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2339 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(11):2339-2348, nov, 2006 ARTIGO ARTICLE Sociedade de risco e risco epidemiológico Risk society and epidemiological risk 1 Faculdade de Medicina do ABC, Santo André, Brasil. 2 Instituto de Saúde, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo, Brasil. 3 Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. Correspondência O. C. Luiz Faculdade de Medicina do ABC. Rua Loefgreem 1241, casa 4, São Paulo, SP 04040-031, Brasil. [email protected] Olinda do Carmo Luiz 1,2 Amélia Cohn 3 Abstract The concept of risk entails a broad discussion, ranging from a more general approach, seeking to contextualize it in the dynamic of societal change, to a more specific approach in the field of health, particularly in epidemiological stud- ies on associations. The term “risk” has appeared with increasing frequency in medical journals in the last three decades, but the phenomenon is not exclusive to health and is permeated by the diversity of a notion that hides a conceptual gap. Given this diversity, the current paper be- gins with a literature review to systematize the discussion of risk. The result is organized in three sections: 1) an overview of the discussion on risk within the debate on societal change in the transition from modernity to a new phase of social organization; 2) a summary of various uses of the risk notion in health knowledge; and 3) the establishment of the epidemiological con- cept of risk and its link to clinical medicine. Dangerous Behavior; Epidemiological Studies; Risk Sociedade de risco Risco é um termo bastante recente e essencial- mente moderno. Ele é reflexo da reorientação das relações das pessoas com eventos futuros, numa espécie de “domesticação dos eventos vin- douros1 . Se antes da época moderna o perigo implicava fatalidade, agora ele é ressignificado em controle possível. A palavra risco data do século XIV, ganhando conotação de perigo apenas no século XVI. Den- tre a polissemia do risco, Spink 1 destaca duas dimensões. A primeira refere-se àquilo que é possível ou provável, numa tentativa de apre- ender a regularidade dos fenômenos. A segun- da encontra-se na esfera dos valores e pressu- põe a possibilidade de perda de algo precioso. A incorporação da noção de risco foi fruto de transformações sociais e tecnológicas. Está articulada à laicização da sociedade e às trans- formações nas relações econômicas do capita- lismo comercial, à abertura do comércio e ao concomitante desenvolvimento de estruturas políticas inéditas, como a soberania sobre ter- ritórios nacionais. É nesse contexto que emer- ge também a teoria da probabilidade, outro fe- nômeno associado à noção de risco. “O pensa- mento probabilístico favoreceu o terreno neces- sário para pensar os riscos como passíveis de ge- renciamento1 . O cálculo de risco está intima- mente relacionado à conformação e valoriza- ção da segurança.

Sociedade de risco e risco epidemiológico

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(11):2339-2348, nov, 2006

ARTIGO ARTICLE

Sociedade de risco e risco epidemiológico

Risk society and epidemiological risk

1 Faculdade de Medicina do ABC, Santo André, Brasil.2 Instituto de Saúde,Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo,São Paulo, Brasil.3 Faculdade de Medicina,Universidade de São Paulo,São Paulo, Brasil.

CorrespondênciaO. C. LuizFaculdade de Medicina do ABC.Rua Loefgreem 1241,casa 4, São Paulo, SP 04040-031, [email protected]

Olinda do Carmo Luiz 1,2

Amélia Cohn 3

Abstract

The concept of risk entails a broad discussion,ranging from a more general approach, seekingto contextualize it in the dynamic of societalchange, to a more specific approach in the fieldof health, particularly in epidemiological stud-ies on associations. The term “risk” has appearedwith increasing frequency in medical journalsin the last three decades, but the phenomenon isnot exclusive to health and is permeated by thediversity of a notion that hides a conceptualgap. Given this diversity, the current paper be-gins with a literature review to systematize thediscussion of risk. The result is organized inthree sections: 1) an overview of the discussionon risk within the debate on societal change inthe transition from modernity to a new phase ofsocial organization; 2) a summary of varioususes of the risk notion in health knowledge; and3) the establishment of the epidemiological con-cept of risk and its link to clinical medicine.

Dangerous Behavior; Epidemiological Studies;Risk

Sociedade de risco

Risco é um termo bastante recente e essencial-mente moderno. Ele é reflexo da reorientaçãodas relações das pessoas com eventos futuros,numa espécie de “domesticação dos eventos vin-douros” 1. Se antes da época moderna o perigoimplicava fatalidade, agora ele é ressignificadoem controle possível.

A palavra risco data do século XIV, ganhandoconotação de perigo apenas no século XVI. Den-tre a polissemia do risco, Spink 1 destaca duasdimensões. A primeira refere-se àquilo que épossível ou provável, numa tentativa de apre-ender a regularidade dos fenômenos. A segun-da encontra-se na esfera dos valores e pressu-põe a possibilidade de perda de algo precioso.

A incorporação da noção de risco foi frutode transformações sociais e tecnológicas. Estáarticulada à laicização da sociedade e às trans-formações nas relações econômicas do capita-lismo comercial, à abertura do comércio e aoconcomitante desenvolvimento de estruturaspolíticas inéditas, como a soberania sobre ter-ritórios nacionais. É nesse contexto que emer-ge também a teoria da probabilidade, outro fe-nômeno associado à noção de risco. “O pensa-mento probabilístico favoreceu o terreno neces-sário para pensar os riscos como passíveis de ge-renciamento” 1. O cálculo de risco está intima-mente relacionado à conformação e valoriza-ção da segurança.

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No campo da saúde, o risco individualiza-se no que a autora denomina “autogerencia-mento”: supõe-se que as pessoas, valendo-se deinformações suficientes, adaptem seus com-portamentos, eliminando todos os riscos e as-sim alcancem a saúde plena.

Apoiada em revisão bibliográfica, Spink 1

periodiza três estágios de desenvolvimento damodernidade: a pré-modernidade, a moderni-dade clássica e a modernidade reflexiva.

A característica da modernidade clássica –ou sociedade industrial – é a ruptura com a tra-dição da pré-modernidade, dissolvendo estru-turas feudais, tais como os privilégios de hie-rarquia baseados em herança ou em afiliaçõesreligiosas.

Por seu turno, a modernidade reflexiva, oumodernidade tardia, ou ainda sociedade de ris-co, como tem sido denominada por outros au-tores, rompe com as estruturas da sociedadeindustrial, principalmente em relação à ciên-cia e à tecnologia, às formas de trabalho, ao la-zer, à família e à sexualidade. Apesar dessesrompimentos, certas estruturas próprias damodernidade clássica se mantêm, rearticula-das com a nova dinâmica social. Trata-se, porexemplo, das desigualdades sociais que se apro-fundam na modernidade reflexiva.

Os perigos introduzidos, induzidos e fabri-cados pelo processo de modernização – um aci-dente nuclear, a contaminação do mar, os po-luentes que acabam com a camada de ozônio emuitos outros – estão na base da definição damodernidade reflexiva como sociedade de ris-co 2,3. Como característica dessa sociedade,tem-se um processo de substituição das bio-grafias marcadas pela inserção em classe porbiografias reflexivas, inscritas a partir de deci-sões individuais, implicando uma diversidadede estilos de vida. Contudo, as desigualdadessociais se aprofundam; a estrutura da famíliase altera, configurando “famílias negociadas”;as relações de gênero se modificam; a sexuali-dade se redefine, e assim por diante. Aparecemnovos movimentos sociais como contrapontoàs situações de risco, mas também como resul-tado de uma busca por identidades sociais epessoais, já que os referenciais de classe e fa-mília se romperam.

Outra característica importante da socieda-de de risco consiste na reflexividade: a revisãocontínua com base em novas informações ouconhecimentos de uma grande parte dos as-pectos da vida social 1,2. Spink 1 mostra comoexemplo o questionamento da ciência. O mé-todo científico aplicado à natureza, às pessoase à sociedade vem progressivamente sendo con-frontado. Esse confronto tem evidenciado seus

defeitos e problemas secundários. Se o questio-namento se inicia no próprio campo da ciên-cia, em determinado momento ele ganha o mo-vimento social reivindicando uma reflexão ética.

Em outro texto, Spink 4 aponta o surgimen-to, a partir da década de 50, de um campo inter-disciplinar, denominado de análise de risco, queengloba três áreas de especialidade: o cálculodos riscos (risk assessment), a percepção dosriscos pelo público e a gestão dos riscos. Umaquarta área mais recentemente foi incorporada,a da comunicação ao público sobre riscos.

A gestão dos riscos é um fenômeno novo,uma forma de governar populações, caracteri-zando o fim da sociedade disciplinar, ou da mo-dernidade clássica, e o princípio da moderni-dade reflexiva, a sociedade de risco. Para cadarisco identificado, criam-se agências governa-mentais reguladoras com a contratação de es-pecialistas e a formação de comissões técnicasresponsáveis pela avaliação dos riscos. Comodecorrência, uma nova área de conhecimento éestabelecida com centros de pesquisa, associa-ções científicas e periódicos especializados.

Nessa transição, muda a natureza dos ris-cos, que passam a ser mais complexos, produ-tos do desenvolvimento da ciência e da tecno-logia, numa tendência à desterritorialização eà globalização. Conseqüentemente, o carátersistêmico dos riscos e a consciência da sua im-ponderabilidade acabam por definir a necessi-dade de mecanismos complexos de gestão.

As formas de controle passam a necessitarde redes interligadas de informação e surgemsistemas de controle transdisciplinares, trans-departamentais e transnacionais. A ética deixade ser prescritiva e passa a ser dialogada, novasmodalidades de resistência emergem e, utili-zando os avanços da comunicação, ganham di-mensões globalizadas.

Outra característica da sociedade de risco éo fato de que a informação prescinde, em gran-de parte, da educação institucionalizada e pas-sa a ser um processo contínuo, capilar, que sedifunde através das várias tecnologias de infor-mação. Essa capilaridade também implica no-vas formas de vigilância, traduzidas no auto-controle do estilo de vida e no monitoramentoconstante do indivíduo. Tal característica é de-nominada gestão no nível da pessoa. Spink etal. 5 destacam o papel fundamental da mídiano processo de ressignificação da noção de ris-co, em decorrência da sua onipresença e dagrande visibilidade que confere aos aconteci-mentos, difundindo a informação.

Há, no entanto, uma outra dimensão do ris-co, expressa na conexão entre risco e aventurados jogos de vertigem, como, por exemplo, as

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disputas de veículos off-the-road, como o RaliParis-Dakar, ou as práticas de canoagem, esca-lada, rapel e tantas outras que exaltam a velo-cidade, a adrenalina e a obliteração da razãopela concentração total na ação. Incluem-senesta categoria as formas institucionais de ris-co, sobretudo nas profissões que envolvem pe-rigo, como bombeiros e guias de montanhas,mas também a gerência de risco de investi-mentos financeiros 6.

Risco surge como conceito quando o futuropassa a ser entendido como passível de contro-le. Na pré-modernidade e na modernidade clás-sica, a prevenção e a aposta são as duas moda-lidades da gestão de risco. Embora ambas se-jam resultados da crença na racionalidade, asformas de controle são distintas. Na prevenção,a norma é o principal meio de controle do ris-co; já na aposta, este consiste na tomada de de-cisão informada pelos cálculos de risco.

Na transição para a sociedade de risco oumodernidade tardia, emerge o questionamen-to quanto à possibilidade de controle do futu-ro, e a norma passa a ser substituída pela pro-babilidade como forma de gestão. No espaçoprivado, a gestão dos riscos se desprende dosmecanismos tradicionais de vigilância das ins-tituições disciplinares e centra-se no gerencia-mento de informações, gerando novos meca-nismos de exclusão social.

A gestão na modernidade clássica é referidaa Foucault, ou seja, é o conjunto de regras e me-canismos de vigilância que implicam a consti-tuição de subjetividades que possibilitam o au-tocontrole. Costa 7, em estudo sobre a consti-tuição da família e a higiene no Brasil do sécu-lo XIX com base nas formulações de Foucault,sintetiza seu pensamento apontando a identi-ficação de dois tipos de controle no padrão decomportamentos sociais: a lei e a norma. A leiimpõe comportamentos através do poder coer-citivo e punitivo, já a norma o faz através da ar-ticulação dos saberes em práticas discursivas –ciência, filosofia, literatura, religião etc. – se-gundo as finalidades de preservação do poderinstituído. A norma também estimula, incenti-va e exalta determinados comportamentos, deforma a adaptar os indivíduos à ordem do po-der, produzindo características corporais, senti-mentais e sociais. Essa conformação se dá atra-vés de regulamentos administrativos de con-trole do tempo, de técnicas de organização ar-quitetônica dos espaços e também através daforma como as instituições, como escola ouhospital, organizam-se.

Ayres 8 reconhece que, na sociedade atual,a contratualidade disciplinar explícita modifi-cou-se em formas de pactuação e coerção so-

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ciais pulverizadas e internalizadas, tendo co-mo elemento fundamental as diversas concep-ções de risco. No entanto, o autor questiona quetenha havido o abandono de uma normativi-dade disciplinar fixadora de regras por outranormatividade apenas reguladora, pautada pe-la disseminação de subsídios para a tomada dedecisões. Aponta que houve um aprofundamen-to da disciplina com a pulverização e internaliza-ção das formas de coerção e, como conseqüên-cia, tornou-se mais difícil a rebeldia, já que adisciplina menos visível é, ao mesmo tempo,menos acessível ao pensamento. Uma discipli-na cuja finalidade se conhece cada vez menos.

Castiel 9 questiona o grau de sustentabilida-de e validade das proposições dos autores queembasaram o texto de Spink perguntando seseriam aplicáveis a contextos sociais diferentesdaqueles em que foram formulados. Quandotratam da natureza sistêmica dos riscos, os as-pectos das experiências da vida cotidiana e osaspectos simbólicos são pouco problematiza-dos. Já a idéia de reflexividade não dá conta dasdimensões sócio-culturais, como o sentimentode pertencimento a grupos e rede sociais, o aces-so a recursos materiais e a inclusão/exclusãonas relações de poder. Para Castiel 9, a moderni-dade tardia é marcada por cambiantes dimen-sões e formas, ou seja, pela: “produção inces-sante e engenhosa de novas tecnologias e corres-pondentes repercussões na ampliação e na velo-cidade de circulação das trocas econômicas, naproliferação de estratégias de mediação comuni-cacional, na multiplicação e diluição das matri-zes identitárias, no clima generalizado de ambi-güidade quanto a perspectiva de orientação emcurto prazo e na crise de sentido” 9 (p. 1295).

A ambivalência e a estranheza são caracte-rísticas do tempo presente. Sua abordagem dámargem a polêmicas e permite distintos enfo-ques, eventualmente antagônicos. Os temas sãofugidios, e o vocabulário disponível consegueapreender apenas parcialmente o que aconteceao nosso redor. As explicações não podem serconsideradas como verdadeiras ou falsas, poissão aspectos da complexa realidade, não poden-do, portanto, ser tomadas como explicação datotalidade. É preciso ter em mente que cada vezmais as idéias e os conceitos são provisórios epassíveis de controvérsias e imprecisões 10.

Risco e saúde

Ao discutir o conceito de risco, largamente uti-lizado na área da saúde nos últimos trinta anos,Hayes 11 identifica três vertentes da literatura.A primeira é aquela denominada “Risco Indivi-

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dual” (health risk appraisal – HRA), que tratado cálculo de risco pessoal projetado a partirde estudos epidemiológicos e de estatísticas vi-tais. São referentes a características pessoais,tais como história familiar, hábitos, estilo de vi-da e outros. O objetivo da intervenção, nestecaso, é a redução da mortalidade precoce atra-vés do estímulo à mudança de comportamen-tos tidos como de risco.

Uma outra vertente da literatura nos estu-dos de risco é a chamada “Abordagem de Risco”(risk approach – RA), ou “Estratégia de Risco”.Trata-se de uma proposta para alocação de re-cursos, defendida pela Organização Mundialda Saúde (OMS) no contexto do Programa Ma-terno-Infantil, de forma a maximizar a eficiên-cia de alocação dos recursos públicos nos paí-ses menos desenvolvidos. Seu objetivo é a ga-rantia de atenção especial na área da saúde aosgrupos menos favorecidos, ou seja, sob maiorrisco. A definição de risco na RA é mais difusaque na HRA, uma vez que envolve aspectos deatributos individuais e sócio-ecológicos.

A terceira vertente da literatura, a “Análise deRisco” (risk analysis/assessment/management –RA/M), é muito mais genérica e indefinida queas duas anteriores. Trata-se de pesquisas queabordam o perigo do uso de tecnologias, a se-gurança de produtos, a percepção do públicosobre risco etc.

Uma conseqüência dessa multiplicidade deabordagens é atribuída à lacuna conceitual re-ferente ao risco. De fato, a noção de risco apre-senta uma grande variação, assim como as con-cepções de saúde, sociedade e ciência a ela re-lacionadas. A diversidade também é uma ca-racterística das técnicas e metodologias de me-dida do risco nas pesquisas científicas. Termoscomo precursor, pré-condição, fator de risco,indicador de risco, probabilidade e outros sãousados sem uma definição formal precisa.

De fato, risco muitas vezes refere-se a umapossibilidade de ocorrência de um particularevento adverso. Em outras acepções, o termo éincorporado como medida de impacto, poden-do ainda estar relacionado a diferenciais demorbidade ou mortalidade entre grupos com esem um determinado atributo – tabagismo erisco à saúde, por exemplo.

Subjacentes a essa indefinição conceitual,existem interesses ideológicos 11. No HRA, a in-tervenção sugerida pela concepção de risco se-ria a mudança de estilo de vida individual e nãomedidas de âmbito estrutural que proporcio-nem o bem-estar das pessoas. Na concepçãode RA, a redução das desigualdades seria o fo-co principal, pretensamente alcançado pela es-tratégia da atenção primária; no entanto, des-

considera as políticas mais amplas de inclusãosocial, como educação, acesso à água potável,condições de vida etc. Assim a RA como propos-ta é inerentemente conservadora, por mantero status quo nos países menos desenvolvidos.

De acordo com Skolbekken 12, a palavra ris-co tem ganhado freqüência nos jornais médi-cos nas últimas três décadas. Este autor tam-bém aponta o fenômeno como heterogêneo,pois sua diversidade de fato esconde uma lacu-na conceitual. O que se vê é o resultado de umprocesso de construção em que o risco tem si-do reificado, ou seja, estabelecido como um fe-nômeno natural, identificado cientificamente,e não como um produto da conduta humana.

O autor sugere que o aumento da freqüên-cia do termo risco verificado nos jornais médi-cos pode estar relacionado a vários fatores, queincluem o desenvolvimento de disciplinas vol-tadas para o cálculo de risco, expresso comoprobabilidades estatísticas; o recente desenvol-vimento em tecnologia computacional; o ge-renciamento de risco; a segurança e a promo-ção à saúde. Mas o mais importante nesse pro-cesso é que o controle do perigo, antes relacio-nado a fatores imprevisíveis, fatalistas, agoraaparece como passível de controle humano.

Risco epidemiológico

Ainda no âmbito da saúde, alguns estudos so-bre risco concentram o enfoque na área da epi-demiologia. Sinteticamente, risco epidemioló-gico pode ser definido como a probabilidadede ocorrência de um determinado evento rela-cionado à saúde, estimado a partir do que ocor-reu no passado recente. Assim, calcula-se o ris-co quantificando o número de vezes que o even-to ocorreu dividido pelo número potencial deeventos que poderiam ter acontecido. Desta for-ma, por exemplo, o risco de morte numa deter-minada população – ou grupo de pessoas – é onúmero de óbitos ocorridos no período ante-rior dividido pelo número de pessoas existen-tes nesta população naquele período, já quequalquer um ou todos poderiam potencialmen-te ter morrido. Para Castiel 9, risco pode ser ob-jetivado e delimitado em termos de possíveiscausas, além de ser quantificado através de ope-rações estatísticas, estabelecendo assim nexos,associações e correlações. Considera-se fatorde risco toda característica ou circunstânciaque está relacionada com o aumento da proba-bilidade de ocorrência de um evento.

Almeida Filho 13 aponta os múltiplos signi-ficados do conceito de risco. Na epidemiologia,ele agrega significados do discurso social co-

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mum, a dimensão da probabilidade de ocor-rência de eventos ou fenômenos ligados à saú-de, sendo a idéia de dano subsidiária, presenteapenas na sua origem. Assim, o autor apontatrês pressupostos básicos na proposição de ris-co no campo científico da epidemiologia. O pri-meiro é a identidade entre o provável e o possí-vel, traduzido pela quantificação de eventos dasaúde e da doença. O segundo pressuposto é ahomogeneidade na natureza da morbidade,que acaba por ocultar a singularidade dos pro-cessos concretos de saúde e doença. E por últi-mo a expectativa de estabilidade dos padrõesde ocorrência dos fatos epidemiológicos, pres-supondo uma recorrência dos eventos em sé-rie. Dessa forma, a inferência permite a previ-são de ocorrência não só em tempos diferen-tes, como também em locais distintos daque-les em que os riscos foram originariamente cal-culados. A essa característica Almeida Filho 13

chama de ambigüidade. Ocorre ainda uma fu-são entre os sentidos de determinante (fator derisco) e de seu efeito (risco), oriunda do discur-so social comum, constituindo uma inconsis-tência – figura de análise em que os significa-dos são instáveis e variáveis – e uma incoerên-cia – transgressão da lógica fundamental dodiscurso ao qual se incorpora o conceito.

No entanto, o risco na epidemiologia tam-bém se articula às contínuas mudanças na so-ciedade. Buscando compreender as condiçõesde emergência histórica e as implicações práti-cas do conceito de risco na epidemiologia, Ay-res 14 identifica um primeiro momento, no fi-nal do século XIX e início do seguinte, em queo conceito de risco assumiu um caráter descri-tivo e indiretamente quantificado, apreendidocomo “condição objetiva de sujeição de grupospopulacionais a epidemias ou a experiênciasdesfavoráveis à saúde em geral” 14 (p. 292). Esseconceito ainda sobrevive hoje e se assemelhaao que Hayes 11 denominou como “Abordagemde Risco” (risk approach) descrito anteriormen-te. Num segundo momento, vinculado às ciên-cias biomédicas, o conceito é assumido comocondição de suscetibilidade individual, indi-cando uma relação entre fenômenos indivi-duais e coletivos, e não mais uma condição po-pulacional. Após a II Guerra Mundial, inicia-sea fase da epidemiologia do risco, quando o ca-ráter individual se acentua sobremaneira. Orisco passa então a designar probabilidadesquantificadas de suscetibilidade individual aagravos, em virtude da exposição a agentesagressores ou protetores.

Os estudos da primeira fase tinham defini-ção populacional, caráter descritivo e utiliza-vam os métodos matemáticos como instrumen-

to auxiliar. Na epidemiologia do risco, os estu-dos passam a ter definição associativa, relacio-nando eventos e imprimindo caráter especula-tivo às investigações; em adição, a matemáticaé utilizada para validar desenhos e categoriasde estudo, de forma a garantir uma objetivida-de definida em termos matemáticos.

O contexto na área da saúde após a II Guer-ra Mundial é aquele em que emerge o preventi-vismo, traduzido em práticas essencialmentederivadas de uma releitura da concepção am-pliada de determinação do processo saúde-doença e apoiadas nos cuidados individuais.As ações são aquelas de caráter assistencial, aspráticas educativas simplificadas, com poucaincorporação de tecnologia especializada e pou-cos equipamentos materiais.

Outro pólo que se conforma no contexto dasaúde, principalmente nos Estados Unidos, é osecuritarismo, que basicamente consiste naresponsabilização privada pela conquista e ma-nutenção da saúde e do bem-estar. Apóia-senas dimensões individuais e naturalizadas doprocesso saúde-doença e num sistema assis-tencial altamente especializado com sofistica-da incorporação tecnológica. O acesso, nestadoutrina, deve ser organizado segundo siste-mas meritocráticos de base atuarial.

“Ambas ‘doutrinas’ são indicadores de que oslitígios decorrentes de rearranjos de poder ini-ciados antes da guerra e que, como não poderiadeixar de ser, sofreram os impactos que sempreacompanham os momentos de crise, levaram aum predomínio do individual sobre o coletivo,do técnico sobre o político, do natural sobre o so-cial, do médico-assistencial sobre o médico-sa-nitário, do privado sobre o público” 14 (p. 236).

Esse esvaziamento do caráter coletivo dasaúde pública ocorre simultaneamente a mu-danças no perfil epidemiológico da população,quando passam a predominar as doenças crô-nicas, com a redução das doenças infecciosas.A emergência do discurso do risco, e sua prin-cipal organização em torno das doenças crôni-cas, articula-se aos princípios individualistas etecnopragmáticos vinculados àquele momentoda modernidade. Embora tenha havido diver-sos movimentos de resistência na saúde, tantonos Estados Unidos como na Inglaterra, eles nãolograram significado prático mais relevante,apesar da importante contribuição produzida.

Nesse processo de mudanças, novas exigên-cias e condições de validade normativa dos dis-cursos médicos e sanitários são necessárias. Avisão mais ampla da saúde torna-se incapaz deestabelecer consensos intersubjetivos sólidos,pouco potentes para estimular intervençõescoletivas de natureza pública.

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A epidemiologia subordina-se às ciênciasbiomédicas de base clínico-laboratorial, numaforte pressão em direção à especialização e àsofisticação tecnomaterial na apreensão e in-tervenção sobre patologias específicas. Se an-teriormente a disciplina se ocupava igualmen-te da etiologia das doenças e das condições desua manifestação coletiva, a partir da décadade 50 cada vez mais passará a se ocupar de in-vestigar centralmente as relações causais, fa-zendo parte, assim, do conjunto das discipli-nas biomédicas e tendo como objeto principalas doenças crônicas.

A guerra e suas conseqüências fizeramemergir o questionamento do poder construti-vo e racionalizador da ciência e da tecnologia.Radicalizou-se a tendência que procurava a va-lidade das ciências na sua processualidade enão mais a validação nas fontes de conheci-mento ou nas suas finalidades últimas. E a epi-demiologia acompanha esse processo, aban-donando sua identidade centrada na busca dasregularidades dos fenômenos de massa e pas-sando a adotar uma identidade metodologica-mente construída. O discurso se formaliza emtorno da especialização técnica, por um lado, eprovoca uma progressiva indeterminação teó-rica, por outro.

Um intenso debate em torno das associações(um fator associado a um efeito) acaba por con-ferir aos estudos epidemiológicos um estatutologicamente equivalente às ciências experimen-tais e seus resultados controlados. O relaciona-mento de eventos e as condições técnicas decontrole da incerteza em estudos observacio-nais possibilitaram à epidemiologia adquirir oestatuto de validade necessário em face dasmudanças científicas da época. O cálculo dorisco consolida-se então como elemento con-ceitual nuclear nos estudos de associações.

Em decorrência, a unidade lógica passa aser o indivíduo. Não se busca mais a suscetibi-lidade geral das comunidades a processos es-pecíficos, mas a influência de processos geraisem indivíduos específicos. O risco, elementocentral da argumentação, permite organizar emtorno de si as constatações da epidemiologia.No entanto, já não é mais o risco qualificadordo caráter coletivo de uma determinada reali-dade; ele é a “expressão formal e probabilísticado comportamento de freqüências de determi-nados eventos de saúde quando inquiridos arespeito de associações particulares” 14 (p. 282).

Acompanhando essa mudança conceitualdo risco epidemiológico, a disciplina foi gra-dualmente prescindindo do conceito de meio,que se tornou cada vez mais um elemento resi-dual no discurso epidemiológico. Concomitan-

temente, a quantificação e os recursos mate-máticos não passaram apenas a conferir con-sistência interna aos estudos; na epidemiolo-gia do risco, eles são a própria fonte de identi-dade das construções utilizadas nos estudos.

Um outro movimento em torno dos estudosepidemiológicos de risco inicia-se a partir dadécada de 80. Uma importante corrente de pen-samento dentro da epidemiologia ganha des-taque no campo científico. Denominada epide-miologia clínica, seus teóricos salientam as in-ter-relações da clínica com a epidemiologia, bus-cando uma nova forma de prática médica 15,16.

Com o aprofundamento das dificuldadespara controlar os custos da assistência médica,valorizou-se a importância da efetividade daabordagem individual: “a tensão entre a deman-da por atendimento e os recursos para provê-loampliaram a necessidade de informações maisqualificadas sobre a efetividade clínica no esta-belecimento de prioridades de saúde. (...) Varia-ções no atendimento observadas entre os clíni-cos e entre várias regiões, não explicadas por ne-cessidades dos pacientes e não acompanhadaspor diferenças paralelas nos desfechos, levan-tam a questão de quais são as práticas clínicasde maior utilidade” 16 (p. 9).

Os pressupostos da epidemiologia clínicapodem ser assim resumidos: (i) as decisões clí-nicas são permeadas por incertezas, e medidassão adotadas sem o conhecimento real de seuimpacto; (ii) a experiência clínica e os conheci-mentos sobre os mecanismos das doenças edas intervenções são importantes, mas insufi-cientes para o raciocínio clínico; (iii) é neces-sário encontrar evidências em pesquisas plane-jadas para reduzir as incertezas nas decisões,cujos resultados devem ser integrados aos co-nhecimentos acumulados sobre os mecanis-mos de doenças e as experiências clínicas pes-soais; (iv) os valores atribuídos aos riscos, be-nefícios e custos das intervenções devem serponderados.

Desta forma, métodos e técnicas da epide-miologia, dentre eles o cálculo de risco, são apli-cados a questões tais como: acurácia dos mé-todos diagnósticos, fatores associados ao riscode doença, prognósticos, tratamentos, medi-das de prevenção, etiologia e custos.

Colocando-se como interface da epidemio-logia e da clínica, a epidemiologia clínica vemrecebendo críticas de ambas as partes. É fre-qüente a sua rejeição por parte dos clínicos,principalmente por supostamente desvalorizarsua experiência – e por conseqüência sua com-petência – pessoal e por desacreditar certezascultivadas durante anos de prática. Além disso,ao problematizar os custos da assistência, é

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acusada de articular-se ao movimento das gran-des empresas médicas buscando reduzir gas-tos com prejuízo da qualidade no atendimento.

As objeções mais elaboradas à vertente daepidemiologia clínica, no entanto, são encon-tradas no próprio campo da epidemiologia.

Almeida Filho 13 e Barata 17 apontam que aepidemiologia clínica aparece como uma relei-tura da epidemiologia, como uma proposta desuperação dos impasses da clínica e da epide-miologia, tentando adequá-la, assim, aos im-perativos da abordagem clínica individual, obs-curecendo o caráter social, próprio da discipli-na. Admite-se, portanto, na epidemiologia clí-nica que os indivíduos manifestariam a médiados atributos de uma população, ou seja, seusriscos e fatores de risco.

“Ao reduzir a investigação epidemiológicaaos estudos de eficácia de procedimentos diag-nósticos e terapêuticos aplicados a grupos depacientes, constituídos com base apenas no fatode serem portadores de doença, a epidemiologiaclínica opera sua redução mais significativa narealidade, excluindo do campo médico os estu-dos em que o caráter social do processo saúde-doença possa ser evidenciado” 17 (p. 559).

Diversos autores, ao reconhecerem a confi-guração do conceito de risco e os estudos etio-lógicos como elemento central na estruturaçãoda epidemiologia, buscam também ressaltaroutras dimensões da disciplina.

A epidemiologia, mais que o estudo da saú-de e da doença em populações, deve ocupar-sedo estudo dos fenômenos de saúde-doença depopulações 18. Castellanos 18, ao se referir aosestudos ecológicos, identifica dois tipos de abor-dagem: a que toma a população como unidadede análise e como universo de estudo, e aquelaem que os riscos individuais são definidos apartir dos valores médios de um grupo. Este úl-timo tipo de abordagem apresenta pouca po-tência para validar hipóteses de risco ou predi-toras. A epidemiologia contorna esse problemaprocurando reduzir ao máximo possível a va-riação individual entre os grupos em estudo,permitindo o estabelecimento de correlações,controlando as variáveis e processos coletivos,restringindo o seu alcance na compreensão doprocesso saúde/doença do ponto de vista so-cial e coletivo.

Ainda nessa linha, Goldbaum 19 constata atendência de os estudos epidemiológicos pro-curarem estabelecer relações entre a ocorrên-cia de doenças e o estilo de vida de indivíduos,identificando hábitos nocivos à saúde, comofumo, álcool, obesidade, entre outros. Esse tipode abordagem acaba por promover práticas ex-clusivamente individuais, recobertas de supos-

ta intervenção coletiva. O estilo de vida é trans-formado em variáveis isoladas e quantificadode forma a facilitar a intervenção através dapromoção de programas de controle que visamsomente à mudança do comportamento indi-vidual com relação à exposição aos fatores derisco.

Goldbaum 19, no entanto, reconhece a im-portante contribuição que esses estudos têmtrazido para o controle das doenças; sua ressal-va refere-se ao processo de transposição dosresultados para a formulação de propostas deintervenção, que não deve ser restrito ao com-portamento individual, mas articulado a ou-tros elementos explicativos, antes de ser tradu-zido em ações. Aponta que os estudos, quandorestritos a esse enfoque, limitam a abrangênciada disciplina.

Contrapondo-se à tendência da epidemio-logia em restringir sua atuação aos estudos etio-lógicos e aos cálculos de risco, Castellanos 20

busca enfatizar outras áreas de atuação da dis-ciplina. Ao sistematizar seu âmbito, identificaos estudos causais ou explicativos, com sua ên-fase no cálculo de risco, como uma dentre qua-tro aplicações da disciplina. As demais áreassão: estudos da situação de saúde; vigilânciaepidemiológica e avaliação de serviços, progra-mas e tecnologias de saúde.

Os autores supracitados criticam os aspec-tos considerados hegemônicos no âmbito dadisciplina. Ayres 21 lembra o caráter históricodo processo de constituição da ciência epide-miológica, em que é “instituinte e instituída noprocesso de emancipação e hegemonia da di-mensão tecnológica da razão” 21 (p. 70), eviden-ciada no contexto da consolidação das ciênciasda saúde a partir do século XIX.

Apesar das amplas críticas, a epidemiolo-gia, articulada ao processo histórico mais ge-ral, ganhou o estatuto de ciência através da con-solidação do conceito de risco, fundamental-mente na estruturação de sua dimensão meto-dológica, uma identidade metodologicamenteconstruída. Essa vertente passou a ser conside-rada como ortodoxa, na acepção apresentadapor Bourdieu 22: o pólo dominante da discipli-na, onde ocorrem as práticas de conservaçãodo capital social e de definição do que é consi-derado como ciência legítima, através das ins-tituições de ensino, publicações científicas e dadefinição de critérios para escolha de proble-mas a serem investigados, da metodologia e dainterpretação dos resultados.

Por enfatizar as associações entre fatores eefeitos, as funções de ocorrência nos estudosetiológicos, o método epidemiológico passa aser incorporado pelos estudos nas demais áreas

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da medicina, sendo freqüentes as análises deassociações nos mais diversos tipos de estudosmédicos. Assim, a etiologia de uma determina-da doença que se insere em seu campo especí-fico da medicina – por exemplo, as doenças car-díacas, objeto de pesquisa na área da cardiolo-gia – tem suas relações causais abordadas va-lendo-se de instrumentos da epidemiologia,com especial ênfase nos estudos de risco. Nes-te exemplo, o tabagismo, o estresse, os altos ní-veis de colesterol sérico, o sedentarismo, cons-tituem fatores de risco para as doenças cardía-cas identificados por meio da metodologia epi-demiológica.

“...O sentido de risco se transfere para o seudeterminante, que enquanto fator de risco passaa ser reconhecido como sinal/sintoma, que porsua vez torna-se uma entidade clínica, incorpo-rada a um perfil patológico específico. No finaldo percurso, talvez pela inércia do processo deconstrução dos discursos em sua essência lingüís-tica, aparentemente cumpre-se o ciclo com riscoterminando por denotar doença” 13 (p. 142).

A disciplina, assim, amplia sua atuação jun-to às demais especialidades médicas, mas opreço dessa inserção é a cristalização do enfo-que exclusivamente fisiopatológico do proces-so saúde-doença, alijando de suas preocupa-ções as dimensões políticas, econômicas e so-ciais do adoecimento, ou seja, ignorando a ma-nifestação social das doenças como objeto desua preocupação. As práticas em saúde basea-das nessa concepção, que é também política,expressam-se como medidas que buscam amudança de hábitos e comportamentos, já quea ênfase recai sobre a dimensão individual doadoecimento. Essa concepção se opõe à idéiade saúde como direito 23 e abstrai, dessa forma,a necessidade de mudanças estruturais queimplicariam em alterações mais profundas,podendo mesmo requerer nova dinâmica nadistribuição de recursos sociais e de poder.

Risco epidemiológico e sociedade de risco

A constituição do conceito de risco epidemioló-gico e o método incorporado pela pesquisa mé-dica acabam por definir estilos de vida, produ-zindo significados que orientam o comporta-mento; articula-se, assim, a uma forma de vigi-lância do indivíduo – pulverizada, internalizadae menos visível – traduzida no autocontrole.

A idéia de risco consolidou-se com a mo-dernidade, associada ao pensamento probabi-lístico e à idéia de cálculo. Uma das caracterís-ticas da transição para a modernidade tardia é

a revisão contínua a partir de novas informa-ções ou conhecimentos de uma grande partedos aspectos da vida social. Estas idéias, de cer-ta forma, também estão presentes nas formu-lações de Bauman 24. Ele defende o ponto devista de que há a passagem de uma moderni-dade denominada “sólida” para uma moderni-dade “líquida”. Os padrões, códigos e regras ga-nharam mobilidade e inconstância, ou seja, tor-naram-se maleáveis e, à semelhança dos flui-dos, não mantém a forma durante muito tem-po. Os processos de desregulamentação, de li-beralização, de flexibilização das normas, exa-cerbam – e paradoxalmente também limitam –de forma inédita as opções dos indivíduos e so-ciedades. Esse efeito não foi alcançado via di-tadura, subordinação ou opressão, mas ocorre,ao contrário, em virtude do “derretimento radi-cal dos grilhões” 24 (p. 11) que limitavam as li-berdades individuais.

A liquefação dos padrões – que antes garan-tiam a regularidade e os limites éticos – ampliainfinitamente as possibilidades. Esse movimen-to transfere ao indivíduo a responsabilidadeexclusiva pelo seu destino. O que deve ser feitojá não está mais definido a priori. Cabe a cadaum escolher o que fazer de sua vida. Os proble-mas socialmente produzidos agora requeremsoluções individuais.

A articulação da epidemiologia nesta novaforma de controle, de fluidez, de maleabilidadee de perda dos pontos de referência pode serobservada na formulação de Bauman, quandoeste discorre sobre a morte na nossa socieda-de: “A morte já não parece, aos homens e mu-lheres modernos, um esqueleto de veste pretabrandindo a foice (...) acha-se, agora, dissolvidaem minúsculas, mas inumeráveis, armadilhasda vida diária. Tende-se a ouvi-la batendo, ago-ra, de quando em quando, diariamente, em co-mida rápida e gordurosa, em ovos contamina-dos de Listeria, em tentações ricas em colesterol,em sexo sem preservativo, em fumaça de cigar-ro, em ácaros de tapete que causam asma, ‘nasujeira que se vê e em germes que não se vêem’,na gasolina carregada de chumbo e nos gasesdesprendidos de chumbo e assim imundos, naágua da bica tratada com fluoreto e na águanão tratada com fluoreto, no exercício de mais ede menos, em comer em demasia e fazer regimeem demasia, em ozônio demais e no buraco nacamada de ozônio. Mas sabe-se, agora, obstruira porta quando ela bate, podendo-se sempresubstituir as velhas e enferrujadas fechaduras,ferrolhos e alarmes por outros ‘novos e aper-feiçoados’. (...) Com o progresso da medicinamoderna, que forneceu virtualmente a toda si-tuação de morte sua causa específica, ‘lógica’ e

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‘racional’, a morte já não é um capricho do des-tino cego, nem tão completamente casual quan-to costumava ser. (...) Por outro lado, é a vidaantes da morte que oferece percepções cercadasde incerteza. (...) Os homens e mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimistaque possa, ou sustente que possa, transformar aincerteza de base em preciosa auto-segurança, ea autoridade da aprovação (em nome do conhe-cimento superior ou do acesso à sabedoria fe-chado aos outros) é a pedra filosofal que os al-quimistas se gabam de possuir” 25 (p. 217-21).

É a epidemiologia que informa sobre quaissão os fatores de risco: a comida gordurosa, astentações ricas em colesterol, a fumaça de ci-garro. Portanto, é ela que diz quais são as por-tas que devem ser obstruídas à entrada da mor-te. A medicina, apoiada pelo método epidemio-lógico, é o alquimista que possui a pedra filo-sofal. Ela sustenta possuir o poder de transfor-mar a incerteza em auto-segurança, é a autori-dade que aprova (ou desaprova) a forma comocada indivíduo deve viver, uma forma que cons-tantemente derrete e se transforma em novasformas igualmente líquidas, transitórias.

Colaboradores

O. C. Luiz realizou pesquisa bibliográfica, análise eredação do artigo. A. Cohn coordenou e orientou aelaboração do artigo, definindo seu escopo e partici-pando de sua análise e redação.

Resumo

A discussão sobre a concepção de risco é ampla e per-meia desde uma perspectiva mais geral, que buscacontextualizá-lo na dinâmica da mudança da socie-dade, até a abordagem mais específica na área da saú-de, particularmente nos estudos associativos da epide-miologia. A palavra risco tem sido cada vez mais fre-qüente nas revistas médicas nas últimas três décadas.Esse fenômeno, no entanto, não é exclusivo da área dasaúde e é permeado pela diversidade de uma noçãoque esconde uma lacuna conceitual. Diante dessa di-versidade, o presente texto, a partir de revisão biblio-gráfica, procura sistematizar a discussão sobre risco. Oresultado está organizado em três seções. Na primeira,é apresentada uma perspectiva mais geral da discus-são sobre risco no âmbito do debate sobre a mudançada sociedade, na transição da modernidade para umanova fase de organização social; na segunda parte, es-tão sintetizados os usos da noção de risco na área deconhecimento da saúde; na última, a constituição doconceito epidemiológico de risco e sua articulaçãocom a clínica.

Comportamento Perigoso; Estudos Epidemiológicos;Risco

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Recebido em 25/Jul/2005Versão final reapresentada em 29/Dez/2005Aprovado em 10/Mar/2006