24
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS BRASILEIROS INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS SÃO PAULO, IMAGEM E ESPAÇO olhar e viver a metrópole Texto originalmente apresentado por David William Aparecido Ribeiro, aluno do Programa de Pós- graduação em História Social, para a sua avaliação na disciplina IEB 5025 – A urbanidade e a imagem da metrópole de São Paulo como fatores de sua produção e interpretação, ministrada pelo Prof. Dr. Jaime Tadeu Oliva, no 2º semestre de 2013. SÃO PAULO 2014

São Paulo, imagem e espaço: olhar e viver a metrópole

  • Upload
    usp-br

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS BRASILEIROS

INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS

SÃO PAULO, IMAGEM E ESPAÇO

olhar e viver a metrópole

Texto originalmente apresentado por David William

Aparecido Ribeiro, aluno do Programa de Pós-

graduação em História Social, para a sua avaliação

na disciplina IEB 5025 – A urbanidade e a imagem

da metrópole de São Paulo como fatores de sua

produção e interpretação, ministrada pelo Prof. Dr.

Jaime Tadeu Oliva, no 2º semestre de 2013.

SÃO PAULO

2014

1

A narrativa da história da cidade de São Paulo, especialmente aquela

consolidada à época da comemoração dos seus quatrocentos anos de fundação em

1954, descrevia um caminho trilhado com naturalidade de aldeia à metrópole, cujos

fatos e heróis estavam a todo o tempo lançando as bases do seu sucesso futuro. Esta

narrativa, produzida a partir do presente, construía uma autoimagem que se

opunha à cidade colonial, sendo dela o seu espelho: a mesma cidade, porém

invertida. A aldeia pobre e isolada do mundo colonial luso-brasileiro, com o seu

modesto casario, era o passado humilde da grande e moderna metrópole, agora

articulada às novidades do mundo todo e repleta de símbolos de riqueza.

O objetivo deste texto é o de explorar alguns aspectos da produção das

imagens que narram cidade de São Paulo, observando especialmente a dinâmica de

relações entre elas e o espaço da cidade. A partir disto, algumas problemáticas

podem ser exploradas, entre elas a da autoimagem que se construiu e que se

constrói e a da produção do espaço e das realidades que ele possibilitou, assim

como a inter-relação entre estas duas questões. Além do mais, torna-se possível

construir a partir deste raciocínio uma narrativa da cidade levando em conta

características quase sempre negligenciadas, que dizem respeito à vivência do

espaço urbano, à qualidade do urbano na cidade de São Paulo.

Para realizar este sobrevoo, utilizarei aqui alguns registros fotográficos de

três momentos e fotógrafos diferentes, do final do XIX à metade do século XX:

Militão Augusto de Azevedo, produzidas nas décadas de 1860-1870 e

documentando aquela que é chamada a segunda fundação de São Paulo, nos

tempos de João Theodoro; Guilherme Gaensly, feitas entre 1894-1915, que

apresentam a cidade que se apresentava ao mundo com diversos símbolos de uma

modernidade; e em destaque, German Lorca, cujo trabalho é reconhecido até a

atualidade. Este último destaca-se também pelo conjunto de imagens feitas durante

as comemorações do Quarto Centenário de fundação da cidade de São Paulo, além

de uma extensa produção ao longo das décadas de 1940-1950, documentando

assim um outro período de grandes modificações do espaço da cidade.

A imagem traz consigo uma grande vantagem em relação ao texto:

aproxima-se mais da ideia que se faz do real, pois o escrito pode ser uma criação

sem compromisso com a realidade, permeada de intencionalidades. É frequente

deparar-se com a afirmativa de que uma imagem não pode falsear uma realidade,

2

quando pelo contrário, a ratifica. Deste ponto de vista, é como se não existissem

enquadramentos ou intenções quando de sua produção ou como se nenhuma

realidade pudesse ser inventada a partir da imagem. A imagem é produzida, além de

contribuir para a construção de uma visão de mundo, criando valores e juízos sobre

os assuntos que ela captura.

O espaço urbano, quando assunto destas imagens, não foge desse raciocínio.

A cidade é construída pelas relações que nela se dão, pois elas são a própria

matéria-prima do urbano. Quando o seu espaço é capturado pelas lentes de um

fotógrafo, registra-se não somente a relação entre o indivíduo e a sua escolha na

produção da imagem, como também ficam apreensíveis ao olhar detalhes, sujeitos,

relações, posturas, lugares, entre diversas outras características que podem revelar

como este espaço é vivido. Do outro lado, o olhar possui valores que, individuais

ou coletivos, são agentes produtores do mesmo espaço. É um sucessivo e complexo

processo, do qual participa ativamente a sociedade através de seus diversos

integrantes: indivíduos, associações de moradores, profissionais de diversas áreas,

poder público, instituições privadas, poder econômico, publicidade, imprensa etc.

Não é incomum deparar-se em estabelecimentos comerciais paulistanos com

fotografias antigas servindo de decoração do ambiente. Muitas das imagens

reproduzidas à exaustão são as de Guilherme Gaensly ou de outros fotógrafos que

fizeram diversas vistas da cidade quando vivia a Belle Époque, tendo os seus espaços

transformados pela estética pretensamente europeia. Estas imagens são nostálgicas

de uma cidade do passado, cujas experiências parecem extremamente distantes do

nosso tempo. No entanto, estes registros são relativos a um passado, e destinados a

criar uma imagem de modernidade e beleza para a cidade de São Paulo.

A cidade-paisagem das vistas é um espaço distante, cujo objetivo é mais o de

ser observado de longe do que o de ser vivido. Quando a vista é de um tempo

passado, ela se contrapõe às vistas do presente: observar a imagem da Avenida

Paulista de antes, feita por Gaensly (imagem 6), repleta de árvores, compará-la à

visão que se tem dela no presente, com os arranha-céus que se tornaram a sua

identidade visual, e somente encontrar algo semelhante ao passado apenas nos

bairros preservados da Companhia City não é algo irrelevante. Ao contrário, isto

tanto ajuda a construir uma imagem do espaço do passado como “bom” ou “belo”

quanto ajuda a valorizar o espaço que chegou ao presente e o seu modelo.

3

Segundo Maria Inês Turazzi (2006), em um artigo que trata dos registros

fotográficos das transformações do Rio de Janeiro, discutindo como aquelas

imagens construíram também uma representação dos engenheiros e de seu ofício,

além de servirem de memória visual coletiva da cidade, a prática de registrar

transformações do espaço se confunde com a própria história da fotografia, sendo

que em Paris eminentes fotógrafos documentaram passo a passo a construção de

edificações como o teatro Ópera e a Torre Eiffel, publicadas depois em grandes

álbuns, que celebravam as façanhas da arquitetura e da engenharia nas Exposições

Universais (TURAZZI, 2006, p. 73).

Deste ponto de vista, pode-se considerar que os três fotógrafos aqui

selecionados fazem parte, de algum modo, de uma mesma herança, que faz da

mudança/transformação um dos assuntos principais de sua produção fotográfica.

Cada um, no entanto, lança os olhar para aspectos diferentes destas

transformações, inclusive elaborando um julgamento sobre elas ou contribuindo

para que os seus receptores o façam. De qualquer forma, o objetivo neste texto é o

de compreender e observar como cada um deles trabalhou, notando as implicações

de cada temporalidade em suas produções e buscar ler nestas imagens um quadro

de valores e relações na cidade e sobre a cidade.

Com o grupo de jovens fotógrafos do Foto Cine Clube Bandeirante, a cidade de

São Paulo se movimenta pelas ruas, escala prédios e busca pelo horizonte: o

surgimento deste grupo experimental, na década de 1940, leva a pensar que as

relações dos indivíduos com a cidade passavam por transformações significativas.

Segundo Martins, sociólogo que apresenta a obra de German Lorca sobre São

Paulo, o Clube revolucionou “a fotografia paulistana no modo de ver a cidade”

(MARTINS in LORCA, 2013, p. 7). Provavelmente, a cidade se fazia também

observar de uma nova forma, pois as intervenções em sua fisionomia provocavam

outras formas de apreendê-la. Um dos fotógrafos que emergiram deste grupo e

desta forma de observar e fotografar a cidade foi German Lorca. Nascido em 1922,

Lorca é filho de um casal de imigrantes espanhóis e cresceu no bairro do Brás.

Do ponto de vista de Martins, as imagens produzidas por Lorca, que sobe

no topo de edifícios ou na torre da Catedral da Sé ainda em construção, são como

uma resistência às linhas que se verticalizando roubam o horizonte da cidade. Faz-

se necessário, naquele momento em que a modernidade e os seus signos eram uma

realidade presente, buscar outros pontos de observação para que a vista alcançasse

4

a linha do horizonte. O fotógrafo, que fez registros da construção da Catedral da Sé

e do Parque Ibirapuera, também fotografou cenas cotidianas de bairros como o

Brás e a Mooca, como a busca de emprego e uma revolta popular contra o aumento

da tarifa dos bondes. Lorca foi o fotógrafo oficial da Editora Abril para as

comemorações do Quarto Centenário da cidade de São Paulo. Suas fotografias,

selecionadas por ele mesmo e publicadas em 2013 no volume A São Paulo de German

Lorca (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ Secretaria Municipal de Cultura),

apresentam, como sugere o título, o seu olhar sobre a cidade.

A partir de um primeiro olhar, nota-se que Lorca destaca alguns dos

elementos que marcam a identidade visual da cidade, tais como os Edifícios Altino

Arantes e o Martinelli, o Teatro Municipal, o Viaduto Santa Ifigênia, a Catedral da

Sé, a Oca do Parque Ibirapuera, o Aeroporto de Congonhas. Alguns ainda estavam

sendo construídos ou tinham sido inaugurados há pouco tempo, tornando-se novos

espaços na cidade. Muitas imagens apresentam uma cidade em obras, imagem que

tem até os dias de hoje um forte apelo junto de grande parte da população, sendo

também uma das imagens que se fazem da cidade fora dela.

Antes destas experimentações, provocadas pelas mudanças que alteravam

rapidamente do espaço, os fotógrafos que haviam feito da cidade o seu personagem

priorizavam grandes planos, em uma produção que era difundida no formato dos

cartões-postais. Muito disso se devia sobretudo às dificuldades técnicas, quando a

captura de imagens era possível apenas com um equipamento pesado e que

precisava de um grande período de exposição – e nenhum movimento, para que a

imagem se formasse sem borrões. No caso de São Paulo, o principal nome

relacionado à esta prática e aos postais foi Gaensly.

Quando o suíço, que veio ainda criança para o Brasil, Guilherme Gaensly

(1843-1928) fez de suas imagens os primeiros cartões-postais de São Paulo, a

arquitetura da cidade era outra. O moderno era representado pelas edificações

inspiradas na Europa, especialmente nas construções parisienses e londrinas,

construídas com os lucros do café pelas elites rurais que aos poucos faziam de São

Paulo a sua residência. Seus registros foram, segundo Kossoy, ao encontro das

propostas das elites da época para cidade, destacaram o início da sua

industrialização e apresentaram-na nacional e internacionalmente como uma

5

cidade moderna, a partir do fenômeno que marcou diversas cidades latino-

americanas (KOSSOY in GAENSLY, 2011, pp. 15-17).

Apesar de Gaensly não ter sido contratado por nenhum governo específico,

prestou serviços regulares a empresas e instituições como a Tramway Light & Power

Company, Secretaria da Agricultura, Negócios e Obras Públicas, Comissão

Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo e para a Escola Politécnica.

Instituições estas que estavam diretamente ligadas ao poder econômico da época e

que realizaram grandes intervenções no espaço, cuja documentação iconográfica é

a produção de Gaensly (FERNANDES JR. in GAENSLY, 2011, p. 40).

A construção do trecho da São Paulo Railway na Serra do Mar, as lavouras

de café no interior do estado, os grandes prédios públicos, os parques, os novos

bairros desenhados para as elites, a instalação das linhas de bonde e da iluminação

pela Light estão entre os registros feitos pelo fotógrafo. A ferrovia, a cultura cafeeira

e o imigrante tiveram destaque em sua produção, disseminada em grande escala

por meio dos postais. Desta forma, contribuía para a consolidação da imagem

moderna da cidade e do estado e também auxiliava na propaganda junto aos

europeus que eram então atraídos para o Brasil (FERNANDES JR. in GAENSLY,

2011, p. 46).

Para Hugo Segawa, Gaensly foi o fotógrafo da São Paulo fotogênica e

eugênica. Inexistem ruínas ou espaços insalubres. Suas fotografias eram

o retrato da salubridade, dos espaços públicos arborizados como o Jardim da Luz, a Praça da República (...); da tecnologia nas estruturas metálicas de pontes e viadutos, dos artefatos de produção e distribuição de energia (...);

da moradia dos potentados e o lugar da burguesia, como os Campos Elíseos, Higienópolis, a avenida Paulista (...). Na seleção de imagens, o lado miserável, decrépito, doentio, não era visível. São Paulo parecia uma urbe civilizada, saudável, arborizada, bem-posta, florescente. As fotos de Gaensly que subsistiram forjam uma eugenia urbana para São Paulo (in

GAENSLY, 2011, p. 72-73).

Esta leitura de Segawa para o conjunto da obra de Gaensly se deve ao fato

do fotógrafo não destacar senão os mesmos espaços da cidade, cuja novidade e

modernidade eram as principais características. A finalidade de seus registros, no

entanto, os torna mais compreensíveis e faz com que se retome a ideia de que as

imagens são criadoras de realidades. Ao eleger e capturar determinados espaços,

Gaensly representa o pensamento de uma época sobre o espaço urbano,

6

demarcando quais são os valorizados e salubres, servindo inclusive de propaganda

da cidade para fora do país.

Anos antes da transformação registrada pelas lentes de Gaensly e

eternizadas em seus postais, o carioca Militão Augusto de Azevedo (1837-1905)

realizou um dos registros mais significativos da cidade de São Paulo, criando

inclusive um álbum comparativo de alguns dos logradouros que passavam por

remodelações no último quarto dos Novecentos, quando a cidade deixava para trás

as suas feições caipiras para aos poucos ter em seu espaço os signos da

modernidade. Sendo um dos primeiros fotógrafos estabelecidos na cidade, Militão

sobrevivia de seu estúdio, instalado no início da segunda metade do século XIX.

Provavelmente utilizava a rua para aperfeiçoar a técnica e lidar com adversidades

técnicas e estéticas. Em 1885, comunicou que encerraria as atividades do seu

estúdio, viajando logo em seguida para Paris, de onde voltou com a ideia de

fotografar os mesmos espaços que tinha fotografado em 1862 e assim criar um

álbum comparativo. A confecção de álbuns fotográficos estava em voga na Europa.

(FERNANDES JR. in AZEVEDO, 2012, pp. 11; 19).

O fotógrafo foi durante muito tempo esquecido, ainda que na década de

1950, por ocasião do Quarto Centenário da fundação da cidade de São Paulo,

algumas de suas fotografias tenham ressurgido em forma de cartão postal, porém,

sem creditar o autor. O mesmo aconteceu em três volumes, intitulados São Paulo

Antigo – São Paulo Moderno, publicados pela Melhoramentos, em 1953. Foi

recuperado do esquecimento na década de 1970, tendo textos a seu respeito escritos

no suplemento literário d’O Estado de S. Paulo (FERNANDES JR. in AZEVEDO,

2012, p. 23).

O conjunto das fotos do seu Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo

revela uma cidade onde convivem sujeitos de uma sociedade escravista, homens e

mulheres que apenas passavam pela cidade – os caipiras, o comércio de rua, alguns

homens de cartola e poucas mulheres. O longo tempo de exposição exigido pelos

equipamentos fotográficos transformava as pessoas em movimento pelas ruas em

borrões. Estabelecimentos comerciais são identificáveis por objetos pendurados na

porta, relacionados à natureza do que era vendido. As poucas crianças e mulheres,

à frente de suas casas, denotam a permeabilidade entre estas e a rua, então um

espaço que unia o público ao privado. Muitos sujeitos estão sentados ou apoiados

7

na soleira de portas quase sempre abertas, sendo indicadores de um ritmo de

vivência ainda lento. Uma cidade caipira convivendo com alguns poucos dos

primeiros elementos modernos (FREHSE in AZEVEDO, 2012).

A partir desta consideração sobre o conjunto da obra destes três fotógrafos

sobre a cidade de São Paulo, pode-se questionar o que é a cidade/ o que é esta cidade

para eles, a partir dos pontos de vista expressos nas imagens e dos conceitos que as

permeiam: espaços públicos, edifícios imponentes, casario baixo, ruas, comércio,

gente, automóveis, ônibus, bondes, obras. Uma vez produzidas as imagens e outra

a sua disseminação, os pontos de vista sobre a cidade passam a ser compartilhados

e a atuar ativamente sobre a ideia que se tem do todo, do qual uma sociedade

inteira faz parte, elaborando assim a autoimagem que a cidade tem de si, uníssona

ou não.

Imagem 1. Rua da Constituição, 1862. Negativo de vidro. Reprodução de AZEVEDO, 2012, p. 164.

A cidade de Militão tem toda a diversidade da sociedade, ainda que pobre e

escravista, nas ruas. Nelas, circulam escravizados, homens de terno, poucas

mulheres e crianças, caipiras em trânsito, comerciantes, viajantes. Muitos estão nas

janelas observando o que se passa, inclusive a presença do fotógrafo. Há pessoas

paradas, sentadas.

8

Na imagem acima (imagem 1), a tomada da Rua da Constituição (atual Rua

Florêncio de Abreu), em direção ao Largo de São Bento, a própria presença do

fotógrafo com o seu equipamento, provavelmente um ato inusitado nas ruas da

pequena cidade, é alvo da curiosidade das duas mulheres à janela e do homem

aparentemente jovem parado à porta. Diversas pessoas circulam pela calçada

oposta a estes, sob a sombra projetada pelos sobrados, em cujas sacadas notam-se

outras pessoas a observar a rua. Poucos detalhes das vestimentas são perceptíveis, a

não ser a dos homens parados no centro da imagem, com terno e chapéu,

aparentemente olhando para o fotógrafo.

O enquadramento de Militão coloca o casario em perspectiva, possibilitando

um olhar para o conjunto e não criando uma hierarquia entre as pessoas e os

edifícios. As reações das pessoas à sua presença, demonstradas por suas posturas,

denotam uma curiosidade e uma forte relação com a vida da rua, à qual as casas

são totalmente permeáveis, em comunicação, com todas as portas e janelas

voltadas diretamente para as calçadas. As diferenças relativas entre as vestimentas

das pessoas levam a crer que há certa heterogeneidade, levando em conta que a

cidade tinha uma população ainda abaixo dos 30 mil habitantes.

Ao contrário da imagem sóbria da Rua da Constituição, com casas de

fachadas quase idênticas, a imagem da Rua São João (atual avenida de mesmo

nome), feita por Gaensly na primeira década do século passado, diversos edifícios

de fachadas diferentes estão lado a lado, postos em uma rua que parece

caoticamente comportar pedestres, um homem com mala sobre a cabeça, sob a qual

se lê Padaria Java, R. da Quitanda 12 (um provável vendedor), um bonde para a

Barra Funda e outro para a Água Branca, crianças, um carro puxado por um

cavalo.

Poucos transeuntes olham na direção da câmera, à primeira vista, um

homem com cartola e outro que está ao seu lado, em frente a um estabelecimento

comercial vizinho do Cassino Paulista, e o rapaz que está à frente do bonde.

Outros, apenas caminham, indo e vindo. Ao lado do Cassino, um arco com

lâmpadas e uma pequena janela são do teatro Politeama, que recebeu Sarah

Bernhardt em 1905. Os sobrados certamente eram, como era comum, edifícios

mistos, residenciais no piso superior e comerciais no térreo. A imagem, cujo caos

aparente destoa da cidade organizada e quase sem pedestres das outras feitas por

Gaensly, apresenta um espaço com uma diversidade de pessoas, que poderiam ser

9

inclusive de diversas nacionalidades diferentes. Esta diversidade é também

perceptível nos estabelecimentos que aos poucos vão surgindo pela cidade, fazendo

circular ideias, estéticas e valores que até então não chegavam a São Paulo. Embora

não fosse, naturalmente, toda a população a desfrutar de sua presença, a própria

presença deste ambiente na cidade é em si um fator de diversificação e de

possibilidade à abertura.

Imagem 2. Rua São João, São Paulo, 1901-10. Negativo de vidro. Reprodução de GAENSLY, 2011, p.

121.

Talvez a imagem da multidão e a sua representação sejam um dos mais

comuns elementos da identidade visual paulistana. Nas duas imagens acima, o

olhar do presente pode naturalmente procurar uma relação com a cidade atual, e

tentar perceber como essa multidão ganhou novos contornos. É interessante notar,

inclusive, que as características desta multidão, à procura de sinais que possam

identificar a sua homogeneidade/heterogeneidade, tanto nas feições e nas

vestimentas quanto nas posturas. As imagens 3 e 4, abaixo, são duas fotografias de

autoria de German Lorca, e apresentam duas multidões, em dois momentos e locais

diferentes:

10

Imagem 3. Praça da República, 1950. Reprodução de LORCA, 2013, p. 35.

Imagem 4. Teatro Municipal, 1970. Reprodução de LORCA, 2013, p. 177.

11

As imagens da Praça da República no ano de 1950 (imagem 3) e do Teatro

Municipal, de duas décadas depois (imagem 4) enquadram conjuntos de pessoas,

sendo que no caso da Praça da República, elas são o assunto principal da imagem.

Neste caso, há poucas pessoas aparentemente jovens, apenas duas mulheres no

enquadramento e uma única criança, que é levada pela mão. Além disso, todos são

relativamente semelhantes no modo de se vestir. Na fração da praça captada por

Lorca, não parece haver diversidade. No mesmo quadro, não são visíveis bancos:

todos estão em pé. Alguns olhares buscam uma mesma direção, possivelmente para

o pequeno lago interno, que aparece em outras tomadas do fotógrafo.

Na imagem feita do alto, a multidão perde a vez para o Teatro Municipal,

um dos principais cartões-postais da cidade. Automóveis e ônibus ocupam a área a

eles destinada. A multidão movimenta-se em blocos sobre as faixas de pedestres.

Não se notam pessoas cuja postura indique contemplação, descanso, parada. O

espaço parece ser apenas o lugar por onde se passa para chegar a um destino

qualquer. Os edifícios são grandes conjuntos comerciais, em cujo topo se ostentam

propagandas. Atividades nos seus pavimentos térreos parecem visíveis em poucos

neste enquadramento, o que os tornaria permeáveis à rua.

Este primeiro conjunto de quatro imagens destacam as relações entre a

rua/calçada/praça (o espaço público), as pessoas em contato ou apenas próximas

(a cidade) e os edifícios. Nas três temporalidades, podem ser percebidas diversas

rupturas nestas relações, transformadas sobretudo pelas modificações do espaço e

da mudança da forma como os contatos são possibilitados (ou impossibilitados).

Na quarta imagem, o espaço parece apenas utilitário, tanto para os pedestres

quanto para os veículos motorizados, enquanto nas duas primeiras, facilmente

associáveis à pobreza e à desorganização, respectivamente, todos parecem desfrutar

das mesmas possibilidades. A multidão, tornada um elemento extremamente

visual, além de não viver os contatos que o espaço deveria possibilitar, raramente

está parada (porque não é um indivíduo) ou observa a infinidade de signos

dispostos à sua volta.

Praças, largos, jardins, parques são os espaços que frequentemente esperam

e atraem a reunião, o contato e o convívio entre as pessoas em uma cidade. A sua

imagem deve ser atraente para que estas pessoas sintam vontade em estar neles,

sendo por isso geralmente espaços desenhados com este objetivo, de promover a

vivência coletiva. Um dos primeiros espaços de sociabilidade paulistanos foi o

12

Jardim da Luz, criado em 1800 como Horto Botânico e aos poucos transformado

em passeio público e ganhando quiosques, casas de chá, esculturas, entre outros

melhoramentos. Ao lado da Estação da Luz, ponto de chegada e de partida da cidade

da virada do século XIX para o XX, o Jardim era uma das primeiras coisas a serem

avistadas por quem ali desembarcava. A Estação e o Jardim da Luz estão entre os

espaços mais fotografados e difundidos em forma de cartão-postal por Gaensly, o

que demonstra a grande importância destes espaços na criação de uma imagem

oficial e primordial da cidade.

Junto dessas imagens, nota-se um esforço de associar a cidade de São Paulo

à símbolos de modernidade, riqueza, progresso – e a inspiração inglesa era a que

mais combinava com estes anseios, reforçados por vários costumes introduzidos

(como o de construir casas de chá no interior deste passeio público, representado na

imagem 5).

Imagem 5. Jardim da Luz, São Paulo, 1901-10. Fototipia. Reprodução de GAENSLY, 2011, p. 83.

As vestimentas do grupo de meninas no centro da imagem feita por

Gaensly, e que integra a sua série de postais, aparenta certa riqueza material. Todas

as meninas indicam ser, inclusive, brancas. A pouca quantidade de pessoas na

13

fotografia dá a sensação de tranquilidade, que harmoniza com o ambiente

arborizado e totalmente limpo. Um banco desocupado poderia certamente reforçar

a imagem de tranquilidade, dependendo de quem e de quando se observa. Neste

enquadramento não se nota, mas em outros sim, o gradil que cerca todo o jardim,

separando-o da calçada e tornando-o um espaço de acesso controlado ou hostil a

muitos que desejariam acessá-lo. Para outros, dá a sensação de espaço protegido do

perigo. Diversos elementos apontam para a baixa urbanidade deste espaço, como a

ausência aparente de diversidade e o isolamento do entorno. Mesmo assim, é um

espaço que evoca a ideia de beleza e de salubridade.

A cidade dos postais de Gaensly é limpa, arborizada, com vias largas e

suntuosos edifícios inspirados em modelos europeus. A cidade em movimento e

com gente nas ruas não figura nos seus postais, seguindo o que indicam as técnicas

empregadas nas reproduções de suas fotografias. As fototipias (das imagens 5 e 6)

remetem ao seu uso em cartões-postais. O negativo de vidro, da imagem 2, por

exemplo, dá a entender que esta não foi difundida da mesma forma que as outras.

Imagem 6. Avenida Paulista, São Paulo, 1905-6. Fototipia. Reprodução de GAENSLY, 2011, p. 169.

14

Um espaço exclusivamente residencial, relativamente afastado das ruas do

centro e da sua diversidade, arborizado, com vias mais amplas, assemelhando-se a

um jardim com alamedas. Casas grandes, imponentes, desenhadas em moldes

pretensamente europeus, não contíguas umas às outras. A descrição é a da imagem

6, que traz um registro de algum ponto de vista alto, da Avenida Paulista no início

do século passado. Há pouca vizinhança e pouca densidade demográfica: a cidade é

visível ao fundo, assim como os morros da Cantareira. Não é possível ver nenhuma

pessoa nas ruas.

Esta imagem, que evoca também tranquilidade, bucolismo, contato com a

natureza e refinamento, não é apenas uma fotografia daquela que é considerada a

principal avenida da cidade de São Paulo. Ela representa um modelo de cidade, de

produção do espaço, bastante peculiar. Um modelo exclusivista e que cria um

mundo urbano alheio à cidade. A imagem, que facilmente é associada à beleza, não

será alvo de críticas por sua característica excludente, pelo contrário, será

preservado em outros lugares da cidade, também pouco densos, totalmente

residenciais, arborizados, hostis à circulação da cidade: os bairros da Companhia

City, hoje protegidos em diversas esferas públicas e privadas. Como dito

anteriormente, as imagens não só permitem que percebamos as características do

espaço como contribuem para a sua construção, física e simbólica. É um espaço

para ser admirado em imagens, como uma obra de arte, mas que não tem vida.

A cidade sem gente, ou seja, a cidade sem cidade, é uma imagem recorrente

em alguns dos espaços fotografados por Lorca, que registram a cidade que não mais

se espelhava em Londres e Paris, mas sim nas cidades dos Estados Unidos. Embora

Lorca, no conjunto de sua obra, tenha procurado fazer registros de outros lugares

de São Paulo, fora do núcleo repleto dos edifícios emblemáticos da cidade, o

fotógrafo não deixou de legar documentos importantes da história paulistana, que

atestam a crescente adoção do modelo de cidade que se organizou para o

automóvel.

A tomada do Vale do Anhangabaú (imagem 7), por onde passa um dos

eixos do Plano de Avenidas do prefeito-engenheiro Francisco Prestes Maia,

enquadra, a partir de um ponto de vista privilegiado, alguns dos edifícios que se

tornaram os mais marcantes da paisagem do centro de São Paulo, como o Altino

Arantes, sede do então Banco do Estado de São Paulo, inaugurado poucos anos

15

antes da fotografia, em 1947, inspirado no Empire State Building, emblema de Nova

York:

Imagem 7. Viaduto Santa Ifigênia, 1953. Reprodução de LORCA, 2013, p. 17.

Além do edifício que se destaca no centro da imagem, são identificáveis

outros pontos característicos da região, como o Mosteiro de São Bento, o edifício

Martinelli e também o Viaduto Santa Ifigênia, que dá o título à fotografia. Como

em muitas imagens do autor, há um edifício em construção. A avenida sob o

viaduto tem poucos automóveis e aparentemente nenhum pedestre. Sobre o

viaduto, alguns poucos pedestres passam – hoje se permite apenas a passagem

deles. As construções se tornam mais altas, formando no alto da colina histórica

uma selva de concreto: outra imagem fortemente associada à cidade de São Paulo.

16

O espaço para o automóvel, neste enquadramento, também é visivelmente

crescente.

O mesmo edifício (e o que estava em construção, já acabado) e a mesma

avenida são capturados de um outro ângulo, em uma imagem (imagem 8) que

integra a coleção de fotografias de Lorca das comemorações do Quarto Centenário

da fundação de São Paulo, celebrados em janeiro de 1954. A parada militar do

aniversário da cidade pode passar quase despercebida sob os gigantescos arranha-

céus e a grande quantidade de propagandas, letreiros e parafernálias sobre eles:

Imagem 8. Desfile cívico no Parque do Anhangabaú, 1954. Reprodução de LORCA, 2013, p. 133.

A grande avenida presta-se a um uso bastante comum: o dos desfiles cívicos

em datas comemorativas. As janelas e sacadas dos edifícios que a margeiam servem

então de camarotes para assistir à parada. A imagem dá a impressão de que o

17

fotógrafo intencionou comparar as dimensões dos edifícios em relação às pessoas.

Ambos são personagens bastante explorados visualmente em suas composições

fotográficas. Pode-se interpretar uma preocupação de Lorca com a

monumentalidade dos edifícios, a julgar pelas práticas trazidas pelo seu grupo de

origem, o Foto Cine Clube Bandeirante, de percorrer as ruas e registrar as coisas

que a verticalização roubava da visão da cidade. O ponto de observação é o do

pedestre, que olha para o alto e admira a grandeza arquitetônica e, olhando para a

frente, vê outros semelhantes. A imagem parece propor ao pedestre, a partir do

ponto de vista da rua, a observação da arquitetura, posta em destaque e bastante

diversificada. Esta imagem também ajuda a construir a imagem da grandeza da

cidade de São Paulo, que à época estava em evidência por causa da grande festa do

seu aniversário, imagem esta que não deixa de ter ressonância nos dias de hoje.

Imagem 9. Catedral da Sé em construção. Palacete Santa Helena, à esquerda, 1952. Reprodução de

LORCA, 2013, p. 25.

18

No enquadramento, a cidade são os prédios, vistos debaixo pelo pedestre

que vai perdendo os seus espaços para os automóveis (ou para os desfiles cívicos).

Não se pode sequer indagar se há diversidade ou não nas ruas, porque o pedestre é

tornado espectador da cidade, ao menos em datas comemorativas, como esta que

celebrava a existência de uma cidade ao longo de quatrocentos anos. Cidade

representada em edifícios novos e velhos (de menos de cinquenta anos, muitas

vezes).

German Lorca, ao narrar fotograficamente a cidade de São Paulo, apresenta

diversas tomadas que mesclam a escalada em topos de prédios (não raro

aparecendo uma parte deles em algum canto da fotografia) e o olhar do pedestre,

inserido na vivência do espaço coletivo. A imagem acima (imagem 9), que registra

a construção da nova Catedral da Sé, no ano de 1952, é o olhar de pedestre que

captura também o estacionamento de automóveis à frente do novo templo, no meio

da praça, e a presença de muitas pessoas, cujas posturas marcam indivíduos e não

uma multidão massificada.

Há gente lendo jornal, há crianças sentadas no chão, possivelmente

engraxates prestando serviço aos homens sentados de costas para o fotógrafo, sendo

que um deles parece estar sorrindo. Os trajes são relativamente diferentes,

demonstrando alguma diversidade, ao menos deste ponto de vista. A imagem

prioriza a construção de mais uma novidade no espaço da metrópole, mas não

exclui do enquadramento os sujeitos que vivem aquele espaço, embora a presença

dos automóveis sugira a preferência que estes tiveram e ainda têm nas intervenções

sobre o espaço da cidade.

19

Imagem 10. Largo da Sé, 1887. Negativo de vidro. Reprodução de AZEVEDO, 2012, p. 131.

Retomando o início das representações fotográficas do espaço urbano

paulistano e observando a mesma praça (ou Largo) da Sé, pode-se notar o

crescimento deste que é o marco zero da cidade. A Igreja de São Gonçalo aparece

ao fundo das imagens 9 e 10, anotando uma permanência arquitetônica na

paisagem central de São Paulo. Os carros desta vez são os puxados por cavalos, de

aluguel, surgidos com a chegada da ferrovia, cuja estação não era tão próxima do

Largo. Os seus cocheiros, aparentemente negros, estão a postos. Uma pessoa,

visivelmente negra, conversa com um deles. Outras duas estão paradas,

aparentemente a conversar, na calçada sob o sol, na Rua do Imperador, próximas a

um veículo. Na calçada à sombra, seguem diversos pedestres. Uma pessoa está

sozinha no meio da rua.

À frente do Armazém de Molhados e da Alfaiataria do Progresso, borrões

indicam um pequeno grupo de pessoas em movimento, e não muito longe deles,

um pequeno cão. Compartilhando da mesma construção, sugerida pelo telhado

contínuo, outro estabelecimento comercial. Uma grande casa, destacada à esquerda

da imagem, está com a porta aberta e à frente dela há uma pequena banca, cuja

atividade não é identificável. O enquadramento, que destaca o casario, revela nas

posturas das pessoas um espaço que permite encontros, dada a sua aparente

20

diversidade. O que pode parecer uma cidade pobre, em se comparando às imagens

posteriores da cidade, é na verdade um espaço com urbanidade, congregando

residência, comércio, vizinhança, coletividade e diferenças, além de permitir às

pessoas que nele vivem o ócio, a pausa, a conversa.

Comparando ambos os registros da Praça da Sé, levando em conta os

enquadramentos do espaço, nota-se um lugar onde é possível haver convivência

entre os diversos elementos que vivem o espaço – porque ele próprio possibilita esta

vivência. Por outro lado, são imagens que, se postas lado a lado com outros

registros, como o da Avenida Paulista (imagem 6), por exemplo, possivelmente

seriam tidas como mais feias e mais pobres, considerando a imagem que se faz do

centro da cidade, frequentemente visto como espaço degradado. Além disso, não há

nessas imagens muitos dos símbolos que são ou que se tornaram elementos

distintivos de riqueza na cidade, como a arborização, a fluidez das vias ou ainda as

construções que evocam a novidade/modernidade/arrojo.

Esta narrativa fotográfica do espaço da cidade de São Paulo delineia

nuances de uma cidade cuja urbanidade foi se rebaixando, a partir de um modelo

que foi almejado, referendado socialmente e dotado de valor simbólico. A

sociedade paulistana construiu um espaço no qual se imprimiram as suas

aspirações por riqueza, progresso material e modernidade, valores estes

constituídos a partir de um ponto de vista que não pensou este espaço como público

e coletivo. Tais valores encontraram na difusão de imagens, uma crescente adesão,

tanto dentro quanto fora do país, à medida que a cidade se tornava uma referência

nacional e um ponto de confluência de diversos imigrantes europeus, como no

início do século passado. A imagem constrói e atrai para um espaço que parece ser

perfeito, organizado, salubre, negando a diversidade, talvez a associando à pobreza

e à população não branca. Ao mesmo tempo, a imagem que é construída mira para

os diversos emblemas desses mesmos valores, que com o passar do tempo, vão se

atualizando e incorporando novos signos.

Militão, com o seu Álbum Comparativo, parece ter prenunciado aquela que

se tornou a sina da cidade de São Paulo, como Lofego (2004) discutiu em seu

trabalho sobre o conjunto das comemorações do Quarto Centenário, a de ser uma

cidade sem presente, perdida entre um passado e um futuro. Uma cidade

21

constantemente em obras e criando novos cartões-postais ou imagens capazes de

sustentar o seu poderio econômico, especialmente. Nega-se o passado, por meio da

eliminação de seus vestígios espaciais e imagéticos, e em seu lugar erige-se o novo

(que se torna também um novo passado para o qual olharão os futuros moradores).

A cidade com refúgios bucólicos ou eficiente/rica de algumas das imagens

de Gaensly ou mesmo de Lorca, considerando para tanto alguns signos

valorizados, como o verde (que se tornou um privilégio de alguns poucos espaços da

cidade, os seus “jardins”) ou ainda a selva de pedra (uma das imagens mais

recorrentes da cidade, associada à riqueza material, ao progresso, à modernidade,

ao trabalho), foi e é capaz de construir uma autoimagem bastante positiva da

cidade, junto de muitos de seus moradores, mas não de todos. Lorca, que

fotografou estes elementos, registrou e selecionou para a obra que reúne a sua São

Paulo outros espaços, que apresentam uma cidade pobre, insurgente, com poucos

recursos materiais, e que não compartilha do mesmo capital espacial da tal cidade

nova, rica e pujante. De seu ponto de vista, a cidade é então espacial e

imageticamente desigual.

Considerar uma avenida larga, sem pedestres, arborizada e com casas que

não são realmente vizinhas algo bom, belo e rico, e ter como feio, pobre e ruim um

espaço de casas contíguas, com gente parada nas ruas a observar o movimento,

engraxates, pessoas lendo jornal ou um cão perdido é, por meio da imagem,

construir juízos sobre o espaço, sobre como ele seria bem vivido. É, além disso,

priorizar a aparência visual de um espaço acima da qualidade de sua vivência, das

experiências do coletivo que ele proporcionaria.

Observar estas imagens da cidade de São Paulo, considerando a

temporalidade de cada uma delas e o conjunto que ora representam, leva a refletir

sobre a urgência de uma profunda análise desta sociedade que produziu um espaço

que promoveu o privado e o individual, construindo uma cidade cujas relações são

de pouca profundidade e pouca ou nenhuma solidariedade. A tomada de

consciência de que o espaço é um dos principais meios de promover a integração de

uma sociedade, por ser, além de tudo, onde ela é e está, seria uma das iniciativas

elementares para que o coletivo e o público passassem a ser o verdadeiro objetivo das

políticas públicas que constroem a cidade.

22

Índice das imagens

Imagem 1. Rua da Constituição, 1862. Negativo de vidro. Reprodução de AZEVEDO,

2012, p. 164.

Imagem 2. Rua São João, São Paulo, 1901-10. Negativo de vidro. Reprodução de

GAENSLY, 2011, p. 121.

Imagem 3. Praça da República, 1950. Reprodução de LORCA, 2013, p. 35.

Imagem 4. Teatro Municipal, 1970. Reprodução de LORCA, 2013, p. 177.

Imagem 5. Jardim da Luz, São Paulo, 1901-10. Fototipia. Reprodução de GAENSLY,

2011, p. 83.

Imagem 6. Avenida Paulista, São Paulo, 1905-6. Fototipia. Reprodução de GAENSLY,

2011, p. 169.

Imagem 7. Viaduto Santa Ifigênia, 1953. Reprodução de LORCA, 2013, p. 17.

Imagem 8. Desfile cívico no Parque do Anhangabaú, 1954. Reprodução de LORCA,

2013, p. 133.

Imagem 9. Catedral da Sé em construção. Palacete Santa Helena, à esquerda, 1952.

Reprodução de LORCA, 2013, p. 25.

Imagem 10. Largo da Sé, 1887. Negativo de vidro. Reprodução de AZEVEDO, 2012, p.

131.

Fontes das imagens

FERNANDES JÚNIOR, Rubens; BARBUY, Heloisa; FREHSE, Fraya (org. e apres.).

Militão Augusto de Azevedo. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Cosac

Naify, 2012.

GAENSLY, Guilherme. Guilherme Gaensly. Textos de Boris Kossoy, Rubens

Fernandes Jr., Hugo Segawa. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Cosac

Naify, 2011.

LORCA, German. A São Paulo de German Lorca. Texto de José de Souza Martins.

São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Secretaria Municipal de

Cultura, 2013.

23

Bibliografia

HERNÁNDEZ, Fernando Aguayo. “Los arrebatos del corazón”. In: Varia Historia.

Belo Horizonte, vol. 22, n. 35, jan./jun. 2006.

LOFEGO, Silvio Luiz. IV Centenário da Cidade de São Paulo: uma cidade entre o passado

e o futuro. São Paulo: Annablume, 2004.

LUSSAULT, Michel. « Image ». In: LEVY, Jacques; LUSSAULT, Michel (org.).

Dictionnaire de la Géographie et de l’espace des sociétes. Paris: Belin, 2003. p. 485-489.

Tradução de trabalho de Fernanda Padovesi Fonseca e Jaime Tadeu Oliva

OLIVA, Jaime Tadeu e FONSECA, Fernanda Padovesi. “Reflexões sobre o urbano, a

cartografia e a iconografia: o caso da metrópole de São Paulo”. In: Geografia &

Pesquisa. Ourinhos, São Paulo. vol. 5, n. 2, 2011.

OLIVA, Jaime Tadeu. “A cidade como ator social – a força da urbanidade”. In:

LEMOS, Amália Inês Geraiges e CARLOS, Ana Fani Alessandri (org.) Dilemas

urbanos: novas abordagens sobre a cidade. São Paulo: Editora Contexto, 2003.

PEREIRA, Paulo César Xavier. Des/continuidade e história: o caso da cidade de

São Paulo. In: Anais do Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. vol. 7, n. 2,

2002.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos

frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

TURAZZI, Maria Inez. “Paisagem construída: fotografia e memória dos

‘melhoramentos’ urbanos na cidade do Rio de Janeiro”. In: Varia Historia. Belo

Horizonte, vol. 22, n. 35, jan./jun. 2006.