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    Piaget e Freud:

    facetas psicanalticas da cognio

    SERGIO SKLAR*

    ESTRELLA BOHADANA**

    Resumo: Apesar de discutida e explorada ao longo do ltimo sculo, a obra de Piagetcontinua a ser fonte de inspirao para novos debates tericos. Um deles se refere s

    possveis articulaes entre a teoria piagetiana e a psicanlise. Partindo da reflexoelaborada por Piaget em que vislumbrada uma nova forma de ver o sentido decognio, este artigo tem como objetivo rever as formulaes de Piaget sobre asconvergncias entre afeto e cognio. A aproximao entre Piaget e Freud estabelecida, j que na teoria freudiana existe uma dimenso que est alm daconscincia. Enquanto para Freud o inconsciente estruturado segundo mudanasafetivas, entre as quais o recalque, para Piaget h uma cognio inconsciente, que noprovm unicamente das transformaes afetivas.

    Palavras-chave: Piaget; Freud; inconsciente afetivo; inconsciente cognitivo; recalquecognitivo.

    Piaget and Freud: psychoanalytical facets of cognition

    Abstract: Although discussed and explored throughout the last century, the work ofPiaget remains a source of inspiration for new theoretical debates. One of themconcerns the possible connections between Piagets theory and psychoanalysis. Basedon the reflection developed by Piaget, in which a new way of understanding the senseof cognition is conceived, this article has the purpose to review the formulations ofPiaget on the convergences between affect and cognition. The approach between Piagetand Freud is established, as in Freudian theory there is a dimension which is beyondconsciousness. While for Freud the unconscious is structured according to affectivechanges, including repression, for Piaget there is an unconscious cognition, which doesnot arise solely from affective transformations.

    Key words: Piaget; Freud; affective unconscious; cognitive unconscious; cognitiverepression.

    * SERGIO SKLAR Doutor em Filosofia (USP), Professor-Adjunto do Departamento deEstudos da Subjetividade Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Faculdade de Educao-DESF-UERJ), Membro da Sociedade Internacional de Histria da Psiquiatria e da Psicanlise (Paris).

    ** ESTRELLA BOHADANA Doutora em Histria dos Sistemas de Pensamento (Escola deComunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro);Professora-Adjunta na Faculdade de Educao(Departamento de Estudos da Subjetividade e Formao Humana), da Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro (UERJ-EDU-DESF) e do Mestrado em Educao e Cultura Contempornea da UniversidadeEstcio de S.

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    Introduo

    Embora explorada e discutida emprofundidade ao longo do sculo XX, ateoria piagetiana ainda fonte deenigmas, tornando-se possvel nela

    encontrar formulaes que permanecemcomo pedras brutas espera delapidao. Uma delas se refere aproximao possvel de ser efetivadaentre Piaget e Freud. Compondo osegundo captulo do livro Problemas de

    psicologia gentica, intituladoInconsciente afetivo e inconscientecognitivo, Piaget oferece umainstigante reflexo sobre as possveisarticulaes de sua teoria com a

    psicanlise, ao analisar pontes tericasentre o afeto e a cognio. O objetivodeste artigo apresentar os passos

    piagetianos para a elucidao dessatrama conceitual.

    O artigo est estruturado em quatrosees. A primeira apresenta umadiscusso geral sobre cognio, na qual demarcado o sentido da cognio no

    pensamento piagetiano. Ainda nessa

    seo, discutimos o modo pelo qual a

    mente funciona, a interao entre sujeitoe objeto na constituio doconhecimento e a gnese mentalinconsciente da cognio. A segundaseo discute o conceito de estrutura

    cognitiva e indica a existncia demecanismos que fazem a mentefuncionar inconscientemente,assinalando, assim, a existncia de uminconsciente cognitivo. A terceira seomostra como Piaget se apropria darelao entre inconsciente e recalque nateoria freudiana para formular a noode recalque cognitivo: um ncleoinconsciente da cognio. Em torno daideia de recalque cognitivo, revimos a

    formulao piagetiana de que a crianano pensa antes de agir, estando sujeitaao que Piaget denomina de esquema deuma ao. Finalmente, a quarta seoapresenta a relao entre memria, afetoe cognio, ressaltando de que maneirana reconstruo da memria intervm,necessariamente, processos afetivos detoda natureza. Fecha a seo a relaoestabelecida por Piaget entretransformaes afetivas e mudanas

    cognitivas.

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    Sobre o conceito de cognio

    Em sentido geral, cognio entendida como o ato ou processo deconhecer, que inclui estados mentais e

    processos como o pensamento, aateno, o raciocnio, a memria, o

    juzo, a imaginao, o discurso, apercepo visual e auditiva, aaprendizagem, a conscincia e asemoes. Assim, a cognio cognitio,em latim no se reduz a uma simplesaquisio do conhecimento, ela o

    processo pelo qual o ser humano,entendido na sua individualidade,

    interage psicologicamente com os seussemelhantes e com o meio em que vive,sem que haja qualquer perda da suaidentidade.

    Embora abrangente, essa definioresultaria em algo impreciso aos olhosde Piaget (1975a), uma vez que, paraele, a interao, seja com ossemelhantes, seja com o meio, no podeser condio nica para explicar o que amente conhece. Para Piaget (1975a),alm de conhecer por meio de ideias, oque incluiria a relao do homem com oseu semelhante, a mente se sujeita a

    processos especficos que formamestruturas mentais, isto , formasmentais que se inter-relacionam no

    psiquismo como partes dentro de umatotalidade organizada. Essas estruturasno so predeterminadas, nem provmda experincia que o homem tem com

    os objetos do mundo que o rodeia.O processo de conhecimento, segundoPiaget (1975a), envolveria novas econtnuas elaboraes, por meio deconstrues internas, como ele afirmaem suaEpistemologia gentica:

    (...) o conhecimento no poderia serconcebido como algo

    predeterminado nas estruturasinternas do indivduo, pois que

    estas resultam de uma construoefetiva e contnua, nem nos

    caracteres preexistentes do objeto,pois que estes s so conhecidosgraas mediao necessria dessasestruturas; e estas estruturas osenriquecem e enquadram (pelomenos, situando-os no conjunto dos

    possveis). Em outras palavras, todoconhecimento comporta um aspectode elaborao nova, e o grande

    problema da epistemologia o deconciliar esta criao de novidadecom o duplo fato de que, no terrenoformal, elas se acompanham denecessidades to logo elaboradas ede que, no plano do real, elas

    permitem (e so mesmo as nicas a

    permitir) a conquista daobjetividade (p. 129).

    Quando evoca o conceito deepistemologia, Piaget no o fazressaltando seu significado para afilosofia, como teoria do conhecimento.Para o investigador, o que ficaassinalado no uma indagaoespeculativa sobre o conhecer resumida na pergunta o que o

    conhecimento? , mas o fato de que oconhecimento passa por um permanenteprocesso de elaborao, ou gnesemental, mantendo-se aberto ao que criado e ao novo em termos mentais.Assim, Piaget (apud FURTH, 1974)estabelece uma distino entre o sentidoque ele confere epistemologia e aqueleelaborado pela filosofia, quando diz:

    A epistemologia filosfica faz

    indagaes acerca do conhecimentoem geral. No entanto, tendo emvista que todo conhecimento estem constante evoluo, no se

    podendo dizer que est fechado emnenhum ramo, pareceu-me maiscientfico reformular o problema daseguinte forma: Como se produz oconhecimento? Esta perguntaimplica uma tentativa de explicar oconhecimento por intermdio desua formao e de seu

    desenvolvimento (p. 287-288).

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    Portanto, conforme Piaget, o que estem jogo na produo do conhecimento o modo pelo qual a mente funciona. Elealerta, no entanto, para o fato de que

    nesse processo no devemos considerara existncia de um sujeito que se baste asi mesmo um sujeito consciente ,nem de um objeto j constitudo. Oconhecimento resultaria da interaoentre o sujeito e o objeto, como afirma oinvestigador (1975a, p. 132):

    (...) No h, no incio, nem sujeito,no sentido epistemolgico dotermo, nem objetos concebidoscomo tais, nem, sobretudo,

    instrumentos invariantes de troca; oproblema [...] do conhecimento [...]depende [da] elaborao solidriado sujeito e dos objetos.

    O processo de gnese mental explicaria,no caso, o sentido dessa elaboraosolidria; , justamente, em torno deuma anlise psicogentica que Piagetno reduz o conhecimento a processos

    psicolgicos condicionados unicamente

    dimenso da conscincia. Oconhecimento estaria relacionado, dealguma forma, a uma dimensocognitiva no-consciente ouinconsciente.

    Embora a ideia de um inconscientecognitivo no se imponha ao longo desua obra, em uma conferncia proferidaem sesso plenria da SociedadeAmericana de Psicanlise, Piaget(1975b) apresenta os problemas

    referentes ao inconsciente e conscincia tal como so encontradosno estudo da inteligncia, darepresentao e das funes cognitivas,uma vez que acredita na existncia deum inconsciente cognitivo. Elerelaciona essa dimenso inconsciente dacognio com o funcionamento doinconsciente afetivo freudiano. Sem ainteno de criticar ou renovar a teoriafreudiana, Piaget visualiza o alcanceque pode ter a fuso da psicologia

    cognitiva com os conceitospsicanalticos.

    Dessa forma, o investigador define oinconsciente cognitivo como umconjunto de estruturas e defuncionamentos ignorados peloindivduo, exceto em seus resultados(PIAGET, 1975b, p. 355). Ao defini-lo,reala uma ideia de Binet1, segundo aqual o pensamento uma atividadeinconsciente do esprito (ibidem). Sobtal inspirao, conclui que, se o eu estconsciente do contedo do seu

    pensamento, ele no sabe nada das

    razes estruturais e funcionais que oconstrangeram a pensar de tal forma,dito de outra [maneira], do mecanismontimo que dirige o pensamento(ibidem).

    Estrutura cognitiva: o inconscientecognitivo

    Piaget considera que o comportamentoabrange vrios nveis de estruturao,

    chegando mesmo a identificarestruturao com conhecimento. Nestesentido, o conhecimento no implicariaqualquer dimenso reflexiva nemconsciente. Esta ideia encontra-se

    presente quando Piaget elucida osentido geral das estruturas do

    pensamento estruturas cognitivas ,afirmando que:

    (...) o pensamento do indivduo

    dirigido por estruturas das quais ele

    1Alfred Binet nasceu em 8 de julho de 1857, emNice. Embora tenha estudado Direito, nochegou a exercer a profisso. Apesar de ter seformado em Cincias Naturais em 1894, desde1880 interessava-se pela Psicologia. Nessa rea,voltou-se, inicialmente, para a experimentaocom mtodos de associao de ideias. Passou atrabalhar no laboratrio de pesquisa depsicofisiologia da Sorbonne, onde, a partir de1891, desenvolveu testes de avaliao da

    inteligncia e habilidades do indivduo. Faleceuem 1911.

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    ignora a existncia e quedeterminam, no somente o que ele capaz ou incapaz de fazer (logoa extenso e os limites de seu poderde resolver problemas), mas ainda oque obrigado a fazer (logo asligaes lgicas necessrias que seimpem a seu pensamento)(PIAGET, 1975b, p. 355).

    A estrutura cognitiva dependeria dasconexes de ideias que podem serutilizadas pela mente um mecanismontimo que dirige o pensamento(PIAGET, 1975b, p. 355) e no docontedo da conscincia. Como

    exemplo, Piaget sustenta que osmatemticos obedeceram, em suasreflexes, sem que tivessem a menorconscincia, s leis de certas estruturas,dentre as quais a que mais se destacou,

    pelo rigor, foi a da estrutura de grupo.Somente com Galois, no sculo XIX, que essa tomada de conscincia teriaocorrido2. Outro exemplo refere-se

    2

    Sobre a estrutura de grupo, Piaget afirma em Oestruturalismo (1979, p. 12): A mais antigaestrutura, conhecida e estudada como tal, foi ade grupo descoberta por Galois, e quelentamente conquistou as matemticas do sculoXIX. Um grupo um conjunto de elementos(por exemplo, os nmeros inteiros, positivos enegativos) reunidos por uma operao decomposio (por exemplo, a adio) tal que,aplicada aos elementos do conjunto, torna a darum elemento do conjunto; existe um elementoneutro (no exemplo escolhido, o zero), tal que,composto com um outro, no o modifica (aqui n

    + 0 = 0 + n = n) e, sobretudo, existe umaoperao inversa (no caso particular, asubtrao), tal que, composta com a operaodireta, fornece o elemento neutro (+ n n = n+ n = 0); finalmente, as composies soassociativas (aqui [n + m] + l = n + [m + l].Fundamento da lgebra, a estrutura de gruporevelou-se de uma generalidade e de umafecundidade extraordinrias. Encontramo-la emquase todos os domnios das matemticas e nalgica; adquiriu uma importncia fundamentalna fsica e provvel que o mesmo acontecerum dia em relao biologia. importante,

    pois, procurar compreender as razes dessesucesso, porque, podendo ser considerado como

    estrutura de transitividade, a qual sse formaria, segundo Piaget (1975b, p.356), na criana entre 6 e 7 anos. A

    partir dessa idade, essa estrutura se

    aplicaria com sucesso em vriasdimenses de problemas, envolvendotanto ordem causal, como matemticaou lgica. No entanto, a criana noteria conscincia de que construiu talestrutura, desconhecendo o modo peloqual ela foi formada e mesmo por queessa estrutura se tornou para elanecessria. Piaget alerta para o fato deque, embora tenha conscincia dosresultados que obtm, a criana ignora o

    mecanismo que comanda a estrutura,que para ela continua inconsciente.Seriam esses mecanismos comoestrutura que Piaget (1975b, p. 356)denomina inconsciente cognitivo.

    O recalque cognitivo

    Reforando sua investigao sobrepossveis aproximaes de seu

    pensamento com o discurso freudiano,Piaget (1975b) volta o foco de suaateno para as aes das crianas nosubmetidas apenas s estruturassubjacentes, mas como contedosmanifestos3 aquilo que aparece na

    um prottipo das estruturas, e em domniosonde tudo o que se afirma deve serdemonstrado, o grupo fornece as mais slidas

    razes para confiar em um porvir doestruturalismo quando reveste formas precisas.3Segundo Laplanche e Pontalis (1967, p. 101),o conceito freudiano de contedo manifesto foiintroduzido na Interpretao de sonho, emcorrespondncia com a noo de contedolatente. Freud nos diz a esse respeito, naabertura do captulo VI, ao tratar da elaboraoonrica (1987, p. 284): Todas as tentativasrealizadas at hoje para solucionar os problemasonricos se vinculavam diretamente ao contedomanifesto, esforando-se por extrair dele ainterpretao, ou nele fundamentar seu juzo,

    quando renunciavam a encontrar algum sentidointerpretvel, sobre o fenmeno [onrico].

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    conscincia. Cabe lembrar que ocontedo manifesto se refere aosurgimento de contedos dos sonhostais como aparecem ao sujeito que

    sonha, antes que se prestem interpretao psicanaltica. Estende-se aqualquer produo verbalizada que investigada e interpretada conforme omtodo analtico. Para Freud,

    [...] se interpola, com efeito, entre ocontedo onrico e os resultados denossa observao, um novomaterial psquico: o contedolatente ou as ideias latentes dosonho que nosso procedimento

    analtico nos leva a descobrir. Destecontedo latente, e no domanifesto, que desenvolvemos asoluo do sonho. Assim,ficvamos diante de um novotrabalho que no se colocava aosautores anteriores: o de investigaras relaes do contedo manifestocom as ideias latentes e averiguar

    por qual processo [o que semanifesta no sonho] surgiu destasltimas (FREUD, 1987, p. 284).

    Enquanto Freud analisa as dimensesmanifesta e latente, visando a esclarecera relao entre sonho e estruturainconsciente, Piaget preocupa-se emverificar o que est oculto na psique a

    partir da conscincia. por essa tomadade conscincia que Piaget buscaaproximar a sua teoria da dimensoinconsciente, tal como formulada porFreud.

    Considerando que na base do conceitode inconsciente freudiano encontra-se anoo de recalque afetivo4, Piaget passa

    Somos os primeiros a partir de um ponto devista diferente.4Segundo Freud, a teoria do recalcamento servede base para todas as construes tericas dapsicanlise. Em seu artigo de 1915, Orecalcamento (FREUD, 1991, p. 250), eleassinala a existncia do recalcamento,

    dimensionando trs grandes momentos. Oprimeiro incidiria sobre um recalque

    a estabelecer uma relao entre recalqueafetivo e recalque cognitivo.

    Na teoria freudiana, recalque afetivo,recalcamento ou recalque designamuma operao interna pela qual o

    psiquismo procura repelir ou manterno inconsciente representaes(pensamentos, imagens, recordaes)ligadas a uma pulso (LAPLANCHE;PONTALIS, 1967, p. 359). J a pulso definida como um processo dinmicoque consiste numa presso ou fora(carga energtica, fator de motricidade)que faz tender o organismo para um

    alvo (ibidem, p. 359).Segundo Piaget, quando umsentimento ou um impulso parecemestar em contradio com sentimentosou tendncias de posio superior(emanando do superego, etc.), eles soento eliminados graas a duas espciesde processos: uma represso conscienteou um recalque inconsciente (1975b, p.358). Por meio dessa afirmao, somosconduzidos a dois importantes conceitos

    freudianos: represso e recalque.

    Utilizando uma definio geral,podemos dizer que a represso, paraFreud, uma operao psquicaconsciente que tende a eliminar daconscincia o que desagradvel; orecalque, por sua vez, gira em torno dafixao de contedos que se tornam

    originrio que no atua sobre a pulso, mas

    apenas nas representaes psquicas, vinculadas pulso, as quais passam a no ter acesso conscincia. O que fica recalcado passa afuncionar no psiquismo como um primeironcleo inconsciente, funcionando como polo deatrao e repulsa para outros elementos quesero recalcados. O segundo momentocorresponderia ao recalque propriamente dito,sendo uma fora posterior que incide emideias que estabeleceram conexes associativascom as representaes inicialmente recalcadas.O terceiro momento, finalmente, abrangeria oretorno do que foi recalcado, sob a forma de

    sintomas, sonhos e todas as demais produesdo inconsciente.

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    ncleos da estrutura inconsciente. Arepresso exclui contedos daconscincia para uma instncia psquicaintermediria entre a conscincia e a

    inconscincia, denominada por Freud depr-conscincia. O recalque, por suavez, exclui contedos da pr-conscincia para a inconscincia.

    Apesar de Piaget explorar o conceito derepresso, esta visa unicamente aoentendimento do recalque, j que esteno deixa de ser uma modalidade derepresso. Assim, Piaget privilegia ateoria do recalque, uma vez que ela se

    volta para o que h de mais oculto napsique, para o que no estcondicionado dinmica consciente,

    para as trocas entre a conscincia e omundo externo.

    Piaget apresenta vrias aes queenvolvem atividades ldicas dascrianas para concluir que a criana no

    pensa antes de agir. Diz ele: A crianano pensou numa hiptese consciente

    para depois afast-la, ela afastou, pelocontrrio, a tomada de conscincia doesquema, quer dizer que ela repeliu oesquema do campo da conscincia antesque ele penetrasse sob uma formaconceitualizada (PIAGET, 1975b, p.358). Piaget chama de esquema deuma ao a estrutura geral dessa ao.Para ele, haveria um processo deconservao psquica que seconsolidaria pelo agir contnuo da

    criana, aplicando-se a situaes quevariam em funo das modificaes domeio (PIAGET, 1975c).

    Um exemplo que ilustra essaabordagem consiste na situao em queuma criana consegue, sozinha ou porimitao, rolar horizontalmente parafrente uma bola de pingue-pongue, detal forma que, em seguida, consegueque a bola recue o que possvel se acriana imprime com um ou dois dedoso movimento inverso de rotao bola.

    Segundo Piaget, a criana compreende,neste caso, que a bola deslocou-se paraa frente e para trs por certaaprendizagem que envolve os sentidos

    fsicos e a dimenso motora umesquema geral de ao , e no porconhecer teoricamente os doismovimentos, podendo neles pensarantes de agir.

    Apesar dessa constatao, Piaget nodeixa de indagar por que algunsesquemas permanecem conscientes eoutros inconscientes. Ele encontra umaresposta ao pressupor

    incompatibilidades entre esquemas deao e ideias preliminares anteriores aeles. Assim, no exemplo citado, ficaclaro que no agir da criana a ao

    presente gera a apreenso do sentido derolar, e no o contrrio, a ideia derotao inversa sendo responsvel pelaao. So os esquemas de ao, ouesquemas sensrio-motores, quedirecionam, segundo Piaget, oinconsciente cognitivo. Neste sentido, a

    teoria piagetiana diferencia o que osujeito pode fazer daquilo que elepensa, valorizando imagens sensoriais eno representaes mentais.

    Para encontrar uma resposta definitivasobre o porqu de alguns esquemas

    permanecerem na inconscincia semalcanarem a conscincia, Piaget(1975b) recorre relao psquica entre

    passado e presente estabelecida porErikson5, afirmando:

    Erikson sustentou [...] uma tesemuito interessante: o presente

    5Erik Erikson (1902-1994) foi um psicanalistaque contribuiu bastante para a investigaopsicolgica, ao estudar o desenvolvimentoinfantil e as crises de identidade. Durante suacarreira, deteve-se particularmente na influnciaque a cultura e a sociedade exercem nodesenvolvimento infantil. Estudando grupos decrianas nativo-americanas, correlacionou a

    formao da personalidade com valores sociaise familiares.

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    afetivo bem determinado, comomostrou Freud, pelo passado doindivduo, mas o passado elemesmo incessantementereestruturado pelo presente. Ora,isso profundamente verdadeironos sistemas cognitivos e porquea tomada de conscincia sempreem parte uma reorganizao e nosomente uma traduo ou umaevocao (p. 360).

    A tese de Erikson incidiria, assim, em duasformas diferentes de abordagem do

    processo de memria. Na primeira, amemria estoca lembranas noinconsciente, bastando a sua evocaovoluntria para que alcancem a conscincia.

    Na segunda, a operao da memria incluiuma reorganizao do que jaz no passado.Piaget parte dessa segunda concepo paraampliar o conceito freudiano de memria,reforando sua formulao de que osesquemas sensrio-motores do inconscienteso meios de reorganizao psquica.

    Memria: relao afeto - cognio

    Piaget justifica a segunda abordagemeriksoniana de reconstituio, oureorganizao psquica, do passado pelo

    presente, a partir de uma vivnciapessoal. Parte de uma lembrana visualem que era raptado, ainda beb, quandose encontrava no carrinho. Essalembrana vem carregada de imagens

    precisas sobre o local onde o fato teriaocorrido: a luta entre a bab e o raptor, a

    chegada de pessoas e do policial, entreoutras.

    No entanto, aos 15 anos, Piaget informado pela famlia de que a babescrevera, alegando ter inventado todo oepisdio. A histria do rapto ele teriaouvido dos pais, por volta dos 5 ou 6anos, e apoiado nela construiu umalembrana visual que persistiu at aidade adulta. Tomando este exemplo,Piaget conclui que se trata de umareconstituio, ainda que falsa, do

    passado e que, se a circunstncia tivessesido real e a lembrana verdadeira,certamente, diz, eu teria reconstrudo[a histria] da mesma maneira, porque

    no existe ainda memria de evocao(mas somente de recognio) num bebem seu carrinho (PIAGET, 1975b, p.360).

    Alm disso, Piaget (1975b) recorre auma parte da investigao que realizoucom Inhelder e Sinclair sobre omecanismo da memria nodesenvolvimento da criana, na qualrelata que mostrou uma srie ordenada

    de dez varetas de grandezasdecrescentes para uma criana que selimita a olh-las de forma desordenada.Aps uma semana, ao indagar crianao que viu, Piaget (1975b, p. 360)encontra alguns nveis de lembranasque assim descreve: a) Alguns bastesiguais; b) pares grande-pequeno,grande-pequeno, etc.; c) trios grande-mdio-pequeno, etc.; d) sries corretas,mas muito curtas; e e) a srie inteira.

    Aps analisar os resultados, Piagetconclui que no ficou marcado nalembrana da criana qualquer dado quetivesse sido percebido de formaobjetiva, exceto o que consta na letra e,e que, portanto, s teriam sidoregistradas psiquicamente as ideias quea criana fez do dado.

    A anlise dessas situaes levou Piaget(1975b, p. 361) a sugerir prudncia nas

    utilizaes das lembranas infantis,pois, se a memria uma reconstruomais ou menos adequada, evidenteque com a interveno de processosafetivos de toda natureza, conflitos, etc.,sua reconstituio ser tanto maiscomplexa. Assim, seria alcanado um

    patamar psquico importante no que dizrespeito ao desenvolvimento cognitivo:haveria, portanto, transformaesafetivas que acompanham mudanas

    cognitivas no plano da memria.

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    Assim, Piaget (1975b) estabelece umacorrelao entre afeto e cognio.Embora aceite que a afetividadecontribua para a acelerao ou o atraso

    no desenvolvimento cognitivo, eleressalta que no so as construescognitivas que engendram asmodificaes afetivas, nem so estasltimas que determinam as primeiras.

    Neste sentido, ainda que os mecanismosafetivos e as estruturas cognitivas sejamindissociveis, Piaget assinala que

    permanecem distintos, pois lidamrespectivamente com energias eestruturas.

    Consideraes finais

    Na trajetria traada neste artigo, vimosque a gnese da cognio em Piagetresulta da interao entre sujeito eobjeto ou, segundo os termos

    piagetianos, de uma elaboraosolidria. Em torno dessa elaborao,Piaget no reduz a cognio a processos

    condicionados dimenso daconscincia, formulando, por outrolado, as bases para se pensar umacognio inconsciente. Para elucidar adimenso inconsciente da cognio,Piaget vai ao encontro da teoriafreudiana, realando a ideia de que o

    pensamento seria uma atividadepsquica inconsciente.

    Partindo dessa assertiva, Piaget enfatizaa concepo de que o pensamento dirigido por estruturas cognitivas cujaexistncia o homem ignora, emboradirecionem o agir humano. Alm disso,tais estruturas dependeriam dasconexes de ideias ou dos mecanismosque podem ser utilizados pela mente eno so conscientes.

    Tomando por base essa ltimaelaborao, Piaget se aproxima deFreud, j que na teoria freudianaexistiria uma dimenso que est alm da

    conscincia. No entanto, enquanto paraFreud o inconsciente seria estruturadosegundo mudanas afetivas, entre asquais o recalque, para Piaget haveriauma cognio inconsciente, que no

    provm unicamente das transformaesafetivas. Com essas formulaes, Piagetnos brinda com uma contribuioindita para a teoria dodesenvolvimento infantil.

    Referncias

    FREUD, S. Die Traumdeutung. In: ______.Gesammelte Werke. Frankfurt am Main: S.Fischer Verlag, 1987.

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    FURTH, H. G. Piaget e o conhecimento. Riode Janeiro: Forense Universitria, 1974.

    LAPLANCHE, J., PONTALIS, J.-B.Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUF,1967.

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    ______. A prxis na criana. In: ______.Problemas de psicologia gentica.So Paulo:Abril Cultural, 1975c.

    ______. O estruturalismo. So Paulo: Difel,1979. Disponvel em:http://materiadeapoioaotcc.pbworks.com/f/jean+piaget+-+O+estruturalismo.pdf. Acesso em: 25nov. 2013.

    Recebido em 2013-12-20Publicado em 2014-06-13