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Tese
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS
LINGUSTICOS E LITERRIOS EM INGLS
JJOOSSEELLIITTAA JJNNIIAA VVIIEEGGAASS VVIIDDOOTTTTII
POLTICAS LINGUSTICAS PARA O ENSINO DE LNGUA ESTRANGEIRA
NO BRASIL DO SCULO XIX, COM NFASE NA LNGUA INGLESA
VERSO CORRIGIDA
So Paulo
2012
JOSELITA JNIA VIEGAS VIDOTTI
POLTICAS LINGUSTICAS PARA O ENSINO
DE LNGUA ESTRANGEIRA NO BRASIL DO SCULO XIX,
COM NFASE NA LNGUA INGLESA
VERSO CORRIGIDA
Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Marisa Grigoletto.
So Paulo
2012
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
V654pVIDOTTI, JOSELITA POLTICAS LINGUSTICAS PARA O ENSINO DE LNGUAESTRANGEIRA NO BRASIL DO SCULO XIX, COM NFASE NALNGUA INGLESA / JOSELITA VIDOTTI ; orientadorMARISA GRIGOLETTO. - So Paulo, 2012. 245 f.
Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letrase Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.Departamento de Letras Modernas. rea deconcentrao: Estudos Lingusticos e Literrios emIngls.
1. Anlise do Discurso. 2. Ensino de LnguaEstrangeira. 3. Lngua Inglesa. 4. Lingustica. 5.Poltica. I. GRIGOLETTO, MARISA , orient. II. Ttulo.
JJoosseelliittaa JJnniiaa VViieeggaass VViiddoottttii
Polticas lingusticas para o ensino de lngua estrangeira no Brasil do sculo XIX, com nfase na lngua inglesa
Tese apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Letras.
Aprovada em: 25/06/2012
Banca Examinadora
Prof. Dr. Marisa Grigoletto Orientadora
_______________________________________________________________
Prof. Dr Anna Maria G. Carmagnani - Universidade de So Paulo
_______________________________________________________________
Prof. Dr Deusa M. de Souza Pinheiro Passos Universidade de So Paulo
_______________________________________________________________
Prof. Dr Maria Onice Payer - UNIVS
_______________________________________________________________
Prof. Dr Mrcia A. Amador Mascia Universidade So Francisco
_______________________________________________________________
DEDICATRIA A Rebecca e Carlos, filha e esposo, meus pilares Ao meu pai, Antnio, poeta e amante das letras, que nos presenteou com o livro de Sonetos Perfume e Saudade, do qual extra o seguinte verso:
Que direi dos meus tempos de estudante, Fim de ano, aroeiras to cheirosas, Cagaiteiras de branco, o sol levante A beijar tantas flores perfumosas.
minha me, Joselita, que aos 85 anos, reuniu suas memrias nos livros O Entardecer e Um pouco de cada um Ao Tiago, a quem amo como um filho
AGRADECIMENTOS A Deus, Porque dEle e por Ele, e para Ele, so todas as coisas Romanos 11:36 Aos meus familiares queridos, irmos, irms, sobrinhos e sobrinhas, em especial Veraluce, por possibilitar minha iniciao no estudo da lngua inglesa financiando meu curso Prof Marisa Grigoletto, pela leitura cuidadosa do meu texto e pelos momentos de sbia orientao Banca Examinadora, em especial s Prof Anna Maria Carmagnani e Prof Deusa Passos pelas valiosas sugestes no exame de qualificao Ao Ministrio da Educao, pelo meu afastamento para capacitao com nus Aos professores e colegas do Programa de Ps-graduao em Lingustica Aplicada da UnB, em especial prof. Almeida Filho e prof. Gilberto Chauvet pela orientao no esboo do projeto desta pesquisa Aos amigos Luiz, Mrcio, Paulo Alves, Regina, Carmem, Wanda, Aninha, Suely, Selma, Maria Fernanda, Fawsia, Valria, Rodrigo, Claudinha, Paulo Horlle, Andrs, Claudinho e Mnica, pela pacincia em me ouvir falar de tese o tempo todo Aos amigos do grupo de estudos da USP (LEDI), e aos amigos Bianca Garcia, Bruno Turra e Fabi pelo imenso apoio Aos amigos do MEC da COEF, do GM e da SESU, em especial Hilton Batista pela consultoria em Histria do Brasil s bibliotecas: Biblioteca da Cmara dos Deputados em especial Rosamaria Schertel, da Coordenao de Arquivo do Centro de Documentao e Informao; Biblioteca do MEC; Biblioteca Nacional e ao Arquivo Nacional. Aos meus queridos alunos.
Eu agora diria a ns, como educadores e educadoras: ai daqueles e daquelas, entre ns, que
pararem com sua capacidade de sonhar, de inventar
a sua coragem de denunciar e de anunciar. Ai
daqueles e daquelas que, em lugar de visitar de vez
em quando o amanh, o futuro, pelo profundo
engajamento com o hoje, com o aqui e com o agora,
ai daqueles que, em lugar desta viagem constante
ao amanh, se atrelarem a um passado de
explorao e rotina.
Paulo Freire
Resumo
Esta pesquisa tem como objeto de estudo o discurso poltico-educacional sobre o ensino de lngua estrangeira (LE) no Brasil. Primeiramente examinamos o espao de memria de ensino de LE no processo educacional brasileiro. Ao constatarmos que a lei que oficializou o ensino das lnguas inglesa e francesa no Brasil (Deciso n 29) havia se dado no incio do sculo XIX (1809), decidimos investigar que discursos suscitaram a criao de polticas lingusticas para o ensino de LE no Brasil no sculo XIX. Sob a tica da Anlise do Discurso, de linha Pcheutiana, investigamos os efeitos de sentido construdos a partir do discurso poltico-educacional sobre o ensino da lngua inglesa no Brasil do sculo XIX, buscando compreender a formulao das polticas lingusticas da poca em relao s LE e o estatuto destas naquelas polticas. O corpus foi composto por leis, debates parlamentares e relatrios ministeriais relacionados ao ensino da lngua inglesa. A anlise da materialidade lingustica dos enunciados produzidos pelos sujeitos legisladores mostrou que a Deciso n 29 instaurou um acontecimento discursivo, rompendo com a memria de no-regulamentao do ensino de LE no Brasil e fundou o sentido de utilidade das LE para a instruo pblica no Brasil. Constatamos que a poltica de ensino de LE ancorava-se em um saber importado. Conclumos que o acontecimento discursivo instaurado pela Deciso n 29 criou um lugar para as LE e estas tambm fizeram parte de uma poltica de produo e circulao de conhecimento. Palavras-chave: discurso poltico-educacional; lngua inglesa; poltica lingustica; acontecimento discursivo; produo de conhecimento
Abstract
The aim of this study is the political educational discourse (PED) about foreign language (FL) teaching in Brazil. First we examined the space of memory of FL teaching in the Brazilian educational system. Having noticed that the law which regulated English and French language teaching in Brazil (Decree n.29) was promulgated in 1809, we decided to investigate the discourses which generated the establishment of language policies for FL teaching in Brazil in the 19th century. Under the light of the Pecheutian Discourse, we investigated the effects of the meanings produced by the PED about FL teaching in Brazil in the 19th century in order to understand the formulation of the FL teaching policies at that time and the status of FL in those policies. The corpus was built from laws, debates in Parliament and ministerial reports related to FL teaching. The analysis of the linguistic materiality of the discourse produced by legislators showed that the Decree n. 29 established a discourse event, which breaks up with the previous discourse of non-official FL teaching in Brazil and founded the meaning of utility for FL in the public teaching system. We concluded that the FL teaching policy was anchored to an imported knowledge. Also, we concluded that the discourse event caused by the Decree n. 29 created a place for FL and these were part of a policy for knowledge production and circulation. Key-words: Political Educational Discourse; English language; Language Policy; Discourse Event; Knowledge Production.
LISTA DE ANEXOS
ANEXO 1 Estatutos da Universidade de Coimbra ANEXO 2 Deciso n 29 de 14 de julho de 1809 ANEXO 3 Anais da Cmara dos Deputados Lei de 11 de agosto de 1827 Lei de 7 de novembro de 1831 ANEXO 4 Decreto de 02 de dezembro de 1837 Regulamento n 8, de 31 de janeiro de 1838 Discurso de Bernardo de Vasconcellos Anais da Cmara dos Deputados Anais do Senado Federal ANEXO 5 Relatrios do Ministrio do Imprio Decreto n 456, de 6 de julho de 1846 Anais da Cmara dos Deputados
Decreto n 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854 Decreto n 1.556, de 17 de fevereiro de 1855 Decreto n 1.763, de 14 de maio de 1856 Decreto n 4.468, de 1 de fevereiro de 1870
LISTA DE SIGLAS
ACD Anais da Cmara dos Deputados
ASF Anais do Senado Federal
CLIB Coleo das Leis do Imprio do Brasil
RMI Relatrios do Ministrio do Imprio
LISTA DE QUADROS E TABELAS
Quadro 1 Conceito de poltica lingustica
Quadro 2 Organizao poltica do Brasil no sculo XIX
Quadro 3 Quadro estatstico das aulas pblicas menores criadas no Municpio da Corte em 1838
Quadro 4 Sumrio do Regulamento n 8 Quadro 5 A Aula do Comrcio na instruo pblica
Tabela 1 Reformas educacionais e ensino de lnguas por anos de estudo,
na segunda metade do sculo XIX Tabela 2 Plano de estudos de 1838 do Colgio Pedro II Tabela 3 Plano de estudos de 1855 Tabela 4 Plano de estudos de 1870
Sumrio
Lista de anexos e siglas .........................................................................................................................
Lista de quadros e tabelas ...................................................................................................................
Introduo ............................................................................................................................................ 1
Justificativa ................................................................................................................ 11
Objetivos .................................................................................................................... 14
Perguntas de pesquisa .............................................................................................. 15
Fundamentao terica ............................................................................................ 15
Metodologia ............................................................................................................... 19
Organizao da tese .................................................................................................. 21
Captulo 1 - Memria de lngua estrangeira no espao educacional brasileiro ........23
1.1. As lnguas estrangeiras no sculo XVIII ........................................................ 26
1.2. Reorganizando o Estado Portugus .............................................................. 30
1.2.1 A presena britnica .................................................................................... 32
1.3. O Brasil semi-colonial ..................................................................................... 34
1.3.1 A regulamentao das lnguas inglesa e francesa ..................................... 35
1.4. As LE no Brasil independente ........................................................................ 38
1.5. As LE no Colgio Pedro II ............................................................................... 40
1.6. As LE nas Reformas do CPII ........................................................................... 41
1.6.1 A Reforma Couto Ferraz .............................................................................. 41
Captulo 2 - O acontecimento discursivo da Deciso n 29 ....................................... 46
2.1 Memria de LE ................................................................................................... 48
2.2 Um novo dizer .................................................................................................... 50
2.3 As LE e a matemtica ........................................................................................ 61
2.4 O silenciamento de outras LE ........................................................................... 64
2.5 Status de lngua nobre....................................................................................... 67
2.6 Enquanto o compndio no vem ...................................................................... 68
2.7 Cultura do saber ................................................................................................ 70
Captulo 3 As lnguas estrangeiras e a construo de um novo Estado ......... 73
3.1 Predicaes sobre a lngua inglesa .................................................................... 80
3.1.1 As lnguas e o saber ..................................................................................... 80
3.1.2 Lngua da liberdade ..................................................................................... 86
3.1.3 Lngua do aliado .......................................................................................... 90
3.2 Duelo de prestgios ............................................................................................. 91
Captulo 4 - Em busca de um modelo .................................................................................... 96
4.1 A construo da ordem poltica ........................................................................ 97
4.2 Organizando os saberes ..................................................................................... 99
4.3 Nos moldes franceses ....................................................................................... 105
4.4 A legitimao de um discurso .......................................................................... 112
4.4.1 Um modelo deficitrio ............................................................................... 113
4.4.2 A disciplina de Napoleo ........................................................................... 115
4.4.3 O saber que vem de fora ............................................................................ 126
4.5 Bacharel x artfice ............................................................................................ 133
Captulo 5 - Novas polticas para novos saberes ......................................................... 136
5.1 Um outro lugar para a lngua inglesa ............................................................. 137
5.2 Uma lngua para o Brasil ................................................................................. 148
5.3 A comparao como lema ............................................................................... 152
5.4 A consolidao das LE na instruo ............................................................... 157
Consideraes finais ................................................................................................................... 162
Referncias ...................................................................................................................................... 166
Anexos ................................................................................................................................................ 178
1
INTRODUO
Quando pensamos em poltica de lnguas j pensamos de imediato nas formas
sociais sendo significadas por e para
sujeitos histricos e simblicos
Eni Orlandi
A interveno do Estado nas questes lingusticas tem sido constante no
desenrolar do percurso histrico do ensino de lnguas no Brasil. A ao do
governo pombalino de imposio da lngua portuguesa como lngua oficial do
Brasil no sculo XVIII, coibindo quaisquer outras manifestaes lingusticas
(consequentemente o uso de lnguas indgenas), ilustra o controle sobre as
lnguas pelo Estado por meio da legislao. No que tange ao ensino de lnguas
estrangeiras (doravante LE), no encontramos registros de legislao para esse
fim no Brasil no sculo XVIII.
Fixando os olhos no sculo XIX, perodo enfatizado em nossa pesquisa,
constatamos que o Estado promulgou inmeras leis, estabelecendo polticas
lingusticas (PL) para o ensino das lnguas clssicas (grego e latim), da lngua
portuguesa e de LE na instruo pblica secundria1.
Na base das aes polticas do sculo XIX esto os discursos que
permitiram a elaborao de tais leis. Dentro dessa perspectiva, esta pesquisa
investiga os discursos que suscitaram a formulao das PL para o ensino de LE
no Brasil, no sculo XIX, com nfase na lngua inglesa.
1 A instruo secundria, composta de 7 anos e equivalente hoje segunda etapa do Ensino Fundamental e o
Ensino Mdio, foi instituda e assim denominada em 1837, com a criao do Colgio Pedro II. Mantivemos a
expresso instruo pblica utilizada poca.
2
A lngua portuguesa novamente foi objeto de imposio do Estado em
1930, quando da interdio no Brasil do uso das LE em comunidades de
imigrantes, durante o governo Vargas. As LE vieram compor as polticas de
ensino de mbito nacional nas Reformas Educacionais de 1911 (Rivadvia), de
1915 (Maximiliano), de 1925 (Rocha Vaz), de 1931 (Francisco de Campos), de
1942 (Capanema) e nas Leis de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de
1961, 1971 e 1996.
O conceito de poltica lingustica (PL) definido por Calvet (1996) como a
determinao das grandes decises referentes s relaes entre as lnguas e a
sociedade (p. 11). Embora abrangente, a noo de PL traz em seu bojo a
configurao de uma prtica poltica, pois interfere nas situaes lingusticas
envolvendo, portanto, sujeitos e lnguas. Tal conceito, desenvolvido
principalmente por pesquisadores da Sociolingustica, encontra-se atrelado
noo de planejamento lingustico, que concerne implementao dessas
decises polticas.
O uso pioneiro do termo planejamento lingustico atribudo a Einar
Haugen, que em 1959 desenvolveu um estudo2 sobre a padronizao de lnguas
na Noruega. Para Haugen, planejamento lingustico consiste em normatizar a
ortografia, a gramtica e o dicionrio visando orientar uma comunidade cujos
falantes no possuem uma lngua homognea (HAUGEN, 1959, apud RICENTO,
2006, p. 26).3 No entanto, o campo da PL tornou-se bem mais abrangente que o
modelo de Haugen, passando a tratar de questes relacionadas funo da
lngua e seu valor na sociedade.
2 Haugen, E. Planning in Modern Norway, in Anthropological Linguistics, 1/3, 1959.
3 As tradues para a lngua portuguesa dos textos do livro Language Policy (RICENTO, 2006) so de nossa
inteira responsabilidade.
3
Comecemos por esclarecer que a distino entre os conceitos de poltica e
de planejamento no surge de forma regular na literatura. Alguns autores se
preocupam mais com a questo tcnica (implementao) e outros com o poder
(deciso). Wodak (2007) defende que uma PL toda influncia do Estado na
comunicao entre lnguas, a soma de todas as iniciativas polticas ascendentes e
descendentes (p. 170). Compartilhamos da posio de Calvet (1996) de que uma
PL inseparvel de sua aplicao, uma vez que uma ao (lei) por si s no se
executa, mas necessita do poder para ser colocada em prtica e somente o
Estado tem os meios de implementar suas escolhas polticas. Assim, o conceito
poltica/planejamento implica a elaborao de uma interveno de uma situao
lingustica e os meios para execut-la. Veremos mais adiante que, no prprio
corpo da lei, podemos identificar ao mesmo tempo a exposio da deciso e o
planejamento dos elementos necessrios sua aplicao. Rajagopalan (2009)
corrobora essa noo ao afirmar que uma PL consiste numa srie de aes que
objetivam intervir na vida lingustica de um pas. Ela por excelncia prescritiva e
normativa (grifo no original).
Calvet (1996) distingue dois tipos de gesto das situaes lingusticas: uma
que procede das prticas sociais (gesto in vivo) e outra da interveno sobre
essas prticas (gesto in vitro). A primeira diz respeito forma como as pessoas
resolvem problemas de comunicao no cotidiano que pode resultar nas lnguas
aproximativas (pidgins), ou veiculares ou promovidas (que tem suas funes
ampliadas), (p. 69). Trata-se, portanto, de um produto de uma prtica e no tem
relao com uma deciso oficial, como uma lei. O segundo tipo de gesto
lingustica (in vitro) o analisado neste estudo e representado por documentos
jurdicos (leis), produzidos pelo Estado. Isso implica que as decises tcnicas e
4
polticas so impostas aos grupos sociais. Para tanto, o Estado dispe
essencialmente da lei, de forma que no existe planejamento lingustico sem
suporte jurdico (p. 75).
As intervenes do Estado podem se dar no mbito da forma da lngua
(corpus), bem como na funo que essa lngua possa exercer (status). Calvet
(1996) salienta que historicamente o poder poltico no apenas legislou sobre a
forma da lngua, como tambm interveio na funo das lnguas na sociedade:
A interveno humana na lngua ou nas situaes lingusticas no novidade: sempre houve indivduos tentando legislar, ditar o uso correto ou intervir na forma da lngua. De igual modo, o poder poltico sempre privilegiou essa ou aquela lngua, escolhendo governar o Estado numa lngua ou impor maioria a lngua de uma minoria (p. 11).
Para uma melhor distino entre os tipos de leis lingusticas, apresentamos
uma classificao proposta por Calvet (1996, p.75-76), ressaltando que o objetivo
de tal abordagem no o de esgotar uma tipologia, mas fornecer elementos que
tragam subsdios para a compreenso do tipo de lei que analisamos nesta
pesquisa. H leis que se ocupam:
a) Da forma da lngua;
b) Do uso que as pessoas fazem das lnguas (estabelecimento de uma
lngua oficial de um pas ou as lnguas de trabalho de uma organizao)
c) Da defesa das lnguas (promoo ou proteo)
A partir dessa categorizao, podemos aprofundar o conceito de uso
(status) que as pessoas fazem das lnguas e sua funo para exprimirmos melhor
o tipo de PL que analisamos nesta pesquisa. A distino entre poltica de corpus e
5
poltica de status vem enriquecer a elaborao da abordagem de PL que
utilizamos:
o planejamento do corpus se relacionava s intervenes na forma da lngua (criao de uma escrita, neologia, padronizao (...), enquanto o planejamento do status se relacionava s intervenes nas funes da lngua, seu status social e suas relaes com as outras lnguas (CALVET, 1996, p. 29)
Estamos lidando, portanto, com um tipo de ao de poder (leis) que no se
ocupa da forma da lngua (corpus), mas do uso que as pessoas fazem das
lnguas e, portanto, do status destas como LE.
O tipo de PL que analisamos pode ser mais bem compreendido como uma
subcategoria de uma poltica/planejamento lingusticos (PAULSTON, C.;
HEIDEMANN, K., 2006, p. 292), a partir de uma poltica de status, conforme
ilustramos a seguir:
Quadro 1 - Conceito de Poltica Lingustica
Fonte: Elaborado pela autora
No obstante a prtica de interveno na lngua pelo Estado se
desenvolver h sculos, as PL se firmaram como um campo de investigao
terico e emprico apenas no sculo XX. A PL enquanto disciplina surgiu em
decorrncia do processo de descolonizao da sia e frica. No Brasil, segundo
Poltica lingustica
Poltica de corpus
Poltica de status
Poltica de ensino de LE
6
Miller (1996), apenas nas duas ltimas dcadas que a discusso em torno das
PL ganhou visibilidade, principalmente no que diz respeito ao conceito de lnguas
brasileiras, estas abrangendo todas as lnguas faladas por comunidades de
cidados brasileiros.
A distino entre planejamento do corpus e planejamento do status foi
introduzida por Kloss (CALVET, 1996) e torna-se indispensvel para que
compreendamos a abordagem aqui utilizada: uma lei que se ocupa da funo de
uma determinada lngua em uma sociedade, mais especificamente, de uma LE no
sistema educacional.
O conceito de PL como uma subcategoria da poltica de status afina-se
com o pensamento de Rajagopalan (2005) no que tange concepo de PL
como um ramo da cincia poltica e no da lingustica, em virtude da conotao
poltica da funo da lngua em uma sociedade. Em outras palavras, a escolha da
lngua estrangeira a ser ensinada em um sistema educacional uma questo
poltica.
Ao contrrio das PL estabelecidas pelo Marqus de Pombal e do
Presidente Vargas, calcadas na ideia de interdio de outras lnguas em favor da
lngua portuguesa, as PL do sculo XIX visavam promover o ensino de LE, como
parte do processo de construo de um Estado independente.
A Deciso n 29, de 14 de julho de 18094 (ANEXO 2), criou no Brasil as
primeiras cadeiras de matemtica, lngua inglesa e francesa, para a recm-
instalada Corte Portuguesa. Considerando que a criao dessas cadeiras havia
se dado em um contexto de profundas transformaes na histria do pas,
4 As Decises eram tomadas sobre representao ou requerimento de partes interessadas e baixadas pelos
ministrios, que tambm desempenhavam a funo de um tribunal superior, cujas sentenas valiam como lei.
Elas eram numeradas e rubricadas pelo regente ou imperador (OLIVEIRA, 2006, p. 25).
7
decidimos optar por uma anlise que nos levasse compreenso dos lugares
ocupados por essas lnguas nesse novo cenrio e os desdobramentos desse
gesto poltico ao longo daquele sculo. Essa lei tornou-se um ponto de partida
acessvel para compreendermos como a lngua inglesa se inscreveu nos novos
moldes da Colnia, que passara repentinamente condio de sede do governo
portugus, dando incio ao processo de institucionalizao das LE, instaurando
uma poltica de ensino de LE no Brasil.
At ento, a legislao sobre o ensino de LE no Brasil em vigor eram os
Estatutos da Universidade de Coimbra (1772) que recomendavam as lnguas
inglesa e francesa para o exame de admisso nos cursos superiores da Europa.
As LE faziam parte do iderio de progresso apregoado na Reforma Pombalina e
que foi aos poucos penetrando o imaginrio do Brasil aps a instalao da Corte
Portuguesa. Vrias polticas foram implementadas com vistas a alcanar esse
ideal de equiparao com as naes cultas da Europa. Entre essas polticas de
produo e circulao do conhecimento no Brasil podemos citar a criao dos
cursos cirrgicos e da Academia Militar. Assim, as cadeiras de ingls e francs se
inserem nessa poltica, uma vez que a circulao do conhecimento se dava por
intermdio dessas lnguas. A lngua inglesa, portanto, foi objeto de uma poltica
lingustica que resultou de vrios processos que envolveram o conjunto de
saberes de que necessitava aquela sociedade em transformao.
Tendo em vista que foi no sculo XIX que se estabeleceram essas
polticas, nossa postura se difere da posio de Chagas (1957) que, ao descrever
a evoluo das lnguas no Brasil, afirma que, em termos didticos, foi smente a
partir de 1931 que se comeou, verdadeiramente, a levar a srio o estudo dstes
idiomas em nosso ensino secundrio oficial (p. 83, grifo nosso). Esse divisor de
8
guas proposto por Chagas (1957) encontra ecos em pesquisas sobre a evoluo
do ensino de LE no Brasil, ganhando estatuto de verdade. Tal periodizao partiu
de um olhar sobre o status das LE no cenrio brasileiro a partir da implementao
do Mtodo Direto no Colgio Pedro II (doravante CPII), em cumprimento
Reforma Francisco de Campos, de 30 de junho de 1931. Esse Mtodo consistia
em ensinar a lngua estrangeira na prpria lngua estrangeira e fazia parte de
uma poltica de ensino com vistas a atualizar o estudo dos idiomas modernos
(CHAGAS, 1957, p. 91, aspas no original). Isso significava tentar romper com uma
tradio de ensino baseada na traduo e verso e exerccios de aplicao de
itens gramaticais. No entanto, segundo o autor, as circunstncias desfavorveis
transformaram o programa em autntica letra morta (p. 92).
Independentemente dos desdobramentos daquela poltica, cremos que
uma proposta de mudana na metodologia de ensino no reflete,
necessariamente, seriedade no ensino. O discurso que afirma que o
desenvolvimento de didtica das lnguas, entre ns, tem que forosamente ser
apreciado ao longo de duas fases claramente definidas (p. 83) apaga dizeres em
torno do lugar das LE no sculo XIX. O que procuramos salientar a ideia de que
a insero das LE na instruo pblica pela Deciso n 29 configura-se
como uma poltica lingustica e como tal, pressupe seriedade (mesmo sem
mudanas metodolgicas). Da, portanto, a nossa posio contrria ao paradigma
de diviso do ensino de LE em antes e depois de 1931.
Ao examinar as leis concernentes ao ensino de LE no sculo XIX,
identificamos PL para o ensino de LE que privilegiavam determinada lngua ao
inseri-la ou exclu-la do currculo secundrio, ora aumentando, ora diminuindo a
carga horria das LE, bem como das lnguas clssicas, ao contrrio do que
9
ocorreu na Deciso n 29, onde as lnguas inglesa e francesa apareciam como
equivalentes.
A lngua inglesa, por exemplo, no foi objeto da PL para o ensino de LE no
Brasil recm-independente, quando da criao do curso jurdico em 1827. Apenas
a lngua francesa fora exigida como requisito para a admisso no curso e,
consequentemente, fazia parte das cadeiras preparatrias que seriam criadas. No
entanto, na lei de 7 de novembro de 1831, a lngua inglesa veio compor as
cadeiras preparatrias para esse curso, mesmo no tendo sido prevista na lei de
1827. Essas aes nos impulsionaram a examinar tambm os dizeres sobre LE
nos debates parlamentares que antecederam aquela lei, no intuito de
compreender as bases dessas PL. Isso se d em virtude do carter dinmico do
corpus, cujo fechamento, segundo Zoppi-Fontana (2005) necessariamente
provisrio e se d juntamente com a finalizao das anlises (p. 96).
Em 1837, as lnguas inglesa e francesa passaram a compor o currculo do
recm-inaugurado CPII5. Este estabelecimento de instruo secundria,
idealizado para ser uma escola modelo para o Brasil, testemunhou diversas
reformas em seus Estatutos. Tais reformas estabeleceram, no domnio da
memria, uma relao tensa entre os lugares atribudos s LE. Essas tenses
despertaram o desejo de compreender o funcionamento discursivo que constri o
lugar a ser ocupado pela lngua inglesa e seu ensino, lugar este sempre
construdo em relao s demais LE. A compreenso desse funcionamento
discursivo nos fornece as bases para investigar as PL que marcaram aquele
perodo.
5 Utilizamos a denominao corrente Colgio Pedro II, embora poca ele fosse chamado Colgio de
Pedro II.
10
Considerando a inquietao relatada e a constatao de que a Deciso n 29
havia instaurado no mbito especfico do Brasil ainda colonial uma PL para o
ensino de LE, decidimos analisar o discurso poltico educacional sobre a lngua
inglesa estabelecendo como corpus a legislao educacional do Brasil e
documentos oficiais, a partir de uma genealogia do lugar ocupado pela lngua
inglesa no quadro das PL para o ensino de LE no Brasil do sculo XIX.
O foco deste estudo, portanto, uma reflexo discursiva sobre a lngua
inglesa e seu ensino, visando compreenso das PL para o ensino de LE no
Brasil do sculo XIX, desde a chegada da Famlia Real Portuguesa no Brasil em
1808 at o fim do Perodo Imperial (1889), com nfase na lngua inglesa.
O corpus estabelecido para a anlise constitudo por peas legislativas
do sculo XIX, a saber:
a) Lei Deciso n 29, de 14 de julho de 1809 criao das primeiras
cadeiras de ingls e francs no Brasil (ANEXO 2);
b) Anais da Cmara dos Deputados Sesso parlamentar de 11 de agosto de
1826 (ANEXO 3, p1);
c) Lei Decreto de 11 de agosto de 1827 criao dos Cursos jurdicos de
So Paulo e Olinda (ANEXO 3, p4);
d) Lei Decreto de 7 de novembro de 1831 criao da cadeira preparatria
de ingls e francs para os Cursos Jurdicos, prevista no Decreto de 11 de agosto
de 1827 (ANEXO 3, p6);
e) Lei Decreto de 2 de dezembro de 1837 Criao do CPII (ANEXO 4, p1);
f) Lei Regulamento n 8, de 31 de janeiro de 1838 contm os Estatutos do
CPII (ANEXO 4, p3);
11
g) Discurso de inaugurao do CPII, proferido pelo Ministro Bernardo
Vasconcellos em 1838 (ANEXO 4, p14);
h) Anais da Cmara dos Deputados Sesso parlamentar de 19 de maio de
1838 (ANEXO 4, p17)
i) Anais do Senado Federal Sesso parlamentar de 08 de outubro de 1839
(ANEXO 4, p19);
j) Anais do Senado Federal Sesso parlamentar de 10 de outubro de 1839
(ANEXO 4, p21);
k) Relatrio do Ministrio do Imprio relativo ao ano de 1839 (ANEXO 5, p1);
l) Relatrio do Ministrio do Imprio relativo ao ano de 1843 (ANEXO 5, p2);
m) Anais da Cmara dos Deputados Sesso parlamentar de 31 de julho de
1846 (ANEXO 5, p4);
n) Relatrio do Ministrio do Imprio relativo ao ano de 1850 (ANEXO 5, p5 );
o) Lei Decreto n 1556, de 17 de fevereiro de 1855 Reforma Couto Ferraz,
Plano de Estudos (ANEXO 5, p8);
p) Lei Decreto n 4.468, de 01 de fevereiro de 1870 Reforma Paulino de
Souza altera os regulamentos relativos ao Imperial Colgio de Pedro II (ANEXO
5, p13).
2. JUSTIFICATIVA
O estudo das PL para o ensino de LE na instruo pblica no Brasil tema
pouco explorado nas pesquisas desenvolvidas na rea de ensino/aprendizagem.
O estudo que ora apresentamos possui tangncias com algumas pesquisas sobre
PL, tais como: perodo enfocado, perspectiva discursiva e o ensino de LE.
12
Todavia, no encontramos estudos que contemplassem PL para o ensino de LE
no Brasil do sculo XIX numa perspectiva discursiva.
Estudos recentes que abordam o tema sobre PL no Brasil foram
organizados por Orlandi no livro Poltica Lingustica no Brasil (2007a), e abordam
a questo da lngua em sua dimenso poltica, cujas reflexes abarcam
diferentes pocas, diferentes lnguas e diferentes reas disciplinares.
Entre as pesquisas desse livro que trataram de PL para o ensino de LE no
sculo XX, podemos citar o trabalho de Payer (2006), que aborda o tema da
imigrao, do sujeito imigrante no Brasil, suas lnguas e a interdio jurdica
delas, da parte do Estado brasileiro, entre os anos 20 e 50 do sculo XX,
decorrente de uma poltica de nacionalizao. Por meio do estudo da oralidade,
buscando marcas da memria da lngua materna dos imigrantes na lngua
portuguesa, a autora identificou traos da imigrao presentes na constituio do
sujeito brasileiro, concluindo que a lngua pode e deve ser um lugar de memria.
Embora a PL adotada por Getlio Vargas tenha interferido no uso das LE e,
consequentemente, no seu ensino, no se trata de uma PL para o ensino de uma
LE, ao contrrio, uma poltica de difuso da lngua portuguesa visando ao
apagamento das lnguas dos imigrantes, por representarem, no jogo poltico-
ideolgico, lnguas de outros pases em territrio brasileiro, vindo, portanto, no
sentido contrrio aos propsitos do Estado Novo.
Embora no contemple a questo da PL, no podemos deixar de citar o
trabalho de Mascia (1999), ainda com foco no sculo XX, cuja tangncia com
nossa pesquisa o discurso poltico educacional sobre lngua estrangeira. A
autora investigou o iderio de progresso no espao discursivo de documentos
curriculares de ensino de ingls no estado de So Paulo na dcada de 80. Os
13
resultados apontam para um discurso calcado na dicotomia presena/ausncia de
progresso, sustentado pela Ideologia Positivista que permeia as relaes de
poder-saber.
No que tange s pesquisas com foco no sculo XIX, sob a perspectiva
histrica, h o trabalho de Oliveira (2006), que investiga o processo de
institucionalizao do ensino de LE no Brasil, observando o caso especfico da
lngua inglesa, visando estabelecer uma periodizao relacionada s principais
finalidades assumidas pelo ensino daquelas Lnguas no sistema de Instruo
Pblica do pas (p.4). No entanto, a pesquisa no aborda a questo das LE como
uma PL, tampouco contempla a dimenso discursiva.
A lngua portuguesa a lngua investigada na maioria das pesquisas que
enfocam as PL no sculo XIX, entre as quais podemos citar o trabalho de Mariani
(2004) que aborda o processo de discusso e de gramatizao da lngua
portuguesa como lngua nacional no sculo XIX, muito embora a autora
concentre suas pesquisas nos processos de colonizao lingustica, no que se
refere lngua portuguesa nos sculos XVI a XVIII. A autora defende que a
institucionalizao oficial do portugus no territrio nacional pelo projeto
colonizador portugus configurou-se como espao de lutas ideolgicas
divergentes quanto homogeneizao lingustica. Esse lugar de resistncia
lingustica deu incio ao processo de historicizao do portugus brasileiro na sua
variante, decorrente das misturas entre as lnguas portuguesa, geral e africanas.
Os trabalhos de Dias (2007) e Pagotto (2007), contidos no livro Poltica
Lingustica no Brasil j mencionado nesta seo, enfocam as PL no sculo XIX.
Dias (2007) analisa as demandas que presidem a constituio do campo de
produo de gramticas no Brasil no sculo XIX. Pagotto (2007) explora a relao
14
entre a implementao de PL e a normatizao da vida social, observando a
adoo de um sistema ortogrfico oficial do portugus nos finais do sculo XIX e
incio do XX. O autor discorre sobre a questo das PL, das formas de
implementao das aes do Estado, procurando destacar as razes que esto
na base de uma PL. Ao analisar a escolha de um sistema ortogrfico do
portugus, Pagotto tenta demonstrar as contradies presentes na adoo de PL.
Apesar da utilizao de peas legislativas para a anlise, e a despeito de se tratar
do sculo XIX, a pesquisa de Pagotto no toma a legislao como espao
discursivo e tambm no analisa PL para o ensino de LE.
A anlise de PL para o ensino de LE no Brasil com foco nos documentos
legislativos do sculo XIX, sob uma perspectiva discursiva, a forma de
contribuio desta pesquisa para os estudos e reflexes em torno do
ensino/aprendizagem de lngua estrangeira. Nossa pesquisa justifica-se pela
carncia de estudos que analisem os processos de constituio de PL
direcionadas para o ensino de LE no Brasil no sculo XIX.
Tendo como tese central o fato de que diversos discursos suscitaram a
criao de PL para o ensino de lnguas estrangeiras no Brasil do sculo XIX, este
trabalho visa a investigar tais discursos a fim de compreender o que est nas
bases dessas PL.
3. OBJETIVOS
- investigar os efeitos de sentido construdos a partir do discurso
poltico-educacional sobre o ensino da lngua inglesa no Brasil do sculo XIX.
- compreender a formulao das polticas lingusticas da poca, em
relao s LE.
15
- compreender o estatuto da lngua inglesa dentro da PL da poca em
relao s outras lnguas.
Para tanto, esta tese analisa os discursos formulados sobre a lngua
inglesa e seu ensino quando de trs momentos especficos: a) a construo de
um pas independente; b) a criao do CPII; c) a promulgao das reformas
educacionais na segunda metade do sculo XIX.
4. PERGUNTAS DE PESQUISA
Com base nos objetivos, formulamos as seguintes perguntas de pesquisa:
- Que polticas lingusticas permearam o ensino de lngua estrangeira no
Brasil no sculo XIX?
- Que discursos suscitaram a criao dessas polticas?
- Qual era o estatuto da lngua inglesa em relao s outras lnguas?
5. FUNDAMENTAO TERICA
A fim de responder s indagaes relatadas na exposio do tema desta
pesquisa, trabalhamos com a tica da Anlise do Discurso (AD), fundada na
Frana por Michel Pcheux nos anos 60, que prope articular trs regies de
conhecimento: a Lingustica, o Materialismo Histrico e a Teoria do Discurso,
regies atravessadas por uma teoria da subjetividade de natureza psicanaltica.
A AD toma como objeto de estudo o discurso, cuja noo distancia-se da
acepo de mensagem, advinda do senso comum, de uma transmisso de
informao entre A e B. Pcheux define discurso como um efeito de sentidos
16
entre locutores, um objeto socio-histrico em que o lingustico est pressuposto
(1969, p.15).
Tambm no se deve tomar o discurso como fala (na dicotomia
lngua/fala), proposta por Sausurre, pois no se ope lngua enquanto um
sistema fechado, e tambm no apenas uma ocorrncia casual da lngua, mas
uma manifestao atestada de uma sobredeterminao de toda fala individual
(MAZIRE, 2005, p. 13).
Um conceito fundamental para a AD a noo de sujeito. Pcheux
elaborou uma teoria no subjetivista do sujeito a partir da ideia de que o sujeito
no o indivduo, um sujeito fsico, emprico e intencional e, portanto, no estaria
na origem do seu dizer. Partindo das contribuies do materialismo histrico,
Pcheux ressignifica a noo de ideologia a partir da considerao da linguagem
e afirma que o sujeito atravessado (em seu discurso) por ideologias, quer sejam
crenas, valores e atitudes. Em outras palavras, o indivduo no escolhe
deliberadamente o que dizer em uma determinada situao, pois o seu dizer
estar sendo afetado por este j l. Pcheux criticou as teorias que se
contentam em reproduzir no nvel terico esta iluso do sujeito, atravs da ideia
de um sujeito enunciador portador de escolha, intenes, decises etc.
(PCHEUX & FUCHS, 1975, p. 175).
Para a AD, o sujeito do discurso histrico, social e descentrado. Os
sujeitos so tomados como sujeitos historicamente determinados e, por isso, os
sentidos so produzidos sob a ao das condies de produo (CP). Para
Pcheux, o discurso se produz materialmente pela lngua e precisa ser entendido
em sua dupla materialidade, lingustica e histrica. As CP, portanto, dizem
17
respeito ao momento histrico, s caractersticas sociais e s formaes
ideolgicas.
No Brasil, as discusses da AD foram estendidas e aprofundadas por
Orlandi, em muitas obras, dentre elas, Orlandi (1999). Segundo a autora, a AD
no trabalha com a lngua enquanto um sistema abstrato, mas com a lngua no
mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a
produo de sentidos enquanto parte de suas vidas (p. 15). A AD apresenta-se,
assim, como um campo disciplinar que trata da linguagem em seu funcionamento.
Para compreender o funcionamento do discurso, necessria a remisso a
um outro conceito basilar para a anlise de discurso, o de formao discursiva,
que aquilo que, numa formao ideolgica dada, isto , a partir de uma posio
dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,
determina o que pode e o que deve ser dito, lugar da constituio do sujeito. A
AD considera o texto na sua opacidade, o que significa que o sentido de uma
palavra no existe em si mesmo, mas determinado pelas posies ideolgicas
colocadas em jogo no processo scio-histrico no qual as palavras so
produzidas (PCHEUX, 1975, p. 160-162).
Assim, o discurso um complexo processo de constituio de sujeitos e
sentidos afetados pela lngua e pela histria:
as palavras, expresses, proposies, etc., mudam de sentido segundo as posies sustentadas por aqueles que as empregam, o quer dizer que elas adquirem seu sentido em referncia a essas posies, isto , em referncia s formaes ideolgicas (PCHEUX, 1975, p. 160).
Isso quer dizer que os sentidos no esto fixados a priori nas palavras, no
so transparentes, evidentes, mas so determinados pelas posies ideolgicas
que esto em jogo no processo scio-histrico no qual as palavras, expresses e
18
proposies so produzidas (PCHEUX, 1975, p. 160). Desse modo, o sentido
sempre determinado ideologicamente e pode ser assumido ou no pelo sujeito, a
depender das posies discursivas que este poder ou no ocupar em funo do
funcionamento da ideologia.
Como dito anteriormente, os dizeres so efeitos de sentido produzidos em
condies determinadas. Essas CP compreendem os sujeitos e a situao, bem
como a memria. Na perspectiva discursiva, a memria tratada como
interdiscurso, ou seja, aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente. um conjunto de formulaes feitas e j esquecidas que
determinam o que dizemos (ORLANDI, 1999, p. 31).
Os sentidos de todo e qualquer discurso so constitudos no interdiscurso.
Este o domnio do dizvel que constitui as formaes discursivas que, por sua
vez, representam no discurso as formaes ideolgicas. o eixo da memria e
da historicidade, dos enunciados j ditos em outros discursos, da materialidade
histrica. Pela ideologia, naturaliza-se o que produzido pela histria. Assim, a
formao discursiva constitui-se na relao com o interdiscurso (a memria do
dizer), ou o todo complexo com dominante das formaes
discursivas (PCHEUX, 1975, p. 162).
A AD teoriza a interpretao, trabalha seus limites e mecanismos como
parte do processo de significao. A noo de interpretao, amplamente
trabalhada por Orlandi (1996), consiste no fato de que no h sentido sem
interpretao. Em decorrncia da ideologia na constituio dos sujeitos, teremos
diferentes gestos de interpretao inscritos em diferentes regies de sentidos.
No h uma verdade oculta atrs do texto, h gestos de interpretao que o
constituem. Sendo assim, a partir do texto, deve-se buscar compreender o
19
processo de produo de sentidos que a ausncia de transparncia da
lngua(gem) possibilita resgatar (ORLANDI, 1999).
Outros conceitos da Anlise do Discurso sero explicados medida que
forem mobilizados na anlise, tendo em vista as caractersticas de movncia,
opacidade e alteridade, assumidas pelos discursos.
6. METODOLOGIA
Analisar os discursos que circulavam no sculo XIX sobre as LE e as
polticas para o seu ensino demandou um longo percurso de leituras, de
construo de arquivos, em virtude do volume de peas legislativas promulgadas
naquele sculo.
Um primeiro recorte foi traado e estabeleceu como textos pertinentes para
anlise documentos oficiais da legislao brasileira que tm como tema o ensino
da lngua inglesa na instruo secundria no sculo XIX. No processo de
construo do arquivo, selecionamos trechos de debates do parlamento brasileiro
e relatrios ministeriais relacionados ao ensino de LE para compor o corpus. As
leis concernentes instruo pblica primria e superior no foram contempladas
no corpus desta pesquisa. Essa seleo se deve ausncia de documentos que
atestem o ensino oficial da lngua inglesa nos dois nveis de ensino. Entretanto,
sero consideradas para anlise as leis referentes instruo superior no que diz
respeito aos requisitos e exames preparatrios para o ingresso naqueles cursos.
O corpus desta pesquisa composto por materiais de arquivo. Pcheux
(1982, p. 57) define arquivo como um "campo de documentos pertinentes e
disponveis sobre uma questo". Segundo Guilhaumou e Maldidier (1994), o
arquivo no um simples documento no qual se encontram referncias; ele
20
permite uma leitura que traz tona dispositivos e configuraes significantes.
Portanto, ele nunca dado a priori, e em uma primeira leitura, seu funcionamento
opaco, o que significa dizer que o corpus construdo pelo gesto do analista de
ler, relacionar, recortar e, novamente, relacionar (p. 164).
preciso ressaltar que a teorizao determina o procedimento
metodolgico, e ambos levam constituio do corpus. A escolha do corpus se
respalda no fato de que a legislao atua ideologicamente no apenas por
pertencer ao plano da superestrutura jurdica, mas porque tem um discurso
explcito diferente do discurso real, ou seja, proclama uma coisa, enquanto deseja
e visa outra (SEVERINO, 1986, p.56).
Os trechos das leis que constituem o corpus desta pesquisa encontram-se
na seo ANEXOS e sero identificadas ao longo do texto, quando necessrio,
por uma sigla referente ao nmero do anexo em questo, seguida da indicao da
pgina do anexo correspondente, por exemplo, A1p3 (para anexo 1, pgina
trs), A2p5 (para anexo 2, pgina 5) e assim por diante.
As sequncias discursivas (SD) sob anlise so identificadas com uma
sigla atribuda sequncia. Para remeter s SD no texto, ser mencionado o
nmero da pgina, por exemplo, SD1, pgina 15, neste captulo.
Os registros dos Anais da Cmara dos Deputados contendo debates sobre
matria diversa encontram-se sob a forma de espessos volumes impressos, cujo
manuseio torna-se complexo, agravado por um ndice temtico de carter
bastante geral, o que demanda buscas incessantes ao seu interior. No entanto, o
acesso leitura desses volumes possvel por meio da Internet, disponveis na
forma de cpias escaneadas, que podem ser consultadas por meio de um
calendrio virtual, contendo um link para os dias em que houve sesso no
21
parlamento. Pode-se seguir um procedimento semelhante a esse para acessar os
ndices das sesses no Senado Federal.
Os endereos eletrnicos para o acesso das leis e debates no Congresso,
bem como para os Relatrios do Ministrio do Imprio esto disponveis na
primeira pgina da seo ANEXOS ao final desta tese.
7. ORGANIZAO DA TESE
A pesquisa est organizada em cinco captulos. O primeiro captulo aborda
as condies de produo do discurso poltico educacional sobre o ensino de LE
no Brasil no sculo XIX incluindo um breve panorama do lugar das LE em
Portugal, Frana e Inglaterra no final do sculo XVIII; o captulo segundo analisa
as PL para o ensino das lnguas inglesa e francesa, no espao discursivo da
legislao brasileira, tomando como base a Deciso n 29, lei de
institucionalizao das LE no Brasil em 1809; o captulo terceiro analisa as PL no
Brasil ento independente, na lei de criao dos cursos jurdicos, utilizando-se
tambm do espao discursivo parlamentar no que tange aos debates que
antecederam essa lei; o quarto captulo analisa as PL para o ensino de LE no
decreto de criao do CPII e seus Estatutos. O quinto captulo trata da lei de
Reforma Educacional do currculo brasileiro de 1854 e seus desdobramentos,
buscando compreender o lugar das LE e sua relao com as outras lnguas,
inclusive com a lngua portuguesa.
Em suma, esta pesquisa visa a compreender, no espao discursivo da
legislao educacional brasileira do chamado sculo ingls, as PL para o ensino
22
de LE na instruo pblica brasileira, por meio de uma anlise do discurso sobre
a lngua inglesa e seu ensino no Brasil.
23
CAPTULO I
Memria de lngua estrangeira no espao
educacional brasileiro
Uma memria no poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam
transcendentais histricos e cujo contedo seria um
sentido homogneo... necessariamente um espao
mvel de divises, de disjunes, de deslocamentos e
de retomadas, de conflitos de regularizao
Michel Pcheux
Se pudssemos lanar um olhar sobre o Brasil do sculo XIX como um flash de
uma cmera fotogrfica, registraramos, provavelmente, um ou mais dos seguintes
cenrios: fragatas pelo Atlntico, a instalao da Corte Real Portuguesa no Rio de
Janeiro, Dom Pedro I s margens do Ipiranga, a Proclamao da Repblica e tantas
outras paisagens consagradas pela Histria e to arraigadas em nossa mente. Ao
fazermos recortes nesses cenrios, encontramos vestgios de um sculo pleno de vrios
acontecimentos no s de cunho poltico, mas tambm econmico, religioso e, sobretudo,
cultural e social.
Entre as mudanas mais significativas no mbito poltico brasileiro, o sculo XIX
testemunhou a mudana da condio de Brasil Colnia para sede do Reino Portugus, o
processo de Independncia, proclamada em 1822, e a passagem da Monarquia
Repblica em 1889.
Em termos de organizao poltica, o Brasil oitocentista presenciou dois regimes de
governo: o Monrquico e o Republicano. Segundo Carvalho (1993), o Brasil viveu o
24
regime monrquico durante todo o perodo colonial (1500 a 1821) e durante os 67 anos
de vida independente (1822-1889). Quanto forma de governar, Portugal reinou absoluto
at a independncia. Na organizao do novo estado, a monarquia era limitada por uma
constituio votada por uma assembleia (regime monrquico constitucional). A
organizao poltica do Brasil oitocentista pode ser conferida no quadro a seguir:
Quadro 2 Organizao poltica do Brasil no Sculo XIX
MONRQUICO REPUBLICANO
Perodo Colonial Perodo Imperial 1 Perodo
Republicano
1500-1759
Perodo Jesutico
1759-1822
Perodo Pombalino
1808-1821
(Perodo Joanino)
1822-1830
Primeiro Reinado
(D. Pedro I)
1831-1840
Perodo Regencial
1841-1889
Segundo Reinado
(D.Pedro II)
1889- [1930]
Primeira Repblica ou Repblica Velha
No que tange ao ensino de LE, temos a criao das primeiras cadeiras2 de ingls e
francs no Brasil, por meio da Deciso n 29, de 14 de julho de 1809, baixada pelo
prncipe regente D. Joo, logo aps a instalao da famlia real portuguesa e sua Corte no
Rio de Janeiro; a instituio das cadeiras de ingls e francs nos estudos preparatrios
para os Cursos Jurdicos, criados em 1827; a insero dessas duas lnguas no Plano de
Estudos do Colgio Pedro II, inaugurado em 1837; a exigncia da lngua inglesa ou
francesa para as Aulas do Comrcio fixada pela lei de 1846; a presena das LE, incluindo
as lnguas alem e italiana, nas leis que reformaram os estatutos do CPII na segunda
1 Alguns historiadores consideram como incio do perodo monrquico a instituio do imprio (1822), porm utilizarei
a periodizao de Carvalho (1993), que considera tambm todo o perodo colonial. 2 As cadeiras eram unidades de ensino, como se fossem cursos especficos, regidas por professores nomeados pelo
Prncipe, geralmente ministrados em casas alugadas e subsidiadas pelo Governo, uma vez que no havia Escolas. As
cadeiras, portanto, no se articulavam entre si.
25
metade do sculo XIX. Cabe lembrar que as lnguas clssicas (latim e grego) mantiveram
seu prestgio no currculo secundrio brasileiro, embora o latim fosse cada vez mais
cedendo espao para a lngua portuguesa.
Da decorre a indagao: e o que esses processos histricos tm a ver com o
discurso sobre lngua estrangeira que analisamos? Para analisarmos o discurso
poltico-educacional sobre o ensino de LE naquele sculo, precisamos compreender como
se constituiu historicamente o dizer dos sujeitos-legisladores na relao com outros
dizeres, considerando que o sujeito se forma na histria por meio do trabalho da
memria. Esta permite que os sentidos j-ditos por algum signifiquem em uma situao
discursiva dada (ORLANDI, 1999). Nos documentos analisados, os sentidos de utilidade
das LE para a instruo pblica se ancoram nesse espao de memria, relacionando-se
com diversas regies do interdiscurso.
A Anlise do Discurso parte do pressuposto de que a lngua no pode ser estudada
desvinculadamente de suas CP, uma vez que os processos que a constituem so
histrico-sociais. As CP compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situao.
Devemos considerar de onde o sujeito do discurso enuncia, qual sua funo no ato da
enunciao, em que condies este discurso foi produzido. De que lugar fala o sujeito
legislador do sculo XIX? Que sentidos o seu discurso produz sobre a lngua inglesa e o
ensino de LE? Estas so questes relevantes, uma vez que determinantes de significado.
Dessa forma, buscamos compreender como se deu esse espao de memria nos
documentos oficiais (leis, debates parlamentares e relatrios ministeriais) sobre ensino de
LE e recorremos, assim, Histria a fim de explicitar os processos ideolgicos que fazem
com que um determinado enunciado aparea em seu lugar e no outro (FOUCAULT,
1969), uma forma de histria que d conta da constituio dos saberes, dos discursos,
dos domnios de objeto, etc. (FOUCAULT, 1979, p.7).
26
A Histria aqui tomada em toda sua dimenso, no considerando-a como apenas
o resultado da combinao e da articulao de processos ou de mecanismos de natureza
econmica, sociolgica, psicolgica que a anlise cientfica traria de cada uma dessas
disciplinas e de sua metodologia (HENRY, 1997, p. 30). Para a AD, a histria no
cronologia, mas produo de sentidos, uma vez que intervm no dizer, movimentando os
sentidos.
Antes de discutirmos as CP do discurso poltico-educacional no sculo XIX,
apresentamos um breve panorama do ensino de lnguas na Europa no final do sculo
XVIII, no intuito de compreender o lugar da lngua inglesa em relao s outras lnguas
antes da oficializao das lnguas inglesa e francesa em solo brasileiro em 1809, por meio
da Deciso n 29, que objeto de anlise no captulo seguinte.
1.1 As lnguas estrangeiras no sculo XVIII
A insero das lnguas inglesa e francesa na instruo pblica brasileira em 1809
nos remete evoluo das lnguas na Europa para que possamos compreender o lugar
dessas lnguas no Brasil quando de sua institucionalizao.
Na Europa, durante a Idade Mdia, o latim possua muito prestgio, sendo
considerado a lngua da igreja, dos negcios, das relaes internacionais, das
publicaes filosficas, literrias e cientficas. No plano metodolgico, o modo de ensino
do latim que prevaleceu durante toda a Idade Mdia. O ensino das lnguas clssicas
seguia um sistema de traduo e anlise gramatical que atravessou os sculos. Os
homens cultos escreviam em latim, a lngua internacional da sabedoria, mas no sculo
XVIII houve um aumento gradual de publicaes em ingls, francs, alemo, italiano e
espanhol.
27
Segundo Howatt (1984), no sculo XVIII, o ensino de LE nas escolas da Europa
era fato raro. Ensinavam-se, de um modo geral, as regras gramaticais do latim para
serem aplicadas na aprendizagem de novas lnguas. Normalmente quem se dedicava a
estudar uma LE eram adultos bem instrudos no latim, cujo domnio permitia que eles
aplicassem as categorias gramaticais na interpretao de textos com o uso de dicionrios.
No Brasil, a instruo pblica era exercida pela Companhia de Jesus, que construiu
um aparato que inclua escolas de ensino de primeiras letras, os cursos de Letras e
Filosofia, considerados secundrios, e o curso de Teologia e Cincias Sagradas, de nvel
superior. Este era o nico curso de nvel superior existente no Brasil at a chegada da
famlia real em 1808. As lnguas estrangeiras no participavam do Ratio Studiorum,
documento que regulamentava as escolas jesutas, apenas o latim e o grego,
consideradas disciplinas dominantes.
Aps 210 anos de reinado, a ordem religiosa jesuta encerrou-se com a expulso
dos jesutas de Portugal e seus reinos (1759), em decorrncia dos interesses portugueses
por uma poltica que visava alar Portugal e seus reinos a uma situao econmica
capaz de competir com as potncias estrangeiras (CARVALHO, 1978, p. 100). Essa luta
do Estado portugus teve como expoente o Marqus de Pombal, primeiro-ministro de
Portugal de 1750 a 1777, cujo objetivo primordial era equilibrar a balana comercial e uma
das providncias seria atenuar os privilgios de que gozavam as ordens religiosas.
Entre as aes nas mais diversas reas, Pombal fixou uma reforma educacional
denominada Reforma Pombalina dos Estudos Menores. Esta desenvolveu-se em duas
fases que se iniciam respectivamente com a promulgao do Alvar Rgio de 28 de junho
de 1759 (que cria as aulas rgias3 de gramtica latina, retrica e grego), e da Lei de 6 de
3 As aulas rgias foram assim denominadas na Reforma Pombalina e consistiam de aulas isoladas que compreendiam o
estudo das humanidades e que deveriam suprir as disciplinas antes oferecidas nos extintos colgios jesutas e
perduraram no Brasil at 1822, quando passaram a ser chamadas de Aulas Pblicas. Somente em 1835 que as Aulas
Pblicas (cadeiras) passaram a ser objeto de um corpo organizado, nos denominados liceus.
28
novembro de 1772 (que cria as aulas rgias de leitura, escrita e clculo, alm das
cadeiras de filosofia). A partir de ento, a Reforma colocou o Estado como orientador das
polticas educacionais, passando a ser tutor da educao. Na parte que toca s lnguas,
destacamos a proibio do uso das lnguas gerais e imposio do idioma portugus em
1767, pelo documento Diretrio dos ndios, que pregava a integrao dos ndios
sociedade portuguesa, uma poltica que visava difuso do portugus como lngua e
cultura da metrpole, um monolinguismo idealizado (MARIANI, 2004, p. 31).
A segunda fase da Reforma Pombalina coincide com a reforma dos estatutos da
Universidade de Coimbra e onde as LE entram como recomendao para os cursos de
Medicina e Matemtica sem a obrigao de exames admissionais, como podemos
observar nos trechos da lei que versam sobre os conhecimentos preparatrios (A1p1):
tambem he para desejar, que os Estudantes Medicos se instruam nas Linguas Vivas
4 da Europa; principalmente na Ingleza, e Franceza, nas quaes estam
escritas, e se escrevem cada dia muitas Obras importantes de Medicina (PORTUGAL, 1772a, 1772b, p. 9).
O texto do curso matemtico era bem semelhante no que tange s lnguas e s
obras escritas nelas (A1p2). Os cursos jurdico e teolgico no recomendavam as lnguas
inglesa e francesa para a matrcula, apenas o grego e o latim, que compunham a lista dos
conhecimentos desejados para todos os cursos (A1p3). Vale salientar que as mudanas
ocorridas em Portugal no se replicaram no Brasil. Enquanto na Metrpole as lnguas
estrangeiras e a cincias vieram compor o plano de estudos secundrios, no Brasil elas
ficaram margem em decorrncia da ao do modelo de ensino jesutico que manteve
sua ao pedaggica (SECO, 2006). Apenas no incio do sculo XIX que as LE
despontaram no cenrio educacional brasileiro.
4
O termo lnguas vivas era a nomenclatura utilizada na poca para designar lngua estrangeira, em oposio a lnguas clssicas (Latim e Grego).
29
Em suma, as reformas pombalinas filiavam-se ao iderio das Luzes, como
expresso do Iluminismo em Portugal. Movimento iniciado na Frana do sculo XVII, o
Iluminismo ocorreu na Europa na primeira metade do sculo XVIII, no governo de Lus
XIV, denominado o Rei Sol. O sculo XVIII ficou conhecido como o Sculo das Luzes.
Para Fausto (1994), o Iluminismo pode ter sido o estgio mais crucial do surgimento de
um conceito dominante na moderna cultura europeia: a ideia de progresso (p. 492).
Veremos que as ideias do Iluminismo so frequentemente abordadas nos textos dos
debates parlamentares que analisamos como um ideal a ser alcanado. Essa busca pelo
progresso com vistas a engrandecer o Brasil e ergu-lo ao nvel das naes cultas,
principalmente a Frana, configurou-se como um alvo forte que norteou os pensamentos
dos dirigentes na elaborao de polticas para o ensino de lnguas.
O Iluminismo pregava a f inabalvel na cincia, na razo humana e no prprio
homem. Segundo os iluministas, o homem tornava-se vtima de si mesmo ao permitir que
as instituies orientassem sua vida, particularmente as autoridades polticas e
eclesisticas. Da o protesto s formas remanescentes da poca feudal na vida
intelectual, nos hbitos no-cientficos do pensamento, e contra as teorias que insistem na
impotncia humana (GILES, 1987, p. 171).
Apesar de se desenvolver com mais intensidade na Frana, onde influenciou a
Revoluo Francesa atravs de seu lema liberdade, igualdade e fraternidade, o
movimento contou com pensadores na Alemanha, Esccia, Estados Unidos, Inglaterra e
no espao luso-brasileiro. O Iluminismo influenciou uma srie de movimentos na Europa e
fora dela que abalaram definitivamente o Antigo Regime ao longo dos sculos XVIII e XIX
como, por exemplo, a Independncia dos EUA e a Revoluo Francesa.
A seguir, discutiremos as CP do discurso poltico-educacional sobre LE no sculo
XIX, com foco no ensino da lngua inglesa. A discusso dessas CP visam a subsidiar a
30
anlise do discurso poltico-educacional sobre a lngua inglesa e seu ensino, com o
objetivo de compreender as PL para o ensino de LE no Brasil naquele sculo.
1.2 Reorganizando o Estado Portugus
Em face dos conflitos com a Frana (guerras napolenicas), em 1807, D. Joo
recorreu quela com quem travava estreitas relaes comerciais. Portugal mantinha
relaes de dependncia econmica com a Inglaterra desde o Tratado de Methuen, em
1703, no entanto, Freyre (1948) menciona a poca de Crommwell - 1654, quando os
ingleses possuam diversas regalias como a liberdade de comrcio sem salvo-conduto
nem Licena em Portugal e em todos os seus domnios, entre outras (p. 18).
D. Joo transfere a Famlia Real Portuguesa para o Brasil, sob a proteo naval da
marinha inglesa, em troca da abertura dos portos brasileiros aos navios ingleses. Em
virtude disso, alterou-se a condio colonial dando incio reorganizao do Estado por
meio da criao dos Ministrios do Reino e rgos da administrao e da justia. Entre as
mudanas educacionais, Romanelli (1978) cita como principal a criao dos cursos
superiores (no-teolgicos): a Academia Real da Marinha e Militar, os cursos mdico-
cirrgicos da Bahia e Rio de Janeiro.
O considerado volume de peas legislativas publicadas nos primeiros anos aps a
chegada de D. Joo aponta para um contexto de organizao de um novo Estado. So
inmeras Cartas Rgias, Alvars e Decretos promulgados em to curto espao de tempo,
na tentativa de fundar as principais instituies de que precisava para a manuteno da
monarquia portuguesa. Entre estas podemos citar o Supremo Conselho Militar e de
Justia, Casa da Suplicao do Brasil, Corpo da Brigada Real da Marinha, Real Fbrica
de Plvoras, Arquivo Militar, Errio Rgio e o Banco do Brasil (OLIVEIRA, 2006).
31
A transferncia da famlia real para o Brasil em 1808, sob a gide da esquadra
britnica, significou para o Brasil, sob o ponto de vista poltico e principalmente
econmico, um compromisso no qual D. Joo garantiria realizar a abertura dos portos
brasileiros para naes estrangeiras. Alm da escolta, os ingleses tambm se
comprometeram a dispor de suas tropas para combater os exrcitos franceses que
invadiriam Portugal. As demais naes do mundo tambm foram contempladas com a
liberao dos portos em 1810, por meio do Treaty of Cooperation and Friendship
(Tratado de Cooperao e Amizade). No entanto, a vantagem obtida pelos ingleses nesse
acordo era latente a considerar as alquotas alfandegrias. Logo que os portos brasileiros
foram abertos, a Inglaterra iniciou sua dominao no mercado consumidor brasileiro,
consolidando a hegemonia britnica sobre o comrcio brasileiro e a influncia poltica nas
decises da Corte. A dependncia econmica permaneceu e veio a manifestar-se no
processo de independncia do Brasil, quando Portugal reconheceu a nova nao, anos
aps a declarao do fico por D. Pedro I e de inmeros conflitos internos e externos,
mas no por menos do que dois milhes de libras, financiados pela Inglaterra (FAUSTO,
1994).
Atrelado ao aumento da movimentao do comrcio, veio o estabelecimento em
1808 de uma cadeira de cincia econmica, organizada por Jos da Silva Lisboa, futuro
Visconde de Cairu. Segundo Oliveira (2006), o ensino comercial estava sob a
responsabilidade da Real Junta do Comrcio, Agricultura, Fbricas e Navegao do
Estado do Brasil e Domnios Ultramarinos, que criou as Aulas de Comrcio em 1809.
Embora houvesse bastante literatura sobre o tema em ingls e francs, essas lnguas no
eram exigidas para a matrcula no referido curso. Apenas em 1846 elas passaram a ser
requisitos para a admisso. O lugar dessas lnguas no discurso poltico-educacional
analisado no captulo 5 desta tese.
32
Fausto (1994) relata que uma vida cultural comeou a se esboar naquele incio
daquele sculo e uma relativa circulao de ideias, por meio do acesso aos livros
(circulao antes controlada por Pombal), do primeiro jornal editado na Colnia (a Gazeta
do Rio de Janeiro), dos teatros, bibliotecas, academias literrias e cientficas, para
atender aos requisitos da Corte e de uma populao urbana em rpida expanso (p.
125). A importao de livros ingleses, somada forte presena deste povo no Brasil,
apontada por Freyre (1948) como uma das consequncias da conquista da lngua inglesa
do prprio reduto brasileiro da [lngua] latina (p. 74). Discutiremos a seguir alguns
aspectos da influncia britnica na vida cultural do Brasil.
1.2.1 A presena britnica
Gilberto Freyre, em sua obra Ingleses no Brasil, define as relaes entre a Gr-
Bretanha e o Brasil ainda semi-colonial como "mais ou menos imperiais" (1948). A vinda
da Corte Real Portuguesa para o Brasil trouxe consigo a influncia britnica. Pantaleo
(1997) salienta que o sculo XIX foi, sobretudo na sua primeira metade, o sculo ingls
por excelncia:
Da velha metrpole transferia-se para o Brasil a presena inglesa. As necessidades do governo portugus, primeiro, e depois os problemas iniciais do Brasil independente, favoreceram a posio dos ingleses, que souberam aproveitar as circunstncias para defender seus interesses, sobretudo comerciais (p.64).
Segundo Freyre (1948), a preponderncia econmica dos britnicos no poderia
deixar de transbordar, como transbordou, noutras esferas de influncia: um conjunto de
influncias culturais de toda espcie, tanto imaterial como material. Os ingleses influram
em todos os aspectos da vida brasileira: no mercado, nos investimentos em ttulos de
emprstimo do governo, em companhias mineiras, em estradas de ferro, nos costumes de
33
moradia, na moda, nos mveis e objetos das casas. Surgiram as carruagens, os
machados e serras inglesas. Alm disso, houve a influncia intelectual, atravs dos seus
livros em prosa ou verso, dos livros tcnicos e cientficos, traduzidos no desejo de
aproximao dos grandes mestres da Literatura Inglesa como Byron, Scott, Swift,
Dickens, Doyle, entre outros.
De acordo com Pallares-Burke (FREYRE, 1948, orelha do livro), a influncia
britnica sobre o Brasil do sculo XIX foi to marcante que se dizia que estava
londonizando nossa terra. Tais palavras encontram respaldo em Freyre (1948):
A presena da cultura britnica no desenvolvimento do Brasil, no espao, na paisagem, no conjunto da civilizao do Brasil, das que no podem ou no devem? ser ignoradas pelo brasileiro interessado na compreenso e na interpretao do Brasil (p. 46)
Apesar da forte presena britnica, o Brasil foi bastante influenciado pela cultura
francesa. No prefcio primeira edio de Ingleses no Brasil (FREYRE, 1948), Tarqunio
de Sousa defende que a Frana fora sempre a rival da Inglaterra no Brasil, a disputar-lhe
a clientela comercial e o domnio dos espritos. O historiador defende que, a despeito do
poderio econmico britnico, a Frana chegou a suplantar a Inglaterra, no apenas na
moda feminina e nos perfumes, mas influiu por suas ideias, suas doutrinas polticas, seus
poetas, seus livros (p.24). Essa influncia tornou-se mais intensa aps 1816,
consolidando-se com a vinda da Misso Cultural Francesa, que culminou na criao da
Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, o Museu Real, a
Biblioteca Pblica e o Jardim Botnico.
No que tange instruo pblica, a influncia da Frana nas leis brasileiras foi
bastante acentuada, contudo, as decises em torno de que modelo de educao seguir
apontam para as naes cultas, a includas a Inglaterra, a Alemanha, a Holanda e a
Blgica.
34
1.3 O Brasil semi-colonial
O processo de construo da instruo pblica no Brasil no sculo XIX foi lento e
desenvolvido de forma desordenada. Ao nos debruarmos sobre a legislao do incio do
sculo, nos deparamos com a ausncia de um sistema pblico educacional, ou seja, um
Plano de Estudos para a instruo secundria.
No Brasil oitocentista, o Estado era tutor da instruo pblica que desde as
chamadas reformas pombalinas dos estudos menores, em 1759, passou a ter a
responsabilidade sobre ela. Vale lembrar que a instruo pblica destinava-se aos
cidados, excluindo, portanto, os escravos. Alm disso, a instruo para meninas
restringia-se ao ensino elementar ou (de primeiras letras), que previa somente noes de
aritmtica e prendas que servem economia domstica e das boas maneiras, e em
alguns casos, a lngua francesa (HAIDAR, 1972, p. 231).
A instruo pblica antes da chegada da Corte Real Portuguesa era constituda de
algumas poucas escolas e aulas rgias, destinadas preparao de uma elite da
populao colonial para estudos posteriores na Europa.
Cabe-nos ressaltar a preeminncia da instruo superior sobre a primria e
secundria. Segundo Haidar (1972), j havia instruo superior no Brasil antes mesmo
que nele fosse organizada a instruo secundria. A instruo primria continuou sendo
prerrogativa da famlia, segundo a tradio das camadas privilegiadas. A instruo pblica
era, portanto, organizada de cima para baixo, revelando a continuidade de uma tradio
aristocrtica, o que caracterizou tambm boa parte do Perodo Imperial. O alto grau de
importncia dado instruo superior se reflete nos extensos relatrios do Ministrio do
Imprio (1832-1889), principalmente no que se refere aos cursos e exames preparatrios
para as Faculdades de Direito e Medicina.
35
1.3.1 A regulamentao das lnguas inglesa e francesa
Foi no incio do sculo XIX que as LE foram institucionalizadas no Brasil, selando o
sentido de utilidade das LE para a instruo pblica secundria brasileira. Por meio da
assinatura da Deciso n 29 Resoluo de Consulta da Mesa do Desembargo do Pao5
de 14 de julho de 1809 (A2p1), pelo Prncipe Regente de Portugal D. Joo, recm-
chegado ao Brasil, criaram-se as cadeiras de ingls e francs no Rio de Janeiro:
E sendo outrossim to geral, e notoriamente conhecida a necessidade, e utilidade das lnguas franceza e ingleza, como aquellas que entre as linguas vivas teem o mais distinto logar, de muito grande utilidade ao Estado, para augmento, e prosperidade da instruco pblica, que se cre nesta capital uma cadeira de lingua franceza, e outra de ingleza (CLIB [1809] 1891)6
Como exposto na Introduo desta pesquisa, a promulgao dessa lei um divisor
de guas para a histria do ensino de LE no Brasil e, acima de tudo, produz um discurso
que funda um lugar para as LE. Essa lei analisada no captulo 2 desta pesquisa, pois
instaura uma PL para o ensino de LE no Brasil. Ainda em 1809 foram feitas, e
assinadas por D. Joo, as Cartas de nomeao dos professores das Lnguas Francesa e
Inglesa. A primeira nomeava o padre Boiret Professor da Lngua Francesa com o
ordenado de 400 mil ris por ano. No dizer dessa lei, o francs ganhava estatuto de
lngua universal: a lngua francesa sendo a mais difundida e, por assim dizer, universal, a
criao de uma cadeira desta lngua muito necessria para o desenvolvimento e
prosperidade da instruo pblica (apud ALMEIDA, 1889, p. 42).
5 As Decises eram tomadas sobre representao ou requerimento de partes interessadas e baixadas pelos ministrios,
que tambm desempenhavam a funo de um tribunal superior cujas sentenas valiam como lei. Eram numeradas e
rubricadas pelo regente ou imperador (OLIVEIRA, 2006). 6 O ano entre colchetes o da promulgao da lei, seguido do ano da obra citada.
36
nomeao do professor de francs seguiu-se a do professor da cadeira de ingls,
o padre Jean Joyce, com o salrio de 400 mil ris por ano, na qual observamos lugares
atribudos lngua inglesa, como lngua rica e difundida, porm sem o carter universal:
era necessrio criar nesta capital uma cadeira de lngua inglsa, porque, pela sua difuso e riquesa, e o nmero de assuntos escritos nesta lngua, a mesma convinha ao incremento e prosperidade da instruo pblica (apud ALMEIDA, 1889, p. 42).
No encontramos na legislao do incio do sculo registros de ensino da lngua
inglesa na instruo pblica primria, tampouco nas dcadas subsequentes. Esse ramo
da instruo pblica era confiado aos preceptores (instruo no prprio lar) ou a
professores particulares. Freyre (1948) fornece inmeros relatos de prtica de ensino de
ingls no Brasil por professores particulares. Vejamos, por exemplo, um anncio no jornal
brasileiro de maior circulao da poca, a Gazeta do Rio de Janeiro7, oferecendo servios
de Professora Ingleza:
Na Rua dos Ourives n. 27 mora huma Ingleza com casa de educao para meninas que queiro aprender a ler, escrever, contar e falar Inglez e Portuguez, cozer, bordar, etc. (GAZETA DO RIO DE JANEIRO, de 08.02.1809, apud FREYRE, 1948, p. 266)
Freyre (1948) salienta a ousadia das professoras inglesas ao se oferecerem para
ensinar ingls s meninas do Rio de Janeiro, citando um anncio veiculado nesse
peridico, que divulgava um verdadeiro colgio:
D.Catharina Jacob toma a liberdade de fazer sciente ao Publico, que ella tem estabelecido huma Academia para instruco de Meninas na rua da Lapa, defronte da Ex.ma Duqueza, em que ensinar a lr, escrever, e fallar as lnguas Portugueza, e Ingleza grammaticalmente; toda a qualidade de costura e bordar,
7 A Gazeta do Rio de Janeiro pode ser acessada pelo endereo eletrnico:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/gazeta_rj/gazeta.htm, e faz parte do projeto da Fundao Biblioteca Nacional denominado Rede da Memria Virtual Brasileira.
37
e o manejo da Caza [grifos no original] (GAZETA DO RIO DE JANEIRO, apud FREYRE, 1948, p.266-267)
Podemos observar que a lngua inglesa, ao lado da portuguesa, ocupava um lugar
na formao integral das meninas, distanciando-se do carter meramente instrumental
atribudo ao ensino preparatrio para os cursos superiores, reservado aos meninos
(VIDOTTI, 2010b).
O ensino da lngua francesa tambm era ofertado publicamente naquele incio de
sculo, conforme relata Freyre: os jornais se enchem de anncios de professores de
francs e de ingls (1948, p. 266), como em um anncio sobre ensino de francs no
Seminrio de S. Jos:
A 2 de Outubro se abrio no Seminario de S. Jos desta Corte a Aula Regia da Lingua Franceza: os que quiserem aprende-la, tornando-se assim mais teis Patria, procurem ao digno Professor, o P. Renato Boiret, morador da rua do Cano, n. 13 (GAZETADORIODEJANEIRO, 1809, p.4, grifo no original).
As ofertas de aulas de lngua inglesa e francesa eram, assim, divulgadas por
diversas formas de apelo comercial como nesse anncio veiculado no mesmo peridico
citado, cujo autor se mantm no anonimato, apenas se auto-denominando natural de
Londres:
Quem quizer aprender a Lingua Ingleza grammaticalmente com perfeio em pouco tempo, ha de fallar com Francisco Ignacio da Silva na casa de Caf na rua Direita, o qual h de entregar hum bilhete com o nome do Mestre, natural de Londres (GAZETA DO RIO DE JANEIRO, apud FREYRE, 1948, p. 270, grifo no original)
Observamos uma caracterstica comum aos professores: a do falante nativo. A
primazia da nacionalidade do professor sobre sua identidade no anncio acima parece
al-lo a um ideal de lngua a ser alcanado, procurando legitimar o lugar do professor
nativo como aquele que domina a lngua que ensina, conferindo-lhe um lugar de verdade.
Notamos tambm a partir dessa perspectiva, que o falar corretamente funciona como uma
38
espcie de chamariz na tarefa de fisgar o interessado em aprender a lngua
grammaticalmente.
1.4 As LE no Brasil independente
Aps a Independncia do Brasil, em 1822, o sistema administrativo passou por um
processo transitrio. Em 1823, foi criada a Assembleia Geral, formada pela Cmara dos
Deputados e Senado, porm dissolvida pelo imperador. A partir da Constituio do Brasil
outorgada em 25 de maro de 1824, organizou-se a administrao do Imprio sob o
governo monrquico, representativo e constitucional, dividido em provncias, governadas
por um presidente nomeado pelo imperador. Aps a promulgao da Carta Magna, deu-
se incio aos trabalhos no parlamento brasileiro (1826). Entre os assuntos em debate, a
criao de um curso jurdico no Brasil tomou conta dos primeiros meses de discusses
sobre os novos rumos da nova Nao (A3p1). Esse debate ocupa um lugar de destaque
na anlise que empreendemos no captulo 3 desta tese. De igual modo, o debate de 1826
traz o tema da formulao da questo da lngua nacional do Brasil; as discusses no
Senado e na Cmara acerca do CPII e Aulas do Comrcio, respectivamente. Por ltimo, o
debate de 1846 versa sobre a criao de um liceu nacional, cuja polmica girou em torno
da primazia das LE sobre a lngua nacional.
No Primeiro Reinado (1822-1831), o Imperador D. Pedro I criou os cursos primrios
em todo o pas, por meio da Lei de 15 de outubro de 1827, adotando um plano para a
instruo primria denominado Sistema de Ensino Mtuo (ou Mtodo Lancasteriano),
bastante em voga na Inglaterra e j propagado na Frana, Sua, Rssia e Estados
Unidos. Esse mtodo apoiava-se no trabalho dos monitores, escolhidos entre os alunos
mais habilitados, que eram instrudos parte pelo mestre. Na prtica, os monitores eram
39
responsveis por uma decria, ou um grupo de 10 alunos. Vale salientar que as Escolas
Primrias nada mais eram do que aulas funcionando em casas alugadas pelo Estado.
Ainda no ano de 1827, foram institudos por D. Pedro I os cursos jurdicos de So
Paulo e Olinda (A3p4), mais tarde denominados Faculdade de Direito, ao lado dos j
existentes cursos mdico-cirrgicos transformados em Faculdades de Medicina.
Em 1831, D. Pedro I abdicou do trono em favor de seu filho, Pedro II, iniciando o
Perodo Regencial (1831-1840). Nesse mesmo ano, foram baixados os Estatutos dos
Cursos de Cincias Jurdicas e Sociais do Imprio (A3p6), que previam a incorporao s
Academias de seis cadeiras destinadas a ministrar os conhecimentos exigidos para os
exames de preparatrios, entre elas a de ingls e francs. Junto s Faculdades de Direito,
instalaram-se cursos destinados a ministrar os conhecimentos preparatrios para os
Estudos Superiores. Apenas em 1853, a lngua inglesa passou a ser exigida para
admisso nos Cursos Jurdicos e de Medicina8.
O Perodo Regencial (1831-1840) testemunhou o Ato Adicional Constituio do
Imprio. Essa lei, aprovada em 1834, estabelecia como capital do pas o Rio de Janeiro,
como Municpio Neutro ou Municpio da Corte, desvinculado da provncia do Rio de
Janeiro. Essa Reforma Constitucional atribuiu s assembleias provinciais o direito de
legislar sobre a instruo pblica. Sistemas paralelos de ensino em cada provncia foram
estabelecidos, visando sanar questes anteriormente centralizadas pela Coroa. O poder
central ficou encarregado de promover e regulamentar a instruo apenas no Municpio
da Corte (atual cidade do Rio de Janeiro), e a instruo superior em todo o Imprio.
Segundo Almeida (1889), o direito das provncias de legislar sobre a Instruo Pblica
resultou em uma multido de leis incoerentes (p.64). Criaram-se escolas sem se cogitar
da importncia de formar professores.
8 Decreto n. 1.134 de 30 de maro de 1853.
40
Haidar (1972) revela que, antes do Ato Adicional de 1834, a instruo pblica
secundria encontrava-se reduzida a um punhado de aulas espalhadas pelos quatro
cantos do imprio (p. 20). A falta de estruturao e fiscalizao das aulas avulsas levou o
Ministro Chichorro da Gama, em 1834, a propor a criao de um estabelecimento de
ensino onde se pudessem reunir as aulas num s edifcio, para que fossem mais bem
dirigidas.
1.5 As LE no Colgio Pedro II
Imbudos pelo desejo de elevao do Brasil ao nvel das naes cultas da Europa,
os regressistas criaram o Colgio Pedro II (CPII), pelo Decreto de 2 de dezembro de
1837, estabelecimento que