônimos”, que têm a missão como transformar

folha em ouro, ganham dimensão maior ainda, quando inseridos na paisagem do

caati:

100

Quem adentra no seu perigoso labirinto, sente-se, horas depois, fatalmente dominado por estranho pavor. Pára. Circunvagueia o olhar pelos trilhos circunjacentes e, em tudo encontrando a mesma uniformidade, julga-se perdido. Ascende a uma palmeira e grita uma, duas, três vezes; e o morrer longínquo do eco aumenta-lhe ainda mais o justo desespero (Livro 9, p. 235).

A personificação do eco e a denominação das estradas em labirinto

contribuem para aumentar os perigos que o peão ervateiro enfrenta na extração da

erva. Em: “Pára. Circunvagueia o olhar pelos trilhos circunjacentes” remete a um giro de

360 graus em torno de si mesmo em busca do caminho apropriado para seu percurso.

Na tentativa de demonstrar a “paisagem do erval”, Serejo recupera a descrição de

Umberto Puiggari sobre a “paisagem traiçoeira do caati:

O caati (erval) é um verdadeiro labirinto na mata bruta. Há nele um sistema caprichoso de estrada, que se cruzam em todos os sentidos. A estrada maior, limpa, destocada, ampla, denominada tape-guassú, que o atravessa em várias direções, é destinada ao trânsito de caminhões ou carretas, que recebem a erva já ensacada e mandada à vaqueria – racho principal. No tape-guassú morrem os tape-hacienda (caminhos de cargueiros), que servem de comunicação entre o barbaquá (forno subterrâneos para secar erva) e o tape-guassú. Nessas estradas, sombrias cobertas pela ramaria exuberante, transitam, sem cessar, homens conduzindo, a pé, folhas de erva para barbaquá, e bestas carregadas de bolsas (sacas) de erva já prontas para os caminhões. Atravessando os tape-hacienda, em múltiplas direções, existem uma infinidade de tape-poí, caminhos estreitos, verdadeiros trilhos de cabras por onde os mineiros (colhedores de folhas) trazem o produto de seu labor ao tape-hacienda, que lhe corresponde (Livro 9, p. 234).

O fato de a organização do livro ser feita através de subtítulos resulta em uma

ausência coesiva entre as partes, no que se refere ao fio narrativo condutor – contar

fatos com progressão temporal. Não há continuidade sequencial entre as partes,

embora, em todos os subtítulos, Serejo tematiza o homem e a lida no erval. Serejo

subtrai a possibilidade de denúncia, mesmo quando testemunha a vida no erval:

Quem viveu nos ervais, como vivi, ouvindo, sentindo e de tudo indagando com vontade de saber, muita coisa vê que lhe comove e punge a alma. Aqui são homens entisicados que lutam desesperadamente pelo pão quotidiano; ali são mulheres anêmicas, autênticas múmias, redivivas, corroídas por enfermidades várias, que gastam as últimas energias à beira de um riacho, batendo, de sol a sol, a roupa grosseira da peonada (Livro 9, p253).

101

Aparentemente contraditório na mesma obra, Serejo enaltece “As heroínas

dos ervais”; permeando aspectos de perseverança, fé e predestinação, eleva-as a

“verdadeiras sentinelas de granito na luta peripeciosa dos ervais” (Livro 9, 245). A

comoção sobrepõe-se aos fatos que levam a pungir a alma. Embora esteja recuado

do tempo do possível fato vivenciado – tempo em que esteve no erval – recorre ao

advérbio “aqui” e “ali” para generalizar que, em toda parte do erval, tanto homem

como mulher, sobrevivem em condições exaustivas de trabalho. Entretanto, coloca-

se como “pintor” da imagem, de um quadro sociológico e não levanta voz a favor

dessas criaturas, muito menos “pinta” a expressão dos explorados ou dá voz aos

que sofrem nos ervais. Salientamos, então, que Serejo reconstrói o momento

histórico da vida no erval na condição de sujeito, também, sujeitado,

Essa posição leva-nos a inferir a incapacidade para mudar a realidade.

Mesmo impotente diante do poder velado, não deixa de demonstrar profunda

admiração pelo homem do erval, um sentimento nostálgico e impotente, já que é

passado, tempo ocorrido, não existe mais, não há mais lida nos ervais. Restam-lhe,

apenas, memórias daquilo de que pode se lembrar. Daí, como um empolgado pela

vida, replica imagens concretas, vida de papel, tanto que quase nunca dá voz aos

seus personagens, mas fala por eles, testemunha por eles. Chega a opinar, a

“achar”: “Acho que ele bem merece a estima e afeição de todos nós brasileiros. Sua

missão de transformar folhas em ouro é altamente nobre e sublime” (Livro 9, p. 209).

A ação é nobre, mas as condições são de miserabilidade.

Serejo descreve, ainda, a rotina da extração da erva e os perigos a que o

homem está exposto. Os hábitos e costumes diários são contados com detalhes,

desde a alimentação, reforçando que o tereré e o fumo compõem o cardápio, tanto

quanto a carne e a graxa. Relata, em pormenor, como o ervateiro faz para gastar o

pouco que consegue juntar na lida da extração: “Nas desregradas orgias dos

jeroquis, esquece tudo, e com o adoudado companheiro gasta à mão-cheia para

depois, durante longos meses, auxiliar a amortização do débito, batendo nas

cacimbas a grosseira indumentária da peonada” (p. 246).

A Semana Santa, tradição paraguaia, reforça a permanência do sujeito

ervateiro ao erval sem que tenha noção, ao certo, do que seja lazer e alforria. Na

transcrição abaixo podemos perceber o significado deste tempo santo, misto de

102

festa religiosa regada à alimentação típica, seguida de baile. Nessas ocasiões,

quase sempre, ocorria baixa de mão de obra no erval:

Há uma época do ano em que o peão do erval tudo esquece. É quando se aproxima a semana santa. Aí ele, abandonando o caati, a pé ou a cavalo, alegre e satisfeito, procura o primeiro bolicho da estrada e vai gastar, em sete dias, todo o pecúlio que conseguiria fazer em onze meses de trabalho árduo e penoso. Sim, com sete dias, pois, não raro, muito antes de expirar o prazo, já torrou as economias e contraiu dívida para muito tempo. (Livro 9, p. 253).

A Semana Santa, para o paraguaio, segundo Serejo (Livro 9, 253) tem

representação equivalente ao Natal. Há um ritual em comemoração aos mortos,

regados a comidas típicas, como: sopa Paraguai, a chipa, caburé. Vive-se em

função da celebração, bebe-se muito. Tudo para, até mesmo o fogo – à lenha – não

é aceso na sexta-feira santa. O ritual, lembrado pelo narrador, implica esquecimento

de “tudo.” Como se fosse, um “stop”, o sujeito coloca a melhor roupa, o melhor

perfume, encilha o melhor cavalo, com a melhor tralha e vai ao povoado mais

próximo comemorar com o bolso cheio. Vive uma espécie de estado catártico,

necessário para que exista um breve e intenso apagamento da realidade

“sangrenta”. Momento para que o peão possa iludir-se a custo alto e viver alguns

dias de jeroky – baile – e bebida, como forma de compensar a vida dura que leva.

Este estado de liberdade inspira-nos a estabelecer a posição do sujeito do entre

meio erval-cidade ou mata/povoado. Seu direito ao convívio urbano – entre mais

habitantes – é concedido, uma vez ao ano, devido à realização da festa religiosa.

Comemoração que castiga quem se arriscar a trabalhar nesta época.

Comportamento e crença que revelam um possível e entremeado sentido para

trabalho: abençoado por dar condições de se ter o que gastar; todavia, quem

trabalhar na ocasião comemorativa está sujeito à maldição.

De primeira leitura, podemos considerar os sujeitos como mártires,

desbravadores, personagens que com “sangue, suor e lágrimas” construíram a

historia de um povo, de um tempo heroico. De fato, essa é uma versão! Entretanto,

temos de considerar “[...] que a amiga e providencial ajuda” (Livro, VIII, p. 12), dos

que “[...] chegaram aos ervais, numa luta de bravos, para que a terra fosse

desbravada, cortada por milhares caminhos, e povoada”, advém de um estado de

extrema exploração, gerada pelo processo de modernização e desbravamento do

103

local antes não habitado. Para habitá-lo “Homens, mulheres e crianças, por um trilho

escuro e estreito, passam conduzindo os trastes, numa alegria desenfreada. É a

coroação do triunfo por nova terra conquistada” (Livro 9, p 241). Muito natural para

quem está inserido no processo – ou esteve –, o reconhecimento àqueles que

trouxeram o progresso e com ele, maiores e melhores condições de vida – conforme

modelo capitalista – mesmo que seja para poucos, sobretudo, aos patrões. O

reconhecimento traduz-se em homenagem, uma espécie de monumento:

Aos meus irmãos sofredores; aos que sangraram os pés furando o sertão desconhecido; os que dormiram sobre um baixeiro debaixo da árvore agasalhadora [...] aos que foram resolutos e estoicos e venceram os espinhais, os charcos, o areal sem fim, a terra podre, traiçoeira, as fera, o mosquitame azucrinante, a febre que matava, o índio espreitador e a tocaias covarde na boquinha da noite, ofereço o meu PROSA XUCRA. (Livro 10. P.281).

No verso da homenagem, podemos ler, alertados por Benjamin (1994, p. 34)

“por trás de todo monumento de civilização há um ato de barbárie”. Mas há um

reconhecimento, mesmo que seja hipócrita. A barbárie só se faz consciência depois

do tempo passado. E aí, a memória falha. Precisa do monumento para celebrar seus

“heróis” que já não são os mesmos que cruzaram a fronteira. São os que a história

de um lugar e tempo contou. No caso, os heróis são, “Homens de aço”, porque só

estes suportaram o trabalho forçado, o cárcere vivido involuntariamente por meio

das “retiradas do bolicho” dos administradores das ranchadas, “[...] pois o desejo de

todos era ter a certeza de que teriam o alimento garantido, fosse ele qual fosse”.

(Livro 23, p. 93). Estratégia de manutenção e de permanência da quantidade de

braços necessários à extração da erva.

O último texto de Homens de Aço intitula-se Duas palavras, uma espécie de

“dois dedinhos de prosa”, uma permissão ao leitor para sair – o autor, não mais o

narrador - em defesa branda da Empresa Matte Larangeira:

Muita propaganda injusta da Empresa Mate Laranjeira, essa preciosa organização industrial, tem sido feita no Brasil. Tem havido mesmo jornalistas profissionais, que mantiveram, por longos anos, campanha de agressão contra ela. Nunca pude compreender por que isto.

Ela, num audacioso empreendimento, ligou Mato Grosso com várias nações vizinhas, desbravou e povoou o sul e fez a terra de

104

Pascoal Moreira Cabral conhecida e admirada em outros continentes. Mas não parou por aí. Abriu escolas, fundou núcleos de população, deu assistência médica gratuita aos seus empregados, aumentou a minguada renda estadual e levou a civilização para o sertão. (Livro 9, p.277-278).

De fato, o empreendimento da empresa Matte Larangeira possibilitou o

povoamento do sul do Estado, entretanto, não muito diferente e considerado como

natural processo de colonização: muitas vidas foram ceifadas, sobretudo, vidas de

homens simples e desconhecidos. Novamente é exemplar o caso da personagem

Poincaré em El Viejito Poincaré, primeiro texto da obra Pelas Orilhas da Fronteira

(2009). De início, ocorre a apresentação da personagem a partir do momento em

que ela adentra o cenário em que se encontra o narrador: “As sombras estavam

envolvendo o dia em uma roupagem escura. Era a noite que se

aproximava...Justamente, nesse lusco-fuco [...]” (p.11) chega “aquele homem

miudinho, sem barriga, cabelos loiros, rosto liso, boca pequena, dentes graúdos e

fortes, [...], fala macia, olhar de vivacidade leonina chegou a Pedro Juan Caballero”.

Nota-se o contraste do ambiente com a figura do chegante. Um entre meio dia/noite

– lusco-fusco – entre fim/começo – de uma história que ficou, para outra que irá

começar – entre escuridão e detalhes nítidos, revelando – ou camuflando – uma,

misto de traços físicos frágeis com “vivacidade leonina”.

Em El Viejito Poincaré está o entrecruzar do que veio – deslocado – e do que

estava – estático –; está o local que necessita de mão de obra e o andante em

busca de oportunidade, está a rotina da vida na fronteira em tempos de povoamento

visando à exploração de um produto, enquanto o homem fica relegado a segundo

plano, uma vez que a “erva” tem valor de mercado.

Além das personagens já apresentadas, entre as que se ambientaram ao

mundo da erva, Serejo diz também daqueles que abandonaram o torrão pátrio por

pressão política e, por não terem se adaptado aos ervais, tiveram que fugir das

ranchadas. Revela, então, que a única forma de trabalho estava centralizada na

extração do vegetal e “Não podendo os fugitivos dos ervais retornar ao Paraguai, e

não tendo como ganhar para o sustento, se envolveram em furto de gado” (LIVRO,

23, p. 92) Com isso, surge uma outra realidade, a qual vai modificando o contexto,

tanto que (LIVRO, 23, p. 94) “Da pilhagem veio logo em seguida o assassínio.

Matavam para roubar”. O malfeitor que existe em toda história humana vai

105

transfigurar-se na figura do “quatrero”, função resultante do contexto histórico

motivado pelo processo de povoamento e facilitados pela localização fronteiriça: “Os

malfeitores insistentemente perseguidos ora estavam no Brasil, ora se homiziavam

em território paraguaio.” (Livro 23, p. 94).

O sujeito do entre-meio nas narrativas serejianas tipifica-se em personagens

como El Viejito, cujas marcas são reconfirmadas em muitas outras narrativas, como

a história dos los ermanos Arce: “Seus nomes? Nada mais. Na época, ninguém

portava documentos. Apenas a palavra autorizava o registro. Quem era e de onde

procedia, pouco interessa”. (Livro 23, p. 97). O conhecimento do “ofício de extrair

mate” concedia passe livre para adentrar fronteira, desde que tivesse braços, força e

coragem.

106

CAPÍTULO III - LITERATURA ENTRE FRONTEIRAS

O lugar pouco importa. O nome do bolicheiro também. O válido é que se trata de fato verídico, por muitos conhecido (Livro 35, p.185).

49 Figura 7

49 Segundo Campestrini (2008, p. 63), Heróis da erva, 1987, é igual a Caraí (até na numeração das

páginas:49-194, na realidade é uma separata), com a inclusão de apresentação com o título “Os

Heróis Anônimos” (que está em TEXTOS ESPARSOS).Brochura, capa ilustrada, com orelhas, com

textos de Renato Báez, Francisco de Vasconcelos, Otávio Gonçalves Gomes e Elpídio Reis. O

“capeamento e a complementação” foram executados por ARTES Gráfica Bachega, de Presidente

Venceslau. Como o texto já está em CARAÍ, HERÓIS DA ERVA foi desconsiderado (Das OBRAS

COMPLETAS). Fonte: CAMPESTRINI, H. O trilhador de todos os caminhos: vida e obra de Hélio

Serejo. Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2008, p.63.

107

4.1 PRENÚNCIO LITERÁRIO

Nos capítulos anteriores, realizamos um apanhado geral de alguns aspectos

históricos que norteiam a obra de Hélio Serejo, resgatando a fronteira Brasil-

Paraguai do início do século XX, quando se deu o povoamento, com mais

intensidade, do sul do Estado de Mato Grosso do Sul em detrimento aos fatos

históricos, Guerra do Paraguai e extração da erva mate realizada, pela companhia

Matte Larangeira. Referendamos, ainda, o homem em trânsito, por entre fronteiras

Brasil-Paraguai –, trabalhando nos ervais do sul do Mato Grosso do Sul.

Neste capítulo, ampliaremos a acepção de fronteira, a fim de cotejar as

narrativas produzidas por entre fronteiras, uma das quais transita na relação entre

“[...] o plano inventado e o reconstituído e esta oscilação constitui poderoso

elemento de verossimilhança”, segundo Candido (2006, p. 619).

Na confluência das partes, Serejo deixa vazar indícios de um prenúncio

literário bem mais próximo à realidade do Brasil esquecido, da fronteira abandonada,

em um tempo de colonização. O ímpar em Serejo está em não dramatizar a vida na

fronteira, mas em configurar os conflitos vivenciados pelo viés da realidade vista

pela ótica do fronteiriço recuado no tempo e espaço. Traço peculiar, em se tratando

de um autor da fronteira, um escritor daquilo que ele mesmo viveu, viu ou ouviu

contar. Vale lembrar que o complicador apontado por Candido (2006, p.618),

sobretudo ao referir-se ao autor que escreveu sobre o regional sem ter muita noção

do lócus para/de onde escreve, também pode ser avaliado de outra forma: o

conhecimento literário de Serejo se deu empiricamente; fez-se escritor pela paixão

que tinha por escrever. Motivado pela arte da palavra buscou formação, como se

pode avaliar no capítulo I, em autores de seu tempo, os quais, ainda viam “os

problemas do Brasil” pela ótica do estrangeiro. A paisagem “exótica” e a natureza

exuberante, primitiva, formada pela concepção dos relatos dos europeus, impingiu

uma tradição, um modelo para as gerações que fizeram a história literária brasileira

até o século XIX. Essa tradição unifocal descreveu o Brasil do europeu, do

estrangeiro, que se “bestifica” diante das belezas naturais, as quais cegam o olhar

para aquilo que não convém ser visto, uma vez que não se tem consciência crítica

da situação. Trata-se, portanto, de uma questão de processo cultural.

108

No conjunto da obra, em específico nas narrativas em que ficcionaliza a lida

bruta nos ervais, Serejo prenuncia, paulatinamente, o entremear de uma consciência

nacional, de homem inserido ao local, ao narrar a “vida como ela é” na extração da

erva, com relativo olhar exaltado da bravura desse homem explorado. O autor

reconhece a contribuição que o anônimo, exposto a toda e qualquer situação de

subsistência, irá dar ao engrandecimento da “nação”. Por um lado, registra muito

bem as relações de trabalho exaustivo do ervateiro exposto ao meio “infernal do

erval”; em raras passagens explicita a exploração e aponta o opressor. Todavia,

deixa espaço para o leitor inferir, sobretudo, quando narra “o drama do erval” que

alucina e absorve o viver do ervateiro (Livro 23, p. 72).

A colonização e o desbravamento da região sobrepõem-se ao fator humano

em uma relação creditada pelo capitalismo, o qual carrega, como princípio, a força e

organização da propriedade privada – Matte Larangeira. A concentração individual

ou social dessa força movimenta a fronteira ocasionada pela necessidade de mão

de obra barata, já que pagar o mínimo possível pela matéria-prima – a erva – e a

pela mão de obra – o homem – resultará na propagação – povoamento – do próprio

sistema capitalista.

Sem a intenção de esgotar a discussão histórica e com consciência de

estarmos tomando, apenas, a visão macro da história – Guerra e Companhia Matte

Larangeira – de um tempo e um local ficcionalizados pelos textos serejianos, neste

capítulo, analisaremos, em específico, as narrativas contidas em variados livros, mas

que possuem unidade temática e recurso estético que nos possibilitarão avançar em

nossa argumentação em defesa de um fazer literário resultante do desejo,

aparentemente espontâneo, de (re)lembrar o passado vivenciado em um local

marcado pelas relações de poder, em detrimento do processo de colonização da sul

do Estado de mato Grosso do Sul.

De fato, a obra de Serejo perpassa um tempo e local já referendados.

Todavia, Serejo, ao ficcionalizá-los, avança além da representação dos locais

datados, dos nomes de pessoas, do fato histórico, da exaltação nativista. Encoraja-

nos a prosseguir validando boa parte de sua produção, sobretudo, pela história do

homem local, contada pelo homem local; atitude que deixa vazar um leve sinalizar

de consciência histórica, de ruptura de padrões literários. Isso se evidencia, com

109

significativa projeção, em seu discurso de posse na Academia de Letras em Cuiabá,

já mencionado.

Com isso, Serejo desvia um olhar sobre o local, flertando com o pitoresco,

mas apresenta a construção de uma identidade sul-matogrossense relacionada à

identidade do fronteiriço, em um sentido mais amplo, o qual passaremos a analisar

nas narrativas cuja temática evidencia o homem e a erva por entre fronteiras do

narrar vivido e do recriado.

O primeiro traço de uma literatura de fronteira – e fronteiriça –, produzida pela

força das “paixões”, encontra vazão sentimental, ao passo que o sujeito – autor – vai

exercitando suas paixões, apontadas como: paixão pela vida da fronteira em um

tempo de povoamento, paixão pela paisagem que abrigava os ervais e por onde

ocorria o trânsito dos chegantes. Por último, a paixão que reúne as demais: escrever

livros.

Assim, as paixões contextuais – geográfica e histórica – se configuram em

ingredientes que impulsionam o autor a prosseguir em sua paixão maior, escrever,

independentemente de sua produção; seguir modelos vigentes de escrita literária,

embora o autor, como já vimos, demonstre preocupação e zelo para com sua escrita

e possua consciência de que é um autor periférico em relação à História literária do

Brasil.

A junção das paixões irá resultar em uma literatura produzida no vão

fronteiriço, entre a fronteira do vivido e do recriado, que se biparte em contar e ser

personagem, em narrar e informar, e na organização ficcional do espaço histórico e

geográfico descrito pelo homem local, perpassado pela formação de escritor

empírico, homem simples, cuja formação já foi apresentada no capítulo I.

Salientamos ainda que, embora não seja uma literatura alicerçada nos

princípios da “arte da palavra”, sua obra revela a concepção de um sujeito/autor

autônomo em relação à produção de autores consagrados que, embora tivessem

formação intelectual, não tiveram consciência de sua formação cultural e viram o

geográfico pela ótica exaltada e unilateral do colonizador, do estrangeiro.

Estrangeiros, eles haviam sido dentro do próprio país. Como bem discute Candido

(2006, p. 639), em Consciência literária, ao revisitar a crítica romântica de Ferdinand

Denis e Garret: “Daí um persistente exotismo, que eivou a nossa visão de nós

110

mesmos até hoje, levando-nos a nos encarar como faziam os estrangeiros,

propiciando, [...] a exaltação do pitoresco no sentido europeu [...]”.

Salles (1993, p. 180) contrapõe-se ao que colocamos em discussão em

Serejo, ao confirmar que o universo da ficção novecentista regional foi sempre

grotesco, caricato, desprovido de dimensão humana e revelador do pitoresco

canhestro em primeiro plano. O crítico explica, ainda, que o escritor regionalista agiu

como se a vida da roça fosse vista pelo turista da cidade. A capacidade criativa

serejiana, não só integra o homem ao ambiente local, como também personifica a

grandiosidade e a força da natureza, em detrimento à coragem e à bravura do

homem em trânsito, ao se aventurar para desbravar mato adentro. Em uma relação

similar ao processo de desbravamento no qual homem e natureza são a força bruta,

a “paisagem” – que Serejo tanto admira – ameniza a dor do homem e o impulsiona a

lutar mais e mais, como veremos nas narrativas.

Com isso, Serejo amplia seu fazer estético além de representar uma dada

realidade, já que exercita, em boa parte das narrativas, a ação de contar, constituída

pelos elementos do discurso, os quais compõem o sentido do texto. É o caso das

personagens deslocadas da fronteira: raramente possuem nome próprio, exercitam

pouco a voz, são conduzidas pelo narrador que, em raras passagens, abre um fio de

esperança ao reproduzir – ou deixar ressoar sua voz – quase sempre em Espanhol

ou Guarani: “Sempre que mexia na sua guaiaca, de muita estimação, pronunciava

estas palavras: – Mi barajo...mi barajo. Era, por assim dizer, a razão do seu viver”

(Livro 30, p. 130). A naturalidade com que insere a voz da personagem “–Yo soy Pio

Ramirez” (Livro 47, p.60) recupera a atmosfera fronteiriça atribuindo um caráter

verossímil aos fatos, favorecido pelo sotaque da personagem.

São várias as incidências de um prenúncio fronteiriço entre tradição e

ruptura, uma das quais diz da relação afetiva com a fronteira onde nasceu, cresceu,

onde conviveu com ervateiros, ao trabalhar no erval. Essa relação transparece em

um sentimento atípico à sua possível formação literária (se considerarmos a

formação referência e estudo sobre os autores, principalmente, do Romantismo),

embora no momento do início de sua produção, a intelectualidade brasileira – de

centro – já tivesse relativa compreensão do processo colonizador e das influências

dessa herança na produção literária brasileira. Todavia, temos de convir que

formação cultural e pensamento intelectual se constituem como processo paulatino;

111

leva tempo para que ocorra mudança na maneira de pensar e agir em uma dada

realidade/comunidade. Além disso, o autor Hélio Serejo não integrava essa elite,

muito menos tinha livre acesso às ideias e aos ideais vanguardistas. Fez-se escritor

na solidão do desejo de escrever. Para tanto, ia aos “mestres” e neles se “inspirava”

embora reconhecesse “a pobreza” de seus “minguados recursos poéticos” (Livro 14,

p. 262). Tanto que, em boa parte de sua obra, Serejo pede: “Perdoe-me, leitor

amigo, pelos cochilos e deslizes...” (Livro 14, p. 262) ou “Jamais poderá ser isto uma

crítica, um estudo”. Refere-se a um texto sobre Euclides da Cunha. "Poderíamos,

sim, classificá-la como uma simples e trôpega divagação literária, de um apagado

João-ninguém das letras pátrias, sobre personalidades marcantes...” (Livro 8, p. p.

210).

Mesmo assim, asseguramos que há prenúncios de uma literatura nascente

original na escrita serejiana, na concepção do sujeito que se traduz para cantar sua

pátria. Um desses prenúncios está no tratamento dado à temática da saudade –

muito reincidente no Romantismo, seja em Casimiro de Abreu “Oh! que saudades

que tenho/Da aurora da minha vida,”/ ou em Gonçalves de Dias: “Minha terra tem

palmeiras”, os quais exaltam a terra natal e queixam-se do tempo que passou ou do

distanciamento.

Nas narrativas serejianas, o “eu” ultrapassou a visão “queixosa” da geração

do Romantismo e reconhece-se como sujeito de um tempo real, compreendido como

aquele que, embora não conviva mais diretamente com o local, continua vinculado

aos dramas do erval e configura-se como porta voz da história perpassada por

ações do cotidiano da fronteira. Do mundo de que fala, o autor também já foi parte.

A vivência local o fez conhecedor das histórias, quer as contadas por

diferentes sujeitos, quer a vivida – a versão de quem viu, viveu... –, ou ainda

pesquisada em documentos – informações. Daí, avulta-se uma outra peculiaridade:

o cruzamento da informação com a ação do contar, recurso textual sui generis, se

avaliarmos o contexto – histórico e cultural – em que está aquele que escreve – no

caso, Hélio Serejo. Primeiro: Serejo coloca-se como pesquisador, procura a

informação, levanta dados para escrever boa parte de sua produção, como vimos no

capítulo I. Essa informação também vem perpassada por dados cujos registros

foram oficializados, bem como por dados contados por informantes.

O ápice da originalidade dessa confluência entre o contar e o informar está na

averiguação do elemento externo ao texto. Para Benjamin (1994, p. 202), o contexto

112

sócio-histórico irá influenciar – e fundar - uma nova forma de comunicação – no

caso, a informação de cujo fator propulsivo a imprensa se faz responsável. Aos

poucos, encontramos argumentos para justificar o estudo da vida do autor. Sua

iniciação literária, ou com o mundo da escrita, inicia-se por meio da imprensa, aos

treze já escrevia para um jornal de uma cidadela próxima a Ponta Porã. Essa prática

irá influenciar a elaboração de seu texto, convertendo-o em misto de informação,

descrições detalhadas, de quem conhecia o local e hábitos descritos, sequenciadas

pela inserção de hábitos e costumes da fronteira, local de muitas histórias, das quais

conta algumas, sobretudo, aquelas que correm de boca em boca, em um tempo

pretérito ao possível acontecimento.

O exercício criativo e as possibilidades estéticas deste autor estão na

tessitura do entrecruzar dessas histórias que, no vão das partes, dão vazão ao

ficcional, abrindo um vislumbre crítico do ocorrido, por vezes, reconhecido pelos

seus raros leitores: “Os seus cantos, meu caro Hélio, são pedaços da vida,

recortados na carne sangrenta da realidade. Vivem neles, palpitantes e frementes

[...] os tipos e costumes, o fraseado e as paisagens [...]”. (Livro, 13, p. 91).

A realidade a que se refere o acadêmico, José de Mesquita50, pode ser

entendida como relação afetiva que o narrador possui com o local: “Difícil, muito

difícil mesmo, a gente encontrar coisa mais bonita que a paisagem sertaneja, no

amanhecer crioulo ou na hora do entardecer [...]” (Livro 34, p. 37), mas que, nem por

isso, mascara a “realidade”: “O meio era selvagem, com bicharame de todas as

espécies, razão pela qual só o arrojado, o forte, se ambientava, permanecendo no

inferno verde do caá” (Livro 34, p. 39). Assim, o estado de quase êxtase do narrador,

ao descrever um dos aspectos com o qual possui vínculo afetivo, a natureza dos

ervais, não lhe tira a consciência do olhar crítico; nem por isso, ausenta-se de

retratar as dificuldades encontradas na vida do erval, mesmo que seja um texto

simples, misto de menção honrosa, apologética à “Ranchada ervateira”, habitação,

“sem estética”, que “[...] mais parece um polvo com seus tentáculos escondidos nos

confins da jungle amedrontadora, para abrigar os ervateiros” (Livro 18, p. 226).

Todavia, não deixa de reconhecer a função da Ranchada para “povoamento da terra

50 Presidente da Academia Mato-Grossense de Letras, amigo de Hélio Serejo. Serejo recupera no prefácio de Prosa Rude (Livro 13, p. 91-92) uma carta recebida do amigo em 1952, na ocasião em que o poeta e jornalista conta ao amigo o prazer de ler os livros presenteados por Hélio.

113

virgem”. Chega ao ponto de abrir interlocução com a Ranchada, personificando a

moradia: Você, ranchada ervateira, pode representar uma época em que o homem era escravo do homem, em que dominava a lei do mais forte e em que saía com vida aquele que primeiro apertava o gatilho. [...] Você foi edificada com lágrimas e teve o seu batismo com sangue, porém, com isso não será desmerecida. Era da época. Para se construir era necessário aniquilar, destruir, arrasar...(Livro, 18, p. 227).

No mesmo texto em que ousa descrever a moradia escondida nos confins e

reconhecer seu valor como abrigo para os ervateiros, demonstrando escolha

temática original, revela-se multifacetado, misto de complacência de homem

favorável ao progresso da região com o desvão da denúncia de um tempo de

barbárie. Advém, daí, a intersecção dos planos da História e da ficção, traços que

perpassam a narrativa: esta “terá, portanto, uma dupla realidade, ou seja, uma

natureza híbrida, a meio caminho entre a Literatura e a História (Freitas, 1986 p. 10).

A consciência dessa realidade sobrepõe-se ao escapismo melancólico dos

românticos e abre passagem para um olhar direcionado para a realidade rural “não

como natureza morta” e artificial, mas como habitat que acompanha as mudanças,

como podemos avaliar em El griton (Livro 18, p. 224), texto em que descreve o

hábito cultuado pelo paraguaio que se adaptou aos ervais como se fosse um “um

filho da terra”. O conhecimento que o eu lírico tem da flora e da fauna sobressai na

forma autêntica de alertar que o tempo passará, que muitas mudanças ocorrerão. A

construção metafórica da relação cultural Brasil-Paraguai amplia-se em detrimento

da descrição, paulatina e detalhada, sob o olhar de quem conhece a natureza, como

se pode notar em:

O relógio do tempo continuará marchando. O pé de guavira se cobrirá, novamente, de frutos. O ipê majestoso receberá mais outra carga de flores. Novos ninhos serão construídos nos galhos das árvores. As ervateiras continuarão morrendo. As ranchadas irão se despovoando. A vegetação luxuriante fechará os caminhos. Virá o desolamento. O grande silêncio da morte reinará. Uma coisa, porém, perdurará: a imagem do gritador. Sim, el griton não sucumbirá...Seu grito é uma página de real fulgor da grande história dos ervais. (Livro 18, p. 224).

O vigor do grito associa-se ao “fulgor da grande história dos ervais”, cujo eco

está vivo na cultura e na História do sul-matogrossense. Vale lembrar que a herança

114

cultural de el griton ressoa instantaneamente na vida do filho da terra. Basta que,

para tanto, se toque uma polca paraguaia, um rasqueado ou um chamamé, que el

griton atravessa a fronteira, cruza os ervais da memória e “arrebenta o peito” em

uma demonstração de identidade fronteiriça. (Livro 18, p. 224).

Como já foi explicado, em muitos livros de Serejo, há textos de extensão, tipologia e temáticas variadas; entretanto, estes dialogam ou mantêm relação fronteiriça entre o ato de lembrar, não só dos fatos históricos e pessoais, mas da lembrança daquilo que, como afirma Barros (2001, p. 13) “A nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima”. Embora a provocação literária de Manoel de Barros fundamente-se em uma proposta centrada na pós-modernidade, em concepções advindas dos efeitos do pós guerras mundiais, sobretudo, o esfacelamento do poeta que agora quer afastar-se dos acontecimentos e perscrutar o lado obscuro da vida, Serejo, em sua simplicidade, mostra-se ousado ao escolher para sua matéria literária história de gente “sem documento”, sem destino certo, sujeito como ferramenta, peça chave braçal que ajudou a desbravar uma parte do Brasil que, por pouco, não foi riscada do mapa.

A matéria de suas narrativas (além dos anônimos, que fizeram a história do povoamento, recuperados pela informação, quase sempre, advinda dos latifundiários), é constituída por descrição de plantas, comportamentos, hábitos, lugares, que ficaram na memória. “Além de tudo anotar”, Serejo possuía conhecimento e profunda presença da imagem na memória, como podemos observar na descrição de uma frutinha denunciadora de chão seco, o juá (Livro 21, p. 290), ou da planta que serve de veneno à saudade, o Cipó ou, ainda, quando ilustra a ambiguidade – ou falso cognato – do vocábulo Reviro, um tipo de sorobô51 do almoço de domingo das grandes famílias, o qual, segundo Serejo (Livro 21, p. 298), “é o verdadeiro alimento da raça primitiva”. Além de “comitiva de várias iguarias”, para o peão da fronteira que arranha o guarani, reviro-cunhã é o que ele mais aprecia quando sai para farrear. Descreve, ainda sugestivamente, a Velha Figueira, o hábito da queimada, o vento típico da fronteira, a performance do pássaro Chupim, “desgraciado” quando desce em uma plantação: “Uma nuvem negra, em forma de ovo invertido, esgalhiçada e disforme, se aproxima e cobre de preto, num segundo, a roça toda” (p. 305). Só mesmo um observador muito refinado, à frente de seu tempo, para transformar a “prática, rústica, perigosa às vezes” para colocar a tropa em Forma (Livro 21, p. 309) em perfeita e sugestiva descrição com

51 Mistura de sobra de alimento.

115

nuances de lirismo da lida campeira ao ponto de personificar ações da tropa, quando “petiço desmoraliza forma de xucro”, fazendo a tropa se envergonhar e ficar furiosa “[...] e...num arranco violento na corda, fura a forma. [...]. E a correria pelo potreiro, aos pinchos e às relinchadas vitoriosas, nos dá a impressão de uma legião de duendes enfurecidos, tentando destruir e arrasar a terra” (p.309). A expressividade entre a ação de descrever a prática e a realidade da prática podem ser notadas nas expressões em grifadas:

Para cavalo gavião, burro refugador ou égua aporreada, que não deixa pegar assim no más, nada há melhor que a forma. Forma é laço ou sovéu estirado, preso num poste da cerca, ou no moirão da mangueira, para nele se encostar a bicharada inquieta e, sujugá-la, convenientemente. [...] Encosta o peito na corda, ergue a cabeça, dilata as ventas e...se põe a olhar alto, com ares de superioridade... Com a continuação, a tropa fica “especial de amestrada”. É só o peão autoritário gritar Forma para que os quadrúpedes se alinharem, numa ligeireza de raio de chuva de verão... [...] Petiço desmoraliza forma de xucros. Potro bagual pisa nele. Ele vira o corpo com medo e bate a bunda na corda. È aí que vem coisa. A tropa se envergonha, fica furiosa, dana a meter pataços, relincha sem parar, bufa e... num arranco violento, fura a forma. E a correria pelo potreiro, aos pinchos e às relinchadas vitoriosas, nos dá a impressão de uma legião de duendes enfurecidos, tentando destruir e arrasar a terra. (Livro 21, p. 309).

A lida do homem campeiro e ervateiro e a natureza em seu entorno compõem a temática central da obra serejiana, assim como a compõem os “loucos de estandarte” e muitos “homens jogados fora”, os quais, não podendo ser mão de obra produtiva nos ervais, o “Tarová”, “aquele que sofre das faculdades mentais, louco, doido, criatura encontradiça em regiões ervateiras, que vive esquivamente” e por precaução se conserva sob vigilância nas ranchadas (Livro 23, p. 78).

116

4.2 A MEMÓRIA

O passado, em verdade, está presente, não morrerá nunca. Viverei com ele, com certa angústia, tocando-me o peito, com o que reviverei as lembranças e sentirei a emoção sacudindo as entranhas...(Livro 47, p. 44).

A memória é referência recorrente nas narrativas de Serejo. É comum o autor iniciar um texto fazendo menção à recordação de fatos vivenciados “Ainda bem que me recordo daquelas noites longevas, quando nos reuníamos [...] sempre me recordo com saudade...” (Livro 4, p. 110). Segundo Ricoeur (2012, p. 459) “uma recordação surge ao espírito sob a forma de uma imagem que, espontaneamente, se dá como signo de qualquer coisa diferente, realmente ausente, mas que consideramos como tendo existido no passado”, como podemos notar nesta passagem de Quatro Contos (Livro 4, p. 118): “Hoje vamos relembrá-la, embora longos anos hajam decorridos. Forçaremos a memória e procuraremos recompô-la. O nosso intento é tão somente comprovar que muito de verdade havia em tudo isso.” Nesta ação de recordar a imagem, para Ricoeur, encontram-se reunidos três traços de forma paradoxal: a presença, a ausência, a anterioridade.

Nas narrativas de Serejo, a saudade a que se refere, puxada pela memória,

funciona como um tipo de motivação para desencadear uma narrativa, que é iniciada

a partir de uma lembrança de um lugar, como é o caso do conto “Jasy Taperê”, em

que o autor identifica o local “[...] ali naquele espaço de chão que havia recebido, há

tempos, o nome de Caarapó” (Livro, 23 p. 42) ou “Na cidade mato-grossense de

Campo Grande conheci, certa feita...” (Livro 8, p. 198). Além de localidades, reporta-

se a acontecimentos vivenciados como recurso para desencadear, prosseguir,

finalizar e dar caráter de verdade às narrativas: “Ainda guardo nas recordações

desse período remoto o frio que se me corria pela espinha e a tremura, incontrolável,

que fraquejavam as pernas...” (Livro, 23, p.96).

Para Ricoeur (2012, p. 58) os lugares funcionam como uma espécie de marco

que aguça a lembrança e não nos deixa esquecer. É como se fosse um disparador

para puxar as recordações e desencadear as lembranças. A acepção condiz, em

muito, com a estrutura da narrativa em estudo, uma vez que Serejo a inicia

117

reportando-se a um local e, em seguida, envereda pelo contar, já não localizado.

Partindo do local, a narrativa prossegue, quase sempre, no tempo passado – “E

assim foi” – entrecortada pela recorrência à memória presente na escrita, e cria, com

isso, o espaço da memória que irá localizar-se em lugares onde Serejo esteve,

quando ainda era criança ou em idade jovem, como podemos observar na

introdução de “O velho Pastrana”:

Longos anos já decorridos e eu guardo, ainda bem vivos na retina, esses quadros dramáticos da minha inquieta meninice. Esse poder jovial de retenção vive no confuso emaranhado das células cerebrais de todo homem. Um fato passado em nossa primeira infância nos parece, muitas vezes, recentíssimo, porque é nessa fase da nossa formação que fixamos, com maior precisão, aquilo que nos feriu a sensibilidade vibrante. [...] E como recordar é viver, trazendo-nos à mente aclarada a beleza remota da paisagem, eu vou relembrar, aqui, um pouco de minha infância atribulada e enferma, uma passagem evocativa, das muitas que vivi, e que jamais me abandonou no escoar indefinido do empo; um quadro vivo, real, cujos contornos estiveram sempre iluminados pelo clarão aurifulgentes da lua da saudade (Livro 3, p.62).

Entre os espaços – tempo ocorrido e presente da escrita – confluem os

planos da lembrança e do esquecimento. Para lembrar, Serejo recorre a um lugar

situado no mapa da memória, como se pode observar no trecho acima, ocasião em

que exercita o plano das lembranças para desencadear uma narrativa vivenciada

pela molecada de seu tempo que se reunia “para estabelecer e fixar perigosos

planos de combate” (p. 63) entre as tropas brasileiras e paraguaias formadas por um

exército sugestivamente divisado: “Cinco tampinhas de garrafas de cerveja pregadas

sobre o ombro: coronel; quatro tampinhas, major; três, capitão; duas tampinhas,

tenente.”(p. 64). Um jogo em que “estava em jogo o nome do Brasil” (p. 64), e que o

amor à pátria lhe rendeu um golpe sangrento: “Um traiçoeiro caco de garrafa,

desferido, com estilingue, de alguma moita próxima, atingiu-lhe o pulso direito, bem

próxima à artéria” (p. 67).

Na superficialidade do conto fica a saudosa lembrança das brincadeiras

ocorridas “Naquele aformigado terreno baldio da formosa cidade fronteiriça” (p. 63);

todavia, ao passo que o narrador vai se distanciando do início do fato principal, vai

adentrando em níveis mais profundo de possibilidades de tessitura textual.

118

Dado este recurso, o espaço geográfico funciona como rubrica que autoriza a

autenticidade do ato de lembrar, dando credibilidade ao contexto histórico, onde

aconteceu. O leitor menos avisado aprecia, tão somente, o plano da lembrança

situado no local em que o fato aconteceu. Todavia, além da lembrança de dias que

se foram e da saudade do lugar que já não é mais, há outros planos vinculados, por

exemplo: o povoamento do lugar, a formação da fronteira do Mato Grosso do Sul, a

construção da identidade das personagens envolvidas em um momento sócio-

histórico fundamentado no capitalismo, enviesado pela justificativa de progresso e

de “dias melhores”, de que o texto serejiano é porta voz. O leitor com maior

conhecimento histórico poderá avaliar, ainda, por meio dos depoimentos do

autor/narrador ao longo da narrativa, a barbárie realizada pelo poder dos que

detinham o domínio dos ervais. Como podemos apreciar em “Kurusu paño”:

Pano imitando um lenço; lembra o de Verônica, mulher judia

que, como nos afirma a tradição, limpou o rosto do Senhor, quando este subia ao Calvário. Considerado sagrado porque as suas feições ficaram estampadas nele.

O peão paraguaio dos ervais tem respeito imenso pelo kurusu paño. No mundo perdido dos ervais, amarrado a uma cruz, ele atesta morte violenta ou um cristão que morreu de doença e ali foi sepultado. Sendo três, na mesma cruz, e de tamanho diferentes, pode-se atestar que ali se acham enterrados pai, mãe e filho.

[...] Encontrei, nas minhas andanças com meu pai, por

tenebrosas regiões ervateiras, inúmeros kurusu paño... [...] Triste e doloroso é lembrar que inúmeros dessas cruzes

cravadas no silêncio aterrador do deserto eram frutos da sanha bestial e sanguinária dos ignóbeis comitiveros. Guardo na lembrança muitas delas...” (Livro 23, p. 95-96).

Em primeiro plano de leitura, sobressaem às lembranças do narrador, uma

espécie de saudade “daquele tempo” em que viveu no erval ou, ainda, o contar de

hábitos e costumes do viver fronteiriço. Entretanto, no decorrer da leitura, no

cruzamento das palavras, dos fatos e no conjunto da obra de Serejo,

compreendemos que recordar equivale a uma sensação de impunidade aos que

foram sacrificados “no silêncio aterrador” de um tempo e local em que apenas a voz

do mais forte ressoa. Aparentemente, Serejo quis recordar a sua relação com o

meio, todavia, revelou injustiças cometidas, sobretudo, pela “polícia sem farda,

especializada na perseguição do fugitivo dos ervais. Sua história é tenebrosa. Uma

119

mancha negra e odiosa na produção do mate, fato que cristão algum poderá

contestar.” (Livro 23, p. 101).

Lugares, além de puxarem a memória para que o sujeito/narrador possa se

lembrar, sustentam a aparente veracidade da narrativa, uma vez que possuem

existência concreta e podem ser encontrados em qualquer mapa geográfico

(FREITAS, 1985, p. 15), criando efeito de cumplicidade entre narrador e leitor. Mais:

dão guarida ao homem em trânsito, que vai povoando provisoriamente “[...] a vilinha,

composta de meia dúzia de casuchas...” (Livro 23, p.67). Ou ainda, justificam as

ações das personagens, ainda mais quando espaço e tempo formam um conjunto

em que “[...] o aqui e o lá do espaço vivido da percepção e da ação e o antes do

tempo vivido da memória se reencontram enquadrados em um sistema de lugares e

datas do qual é eliminada a referência ao aqui e ao agora absoluto da experiência

viva” (Ricoeur, p. 156), ressignifcando-se em “aqui” e “agora” ficcionalizados, não tão

somente os lugares e tempos datados. Comportam significação mais ampla,

configuradas na totalidade do texto. Assim, o texto se abre para o plano da

conotação em cuja leitura o leitor poderá evocar outros “tempos e locais”.

O lembrar-se do vivido, do tempo passado, da infância e mocidade é fato

comum em boa parte das narrativas de Serejo. Essa experiência é um instrumento

de (re)significação de (re)conhecimento e de (re)criação do contexto lembrado,

bem como de si mesmo, resultando, pois, em uma outra realidade. Num plano

teórico mais amplo, Riedel (1988, p. 24) discute a inclusão da possibilidade, na

leitura de um texto narrativo, de que os acontecimentos a que a voz que conta se

reporta, faça parte do passado dessa voz. Sendo, pois, passado, dá crédito à leitura

ficcional. Com isso, há pacto entre autor e leitor, o qual avaliza a ficcionalidade dos

fatos em se tratando de invenção do que foi, mesmo que o narrador/autor, deixe

evidentes pegadas pessoais sobre o transitar da personagem, como se verifica no

andamento da leitura, da história de Poincaré.

De início, o leitor irá conhecer o sujeito que chegou ao povoado, em que o

narrador estava, e foi aceito na ranchada de Dom Francisco Serejo, pai de Serejo.

Ao processo de ampliação do enredo, que vai sendo tecido linearmente, já que o

narrador não tem interesse em saber do passado, por ora, dá-se a impressão de que

o fato tem muita relação verídica com a vida do autor. Todavia, quando o enredo

começa a desenredar, paulatinamente, o passado vai (re)construindo a personagem.

Esta passa, de trabalhador prudente a exilado de guerra, de bondoso e honesto a

120

sanguinário e cruel. Quando ocorre essa transformação perfomática não há mais

espaço para o vivido mas apenas para o ficcional, embora possa ter ocorrido alguma

relação com as ações vivenciadas em experiências, por Serejo, em sua lida

ervateira. Ocorre, ainda, que o texto é uma manifestação linguística a qual possui

unidade entre as partes: as inserções do “eu”, como recurso de um depoente,

reconfiguram, no conjunto geral das partes que compõem o todo do texto, a história

de mais um andante que transita pela/na fronteira. Com isso, o contrato textual

estabelecido entre narrador e leitor, entre a história pessoal – um chegante na

ranchada do pai de Serejo – e o plano da invenção distancia-se do real e vai

direcionando-se no decorrer do contar para o plano do “possível de acontecer”, do

jogo da verdade inventada que se faz por meio do universo da palavra.

Embora o plano da História respalde as ações das personagens e

posicionamentos do autor, as referências aos locais, quase sempre lugarejos, não

funcionam, tão somente, como espaço geográfico, já que o tempo histórico configura

a ambientação do espaço transformando-o em um espaço situacional, cenário

representativo ou argumentação figurativa que dá crédito ao contar serejiano. Como

podemos notar nas atitudes e comportamentos das personagens justificados pelo

contexto físico em que os fatos ocorrem. Natural, por exemplo, a conduta da

personagem Jabuna, “Uma ovelha das mais puras” (Livro 3, p.45) do rebanho

cristão, um anjo abençoado pelo bondoso padre. Entretanto, “o anjo bom”, em um

determinado momento da vida, encontrou-se com um dos muitos andantes

representados ao longo dos sessenta livros de Serejo. Por um momento,

cavalgaram “a trotito, emparelhados”, conversando como dois caminheiros.

Entretanto, foi só o companheiro explodir “numa debochada gargalhada”, devido ao

fato de o “anjo bom” tirar o chapéu da cabeça, diante de um túmulo à beira da

estrada – “Se tivesse uma vela ia acendê” – que “Os olhos de Jabuca fuzilaram de

ódio. Felizmente, havia deixado sua garrucha de caçar tatu, se não...” (Livro 3, p.

50). Mais natural, ainda, “A vingança do menino”, um mitã-i com sua faquinha de

picar fumo honrou a cruel morte de seu pai (Livro 44, p. 230).

Com isso, há uma intersecção entre tempo histórico e espaço geográfico os

quais, além de marcar cronologia e geografia, adicionam valor literário à produção

de Serejo, uma vez que representam noção de brasilidade tão desejada pela

literatura oitocentista. A noção de nação, de falar do Brasil, de buscar a identidade,

de ter consciência de onde se está, amplamente difundida e almejada pelo projeto

121

nacionalista de autores do Romatismo e que levou Machado, ainda muito jovem, a

formular aporte crítico para tal projeto. Essa peculiaridade dialoga, em parte, com a

produção de Serejo, se considerarmos o enfoque dado pelo autor para a história de

um tempo e local, vista por um nativo que presencia o processo de povoamento com

o qual, também, envolve-se como nativo que vê no chegante a mão de obra

necessária para o desbravamento da região.

Esse envolvimento vai resultar na produção de muitos livros, os quais contêm

significativa e similar característica dos “defeitos e Excelência” a que se refere

Machado, quando critica o projeto literário oitocentista:

Aqui termina esta notícia. Viva imaginação, delicadeza e força de sentimentos, graças de estilos, dotes de observação e análise, ausência às vezes de gosto, carência às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as Excelências da atual literatura brasileira que há dado bastante e tem certíssimo futuro. (MACHADO, 1986, p. 809).

Embora, nem de longe, queiramos comparar a escola literária do Romantismo

ao “ir escrevendo” serejiano, avaliamos que o vigor crítico de Machado em defesa de

uma literatura brasileira produzida por brasileiros com consciência de onde se está,

deixar transparecer, em textos de Serejo, indícios de que os laços maternais com a

literatura de Portugal começam a se desatar, mesmo que seja por um autor

fronteiriço, mas que preconiza, no conjunto de sua obra, a cultura e a história de um

tempo e local.

4.3 PRODUÇÃO DO PRÓPRIO MEIO

Sou um narrador, um prosador

feliz. Muito feliz mesmo. (Livro 49, p. 151).

Como já mencionado, a voz que conta as narrativas serejianas conflui em

uma espécie de partícipe ocorrido, embora narre com mais extensão o ocorrido com

o outro do que consigo mesmo. Inesperadamente, quebra a narrativa de terceira

122

pessoa e, em uma espécie de depoimento, introduz a voz de primeira pessoa. Na

tentativa de ilustrar, citamos um trecho bem peculiar do discurso serejiano:

Entre os homens da vivência ervateira, a conversação possui, geralmente, cunho característico. A fala é produto do próprio meio. Chama a atenção de qualquer um pela originalidade. Nada, nesse ambiente, procedeu da cultura dos livros.

[...]

Bate-papo que chega, muitas vezes, a empolgar aquele que pouco ou nada conhece desse lidar de tanta agressividade e sobressalto. Fomos, ao longo do tempo, anotando essa conversação, esses hábitos, esses costumes, exóticos, bem como ditos, que marcam a luta brava e o nascer de um linguajar que veio da erva [...]. Vejamos.

Dois peões, enquanto tragueiam, vão conversando. Então longe da vigilância, portanto, o traguear é libre. Assim: - No hai por que se tênar miedo. Que uno caraí qualquiere tine derecho de viver su vida sin agajazar molestación (Livro 34, p. 122).

Como se vê, na citação, a voz que conta inicia contextualizando a

ambientação de um ritual típico da “vivência ervateira”; paulatinamente, o narrador

vai fechando a cena e trazendo o foco para a imagem “dois peões [...] conversando”.

(p. 122). Antes disso, em uma declaração, misto de explicação e justificativa, insere

a voz pessoal: “Fomos, ao longo do tempo, anotando essa conversação”. Assim, o

texto vai sendo construído por meio da interposição de vozes, nem sempre,

centradas na ação narrativa, mas que, no conjunto, resultam em sua composição

geral.

Diante desse recurso, uma espécie de adaptação oral para o contrato da

escrita, cria-se um estilo de discurso produto do próprio meio. A aparente ausência

de uniformidade do foco narrativo torna-se original devido à mudança da voz que,

em um processo metalinguístico, diz do hábito e costume advindo da fala do

ervateiro, intercalada pela inserção das personagens e dos recortes de diálogos

entre eles. Instaura-se, assim, a originalidade que não “precedeu da cultura dos

livros”, mas autentificou o discurso do sujeito que conta, impingiu na narrativa a

marca do narrador, (BENJAMIN, 1994, p. 205). As digitais do narrador serejiano

estão na tessitura da recriação do hábito e costume do ervateiro, por meio do plano

da expressão do discurso. O que poderia representar ausência de uniformidade,

ressignifica-se em criação sui generis, já que o narrador consegue demonstrar o

cruzamento de posições de sujeito: a voz que informa o hábito e costume, que conta

e fala. A construção do texto, entremeada por mudança de foco ou inserção de outra

123

voz, reflete a estrutura do hábito do “prosador”. Típico de quem conta história aos

ouvintes, meio ao estilo do “narrador aos seus ouvintes” ou participantes da prosa.

Em outro contexto linguístico, em outro gênero textual, poderia ser avaliado como

ausência de uniformidade; todavia o contexto discursivo externo de onde Serejo

retira os fatos – da fronteira, o oral – e o prosador que diz ser, bonificam o sugestivo

e possível desvio linguístico, ao ponto de integrá-lo ao ambiente daqueles que não

precedem da cultura de livros.

O efeito resulta na exposição daquilo que já aparece na declaração da voz

que comanda a cena: a liberdade era vigiada, um homem tem direito de viver sua

vida ao menos, para prosear. E a liberdade do prosador está no direito da

expressão, sobretudo, quando se põe a contar sobre os comitiveros, tipo de guardas

armados dos ervais, cuja missão era perseguir fugitivo das ranchadas ervateiras,

uma vez que “Contratos vultuosos haviam sido assinados em Buenos Aires” (Livro

23, p. 100) e não se podia pensar em fracasso. No intuito de contar o quanto tais

“policiais” eram “sádicos desumanos, cruéis e sedentos de sangue”, Serejo vai

intercalando à história dos irmãos paraguaios, ordeiros de pouca fala, conformados

com tudo, bons serviçais, portanto, que foram degolados não se sabia por quem,

muitos outros fatos que lhe foram contados por velhos, experimentados e idôneos

ervateiros (Livro 23, p.96).

Depois de contar muita ação de degola, matança de homem, mulher e

criança, além de, inesperadamente, inserir o tradicional depoimento para confirmar

que também passou por aqueles lugares onde os fatos ocorreram, confirma-se mais

um indício de percurso narrativo oral – poderia ser compreendido como ausência de

planejamento de enredo – o narrador lembra-se da história inicial e avisa ao leitor

que irá conclui-la: “E o moço encarnacento, apontado como o degolador dos irmãos

Arce? (p. 105). O desfecho síntese surpreende e reconfirma a fama da fronteira:

“olho por olho, dente por dente”. Mesmo depois de 22 anos, o filho achou os

assassinos do pai e cumpriu a promessa feita à mãe: matou degolados los ermanos

Arce, aqueles que o narrador havia prenunciado serem trabalhadores, mas de uma

esquisitice...

Narrativas como estas representam, com bastante precisão, a performance

oral com o ajustamento para a reprodução escrita. Tanto que o narrador, por vezes,

interpela a si próprio no intuito de dar progressão à narrativa, recurso habitual no

discurso oral. Além de que, a mínima inserção da voz da personagem poderá ser

124

compreendida como “liberdade vigiada” vivida pelos peões ervateiros. Vale lembrar

as inúmeras referências indicativas de fuga dos ervais reveladas por Serejo ao longo

de seus textos, sobretudo, quando narra a ação dos comitiveros. Se havia fuga é por

que se sentiam – ou eram – prisioneiros, não tinham liberdade para ir e vir.

Outro aspecto revelador está nos recuos temporais. Conta o que passou,

aquilo que presenciou, anotou. Entretanto, traz o fato para o presente da escrita,

criando um efeito de presentificação, o qual podemos avaliar melhor, com base em

Benjamin (1994, p. 205) quando discute o desinteresse da narrativa em falar do

“puro em si”, do fato, do ocorrido. Benjamin defende que o fato perpassa a vida do

narrador, “[...] mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele”.

Neste ato, impingem-se na narrativa, as marcas do narrador. Á partir daí, a narrativa

é contada pelo viés do narrador, e já não apenas o fato, mas o discurso criado pelo

narrador.

Esse discurso se constitui da lembrança de um tempo em que a extração da

erva movimentava e dirigia as ações de homens de poder – uns sobre os outros – os

quais controlavam a forma de viver de conviver daqueles que se submetiam às

ordens desse poder. A fronteira é lembrança de um tempo de impunidade, de

ambígua exploração – erva e homem – e o autor/narrador/personagem constituiu-se

pelas relações de poder. Portanto, não levanta voz contra as ações de barbárie, não

se faz mártir de um tempo ou modo de viver. Serejo narra! Narra as lembranças de

uma forma tão complacente que, um leitor mais aguçado, poderá compreender que

o ex-ervateiro é um fingidor e chega “a fingir que é dor, a dor que deveras sente”,

assim como alertou Pessoa.(1972, p.164).

Embora Serejo anuncie recordações pessoais, ao contar, incorpora os fatos

de sua vida como elemento de referencialidade para os demais acontecimentos

contados. Com isso, a inserção de fragmentos de possíveis fatos ocorridos, a

pormenorização, a lembrança do detalhe, do momento, do ano, as referências aos

lugares, criam efeito do real, estabelecem vínculo com a realidade construída. Os

“detalhes” ressignificam uma outra realidade, com fortes vínculos com as

aparências, com o possível de ter ocorrido. O pacto com a verossimilhança avaliza o

caráter verdadeiro, já que verdade é aquilo que se projeta no enredo criado por meio

da construção da linguagem.

Devemos considerar que o ato de contar incide em fazer uso da palavra para

representar o ocorrido, o já realizado, mesmo que seja em um instante posterior.

125

Com isso, conta-se não o fato em si, mas o que pode ter ocorrido, uma possibilidade

apreendida do fato pela perspectiva do sujeito que conta. O sujeito é, pois, outro

aspecto considerável, um ser resultante dos diálogos que trava ao longo da vida na

concepção bakhtiniana. Além de não estar isento de julgamentos, o sujeito que

conta enxerga aquilo que quer e pode, já que é dialogicamente constituído pelo

contexto coletivo e individual, como sintetiza Baccega (2007, p. 22), quando

esclarece que a subjetividade nada mais é do que o resultado da polifonia, das

muitas vozes sociais que cada indivíduo “recebe” e tem a condição de “reproduzir”

e/ou reelaborar. Ao exercitar o desejo de se fazer escritor, Serejo nos traz retalhos

dolorosos de histórias com as quais conviveu e por meio das quais foi constituindo

seus vínculos e desvínculos: “Delas me lembrarei, comovidamente, até o dia do

juízo final. [...] Viverão em minha memória, porque fazem parte de minha formação”

(Livro 23, p. 96).

4.4 O OLHAR DE TOCAIA

[...] olhos que jamais se fatigaram em ver o silvestre, o intocável, da realidade vivenciada outrora (Livro 31, 208).

O homem pós-guerras vai se apresentar em um sujeito que, a cada dia,

fragmenta-se, estraçalha-se e se desmemorializa. Sendo, pois, o homem processo

de seu tempo, ao contar, em específico, por meio da palavra ficcional, terá grande

chance de fazer valer as marcas do sujeito de seu tempo. Melhor: se fragmentado,

em relação ao homem clássico, se efêmero, em relação ao conhecimento mais

paulatino, aquele que demorava mais para ser refutado, se “homem abreviado”,

certamente, ao exteriorizar, irá fazer escolhas e combinações reveladoras do

homem que está sendo. Assim, o homem do presente conta fato ocorrido em um

tempo passado como homem que está presente. Com isso, fica o entremeio

passado-presente para que o narrador possa transitar e preencher o campo aberto

por meio da memória traduzida em palavras, não mais o fato, mas a palavra, a qual

se faz do fato.

126

Segundo Leite (1991, p. 6) “Quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que

testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou. Por isso,

narração e ficção praticamente nascem juntas” e, a partir daí, ocorre a criação de

uma representação que, embora porte referências à realidade, poderá abrir espaço

para a leitura interpretativa dessa mesma realidade. Em específico, o narrador

serejiano é hibridado em contador e informante que tudo sabe, e se não sabe,

pergunta – ou pesquisa –, a fim de saber e informar ao ouvinte/leitor, filtra a História

de acontecimentos de um tempo e local, e escolhe o que pode ver, saber, mexer, o

que quer “involuntariamente” ver, o que consegue saber, recordar, lembrar...Por

outro prisma, refuta outras histórias, outras concepções... Acontece que, às vezes, a

memória falha. Fato que pode transparecer no plano da escrita, como é o caso, da

lembrança viva dos pioneiros – exploradores e explorados, caraí e che patron –. Das

matas, rios, plantas e paisagem exuberante, que não se modificaram com o passar

do tempo, haja vista que a recordação ficou estacionada em um tempo definido e

contador não voltou para reatar os tempos, não voltou para averiguar se o preço da

exploração, pago com o sofrimento humano e com a devastação dos ervais, trouxe

benefício, além do enriquecimento de poucos com grande concentração de renda.

Não voltou porque foi expulso de seu próprio reino, já que “lá” estavam as possíveis

melhores condições de vida um pouco mais digna...E fica, nos vãos das partes, com

base em Leite (1991) o mascaramento da incógnita que o leitor não sabe ler: por

que Serejo optou pelo chegante que veio “fundar” a fronteira? Por que não teve

história, sobretudo, histórias orais, para contar sobre os que aqui já estavam, os

indígenas, no caso? Por que consegue “glorificar” o homem branco arrojado,

destemido, aventureiro, gaúcho, correntino, paraguaio... e dá pouca vazão ao

nativo? Reconhece-se bugre pela força da incorporação de hábitos e costumes, mas

não índio.

Em Pequenas anotações sobre a história da erva (Livro 34, p.85-105), Serejo

conta as dificuldades encontradas pelo mentor da companhia Matte Larangeira na

implantação da empresa Larangeira. Na visão do nativo e autor, “[...] teve que se

empenhar em duas refregas contra os índios habitantes da região [...]”. Diz, ainda,

que estes silvícolas, verdadeiros donos da terra, já faziam uso do caá. Em outro

subtítulo, “Os bugres”, menciona a animação de Laranjeira com a descoberta de

novos ervais e transcreve – sem indicar fonte – que o capitalista resolveu ensinar

aos ‘bugres mansos e de bom trabalho a lidarem com erva’. O registro de como

127

achar os bugres e como fez para selecionar os mais aptos, abre um vão imenso na

história da formação do Estado - não muito diferente da história de todo território em

que o nativo já estava, quando da colonização, como se pode notar no trecho

abaixo:

Não foi difícil ao bugre assimilar os ensinamentos [...] Sempre

bem mandados, procuravam executar as ordens com perfeição, porém, num vagaroso e enervante ritmo, atributo próprio da raça bugrina.

Uma coisa, entretanto, espantava a todos: o quanto comiam, por dia, esses bugres, mesmo os menores. Vem daí certamente, o velho ditado fronteiriço: preferível alimentar cinqüenta cavalos, com pindó e alfafa, do que dez bugres com feijão, arroz e carne. Não há muito exagero, não! (Livro 34, p. 89-90).

Conclui a passagem, em que discute a importância da mão de obra nos

ervais, em específico, informando que muitos construtores de estrada e ervateiros

renegaram o peão bugre, pelo rombo que causavam na provisteria. Certamente, o

capitalismo lhe turvou o olhar para a compreensão das diferenças culturais. Serejo

não especifica os sacrifícios elevando, com isso, os vão, os interstícios, abrindo a

obra para outras leituras, uma das quais podemos estender às atitudes e às ações

de homens que fizeram a história à custa de trabalho exaustivo, em prol da

construção de estradas, ranchadas... Em detrimento do progresso, vidas foram

silenciadas, etnias foram massacradas, pejorativamente marcadas para sempre,

“Porque bugre que não rouba é bugre doente. [...] Pra bugre soltar uns grunhidos,

imitando choro, é preciso que apenhe de facão, da polícia. Gente dura de se

entender, essa” (Livro 34, p.90).

Não em defesa, mas em análise do posicionamento de um autor nativo da

região, de um tempo em que a mão de obra produtiva era a peça chave, avaliamos

que a compreensão de Serejo, em relação ao indígena, condiz com a formação

histórica brasileira do colonizado; não poderia ser diferente. O autor é filho do local e

aprendeu a conviver de forma “natural” com a concepção de que o indígena não

possui aptidão para o serviço braçal. Nessas mínimas e possíveis frestas, que

sinalizam hábitos e costumes de uma época da qual o autor faz parte, e, à qual, pelo

menos, não se opõe, inferimos que, embora seja um homem situado no contexto

sócio-histórico, principia um olhar um pouco à frente de seu tempo, em se tratando

do exercício da escrita de textos ficcionais. Seus “capões” literários, rareados em

128

seguida, estão nas singelas e vigorosas descrições de lugares, coisas, objetos

típicos da fronteira, como já mencionamos. O fato de olhar para o local, para si

próprio é uma forma de autoconhecimento, de consciência de sua - do nativo -

participação na história que vem sendo construída.

O leitor de Serejo poderá exercitar o tradicional “caçador de indícios”, como

podemos perceber nas sugestivas informações contidas na monografia/livro já

referida. Em As engomadas (provando o percurso do narrar com base na

informação: “Devo estas informações aos meus valorosos colaboradores [...]” (Livro

34, p. 102) prossegue afirmando que, em 1912, a erva estava com bom preço. Por

isso, “os conchavadores, muitos deles de arrogância assustadora” saíram em busca

de mão de obra”. Até aí, seu texto não diverge muito do discurso do historiador.

Entretanto, desvia o olhar para as saias engomadas das índias e das paraguaias,

que, segundo um informante considerado enciclopédico “chegavam a formar rodas,

tal e qual asas de perus quando estão querendo galar”. O luxo das “inúmeras e

vistosas rendas” em contraste com os “pés no chão, representavam coisinha de

nada” (Livro 34, p. 103) e enfeitiçavam muitos caraí. Mais uma vez, realidade

histórica e figuração estética confluem pelo viés do desejo que tinha de escrever, ir

escrevendo... O narrador reconta que não se conchavava peão que tinha, por

companheira, mulher engomada, já que era “elemento” inútil nas ranchadas, não

serviam nem para a cozinha, pois eram chinas para cercanias de poblaciones. E

reconfirma, “não serviam mesmo!”

No conjunto das narrativas estudadas, encontramos textos em que o narrador

lança mão, naturalmente, da incorporação de “um acontecimento, de uma situação,

de uma personagem” histórica ao contexto interno da obra, “fazendo dela uma

realidade estética”, como sugere Freitas (1986, p. 09). Tanto que a fronteira, espaço

físico, se multifaceta e se integra em muitas outras fronteiras. Por isso, defendemos,

com base no trabalho da estudiosa (p. 113), que os objetivos que levaram Serejo a

buscar matéria para sua ficção em um contexto atípico aos padrões e gosto literários

da época, diz da relação direta estabelecida, ancestralmente, com o local de

fronteira. Um espaço anônimo, vago, recém confirmado em demarcação posterior à

Guerra e se transfigura em um transitar intenso no conjunto da obra em estudo,

como já anunciamos.

O pioneirismo de Serejo está em falar, justamente, da vida e homem da

fronteira fazendo uso de uma estrutura linguística proveniente da linguagem oral,

129

perceptível, sobretudo, quando o narrador vai intercalando informações,

descrevendo personagens, paisagens e narrando fatos intercalados a sugestivas

descrições da maneira de viver e conviver do fronteiriço. Muito além das histórias

estão as nuances de observação com que registrou, na memória, aspectos que,

para a época, não seriam objeto de matéria de escrita – ou de poesia, no dizer de

Manoel de Barros. Em Palanques da terra nativa (Livro 31) lançado em 1983, Serejo

dedica-se a descrever o “Chuchamin”, “ato de cutucar os bois com um ferrão...”(p.

2004). Descreve, também, como funciona o “Fogão nativo” que esquentou sua

meninice, assim como a gaita chorona; diz, ainda, do “Taá”, espírito bom que orienta

peão ervateiro. Em “Lírio-do-campo”, texto do Livro 31, demonstra exaustivo esforço

de pesquisa sobre todos os tipos de lírios existentes: “Quando a gente consulta os

livros dos mestres” (p. 207) e faz tudo isso para dizer de sua “agonia de desespero”

devido a dor causada pela constatação de que os lírios não existem mais como

antes, já que o “patear das tropilhas, depois a queimada de todos os anos e, por fim,

as máquinas da civilização, indiferentes e barulhentas,...” destruíram a natureza (p.

211). Neste singelo livro, em que há poucas histórias, sobressaem minuciosas

descrições por meio das quais o autor fronteiriço demonstra o refinado olhar para

aspectos mínimos, visão micro, como bem declara Serejo: “olhos que jamais se

fatigaram em ver o silvestre, o intocável, da realidade vivenciada outrora” (Livro 31,

208). O próprio Serejo reconhece, em plural de modéstia: “Somos observadores,

temos vivido de observações, fomos sempre reparando e anotando”(Livro 31, p.

209).

4.5. AS DIGITAIS SEREJIANAS: ENTRE O VIVER E O CONTAR

Por que não mencionar seu nome, se verdadeiro é o relato? Por que ocultar a personagem? Se ainda vivo, residindo em algum pronto do território de Misiones, seu torrão natal, e tomando conhecimento dos fatos, não se negará em confirmá-los, tenho certeza. (Livro 30, p. 129).

A metáfora de Benjamin (1994, p. 204) referente à ação de narrar com a ação

do oleiro que impinge no vaso suas digitais, pode ser uma boa imagem para

representarmos a escrita de Serejo. Suas digitais são reconhecidas na

personificação da fronteira como tributo que referenda as ações das personagens.

130

Benjamin (p. 205) enfatiza, ainda, que “Os narradores gostam de começar sua

história com uma inscrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos

[...], a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica”. É

o caso de Bode expiatório52, da obra O tereré que me inspira (Livro 35). Aqui o

narrador/autor/Serejo recupera, pela memória narrativa, um fato vivido por ele em

1935.

Neste texto o autor precisa datas – “27 de novembro de 1935”, “18 de outubro

de 1932”, “12 de novembro de 1935” – nomes – “Getúlio Vargas”, “General João

Gomes Ribeiro”, “Luis Carlos Prestes”, “Hélio Serejo” – lugares – “Rio de Janeiro”,

“Ponta Porã”, “Praia Vermelha”, “Ilha da das Flores” –, em um vai e vem de

recorrências anacrônicas referenciadas em uma história particular, embora exista

referência, de fato, ao ocorrido, já que a Intentona – tentativa desequilibrada

realmente existiu; todavia, a narração desses fatos, de forma relativamente

desarticulada, revelam um narrador perdido em suas lembranças, tanto que

interpenetram mundo vivido e reinventado pela ótica da vivência experimentada,

característica recorrente em literaturas de fronteira.

A estrutura narrativa de Bode expiatório também revela o empenho do

narrador/Serejo/autor em contar sua história meio enigmática em relação à

identificação da personagem. Neste texto, fica bem evidente a confluência daquelas

fronteiras já levantadas, as quais dizem da forma dual: contar e informar. Sobressai,

também, o entrecruzamento da inserção do “eu” na narrativa que vinha sendo

conduzida em terceira pessoa, permeando informação com reflexão.

O narrador, emergido da vivência do autor, revela-se na voz queixosa,

injustiçada, sensivelmente amargura “Triste, infeliz e odiosa concepção!”. Seus

questionamentos são vagos, ecoam enfraquecidos pelo texto, embora revelem o

fortalecimento de uma ideologia forjada pela prisão de “uma legião de pobres

inocentes que procuravam uma profissão, uma carreira digna, comendo, não

raramente, o pão que o diabo amassou com os pés” (Livro 35, p.184):

Provavelmente, 5% saberiam responder o que era o comunismo, onde ficava a Rússia, como poderiam vender o Brasil e, finalmente, quem era Luís Carlos Prestes, o chamado Cavaleiro da esperança. Por que, então, comunistas, aqueles pobres soldados, cabos e

52 Em Um destino que marcou (Livro 26, p. 284-293), Serejo recupera trechos e informações contidas em Bode expiatório, ao narrar, intercalando reflexões, a demonstração de amizade de um amigo de quando esteve preso na ilha das Flores no Distrito Federal.

131

sargentos, que sofreram toda sorte de humilhação pelos maus-tratos recebidos? (Livro 35, p.184).

O narrador assume a dor coletiva, não individualiza a sua experiência, fala em

nome daqueles “pobres soldados, cabos e sargentos”, solidariza-se com eles, para,

posteriormente, narrar a experiência “do cabo” n. 3.488, em um ziguezague não-

linear das ações vividas que se confundem entre o “passado do relato e o presente

do discurso” (LEITE, 1991, p. 80) “Agora a ilha, a vassoura sempre em ação, [...]”. E

os questionamentos vagos aparecem, aparentemente postiços, em parágrafos

repetidos “O cabo varredor e auxiliar de cozinha, [...] foi, como tantos outros, o bode

expiatório. Pagou pelo que não fez...sofreu o que nunca deveria ter sofrido” (Livro

35, p. 184).

Ao final, há o agravante da voz do narrador de terceira pessoa que procura

demonstrar o quão exemplar era a conduta, “do moço de força de vontade

inquebrantável”, “modelo de disciplina”, “com adentrado amor cristão”, “dia e noite

abraçado aos seus cadernos” que recebeu a “humilhante esmola do prejudicial pela

fraqueza dos homens [...] (Livro 35, p. 185). No último parágrafo, o narrador une-se

à causa do moço “Oro por eles, sempre, genuflexo, pedindo ao senhor que revele

seus erros e principalmente o grande mal que causaram ao moço fronteiriço [...]”

(p.185).

Podemos inferir que em Bode expiatório há a presença marcante dos lados:

justiça-injustiça, passado-presente, mágoa-perdão, realização- decepção,

alternativo-integrado, vivido-sonhado... como se fossem dois planos de narrativas:

uma história que estava desenhada, pretendida, esperada e outro rumo da história,

cuja interferência se deu por questões meramente históricas de cunho sócio político.

Com isso, o narrador recria, em partes, a história que poderia ter sido, bem como a

que passou a ser, como uma possibilidade de atar as pontas da vida. Bode

expiatório promove na narrativa de Serejo o efeito discutido por Benjamin (1994, p.

212): “O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade

quando percebe a unidade de toda a sua vida...na corrente vital de seu passado,

resumida na reminiscência”.

Na obra de Serejo instaura-se uma voz que conta, abrindo trilha com foice ou

facão, porque retrata o homem que não está para personagem de textos literários,

não há herói, muito menos heroínas. Há pessoas que “para sempre foram

132

dispersadas de sua terra natal” e adentram fronteira, abrindo picadas, enfrentando

de forma - aparentemente - natural dificuldades de toda ordem. O bom senso do

escritor está em não se escandalizar diante dos fatos de morte, injustiça, descaso

humano, exploração e abandono social. Entretanto, sua literatura permite a

investigação de atos e fatos que não estão nos compêndios oficiais, instiga o leitor a

indagar, a ter o desejo de averiguação de sua própria história, caso seja um

brasileiro ou sul-matogrossense.

Souza assim diz da forma com que seu conterrâneo constrói o estilo de sua

escrita:

Serejo não “costura pelo avesso”, para usar uma expressão de Clarice Lispector, indicadora de como em sua obra ela tece a contradição. Em Serejo, a costura é linear e “por fora”,ou seja, sem contradições, como “faca cega” ou a literatura de dois gumes de que fala, Antonio Cândido sobre as literaturas consentidas, isto é, as que desempenham papel saliente no processo de imposição cultural. Mas, curiosamente, ao fazer isso é que o autor expõe as contradições, as quais só se revelam, todavia, ao gume afiado da crítica social. É isso que faz dele um clássico. (SOUZA, 2009, p. 130).53

As considerações avalizam a obra de Serejo à margem do fazer literário, já

que “Apesar dos esforços poéticos, não vai além da rima pobre e do nacionalismo

ufanista” (SOUZA, 2009). Disso Serejo tinha consciência, embora não deixasse de

escrever, além de estudar os autores do Romantismo ao ponto de resenhar “Vida e

obra” de alguns. Entretanto, uma escola literária se constitui por meio do homem que

vive e pensa aquele tempo ou que rompe com o vigente e antecipa um novo fazer. A

concepção de literatura, como “arte da palavra” compreendida como “[...] mediações

estéticas presentes nas grandes tramas que surpreendem [...]”, pode não ocorrer no

fazer serejiano. Por isso, segundo Arguelho, seus contos acabam “[...] caindo mais

no domínio da crônica memorialística, o que confere à sua palavra um caráter mais

documental do que literário.” Entretanto, a pesquisadora abre fenda para estudo que

vai além dos aspectos estéticos fundamentados na acepção literal de literatura. A

arte do texto de Serejo está na apropriação da linguagem como mosaico em que

transitam vozes de sujeitos dialógicos, constituídos pelas circunstâncias discursivas. 53 SOUZA, A. A. A. de. O balaio do bugre Serejo: história, memória e linguagem. UNESP – FCLAs – CEDAP, v. 5, n.2, p. 114-132- dez. 2009 ISSN – 1808–1967. https://www.google.com.br/#q=ana+arguellho+helio+serejo. Acessado em 20 de março de 2013.

133

O desafio de estudar a obra serejiana reside em desvendar o que está no (in)visível,

aquilo que o discurso camufla ao insistir inserir o outro pela própria voz – do autor –

“que sabe tudo”, como já ilustramos em várias passagens deste estudo.

Para Souza (2007, p. 118): “[...] os discursos dos colonizados se constroem

no contexto dos discursos dos colonizadores e vice versa, que por sua vez,

constituem as condições de existência do texto – de sua escritura tanto na sua

produção quanto na sua recepção”. Ainda exaurindo a metáfora avaliamos, com

base em Bhabha (2003, p. 136), que a “[...] questão da representação do colonizado

nas literaturas coloniais e pós coloniais precisa ser vista no contexto de um conceito

de literatura como prática ou processo discursivo e não meramente mimético”.

Provocação e desafio a que nos lançamos, sobretudo, quando Serejo narra pelo viés

de seu ponto de vista, colocando palavras na boca de suas personagens ou tirando-

lhes a autonomia da voz, quando fala por elas. Esse emudecimento vai ressoar bem

mais do que se fosse dada voz, autonomia e iniciativa aos sujeitos dos ervais.

El Viejito Poincaré (Livro 30, p.103) o narrador de terceira pessoa conduz a

apresentação do local de origem da personagem pela voz do “disse-me-disse”:

“Dizia a todos que viera em uma comitiva no bojo de uma carreta paraguaia”. Em

seguida, a voz de terceira pessoa dissipa-se, e abre espaço para um narrador-

reflexivo, um defensor da nômade personagem. José Aleixo ao prefaciar Palanques

da terra nativa, livro 31, avaliza: “Hélio Serejo, porque a sua voz é a voz do Brasil

esquecido” (Livro 31, p. 176). Um Brasil onde um Estado (Mato Grosso) começa a

ser formado pela força da mão de obra de sujeitos “sem lenço e sem documento”,

como o Poincaré e tem na voz do narrador o visto para seguir em frente. Com isso,

Serejo se coloca como porta-voz de um “Brasil esquecido” e sai em defesa “de

personas” que “perderam”, momentaneamente, a identidade, pois “A pobreza, o

subdesenvolvimento, a falta de oportunidade podem fazer as pessoas a migrar, o

que causa o espalhamento, a dispersão” (HALL, 2003, p. 28).

Com essa declaração, inicia-se a preparação para o enigma da trama ou

antecipação do drama vivido pela personagem. O narrador começa a antecipar as

suspeitas e faz isso por meio da indagação – espaço aberto, portanto, para o leitor

interpretar, posicionar-se, já que, mais adiante, este poderá recuperar seu

posicionamento ao conhecer a identidade do chegante que não tinha documento de

identificação, mas cuja história vai sendo revelada por meio de seus atos, ações,

pela sua relação trabalhista.

134

O fato de se produzir uma personagem inicialmente de memória fraturada, um

homem “ximbo”54, e fazê-lo aceito pela realidade de linguagem, poderá ser

compreendida como os questionamentos levantados por Achugar (2006, p. 317)

referentes aos vínculos e (des)vínculos entre o eu e o outro. Questionamos: não

será Hélio Serejo o “eu” vendo-se no “outro”, ou o “outro” sendo o próprio “que veio

de longe, como vemos na seguinte passagem: “Os ventos do destino – maus e bons

levaram-me a pagos distantes” (Livro 23, p. 17).

Depois de revelar a identidade da personagem, o narrador trata de inseri-la ao

mundo dos ervais, em seguida “[...] Poincaré veio a conhecer meu pai [...]” e “Uma

semana depois – isto em 1936 – três cavaleiros partiam de Ponta Porá” (Livro 30, p.

103) – Serejo, seu pai e Poincaré. A narrativa prossegue em terceira pessoa, e a voz

que narra o fato passado, vivido por Serejo, já não é mais a voz do jovem filho do

Chico Serejo, todavia, cá está a recuperação da experiência, vivida por meio da

memória. Para Ricoeur (2002, p.76) “A narrativa de ficção é quase histórica, na

medida em que os acontecimentos irreais que ela relata são fatos passados para a

voz narrativa que se dirige ao leitor”. O questionamento da voz que apresenta a

personagem, procura abonar o passado e dar crédito a favor da “bravura”, da

utilidade que o braço forte do homem físico de que o erval precisava para fazer

progresso capital.

A história de Poincaré vai sendo montada pela relação afetiva com que o

narrador-personagem a vivenciou durante o tempo em que conviveram. Elpídio Reis,

prefaciador da obra referendada, considera que “Seu Viejito Poincaré” para nós,

fronteiriços, nada mais é do que o retrato de tantos outros amigos paraguaios com

quem convivemos irmanados na mais doce amizade” (Livro 30, p. 101).

Para estender a relação, misto de compaixão e amizade, entre as

personagens, devemos considerar o contexto histórico em que ocorreu a Guerra e

as consequências pós guerra. Na fronteira Brasil-Paraguai do sul do Mato Grosso do

Sul, não se propagou animosidade entre os habitantes, entre os poucos habitantes

da fronteira. Para Tolentino (1986, p. 95): “A ocupação paraguaia trouxe ao solo do

sul de Mato Grosso completa devastação e vazio populacional dos raros núcleos

existentes na época. Foi, portanto, um retrocesso na lenta marcha da ocupação

dessa região”.

54 Terminologia usada pelos fronteiriços para designar um sujeito sem documentação, sem família, sem origem.

135

Serejo reafirma essa irmandade no conjunto de sua obra ao resgatar,

constantemente, personagens que saíram do Paraguai “Eram todos de

nacionalidade paraguaia, inclusive “Caraícho, meu parceiro no jogo de “bolita”, e

companheiro de soltar “pandorga” ou “Na história da erva, sempre, existirá um lugar

para os Balbuenas, esses extraordinários irmãos paraguaios, exemplos de

perseverança, decência, cavalheirismo e amor ao trabalho” (Livro 31, 58).

Ao longo da narrativa, Serejo vai dando competência performática ao

Poincaré ao ponto de transformá-lo em um faz-tudo-e-mais-um-pouco da ranchada:

“Um homem que o dia todo, não parava. Era um azougue. Fazia de tudo, sempre

lesto, divertido, atencioso, animadíssimo: Poincaré” (p.106).

Mas “A desgraça do Poincaré foi essa traiçoeira maleita...”.

O desfecho da história – aguardado pelo leitor – revela-se pela voz do

condutor dos fatos vividos pela personagem. Se, no início da narrativa, tinha-se a

ilusão de que Serejo estava contando um fato realmente vivido por ele e seu pai, no

andar da narrativa, pode-se se inferir que já não se trata tão somente de ocorrência

datada, factual, uma vez que a história da personagem foi incorporada pela relação

que o narrador estabeleceu com o contexto histórico-afetivo da época em que os

fatos foram produzidos, à custa de linguagem. Para Freitas (1986, 13) “Não se pode

conhecer o que já foi, através de documento, senão solicitando da imaginação os

seus recursos topológicos. Mediante esses recursos, o historiador conhece

reconstruindo, mas sua reconstrução é uma figuração”. Essa figuração resulta no

que aponta Freitas (p.13) ao dizer que quando um escritor se volta para o passado

motivado pela memória “[...] ele vai visar a exprimir desse passado aquilo que ainda

não foi dito, aquilo que dele está reprimido ou latente, para assim explorá-lo em

todas as suas virtualidades e prolongá-las”. Essa relação pode ser perceptível

quando Serejo reconta a dramática história que a personagem confidenciou ao seu

pai na época em que viviam nos ervais. Mais uma vez, sobressai uma voz de

clemência em defesa do homem sofrido, daquele cuja identidade foi esquecida,

como é o caso do teniente-secundo, o próprio Poincaré:

A longa conversa foi amistosa, porém franca. Era necessário [...] Poincaré, humildemente, contou tudo [...] efetivamente tinha o posto de teniente-secundo, num regimento revoltoso, organizado às pressas, para, numa ação rápida derrubar o governo. [...] Contou que, com o posto que tinha, comandou tropas, aprisionou, surrou,

136

feriu e matou centenas de civis e militares, fiéis ao execrando governo que dirigia os destinos do Paraguai. [...] Tendo por lema na guerra como na guerra, nunca teve complacência. O que queriam era vencer, esmagar para sempre o partido dominante. (p.109).

Com isso, a conduta da personagem se justifica pelas circunstâncias

históricas do acontecimento: “E as ordens dos superiores eram severíssimas: atacar

sem piedade, destruir o que representasse estorvo e...matar. Foi o que ele fez,

cumprindo ordens”. Se histórico ou ficctício não é colocado em discussão. Após

revelar a sua identidade “teniente secundo de caballeria, a data e...Asunción del

Paraguay (p.109), a mesma voz que havia “esquentado” a identidade de Viejito ao

se revelar quem era, começa a desconstruir conceitos que, até então, foram

desconsiderados: “El Viejito” um desertor das fileiras do Exército paraguaio? Ou, um

fugitivo da última revolução de tanta ferocidade e sangue? O vão identitário da

personagem começa a ser preenchido e o narrador receptivo, muda de opinião

“Tinha responsabilidade – está se referindo ao pai Serejo que abrigou o viajante sem

saber sua procedência – porque, afinal de contas, estava abrigando em sua

ranchada um desconhecido. (p. 110). Após contar sua história, a personagem se

afasta do convívio dos demais e vai ter como único companheiro o bugre Likaua, o

qual confessa a Dom Serejo que o companheiro “ta ficando médio loco”. Realmente,

Viejito enlouquece e, finalmente, passa de “contador de história, o jovial, o

eternamente bem humorado, para um frangalho humano, imagem dolorosa de uma

revolução hediondamente sangrenta, enfim, um psicopata, provavelmente,

irrecuperável...” (p. 111).

Entregue ao exército paraguaio, recebe a sentença de fuzilamento por ter sido

“[...] um assassino execrável, uma besta-fera, cujo maquiavelismo aterrorizava a

todos” (p. 113). Embora sua identidade, “um tipo hediondo”, seja revelada, a

narrativa se encerra homenageando a personagem, a qual emprestará o nome à

ranchada “Rancho Poincaré” devido ao “preito de gratidão. Assim, a narrativa

serejiana traz a luz do presente um tempo histórico em que a fronteira Brasil –

Paraguai estava sendo constituída por chegante, em específico, por um sujeito

procurado pela polícia do Paraguai devido aos crimes cometidos em seu país.

Prática muito comum na história da humanidade em se tratando de recomeçar a vida

em outro lugar.

137

A interface entre “conhecer” o vivido – acontecimento individual – e a

transformação da vivência em experiência que se materializa por meio da narrativa,

pode ser reconhecida no texto de Serejo, quando o narrador adianta ações, suprime

partes, conduz seu escrito de tal forma que o leitor aceite o “drama” vivido pelo

velhinho.

A fronteira entre o vivido e o contado configura-se na atuação dupla do

narrador que conta “seus fatos” – personagem, portanto: “Fiquei em Guairá, aos

cuidados do Dr. Batista, único médico da localidade, tratando de um berne

arruinado” (p.113) e sem protocolo retoma a narrativa em terceira pessoa, contando

o que o pai viu, falou e concluiu na viagem que fez à Vila Encarnación, embora o

narrador não estivesse presente esta viagem realizada por seu pai para saber

notícias do ex-Poincaré, agora louco. A estrutura narrativa descrita em El Viejito

Poincaré está presente, em boa parte das narrativas, bem como a posição de

narrador complacente, espécie de guia condutor do chegante.

Ao contar o bárbaro crime que “[...] denegriu Mato Grosso, como também

enxovalhou a própria nação” (Livro 26, p. 268), o narrador estrutura a narrativa, Satu

(Livro 26, p. 265-275), usando os mesmos recursos de enredo já descrito em El

Viejieto Poincaré. O narrador, misto de contador com função de quem registra os

fatos em uma audiência, recepciona o chegante: “Estamos em abril de 1932. Ao cair

da tarde, escoltado ...chega a Ponta Porã o barbaquazeiro ...” e para contar o

assassinato do pobre moço, amigo de crianças, prestativo, com aptidão para várias

atividades braçais – tal qual Poincaré – vai intercalando fragmentos de acertos de

conta entre assassinos, promesa a cumplir feita aos pés de La Virge de Los

Milagros (Livro 26. P. 275).

Em defesa da injustiça sofrida pela personagem Satu, Serejo surpreende ao

depor que o crime na “fronteira abandonada” propagou livremente, sobretudo, nos

trabalhados ervateiros, local em que o “[...] mando e a lei, inexorável, a sanguinária

comblein e o teyu ruguái, terrível chicote feito com o rabo de lagardo-papo-amarelo”

(Livro 26, p. 269).

Abre uma espécie de jurisprudência para os assassinatos se justificarem.

Nem mesmo a personagem “eu”, o guri Serejo, aquele que ao completar catorze

anos ganhou um petiçinho de seu pai, o Guavira, deixou de sentir o gosto da

vingança do “monstro de pala” que lhe derrubou de seu petiço, ocasionando um

“tombo de afrouxar os intestinos”, em atitude de covardia. Mas, na fronteira o

138

castigo, quase sempre, vem a galope e o espetáculo contínuo do acerto de contas

está incorporado aos hábitos e costumes dos viventes da região.

Em outra ocasião, “o rapagote de dezesseis anos, que há bastante tempo já

convivia com os heróis anônimos e que sofria também o sofrimento de cada um,”

(Livro 30, p. 146), tentou defender um velho coitado pedindo ao desalmado ervateiro

que não deixasse o velho amarrado. Recebeu um não: “– O que você sabe das

coisas, porcaria de menino fedido?” (p. 146), referindo-se ao cheiro do enxofre que

Serejo usava para tratar de uma sarna brava. O barbaquazeiro recebeu violentos

chicotaços, mas... “Muitos anos se passaram”... e o destino, segundo o narrador, é

muito caprichoso: o ervateiro monstro foi assassinado pelo neto do barbaquazeiro

que dormira amarrado e “tivera o corpo lanhado de chicotaços pelo hediondo crime

de haver se apossado de uma garrafa de pinga especial” (Livro 30, p. 146).

Para Benjamin (1994, p. 221) “O narrador é a figura na qual o justo se

encontra consigo mesmo”, e no caso de Serejo, que há muito vem sendo discutido,

o autor/narrador/personagem proporciona o encontro das alteridades que passaram

a constituir a identidade do sul-matogrossense – que Serejo também é – em uma

dinâmica bem mais ampla do que o binarismo, brasileiro-paraguaio,

branco/indígena, erval/cidade, uma vez que “a hibridização não é metáfora, tão

somente, dos encontros, fusões ou da mestiçagem cultural, estética ou política. É,

de forma crítica, uma bricolagem movediça dos múltiplos mundos culturais” (GADEA,

2007, p. 45). Múltiplos que se aglutinam - ou não – na formação processual e

contínua de identidade que se revela nas relações estabelecidas pelas personagens

resgatadas pelo narrador serejiano. Tanto que o próprio narrador reconhece-se um

sujeito multifacetado, em processo contínuo de formação: “Sou um pouco de cada

um. Não poderia ser diferente. Sou produto desse meio bravio. Na violência

inopinada. Na quentura do sangue. Na mesclagem que carrego comigo, como se

fosse a minha própria sombra” (Livro 30, p. 144).

Assim, o nativo da fronteira, o jovem que se viu obrigado a retornar à terra

natal e enfrentar os ervais, produziu, ao longo de 60 livros, uma literatura por meio

de possíveis “cochilos, falhas e os pequenos equívocos” (Livro 33, p. 305), bem mais

ampla que a representação binária de sujeitos que chegaram e foram recepcionados

pelos sujeitos que já estavam no sul do Mato Grosso do Sul. Serejo avança “além”

concepção dual iluminista. Embora, o contexto central de sua obra esteja

perpassado pela tradicional relação de poder entre colonizado e colonizador,

139

particulariza enfoque “sociológico de uma região e de uma época” (Livro 31, p. 176),

muito peculiar, sobretudo, nas narrativas em que o processo contínuo das relações

pessoais vai desenhando o traçado da história do sujeito em construção constante.

Em se tratando, dos Estudos Culturais é a maneira mais compreensível de se

abordar a complexidade do viver fronteiriço, e lidar com a identidade, com os traços

culturais e históricos de um tempo, povo e lugar, entrelaçados com a memória de um

filho da terra que um dia teve de partir, mas não deixou de honrar uma possibilidade

da história imaginada pelo “eu” do fronteiriço que se faz escritor.

140

CONSIDERAÇÕES FINAIS Por isso, quando um andante

Se faz chegada, Avante! Já vem o aperto de mão.

Se chega com o sol bem alto, O fronteiriço num salto

Oferece-lhe o tereré.

Mistura junto da erva Um jujo do mato, forte!

[...]

[...] Terra de guasca valente, Mistura de muita gente.

Bertolucci, Lora. “Terra fronteiriça”. In: Eu, e o mundo meu.1984.

Recuperando o desejo geral deste estudo: como “[...] a imensa fronteira

abandonada” (Livro 23, p. 93) está representada pelo contar do homem local que se

integra e multifaceta em autor/narrador/personagem, avaliamos indícios de que

Serejo tenha resenhado, no conjunto de sua obra, com mais incidência, as relações

de força, mando e comando de um estado de poder exercido pela Companhia Matte

Larangeira dentro do próprio Estado do, então, Mato Grosso. Essas relações, pelo

olhar do fronteiriço, recuado no tempo e local, fortalecem o convívio entre os que

estavam e os que “foram chegando”, os quais passam a viver dominados pela força

do trabalho braçal.

Os que vieram e se “converteram” em “homens de aço” fizeram da pretensão

de dias melhores, do “além”, tão discutido por Bhabha, um “espaço de intervenção

no aqui e no agora”. A atitude de reconverter a expectativa do “além”, no hoje, pode

ser compreendida como a ausência de perspectiva além vida no “inferno do caá”.

Recuperando, então, a vida do autor e os fatos históricos, atribuímos a

Serejo, no conjunto de sua obra, a “bravura”, “perseverença” e “fé” em não se deixar

corromper pelos ideais literários acadêmicos, tanto que avisa a Academia na

ocasião de posse: “Serei aqui, caboclo rústico, de gestos desengonçados, homem

fronteiriço...” (Livro 50, p. 183) e continua escrevendo, mesmo sem ter um projeto

literário, embora tenha desejo de escrever muitos livros.

Acontece que as ações de vida de Serejo, as quais consideramos como

aspectos externos, preponderantes para a interpretação da obra, levaram-nos a

141

avaliar considerações relevantes, tais como: O Trilhador de todos os caminhos,

denominado por Campestrini, é metáfora de sua própria obra e sendo filho da

fronteira, transfigura-se em metáfora da história da formação do Estado.

Depois, a experiência e o conhecimento da voz que conta, permeando

inserções de histórias pessoais com histórias reinventadas de sujeitos em trânsito na

fronteira de mata adentro, ressoa polifônica, um mosaico de trilheiros de vozes que

dizem da formação da fronteira. Se quisermos ouvir a voz do nativo, para sabermos

suas considerações referente à Guerra e ao empreendimento da Matte, ouviremos

a voz de Serejo dando “carta branca” aos que vieram do país vizinho, sobretudo, por

dois motivos – experiência na extração da erva e desprestígio social, político e

econômico em tempo de Guerra perdida. Ouviremos, ainda na voz de Serejo, a força

do ideal colonizador e a extensão de lastro cultural até mesmo em “fronteiras

abandonadas” e início de século XX.

Transparecem em atitudes, ações e comportamentos do

narrador/sujeito/cidadão/Serejo as marcas do império colonizador, as quais fincam

raízes e brotam em narrativas em que as personagens – e o próprio Serejo – estão

sempre muito agradecidas pelos que vieram servir de mão de obra para explorar o

capital nativo e reconhecidas por explorarem – no caso, a Matte – aquilo que o

Estado não deu condições para os que aqui estavam explorar devido à miséria

intelectual, cultura e social. A história de vida de Thomaz Larangeira representa

muito bem as razões que o levaram a realizar o maior empreendimento da História

da Fronteira: era um “homem viajado”, tinha conhecimento, foi beneficiado

politicamente; adicionou tais privilégios ao “faro” comercial e ficou para a História

como mártir dos ervais, embora muitos anônimos tenham sido martirizados.

Outro aspecto merecedor de olhar por debaixo das trilhas, incide na

possibilidade advinda de teorias periféricas, as quais alargam a visão e permitem a

relação da vida com a obra, sem que se tenha de “matar o autor”. Em consequência

disso, avaliamos a história pessoal do autor: não era Serejo um “homem viajado”,

também? Não será o deslocamento um fator contribuinte para que tivesse saudade

e, saudoso, se recordasse e, ao recordar refizesse parte de sua história que é parte

da história local, do Estado e das demais histórias de povoamento?

Retomemos, então, as partes já analisadas: Serejo começa a vida em

trânsito, já que a família se desloca da fazenda em que nasceu, São João – do rural

– para o povoado de Ponta Porã aos dois anos e lá cresce fronteiriço de passadas

142

secas. Ao passo que vai crescendo, não se sabe ao certo, começa a “pespegar

gosto” pelas coisas de leitura e escrita, tanto que, como já anunciamos, escreve – do

conteúdo pouco se sabe – para um jornal de uma currutela próxima a Ponta Porã.

Como seu pai, ele também tinha relativa experiência de vida em trânsito, e já tinha

exercido função política; possivelmente, essas experiências lhe proporcionam

condições para que pudesse, embora em escala menor, montar um

empreendimento, de bolicheiro; passa, então, a dono de ranchada. Em El viejito

Poincaré, há boa referencia a este tempo. Nesta ocasião, o jovem Serejo, vai aos

poucos – primeiro tudo anota e fica alarmado com a realidade –, se adaptando ao

trabalho no erval ao ponto de se “tornar um verdadeiro ervateiro”, experimentando

pela força da necessidade, várias funções. Além do trânsito nas trilhas, Serejo

“sobrevive” à dramática e lendária aventura na Ilha das Flores, contada em Bode

expiatório. O cabo escritor que havia estreado “nas letras” em 15 de novembro de

1935, volta ao seu local de origem “Um farrapo humano”. Seu primeiro “livreto”,

Tribos revoltadas, espécie de “novela íncola” com 199 exemplares55 foi “juntamente

com milhares de papéis transformado em cinza, produzida por uma bala de canhão

que acertou o prédio da casa de ordem e as chamas se alastraram [...]” (Livro 1, p.

p.7). Ao chegar em sua terra natal “mais morto do que vivo” “afunda-se no erval”.

Muitos outros deslocamento sucederam-se. Já pai de família e, finalmente, sem

planejar, fixa morada em cidade do interior paulista, de onde passa a escrever boa

parte de seus sessenta “livretos”.

A recapitulação consciente, além de servir como recurso para assegurar a

junção das partes de sua história transcritas da obra, funciona como argumento para

defendermos o atrelamento da história da vida à história da escrita serejiana. O

trânsito entre fronteira do ir – ao erval – e vir – a cidade – e os vários deslocamentos

ao longo da vida fazem parte da constituição do sujeito transculturado, misto de

“bugre com arremedos de homem civilizado” que convive com o paradoxal drama

defendido por Memmi (1997, p. 126): “amor pelo colonizador e ódio de si mesmo”,

sobretudo, quando não levanta voz contra a empresa Matte Larangeira e narra a

passividade com que as personagens submetem-se ao trabalho forçado em prol do

progresso da região.

55 Segundo o autor, “Um único exemplar foi retirado, tendo-o ofertado, a José de Almeida Cardoso, no dia seguinte, em nome do autor, à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro” (Livro 1, p.7).

143

Assim, em seus textos, há vestígios do pensamento do homem local,

colonizado, explorado, desejoso por dias melhores. Do outro lado da constituição

fronteiriça de sujeito distanciado, emerge como força de água borbulhando da terra,

como em Cacimba, as ebulições reflexivas – prenúncio de consciência – de sujeito

misto de “homem-cruza campo e trota-mundo”, que devido às relações

estabelecidas como sujeito em trânsito, começa a “balbuciar” o passado, sem ter

pressa de julgar “a própria sorte”, mas as palavras já explodem, mesmo que

intercaladas pela voz de quem conta pelo outro. O balbuciar teórico fundamenta a

versão de que Serejo, sujeito condoreiro, faz-se voz daqueles andantes “planetas

sem boca” (Achugar) que balbuciam, quando muito, expressões soltas, as quais

Serejo faz questão de cunhar com sotaque, timbre e força vocabular nas narrativas

que compõem sua obra. O que poderia ser considerado ausência estética, mostrado

pelo avesso, resulta em fiapos sui generis da produção de um sujeito destituído da

desgastada classificação binária, brasileiro ou paraguaio, patrão ou peão, colonizado

ou colonizador....Esses fiapos podem ser lidos como a própria formação do sujeito

contemporâneo tão discutido pelos teóricos, aquele que se forma nos vãos das

partes pela hibridação cultural.

Para Canclini (2003, p.34), em locais em que chega a possibilidade de

modernidade, chega, também, a hibridação, fenômeno social que não rompe o

tradicional, entretanto insere-se mesclando características por meio da justaposição

de diferentes temporalidades, artefatos e lugares, sendo que o processo de

hibridação resulta na (re)configuração dos lugares e das identidades. A simplificação

e naturalidade com que Serejo conta as histórias de um tempo e lugar, diferenciam-

se do esforço de muitos autores do início do século XX, os quais defendiam “Um

Brasil brasileiro” pela ótica do olhar estrangeiro.

Serejo pincela na aquarela literária brasileira um ponto vital das discussões

do início do século XX: a bandeira por uma consciência nacionalista, contrária ao

ufanismo patriótico, sem causa, motivado pela ideia de exaltação da pátria,

demonstrada nos textos pela descrição exacerbada, pela visão unilateral da

realidade, cuja expressão se dava por meio de construções, por vezes carregadas

de escolhas e combinações ao gosto europeu. Embora tenha estudado os

românticos, Serejo distancia-se destes e pega trilheiros linguísticos mais

costumeiros à sintaxe e ao vocabulário do homem fronteiriço. Vale ressaltar que

muitos foram os desvios – de toda ordem “corrigidos” na revisão da obra, quando do

144

projeto de organização das Obras Completas. Daí, vagueia a indagação: não seria

desvio estético? Mas isso é plano para mais um estudo.

No caminhar dessas considerações, recorremos a Achugar e nos

posicionamos meio ao estilo interrogativo do teórico: será que pensar o passado

implica pensar a construção do presente ou o presente é construção do passado?

Considerando que há muito espaço para exercitar possíveis respostas, optamos

pela alternativa indicativa de um representante da vertente de que o presente é

passado em tempo posterior aos fatos transcorridos: no caso, o autor Hélio Serejo

ao dedicar a vida escrevendo aquilo que viu, ouviu sobre os que ontem, hoje e

amanhã, nas páginas dramáticas da história da industrialização da erva-mate, serão

heróis anônimos (Livro 23, p. 72).

Diante da realidade ressurgida por meio da obra serejiana, uma forma de

pensarmos a construção das personagens, advém do que assinala Hall: “A

identidade é um desses conceitos que operam ‘sob rasura’, no intervalo entre a

inversão e a emergência: uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas

sem a qual, certas questões-chave não podem ser sequer pensadas” (2003, p.104).

Assim, o meio capitalista, a necessidade de braços para a extração da erva resultou

na movimentação habitacional na fronteira, ao ponto de ir urbanizando o espaço,

favorecendo o agrupamento, modificando o local e impulsionando o povoamento do

Estado. Por meio das relações estabelecidas entre os chegantes contínuos e

estabilizados no local, as quais geraram, sobretudo, trocas (ou não) foi se formando

a identidade do sujeito sul-matogrossense. Consideramos, para tanto, identidade

como processo contínuo, decorrente das relações que vão sendo estabelecidas,

sem que tenha de se despir de vínculos para suplantar outros; concepção antiga que

nos dá sustentação para entender a formação dos “novos sujeitos” sem que

tenhamos de “classificá-los” como “sem identidade”, mas na categoria de “novos

sujeitos”.

145

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