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5/9/2018 26892396-Xavier-de-Maistre- Viagem-a-Roda-do-Meu-Quarto» - slidepdf.com
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Da ironia à amargura
António Rego Chaves
Numa das suas já habituais «Relecturas», o notável escritor espanhol
Enrique Vila-Matas dissertava sobre a «Viagem à Roda do Meu Quarto»,
citando Lao-Tseu: «Sem sair pela porta conhece-se o mundo/Sem olhar
pela janela vêem-se os caminhos do céu. /Quanto mais longe se sai, menos
se aprende.» A referência ao filósofo chinês era adequada e oportuna, mas
decerto teria deixado surpreendidos todos quantos, desde Joseph de Maistre(o célebre ensaísta contra-revolucionário irmão do ficcionista, ele próprio,
aliás, também partidário do Antigo Regime), Stendhal, Sainte-Beuve ou
Anatole France, não levaram muito a sério Xavier de Maistre (1763-1852).
«A escribomania é uma estranha doença do nosso século. Um determinado
autor produziu cem volumes, dos quais pelo menos sessenta serão
esquecidos ou mesmo queimados pela posteridade. Sem dúvida teria valido
mais não os ter escrito. Grandes autores do Grande Século, devidamente
estereotipados, cabem nos bolsos de um colete, ao passo que um dos nossoscontemporâneos exige por vezes um armário só para se arrumar
comodamente: é um grande abuso. Então estamos neste mundo somente
para escrever? Temos de viver, temos de dormir, temos de estar com os
amigos…» Estas palavras do prefácio de Joseph de Maistre a uma das
edições da obra de seu irmão, em 1812, são, em plena era da «indústria
literária», mais actuais do que nunca. Se há, no plano da edição, alguma
nota tónica do tempo em que vivemos, é que os produtores de «best-
sellers», na ânsia de usufruírem da rendível «maré» favorável, escrevem
cada vez mais. Ou seja, escrevem de mais e, portanto, escrevem mal.
Acusado de ser diletante, frívolo, hedonista, Xavier de Maistre foi, no
entanto, muito menos – ou muito mais – do que tudo isso. Só na aparência
este é um texto a que hoje chamaríamos «light». Lido e relido com atenção,
lá encontramos, tal como na sua restante obra – «Expedição Nocturna à
Roda do Meu Quarto», «O Leproso da Cidade de Aosta» (incluída neste
cuidado volume), «Os Prisioneiros do Cáucaso» e «A Jovem Siberiana» –
sinais dos traumatismos provocados pela Revolução de 1789 em boa parteda sociedade francesa, aquela que fazia sua a ideologia até então dominante
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e que, nunca será de mais acentuá-lo, não era apenas constituída pela
aristocracia. O autor transmite-nos, neste contexto, uma «dupla imagem
obsessiva da peregrinação e da claustrofilia» (Gilbert Durand), «uma
tensão entre a reclusão e a itinerância» (Florence Lotterie), uma subtil
sensibilidade melancólica. A táctica da ironia serve quase sempre paraocultar a profundidade autobiográfica do texto: daí que gente apressada se
tenha permitido tomar este livro por aquilo que ele não é – uma simples,
ingénua e inofensiva distracção de militar condenado, por motivos
disciplinares, a ficar durante quarenta e dois dias encerrado no seu quarto
em Turim e, por isso, «obrigado» a escrever para fazer passar o tempo.
O tom deixa de ser irónico, contudo, quando Xavier de Maistre aborda
alguns dos temas que mais «mexem» consigo, como a amizade, a pobreza
que vê à sua volta, a memória do pai, falecido em 1789, antes da
Revolução. Escreve sobre a amizade: «Feliz aquele que encontra um amigo
cujo coração e espírito lhe agradam, um amigo que se ligue a ele por
identidade de gostos, de sentimentos e de saberes; um amigo que não seja
atormentado pela ambição e pelo interesse; – que prefira a sombra de uma
árvore à pompa de uma corte! – Feliz aquele que tem um amigo!» Acerca
da pobreza: «Aqui, encontra-se um grupo de crianças apertadas umas
contra as outras para não morrerem de frio. – Ali, uma mulher trémula e
sem voz para se queixar. – Os passantes vão e vêm, sem se comoveremcom um espectáculo a que estão acostumados. – O ruído dos coches, a voz
da intemperança, os sons maravilhosos da música misturam-se por vezes
com os gritos destes desgraçados, originando uma horrível dissonância.» E,
evocando seu pai: «Contento-me com prosternar-me perante a tua imagem
querida, oh! o melhor dos pais! Meus Deus! esta imagem é tudo quanto me
resta de ti e da minha pátria: deixaste a terra no momento em que o crime ia
invadi-la; e são tais os males com que nos oprime que a tua própria família
é hoje forçada a considerar a tua perda como um benefício.» Que foi aquifeito do diletantismo, da frivolidade, do hedonismo de que alguns falaram?
Publicada pela primeira vez em 1795, logo a «Viagem à Roda do Meu
Quarto» foi filiada na «Viagem Sentimental» de Laurence Sterne. No
entanto, é devido à circunstância de não se confinar à atitude irónica ou
mesmo humorística do grande escritor inglês que o livro de Xavier de
Maistre é tido como anunciador do Romantismo. Sublinharia Sainte-Beuve
que «podemos ver perfilar-se na ‘Viagem’ a dupla renovação que constitui
a revolução romântica: o advento do eu e a explosão dos géneros».
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No que a «O Leproso da Cidade de Aosta» se refere, anote-se apenas que
neste diálogo, publicado na cidade russa de Sampetersburgo em 1811, a
personagem do doente é tudo menos inventada, pois existiu e, de facto,
conversou com o autor, colocando-lhe legítimas dúvidas acerca do sentido
da sua trágica vida. Aqui a atmosfera é já inequivocamente romântica, nãoestando ausente do texto, até, uma dimensão religiosa de esperança na
existência de um outro mundo onde imperará a justiça divina. O homem
que escreveu o primeiro livro é o mesmo que escreveu este: só que os anos
foram passando – e, tanto quanto nos é permitido «adivinhar», arredou a
ironia do seu horizonte espiritual. O resultado foi, no mínimo, amargo. Dir-
se-ia que, na sua concepção, feitas as contas, todos somos tão leprosos
como Job, pois todos sofremos ou sofreremos – uns mais, outros menos – e
estamos à espera da morte. Perspectiva nada, mesmo nada, irónica…
http://sites.google.com/site/incensuraveis/
Xavier de Maistre, «Viagem à Roda do Meu Quarto», seguido de «O
Leproso da Cidade de Aosta», & etc., 2002, 149 páginas