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filosofia da música
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7/17/2019 08_2014 Antinomia Da Expressao - Philippe Curimbaba Freitas
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Esta msica se prope a manter-se firme e consciente ante a
experincia da escuta regressiva. O espanto que Schenberg e Webern
suscitam, agora como antes, no emana da sua incompreensibilidade,mas do fato de que so compreendidos bem demais. Sua msica
configura de imediato aquele medo, aquele terror, aquela percepo da
situao catastrfica da qual os demais apenas querem se safar,
retrocedendo. So chamados individualistas, quando na realidade sua
obra no mais do que um nico dilogo com os poderes que
destroem a individualidade poderes cujas deformes sombrasincursionam hipertrofiadas em sua msica.
Adorno, Sobre o Carter Fetichista da Msica e a Regresso da
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Agradecimentos
profa Lia Toms por ter me orientado no mestrado, pela confiana depositada neste
trabalho e pela liberdade que me concedeu.
Ao prof. Flo Menezes pelas pertinentes crticas e comentrios, inclusive na banca de
qualificao do mestrado.
Ao prof. Mario Videira por ter participado da banca de qualificao e pela ateno
que dedicou, nesta ocasio, leitura do trabalho.
Ao prof. Jorge de Almeida, que me fez relembrar do primado do objeto.
Ao Eduardo Socha pelas agradveis e proveitosas conversas de almoo que me
alertaram para questes fundamentais.
Patrcia Kruger pela ajuda sistemtica com a lngua alem.
Raquel Simes, pelo companheirismo e pelas vrias ajudas ao longo do percurso.
Aos funcionrios da UNESP que mantiveram o espao em funcionamento para a
realizao da pesquisa de que este livro resultado.
Por fim, CAPES pela bolsa de estudos concedida.
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ndice
Introduo......................................................................................................................7
1 A expresso antes do expressionismo...................................................................13
1.1 Paixes simuladas ...........................................................................................15
1.2 Autonomia da forma e expresso ...................................................................24
1.3 Harmonia ........................................................................................................422 Fetichismo: a expresso bloqueada.......................................................................61
3 Expressionismo: o sismgrafo e a crtica da tradio ...........................................73
4 Expresso e forma emErwartung.........................................................................85
4.1 Estrutura Motvica ..........................................................................................88
4.2 A crtica da autonomia e os novos meandros da tcnica temtico-motvica 105
4.3 Figura e intervalo..........................................................................................116
Consideraes Finais.................................................................................................131
Bibliografia................................................................................................................139
ANEXOS...................................................................................................................143
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Introduo
Foi necessrio que se adquirissem os princpios da pintura, da arquitetura, damsica, e se desenvolvessem estticas especiais. Sem dvida, as ltimas nopodem fundamentar-se mediante uma simples adaptao do conceito geral debeleza, porque este aceita em cada arte uma srie de novas distines. Cada artedeve ser conhecida nas suas determinaes tcnicas, [cada arte] quer sercompreendida e julgada a partir de si prpria (Hanslick, 2011, p. 8).
J em meados do sculo XIX a metafsica do belo que, no dizer de Hanslick,
subsumia as artes individuais a uma especulao metafsica sobre o belo em geral
era vista como problemtica por dispensar a reflexo esttica de uma considerao
particularizada sobre as questes tcnicas envolvidas em cada uma das artes e de uma
anlise de como essas questes se apresentam nas obras singulares. Essa falta de
vnculo entre a esttica e a anlise tcnica culminou, pouco mais de meio sculo
depois, nas severas crticas de Arnold Schoenberg aos tericos da msica, os quais,
segundo o compositor, emitiam juzos, a partir de noes infundadas de belo e feio,
sobre msicas que no compreendiam (Schoenberg, 2001, p. 45). A acusao de
Schoenberg se insere em um contexto no qual a especulao esttica sobre o belo
degenerou-se, conforme afirma Dahlhaus, em justificao do estado de coisas
existente, e em cujo nome os guardies de tradies esgotadas protestavam contra onovo, que no compreendiam e ao qual se fechavam (Dahlhaus, 2003, p. 11).
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A defesa schoenberguiana da tcnica artesanal em detrimento do juzo esttico
abstrato (Schoenberg, 2001, p. 41-47) pode ser tomado, ainda hoje, como uma
advertncia sobre a importncia da considerao de questes tcnico-musicais para
uma esttica musical que realmente pretenda compreender seu objeto. O que se
encontra nas pginas seguintes o resultado de uma pesquisa atravessada desde o
incio por essa preocupao de articular a esttica musical e a anlise. O impulso por
esta articulao um dos poucos elementos que se mantiveram inalterados desde o
incio deste trabalho.
Nosso objeto o monodrama Erwartung, Op. 17 de Arnold Schoenberg,
composto em 1909, uma das obras expressionistas do compositor. Ao afirmarmos
que uma obra musical expressionista, criamos uma srie de questes ao invs de
nos aproximarmos de sua essncia. Se nas artes plsticas a existncia de grupos e
revistas expressionistas pode simplificar a tarefa de um pesquisador, possibilitando
buscar nos prprios textos escritos por seus membros uma caracterizao do
movimento, no caso da msica isto no ocorre: o que h no um movimento
declarado, mas uma tendncia mais ou menos comum observada entre algunscompositores, os quais no se consideravam nem expressionistas, nem adeptos a
qualquer ismo. O termo expressionismo pode referir-se a fenmenos muito
diferentes, no entanto, certo que, entre as produes artsticas do expressionismo
em geral1que datam das primeiras duas dcadas do sculo XX, encontra-se presente
um impulso comum. Embora no se defina por formas especficas ou pordeterminados procedimentos gerais, este impulso comum constitui um horizonte
esttico, apresentado por Adorno nos seguintes termos:
Primariamente como expresso de um novo nimo apreendido na cultura, por umlado; resultado de um crescente desenraizamento dos compromissos de estilo, por
1 Uma caracterizao ampla das questes estticas que estavam em jogo no contexto artstico doexpressionismo pode ser encontrada em Crtica Dialtica em Theodor Adorno(Almeida, 2007) e O Debatesobre o Expressionismo: um captulo na histria da modernidade esttica (Machado, 1991).
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outro; criao e ao mesmo tempo reao, o Expressionismo coloca o Eu de modoabsoluto, exige o grito puro (Adorno, 2009a, p. 589)2.
A postura esttica representada por Erwartung evidencia essas duas
caractersticas: em primeiro lugar, a busca de uma expresso renovada e, em
segundo, a desobrigao frente ao cnone tradicional e, mais do que isso, a imposiode uma ruptura com os padres formais e estilsticos que o constituem. A expresso
exige, pois, a recusa dos procedimentos formais que at ento garantiam a
inteligibilidade da msica. Assim, a postura esttica desta obra define tambm uma
relao determinada entre expresso e forma, relao esta a cujo estudo este trabalho
se dedica.Nosso objetivo amplo estudar a singularidade de Erwartung e do
expressionismo, em geral naquilo que podemos denominar uma histria do conceito
de expresso, o que inclui, confirme mencionamos acima, o estudo das relaes entre
a expresso e seu oposto, a forma. Contudo, esta tarefa demandaria uma anlise
aprofundada do monodrama em todos os seus aspectos, bem como um estudo maiscompleto da recepo da obra e dos escritos estticos que abordam o expressionismo.
Isto tornaria possvel confrontar entre si tanto as abordagens analticas como as
posies dos diferentes autores que participaram dessas discusses estticas. Tendo-
se em vista que tal proposta tornaria a pesquisa demasiado extensa, optou-se por
tomar como objeto a recepo da obra pelo filsofo Theodor Adorno, pois trata-se de
um autor que abordaErwartung,inclusive em seus aspectos tcnico-musicais, a partir
de uma esttica profundamente articulada com o pensamento filosfico como um
todo3. Assim, um dos nossos objetivos desdobrar, na forma de uma anlise tcnica,
a caracterizao que Adorno faz da obra, principalmente na sua Filosofia da Nova
Msica.
2 Este trecho pertence ao ensaio Expressionismo e Veracidade Artstica, em que o autor reflete sobre osimpasses da literatura expressionista. Embora o tema do ensaio seja a literatura, certamente possvelestender tambm para a msica o impulso esttico nela presente.3A respeito disto, vale salientar que aFilosofia da Nova Msica, de Adorno, foi concebida pelo autor comouma digresso Dialektik der Aufklrung [Dialtica do Esclarecimento] (Adorno, 2004, p.11).
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O captulo A expresso antes do expressionismo apresenta a concepo de
Adorno sobre o conceito de expresso referente msica anterior ao expressionismo.
O filsofo identifica nessa msica duas formas de expressividade essencialmente
distintas, contra as quais o expressionismo lana um golpe: a expresso como
simulao de paixes; e a expresso como organizao total da obra a partir de um
Eu ordenador. No primeiro caso, a expresso depende de uma relao de
significao, isto , os caracteres musicais devem constituir significantes que
expressam significados extra-musicais. Sua formulao esttica aparece na chamada
Esttica do Sentimento. No segundo caso, o que constitui a expresso a
subordinao de todos os elementos particulares ao princpio de unidade e totalidade
estabelecido pela forma autnoma, cuja ideia corresponde de um sujeito autnomo,
capaz de estabelecer o nomos da forma a partir de si prprio e subsumir a
multiplicidade dos estmulos sensveis unidade do Eu. Sua formulao esttica
encontra-se fundamentalmente em Eduard Hanslick, mas tambm na sociologia da
msica de Max Weber.
O captulo Fetichismo: a expresso bloqueada expe o conceito adorniano defetichismo musical. O advento da indstria cultural e a mudana do lugar social
ocupado pela msica acarretaram transformaes na estrutura musical, cuja
consequncia mais imediata para a msica como um todo foi a reverso de cada uma
dessas duas formas de expressividade mencionadas acima em seu oposto, isto , em
um bloqueio expressivo, ou fetichismo o que tem aqui o mesmo sentido. Destemodo, na medida em que almejavam a expresso, os compositores j no podiam
mais recorrer aos antigos meios expressivos. A expresso como simulao de paixes
sobrevalorizava a parte, o elemento momentneo, em detrimento do todo, ao passo
que a expresso como subsuno do momentneo ao Eu ordenador sobrevalorizava a
totalidade abstrata. At o incio do sculo XX isto no era um problema: aexpressividade da msica tonal dependia de uma tenso irreconcilivel entre as partes
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e o todo, entre o singular e o universal. Em contrapartida, a msica-fetiche concilia
ambos momentos, mas apenas em aparncia.
O captulo Expressionismo: o sismgrafo e a crtica da tradio uma
aproximao analtica ao expressionismo schoenberguiano em geral, e a Erwartung
em particular, a partir daFilosofia da Nova Msica. Explicita-se aqui a dinmica por
meio da qual o impulso expressivo presente na obra se desdobra em uma crtica
trplice msica tradicional: 1- a crtica do tematismo; 2- a crtica do ornamento e da
aparncia musical; 3- a crtica da universalidade abstrata. O princpio expressivo de
Erwartung conduz esteticamente a uma crtica do fetichismo, fetichismo este cujas
consequncias no se limitam produo e difuso de mercadorias musicais
padronizadas, mas se estendem a ponto de colocar problemas espinhosos prpria
composio musical. No expressionismo schoenberguiano, desaparece a concepo
unitria da obra de arte autnoma bem como os momentos musicais de fcil
assimilao, constitudos a partir de esquemas gerais conhecidos, de modo que tanto
a sobrevalorizao do momentneo como a da totalidade abstrata so radicalmente
evitadas. Esse golpe ao fetichismo se manifesta tanto na estrutura harmnica como na
temtico-motvica. A estrutura harmnica no ser desenvolvida em todo o seu
alcance, mas fundamentalmente naquilo em que se diferencia da harmonia tonal: a
dissonncia emancipada.
J a estrutura temtico-motvica ser abordada no quarto captulo, Expresso
e forma em Erwartung, onde se desenvolve uma anlise motvica de Erwartung.Com base nesta anlise, apresentamos a relao entre forma e expresso na obra.
Partindo de trs abordagens analticas da obra de Hans Heinz Stuckenscmidt,
Herbert Buchanan e Carl Dahlhaus , a anlise sistematiza trs grupos motvicos que
articulam a obra como um todo. Contudo, o aspecto fundamental desta obra que deve
ser levado em conta em sua anlise o abandono de todos os recursos em virtude dosquais a msica se constitua como uma linguagem autnoma, isto , estruturada a
partir de critrios intra-musicais. A posio de Erwartung contra a autonomia da
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forma, que se manifesta na descontinuidade temporal, probe uma anlise que se
limite descrio e caracterizao dos motivos que constituem o tecido da obra, j
que o papel desses motivos e de suas mtuas relaes no o de serem percebidos
enquanto tais e imediatamente, mas o de construrem a expressividade. A anlise
musical que se segue permite identificar a relao da articulao motvica com a
concepo geral da obra, baseada na descontinuidade temporal. Por meio dela,
identificamos em Erwartungum procedimento compositivo baseado em duas foras
contrrias que definem um campo: 1- as conexes musicais baseadas nas relaes
intervalares, constituindo uma massa de coeso afigural que atravessa toda a obra
e; 2- a coagulao de gestos meldicos localizados que constituem figuras. Assim,
um elemento musical pode ser escutado de duas maneiras: como uma estrutura
intervalar com traos determinados, que pode assumir diferentes perfis meldicos, ou
como um contorno gestual com um perfil caracterstico independente das relaes
intervalares que perfaz. Ao tomar o fenmeno musical como resultado da ao dessas
duas foras contrrias, a anlise que apresentamos permite responder, ainda que de
uma maneira parcial, a questo central deste trabalho, a saber: como se d a relaoentre forma e expresso emErwartung?
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1 A expresso antes do expressionismo
A msica expressiva ocidental, desde princpios do sculo XVII, assumiu aexpresso que o compositor atribua a suas obras, e no somente a expressodramtica, como ocorre no caso da msica para drama, sem que as emoesexpressadas pretendessem estar imediatamente presentes e serem reais obra. Amsica dramtica, verdadeira msica ficta, ofereceu, de Monteverdi a Verdi, ummodo de expresso estilizado e ao mesmo tempo mediato, isto , a aparncia dapaixo. Quando transcendia isto e pretendia uma substancialidade mais alm daaparncia dos sentimentos expressados, esta pretenso no estava ligada amovimentos musicais individuais que deveriam refletir os da alma, mas estavagarantida unicamente pela totalidade da forma que comandava os caracteresmusicais e suas conexes (Adorno, 2004, p.39).
Vrios autores da musicologia que se depararam com a obra de Schoenberg
consideraram que as obras compostas entre 1908 e 1913 no chamado perodo da
atonalidade livre apresentam uma mudana qualitativa em relao s suas
composies anteriores. No entanto, a maioria deles aborda esta transformao por
um ponto de vista estritamente tcnico-musical, secundarizando a questo da
expresso ou apresentando-a de maneira genrica, a ttulo de contextualizao
histrica, quando no omitindo. Adorno est de acordo com tais autores em relao
periodizao da obra, no entanto o ncleo da transformao que identifica a partir de
1908 reside no prprio conceito de expresso: o expressivo do Schoenberg dos anos
1908 a 1913 qualitativamente diferente do expressivo da msica anterior. Assim o
expressionismo schoenberguiano uma crtica da expresso tal como era concebida
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at ento: em primeiro lugar, expresso romntica, e tambm dramtica, que se
refere ao sculo XVII e a Monteverdi e se estende at o romantismo do fim do sculo
XIX. Adorno qualifica este expressivo como uma simulao de paixes: a expresso
se define aqui pelas relaes da msica com os sentimentos, e se baseia na
capacidade que ela tem de represent-los. Em segundo lugar, o expressionismo
schoenberguiano se posiciona criticamente em relao a um outro modo de expresso
cuja formulao terica que encontramos na esttica romntica, ou, mais
precisamente, emDo Belo Musicalde Eduard Hanslick (Hanslick, 2011) baseia-se
no conceito de autonomia da forma. Seu campo objetivo, entretanto, no se limita ao
romantismo musical, mas se retroage tambm ao classicismo. Trata-se da expresso
compreendida como um comando racional subjetivo dos diferentes caracteres
musicais em funo de uma unidade formal, isto , de uma totalidade articulada.
Considerando que 1- o intuito deste trabalho abordar a recepo adorniana de
Erwartung uma obra de Schoenberg que pertence a esse perodo expressionista, ou
da atonalidade livre; 2- o cerne da transformao realizada pelo conjunto de obras ao
qual ela pertence identificada por Adorno no conceito de expresso e; 3- essatransformao tem como referncia negativa esses dois conceitos de expresso acima
mencionados; considerando-se isto, o objeto deste trabalho nos obriga a uma
digresso no sentido de fixar essas referncias antes de abordar a ruptura representada
pela obra em questo. Assim, a primeira questo a ser feita deve ser: Ruptura ou
transformao em relao a qu? Ou seja, o que havia antes?
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1.1 Paixes simuladas
O sentimento como contedo ou finalidade da msica possui uma histria.
Dahlhaus apresenta, em um de seus ensaios intitulado Transformaes da Esttica
do Sentimento , um desenvolvimento histrico da Esttica do Sentimento que
perpassa cinco sculos, desde o sculo XV at o XIX (Dahlhaus, 2003).
O musiclogo baseia-se em uma distino da teoria lingustica de Karl Bhler
entre trs diferentes funes que as frases podem desempenhar: desencadeamento
[Auslsung], representao [Darstellung] e notificao, ou manifestao [Kundgabe].
As aes so desencadeadas [ausgelst], os estados de coisas representados
[dargestellt], os estados anmicos manifestados [kundgegeben] (Dahlhaus, 2003, p.
31). Cada uma destas funes corresponde a uma poca especfica na histria da
Esttica do Sentimento. Para autores dos sculos XV e XVI como Johannes Tinctoris,
Nicola Vicentino e Gioseffo Zarlino, a funo da msica era desencadear efeitos no
ouvinte. Os estmulos sonoros incitavam sentimentos, os quais no eram objetivados
por eles, mas simplesmente percebidos e sentidos como seus. A ligao entre o
sonoro e o anmico, em virtude da qual o primeiro agia sobre o segundo, era
explicado da seguinte maneira:
Os movimentos dos sons desencadeiam por simpatia os da alma (...) e estosujeitos s mesmas leis que os impulsos psquicos. Os hipotticos espritosvitais, a que se atribua a transferncia dos estmulos fsicos para as reaesanmicas alongam-se ou contraem-se, aproximam-se ou afastam-se de umobjeto; e os movimentos dos espritos vitais so, segundo Nicola Vicentino (1555)e Gioseffo Zarlino (1558), a razo por que segundas, teras e sextas maiores,alongadas, dispem alegria, pelo contrrio, as menores, contradas, tristeza. O
passional em ns (...) eleva-se e baixa, salta ou rasteja e caminha lentamente.Ora avana, ora recua, ora nos toca de modo mais fraco, ora com maior fora(Dahlhaus, 2003, p. 33).
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Aqui inadequado falar em expresso dos sentimentos. A funo da msica
baseando-se no modelo lingustico apresentado desencadear sentimentos ou
afetos, em um sentido prximo ao de causalidade mecnica, presente na afirmao de
que o atrito entre dois corpos causa elevao da temperatura. Contrariamente a isso,
autores do sculo XVIII, tais como Charles Batteux, Friedrich Wilhelm Marpurg e
Jean-Jacqcues Rousseau, esperavam que a msica representasse ou imitasse as
paixes, porm no as do compositor nem as do ouvinte, conforme evidenciam as
prescries de Marpurg:
Nas coisas musicais, procure-se, de incio, investigar e determinar com rigor que
afeto reside nas palavras; qual o seu grau; de que sentimentos composto... Emseguida, tente-se discernir exatamente a essncia do afeto proposto, a queemoes a alma nele se encontra exposta; como tambm o corpo sofre; quemovimentos se lhe exigiram... S ento e depois de tudo isso se ter primeiroconsiderado, examinado, medido e decidido com exatido, de um modo cuidadosoe atencioso, que algum se abandona ao seu gnio, sua imaginao e forainventiva (Marpurg apud Dahlhaus, 2003, p. 33).
A msica deve portanto representar estados de coisas, e os afetos, por sua vez,
so tidos como coisas que existem objetivamente, independentemente de serem ou
no experimentados pelo compositor ou pelo ouvinte. Cabe msica representar, isto
, re-apresentar esses afetos, assim como uma pintura que representa ou re-
apresenta uma catedral, uma pessoa etc.
apenas na segunda metade do sculo XVIII que aparecem autores daquilo
que pode ser chamado num sentido mais rigoroso de uma esttica da expresso, entre
os quais Dahlhaus destaca Daniel Schubart e Carl Philipp Emmanuel Bach. Aparece
ento a figura do compositor como sujeito que se encontra por trs da obra e se
expressa por meio dela. A expresso no se define mais pela representao objetiva
de afetos nem tampouco pela capacidade que a msica deve ter de incitar ossentimentos, mas pela exigncia originalidade, e portanto de que o ntimo do
compositor torne-se apto para a msica, pois s quem retorna a si mesmo e cria a
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partir do prprio ntimo original. O princpio da originalidade no exige a simples
novidade, mas tambm e, sobretudo, que uma obra de arte seja uma verdadeira
emanao do corao (Dahlhaus, 2003, p. 35).
Essa distino que Dahlhaus apresenta entre a expresso at meados do sculo
XVIII representao dos afetos e a expresso baseada na idia de um compositor
que expressa o seu ntimo manifestao dos afetos no parece ser aceita por
Adorno, que rene toda a msica desde o sculo XVII at o final do XIX sob o
mesmo nome de msica expressiva ocidental, conjunto que compreende a
expresso dramtica de um Monteverdi cuja teoria esttica identificada por
Dahlhaus em autores do sculo XVIII, e para a qual o musiclogo julga mais
adequado o termo representao , a expresso no dramtica cuja referncia
central parece ser a msica romntica, baseada nos preceitos estticos da expresso
subjetiva do compositor encontrados nos textos estticos a partir da segunda metade
do sculo XVIII, conforme mostra Dahlhaus e a expresso wagneriana cujo
gnero dramtico remonta a Monteverdi, mas que apresenta, aos olhos de Adorno,
elementos claramente romnticos. digno de nota que a aspirao originalidade e a
consequente manifestao do ntimo no esto entre os atributos estticos deste
conjunto musical designado por Adorno, ainda que este conjunto inclua a msica
romntica, qual tais atributos se referem.
Antes de mais nada, importante ter-se em conta uma diferena metodolgica
entre Adorno e Dahlhaus que em parte explica essas tenses: a anlise dos escritosestticos o que constitui a fora centrpeta do ensaio de Dahlhaus, ao passo que no
ensaio de Adorno so as obras musicais propriamente ditas que aparecem no centro.
Dahlhaus formula suas questes com base no contedo apresentado pelos escritos
que analisa, enquanto Adorno se baseia na prpria msica e nas questes que ela
mesma apresenta. Isto no significa que Adorno negligencia as questes colocadaspelos escritos estticos e tampouco que Dahlhaus negligencia o fenmeno musical
propriamente dito. De qualquer modo, essa diferena de metodologia entre duas
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obras que versam sobre um mesmo objeto a esttica musical talvez possa revelar
bastante sobre a diferena entre os dois autores, cuja afinidade , em todo caso, muito
significativa.
Para alm das diferenas de metodologia, o que une, afirma Adorno, a partir do
conceito de expresso msicas to diferentes entre si e as separa do expressionismo
o carter de paixes simuladas. O que o expressionismo problematiza aos olhos de
Adorno a compreenso dos caracteres musicais como significantes, dos quais os
afetos aparecem como significados. Os significantes so, assim, um meio de acesso
aos contedos afetivos, e estes pr-existem em relao aos primeiros. neste sentido
que devemos compreender a afirmao presente na citao que inicia este captulo:
Adorno afirma que essa expresso cuja origem remonta ao sculo XVII e com a qual
a obra expressionista de Schoenberg rompe uma expresso mediata, pois depende
da mediao de um signo.
Neste conceito de expresso mediata, ou de simulao de paixes, difcil
negar a referncia ao liedromntico, no entanto Wagner quem aparece como uma
das referncias mais importantes para Adorno, principalmente tratando-se deErwartung, que, em virtude do gnero dramtico, se aproxima mais da pera do que
do lied. Adorno dedica obra operstica de Wagner uma grande monografia
intituladaEnsaio sobre Wagner(Adorno, 2008). O livro atravessado do comeo ao
fim pela questo da expresso a qual se apresenta intrincada com outras questes ,
mas no segundo e terceiro captulos que ela posta no centro da discusso. Ofilsofo inicia a abordagem do expressivo wagneriano a partir daquilo que considera
um impulso social presente na obra do compositor, qual seja, o de uma conciliao
com o pblico da audincia, por meio da adequao da composio s condies de
compreensibilidade desse pblico. Tal impulso se inscreve em um contexto musical
em que as composies mais avanadas e inovadoras vo progressivamente seseparando do pblico dos concertos e se fechando a estreitos grupos de espectadores
e inclusive tornando-se economicamente insustentveis. Entre o compositor e a
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audincia cava-se um fosso cada vez maior. Adorno no apresenta esse impulso
social na forma de um comentrio geral sobre o compositor, mas a partir de
elementos tcnico-musicais nos quais ele se manifesta:
Sua msica est (...) concebida para o gesto de marcar o compasso e dominadapela imagem do marcar o compasso. Neste gesto os impulsos sociais de Wagnertornam-se tcnicos. Se em sua poca o compositor e a audincia j se opemliricamente alienados entre si, a msica de Wagner tende a paliar esta alienaoimplicando o pblico na obra como elemento do efeito desta. (...) em nome doouvinte faz-se emudecer aquilo cuja sensibilidade se rege por normas diferentesda unidade mtrica (Adorno, 2008, p. 31).
A identidade musical baseia-se na unidade mtrica do compasso, uma unidadeque se estabelece a despeito do contedo musical do motivo, e se fixa como um
denominador comum. A msica de Wagner, afirma Adorno, carece de processos de
construo musical pela articulao motvica. Em um ato de conivncia ao ouvinte, o
que ela nos apresenta a repetio incessante do padro mtrico, indiferente ao
material com o qual os compassos so preenchidos: toda a msica parece primeiroestruturada em compassos e depois recheada (Adorno, 2008, p. 33).
O gesto , para Adorno, o motor da expresso. Toda a expresso da msica
moderna ocidental deriva de seu contedo gestual. No fosse essa capacidade de
mimetizar o gesto, a msica no seria mais do que o caleidoscpio de Hanslick4, no
seria mais do que um movimento agradvel de formas sonoras (Adorno, 2002, p.139). E se ela mimetiza os gestos, isto s possvel na medida em que o contedo
gestual apresenta-se nela como uma estrutura musical objetiva e tecnicamente
descritvel, isto , como um motivo. Ao apresentar-se como motivo, o gesto assume
uma identidade musical determinada, em virtude da qual pode ser apreendido,
4Eduard Hanslick apresenta uma concepo do belo musical segundo a qual a beleza artstica se desdobra namsica a partir das relaes formais intra-musicais, sem qualquer referncia a algo exterior. Ele compara amsica a um caleidoscpio: trata-se, em ambos casos, de formas em movimento. No primeiro caso, formassonoras, no segundo, visuais (Hanslick, 2011, p. 41).
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memorizado e consequentemente reconhecido a cada repetio, ainda que estas no
sejam exatas.
Se o gesto torna-se apto para a msica ao apresentar-se como um motivo, a
repetio motvica torna-se fundamental. A expresso no pode se limitar a uma mera
enunciao de um motivo, at mesmo porque um motivo no se constitui enquanto tal
em uma nica enunciao, isto , como algo isolado: s se converte em tal na medida
em que repetido. Por outro lado, a expresso como efuso do corao, como
manifestao original e irrepetvel (Dahlhaus, 2003, p. 37) probe a rigidez mecnica
da repetio literal. nessa tenso entre a necessidade de repetio pressuposta pelo
motivo e pelo trabalho motvico e o impulso expressivo pela originalidade e
irrepetibilidade que surge a necessidade de uma intensa articulao formal. Por meio
de procedimentos compositivos como o desenvolvimento, a variao e a mediao de
contrastes possvel desdobrar um determinado motivo em novas configuraes que
conservam certos elementos do primeiro motivo e transformam outros, o que torna
possvel estabelecer-se musicalmente uma relao dinmica entre identidade e no
identidade, repetio e originalidade. E exatamente neste ponto que Adornoidentifica uma fraqueza tcnica na msica de Wagner, confrontada sobretudo com as
grandes formas do classicismo vienense, fraqueza esta que no decorre da
insuficincia tcnica ou incapacidade do compositor, mas precisamente desse gesto
de marcar compasso, isto , da hipstase da unidade mtrica, que silencia as
potencialidades musicais dos motivos que preenchem os compassos:
Em Wagner as insuficincias da organizao tcnica da composio derivam semexceo do fato de que a lgica musical pressuposta em toda parte pelo materialde sua poca amolecida e substituda por uma espcie de gesticulao (...).Certamente, toda msica remonta a este elemento gestual e o conserva em si. NoOcidente, entretanto, ele foi espiritualizado e interiorizado como expresso,
enquanto simultaneamente todo discurso musical se submete sntese lgica pelaconstruo; a grande msica se esforou pela nivelao de ambos elementos.Wagner se ope; sua msica (...) no consuma em si nenhuma histria. Omomento expressivo potenciado ao mximo dificilmente se contm no espaointerior, na conscincia do tempo, e se lana para fora como gesto. (...) A fora do
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elemento construtivo consumida pela intensidade exteriorizada, por assim dizerfsica (Adorno, 2008, p. 35).
Em Wagner o desdobramento e a renovao dos caracteres internos do gesto
por meio da lgica musical e em nome da expresso substitudo pela gesticulao,
isto , no pelo gesto refletido musicalmente em caracteres motvicos, mas pelogesto, por assim dizer, fisiolgico, que se constitui pela mera obedincia unidade
mtrica abstrata, a despeito do contedo motvico que preenche os compassos. Essa
expresso calcada nas potencialidades internas do gesto, e que ganha significncia
graas articulao formal, est, para Adorno, bloqueada em Wagner. Nele, o
contedo da expresso exterior forma musical: se lana para fora como umagesticulao abstrada do material, de suas qualidades internas e das possibilidades de
articulao formal que ele apresenta:
Para exteriorizar-se como gesto to sensivelmente como exige o procedimentowagneriano, a expresso no pode nunca contentar-se consigo mesma, mas deve
acentuar-se e em seguida inclusive exagerar-se por sua crescente repetio. (...) aemoo expressiva, ao aparecer por segunda vez, torna-se comentrio enftico desi mesma (Adorno, 2008, p. 38).
A expresso fica, por assim dizer, congelada no gesto e ganha sua fora no da
diferenciao, mas fundamentalmente das repeties exatas ou quase exatas do
motivo expressivo inicial e da intensificao, por exemplo por meio do crescimentodo volume sonoro pelo acrscimo de instrumentos na orquestrao. A emoo
expressiva torna-se, assim, comentrio enftico de si mesma, ou seja, auto-
referncia segura de si mesma e que no sofre qualquer tipo de transformao,
diferenciao ou renovao ao longo do tempo musical. Em virtude de sua rigidez, o
elemento expressivo constitui-se como um signo estvel, cujo significado ocontedo expressado transcende o mbito musical, pois constitui-se de contedos
que pr-existem em relao msica, e que so por ela evocados. O expressivo
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compreende-se pura e simplesmente, pois, como uma aluso a um contedo extra-
musical:
Se a unidade de gesto e expresso no se alcana no Leitmotiv [pois o gesto meramente repetido e no se diferencia por meio da construo temtica], se o
motivo, enquanto portador da expresso, se aferra sempre ao mesmo tempo aocarter drasticamente gestual, isto no indica menos que o fato de que semmediao o gesto nunca pode dotar-se de alma. Diferentemente, representa algodotado de alma. O momento intencional especfico da expresso wagneriana: omotivo media enquanto signo um significado coagulado. A pesar de toda a nfasee a intensidade, a msica de Wagner se comporta como a escritura com palavra.(...) Sua expresso no se representa, mas representada. A apreenso de umelemento fragmentado da totalidade espiritualizada, meramente exterior, porsignificados que este deve representar e que podem permutar-se to bem como
seus representantes, faz dos Leitmotivewagnerianos alegorias (Adorno, 2008, p.44).
a essa representao de contedos anmicos exteriores msica e pr-
existentes em relao a ela que Adorno se refere como simulao de paixes, como
expresso mediata, que toma os caracteres musicais como meios de acesso a
contedos extra-musicais. O gesto musical propriamente dito s se torna expressivo,
s pode dotar-se de alma, a partir do momento em que entra para a forma, isto ,
em que ganha uma articulao tcnica em virtude da qual ele se desdobra
motivicamente em caracteres que apresentem formulaes originais da ideia gestual,
e torna-se, assim, expressivo. A expresso musical s possvel, portanto, pela
mediao da forma. Quando o procedimento tcnico da expresso se limita repetio sequencial, o motivo no se apresenta como algo dotado de alma, que em
si expressivo, mas apenas representa algo dotado de alma. Os contedos
expressados so indiferentes msica, a qual se limita a evoc-los.
Adorno identifica no procedimento compositivo de Wagner uma tentativa de
contornar essa limitao tcnica, decorrente da abstrao da unidade de compasso emrelao ao material musical, por meio da fluidez harmnica, que se contrape
rigidez motvica e temtica. Na anlise que apresenta dos primeiros compassos do
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preldio de Tristo e Isolda, ele mostra que as repeties motvicas apresentam-se
variadas, mas apenas com o intuito de se acomodar ao esquema harmnico, que
nestes compassos est claramente desenvolvido em torno da tnica de l menor,
sempre pressuposta por ainda o acorde de tnica no esteja presente. O
desenvolvimento harmnico molda, portanto, as repeties motvicas, e estas
adquirem uma plasticidade, decorrente das alteraes de notas exigidas pela sucesso
harmnica que o motivo deve parafrasear. Essa plasticidade das repeties motvicas
o que aos olhos de Adorno confere a Wagner o carter misterioso, de algo
claramente apreensvel, mas ao mesmo tempo paradoxalmente obscuro, expresso na
fala de Sachs: no o posso reter mas tampouco esquec-lo (Sachs apud Adorno,
2008, p. 43). neste aspecto paradoxal e ambguo da obra de Wagner que Adorno
identifica um dos elementos fundamentais das configuraes formais do compositor:
por um lado, a fixao nas partes isoladas do todo e, por outro, uma concepo da
grandiosa obra de arte total como um todo contnuo, sem fissuras. Wagner
conservou ao longo de toda sua vida tanto o formato colossal de tais produtos como o
vesturio com o que sonham os teatros de aficionados (Adorno, 2008, p. 30). A
compreenso mais sistmica da recepo adorniana de Wagner passaria
necessariamente por um desenvolvimento mais aprofundado dessa tenso. Como,
porm, isto extravasaria os propsitos desta pesquisa, apenas a mencionamos no
intuito de evidenciar que a posio de Adorno em relao a Wagner no unvoca, j
que se trata, para Adorno, de uma obra que articula muitas contradies estticas esociais que meio sculo depois o filsofo ainda no via superadas. Em Wagner,
progresso e reao no se deixam separar como as ovelhas e os carneiros, mas se
imbricam quase indissoluvelmente (Adorno, 2008, p. 47).
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1.2
Autonomia da forma e expresso
O segundo conceito de expresso musical abordado por Adorno a compreende
como um comando da organizao racional dos diferentes caracteres musicais em
funo de uma unidade formal. Pelo princpio da forma autnoma, como expresso
de uma subjetividade autnoma, o compositor comanda os momentos parciais, que se
apresentam inicialmente isolados e carentes de relao entre si, estabelecendo entre
eles relaes e, por meio disso, articulando uma totalidade. A expresso musical
uma derivao do princpio de autonomia da forma, isto , da idia de que a msica
possui uma racionalidade e unidade interna que a torna capaz de fundar a partir de si
mesma os critrios valorativos pelos quais seu julgamento deve se pautar. A idia de
autonomia musical foi formulada teoricamente pelo musiclogo e esteta Eduard
Hanslick em um livro de 1854, intituladoDo belo musical (Hanslick, 2011). O autor
se prope, nesse trabalho, a empreender uma reviso da Esttica do Sentimento,
vertente esttica que abordava a msica exclusivamente a partir da sua relao com
os sentimentos, quer seja pelos efeitos anmicos desencadeados por ela, quer seja pela
sua suposta capacidade de representar afetos. A crtica da Esttica do Sentimento e o
desenvolvimento de uma esttica que fundamentasse o belo musical no na relao
com contedos extra-musicais mas na configurao dos elementos musicais e na sua
articulao interna, sem referncia a algo exterior, no so gratuitos: Hanslick
formula conceitualmente uma tendncia na histria da msica no sentido dodesenvolvimento das formas musicais autnomas isto , no associadas a ocasies
sociais, tal como missas, danas etc., e nem subordinada a textos ou programas e da
consequente valorizao da msica instrumental pura. Diante desse progressivo
florescimento da msica absoluta e da extenso de seus critrios tambm para as
msicas com texto ou programa, a Esttica do Sentimento mostrava-se, segundoHanslick, insuficiente para a compreenso do artstico na msica, o qual em sua
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poca j havia adquirido suficiente autonomia frente s determinaes extra-musicais
a ponto de tornar necessria uma nova esttica musical.
Embora as reflexes de Hanslick girem em torno do belo musical e se
desenvolvam no sentido de estabelecer para ele um critrio intra-musical, a expresso
musical aparece como um de seus desdobramentos. Da mesma maneira que a
reflexo sobre o belo se volta para o interior da forma musical, assim tambm a
expresso ganha, neste contexto, o sentido de uma formulao de idias musicais,
no se determinando a partir da relao com contedos extra-musicais: se agora se
perguntar o que h de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim:
ideias musicais (Hanslick, 2011, p. 41). No obstante esse carter hermtico da
expresso musical, a idia de um sujeito-compositor que se expressa na msica no
negada por Hanslick, embora esse sujeito-compositor no aparece como um
indivduo emprico e biogrfico:
Toda obra tem por objetivo trazer manifestao externa uma idia que cobrou
vida na fantasia do artista. Este elemento ideal na msica sonoro, e no algo deconceitual, que importaria primeiro traduzir em sons. O ponto decisivo de queparte toda a ulterior criao de um compositor no o propsito de descrevermusicalmente uma paixo, mas a inveno de uma determinada melodia. Graasao poder primitivo e misterioso, em cuja oficina no penetra nem jamais penetraro olho humano, ressoa no esprito do compositor um tema, um motivo. Nopodemos remontar alm da origem desta primeira semente, temos que aceitar issocomo simples fato (Hanslick, 2011, p. 45).
Hanslick no considera, portanto, que a ideia da autonomia da msica se choca
com o princpio da expresso, na medida em que os contedos da expresso so
ideias musicais que florescem na fantasia do compositor e no conceitos no musicais
traduzidos em sons. E os primeiros elementos de que se constitui uma ideia so o
tema ou o motivo, que ressoa no esprito do compositor. Partindo-se deles, no possvel caminhar para trs, mas apenas para frente, isto , em direo as relaes,
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combinaes e articulaes entre temas diferentes, etc., ou seja, em direo s
configuraes formais que eles ganham ao longo da msica.
Do belo musical do comeo ao fim uma crtica da Esttica do Sentimento.
Seus dois primeiros captulos apresentam a tese negativa de Hanslick, isto , mostram
aquilo em que a esttica musical no deve se fundamentar. A esttica musical no
deve se fundamentar nos sentimentos, quer sejam eles considerados como a
finalidade da msica captulo 1 quer sejam como o seu contedo captulo 2.
interessante observar que Hanslick aborda aqui duas das estticas distinguidas por
Dahlhaus a partir da teoria lingustica: uma delas que via na msica a funo de
desencadear efeitos, ou de incitar as paixes, e outra segundo a qual a msica deveria
representar paixes como estados de coisas.
Nesses dois captulos iniciais, as linhas gerais do desenvolvimento do texto
mostram o carter problemtico de uma esttica cujo fundamento relao da msica
com os sentimentos, j que
O efeito da msica sobre o sentimento no tem (...) nem a necessidade nem aconstncia nem, por fim, a exclusividade que um fenmeno deveria apresentar
para conseguir fundamentar um princpio esttico (Hanslick, 2011, p. 15).
Vrios so os exemplos que evidenciam essa falta de necessidade, essa
contingncia que o autor identifica na relao entre da msica com os sentimentospor ela suscitados ou representados. A mesma msica, afirma Hanslick, suscita
paixes diferentes em diferentes nacionalidades, temperamentos, idades e
circunstancias, mas ainda, na igualdade de todas estas condies em diferentes
indivduos (Hanslick, 2011, p. 14). Uma msica com texto, que adquire uma funo
de representar conceitos, se presta to bem para representar um determinadocontedo conceitual como outro totalmente diferente, com mudana integral do texto.
Isto ocorre, por exemplo quando se representa a pera Os Huguenotes de
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Meyerbeer, com mudana de cenrio, de poca, das personagens, da ao e das
palavras, como os Gibelinos em Pisa (Hanslick, 2011, p. 30), onde todo o contedo
religioso e o sentimento piedoso desaparece. No obstante, essa transposio no
lesa no mnimo a expresso puramente musical (Hanslick, 2011, p. 30). Alm
disso, um mesmo trecho musical pode representar um sentimento determinado to
bem como o seu oposto (Hanslick, 2011, p. 29). So inumerveis os trechos do livro
em que o autor mostra esse carter problemtico da relao entre a msica e os
contedos que ela se pe a representar. Eles atravessam todo o livro, desdobrando-se
a partir das questes desenvolvidas em cada captulo e seria exaustivo e
desnecessrio enumer-los aqui. Mais proveitoso seria identificar a origem dessa
incompatibilidade que o autor atribui relao entre as estruturas musicais e os
contedos representados por elas. Sua origem deriva do paradoxo de uma arte no
conceitual como a msica se propor a representar contedos conceituais. O carter
no conceitual da musica , para Hanslick, consequncia de sua no referncia a
contedos extra-musicais, isto , do fato de que ela s pode ser compreendida
esteticamente a partir de seus elementos internos. Os sentimentos, por sua parte,
dependem essencialmente de definies conceituais e s assim podem ser
compreendidos e distinguidos entre si:
O que que faz, pois, de um sentimento este sentimento determinado: nostalgia,
esperana, amor? porventura a simples fora ou fraqueza, a agitao domovimento interior? Decerto que no. Esta pode ser idntica para sentimentosdiferentes e, de novo, ser diversa para o mesmo sentimento em vrios indivduos eem momentos distintos. O nosso estado de nimo s pode obter concreojustamente neste sentimento determinado baseando-se numa quantidade derepresentaes e juzos talvez inconscientes no momento de um forte sentir. Osentimento da esperana inseparvel da representao de um estado mais felizque deve ocorrer e que se compara com o estado atual. A melancolia coteja umasorte passada com o presente. Trata-se de representaes, de conceitos e juzos
inteiramente determinados. Sem eles, sem este aparato de pensamentos, no podechamar-se ao sentir presente nem esperana nem melancolia, pois s ele ostorna tais. Se dele se abstrair, permanece uma emoo indefinida, quando muito, asensao de um vago bem-estar ou incmodo. O amor no concebvel sem arepresentao de uma personalidade amada, individual, sem o desejo e o anelo da
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felicidade, da exaltao, da posse do objeto. O que o transforma em amor no andole da mera moo anmica mas o seu cerne conceitual, o seu contedo real ehistrico. Segundo a sua dinmica, tanto pode ser suave como arrebatador,apresentar-se ou como alegre ou como doloroso, e sempre permanece amor. Estasimples observao basta para demonstrar que a msica consegue expressarunicamente esses diversos adjetivos acompanhantes, nunca o substantivo, o
prprio amor. Um sentimento determinado (uma paixo, um afeto) nunca existecomo tal sem um contedo real, histrico, que se pode expor apenas mediante
conceito (Hanslick, 2011, p. 20).
Adorno compartilha com Hanslick a ideia de que a msica no pensa por
conceitos, e muito da sua crtica a Wagner se baseia nisso. Muito da tenso interna
que Adorno v na obra dramtica de Wagner deriva tambm do conflito desse carter
conceitual ou, mais precisamente, alegrico presente em uma msica que, ao
mesmo tempo, reivindica o ideal de autonomia da msica, a despeito das afirmaes
de Wagner de que a msica essencialmente uma arte no autnoma, subordinada s
outras artes, como a literatura e o teatro (Wagner, 1893, p. 26-7). O ideal de
autonomia se manifesta na aspirao forma musical contnua e unitria, em virtude
da continuidade harmnica, conforme vimos, mas tambm da melodia infinita, daorquestrao e de outros parmetros abordados por Adorno noEnsaio sobre Wagner.
A continuidade sem fissuras buscada por uma articulao intra-musical
desmentida, afirma Adorno, pela falta de desenvolvimento motvico, a qual
substituda pela gesticulao. Assim, o expressivo se estabelece de fora para dentro, a
partir de uma expresso que no se representa, mas representada (Adorno, 2008,p. 44), que no se desdobra a partir da elaborao formal dos prprios materiais
musicais isto , como algo no conceitual mas se apresenta como um significado
conceitual pr-existente em relao msica.
A partir do terceiro captulo deDo belo musical, o texto caminha no sentido de
expor a posio que a arte musical autnoma toma em relao aos materiais musicais
e que, consequentemente, a esttica musical tambm deve tomar. Hanslick no nega
o carter simblico de determinados sons, em virtude do qual eles so associados a
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determinados contedos. No entanto a arte musical comea, afirma, onde termina a
simbologia dos sons:
Tal como as cores, os sons possuem j por natureza, e na sua individuao,significado simblico, que atua fora e antes de toda a inteno artstica. Cada cor
respira um carter peculiar: no para ns uma simples cifra que obtm apenasum lugar mediante o artista, mas uma fora posta j pela natureza em relaosimpattica com certas disposies de nimo (...).
De modo anlogo, os materiais elementares da msica tonalidades, acordes etimbres so j em si caracteres. Temos tambm uma arte de interpretaodemasiado diligente para o significado dos elementos musicais; sua maneira, asimblica das tonalidades de Schubartproporciona o equivalente da interpretao
das cores levada a cabo por Goethe. No entanto, aqueles elementos (sons, cores),na sua aplicao artstica, seguem leis inteiramente diversas do que aquelaexpresso da sua manifestao isolada5(Hanslick, 2011, p. 24).
Aqui Hanslick j anuncia o giro da esttica do sentimento em direo a uma
esttica da totalidade da forma. A crtica adorniana da expresso como simulao de
paixes j delineada, portanto, em Hanslick, que varre todos os contedos afetivos,
todas as paixes simuladas para fora do terreno da msica, traa uma linha que os
separa implacavelmente da arte musical, na qual os sons seguem leis inteiramente
diversas. Conforme veremos mais adiante, a posio de Adorno no que toca
relao da msica com os elementos extra-musicais diferente da de Hanslick, no
entanto possvel afirmar que Adorno v em Hanslick um dos momentos da dialtica
da expresso entendida como expresso anmica, de afetos e gestos extra-musicais
, qual seja, o negativo, o da construo e da forma, em que a expresso imediata,
pura e simples, negada pela objetividade da forma.
5 Esta parece ser a traduo mais adequada para a passagem Es folgen jedoch diese Elemente (Tne,
Farben) in ihrer knstlerischen Verwendung ganz anderen Gesetzen, als jener Ausdruck ihrer isolirtenErscheinung. A edio portuguesa de que dispomos a traduz, entretanto, da seguinte maneira: No entanto,aqueles elementos (sons, cores), na sua aplicao artstica, seguem leis inteiramente diversas, comoexpresso de sua manifestao isolada. Porm, Hanslick contrape a aplicao artstica do som suamanifestao isolada. Trata-se de uma comparao, portanto o als deve traduzir-se por do que e nocomo.
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Na citao acima, Hanslick traa um limite que separa nitidamente os sons
musicais e os no musicais, ou simblicos, mas o critrio que torna possvel tal
discernimento no fica expresso: apenas sugerido. Hanslick afirma que os sons
seguem, na msica, leis diferentes daquelas que seguem em sua manifestao
isolada. Na arte musical, os sons no esto isolados, mas combinados entre si, e
nisto consiste o salto do som simblico que j algo em si mesmo, isoladamente
para o som musical que s se torna algo atravs da relao com outros sons. Os
contedos particulares tornam-se, assim, artsticos ao serem reconfigurados,
relativizados, transformados, combinados, etc. no interior na forma artstica
espiritualizada e, portanto, intelectual. Hanslick viveu um momento artstico geral
marcado pelo impulso romntico de liberao em relao mera imitao da natureza
em direo criao individual por meio da reflexo subjetiva sobre as formas
naturais. Neste impulso aparece tambm a idia de uma liberdade subjetiva frente ao
carter necessrio e, neste sentido, no livre da natureza, cujas leis o homem no
pode transformar. A diferenciao feita por Hanslick entre o som simblico e o
musical, a defesa do carter espiritual da arte e sua crtica s estticas que se fixam nosom natural se inserem neste panorama artstico e esttico. Sua crtica Esttica do
Sentimento e a nfase no mais no sentimento, mas na fantasia enquanto atividade
do puro intuir (Hanslick, 2011, p. 10), reapresentam esse desejo de liberao da arte
frente determinidade natural como uma questo da esttica musical. A relao entre
o espiritual e o natural, central em Hegel e tambm retomada por Adorno, noaparece em Hanslick, contudo, como uma relao, mas como uma simples oposio:
Se dissssemos que o agrado esttico produzido por uma pea musical se guiapelo seu valor artstico, tal no impede que um simples apelo de trompa, umjodler [canto tirols] na montanha possa porventura arrebatar-nos mais do quequalquer sinfonia de Beethoven. Mas, neste caso, a msica insere-se nonaturalmente belo. Percepcionamos ento o que ouvido, no como estadeterminada criao sonora, mas como uma espcie particular de efeito naturale,na sua coincidncia com o carter paisagstico do ambiente e a disposio anmica
pessoal, pode deixar muito atrs de si, em poder, qualquer fruio artstica.
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Existe, pois, uma preponderncia da impresso que o elementar pode alcanarsobre o artstico, mas a esttica (ou, se pretendermos uma formulao mais estrita,aquela sua parte que trata do belo artstico) s deve considerar a msica a partir dasua vertente artstica, por conseguinte, reconhecer unicamenteos efeitos que ela,enquantoproduto espiritual humano, suscita na pura contemplao mediante umadeterminada configurao daqueles fatores elementares [grifos meus] (Hanslick,2011, p. 89).
Hanslick no afirma que certos sons so exclusivamente artsticos e os demais,
exclusivamente naturais, simblicos. No entanto, mesmo tratando-se de um mesmo
som que ao mesmo tempo natural e musical, sua considerao enquanto som
espiritual, ou artstico, exclui as referncias s suas caractersticas naturais isoladas e
sua simbologia.
Ao contrrio do som natural, que se relaciona com os sentimentos, os sons
musicais se movem no terreno da autonomia da forma. Seu carter artstico e,
portanto, sua beleza no derivam de sua relao com os sentimentos, mas das
relaes que estabelecem entre si. A ideia da totalidade da forma que em Hanslick
articula-se, conforme vimos, de uma determinada concepo de expresso musical levada pelo autor s ltimas conseqncias. Em contrapartida, se possvel a
ideia de um artsticomusical para Adorno, ele se baseia em uma relao dinmica
entre a parte (os detalhes e os momentos isolados) e o todo. Se verdade que os
momentos individuais esto subsumidos pela unidade e totalidade da forma, tambm
verdade que essa totalidade s se legitima atravs do seu confronto com taismomentos, e no como um princpio hipostasiado de todo particular e que os deduz a
partir de si. O valor esttico da msica depende dessa dinmica entre a parte e o todo.
Em Hanslick, a forma artstica se separa da natureza e de todas as representaes
isoladas por uma linha bem traada. O espiritual da msica se move em uma esfera
aparte do som natural. A nfase incide, pois, sobre a unidade do todo formal:
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O mestre revela estilo quando, ao realizar a idia claramente concebida, suprimetudo o que mesquinho, inconveniente, trivial, conservando assim uniformementeem cada pormenor tcnico a atitude artstica do todo (...).
O aspecto arquitetnico do belo musical vem claramente para primeiro plano naquesto do estilo. Uma legalidade superior (...) ser danificada pelo estilo de uma
pea musical por meio de um nico compasso que, embora em si irrepreensvel,se no harmoniza com a expresso do todo (Hanslick, 2011, p. 65).
Esse processo unilateral que Hanslick encontra na msica, por meio do qual o
princpio geral da forma deduz as partes a partir de si mesmo, e estas, por seu turno,
so dceis soberania da forma, ganha uma determinao tcnica a partir do conceito
de tema. O tema a unidade autnoma, esteticamente indivisvel, musical de
pensamento (Hanslick, 2011, p. 110), a partir da qual todo o mais se desenvolve. Ele
a origem qual todas as configuraes formais remetem, e quase poderamos dizer:
a rigor no h nada alm do prprio tema, j que todos os desenvolvimentos
posteriores no so mais do que a sua confirmao, a evidncia de seu carter total e
implacvel, e de sua impermeabilidade a tudo aquilo que no proceda dele:
Tudo nela [na criao musical] conseqncia e efeito do tema, por estecondicionado e configurado, por ele governado e levado a efeito. Eis o axiomaautnomo que momentaneamente satisfaz, certo, mas que o nosso esprito querver discutido e desenvolvido (...). O compositor coloca o tema, como o
protagonista de um romance, nas mais diversas situaes e ambientes, nos maisdspares estados de nimo e ocorrncias tudo o mais, por contrastado que seja,s em relao a tal pensado e configurado (Hanslick, 2011, p. 111).
Se verdade que o compositor coloca o tema em diferentes situaes, o
ambienta de diferentes maneiras, tambm verdade que tudo na criao musical
consequncia dele, que tudo o que no temas pensado e configurado em relao
a ele.
difcil negar a importncia do pensamento de Hanslick para Adorno. Embora
as citaes e as referncias diretas no sejam frequentes, a mobilizao do conceito
de autonomia para pensar a forma musical e tudo aquilo que se relaciona a esse
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conceito a concepo da totalidade da forma e inclusive o conceito de expresso
mostra o tributo de Adorno a Hanslick, mais presente nas entrelinhas do que nas
referncias expressas. Assim como Hanslick, Adorno est atento para o carter
instvel da relao da msica com os significados que se lhes possa atribuir, e no
nega que o artstico de uma arte autnoma como a msica no pode ser buscado
imediatamente nos contedos particulares que ela representa. No entanto, para ele a
relao entre o musical e o extra-musical bem mais complexa e s pode ser
encaminhada de maneira dialtica.
Adorno toma a questo sobre a relao entre os caracteres musicais e os
contedos afetivos como um desdobramento da reflexo acerca do carter lingustico
da msica, desenvolvida no texto Sobre a Relao Contempornea entre Filosofia e
Msica(Adorno, 2002). Todo o texto gira em torno da questo sobre o significado na
msica, sobre a possibilidade ou impossibilidade de determinao de sua essncia em
termos conceituais, extra-musicais. Adorno compara a msica com as artes que
empregam signos verbais tanto em poesia como em prosa e com as artes visuais.
A participao no medium que simultaneamente o medium da cognio
[Erkenntnis] (Adorno, 2002, p. 139) no primeiro caso, e as configuraes formais a
partir de objetos do mundo exterior que inclusive na pintura abstrata se mesclam
com o contedo no segundo; isto d a impresso de que tanto as artes visuais como
a poesia e a prosa estabelecem uma referncia inequvoca entre significante e
significado, embora Adorno reconhea que aquilo que emerge como o significadode uma obra diferente do seu contedo. A referncia inequvoca a contedos extra-
artsticos encobre um carter enigmtico que a arte apresenta diante da pergunta pelo
seu significado, carter este que a msica, ao contrrio dessas outras artes, expe a
nu:
(...) impossvel determinar de alguma maneira compreensvel o significado damsica, isto , aquilo por meio do qual ela adquire seu direito de existir. (...) algo enigmtico que aparece em toda a msica. (...) Trata-se (...) do fato de que
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no h absolutamente nenhum momento geral que pode ser encontrado, e que sejacapaz de ir para alm da descrio da msica, que indique seu significado e
justificao. Se ento aproxima-se da msica o suficiente para que ela seja vistacom estranhamento; se, em outras palavras, no se associa sua existnciaenquanto fenmeno com sua justificao, ento torna-se impossvel entender deonde deriva a dignidade que foi atribuda a ela na nossa cultura (Adorno, 2002, p.158).
No possvel encontrar para a msica nenhum tipo de significado que se
estabelea de uma maneira necessria, tal como h nas artes visuais, na poesia e na
prosa. Adorno se refere a uma crise da msica, que no precisa ser introduzida
(Adorno, 2002, p. 135), pois trata-se de um diagnstico geral da primeira metade
do sculo XX, delineado a partir das ltimas experincias musicais mais avanadas
que datam desde os primeiros anos do sculo. Alguns sintomas mais evidentes dessa
crise so as dificuldades de criao formal consistente e substancial, o
endurecimento e nivelamento comerciais da vida musical e a ruptura entre a
produo autnoma e o pblico (Adorno, 2002, p. 135). As formulaes mais
comuns desta crise a atribuem a um perigo radical (Adorno, 2002, p. 137) que
ameaa a msica. No entanto, argumenta Adorno, se a msica est exposta a um
perigo radical, necessrio que se interrogue o que ela , qual sua essncia, pois,
para que algo esteja posto em perigo, necessrio que exista, e que apresente uma
essncia definvel conceitualmente. Para que o seu final seja temido, necessrio que
isso que existe e apresenta uma essncia tenha uma dignidade em virtude da qual
ganhe uma legitimidade, um propsito ou sentido de existir [raison dtre]. No
entanto, vimos que essa questo pelo sentido da msica no pode ser solucionada, j
que no possvel atribuir msica algum significado intrinsecamente musical, do
qual derivaria sua essncia e seu sentido de existir. Desta forma, at mesmo essa
presumida crise que ameaa a msica torna-se enigmtica, pois no possvel
identificar a que ela se refere. Essa aporia constitui a fibra do texto de Adorno, paraquem a soluo s pode ser dialtica. Adorno sensvel s reflexes de Hanslick na
medida em que identifica na msica uma autonomia da forma, que probe sua simples
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subsuno a uma essncia universal e extra-musical, subsuno esta pressuposta na
pergunta pelo seu significado. Mesmo assim, a posio de Hanslick no acatada por
Adorno:
(...) a suposta felicidade que provocada por formas sonoras em movimento umprincpio muito estreito e abstrato para servir de fundamento a uma forma artealtamente organizada. Caso se tratasse apenas disso, ento no haveria diferenaentre um caleidoscpio e um quarteto de Beethoven exceto a diferena no material(Adorno, 2002, p. 139).
O exemplo do caleidoscpio uma metfora usada pelo prprio Hanslick para
ilustrar o belo musical como um auto-referido movimento de formas, umas emrelao s outras. No entanto, o nvel de articulao formal da msica imensamente
superior ao de um caleidoscpio e um princpio to vago no suficiente para
caracterizar a singularidade artstica de uma msica determinada, ou a especificidade
de um estilo, j que apenas descreve algo que acontece a todas as msica e, no
melhor dos casos, afirma a prpria singularidade do artstico de cada msica, sendoque esta mesma singularidade, na medida em que atribuda a todas elas, torna-se
uma caracterstica geral. Todas as msicas artsticas so singulares: nisto todas elas
se assemelham.
Adorno no v com bons olhos qualquer tentativa de definir a msica de uma
maneira universal, j que isso necessariamente leva concepes to abstratas a ponto
de no realizarem aquilo que julgam realizar. Definies da msica como uma
linguagem sui generis ou como um algo marcado por um tempo e um espao
diferentes do tempo e do espao empricos so muito abstratas e incapazes de separ-
la, enquanto linguagemsui generis, das outras linguagens e, enquanto algo temporal
e espacialmente distinto do mundo emprico, do tempo e do espao empricos, a no
ser por meio de um enunciado abstrato que no afirma mais que a prpria diferena,
dispensando-se de determin-la concretamente (Adorno, 2002, p. 142). Para ser
categoricamente separada do no musical, a msica deve tomar determinaes to
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abstratas que a acabam paradoxalmente fundindo ao no musical. A diferena
caracterstica da msica frente ao mundo emprico, s outras formas de linguagem e a
tudo aquilo que no msica no se baseia em uma formulao categrica, abstrata
ou atemporal: concerne s particularidades, isto , as diferenas concretas: os estilos
particulares, as obras particulares de cada estilo e, alm disso, os momentos
particulares de cada obra musical, os quais Adorno, ao contrrio de Hanslick, no v
como mera deduo lgica do todo. O elemento responsvel por essas diferenas
singulares a expresso. Entretanto,
(...) o momento de expresso, no qual percebeu-se o corretivo do princpio de
Hanslick citado acima, muito ambguo, em qualquer instncia isolada, e muitovago para representar o contedo da msica por si mesmo (Adorno, 2002, p.139).
A singularizao expressiva o elemento no qual a reflexo conceitual sobre a
msica deve se basear para superar a contradio das definies que, por demasiado
abstratas, nada definem. No entanto, o momento expressivo nada soluciona por simesmo, isto , se considerado de maneira isolada, como um princpio independente
do momento objetivo da obra unitria e organizada, pois assim permanece ambguo.
E aqui produz-se o curto-circuito do texto: toda msica caracterizada de uma
maneira primria por aquilo que, na linguagem, com as palavras, apenas ocorre como
resultado de uma concentrao alienante (Adorno, 2002, p. 139). O que ocorre namsica de uma maneira primria, isto , sem a mediao dos conceitos, das palavras
e, em suma, dos universais, s pode ocorrer na linguagem verbal por meio de um
agrupamento de diversos singulares sob um conceito universal que abstrai as
diferenas entre eles: por meio da perda da singularidade enquanto tal, enquanto no
subsumida universalidade do conceito, isto , de uma alienao. A espinhosa tarefa
de uma reflexo conceitual sobre a msica torna-se um enigma insolvel na medida
em que a msica, conforme j afirmava Hanslick, uma arte no conceitual e,
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portanto, resistente ao esquema de subsuno do singular ao universal, que est na
base de toda linguagem verbal.
A msica olha seu ouvinte com olhos vazios, e quanto mais profundamente seimerge nela, mais incompreensvel torna-se sua proposta ltima, at que aprende-
se que a resposta, se tal possvel, no est na contemplao, mas nainterpretao. Em outras palavras, a nica pessoa que pode solucionar o mistrioda msica aquele que a toca corretamente, como algo total. Seu enigma se burlado ouvinte ao seduzi-lo a hipostasiar, como ser, o que em si um ato, um devir e,como devir humano, um comportamento (Adorno, 2002, p. 139).
A vacuidade conceitual da msica, que olha seu ouvinte com olhos vazios,
obriga a reflexo sobre ela a abandonar a pergunta pelo seu sentido extra-musical emprol de uma compreenso orgnica, da msica como comportamento ou gesto.
Em msica, estamos diante de gestos e no de significados. Na medida em quemsica linguagem, , como a notao na histria da msica, uma linguagemsedimentada de gestos. No possvel perguntar msica o que ela traz como seu
significado; na realidade a msica tem como seu tema a questo: como podem osgestos tornarem-se eternos? (...) Como linguagem, a msica tende ao puronomear, unidade absoluta entre objeto e signo, que em sua imediaticidade estperdido para todo conhecimento humano (Adorno, 2002, p. 139).
Ao evidenciar o paradoxo de uma arte no conceitual que representa contedos
conceituais, Hanslick j apresenta, no obstante, o corretivo do carter abstrato de sua
esttica musical: a msica no representa os sentimentos, mas apenas mimetiza os
movimentos anmicos que podem acompanh-los, isto , os gestos. Adorno
provavelmente diria que Hanslick tem razo contra si mesmo: se para ele esses
movimentos esto subsumidos ao conceito, como adjetivos, para Adorno a
possibilidade da expresso na msica se baseia justamente na autonomia dos gestos
frente s representaes s quais o conceito o subsume. Assim tambm, a autonomia
musical reflete essa autonomia do movimento anmico e do gesto frente ao conceitual
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e abre espao para a expresso de movimentos anmicos no subsumidos
universalidade do conceito.
Contudo, aps serem negados em prol da gestualidade e do orgnico, o
conceito e a razo reaparecem, ainda que transformados. Gesto e linguagem
conjugam-se na msica, segundo Adorno. As implicaes de sentido extra-musicais,
desde o eco de marchas e msica blica na grande sinfonia (...) at os reais e extra-
estticos shocks e emoes da alma, desde cujos documentos cristalizou-se a nova
linguagem formal da msica (Adorno, 2002, p. 142), por um lado; e a articulao
dos sons no interior de um processo, por meio de uma construo racional da forma,
por outro: estes dois elementos opostos apresentam-se na msica intrincados, e torna-
se, portanto, impossvel separ-los um do outro. O carter lingustico da msica no
deve ser entendido como sua participao no mundo dos significados, pois no
possvel separar, no gesto, significante e significado: no ato do puro nomear
diferente do de significar o nome aparece na msica como puro som, separado de
seu portador, e portanto como o oposto de todo ato de significao, de toda inteno
de sentido (Adorno, 2002, p. 140). O que a constitui como linguagem suaparticipao no mundo da racionalidade, j que
A msica no conhece o nome o absoluto como som imediatamente, mas, se possvel expressar-se assim, se esfora por uma construo que o conjure pormeio de um todo, de um processo. Portanto ela est ao mesmo tempo entrelaada
no interior desse processo, no qual categorias como racionalidade, sentido,significado, linguagem ganham sua validez (Adorno, 2002, p. 140).
nessa tenso entre o anseio pela nomeao de algo imediato e no
intencional e a articulao racional em virtude da qual tal nomeao se torna possvel
que Adorno identifica a contradio essencial no interior da qual se move a criao
musical:
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O paradoxo de toda msica que, como um esforo em direo quilo nointencional para o qual foi escolhida a inadequada palavra nome, ela sedesdobra precisamente apenas por causa de sua participao na racionalidade nomais amplo sentido (Adorno, 2002, p. 140).
A especificidade da linguagem musical no pode ser compreendida, segundo
Adorno, a no ser a partir dessa essncia contraditria.
Por uma parte, [a racionalidade musical] implica que a msica, atravs dadisposio sobre o material da natureza, se transforma em um sistema mais oumenos rgido, cujos momentos singulares tm um significado independente dosujeito e ao mesmo tempo aberto a ele. Toda msica, desde o princpio da pocado baixo contnuo at hoje, est unida como um idioma, que em boa medida est
dado pela tonalidade, e cujo poder continua ainda na negao atual da tonalidade.O que designa o termo musical no uso mais simples da linguagem, se referejustamente a esse carter idiomtico, a uma relao para com a msica na qual seumaterial, em virtude de sua objetivizao, se converte em segunda natureza dosujeito musical. Mas, por outra parte, tambm sobrevive, no momento da msicasemelhante linguagem, a herana do pr-racional, mgico, mimtico: graas sua linguistizao, a msica se afirmou como rgo da imitao (Adorno, 2002, p.145).
A msica determinada, por um lado, pelos seus elementos abstratos e
universais, que esto para alm da singularidade de cada msica determinada. O que
se obtm por meio desta abstrao aquilo que comum entre elas: os elementos
musicais sedimentados que se abstraram desta ou daquela msica em particular para
constiturem um referencial abstrato compartilhado daquilo que musical, queestabeleceria os padres de reconhecimento e legitimidade ante os quais os
momentos expressivos e particulares de cada msica deveriam se curvar para no se
tornarem incompreensveis. Dito de outro modo, um sistema, um idioma.
Por outro lado, a msica no pode ser compreendida sem uma considerao de
seus momentos expressivos, nos quais vai alm dos elementos convencionais, em
direo a algo que tende ao informe e ao pr-racional: nesses momentos, ela se
particulariza, se lana para alm dos elementos universais criando, por meio de um
processo, novas configuraes que so irrepetveis.
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Isto pode explicar porque, conforme vimos no sub-captulo anterior, Adorno
no identifica, tal como Dahlhaus o faz, a aspirao originalidade como uma das
caractersticas da msica expressiva ocidental, cuja expressividade assume, para o
filsofo, o sentido de uma mera simulao de paixes. A esttica de Adorno, no s
naFilosofia da Nova Msicamas nos escritos sobre msica e sobre artes em geral, se
desenvolve a partir das questes tcnicas e formais apresentadas por cada uma das
obras. Adorno no prope uma reflexo sobre as doutrinas estticas enquanto tais,
mas sim uma reflexo sobre as questes estticas emanadas pelas prprias obras. Sua
esttica algo que podemos chamar de uma esttica materialista: no se trata de uma
discusso das idias enquanto tais, mas sim na medida em que elas estabelecem
relaes concretas, com a criao artstica e sua histria. Essa exigncia de uma
expresso subjetiva e original deixa de ser apenas um preceito esttico e passa a
enredar-se em uma dinmica histrica concreta na medida em que mobiliza os
elementos construtivos intra-musicais da forma autnoma. A concepo da forma
como um todo coeso e racional abriu um caminho para que a expresso subjetiva
pudesse aparecer como uma fora concreta no interior da msica e ganhar o sentidode uma singularizao irrepetvel, que paradoxalmente s se torna possvel em
virtude dos elementos objetivos da forma. Dahlhaus tambm tem isto em mente:
seguindo a prpria exposio desse conceito de expresso subjetiva, no ensaio
Transformaes da esttica do sentimento (Dahlhaus, 2003), ele apresenta a
contradio em que a msica se enreda ao tomar essa expresso como princpio.
Enquanto composio, enquanto letra escrita, a arte da expresso musical enreda-se num paradoxo que, no entanto, no se pode abolir como contradio morta,mas se deve conceber antes como contradio viva, que impele a evoluohistrica. Se a msica visa tornar-se (...) persuasiva e expressiva e o princpio daexpresso , desde o final do sc. XVIII, o agente da sua histria deve ento, porum lado, para ser compreensvel, cunhar frmulas: na pera, constituiu-se um
vocabulrio que tambm se estendeu msica instrumental. Por outro lado, aexpressividade, enquanto efuso do corao e expresso do prprio ntimo,optou pelo desvio do habitual e do batido. (...)A expresso encontra-se, pois, contraditoriamente cruzada com a conveno, e o
particular com o geral. Se, enquanto subjetiva, irrepetvel, incorre ao mesmo
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tempo, para ser clara, na coao consolidao. No instante em que se realizanuma existncia apreensvel, abandona a sua essncia (Dahlhaus, 2003, p. 37).
Expusemos at aqui esses dois conceitos de expresso mobilizados por Adorno
como modelos negativos ao abordar o expressionismo musical de Schoenberg
expresso como simulao de paixes e como comando subjetivo da totalidade daforma; desenvolvemos a crtica de Hanslick esttica do sentimento, crtica esta que
parte dos conceitos de autonomia da forma e de totalidade; posteriormente,
desenvolvemos a crtica de Adorno hipstase do todo sobre as partes na esttica de
Hanslick. Podemos perceber de tudo isto que Adorno mobiliza esse conceito de
expresso ligado totalidade da forma no sentido de desenvolver, por assim dizer, doseu negativo, o conceito daquilo que podemos designar como uma singularizao
expressiva, em que a expresso no mais se constitui a partir da totalidade da forma
como um princpio isolado, mas dos momentos particulares irredutveis ao todo que
se configuram e tornam-se expressivos em virtude da sua relao dinmica com o
princpio formal abstrato. O propsito disto foi apresentar a caracterizao adornianada situao geral da expresso musical no contexto esttico e composicional em que
emergiu o expressionismo musical e, em particular, o monodrama Erwartung. A
ruptura representada por esta obra s pode ser adequadamente compreendida se
levarmos em conta os desafios com os quais se deparava a composio musical, em
nosso caso especialmente em virtude das dificuldades enfrentadas pelos compositores
que se mantinham fiis ao princpio da expresso. O expressivo de Erwartung
abandona esse princpio de autonomia da forma compreendido como uma
subsuno dos momentos singulares ao esquema geral da forma por meio do qual
as partes constituem-se como funo do todo. Nela, a expresso no se constitui
atravs dessa tenso entre a parte e o todo: Erwartung realiza a idia de uma
expresso imediata, emancipada dos meios estilsticos e formais estabelecidos, um
impulso de negao radical da tradio estilstica do passado. No entanto, s
possvel compreender a necessidade desta posio radical de recusa dos recursos
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formais estabelecidos aps abordarmos o conceito adorniano de fetichismo musical,
j que as crescentes dificuldades na criao de obras musicais consistentes e fiis ao
princpio expressivo so, para Adorno, um fenmeno inseparvel da tambm
crescente fetichizao da cultura, e da msica em particular. Mas antes de passarmos
ao captulo sobre o fetichismo, desenvolvamos melhor essa concepo da expresso
calcada na autonomia da forma, detendo-nos, neste momento, no parmetro da
harmonia.
1.3 Harmonia
Mas inclusive a liberao da melodia de seu antigo carter de acorde perfeito devido ao lied romntico continua no marco da universalidade harmnica. Acegueira com que se desenvolveram as foras produtivas musicais, especialmentea partir de Beethoven, deu como resultado despropores. Cada vez que umaesfera isolada do material se desenvolvia num movimento histrico, as outras
partes ficavam atrs e desmentiam na unidade da obra aquelas partes maisavanadas e desenvolvidas. Durante o romantismo, isto valia sobretudo para ocontraponto. Aqui o contraponto se converte num mero agregado de composiohomofnica. Nesta poca os compositores limitam-se a combinar exteriormenteos temas pensados homofonicamente ou a adornar de maneira puramenteornamental o coral harmnico com partes polifnicas. Nisto se assemelhamWagner, Strauss e Reger (Adorno, 2009, p. 53).
Essa observao de Adorno, de que na msica romntica os parmetros maisdesenvolvidos so absorvidos pelos menos desenvolvidos, de que os avanos do
contraponto e do pensamento horizontal so relativizados pela universalidade
harmnica, deve ser considerada no mbito das reflexes do autor sobre o conceito de
racionalizao da msica, de organizao racional de todo o material musical, para
empregar uma expresso que aparece poucas linhas abaixo da ltima citao. Estamesma racionalizao posteriormente conduziu, aos olhos de Adorno, tcnica
dodecafnica. Frente selva natural que comumente caracterizava o
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desenvolvimento dos parmetros musicais, desordenado e independente, a unificao
da melodia e da harmonia sob o primado da harmonia visto por Adorno como um
pressuposto histrico-musical da organizao total dos materiais. Esse papel inicial
central da harmonia na organizao racional da msica faz eco, no por acaso, com o
conceito de racionalizao musical desenvolvido por Max Weber em seus
Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica (Weber, 1995), obra que Adorno
indubitavelmente conhecia e tinha em mente ao apresentar, na Filosofia da nova
musica, a concepo de uma organizao racional do material musical.
Max Weber apresenta uma concepo de expresso baseada na autonomia da
forma. Para ele, a forma autnoma absorve os elementos que a negam, isto , o
irracional, mas desde que toda irracionalidade se submeta a um sistema racional de
atribuio de sentido, ou seja, ao princpio formal abstrato. Assim, possvel pensar
em uma teoria da expresso musical como um dos desdobramentos da teoria
weberiana da racionalizao musical. Segundo Weber, racionalizao e expresso
aparecem juntos na msica moderna ocidental, fundamentalmente sob o primado da
harmonia. Porm, ao contrrio de Hanslick, Weber no considera a msica como uma
realidade hermtica, impermevel a elementos extra-musicais. Expresso e
racionalidade musical, ou expresso e forma no se identificam reciprocamente,
como ocorre em Hanslick, mas estabelecem uma relao de tenso.
Antes de explicitarmos esta relao, aproximemo-nos do conceito weberiano
de racionalizao musical. Ao contrapor, arte racionalizada, uma outra arte anterior,no racionalizada e a servio da religio, Weber apresenta o fundamental da primeira:
Com o desenvolvimento da msica a uma arte estamental (...), com aultrapassagem do emprego meramente prtico-finalista das frmulas sonorastradicionais e, por conseguinte, com o despertar das necessidades puramente
estticas, inicia-se regularmente sua verdadeira racionalizao (Weber, 1995, p.86).
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A msica se racionaliza ao livrar-se de funes rituais, no interior das quais
adquiria poderes mgicos, religiosos, medicinais etc. Os materiais musicais eram
nesses contextos determinados a partir de frmulas, s quais se atribua poderes
sobrenaturais. Portanto, um dos aspectos da racionalizao musical sua
autonomizao em relao a funes rituais. Livres da subordinao a tais funes
extra-musicais, os materiais musicais passam a ser adotados e desenvolvidos a partir
de necessidades puramente musicais. Autnoma em relao aos fins prticos, a
msica se realiza em funo do gozo esttico (Waizbort, 1995, p. 39).
No entanto, a autonomia da msica no se esgota, segundo Weber, na liberao
em relao aos objetivos prtico-finalistas. Mesmo realizada com o objetivo do gozo
esttico, a msica ainda pode constituir e desenvolver seu material pela mimetizao
de elementos extra-musicais.
Em certas circunstncias, a fala pode ainda exercer (...) uma influncia direta ecompleta sobre a formao do curso da melodia: se esta lngua, por exemplo, foruma das chamadas lnguas sonoras, nas quais o significado das slabas varivel
de acordo com a altura do som em que so pronunciadas (Weber, 1995, p. 81).
Weber comenta em seguida uma srie de casos nos quais a msica toma as
caractersticas da fala como um princpio mimtico. Em contraposio a isso,
racionalizao tambm significa autonomizao em relao a qualquer princpio
mimtico extra-musical no interior da msica.A racionalizao da msica, para Weber, no unvoca: pode se dar em
diversos graus e direes. Weber descreve e analisa em sua sociologia da msica as
msicas de diferentes povos, suas caractersticas especficas e seus diversos graus e
modos de racionalizao. O que principalmente lhe interessa determinar aquilo que
especifico msica ocidental. Tal especificidade consiste justamente no carter
harmnico da racionalizao de intervalos. No entanto, Weber mostra atravs dos
inumerveis exemplos de msicas de diferentes povos que o material musical no se
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deixa racionalizar harmonicamente isto , pela simples diviso matemtica da
oitava sem criar certos problemas que devem ser resolvidos no interior de cada
sistema musica