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rascunho Primeiro teorema da incompletude de G¨odel Fernando Ferreira Neste cap´ ıtulo vamos enunciar e demonstrar a vers˜ ao original do Primeiro Teorema da Incom- pletude de G¨ odel. O interesse da vers˜ ao original est´ a na sua demonstra¸ ao, mais especificamente na demonstra¸c˜ ao da sua primeira parte. Como veremos no pr´ oximo cap´ ıtulo, aformaliza¸c˜ ao adequada destademonstra¸c˜ ao d´ a origem ao Segundo Teorema da Incompletude de G¨ odel. Dada uma f´ ormula α da linguagem da aritm´ etica denotamos por pαq o numeral #(α). A diagonaliza¸ c˜ao duma f´ ormula α ´ e a f´ ormula α v0 pαq que resulta de α substituindo a vari´ avel v 0 pelo numeral pαq. Afun¸c˜ ao diag que a cada n´ umero de G¨ odel duma f´ ormula α faz corresponder o umero de G¨ odel da sua diagonaliza¸c˜ ao ´ e, claramente, uma fun¸c˜ ao recursiva (tese de Church). Logo, existe uma f´ ormula δ(x, y) que representa esta fun¸c˜ ao em J, i.e., tal que se diag(n)= m ent˜ ao J ‘∀y(δ( n, y) y = m). No pr´ oximo lema, supomos que ψ(ye uma f´ ormula com uma ´ unica vari´ avel livre (diferente de v 0 ). Lema da diagonaliza¸c˜ ao. Para toda a f´ormula ψ(y) da linguagem da aritm´ etica existe uma f´ormulafechada φ tal que J φ ψ(pφq). Demonstra¸c˜ ao. Seja α a f´ ormula y(δ(v 0 ,y) ψ(y)) e tome-se φ a f´ ormula α v0 pαq , i.e., a f´ ormula y(δ(pαq,y) ψ(y)). Note-se que se tem diag(#(α)) = #(φ). Assim, J ‘∀y(δ(pαq,y) y = pφq). Obviamente, por coment´ arios j´ a efectuados, J φ ψ(pφq). Para ver o rec´ ıproco, note-se que temos J δ(pαq, pφq). Portanto, J ∪{ψ(pφq)}‘ δ(pαq, pφq) ψ(pφq). Logo, J ∪{ψ(pφq)}‘ y(δ(pαq,y) ψ(y)) e, pelo teorema da dedu¸c˜ ao, sai J ψ(pφq) φ. Com este lema podemos dar uma nova demonstra¸c˜ ao do teorema da indefinibilidade de Tarski. Suponhamos, com vista a um absurdo, que o conjunto dos n´ umeros de G¨ odel das f´ ormulas ver- dadeiras (em Ne aritmeticamente defin´ ıvel. Seja, ent˜ ao, V (y) uma f´ ormula com a ´ unica vari´ avel livre y tal que, para toda a f´ ormula fechada θ, θ sse V (pθq). Pelo lema da diagonaliza¸ ao aplicado ` a f´ ormula ¬V (y), seja λ tal que J λ ↔¬V (pλq) (trata-se da “frase do mentiroso”, que diz de si pr´ opria que ´ e falsa). Visto que J ´ e uma teoria verdadeira, tem-se λ sse ¬V (pλq). Sai, λ sse ¬V (pλq) sse ¬λ, o que ´ e absurdo. O argumento original de G¨ odel para o seu primeiro teorema da incompletude baseia-se no racioc´ ınio atr´ as, por´ em aplicado ` ano¸c˜ ao de f´ ormula dedut´ ıvel numa determinada teoria recursivamente axiomatiz´ avel. Note que esta no¸ ao ´ e (ao contr´ ario da no¸ ao de verdade) aritmeticamente defin´ ıvel. A seguinte no¸ ao, de interesse essencialmente hist´ orico (pois n˜ ao ´ e optimal nem desempenha nenhum papel na demonstra¸ ao do Segundo Teorema da Incompletude) deve-se a G¨ odel: Defini¸c˜ ao 1. Uma teoria aritm´ etica T que contenha J diz-se ω-consistente se as seguintes duas condi¸ c˜oesn˜ ao ocorrem simultaneamente: 1. T ‘∃(x). 2. T ‘¬α( 0), T ‘¬α( 1), T ‘¬α( 2), ... para nenhuma f´ormula α(x) com uma ´ unica vari´avel livre x. 1

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  • rascunho

    Primeiro teorema da incompletude de Godel

    Fernando Ferreira

    Neste captulo vamos enunciar e demonstrar a versao original do Primeiro Teorema da Incom-pletude de Godel. O interesse da versao original esta na sua demonstracao, mais especificamente nademonstracao da sua primeira parte. Como veremos no proximo captulo, a formalizacao adequadadesta demonstracao da origem ao Segundo Teorema da Incompletude de Godel.

    Dada uma formula da linguagem da aritmetica denotamos por pq o numeral #(). Adiagonalizacao duma formula e a formula v0pq que resulta de substituindo a variavel v0 pelonumeral pq. A funcao diag que a cada numero de Godel duma formula faz corresponder onumero de Godel da sua diagonalizacao e, claramente, uma funcao recursiva (tese de Church).Logo, existe uma formula (x, y) que representa esta funcao em J, i.e., tal que se diag(n) = mentao J ` y((n, y) y = m).

    No proximo lema, supomos que (y) e uma formula com uma unica variavel livre (diferente dev0).

    Lema da diagonalizacao. Para toda a formula (y) da linguagem da aritmetica existe umaformula fechada tal que J ` (pq).

    Demonstracao. Seja a formula y((v0, y) (y)) e tome-se a formula v0pq, i.e., a formulay((pq, y)(y)). Note-se que se tem diag(#()) = #(). Assim, J ` y((pq, y) y = pq).

    Obviamente, por comentarios ja efectuados, J ` (pq). Para ver o recproco, note-seque temos J ` (pq, pq). Portanto, J {(pq)} ` (pq, pq) (pq). Logo, J {(pq)} `y((pq, y) (y)) e, pelo teorema da deducao, sai J ` (pq) .

    Com este lema podemos dar uma nova demonstracao do teorema da indefinibilidade de Tarski.Suponhamos, com vista a um absurdo, que o conjunto dos numeros de Godel das formulas ver-dadeiras (em N) e aritmeticamente definvel. Seja, entao, V (y) uma formula com a unica variavellivre y tal que, para toda a formula fechada , sse V (pq). Pelo lema da diagonalizacao aplicadoa formula V (y), seja tal que J ` V (pq) (trata-se da frase do mentiroso, que diz desi propria que e falsa). Visto que J e uma teoria verdadeira, tem-se sse V (pq). Sai, sseV (pq) sse , o que e absurdo. O argumento original de Godel para o seu primeiro teoremada incompletude baseia-se no raciocnio atras, porem aplicado a nocao de formula dedutvel numadeterminada teoria recursivamente axiomatizavel. Note que esta nocao e (ao contrario da nocaode verdade) aritmeticamente definvel.

    A seguinte nocao, de interesse essencialmente historico (pois nao e optimal nem desempenhanenhum papel na demonstracao do Segundo Teorema da Incompletude) deve-se a Godel:

    Definicao 1. Uma teoria aritmetica T que contenha J diz-se -consistente se as seguintes duascondicoes nao ocorrem simultaneamente:

    1. T ` x(x).

    2. T ` (0), T ` (1), T ` (2), . . .

    para nenhuma formula (x) com uma unica variavel livre x.

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  • rascunho

    Note-se que as teorias J e PA sao -consistentes. Em geral, uma teoria aritmetica verdadeira(i.e., constituda apenas por verdades aritmeticas) que contenha J e -consistente. Como se verapelos argumentos que se seguem, basta apenas exigir que a teoria seja 1-fiel, i.e., que todo o teo-rema -rudimentar da teoria seja verdadeiro. Tal requisito chama-se 1-consistencia e e equivalentea restringir a nocao de -consistencia a formulas -rudimentares .

    Proposicao 1. Se T e -consistente entao e consistente.

    Demonstracao. Como T ` x(x = x), por -consistencia conclui-se que ha pelo menos umaformula do tipo (k = k) que nao se deduz formalmente de T. Logo T e consistente.

    Lema 1. Seja T uma teoria recursivamente axiomatizavel que contenha J. Entao existe umaformula aritmetica DedT(x) tal que, para toda a formula fechada , se tem:

    1. Se T ` entao T ` DedT(pq);

    2. Se T e -consistente e T ` DedT(pq) entao T ` .

    Demonstracao. Como sabemos, existe um predicado binario recursivo R tal que, para toda aformula fechada , se tem: T ` se, e somente se, k R(#(), k). Seja D(x, y) uma formula querepresente R, i.e., (a) se R(n, k) entao J ` D(n, k); e (b) se R(n, k) entao J ` D(n, k). Tome-separa DedT(x) a formula y D(x, y).

    Suponhamos que T ` . Entao existe k tal que R(#(), k) e, por (a), infere-se J ` D(pq, k).Logo, J ` DedT(pq) e, a fortiori, T ` DedT(pq).

    Suponhamos que T e -consistente e que T ` DedT(pq), i.e., T ` y D(pq, y). Por -consistencia, existe k N tal que T 6` D(pq, k). Por (b) acima, nao se pode ter R(#(), k).Assim, tem-se R(#(), k) e, portanto, T ` .

    Damos, de seguida, a versao original de Godel do Primeiro Teorema da Incompletude. Comoja foi mencionado, a primeira parte e importante para o Segundo Teorema da Incompletude deGodel:

    Primeiro Teorema da Incompletude de Godel (versao original). Seja T uma teoria recur-sivamente axiomatizavel que contenha J. Entao existe uma formula fechada GT tal que:

    1. Se T e consistente, T 6` GT;

    2. Se T e -consistente, T 6` GT.

    Demonstracao. Tome-se DedT(x) uma formula de acordo com as especificacoes do lema anterior.Pelo Lema de Diagonalizacao aplicado a formula DedT(x), existe uma formula fechada GT talque (?) J ` GT DedT(pGTq).

    Suponhamos que T e consistente e, com vista a uma contradicao, que T ` GT. Por (1) do Lemaanterior vem T ` DedT(pGTq) e, por (?), T ` GT. Isto contradiz a consistencia de T.

    Suponhamos agora que T e -consistente e, com vista a uma contradicao, que T ` GT. Por(?), infere-se T ` DedT(pGTq) e, por (2) do Lema anterior, T ` GT. Isto contradiz novamente aconsistencia de T (a qual, como vimos, infere-se de T ser -consistente).

    Para fixar ideias, vamos aplicar o teorema anterior a teoria PA. Intuitivamente, a formula GPAdiz de si propria que nao se deduz formalmente a partir de PA. E, como se argumentou, nao emesmo formalmente dedutvel a partir de PA. Assim, GPA e um exemplo concreto duma verdadearitmetica que nao se deduz formalmente de PA. Esta discussao pode ser refinada. Dado quePA 6` GPA, a teoria PA{GPA} e consistente. Nao e, porem, 1-fiel. Para ver isto, observe-se quea formula GPA e falsa e e equivalente (sobre J) a uma formula -rudimentar.

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