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[QUARTA EDIÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA METAJORNALÍSTICA DOS ESTUDANTES DE RI DA USP]

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QUARTA EDIÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA METAJORNALÍSTICA DOS ESTUDANTES DE RI DA USP

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[QUARTA EDIÇÃO DE UMA

EXPERIÊNCIA METAJORNALÍSTICA

DOS ESTUDANTES DE RI DA USP]

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Sobre o tempo e a fértil idade

Eu meço o tempo pelas minhas cartelas de pílulas anticoncepcionais: cada orifício que

se abre em seu plástico transparente marca a fugacidade dos meus dias de mulher.

Me espanto ao perceber que já faltam tantas contas daquela cor clara de rosa, em cujos

versos se abreviam as alcunhas dos dias que passam da mesma forma, abreviados, e

deixam um rastro de espaços vazios que se acumulam cotidianamente.

À rapidez com que se esvaem minhas tantas luas férteis, seguem-se, arrastadas, as horas

em que espero que se desprenda do meu corpo a vida que não pôde me habitar – lento

pesar dos dias em que minha própria anatomia se encarrega de consolar-me o corpo em

luto indignado.

Depois, calmo o corpo, o ciclo recomeça. No ventre, alva cicatriz grava-me fundo as

entranhas. Dentro do que sou, sei que, mais uma vez, não cumpri o papel que a biologia

me legou.

Novos dias se esvaem nas letras rasgadas que largam seus nomes em códigos rotos nos

versos das minhas cartelas. E a lógica do tempo perde sentido entre as voltas dos 28 dias

que não podem encaixar-se na contagem dos meses que o homem inventou.

Até que chega o momento em que os furos na cartela já não seguem a se abrir.

Pergunto-me como passam os tempos daquelas que já não acumulam espaços vazios

sobre os nomes de seus breves dias, mas sentem tão só que enfim algo se preenche no

interior de si.

Então me pergunto se o eterno de quem, enfim, se duplica também não se infinda por si

só.

ABSOLUTISMO

Se a tua soberania estatal

Faz da minha terra um bacanal

Ou se a tua liberdade de expressão

Prega impune a minha extinção

Ou se o teu livre e lindo mercado

Quer-me um dócil retardado

Entende, então, a tal contestação

Pois minha sagrada vida

Ainda que pra ti perdida

Precede qualquer convicção

E não me mostra a tua Constituição

Porque sempre há de haver luta

Enquanto a tua liberdade absoluta

For a minha a eterna escravidão

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Metajornalismo - A Radicalização do

Que uma hora ou outra o nosso jornal estaria suscetível a ter crises de publicação não

era nenhuma novidade. Todas as dificuldades de uma iniciativa livre e estudantil

perpassam a nossa produção jornalística e metajornalística. Isso, no entanto, pra nós

passa menos como crise do que como parte do processo, a meu ver. Quando optamos

por não definirmos periodicidade e nem nada que pudesse pressionar ou limitar a

criação dos agentes, estávamos admitindo que o jornal seria feito de acordo com as

nossas capacidades e necessidades.

Para essa edição, a necessidade, para mim, é a de colocar no ar aquilo que foi produzido

mas que não encontramos a forma, o tempo e a maneira exata de fazê-lo. Por isso o

atraso de milhares de anos, a forma que destoa e a aparente aleatoriedade da publicação.

O mais importante, não é então a questão da publicação em si, mas os questionamentos

que são levantados a respeito da nossa própria produção. Essa edição representa a

radicalização da proposta tendo em vista as nossas necessidades. A necessidade de se

publicar textos antes que fiquem obsoletos, ou não, - que nos leva a uma publicação

menos elaborada visualmente -, a necessidade de se extrapolar a forma - que nos leva a

optar por uma anti-estética -, a necessidade de se extrapolar o indivíduo - que nos leva a

retirar a assinatura dos textos e hierarquizá-los aleatoriamente - , enfim, a necessidade

de se traçar novos rumos para o nosso querido jornal - que nos leva a publicar algo que

parece menos com jornal que com qualquer outra coisa no mundo.

O pucano é um fingidor

O pucano é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é boa

Aquela faculdade de demente.

Fernando Pessoa

NOWHERE MAN

O som de tambores crescia conforme ele ia andando pelo corredor. Não eram apenas

tambores, havia algo mais, banjos, rabecas, algo assim, mas ele nunca saberia o que

eram de fato.

Ele não tinha nome. Ele não tinha nada. Não vinha de lugar nenhum, não falava, não

tinha vontades. Era simplesmente um monte de músculos doloridos. Não, não doloridos.

Quando a única coisa que se consegue sentir por toda uma vida é a dor, então isso se

transforma em algo diferente. Talvez amor, talvez prazer. Mas os músculos doloridos

eram tudo que era. Mas conhecia tais músculos, tais dores, como ninguém. Aquela

suave sensação de destruição, que pare ele era constante, aquele prazer advindo da

obliteração. Era uma ruína viva, de carne, era um templo vazio. Não tinha alma. Havia

convencido a si mesmo disso muitos anos atrás. E nunca precisara de palavras para tal.

Almas eram coisas complicadas, eram coisas para o mundo, para os outros. Ele era

aquilo, um monte de músculos desprovido até mesmo de um objetivo. Ao menos para si

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mesmo. Para o mundo, era diferente. Para o mundo ele era um brinquedo, para o mundo

também ele não passava de um apanhado de músculos doloridos, mas para o mundo isso

queria dizer alguma coisa. Para ele não, para ele nem mesmo o mundo não queria dizer

nada. Não existia. Não existia medo, não existiam outros, nem vozes nem corpos. Nem

mesmo os banjos que tocavam ou o corredor pelo qual andava existiam. É culpa da dor,

é culpa dele. Mas não sabia disso. Era o mais natural. Não, nem mesmo isso, era tudo.

Era a dor que o havia alienado. Se é que se pode dizer isso, já que sempre fora não mais

do que o que era então. Não sabia que não era normal sentir tanta dor, e não sabia que a

culpa era sua. Talvez seja esse o normal, talvez tenhamos sim de sentir a mesma do que

ele, talvez sem isso só criemos ilusões, esperanças, coisas muito piores do que a simples

dor. Talvez a culpa não fosse dele então, mas do mundo, que jamais o havia olhado

como algo que não fosse um brinquedo. Mas era verdade, e se o mundo não existia não

podia ser ele o culpado. Se ele tivesse algo próximo de uma consciência talvez

percebesse que gostava disso, que gostava de ser o brinquedo de outras pessoas. Não,

uma consciência só faria com que se sentisse incomodado por isso – embora

secretamente sentisse prazer – pois é assim com todos, são todos brinquedos, e todos

sentem prazer nisso, alguns simplesmente conseguem ver como isso é deprimente. Mas

ele não tinha essas amarras, e, mais do que isso, não tinha ilusões de uma consciência.

Tudo isso desaparecia ao sentir as células estourando, ao fazer mover as cordas dos

movimentos, eternamente imbuídas de dor, como se fosse um mestre de marionetes.

Mas era um marionete que funcionava com o único propósito de mover suas cordas. E,

nesse ponto, novamente era como qualquer pessoa, mas essa é uma coisa ainda mais

difícil de perceber e de aceitar.

Ao longo de todo o corredor sentiu aquela dor ao se mover que para ele era mais

sublime que prazer. O corredor era escuro e maciço. Não era possível, naquele

momento, ver de onde vinha nem para onde ia, eram apenas dois caminhos que se

perdiam em sombras. Não percebeu quando morreu, as milhares de lâminas cortando

primeiro a pele e em seguida os músculos que eram tudo que era e então os ossos que

nunca soube existir, que eram profundos demais para ele. Não percebeu o sangue voar,

não percebeu a dor, apenas uma nova forma de prazer. Sim, uma nova forma de prazer.

Nunca imaginou que pudesse existir mais de uma forma, e se tivesse tido tempo de

perceber devidamente aquilo, teria sido causa de grandes mudanças na sua forma de ver

as coisas, mas em segundos estava tudo acabado e não via mais nada.

A última tentativa de tirar prazer de um brinquedo velho.

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Soneto do desarraigamento

"Oh what a fuss when the king rides by" - Cat Power

Escrevo um poema que não tem você

Ou melhor, tá no segundo volume

Sobretudo, uma obra que não se lê

em voz alta e tampouco se assume

Inebrio-te em mim com grande sobriedade

Já não me espanta que eu esteja imune

Martirizo-me em ti com um quê de Sade

faz do lobo da estepe mero vagalume

Regurgito a coroa em rebuliço

almiscarado, amargo e azedume

preparando meu show de sumiço

Declamo vis-à-vis um tapume

olvido armado pro tal do comício

e parlo de mim como um belo dum estrume

Garoa

Arde o ar na respiração do tóxico invisível de São Paulo. O sol que bate

insolente e ilumina com um calor que não aconchega, a desavença constante com os

ditos presentes da natureza: a metrópole insistindo em colocar o mundo contra nós.

Inspirado nas chacinas de todo dia, nos assaltos de todo momento, o natural de São

Paulo decide ser o violento. Na chuva pesada que deveria purificar, a água suja ao invés

de lavar; o corpo sangra ao invés de sarar. Encontrando o concreto cinza que se

confunde com a cor do céu, as gotas vertem como lágrimas inocentes que fingem

compadecer da dor do povo, mas no seu contato direto com ele, é a chaga venenosa que

a nuvem deliberou cuspir. Parado em meio a uma infinidade de veículos imóveis, escuto

as infindáveis buzinas como gritos de socorro, mas é provável que seja reflexo do meu

próprio desejo – lembro que, no inferno, ecoam berros excruciantes vindos de pessoas

que fizeram por merecê-los. A chuva, como o implacável diabo incomodado, impõe-se

sobre todo aquele estardalhaço ainda mais alto, na forma de trovão. Entro sob a primeira

tenda para acender um cigarro, olho a padaria que ela cobre, semi-alagada, totalmente

anônima, escolho um pão velho com a manteiga pingando gordura letal. Penso em você.

Virei para você esperando que me protegesse do mundo revoltoso como aquela

tenda. Queria algum lugar quente para me apoiar. Sua presença virou a casa que me

abrigava, oposto daquele apartamento do décimo-primeiro andar que me hostilizava,

detestava, torturava e parecia esperar a primeira oportunidade para me vomitar de volta

pra chuva. Sentir seu primeiro abraço na sarjeta da anarquia daquela festa, encostar no

beijo seco dos seus lábios sorridentes foi um convite para entender que o mundo tinha

um lugar para mim. Recorri a você como remédio prescrito, a maneira química de me

manter ligado a uma realidade suportável. Você foi como um copo de absinto depois de

uma ressaca; como cortar a pele para não sentir a queimadura.

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Na primeira vez que gritou comigo, revirei noites pensando na imensidade de

culpa que eu tinha. Nas seguintes, refletia apenas qual seria o meio certo de me

desculpar. Depois, acabava me entregando a seu sadismo, quando expunha suas traições

e trazia os melhores tipos de drogas e drogados para violar ainda mais meu vil

apartamento. Conversava com a monotonia barulhenta da chuva, interlocutora ideal para

minhas ideias atordoadas. Eu me esforçava para continuar digno de estar com você, e se

para isso devia estar no fundo do poço, me aliviava poder mergulhar. O sangue que

você tirava de mim não me machucava tanto quanto o que tirava de si mesma. Estava

satisfeito em poder entregar meu corpo imundo para seu uso vão, preferia que a sua

leviandade passional violentasse o meu ser sobre a aleatoriedade brutal da impessoal

cidade.

Agora, a fumaça que irrompe dos escapamentos me agrada por lembrar o cheiro

forte da nicotina que perfuma seu pescoço. A saudade que me consome por não saber há

quatro dias do seu paradeiro é controlada pelo oleoso pão que era a única comida na sua

cozinha: e sempre que eu dizia abdicar das minhas necessidades por me nutrir de você,

você gargalhava sarcástica, um sarcasmo doce de frieza apaixonante. Sei que você

nunca precisou de mim, ignoro por que me mantém e me satisfaço na ignorância. Me

resumo a seguir suas expectativas e rogar a esse céu impiedoso, que chora e grita de

autoritarismo insano, que você volte a abrir de vez em quando a odiosa porta que me

aprisiona em casa. Que você não se furte a bombear nas minhas veias seu indispensável

vício, a impulsão nervosa que recompensa minha mera existência, perfeito amor

paulistano.

Os Severinos

As latas e os garrafões assinalados,

Que da ocidental traseira RIana,

Por prédios nunca dantes inaugurados,

Passaram além da área urbana,

Em perigos e buracos lameados,

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo IRI, que tanto sublimaram;

Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre RIano,

O que nenhum deles jamais fizeram:

Cuequinhas de bom gosto divino,

Que até a Maria comprou um Severino

Porém já muitos anos eram passados

Que dali nos partíramos, esperando

O IRI nunca de outrem habitados,

Sem nunca estar perto de formando,

Quando uma noite, severinos obstinados

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Promessas foram firmando:

“Vou ver essa porra, antes de ser jubilado”

Mas um velho, de aspecto venerando,

Que ficava na reitoria, longe da gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós de lá ouvimos claramente,

C'um saber só de experiências feito,

Tais palavras tirou do experto peito:

"Ó glória de mudar! Ó vã esquerdista

Desta vaidade, seu rosto não engana!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

Quando enrola um e não me chama,

Como castigo lhe meto a puliça!"

Picolé de chuchu exigiu e reiterou:

“Tem que só estudar o dia inteiro”

Deixando o povo pensar que sustentou

Um bando de puta e maconheiro!

Baseado no poema "Os Lusíadas" de Luíz Vaz de Camoes

Meritocracia e cidadania no Brasil

A ideia de que o mérito e o esforço individual são os elementos-chave para uma

inserção social privilegiada é fortíssima no Brasil. Está impregnada em nosso

imaginário social de maneira tão profunda que muitas vezes a reproduzimos mesmo sem

perceber. Quem nunca ouviu quando pequeno em sua escola ou na sua própria casa um

discurso de exaltação ao esforço individual? A lógica é muito simples: você terá um

lugar ao sol na sociedade na mesma medida em que seu esforço individual for genuíno e

intenso.

Racionalmente é fácil entender que os determinantes da inserção social vão muito além

da mera atitude e esforço dos indivíduos. Como já afirmara brilhantemente Marx em O

18 Brumário de Luís Bonaparte: "Os homens fazem sua própria história, mas não a

fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas

com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado". Não é difícil

entender que o esforço individual só é relevante dentro de limites estruturais

determinados pelo contexto histórico-social em que se vive e em comparação com

aqueles que têm as mesmas oportunidades, estas também definidas estruturalmente.

Contudo, essa racionalização é incapaz de afetar de maneira significativa a nossa crença

no mito da meritocracia. Se passamos no vestibular, se somos aprovados em um

concurso público ou se somos selecionados em um entrevista de emprego: nós temos o

grande impulso de acreditar que isso se deveu majoritariamente a nosso esforço e

capacidade individual. Somos cumprimentados e reconhecidos por nossos pares como

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se a razão principal pela nossa fortuna fosse a nossa própria capacidade. É uma

consciência que vai muito além de uma opção ideológica.

No Brasil, não é preciso ser um liberal que acredita veementemente no Self-Made Man

para reproduzir esse comportamento. Obviamente que o discurso da meritocracia é

assumido e utilizado por uma elite pretensamente liberal para, entre outras coisas,

colocar-se contra medidas de cunho afirmativo e universalistas. Mas o fato é que mesmo

as pessoas que se beneficiam dessas políticas muitas vezes identificam que sua ascensão

esteve mais relacionada ao seu esforço individual de longa data – finalmente

recompensado – do que por qualquer outro motivo.

Um dos fatores que contribuem para a reprodução sistemática dessa crença e desses

comportamentos no Brasil certamente é a nossa (falta de) concepção de cidadania. Em

função de movimentos históricos que remontam a primeira metade do século XX, os

direitos fundamentais (e em especial os sociais) no país – mesmo alguns dos mais

básicos deles – se consolidaram muito mais como privilégios a serem alcançados pelos

que os “merecem” do que como direitos inerentes à condição de cidadão. Ou seja, em

muitos aspectos somos cidadãos na mesma medida em que “merecemos” sê-los: seja

porque temos dinheiro, um emprego valorizado no mercado de trabalho ou no

funcionalismo público.

Tendo isso em conta, clarifica-se o que realmente está por trás do discurso da

meritocracia: a necessidade de inserir-se e adequar-se a uma sociedade extremamente

estratificada e desigual para ser um cidadão de fato. A verdadeira questão não é a

nobreza do esforço individual em si, mas sim a capacidade de conseguir uma inserção

que lhe garanta o direito de realmente ser alguém na sociedade. Na verdade pouco

importa o quão esforçado ou não você é: o importante é conseguir, de alguma maneira,

essa inserção privilegiada nesse sistema de cidadania condicional.

Ninguém se comoverá com o seu esforço, por mais intenso e genuíno que ele seja, se ele

não se refletir em um resultado prático nesse sentido. Uma pessoa que não teve a

oportunidade de ser alfabetizada jamais será socialmente valorizada porque “se esforça

muito”. Aliás, quando nos defrontamos com a realidade, vemos que muitas das pessoas

que mais “se esforçam” são exatamente as que menos direitos e lugar possuem na

sociedade.

A construção de uma sociedade mais justa passará necessariamente pela superação

dessa concepção de cidadania condicional – que é causa e consequência do mito da

meritocracia. Para isso, teremos que problematizar nossas próprias atitudes e teremos

que enfrentar algo que há muito já está incrustado em nossa consciência.

Por mais bonita, conveniente e comovente que seja uma mentira – a qual aprendemos a

reproduzir nas nossas conversas de família e com nossos amigos – ela continuará sendo

uma mentira. Mentira esta que tem nefastas consequências porque ajuda na manutenção

de nossa estratificação social onde a cidadania de fato – sem condições prévias - é

bastante limitada ou quase nula.

Portanto, para enfrentar a já tão conhecida cegueira social do país e para que tenhamos

uma Sociedade Cidadã para além de uma Constituição Cidadã, comecemos nós mesmos

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enfrentando as nossas próprias cegueiras. A começar pela derrubada desse mito da

meritocracia.

Keith Jarret Solo Concert - O Escrever Qualquer Coisa Sob a

Inspiração de um Concerto de Jazz em 5 minutos

Os dias passam

Um nada de novo

Um mudar em um segundo

Um nada fazer e um tudo fazer

Numa harmonia imperceptível

O surprendente e o comum, em uma mesma rotina.

Entrar e sair.

Abrir e fechar.

O fogo que aquece e o vento que apaga

Os sentimentos que alimentamos

Os debates que travamos

Os caminhos incertos,

bem planejados...

E o notar no domingo, que mais uma semana se inicia.

We Don’t Care About The Young Folks Todos nós temos nossos guilty pleasures musicais. Sim, sim, você pode não

admitir o seu, mas ele está lá. Decidi que vou falar dos meus um pouco.

De vez em quando aparece um disco que eu gosto bastante. Muito mesmo. Seja

por questões emocionais ou por achar que aquelas músicas são realmente muito boas,

mesmo sem relacioná-las com nada em especial. Existem dois casos específicos nos

quais ouvi aquilo, gostei tanto, mas quando parei para observar tive que dizer: essa

banda nunca vai conseguir fazer nada que sequer se aproxime da qualidade disso. Nunca

mais.

Um desses casos foi o “Pretty. Odd.”, sim, um disco do “Panic At The Disco”.

Me julguem. O fato é que o disco é bom. Na verdade, é muito bom. As músicas são

otimamente pop (no sentido que o rock é música pop, e não no sentido Lady Gaga) com

letras interessantes e sonoridade boa. Nesse disco eles foram muito comparados aos

Beatles, e acredito que quiseram propositalmente fazer música de uma forma parecida.

Não deu certo. Não conseguiram escapar do estigma de EMO e a banda acabou se

dividindo, e voltando a fazer música ruim. Esse é um dos discos que mais gosto

atualmente, uma pena que o tenha conhecido só no começo do ano, por não ter achado

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que eles eram capazes de fazer algo legal. Mas não é sobre esse disco que quero falar

hoje.

Quero falar sobre “Wait For Me”, de uma banda chamada “Pigeon Detectives”.

Já ouviu falar deles? No longínquo ano de 2006 (eu me surpreendo em como minha

noção do tempo muda quando estou escrevendo essa coluna) eles foram escolhidos no

Reino Unido como “A banda que ia estourar em 2007”. Não estouraram. 2007 foi o ano

do Klaxons. Ainda assim lançaram um disco que ficou entre muitos dos “top 10 de

2007” nos blogs indies. Lembro vivamente pois foi por volta daquela época que

descobri a internet e pude finalmente parar de depender de amigos que me gravassem

CDs.

No fim das contas, “Wait For Me” ficou perdido dentre tantas outras bandas que

tentam fazer a mesma coisa. E pela simplicidade. As influências das bandas clássicas

são bem mais sutis nessa, mas estão lá. Acho que me atraiu como eram simples as

letras, burras em muitos momentos, e grudentinhas, e como não existia aquela

superprodução, com muitos efeitos e sintetizadores. Eram guitarras rapidinhas, mas não

corridas, não era nada demais, mas fazia bater o pé. E era fácil decorar as letras.

O disco seguinte deles, de 2008, foi uma merda.

PS: Fiquei tão comovido ouvindo novamente a banda que resolvi dar uma

segunda chance. Não é bom. A música não é boa, não é coisa “de qualidade”. Mas pode

ser exatamente aquilo que você está precisando.

(Dentre os títulos – e letras – estão pérolas como: I‟m Not Sorry e I‟m Always

Right)

Romantic Type: http://www.youtube.com/watch?v=b28ZNLRRt6U

You Know I Love You: http://www.youtube.com/watch?v=8ZALPqMrgio

I Can‟t Control Myself: http://www.youtube.com/watch?v=l6UkdXYyy6E

Elogio da loucura

Jura que me ama, essa mulher ingrata

Mas traz consigo a razão intacta

Sempre terrena, nunca sonha

Nem esquece o enterro, risonha

Não abraça minhas calças se estou fora

Nem faz novena se atraso meia hora

Há que ser um amor muito acanhado

que não desconcerta o verbo nem o bordado!

Não fantasia traições, minhas camisas não cheira

Tem eira e - ai, audácia! - tem muita beira

Nunca vi paixão tão amiga do juízo

A desalmada, pra me render um sorriso,

bem que podia fazer uma burrada

Cantarolando botar sal na goiabada...

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Rafael e o Irmão

Já tinha me acomodado no banco de aço, no canto direito da sala, que, aos poucos,

ganhava o calor do sol. Relutava em vestir o moletom, que já não esquentava tanto, mas

acalmava meus ânimos para o que seria o início de um grande jejum de atividades

básicas. Amedrontava-me a ideia de não conseguir tomar um simples banho. Lavar as

louças do jantar. Comida que provavelmente não teria sido feito por mim. As noites

seriam de úmero na horizontal, músculo braquial estendido, aaiii, flexionado, uuuhhh,

volta estendido, puta que pariu!

Ele deveria ser filho de puta mesmo. Pelo rasgo da parede entrou um fiapo de homem.

Sujo. Com a barba mal feita. Meio estrábico. Vesgo, na realidade. Sorriu. Riu, na

realidade. Mas rir? Para que rir? Você vai ser operado rapaz! Vão estourar suas veias

com uma droga tão forte que te deixará a disposição dos crimes mais perversos desse

mundo. Boa noite Cinderela? Puf! Dá uma rack pra ele! Puta que pariu! Para extrapolar

minha indignação estava de bermuda. Bermudão. Jeans. Com correntes, desenhos

coloridos. Juro que li escrito “mano” em algum lugar.

Oi. Oi. Oi. Oi. Depois de estabelecido contato, rasguei na minha curiosidade. Tá com

frio não? Cara, é mó trampo colocar calça com esse bagulho. E apontou para a bota de

gesso, que deveria estar colorida no mais branco dos brancos de propaganda de sabão

em pó. Porém, estava imunda. Marrom. Preta. Tinha até alguns objetos de procedência

duvidosa grudados na sola. Eu tinha muito cuidado com meu adereço que se pregava até

o pulso. Não esfregava em todos os cantos. Evitava comer com a mão tosca. Muito

menos deixava cair uma gota de água. Dois saquinhos para o banho. Tentei uma luva de

borracha, mas ela não passou nem do cano. Que bota é essa menino? Sabia que não era

o único que estava incomodado. É a mesma daquele dia. E caiu no riso. Mas não podia

molhar. Iiiii Tia, já molhei muito. Muito? É, choveu muito essa semana. Você molhou

na chuva? Água de rua? É, sacolinha no pé esquenta que é o capeta! Não quero nem ver

como está o seu pé; bom, deixa pra lá; depois eu vejo isso. O doutor vem daqui a pouco

preencher sua ficha.

E ele chegou naquele instante. Tentava parecer simpático. Às vezes até o era. Mas tinha

a arrogância de ser o residente com maior nota da turma – até nos plantões existem

fofocas, acreditem. Rafael? Eu. E riu. E fez o médico sorrir. Vamos, preciso fazer

algumas perguntas. Partiu do nome completo. Permeou o sexo. Insistiu no endereço. E

desculpou-se pela intromissão. É portador de HIV? Não senhor. Consome álcool? Como

qualquer um. Em algumas festas e nada mais. Fuma? Só maconha senhor. Gosto de

coisa da natureza. Esses negócios industrializados não tão com nada. O médico corou

com a sinceridade. Coisa rara hoje em dia. Esboçou o riso e saiu.

Não pude não sorrir também. A honestidade daquele homem de menos de 65 quilos,

branco, um metro e setenta de altura, sangue A positivo, conquistou minha simpatia. Ele

não escondia nada. Estava com frio, mas estava com preguiça de colocar as calças.

Andou com a bota de gesso para cá e para lá, transformando seu branco perolado no

mais profundo negro, e disse sem rodeios para a enfermeira, não inventou catástrofes

que sujassem suas pernas, muito menos culpou o cachorro ou matou o avô. Fumava

maconha sim. Não tinha problemas

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em esconder. Talvez não fumasse na cara da polícia militar. Talvez ainda não fumasse,

porque a moralidade dos cheiradores nacionais esbarra nas discussões no parlamento.

Bobeira. Rafael tinha orgulho de ser quem era, vestir o que vestia, andar onde andava e

fumar o que fumava.

Fala irmão. Fala irmão. Num susto da minha lentidão matinal, adentrou um negro, alto e

forte, cambaleando com uma mochila na mão. Tudo certo aqui. Ó! Trouxe camiseta,

bermuda, cueca, tem uns biscoitinhos aqui. Mas não posso comer agora. Ah é!; então

vou comer. E tem aquilo lá. E riram o riso mais frouxo e contagiante que já vi. Não

estava na altura da intimidade, então segurei meus lábios para não gargalhar com os

dois. E o que seria aquilo lá? Acho que era a Playboy de uma gostosona do reality show.

Poderia ser aquela comédia do caralho que saiu semana passada. Certeza era o stand up

do Marco Luque. Não, não! Era o riso. Rafael não precisava de nada pra se divertir. Ele

era o motivo da felicidade de si próprio. Nem revistas, nem filmes, nem shows, nem

drogas, nem minhas piadas sem graça. O cara era feliz. Um filho da puta muito feliz!

Entre o farfalhar de Rafael e o Irmão, descobri a radiografia de um fêmur estraçalhado e

de uma mão esfacelada. O magrelo que iria operar a perna, mas o negro saiu com

consulta marcada pra semana próxima: três meses de acidente de moto e não tinha

consultado o médico, resultado: todos os problemas, se fodeu – mas agora já deve estar

bem. O Irmão foi embora na tristeza e deixou um pouco pro Rafael. Ele tava tremendo,

chacoalhando a maca e quando viu a seringa gelou no alumínio. Chamou os santos, a

mãe, a vó. Tudo menos seringa tia! Vai ter que tomar! Não quero. Não vou conseguir.

Conseguiu. Tomou. Abriu o gesso da perna. Sepsia no pé. Quase tiveram que cortar

fora. Puta pé sujo mano!

Mano! Oi! Desculpa, você tava lendo. Magina! Eae, tá nervoso? Não tem como né cara.

Eu também tô. Mas eu tenho muito medo desses negócio de operar, cortar; não posso

com essas coisas não. E como você fez tudo isso aí? Atropelado por uma moto; tive

culpa nenhuma não cara; tava de boa lá. O menino era bom, de uma pureza que não se

encontrava nem nos pés desinfetados. Era uma criança. E foi com a dúvida medrosa de

uma infante que ele deixou a sala e subiu pro sétimo andar.

Rafael nunca iria morrer. Acho que nem crescer ele iria. Ele era o Peter Pan da Zona

Norte. Explorava a Cantareira com os Meninos Perdidos. Encontrava uma Wendy a

cada semana no pagode. E quando via um Miguel ou um João, não olhava de cima. Não

Olhava de Baixo. Apenas olhava. E ria o uivo dos Peles Vermelhas após a vitória sobre

os piratas do Gancho. Todos eram iguais e livres. Um democrata. Um filho da puta!

Antes que refletisse sobre a sua pureza, já tinha voltado. Eu continuava nas vestes

esverdeadas. Pensei na amizade de João e Peter. Como o conto, acabava de fazer um

amigo que nunca mais iria ver. Ta tudo bem Rafael? Ele nada respondeu. Ergueu a

cabeça anestesiada, me olhou com os olhos azuis embotados de lágrimas e ergueu a mão

esquerda com o polegar estendido. Rafael era a positividade pura da pobreza.

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Yellow Brick Road

“So, knowing that I fancied you for that long scares you?”

She didn‟t answer. She simply gazed at him, mouth barely open. Did she realize

it was exactly those answerless eyes that made him fall for her many months ago? He

could hardly believe she was there, right across the table, wearing one of his old

sweaters – which was quite tight – and drinking a mug of morning-after-coffee.

That was the first time they ever slept together. They had been fooling „round

now for a while. But he was the kind of guy who takes his time, and she never showed

any attempt of speeding things up, au contraire.

They simply stood there in silence. Are mornings after always this awkward?

***

A vida não é feita de respostas certas. Não é feita de caminhos fáceis. Disso,

todo mundo sabe. Eu sei, você sabe, até as telenovelas sabem. O motivo de ser assim é

um pouco mais difícil. Sem refletir muito sobre o tema, não é incomum que assumamos

que a culpa é nossa. Afinal, convenhamos, a culpa quase sempre é nossa, não seria de se

estranhar que nesse caso fosse a mesma coisa.

Agora eu começo a choradeira. Vocês me leem, sabem que sempre chega num

ponto em que eu faço isso. Especialmente aqui, onde tudo é uma forma disfarçada de

chorar.

Sempre tive a sensação de não me adaptar. É comum, especialmente quando se é

jovem. Acho. Não é uma questão de ser ou não compreendido. Não, nunca fiz questão

disso. Em último caso, a principal diferença entre a compreensão e a incompreensão é o

esforço empreendido para mostrar o que penso. Não, é muito mais fácil do que

simplesmente não me adaptar. É se sentir num grupo formado por pessoas que não são

apenas diferentes de você – isso é uma coisa boa, a princípio – mas sim de estar rodeado

de pessoas com quem você não funciona bem. Veja que estou falando sobre pessoas,

embora, na verdade, a maior parte das vezes nas quais isso acontece a questão é o lugar,

o clima, a situação. Não vou negar que as pessoas também são difíceis, mas sobre isso

eu já chorei o suficiente, você já conhece minha lenga-lenga sobre isso mais do que

bem.

Em geral, essa não-adaptação corresponde a uma sensação de que estou num

lugar demasiado pequeno – no sentido metafórico, claro, não sou uma pessoa tão grande

assim – para mim. É uma cidade muito pequena, o pensamento ali é muito restrito, as

possibilidades são muito restritas. Sabe lá Jung porque preciso tanto dessa amplitude.

Não é como se fosse ávido para aproveitar tudo que aparece pela frente, apenas preciso

saber que as chances estão ali.

Recentemente me acometeu uma variação dessa neurose. Eu me sinto muito

velho e cercado por um mundo de coisas muito infantis. A quantidade de vezes que

surgiram em minha cabeça, nas últimas semanas, frases como “não somos mais crianças

para fazer esse tipo de coisa” é assustador. E esse pensamento surge com todo tipo de situação: são as conversas idiotas que tenho de ouvir (e tento evitar ao máximo andando

com determinadas pessoas), é a necessidade estampada em diversos lugares de

confundir auto-alienação com diversão, é a minha própria dificuldade em me

comprometer, em me dedicar a qualquer coisa. São as desculpas de “não consigo

escrever pois minha musa não me está sorrindo”, “isso não é o melhor que posso fazer,

e por mais que me importe não faz diferença”. Mas faz diferença. Faz diferença para

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mim. Perceber isso deve fazer parte de crescer. De envelhecer. Começar a mudar isso

talvez seja o próximo passo.

Não me entendam mal, não mudei a minha filosofia. Continuo não dando a

mínima para as coisas que não me interessam, para as coisas que não conseguem se

comunicar intimamente comigo. Se não existe essa relação, não faz sentido perder

tempo. Tudo que não tem isso é uma perda de tempo: seja passional no fazer ou não

faça, faça com que seja perfeito ou não faça nada. A questão é que fazer com que seja

perfeito não parece mais ser suficiente: além de ser perfeito é preciso ser real. E não

tenha preconceitos com a palavra real nesse caso, ela provavelmente não significa o que

você está pensando, mas não existe nenhuma outra que possa explicar melhor, e disso

eu tenho certeza.

O problema deve ser estar preso sempre às mesmas pessoas já por muito tempo.

Não as mesmas pessoas reais, mas as mesmas pessoas arquetípicas. Todos os anos uma

nova enxurrada de pessoas iguais entra na nossa vida, você sabe disso. A diferença é

que nos últimos tempos – para mim – isso significa que elas tiveram que passar em uma

prova de vestibular. Talvez seja uma necessidade do mundo lá fora. Precisamos de

mudanças de vez em quando. Não seja sentimental quanto a isso. Você sabe que não é

sobre você que eu estou falando. Sim, você que colocou o nariz entre essas páginas,

você sabe sobre o que eu estou falando, e não é sobre você. E não é sobre a mentalidade

ou as opiniões ou o que seja. É sobre a infantilidade. E isso se encontra em todo lugar,

embora em alguns seja mais fácil evitá-la. A verdade é que eu também passei muito

tempo acreditando no “don‟t grow up, it‟s a trap”. Não, mentira, não era exatamente

isso. Existem formas e mais formas de se envelhecer. E certamente (em muitas delas) eu

sempre fui um pouco velho demais. Quando eu disse que não queria crescer era só

porque aquilo parecia o mais certo, e naquela ocasião fazia sentido.

Nisso tudo eu já perdi completamente a ideia do que eu queria dizer quando

falava de infantilidade. Certamente muitas coisas que gosto de fazer podem ser vistas

por você como infantis. Tenho certeza disso. Até pouco tempo atrás minha ideia de

juventude era uma coisa completamente diferente, que hoje eu considero que era

completamente errada. Talvez essa mudança tenha me feito desprezar um pouco mais

coisas das quais eu já tinha uma certa repulsa. Acho que é a ingenuidade o problema.

Quando se percebe que o mundo está além – ou aquém, depende de você – dos montes

de baboseiras e pressuposições românticas é difícil se manter a ingenuidade. Até a

ficção tem de ser suja, até as histórias mais fantásticas tem de ter sangue correndo em

suas veias, caso contrário é brinquedo, no sentido de ser tudo que as crianças querem de

presente.

***

A sensação que mais detesto é, provavelmente, a de não saber. Sim, é

narcisismo, é megalomania e tudo o mais, mas é verdade. Preciso saber como agir, o

que fazer, o que aconteceu, preciso sempre aprender coisas novas. Não estudar, não me

dedicar (precisaria de toda uma nova reclamação para falar sobre dedicação e

procrastinação), mas aprender. Sentir as paredes do cérebro se ampliando

vertiginosamente. Não saber algo, especialmente não saber como agir em determinada

situação, é a pior coisa que me pode acontecer.

***

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Eu nunca consegui fazer parte de uma banda de verdade por vários motivos. Um

deles é que as músicas que componho simplesmente não batem com as que quero tocar.

Sei que se fizesse parte de uma banda seria uma daquelas com guitarras rapidinhas,

forte, simples. As minhas letras, no entanto, são sempre de músicas muito lentas, muito

folky, muito tristes.

***

people shouldn't be like this

it's way too heart-felt

way too sensitive,

too easy to break.

It's a large tree

whose foundations

should run deep,

but instead

longs for the air.

It tries to reach the sun

with it's roots

and to hold the world

with it's leaves.

O filme “Histórias Cruzadas” e o imaginário das lutas sociais

Filme: Histórias Cruzadas (The Help – 2011, EUA), direção e roteiro

de Tate Taylor.

“Aquele preto, tão preto/ Co‟aquela barba branca, tão preta/E aquele olhar tão meigo/ de

quem espera ganhar/ um sorriso incolor” – Preto Velho, Ney Matogrosso

Moça bonita que não é vista como bonita, buscando independência e inserção no

mercado de trabalho numa época de muita repressão de gênero, mas que no meio do

filme cai no conto do príncipe encantado que depois larga ela por ter buscado

independência demais, resolve lutar por uma causa maior. Em meio a um vilarejo no

Mississipi, dentre os últimos redutos do regime de segregação racial nos EUA, a moça

resolve denunciar a hipocrisia velada e silenciosa de uma gritante violência que traça

muito bem os limites de classe e raça. Para tanto, a moça consegue convencer uma série

de trabalhadoras domésticas negras (não sei qual o termo politicamente correto pra

designar uma profissão como essa que já é politicamente incorreta, por ser um ofício

precário predestinado a uma determinada classe, um gênero e uma raça) a deporem

sobre as suas condições de trabalho, ao final publicando todos os relatos em um

bestseller através de uma editora nova iorquina.

“Filme racista”, diz o prestigiadíssimo Walter Porto Neto. Mas eu até chorei,

Walter, “aposto que você foi ludibriado pelo melodrama da empregada velha”.

Segundo esse e vários outros críticos, a centralidade da personagem branca e a

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passividade das trabalhadoras negras denuncia um filme que trabalha reforçando

estereótipos e desapropria a luta do movimento negro. “The Help is a high-functioning

tearjerker, but the catharsis it offers feels glib and insufficient, a Barbie Band-Aid on the

still-raw wound of race relations in America.” (Dana Stevens em

http://www.rottentomatoes.com/m/the_help/).

De fato, o filme é racista, mas por outros motivos. Para ilustrar minhas razões,

evoco outro prestigiadíssimo ilustre amigo. Pedro Ferraracio Charbel foi observador

internacional na Palestina e me contou sobre como é a luta desse povo que vive sob o

que ele e muitos outros chamam de um verdadeiro “apartheid”. Apesar de serem

massacrados e terem suas casas destruídas diariamente além dos milhões de obstáculos

impostos por Israel e afins à dignidade humana, muitos palestinos ainda pleiteiam

subempregos em assentamentos judeu-ortodoxos (situação parecida com a das

trabalhadoras negras no filme). Passividade?

Quero desconstruir a concepção de que o martírio é a única legítima forma de

resistência. Pode-se depreender, do que é retratado no filme, que a moça branca é, no

final das contas, a heroína que deu as caras a bater e num ato de coragem promoveu a

igualdade das raças no baixo Mississipi e, por conseguinte, as trabalhadoras não são

agentes dessa revolução. Do contexto institucional e cultural dessas realidades, num

estado conservador dos EUA na década de 60, o enfrentamento público por parte de um

negro muito provavelmente resultaria em algum tipo de retaliação, prisão, linchamento

ou morte. Classificar o negro que não se insurge de desprovido de coragem é comprar o

discurso da ética protestante-capitalista que nega as construções histórico societárias e

depositam sobre o indivíduo toda a culpa de sua condição. Ou, para nós ao sul do

Equador, deve haver algum resquício da moral cristã que nos diz que sem a cruz não há

heróis ou que sem a renúncia não há santo. Mas a sociedade e os movimentos sociais

não podem viver de uma trupe de São Franciscos de Assis.

Em uma segunda leitura, podemos entender que a resistência está lá, que as

trabalhadoras não estão passivas diante da situação. “Existir é resistir”, disse-me uma

vez Pedro Charbel (e eu tenho repetido isso quase como mantra). A trabalhadora negra

no filme não é apresentada como uma combatente militante, pois isso seria uma

inverdade histórica, a não ser que ela estivesse realmente na condição de combatente

militante, o que não era o caso. Entretanto, as maids são agentes ativos dessa luta por

igualdade em outras dimensões mais sensíveis abordadas no filme: combater o ódio

com a tolerância, ensinando às filhas dos brancos a se respeitarem e a respeitarem aos

outros - independentemente da lógica burguesa discriminatória a que eram submetidas –

é um exemplo disso. Mas para além desse aspecto aparente e apelativo, as grandes

vitórias políticas das trabalhadoras negras que podemos observar são como essas

personagens consegue construir uma consciência de classe e como elas passam a

desenvolver uma narrativa própria de sua condição, assumindo o papel de sujeito

histórico, exatamente tirando o protagonismo do branco. Ao projetar esse tipo de

conquista, faz-se uma revisão que devolve a historicidade de um povo, de uma classe

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que sempre foi estudada sob o prisma de uma guerra de secessão entre proprietários de

terra e industriais e de um jogo político de parlamentares brancos de cartolas negras.

Apesar dessa minha militância pró esse filme até então, o desfecho é ridículo e

acaba com as minhas esperanças de uma vida melhor. Na trama, uma das socialites é

marginalizada pelas outras porque casou com um homem que era cobiçado por todas.

Além disso, ela sofre o temor de aceitação do marido, pois não consegue parir um filho

dele – ou seja, desempenhar o único papel social que lhe cabe. No desenrolar da

história, a empregada negra ajuda a socialite a se aceitar melhor, o marido surge do nada

se mostrando muito esclarecido e, irradiando bondade e empatia, aceita muito bem tanto

a esposa quanto a negra, dizendo-lhe: “aqui você sempre terá um emprego, se quiser, é

claro!”.

Nesse momento, a gente compreende bem o que é essa tal de liberdade num

estado democrático de direito: é a de que qualquer pessoa pode ser aceita por uma

sociedade patriarcal, branca, burguesa e moralista. O processo não é de uma construção

de uma sociedade igualitária e verdadeiramente democrática, mas sim a de uma inserção

forçada de um elemento estranho a ser adaptado nas estruturas construídas para um tipo

específico de desenvolvimento social. Um grande e rebuscado movimento catártico de

acolhimento.

Transpondo para os dias de hoje na nossa sociedade, podemos problematizar um

pouco o que é essa luta das mulheres pelo mesmo teto salarial que os homens e o que é

a luta pelas cotas raciais na universidade. Obviamente, eu não os nego de forma alguma

e recuso-me a me opor a esses movimentos sociais em qualquer instância, mas o

questionamento deve ir um pouco além disso, pois a igualdade não se encontra nesses

remendos institucionais que buscamos fazer, mas sim em mudanças culturais e

estruturais profundas.

Será que alcançaremos os patamares de igualdade quando uma mulher estiver

em pé de igualdade nesse mercado de trabalho que temos aí? Se pensarmos em uma

pauta quase simplista desse debate, que é a questão de quando as mulheres engravidam,

elas comprometem a produtividade da empresa, podemos verificar que o mercado de

trabalho foi construído por homens para os homens, apenas inserir ou acolher as

mulheres nesse mundo seria suficiente? Na mesma chave, será que colocar negros

cotistas nas universidades vai mudar muita coisa? Ou vamos estar só formando mais

profissionais negros para um mercado de trabalho construído pelo homem branco? As

mudanças verdadeiras em questão de democracia racial só serão atingidas quando a

universidade for pensada também por negros. Quando na USP tivermos um Núcleo de

Consciência Negra da USP, quando a representação dessa classe identitária no espaço

universitário for proporcional a essa população e quando as estruturas universitárias

forem realmente democráticas e dialógicas, aí sim o problema estará resolvido e para

isso sim a cota será provavelmente necessária. O que acredito é que precisamos ouvir os

oprimidos, fortalecer suas identidades e lutar junto com eles para que sejamos todos

sujeitos de uma história construída de forma igual.

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PULP

Esse é um fragmento de uma estória maior que eu batizei de “Very Romantic”. A ideia

é que essa versão maior faça, por sua vez, parte de um projeto ainda mais

megalomaníaco, chamado Angst. Alguns outros fragmentos já devem ser conhecidos de

vocês, mas esse foi feito para ser colocado aqui e acabou sendo incluído lá.

***

As músicas eram sempre as mesmas. Antes, quando tudo era incerteza, era Maroon 5.

Depois, quanto não queria mais sentir, era Boy & Bear, Kings of Convenience e doses

cavalares de Graham Coxon.

A alimentação era sempre a mesma. Basicamente nada, apenas água. Antes e depois.

Sempre.

A insônia, também, era sempre a mesma. Horas e horas rolando na cama, as luzes

apagadas, esperando o telefone tocar, mesmo às 3 da madrugada. Mas ele não ia tocar.

Não mais. Não naquela noite, e não em qualquer noite em que fosse tentar dormir. Os

pensamentos – todos bobos, do tipo que só servem para não nos deixar dormir – se

repetiam em sua mente, sempre diferentes, mas sempre iguais. É sempre igualmente

difícil se reacostumar a dormir depois disso. Depois de tanto tempo. É difícil voltar a

dormir sozinho depois de dois anos dormindo com alguém. Tendo alguém sempre ali,

deixando a cama mais quente, alguém para abraçar. Sim, o contato é o que mais faz

falta. É difícil reaprender a dormir sem se sentir tocado. Inteligentes são as pessoas do

leste europeu, que dormem cada qual em sua cama e usam divãs para as necessidades

mútuas. Será que ainda é assim? Não os visito já há décadas.

Ela se cobriu com diversos lençóis, edredons, todo esse tipo de coisa. Não estava

especialmente frio, de forma alguma, mas ela achou que aquilo fosse ajudar, fazer com

que se sentisse tocada. Aos poucos, com o passar dos dias iria tirando cada uma das

camadas, até que pudesse dormir sem a necessidade de sentir aquele contato. Aí então

teria superado. Sim, apenas então.

Seria fácil achar alguém para esquentar a cama. Todos sabem disso. Ela sabia disso.

Mas chamar isso de dormir é apenas um eufemismo. Dormir – a coisa em si, sem

eufemismos – exige mais do que isso, exige demais. Exige não falar nada. Ou falar

muito pouco. Envolve não fazer nada, a não ser alguns toques sutis. Ela sempre achou

que o silêncio era o mais importante. É preciso não se incomodar com o silêncio para se

conseguir dormir com alguém. Pois é só quando o silêncio está lá, mas não causa

nenhum estranhamento, que se pode dormir. Caso contrário, não passa de uma noite de

insônia. Não muito diferente da que ela já estava tendo agora. Porque o silêncio sozinho

incomoda tanto quanto o silêncio com o desconhecido. Pelo menos em situações como

essa, quando pensar é doloroso demais, quando lembrar não vai nos acalmar, mas, ainda

assim, não podemos fazer nada além disso. O futuro parece muito incerto, muito mais

assustador, melhor lembrar de coisas boas, de coisas bobas, de detalhes. Sofremos, mas

é um pouco menos, é um sofrimento quase necessário, é luto e mais um pouco.

“[...]this sense of self-evasive solitude. It means way too much to me.”

Dentro da cabeça dela era como um musical. Diversas bailarinas, de todas as idades,

dançavam, vestidas odiosamente de rosa. Todas, em coro, profetizavam: “ficarás

sozinha, perdeste tua única chance. Mas sempre desejarás alguém ou alguma memória.

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E mesmo as memórias irão te rejeitar. E sozinha, bem sabes, feliz nunca serás. Nunca

abdicarás aos prazeres que um dia experimentastes, mas nunca reencontrá-los-á em

qualquer outro lugar!”

E a música continuava, e a profecia machucava, e o mundo rodopiava. Ela sabia que era

verdade. Não conseguiria deixar de desejar sentir novamente aquilo que uma vez já

sentira. E se fosse verdade também que nunca reencontraria algo parecido?

“Oh, what is there to know, this is what it is.”

Não, tinha de se conformar. Era forte. Sempre fora. Por que agora seria diferente?

Vivera sozinha por anos antes daquilo, não seria apenas uma noite de insônia, uma noite

de assombrações, fantasmas shakespearianos em forma de bailarinas que iram fazer com

que perdesse a razão. Era isso, e agora tinha de aprender a lidar, lidar com tudo, com

solidão, com cama e casa vazia, com recomeços. E quem disse que não podia lidar bem

com isso? Por acaso precisava acreditar nas filhas de seu medo? As shivas que

dançavam para destruir sua já parca sanidade?

Não, não. Não era tão difícil assim. A solidão também tem seus prazeres, sem dúvida.

Lembrava que, anos atrás, gostava de dizer isso para quem quisesse ouvir. Era uma

forma de defesa, mas era também uma forma de verdade. Por que não poderia

reaprender? Podia ser verdade, talvez houvesse apenas esquecido. Sim, era isso, era só

um desespero, passaria logo, talvez até antes das cobertas. Sim, sem dúvida passaria

antes das cobertas, era forte. Mas naquele momento não era. Naquele momento estava

lá, na cama, insone e ouvindo músicas que ajudavam a esquecer. Ou talvez ajudassem a

lembrar, difícil dizer. A certeza que ia se recuperar lhe morria, por vezes, para em

seguida voltar. Porque naquele momento ainda não era hora, ainda estava longe. E quem

poderia criticá-la. Afinal, foram anos, anos de espera, e de desejo e, por fim, anos de

realização, e de camas quentes, e de dormir com sussurros lhe servindo como música.

Qual o problema de que agora, finalmente tendo de dormir com música nos ouvidos –

mesmo que fossem num volume tão baixo que poderia lembrar os sussurros – e cheia de

cobertas, por que não poderia se mostrar vulnerável para si mesma?

Era estranho pensar que um dia já gostara de estar só, que um dia poderia voltar a

gostar. Não, não poderia. Naquele momento nunca pensaria isso, seria eternamente

assim, e eternamente sofreria, mesmo que a eternidade durasse apenas alguns dias.

“Wondering why life’s nothing but sorrow.”

As bailarinas não foram os únicos fantasmas a visitá-la naquela noite. Elas eram os

fantasmas dos natais futuros, que, com sorte, nunca iriam chegar. Depois lhe veio o

fantasma dos natais passados, e esse era ainda mais difícil de lidar. Não bastava

pensamento positivo, não bastava fé ou o que fosse. O passado não se apaga. Se

esquece, se esconde. Mas será possível esquecer e esconder tantos anos, e todas as

marcas por eles deixados? Não, não era. Ela seria uma pessoa completamente diferente.

Era tarde demais para mudar agora. Podemos mudar tudo, no entanto, depois de certo

tempo, não conseguimos mais mudar o que somos, se é que algum dia pudemos. E o

que ela era não passava de um eco, uma cantiga que tinha cantarolado junto do fantasma

de seu passado. Lembrava tudo que tinha aprendido nos últimos anos, de como tinha

amadurecido, não era mais uma menina, não era mais uma criança, e como seria agora,

voltar ao mundo dos solitários sem aquela inocência, sem aquela disposição jovem,

afinal. Lembrava os livros e filmes que tinham visto juntos, de como os gostos tinham

se moldado e variado, tanto quanto suas personalidades, mas sempre tendo um

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parâmetro, um apoio. Lembrou como era entrelaçar seus dedos, de como tinha sido

irracional, desde a primeira vez que haviam se beijado. Especialmente na primeira vez

que haviam se beijado.

E ela não soube se foram os fantasmas ou a música que disse:

“Stay out of trouble, stay in touch. Try not to think about me too much.”

Heavy Heart (Dark Dark Dark)

A gente nunca sabe o porquê das coisas acontecerem na hora que acontecem. A avó

dizia que era porque Deus assim quer, mas vai saber.

A sala estava apinhada, mesmo com os netos comendo na cozinha entre berros e

estrépito de talheres (é tanta vida naqueles projetos de gente que ela escapa pelos

movimentos desengonçados e se espalha pelos objetos inanimados). Desde a morte da

vó tinha ficado difícil juntar todo mundo naquela casinha.

A comida, trazida (em doses não tão homeopáticas assim) por todos, transbordava pelas

beiradas da mesa. Diferentes conversas dançavam pelo ar cheiroso de queijo derretido.

O avô olhava silencioso da cabeceira, com um sorrisinho de dar inveja à dona Lisa.

Tinha comido um pouco demais, diagnosticava, apertava-lhe o peito. Nada sério.

Da sala vinha a música agradável do moço (agora já velhinho) do banquinho e violão.

Aquela voz minúscula de João se afogava no oceano de ruídos, falares e miares. Os

gatos estavam assanhados com tanta fartura.

Só danço samba, só danço samba...

- Vai, muda lá a música! Alguém dança um bolero comigo?

- Pede pro pai! Ninguém mais sabe dançar isso.

O vô coçou a careca resignado e se levantou devagarinho, contornando a mesa com

cuidado para não bater na quina. A filha trocou o vinil, e aconchegou-se ao pai.

...-tarara-ta-ta-...-tarara-ta-ta-...-tarara-ta-ta...

De passadas miúdas, os dois giravam pela sala. A filha atentava aos móveis para evitar

um trombo. Una vez, nada más, se entrega el alma con la dulce y total renunciación

O vô ditava a cadência. Firme e frágil, completo no paradoxo da velhice. Estava

abafado ali, o ar, viciado. Aquela pressão no peito anunciava uma indigestão. Anunciou

sua saída ao jardim, e três pirralhos correram para fora.

Ali, segurando o velho balanço de pneu, descansava o pé de abacate, plantado por ele e

a vó há muito. Parecia ter deixado de crescer quando ela se foi, refletiu o velho. Apoiou-

se no tronco ríspido, pois se sentia mais pesado. O que queijo não faz com a gente.

Abacateiro serás meu parceiro solitário nesse itinerário da leveza pelo ar

Hora da sesta, por que não? Recostou-se no companheiro, virado para olhar os netos,

que saracoteavam pela terra e puxavam os rabos dos gatos descuidados.

Pesavam-lhe as pálpebras. Pesava-lhe o peito. Pesava-lhe o sono.

E depois, virou leveza.

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Devaneios do esquerdista autodesconfiado

Se o passado e o ser humano são dialéticos desde sempre,

Por que haveria de ser o futuro irremediavelmente coerente?

Se só podemos nos identificar porque há aqueles em oposição

Em que vamos nos transformar, depois da tal revolução?

Prever cientificamente um paraíso na terra talvez seja em vão

E só nos torne igualmente cegos àqueles cegos pela religião.

Se não é possível ainda, por isso, se fazer conformar

Outra escolha não resta, a não ser considerar:

Abraçar a complexidade, fugir da perfeição,

Enfrentar a realidade e não temer a contradição.