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SUMÁRIO Introdução ………………………………………………………………………………………….. 10 Capítulo 1: Fundamentação Teórica …………………………………………………………...... 16 1.1. Por uma abordagem do fenômeno da intertextualidade ...................................................... 17 1.1.1. Uma nova abordagem necessária e possível ................................................................ 18 1.1.2. Nosso ponto de partida ................................................................................................... 21 1.1.3. Do dialogismo como um princípio definitório da linguagem humana .................... 26 1.1.3.1. Da atualidade da obra de Bakhtin .................................................................... 28 1.2. Por uma abordagem cognitiva da linguagem humana ......................................................... 35 1.2.1. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas ........................................................... 36 1.2.1.1. Das concepções de cognição, linguagem e língua ......................................... 41 1.2.1.2. Do pensamento dialógico como capacidade cognitiva ................................. 48 1.3. Por uma redefinição preliminar do conceito de intertextualidade ...................................... 52 1.4. Do processo de Integração Conceptual ................................................................................... 55 1.4.1. A teoria da Integração Conceptual ................................................................................ 56 1.4.1.1. O que são Espaços Mentais? .............................................................................. 56 1.4.1.2. Como ocorre a integração de Espaços Mentais? ............................................ 59 1.4.1.3. Integração Conceptual: outra perspectiva possível ....................................... 71 1.5. Por um modelo de análise cognitiva do fenômeno da intertextualidade ........................... 87 Capítulo 2: Metodologia .................................................................................................................. 93 2.1. Linguística Cognitiva: o desafio metodológico ...................................................................... 94 2.1.1. Da dimensão introspectiva do trabalho de análise linguística .................................. 95 2.1.2. Das limitações e potencialidades do método de análise ............................................. 98 2.1.3. Do processo de análise de dados .................................................................................... 102 2.1.4. Da identificação, coleta, documentação e seleção de dados ....................................... 106 2.1.4.1. Por uma atividade de caráter metacognitivo .................................................. 109 2.1.4.1.1. O desenho geral da atividade .......................................................... 110 2.1.4.1.2. Os dados coletados através da atividade ....................................... 115 Capítulo 3: Análise de Dados ......................................................................................................... 117 3.1. Redes de Integração Conceptual Intertextuais ....................................................................... 118 3.1.1. As campanhas publicitárias ............................................................................................ 119 3.1.1.1. A campanha “Hollywood” ................................................................................ 121 3.1.1.2. A campanha “Meus seis anos” ......................................................................... 139 3.1.2. As narrativas ficcionais .................................................................................................... 155 3.1.3. A crônica jornalística ........................................................................................................ 179 3.1.4. Um breve estudo de caso ................................................................................................. 199 3.1.4.1. Dos resultados do protocolo de leitura ........................................................... 201 3.1.4.2. Dos resultados da Roda de Leitura .................................................................. 206 3.1.4.3. Da potencialidade metodológica da atividade metacognitiva ..................... 217 Considerações Finais ........................................................................................................................ 219 Referências ......................................................................................................................................... 231

10-35_intertextualidade

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  • SUMRIO

    Introduo .. 10

    Captulo 1: Fundamentao Terica ...... 16 1.1. Por uma abordagem do fenmeno da intertextualidade ...................................................... 17

    1.1.1. Uma nova abordagem necessria e possvel ................................................................ 18

    1.1.2. Nosso ponto de partida ................................................................................................... 21

    1.1.3. Do dialogismo como um princpio definitrio da linguagem humana .................... 26

    1.1.3.1. Da atualidade da obra de Bakhtin .................................................................... 28

    1.2. Por uma abordagem cognitiva da linguagem humana ......................................................... 35

    1.2.1. Linguagem e cognio: diferentes perspectivas ........................................................... 36

    1.2.1.1. Das concepes de cognio, linguagem e lngua ......................................... 41

    1.2.1.2. Do pensamento dialgico como capacidade cognitiva ................................. 48

    1.3. Por uma redefinio preliminar do conceito de intertextualidade ...................................... 52

    1.4. Do processo de Integrao Conceptual ................................................................................... 55

    1.4.1. A teoria da Integrao Conceptual ................................................................................ 56

    1.4.1.1. O que so Espaos Mentais? .............................................................................. 56

    1.4.1.2. Como ocorre a integrao de Espaos Mentais? ............................................ 59

    1.4.1.3. Integrao Conceptual: outra perspectiva possvel ....................................... 71

    1.5. Por um modelo de anlise cognitiva do fenmeno da intertextualidade ........................... 87

    Captulo 2: Metodologia .................................................................................................................. 93 2.1. Lingustica Cognitiva: o desafio metodolgico ...................................................................... 94

    2.1.1. Da dimenso introspectiva do trabalho de anlise lingustica .................................. 95

    2.1.2. Das limitaes e potencialidades do mtodo de anlise ............................................. 98

    2.1.3. Do processo de anlise de dados .................................................................................... 102

    2.1.4. Da identificao, coleta, documentao e seleo de dados ....................................... 106

    2.1.4.1. Por uma atividade de carter metacognitivo .................................................. 109

    2.1.4.1.1. O desenho geral da atividade .......................................................... 110

    2.1.4.1.2. Os dados coletados atravs da atividade ....................................... 115

    Captulo 3: Anlise de Dados ......................................................................................................... 117 3.1. Redes de Integrao Conceptual Intertextuais ....................................................................... 118

    3.1.1. As campanhas publicitrias ............................................................................................ 119

    3.1.1.1. A campanha Hollywood ................................................................................ 121

    3.1.1.2. A campanha Meus seis anos ......................................................................... 139

    3.1.2. As narrativas ficcionais .................................................................................................... 155

    3.1.3. A crnica jornalstica ........................................................................................................ 179

    3.1.4. Um breve estudo de caso ................................................................................................. 199

    3.1.4.1. Dos resultados do protocolo de leitura ........................................................... 201

    3.1.4.2. Dos resultados da Roda de Leitura .................................................................. 206

    3.1.4.3. Da potencialidade metodolgica da atividade metacognitiva ..................... 217

    Consideraes Finais ........................................................................................................................ 219

    Referncias ......................................................................................................................................... 231

  • INTRODUO

  • Introduo 11

    Uma primeira formulao do problema proposto para investigao, neste

    trabalho de pesquisa, poderia ser apresentada na forma de uma pergunta: como

    compreender e descrever o fenmeno da Intertextualidade em uma perspectiva cognitiva?

    Esse questionamento nos coloca diante da necessidade de compreender o

    que a intertextualidade, como e onde esse fenmeno se manifesta e por que

    propor um estudo sobre o fenmeno na perspectiva cognitiva.

    O termo intertextualidade fora proposto por Julia Kristeva (1979) a partir de

    uma franca influncia dos trabalhos realizados por Mikhail Bakhtin (1895-1975). A

    noo de Intertextualidade, introduzida por Kristeva para o estudo da literatura,

    chamava ateno para o fato de que a produtividade da escritura literria

    redistribui, dissemina textos anteriores em um texto atual. Uma vez que todo texto

    literrio apresenta como caracterstica uma relao, implcita ou explicitamente

    marcada, com textos que lhe so anteriores, essa concepo permite tomar o texto

    literrio como o lugar do intertexto por excelncia. [...] todo texto se constri

    como mosaico de citaes, todo texto absoro e transformao de um outro

    texto (KRISTEVA, 1979, p. 68).

    Na obra Inditos, de Roland Barthes, encontramos uma definio para

    intertextualidade que, consonante com aquela proposta por Kristeva, est

    implicada na prpria definio de texto. Segundo Barthes, o texto lugar em que a

    lngua se realiza concretamente.

    O texto redistribui a lngua ( o campo dessa redistribuio). Um dos caminhos dessa descontruo-reconstruo permutar textos, retalhos de textos que existiram ou existem em torno do texto considerado e finalmente nele: todo texto um intertexto; outros textos esto presentes nele, em nveis variveis, com formas mais ou menos reconhecveis. [...] A intertextualidade, condio de todo texto, seja ele qual for, no se reduz, evidentemente, a um problema de fontes ou influncias; o intertexto um campo geral de frmulas annimas, cuja origem raramente detectvel, de citaes inconscientes ou automticas, dadas sem aspas. (BARTHES, 2004[1993], p. 275)

  • Introduo 12

    Identificada no mbito da literatura e, da mesma forma, fora dos seus

    limites, historicamente, a intertextualidade compreendida como uma

    propriedade constitutiva do texto, como o conjunto das relaes explcitas ou

    implcitas que um texto ou um grupo de textos determinado mantm com outros

    textos. Nas ltimas dcadas, o conceito intertextualidade passa a ser, amplamente,

    adotado como forma de definir as relaes estabelecidas entre textos de um

    mesmo campo semitico e textos produzidos em campos semiticos distintos.

    Desde a proposio do termo, no campo dos estudos literrios, a

    intertextualidade vem sendo tema de investigao em disciplinas e perspectivas

    tericas distintas. Entre essas disciplinas, destacam-se a prpria Crtica Literria, a

    Lingustica Textual e a Lingustica Antropolgica. Poucas so, no entanto, as

    pesquisas realizadas na perspectiva cognitiva. Poucos so os estudos que buscam

    compreender e descrever a intertextualidade a partir de princpios e operaes

    cognitivas implicados em sua concreta manifestao semitica. Nesse contexto,

    justificamos a necessidade e apontamos para a possibilidade de que um novo

    ponto de vista sobre o fenmeno, ainda no privilegiado em estudos anteriores,

    seja criado.

    Neste trabalho de pesquisa, a Intertextualidade investigada como um

    fenmeno, fundamentalmente, implicado na experincia humana de construo de

    sentido. Assim sendo, um fenmeno que implcita ou explicitamente,

    indiciado na materialidade lingstica de diferentes espcies e gneros textuais

    permite revelar o carter eminentemente dialgico da linguagem e da prpria

    cognio humana.

    O desafio maior desta tese propor uma abordagem terica que permita

    descrever princpios e operaes cognitivas subjacentes manifestao do

    fenmeno da Intertextualidade. luz da concepo de linguagem e dos

    pressupostos tericos em que se baseia a rea do conhecimento a que

    denominamos Lingstica Cognitiva, neste trabalho, alm de concreta

  • Introduo 13

    manifestao do princpio do dialogismo, a intertextualidade passa a ser

    compreendida como concreta manifestao da operao cognitiva bsica de

    integrao conceptual. Para fins de atingir o objetivo proposto para a pesquisa, o

    fenmeno investigado e descrito a partir de seu indiciamento em cenrios

    discursivos tipolgica e funcionalmente diferentes.

    A organizao geral da tese corresponde a trs momentos constitutivos do

    processo de investigao cientfica. O primeiro caracteriza-se por uma discusso

    que delineia os fundamentos tericos adotados para o trabalho de pesquisa, o

    segundo, por uma apresentao dos fundamentos metodolgicos que orientam o

    trabalho de identificao, seleo e anlise de dados e o terceiro pelo trabalho de

    anlise de dados propriamente dito.

    No Captulo 1, apresentamos as concepes gerais de Cognio, Linguagem

    e Lngua que orientam este trabalho de investigao cientfica. Para esse fim,

    dialogamos com trabalhos realizados nos campos da Filosofia da Linguagem

    (BAKHTIN, 2002 [1929], da Antropologia Evolucionria (TOMASELLO, 2003a,

    2003b), da Psicologia Cognitiva (SINHA, 1999) e da Lingustica Cognitiva

    (SALOMO, 2004). A partir da explicitao dessas concepes, em funo da

    natureza do fenmeno em estudo e dos objetivos propostos para o trabalho de

    pesquisa, apresentamos o modelo terico da Integrao Conceptual de acordo com

    seus precursores (FAUCONIER, 1994, 1997, TURNER, 1996, FAUCONIER;

    TURNER, 2002) e com a sua reinterpretao (BRANDT, 2004). Por conceber a

    intertextualidade um fenmeno implicado na experincia humana de construo

    de sentido e por considerar a configurao do contexto situacional uma dimenso

    fundamentalmente implicada na produo de cenrios discursivos intertextuais,

    os princpios tericos do modelo de integrao conceptual propostos pela escola

    de Aarhus (BRANDT, 2004, BRANDT; BRANDT, 2005, OAKLEY; HOUGAARD,

    2008) fundamentam o trabalho de anlise de dados.

  • Introduo 14

    No Captulo 2, apresentamos os fundamentos metodolgicos que orientam

    o trabalho de anlise de dados. Neste momento, discutimos a importncia e os

    limites do uso da introspeco como mtodo de anlise lingstica e apresentamos

    argumentos que apontam para a possibilidade de investigao do fenmeno da

    intertextualidade tambm com base em outros mtodos de investigao. Nesse

    captulo, explicitamos os critrios utilizados para identificao, coleta, seleo e

    anlise do corpo de dados desta tese.

    No Captulo 3, buscamos demonstrar, atravs da anlise de dados, como o

    fenmeno em estudo est implicado na experincia humana de construo de

    referncia/sentido. Nesse momento, possvel evidenciar a potencialidade do

    modelo de Integrao Conceptual proposto pela escola de Aarhus para a anlise

    de textos em que o fenmeno da intertextualidade esteja explicitamente indiciado.

    Os dados selecionados e analisados, na tese, so representativos de trs diferentes

    campos discursivos (o publicitrio, o literrio, o jornalstico) e de diferentes

    gneros textuais (anncios publicitrios, vdeo-propaganda, narrativa ficcional

    para crianas e crnica jornalstica). Nesse captulo, ainda, apresentamos um

    estudo de caso caracterizado como uma anlise qualitativa de dados coletados em

    uma atividade, de carter metacognitivo, realizada em ambiente escolar. A opo

    por uma coleta de dados dessa natureza tem por objetivo sinalizar, mesmo que de

    maneira preliminar, para a possibilidade de realizao de futuros estudos de

    carter emprico que decorram dos resultados alcanados por esta pesquisa

    terica.

    Por fim, apresentamos argumentos que apontam para avanos e limitaes

    que este trabalho de investigao cientfica permite revelar. Neste momento,

    reafirmamos a importncia da realizao de estudos que optem por focalizar o

    fenmeno na perspectiva cognitiva e apresentamos encaminhamentos possveis a

    partir dos resultados alcanados pela pesquisa.

  • Introduo 15

    Como pretendemos demonstrar, no decorrer desta tese, por permear os

    usos das lnguas naturais, dos mais correntes aos mais sofisticados, a

    intertextualidade no deve ser investigada como um fenmeno que se restringe

    natureza do texto, qualquer que seja ele, mas como um fenmeno que permite

    revelar a natureza da prpria linguagem e da cognio humana.

    Que a imagem da capa, gentilmente cedida pela artista plstica Snia

    Menna Barreto, funcione como uma janela que se abre para o texto cientfico que

    o leitor tem em mos. A necessria integrao das cenas que a constituem permite

    ilustrar, de forma pictrica (e metafrica), a maneira com os seres humanos

    pensam, compartilham sua capacidade de comunicao simblica, produzem e

    compreendem (inter)textos.

  • CAPTULO 1

    Fundamentao Terica

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 17

    1.1. Por uma abordagem do fenmeno da intertextualidade

    H, no mnimo, trs razes para justificar a escolha do fenmeno da

    intertextualidade como um objeto de pesquisa no atual momento de estudo das

    cincias denominadas humanas. A primeira delas diz respeito centralidade desse

    conceito para os estudos da linguagem humana em diferentes momentos

    histricos e em diferentes reas do conhecimento. A noo de intertextualidade, de

    alguma forma j inscrita nos primrdios da Histria da Filosofia1, na dcada de 60,

    fora introduzida por Julia Kristeva no mbito dos estudos da Crtica Literria.

    Com isso, Kristeva nos chamava ateno para o potencial valor de

    produtividade da escritura literria que, por sua natureza, redistribui, dissemina

    textos anteriores em um texto atual. Essa concepo, visivelmente inspirada nos

    trabalhos sobre a linguagem realizados por Bakhtin e, posteriormente, rediscutida

    por outros pensadores entre os quais Barthes, Genette, Rifaterre, Bloom,

    Bauman adquire, no ocidente, um importante status a partir da dcada de 70.

    A segunda razo baseia-se no fato de que esse fenmeno, apesar de

    potencializado no fazer esttico, criativo, em funo das habilidades cognitivas

    humanas responsveis pela imaginao, no se restringe ao universo da literatura,

    das artes. Identifica-se todo tempo, nas diversas situaes de uso da linguagem.

    Dessa forma, a intertextualidade um fenmeno que merece investigao no

    apenas como um problema caracterstico da natureza do texto em que se

    inscreve, mas como um problema que indicia a prpria natureza da cognio e da

    linguagem humana.

    1 Conferir Towards a history of theories of intertextuality, em Juvan (2008, p. 49-94). Segundo o pesquisador, na tradio milenar de estudo da Retrica e da Potica, mais precisamente nas obras de Aristteles (384 a.C. 322 a.C.), Ccero (106 a. C. 43 a. C.) e Horcio (65 a.C 8 a.C), encontra-se a origem do que, sculos mais tarde, seria definido pelo conceito de intertextualidade.

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 18

    A terceira razo, intrinsecamente relacionada s duas anteriores, advm do

    fato de a intertextualidade ser um fenmeno que, prevalente no processamento

    discursivo, vem sendo amplamente estudado no campo da anlise literria, da

    anlise do discurso e, mais recentemente, da antropologia cultural. Esses estudos,

    no entanto, no apresentam respostas para, entre outros, os seguintes

    questionamentos: se a intertextualidade um fenmeno prevalente na maneira

    como os seres humanos produzem discurso, ou seja, na maneira como colocamos a

    lngua em atividade, como e por que os seres humanos desencadeiam, de maneira

    to recorrente e em contextos comunicativos to diversos, esse fenmeno

    discursivo? Que princpios, operaes e mecanismos cognitivos subjazem a

    atualizao desse fenmeno discursivo?

    Na Lingustica Cognitiva, entre os avanos por ela promovidos nos ltimos

    30 anos, identificam-se conceitos e noes tericas que podem ser considerados

    significativos o bastante quando nos colocamos em busca de respostas para esses

    questionamentos. Apesar disso, trabalhos de pesquisa com esse objetivo esto por

    ser escritos. At este momento, pouco ou quase nada fora investigado sobre o

    fenmeno da intertextualidade, luz de conceitos tericos da Lingustica

    Cognitiva.

    Diante dessas constataes, passemos a reflexes que permitiro melhor

    focalizar o problema em termos dessa vertente da Lingustica contempornea e do

    dilogo potencial que ela permite estabelecer com outras reas do conhecimento.

    1.1.1. Uma nova abordagem necessria e possvel

    A evoluo da espcie humana est inextricavelmente relacionada s suas

    vivncias socioculturais, mais precisamente, criao, manipulao e

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 19

    transformao inventiva de diferentes tipos de artefato cultural. A cognio

    humana , nesse sentido, profundamente marcada pela criao e pelo uso de

    artefatos culturais2. Em sentido amplo, os signos e as construes lingusticas

    organizadas na forma de textos nada mais so seno artefatos simblicos

    culturais.

    J que a principal funo da linguagem manipular a ateno das outras pessoas ou seja, induzi-las a adotar certa perspectiva sobre um fenmeno, podemos pensar que os smbolos e as construes lingsticas nada mais so seno artefatos simblicos que os antepassados de uma criana lhe legaram para esse propsito. Ao aprender a usar esses artefatos simblicos, e assim internalizar as perspectivas que a ele subjazem, a criana acaba conceituando o mundo da maneira que os criadores dos artefatos fizeram. (TOMASELLO, 2003a, p. 210)

    No mundo contemporneo, vivemos a era da ampla e da irrestrita

    reprodutibilidade tcnica. Em todos os meios do saber arte, religio, cincia ,

    os artefatos culturais criados pelos seres humanos podem ser reproduzidos,

    difundidos, comercializados. Nesse contexto, no difcil constatar que a

    reprodutibilidade identificada nos meios de produo cientfica, tecnolgica e

    artstica submete os artefatos culturais a transformaes profundas e repercusso

    de uns sobre os outros. Essa repercusso, manifestada de formas as mais diversas,

    vem sendo considerada a base de um fenmeno tradicionalmente reconhecido

    como intertextualidade.

    De acordo com Walty, Paulino e Cury (1995), o fenmeno da

    intertextualidade revela uma caracterstica maior dos processos culturais por que

    passa a sociedade contempornea. Segundo as pesquisadoras, o mundo social

    contemporneo caracterizado como um mundo de informao e de consumo

    2 Por artefatos culturais, compreendemos todo e qualquer produto ou objeto resultante da mo de obra humana, ou seja, uma forma de cultura material construda pelos seres humanos para um fim determinado. Para melhor compreender a importncia da criao, manipulao e reinveno de artefatos culturais na evoluo cognitiva da espcie humana, conferir Donald (1999), Mithen (2002); Tomasello (2003).

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 20

    pode ser metaforicamente definido em termos de uma grande rede intertextual

    em constante e dinmico movimento.

    As produes humanas, embora aparentemente desconexas, encontram-se em constante inter-relao. Na verdade, constri-se uma grande rede, com o trabalho de indivduos e grupos, onde os fios so formados pelos bens culturais. Se se considerar toda e qualquer produo humana como texto a ser lido, reconstrudo por ns, a sociedade pode ser vista como uma grande rede intertextual, em constante movimento. O espao da cultura , pois, intertextual. (WALTY; PAULINO; CURY, 1995, p. 12)

    Nos dias atuais, em nossa interao diria com textos de diferentes tipos e

    funes, no nos causa estranhamento a identificao de grandes fragmentos, de

    vestgios ou de pequenas pistas que nos remetam a textos produzidos e veiculados

    em contextos de uso anteriores e muito diferentes do atual. Isso nos permite

    corroborar a tese de que os processos de interao e, portanto, de vivncia

    cultural humana instituem-se intertextualmente.

    Seja em filmes assinados por grandes produtoras cinematogrficas como

    Walt Disney, Pixar, Dream Work3 ou por video makers iniciantes, seja no trabalho

    produzido por renomados pintores ou por grafiteiros annimos, seja em

    manchetes de jornais e revistas de circulao local ou internacional, seja em textos

    literrios publicados em blogs ou comercializados pelo mercado editorial, seja em

    campanhas publicitrias ou em um trabalho de natureza cientfica como este, o

    fenmeno da intertextualidade se manifesta na cultura contempornea, de forma

    to recorrente, que no h como desconsiderar a sua importncia como objeto de

    estudo e a natureza transdisciplinar de sua possvel compreenso.

    Diante disso, o fenmeno da intertextualidade pode ser estudado em uma

    perspectiva restritamente lingustica (verbal) ou em uma perspectiva um pouco

    mais ampla. Em uma perspectiva lingustica popularizada pelo senso comum, a

    intertextualidade vem sendo considerada uma das dimenses possveis do

    3 O mercado cinematogrfico infantil tem se mostrado um espao privilegiado para a identificao de textos constitudos com base no recurso da intertextualidade.

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 21

    enunciado, atualizada na utilizao de recursos como a citao, a meno, a

    aluso, a parfrase, a pardia, o pastiche. Em uma perspectiva mais ampla, a que

    adotamos neste trabalho de pesquisa, a intertextualidade passa a ser considerada

    um fenmeno que, identificado de diferentes formas na materialidade de

    diferentes tipos de texto, est implicado na experincia humana de construo de

    sentido.

    Nessa perspectiva, o estudo do fenmeno da intertextualidade pode

    significar uma concreta contribuio para agendas de pesquisa que visam

    explicitar princpios, operaes e mecanismo cognitivos bsicos subjacentes

    maneira como os seres humanos pensam, como produzem linguagem, como

    interagem socialmente.

    1.1.2. Nosso ponto de partida

    A intertextualidade no , definitivamente, uma noo terica consensual e

    precisa nos estudos da linguagem. Apesar de estarmos discutindo um conceito

    aparentemente familiar, no existe, nos estudos lingusticos e literrios, uma nica

    e bem definida caracterizao para esse fenmeno. Quando afirmamos que um

    texto estabelece com um outro texto uma implcita ou explcita relao, uma

    estreita ou difusa forma de interao, podemos estar tratando de manifestaes

    muito diferentes do fenmeno.

    No decorrer do sculo XX, diferentes teorias que se voltam para a

    compreenso do fenmeno da intertextualidade, nos campos literrio e discursivo,

    encontram eco em conceitos identificados, muitos sculos antes, na Potica e na

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 22

    Retrica Clssicas. Dentre esses, destacam-se os clssicos conceitos de Imitao

    (mimesis/imitatio) e de Emulao (aemulatio)4.

    Provavelmente, mais importante o par imitatio/aemulatio, enraizado na tradio da retrica e da potica, [...] que se configuram como questes- chave dentro do paradigma historicista na histria literria nacional e comparativa. Muitos tericos literrios enalteceram o grande avano da intertextualidade ressaltando suas diferenas com os chamados conceitos pioneiros [...]. Alm disso, concepes que se emparelhavam ou se assemelhavam ao conceito de intertextualidade se expandiram nos estudos literrios, compartilhando, em alguns momentos, com alguns contextos acadmicos de intertextualidade como, por exemplo, nas teorias de regras imanentes da evoluo e tradio literria, na teoria da metacomunicao, em anlises do subtexto, na semntica contextual, nas teorias da estilizao, da pardia, aluso e citao, na semitica das relaes intra-textuais e assim por diante. (JUVAN, 2008, p. 49, traduo da autora)5

    Algumas das diferentes formas de manifestao das relaes estabelecidas

    entre textos podem ser flagradas na tipologia das relaes transtextuais proposta

    por Genette (2006 [1982]). Segundo o pesquisador, essas relaes podem ser

    tipologizadas em termos de: intertextualidade, que supe a presena de um texto

    em outro (por citao, aluso, plgio); paratextualidade, que diz respeito ao entorno

    do texto propriamente dito, sua periferia (ttulos, prefcios, ilustraes, encarte);

    arquitextualidade, que pe um texto em relao com as diversas classes s quais ele

    pertence (um poema de Vincuis de Moraes estaria em relao de

    arquitextualidade com a classe das obras lricas, com a classe dos poemas, a classe

    dos sonetos, com a classe das obras da literatura moderna brasileira), e, por fim, a

    hipertextualidade, que recobre fenmenos como a pardia e o pastiche, por

    exemplo. O trabalho realizado por Genette nos permite constatar que uma

    definio mais precisa do que tradicionalmente se define como intertextualidade

    4 Para aprofundar o assunto, conferir o captulo Towards a history of theories of intertextuality, trabalho do pesquisador esloveno Marko Juvan intitulado History and Poetics of Intertextuality (JUVAN, 2008, p. 49-54). 5 A traduo de todos os excertos, retirados de textos escritos em lngua estrangeira, so de minha inteira responsabilidade.

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 23

    (presena de um texto em outro) implica o reconhecimento de diferentes e

    especficas ocorrncias desse fenmeno.

    Parece-me, hoje, haver cinco tipos de relaes transtextuais, que enumerarei numa ordem crescente de abstrao, implicao e globalidade. O primeiro foi, h alguns anos, explorado por Julia Kristeva6, sob o nome de intertextualidade, e esta nomeao nos fornece evidentemente nosso paradigma terminolgico. Quanto a mim, defino-o de maneira sem dvida restritiva, como uma relao de co-presena entre dois ou vrios textos, isto , essencialmente, e o mais freqentemente, como presena efetiva de um texto em um outro. Sua forma mais explcita e mais literal a prtica tradicional da citao (com aspas, com ou sem referncia precisa); sua forma menos explcita e menos cannica a do plgio [...], que um emprstimo no declarado, mas ainda literal; sua forma ainda menos explcita e menos literal a aluso, isto , um enunciado cuja compreenso plena supe a percepo de uma relao entre ele e um outro. (GENETTE, 2006, p. 7-8)

    No que se refere dimenso textual do fenmeno, de sua manifestao e

    identificao formal na materialidade do texto, podemos compreender a

    intertextualidade em termos de uma relao de co-presena entre dois ou vrios

    textos, ou ainda, como a presena efetiva de um texto em outro (GENETTE,

    2006). O que, no entanto, delimitaria, em termos definitrios e operacionais, essa

    relao entre textos? A identificao de diferentes formas de manifestao do

    fenmeno, apesar de contribuir para caracterizar a intertextualidade em uma

    perspectiva tipolgica, no permite revelar aspectos fundamentalmente

    implicados em sua realizao, dentre os quais aqueles relativos sua natureza

    cognitiva.

    Este trabalho de pesquisa parte da hiptese de que a intertextualidade, por

    permear os usos das lnguas naturais dos mais correntes aos mais sofisticados

    precisa ser compreendida como um fenmeno que, manifestado na

    materialidade do texto de formas diversas (aluso, citao, parfrase, pardia),

    6 KRISTEVA, J. Introduo semanlise. 2. ed. So Paulo: Perspectiva, 2005 [1969].

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 24

    decorre da natureza da linguagem e da cognio humana e, por essa razo,

    permite revel-la.

    Conceber a intertextualidade nessa perspectiva, ou seja, partindo de sua

    manifestao concreta no texto de algumas de suas possveis ocorrncias

    para chegarmos explicitao de princpios, habilidades e operaes cognitivas

    constitutivas do fenmeno, coloca-nos diante de um conjunto de possibilidades,

    mas tambm de um desafio: como migrar de uma abordagem textual do fenmeno

    da intertextualidade para uma abordagem cognitiva?

    Como pretendemos demonstrar no decorrer deste trabalho, a proposio de

    uma abordagem cognitiva para o fenmeno da intertextualidade passa pelo

    reconhecimento da natureza do fenmeno em estudo.

    No captulo de anlise, veremos que a manifestao concreta da

    intertextualidade pressupe a (re)contextualizao de um cenrio discursivo-

    enunciativo j construdo, que passar a ser recordado, recontado,

    reconstrudo com outra perspectiva, em um novo cenrio discursivo, em um

    cenrio discursivo intertextual. Se assim compreendemos a intertextualidade, para

    alm de um fenmeno de carter textual, ela passa a ser entendida como um

    fenmeno implicado na dimenso enunciativa da linguagem.

    Por enunciao, compreendemos, em consonncia com Benveniste, o

    colocar em funcionamento a lngua por um ato individual de utilizao. Segundo

    Benveniste (1989 [1974], p. 82-83), a enunciao supe a converso individual da

    lngua em discurso. Alm disso, pressupe o prprio ato, as situaes em que ele

    se realiza, os instrumentos (fonolgicos, lexicais, gramaticais, semnticos) de sua

    realizao.

    O ato individual pelo qual se utiliza a lngua introduz em primeiro lugar o locutor como parmetro nas condies necessrias de enunciao. Antes da enunciao, a lngua no seno possibilidade da lngua. Depois da enunciao uma instncia de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciao de retorno. (BENVENISTE, 1989, p. 82)

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 25

    O processo de enunciao, o ato em que uma pessoa expressa para outra

    pessoa, em um contorno entonacional nico, uma inteno comunicativa

    relativamente coerente em um dado contexto comunicativo (TOMASELLO, 2006,

    p. 440), ocorre com vistas comunicao cooperativa entre os interlocutores, com

    vistas co-construo da referncia e do sentido pelos sujeitos da interao.

    O ato individual de se apropriar da lngua (de suas convenes simblicas)

    e de mobiliz-la criativamente, ou seja, o ato de colocar a lngua em atividade

    desencadeado por locutores empricos que, em um dado contexto comunicativo,

    necessitam referir e co-referir pelo discurso. Segundo Benveniste,

    A condio mesma dessa mobilizao e dessa apropriao da lngua , para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmtico que faz de cada locutor um co-locutor. A referncia parte integrante da enunciao. (BENVENISTE, 1989, p. 84)

    Considerando que o fenmeno da intertextualidade pode ser caracterizado,

    em estudos lingusticos e literrios contemporneos, por uma rica tipologia

    (citao, aluso, pardia, parfrase, carnavalizao, pastiche), em busca de

    compreender o fenmeno em uma perspectiva cognitiva, neste trabalho de

    pesquisa, adotamos, como ponto de partida, as seguintes premissas:

    i. o fenmeno no se restringe materialidade textual, apesar de manifestado

    e identificado na materialidade de textos de diferentes gneros e funes e

    em situaes comunicativas diversas ;

    ii. o fenmeno est implicado no processo de enunciao, sendo assim, no ato

    mesmo de os seres humanos inter-agirem, de (co)referirem e de produzirem

    sentido atravs do discurso;

    iii. a manifestao da intertextualidade pressupe a (re)contextualizao de um

    cenrio discursivo constitudo e identificado em outro contexto

    sociocomunicativo; assim, esse cenrio conhecido passa a ser

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 26

    recordado, recontado, tomado em outra perspectiva, em um cenrio

    discursivo novo, atual;

    iv. o processo de encenao discursiva intertextual se institui como forma de

    manifestao concreta, material, do princpio dialgico da linguagem

    humana7.

    Diante de premissas que permitem delinear, em linhas gerais, a natureza do

    fenmeno em estudo, por que e como compreender o dialogismo um princpio da

    linguagem humana que subjaz o processo de encenao discursiva intertextual?

    1.1.3. Do dialogismo como um princpio definitrio da linguagem humana

    Na vasta literatura produzida no campo da Filosofia, da Literatura e, no

    decorrer do sculo XX, nos campos da Lingustica Textual e da Anlise do

    Discurso, diferentes, convergentes e dissonantes formas de interpretao do

    fenmeno da intertextualidade so identificadas. Entre essas concepes,

    destacam-se aquelas forjadas em duas perspectivas: a filosfica e a esttico-

    literria.

    O termo intertextualidade comea a ser utilizado, em estudos

    contemporneos, depois do trabalho realizado por Julia Kristeva, na efervescncia

    cultural francesa de meados dos anos 60. Com uma pesquisa realizada a partir da

    obra de Mikhail Bakhtin, Kristeva cunha o termo. Na poca, a palavra

    intertextualit surge como um neologismo na lngua francesa. Por sua simplicidade

    e preciso referencial, o conceito torna-se chave no campo da crtica literria e

    populariza-se em outras reas do saber e das artes. Atualmente, o conceito

    7 Esta premissa ser devidamente aprofundada logo a seguir.

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 27

    utilizado, de maneira irrestrita, como forma de descrever as relaes estabelecidas

    entre textos de um mesmo campo semitico o literrio, por exemplo e

    campos semiticos distintos, ou seja, para descrever a relao entre textos

    produzidos, originalmente, no universo literrio que so identificados, de alguma

    maneira, na produo de novos textos, produzidos, por exemplo, no universo

    cinematogrfico, musical, publicitrio.

    Quando nos debruamos a estudar trabalhos referenciais sobre o tema,

    deparamo-nos com um conceito empregado em (con)textos tericos bastante

    diversos: estruturalistas, ps-estruturalistas, marxistas, ps-colonialistas,

    feministas, psicanalticas8.

    No h como estudar o fenmeno da intertextualidade sem que a obra de

    Mikhail Bakhtin seja revisitada. Isso ocorre pelo fato de o trabalho do pensador

    russo ter influenciado, explicitamente, a proposio do conceito na modernidade.

    Julia Kristeva atribui a Bakhtin os pilares sobre os quais o conceito fora

    constitudo. Em Bakhtin (1895-1975), encontramos algumas das mais valiosas

    reflexes, no sculo XX, sobre a dimenso dialgica sociointeracional da

    8 Estudos sobre intertextualidade sistematizados por Clayton e Rothstein (1991) e Allen (2000) permitem confirmar essa afirmao. Na primeira obra, os organizadores selecionam trabalhos em que se discute a tenso estabelecida no uso e no reconhecimento do termo pela crtica literria francesa e norte-americana, dando nfase ao conceito de influncia e sua relevncia para a crtica norte-americana, sobretudo no trabalho realizado por Harold Bloom. Nessa obra, Susan Friedman (1991, p. 155), ao refletir sobre a tese bartheana da morte do autor, no texto Weavings: Intertextuality and the (re)Birth of the author, afirma que The multiplicity of meanings on this side of the Atlantic has been symptomatic of a tendency in American intertextual

    criticism to ignore or refuse the death of the author as a precondition of intertextual readings, ou seja, segundo Friedman, a multiplicidade de sentidos que a crtica literria americana atribui ao conceito de intertextualidade tem sido sintomtica de uma tendncia da prpria crtica em ignorar a morte do autor como uma precondio de leituras intertextuais. Nesse sentido, entre os maiores crticos da obra de Kristeva e R. Barthes est Harold Bloom. Segundo Friedman, uma terceira via para a superao da dicotomia, aparentemente estabelecida entre as duas escolas (a francesa e a norte-americana) proposta pelo crtico Jonathan Culler. Para Culler, h de se estabelecer uma interao dialtica entre as duas vertentes. Na segunda obra, Graham Allen (2000) traa um percurso para os diferentes usos do conceito. Allen parte de reflexes que atribuem, aos trabalhos seminais de Ferdinand Saussurre, elementos que j promovem noes de intertextualidade e conclui seu trabalho contextualizando o fenmeno e sua importncia na cultura ps-moderna. No ltimo texto da obra, Allen discute as intrincadas relaes estabelecidas entre intertextualidade, hipertextualidade e internet. Essas relaes, por si s, abrem possibilidade de um amplo e diversificado universo de pesquisas.

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 28

    linguagem humana. Como veremos a seguir, essa dimenso da linguagem est

    essencialmente implicada na manifestao discursiva do fenmeno.

    1.1.3.1. Da atualidade da obra de Bakhtin

    Em Bakhtin (2002 [1929]), encontramos um pensador que defende a tese de

    que o signo e a situao social esto indissoluvelmente ligados. A obra deixa

    entrever um pensador que, apesar de francamente marxista, no se restringe

    anlise ideolgica do signo lingustico e de sua manifestao. Em seu prefcio,

    Jakobson chama a ateno do leitor para o subttulo da obra: Problemas

    fundamentais do mtodo sociolgico na cincia da linguagem. Isso ocorre pelo

    fato de que, j no subttulo, Bakhtin deixa pistas de que anteciparia as atuais

    exploraes realizadas no campo da sociolingustica e, principalmente, das

    pesquisas semiticas da atualidade, fixando-lhes, j naquela poca, tarefas de

    grande envergadura.

    Bakhtin um pensador que coloca, em primeiro lugar, a questo dos dados

    reais da lingustica, da natureza real dos fatos da lngua, em contraposio a uma

    compreenso de lngua como objeto abstrato ideal, sistema sincrnico homogneo.

    Dessa forma, opta pela valorizao da fala e da enunciao em seus estudos,

    focalizando a natureza social e, em sua perspectiva, intersubjetiva e ideolgica da

    constituio e dos usos da linguagem humana. Segundo Yaguello, pesquisadora

    que assina a introduo da obra,

    Bakhtin expe bem a necessidade de uma abordagem marxista da filosofia da linguagem, mas ele aborda, ao mesmo tempo, praticamente todos os domnios das cincias humanas, por exemplo, a psicologia cognitiva, a etnologia, a pedagogia das lnguas, a comunicao, a estilstica, a crtica literria e coloca, de passagem, os fundamentos da semiologia moderna. (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 13)

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 29

    Apesar de Bakhtin (2002 [1929]) no ter sido objeto de anlise para o

    trabalho em que Kristeva, futuramente, definiria o conceito de intertextualidade,

    acreditamos que dois textos dessa obra so merecedores de nossa ateno neste

    trabalho de pesquisa. Trata-se dos captulos A interao verbal e O discurso de

    outrem, respectivamente. Nesses textos, Bakhtin defende o papel do outro no

    ato da enunciao como parmetro para os processos de interao humana.

    O pensador russo conceitua o ato de enunciao como decorrncia de

    processos e contextos multidimensionais. Em Bakhtin, a enunciao implica a

    interao de interlocutores que se instituem em contextos ou situaes

    socioculturais concretas de uso da linguagem. Essas diferentes situaes de uso da

    linguagem ativam de maneira mais ou menos explcita diferentes papis e

    valores sociais que os interlocutores instituem e representam no ato de encenao

    discursiva. Esses valores esto indiciados na palavra em cena, que sempre se

    dirige a um interlocutor e que sempre variar no e de acordo com o jogo

    enunciativo estabelecido pelos interlocutores. Qualquer que seja o jogo

    enunciativo seja aquele flagrado em um discurso familiar ntimo e ordinrio,

    seja aquele forjado em um complexo e fantasioso texto ficcional, a dimenso social

    identificada e estabelecida pelos interlocutores ali institudos indicia um horizonte

    tico e esttico do momento histrico em que se instituem esses interlocutores.

    Com efeito, a enunciao o produto da interao de dois indivduos socialmente organizados e, mesmo que no haja um interlocutor real, este pode ser substitudo pelo representante mdio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela funo da pessoa desse interlocutor: variar se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou no, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laos sociais mais ou menos estreitos (pai, me, marido etc.). No pode haver interlocutor abstrato; no teramos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido prprio nem no sentido figurado. Se algumas vezes temos a pretenso de pensar e de exprimir-nos urbi et orbi, claro que vemos a cidade e o mundo atravs do prisma do meio social concreto que nos engloba. Na maior parte dos casos, preciso supor alm disso um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criao ideolgica do grupo social e da poca a que pertencemos, um horizonte contemporneo da nossa

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 30

    literatura, da nossa cincia, da nossa moral, do nosso direito. (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 112)

    Na perspectiva bakhtiniana, a interao verbal, instaurada pelos seres

    humanos atravs do ato de enunciao, s ocorre entre um eu e um outro

    (inter-locutores) socialmente organizados, socialmente constitudos. A vida social

    e a cultura qual os seres humanos pertencem, os diferentes e simultneos tipos

    de relao social que estabelecem, so/esto marcados em sua percepo de

    mundo (fsico, social, esttico), nos termos de Bakhtin, na atividade mental

    humana e na maneira, melhor dizendo, nas diferentes maneiras como

    discursivamente os seres humanos exprimem essa percepo.

    A atividade mental do sujeito constitui, da mesma forma que a expresso exterior, um territrio social. Em conseqncia, todo itinerrio que leva da atividade mental (o contedo a exprimir) sua objetivao externa (enunciao) situa-se complementarmente em territrio social. Quando a atividade mental se realiza sob a forma de uma enunciao, a orientao social qual ela se submete adquire maior complexidade graas exigncia de adaptao ao contexto social imediato do ato de fala e, acima

    de tudo, aos interlocutores concretos. (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 117)

    Ao conceber o ato da enunciao e a prpria atividade mental como

    atividade de carter social, Bakhtin traz para o eixo de seu trabalho o conceito

    do dilogo. O pensador russo compreende esse termo em um sentido mais

    amplo que o adotado pelo senso comum. Segundo Bakhtin (2002 [1929], p. 118), o

    dilogo deve ser compreendido como toda comunicao verbal, de qualquer

    tipo que seja. O dilogo , assim, um elemento definidor de todas as formas e

    esferas de comunicao verbal. O ato de fala escrito ou oral implica refutar,

    confirmar, antecipar, criticar, responder, em sntese, dialogar com intervenes

    anteriores. Instaurar qualquer forma de processo enunciativo pressupe, implcita

    ou explicitamente, inter-agir com outras enunciaes, ativar relaes entre textos,

    significa entrelaar textos em um novo terreno discursivo, em uma nova

    situao de produo, ou seja, significa entrelaar (con)textos. Nessa perspetciva,

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 31

    todo tempo, os seres humanos esto expostos a fraes enunciativas de uma

    corrente de comunicao verbal que ocorre de maneira ininterrupta,

    evolutivamente contnua e, inextricavelmente, constituda de diferentes tipos de

    comunicao. Segundo Bakhtin,

    Qualquer enunciao, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma frao de uma corrente de comunicao verbal ininterrupta (concernente vida cotidiana, literatura, ao conhecimento, poltica, etc.). Mas essa comunicao verbal ininterrupta constitui, por sua vez, apenas um momento na evoluo contnua, em todas as direes, de um grupo social determinado. [...] A comunicao verbal entrelaa-se inextricavelmente aos outros tipos de comunicao e cresce com eles sobre o terreno comum da situao de produo. (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 123-124)

    Ao considerarmos o discurso citado (a citao) uma das formas mais

    comuns de como o fenmeno da intertextualidade se manifesta na materialidade

    textual, no h como desconsiderar algumas reflexes de Bakhtin no clssico texto

    O Discurso de Outrem. Segundo o pensador, nas formas de transmisso do

    discurso de outrem, manifesta-se uma relao ativa de uma enunciao a outra, e

    isso no no plano temtico, de contedo, mas atravs de construes estveis da

    prpria lngua. Segundo Bakhtin,

    Nas lnguas modernas, certas variantes do discurso indireto, em particular do discurso indireto livre, tm uma tendncia inerente a transferir a enunciao citada do domnio da construo lingstica ao plano temtico, de contedo. Entretanto, mesmo assim, a diluio da palavra citada no contexto narrativo no se efetua, e no poderia efetuar-se, completamente: no somente o contedo semntico, mas tambm a estrutura da enunciao citada permanecem relativamente estveis, de tal forma que a substncia do discurso do outro permanece palpvel, como um todo auto-suficiente. (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 145)

    O discurso de outrem, identificado em um discurso atual, coloca em cena,

    portanto, o problema do dilogo. Isso compreensvel uma vez que, em toda

    interao, particularmente em sua manifestao oral, ou seja, na fala, a lngua no

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 32

    se realiza em uma enunciao monolgica individual e isolada, mas na interao

    de, pelo menos, duas enunciaes, isto , no dilogo.

    Quando o processo de interao verbal se instaura em determinado

    contexto, ocorre, nas palavras de Bakhtin (2002 [1929]), a recepo ativa do discurso

    de outrem. Essa recepo pressupe que os inter-locutores envolvidos no processo

    interacional desencadeiem um processo de apreenso apreciativa da enunciao de

    outrem. Essa apreenso do discurso de outrem que compreendemos como

    processo que ocorre de maneira pervasiva e intencional no ato de produo da

    linguagem humana caracteriza a essncia do fenmeno da intertextualidade.

    A apreenso apreciativa se manifesta, na materialidade textual, em situaes

    concretas de uso (produo/recepo) da linguagem verbal. Ademais, responde a

    fins especficos do processo de interao humana (narrar, descrever, contestar,

    comparar) e implica, simultaneamente, uma segunda pessoa (um interlocutor com

    quem o locutor interage na forma de citao, aluso) e uma terceira pessoa, um

    interlocutor a quem esto sendo transmitidas as enunciaes citadas, aludidas.

    Essas so condies da comunicao scioverbal que determinam as diferentes

    formas de apreenso e os diferentes usos do discurso de outrem e nosso prprio

    discurso.

    Essas reflexes permitem concluir, em consonncia com o trabalho

    realizado por Bakhtin (2002 [1929]), que:

    a linguagem humana e a atividade mental subjacente mesma, manifestadas pelo

    processo de interao verbal, so essencialmente marcadas pela vida social, pelas

    vivncias culturais dos seres humanos;

    o dilogo, tomado em sentido amplo, uma marca definidora dos

    processos de interao verbal, dos processos de enunciao;

    a transmisso do discurso de outrem manifesta uma relao ativa entre

    discursos, entre enunciaes produzidas em diferentes contextos, em

    situaes de uso de linguagem as mais diversas.

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 33

    J em Bakhtin (2003 [1979]), na obra em que so publicados textos inditos

    que incluem seus primeiros e ltimos escritos, podemos encontrar elementos que

    nos permitem entrever em que contexto epistemolgico o conceito de

    intertextualidade pde ser cunhado por Kristeva. Nessa obra, intitulada Esttica da

    Criao Verbal, encontramos um pensador que, na forma de textos em rascunho,

    permite-nos confirmar a importncia do conceito de dilogo para uma abordagem

    social da linguagem.

    Para Bakhtin, a linguagem e o pensamento do homem so necessariamente

    intersubjetivos. Diante dessa premissa, no fica difcil compreender por que o

    pensador russo atribui ao dilogo o papel definidor da conscincia e da prpria

    vida humana. Ao rascunhar o que seria um projeto de retomada da obra Problemas

    da Potica de Dostoievski (2005 [1929]), Bakhtin afirma:

    Natureza dialgica da conscincia, natureza dialgica da prpria vida humana. A nica forma adequada de expresso verbal da autntica vida do homem o dilogo inconcluso. A vida dialgica por natureza. Viver significa participar do dilogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse dilogo, o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lbios, as mos, a alma, o esprito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialgico da vida humana, no simpsio universal. As imagens reificadas (coisificadas, objetificadas) para a vida e para a palavra so profundamente inadequadas. O modelo reificado de mundo substitudo pelo modelo dialgico. Cada pensamento e cada vida se fundem no dilogo inconclusvel. igualmente inadmissvel a reificao da palavra: sua natureza tambm dialgica. (BAKHTIN, 1979, p. 348)

    Para Bakhtin, o mundo social em que ns seres humanos estamos

    imersos elemento constitutivo, indispensvel a todo e qualquer estudo de

    problemas relativos linguagem humana. Em consonncia com o pensamento

    bakhtiniano, considerar o mundo social e sua importncia nas diferentes formas e

    usos da linguagem verbal significa assumir como pressuposto a natureza dialgica

    da vida humana manifestada pelo pensamento e pela linguagem.

  • Captulo 1: Fundamentao Terica 34

    Ao assumir a explicitao da natureza social dos fatos lingusticos, Bakhtin

    ancora a questo do dialogismo numa dupla e indissolvel dimenso: a

    interdiscursiva e a intersubjetiva.

    Por um lado, o dialogismo compreende-se como o permanente dilogo entre diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. Nesse sentido, o dialogismo pode ser interpretado como o elemento que instaura a natureza interdiscursiva, intertextual, da linguagem. Por outro lado, compreende-se como as relaes que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez, instauram-se e so instaurados por esses discursos. (BRAIT, 1997, p. 98)

    No trabalho filosfico realizado por Bakhtin, a dimenso dialgica da

    linguagem humana se explicita pelo exerccio permanente da alteridade, da

    intersubjetividade. Segundo o pensador, culturalmente, impossvel pensar no

    homem como um sujeito de linguagem fora das relaes que o ligam ao outro. As

    palavras se dividem, para cada um de ns, em palavras pessoais e palavras do

    outro, mas as fronteiras entre essas categorias podem ser flutuantes, sendo nas

    fronteiras que se trava o duro combate dialgico (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 384).

    importante observar que as palavras de que trata Bakhtin, no excerto

    anterior, indiciam a natureza dialgica da linguagem medida que se organizam e

    se manifestam, socioculturalmente, na forma de texto(s). Em um cenrio

    discursivo, em qualquer enunciao, o dilogo consoante ou dissonante

    entre textos, entre diferentes vozes enunciativas j indiciadas no continuum

    discursivo em que estamos inseridos, explicita mais do que uma dimenso

    um princpio definitrio da linguagem humana. Como veremos no captulo

    destinado anlise de dados, esse um princpio fundamentalmente implicado na

    manifestao discursiva do fenmeno da intertextualidade.