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    A Liberdade Natural da Mente no Dzogchen ou Grande Perfeio

    Paulo A. E. Borges

    (Universidade de Lisboa)

    Abandonai pois a mente que imagina alvos

    E, sem nada conceber, permanecei sem corrigir nem alterar o que se manifesta.

    Sem distinguir o sujeito do objecto, ficai na grande liberdade natural

    - Longchenpa

    Pretende este estudo apresentar alguns aspectos fundamentais dos ensinamentos e

    prtica do Dzogchen ou Grande Perfeio, a partir da trilogia A liberdade natural da

    mente, de Longchenpa (1308-1363), um dos mestres mais eminentes da primeira tradio

    do budismo tibetano, a dos Antigos, ou Nyingmapa. Considerado, na classificao da

    mesma escola, e na perspectiva da via gradual (lam rim), como o ltimo e supremo dos

    nove veculos 1 para o reconhecimento da natureza primordial da mente e de todos os

    fenmenos - a natureza de Buda, designao no de uma figura histrica, mas da realidade

    1 Os nove veculos incluem-se dentro da classificao mais geral em trs veculos, correspondentes aos trsnveis de ensinamento do Buda: Pequeno Veculo ou Veculo de Base, Hinayana, que inclui osshravakas, ouauditores, e ospratyekabuddhas; Grande Veculo, Mahayana, o dos bodhisattvas; e, tambm referido comouma extenso do mesmo Grande Veculo, o Vajrayana ou Mantrayana secreto, igualmente chamadoTantrayana, subdividido nos Tantras externos Kriyatantra, Ubhayatantra e Yogatantra e nos Tantrasinternos Mahayoga, Anuyoga eAtiyoga, a Grande Perfeio ouDzogchen (abreviao do tibetano rdzogs-chen shin-tu rnal-byor).

    Estes veculos devem considerar-se como as diferentes formas que uma mesma via de realizao doEstado de Buda assume segundo as qualidades e tendncias dos indivduos. assim que os nove veculos se

    podem subsumir numa nica viagem para um estado alm de todo o conceito de veculo ou de viajante.Como diz o Rei que tudo realiza (kun-byed rgyal-po, T 828): Realmente s h um / Mas empiricamenteexistem nove veculos; e oLankavatara Sutra: Quando a mente se transforma / No h nem veculo nem

    quem se mova cf. Gyurme Dorje, Introduo do Tradutor, in S. S. Dudjom Rinpoch (Jikdrel YesheDorje), The Nyingma School of Tibetan Buddhism. Its Fundamentals and History, Vol. I: The Translations,traduzido e editado por Gyurme Dorje com a colaborao de Matthew Kapstein, Boston, WisdomPublications, 1991, pp.17-18.

    Registe-se que outra classificao refere um distinto primeiro veculo, o veculo mundano dosdeuses e dos homens, e agrupa no segundo veculo os shravakas e os pratyekabuddhas cf. AdrianoClemente, Introduo a Namkha Norbu Rinpoch, Dzogchen. Ltat dAuto-Perfection, traduzido porArnaud Pozin, Paris, Les Deux Ocans, 1994, p.10.

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    plenamente iluminada - , oDzogchen todavia, em si mesmo, no propriamente uma via ou

    um veculo, mas o prprio estado de experincia imediata da perfeio natural e absoluta de

    todas as coisas, independente dos mtodos e prticas que o podem preparar e mesmo dequalquer tradio, religio ou escola especficas 2. Atesta-o o facto do Dzogchen no ser

    exclusivo do budismo, mas surgir tambm na tradio Bn, a anterior religio do Tibete 3,

    com linhagens prprias que ainda hoje o veiculam 4. No sendo sequer procedente do

    Tibete, apesar de a se haver desenvolvido e preservado, a tradio Bn, e mestres budistas

    como Namkha Norbu Rinpoch, consideram que o Dzogchen foi primeiro ensinado por

    Shenrab Miwoch, que os adeptos doBn sustentam ser o primeiro Buda a manifestar-se no

    2 Sobre o Dzogchen, alm das obras de Namkha Norbu Rinpoch citadas, e entre vrias outras, cf.Longchenpa, Kindly Bent to Ease Us, I, II e III, traduzido do tibetano e anotado por Herbert V. Guenther,Emeryville, Dharma Publishing, 1975, 1976 e 1976; Herbert V. Guenther, Matrix of Mystery: Scientific andHumanistic Aspects of rDzogs Chen Thought, Boston, Shambhala, 1984; Idem, From Reductionism toCreativity: rDzogs Chen and the New Sciences of Mind, Boston, Shambhala, 1989; Namkha NorbuRinpoch, Le Cycle du Jour et de la Nuit. Lessence du Dzogchen, texto essencial sobre a prtica doDzogchen estabelecido, traduzido e apresentado por John Reynolds para a edio americana; apresentao ecomentrios traduzidos do americano por Madeleine Carr; texto principal Le Cycle du Jour et de la Nuittraduzido do tibetano por Patrick Carr, JC Latts, 1987; Samten Gyaltsen Karmay, The Great Perfection. A

    Philosophical and Meditative Teaching in Tibetan Buddhism, Leiden, Brill, 1988; Karl Erhard,Flgelschlge des garuda. Litterar und ideengeschtliche Bemerkungen zu einer Liedersammlung desrDzogs-chen, Tibetan and Indi-Tibetan Studies 3, Stuggart, Franz Steiner, 1990; Dudjom Lingpa, BuddahoodWithout Meditation. A Visionary Account Known as Refining Apparent Phenomena (Nang-Jang), traduzidodo tibetano sob a direco de Ghagdud Tulku Rinpoch por Richard Barron, Junction City, PadmaPublishing, 1994; The Golden Letters, The Three Statements of Garab Dorje, the first teacher of Dzogchen,together with a commentary by Dza Patrul Rinpoche entitled The Special Teaching of the Wise andGlorious King, prefcio de Namkhai Norbu Rinpoche, traduo, introduo e comentrios por John MyrdhinReynolds, New York, Snow Lion, 1996; John Whitney Petit, Miphams Beacon of Certainty. Illuminating theView of Dzogchen, the Great Perfection, Boston, Wisdom Publications, 1999; Majushrimitra, PrimordialExperience. An Introduction to rDzogs-chen Meditation, traduzido por Namkhai Norbu e Kennard Lipman,em colaborao com Barrie Simmons, Boston & London, Shambhala, 2001.3 Sobre a tradio Bn, cf. D. L. Snellgrove, The Nine Ways of Bn. Excerpts from the gZi-brjid edited andtranslated, London Oriental Series, vol.18, Londres, 1967 (reedio: Boulder, 1987); D. L. Snellgrove e H.

    Richardson, A Cultural History of Tibet, Londres, 1968 (reimpresso: Boulder, 1980); Samten GyaltsenKarmay, The Treasury of Good Sayings. A Tibetan History of Bn , London Oriental Series, vol. 26, Londres,1972; Per Kvaerne, Bnpo Studies. The AkridSystem of Meditation, Kailash 1, 1 (1973) : pp. 19-50; 1,4(1973) : pp. 247-332.4 Cf., por exemplo, Tenzin Wangyal, Les prodiges de lesprit naturel. Lessence du Dzogchen dans latradition Bn originelle du Tibet, prefcio de S. S. o Dalai Lama, traduzido do americano por Horacio eMargo Sanchez, ditions du Seuil, 2000; Shardza Tashi Gyaltsen, Heart Drops of Dharmakaya. DzogchenPractice of the Bn Tradition, traduo e comentrio por Lopon Tenzin Namdak, introduo de Per Kvaerne,editado por Richard Dixey, Ithaca, New York, Snow Lion, 2002.

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    planeta, em 16016 A. C. 5 (segundo outras fontes, apenas em 1856 6, 1857 7 ou 1917 A. C.8), a sul do monte Yungdrung, na regio semi-mtica, semi-geogrfica de Olmo Lungring,

    que alguns relacionam com o Monte Kailash e outros com a Prsia e o Mdio-Oriente. Asprimeiras escriturasBn tero sido trazidas para o reino de Zhang-Zhung, situado a Oeste

    do actual Tibete e a ele mais tarde anexado pelo rei Songtsen Gampo 9. Todavia, segundo a

    tradio budista tibetana, oDzogchen, na sua forma actual e mais desenvolvida, procedeu de

    Samantabhadra ou Kuntuzangpo, o Buda primordial, a-histrico, no plano do Dharmakaya

    ou Corpo Absoluto, foi transmitido a Vajrasattva, no nvel intermdio e subtil do

    Sambhogakaya ou Corpo de Fruio, e por este a Garab Dorj, um Buda que manifestou um

    Corpo de Emanao, ou Nirmanakaya, sob forma humana 10, cerca do ano 184 A. C., no

    reino de Oddiyana, no Noroeste da ndia 11. De Oddiyana procederam tambm muitas

    linhagens de mestres dos Tantras superiores, verificando-se a o miraculoso nascimento de

    Padmasambhava, igualmente mestre Dzogchen e futuro introdutor do budismo tntrico no

    Tibete. No tendo uma origem tibetana, oDzogchen considerado por Namkha Norbu, um

    dos seus maiores representantes actuais, como algo que, no pertencendo propriamente ao

    budismo nem ao Bn, todavia a essncia de toda a espiritualidade e logo da cultura

    tibetana, podendo ser utilizado como uma chave para a sua compreenso global 12. Todavia,

    se o Dzogchen fonte de filosofia, religio e cultura, porque nada disso , mas antes aexperincia concreta de descoberta e fruio do estado primordial de si e de todas as coisas,

    5 Cf. Thupten K. Rikey, Prefcio a The Twelve Deeds. A Brief Life Story of Tonpa Shenrab, the founder ofthe Bom Religion, traduzido por Sangye Tandar, editado por Richard Guard, Nova Deli, Library of TibetanWorks & Archives, 1995, p. III.6 Cf. Namkha Norbu Rinpoch, Dzogchen et Tantra. La Voie de la Lumire du bouddhisme tibtain, textoscoligidos por John Shane, traduzidos do ingls por Bruno Espaze, Paris, Albin Michel, 1995, p.49.7 Cf. Tenzin Wangyal, Les prodiges de lesprit naturel. Lessence du Dzogchen dans la tradition Bnoriginelle du Tibet, p. 43.8 Cf. Namkha Norbu Rinpoch, Drung, Deu and Bn. Narrations, Symbolic languages and the Bn traditionin ancient Tibet, traduzido do tibetano para o italiano, editado e anotado por Adriano Clemente, traduzido do

    italiano para o ingls por Andrew Lukianowicz, Dharamsala, Library of Tibetan Works and Archives, 1995,p.158.9 Cf. Shardza Tashi Gyaltsen, Heart Drops of Dharmakaya. Dzogchen Practice of the Bn Tradition,Appendix 2 A Short History ofBn, pp.139-141 e 144. Cf. tambm Namkha Norbu Rinpoch, Drung,Deu and Bn. Narrations, Symbolic languages and the Bn tradition in ancient Tibet, pp.XV-XX. Para umaapresentao geral dos vrios tipos deBn, cf. Ibid.pp.35-50.10 Cf. Namkha Norbu Rinpoch,Dzogchen. Ltat dAuto-Perfection, p.58.11 Cf.Id., Dzogchen et Tantra. La Voie de la Lumire du bouddhisme tibtain, p.51.12 Cf.Id.,Ibid.,p.43.

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    uma plenitude livre de todas as elaboraes, iluses e artifcios. Uma plenitude que no se

    reduz experincia da vacuidade, mediante a mera ausncia de conceitos (em tibetano,

    mitokpa), mas que integra, tal como na abordagem tntrica, toda a energia que a suamanifestao contnua, em todas as suas esferas, mesmo a conceptual e emocional, sem

    procurar corrigir o que quer que seja. Esta a diferena, em termos de mtodo e de

    resultado, entre uma via sbita, como o Zen, e uma no via, como oDzogchen13.

    esse estado primordial, no dual e sempre presente da mente e dos fenmenos, ou,

    numa perspectiva j exterior, de todos os seres e coisas, que se designa como Natureza de

    Buda, a qual alheia representao habitual do budismo como doutrina tica, filosfica ou

    religiosa. Todavia, a transmisso da experincia de reconhecimento e fruio desse estado,

    que pode ser directa, mediante o esprito, simblica, por objectos, imagens e parbolas, ou

    oral e escrita, recorrendo palavra e ao intelecto 14, adapta-se naturalmente, no s s

    diferentes capacidades e disposies dos indivduos, mas ainda aos seus paradigmas

    culturais. assim que, em termos exteriores, e para as necessidades de classificao

    intelectual, surge um budismo e, dentro deste, um budismo indiano, um budismo chins,

    japons, tibetano, etc. Na verdade, na experincia bdica, ou seja, na experincia do

    Despertar da iluso de todos os pressupostos, referncias e conceitos, no h budismo nem

    sequerBuda, no porque deixe de haver um sujeito que antes realmente exista, mas porquedeixa de haver a ideia de haver, de ter alguma vez havido e de poder alguma vez haver, e

    logo de poder cessar, um sujeito intrnseca e absolutamente existente, como o indicam os

    textos onde se expe a verdade absoluta, como o Sutra do Diamante 15 ou o Sutra do13 Cf. Namkha Norbu Rinpoch, Dzogchen and Zen, editado com prefcio e notas por Kennard Lipman,Oakland, Zhang Zhung Editions, 1984.14 Cf.Id., Dzogchen. Ltat dAuto-Perfection, pp.58-59.15 No havendo origem nem realidade do eu e dos fenmenos, no h tambm cessao ou irrealidade dosmesmos. Cf. estas passagens, entre outras:Le Bienheureux demanda encore:Quen penses-tu, Subhti: appartient-il un Sans retour de penser: Jai atteint le fruit du sans retour ?

    - Certainement pas, Bienheureux, parce quil ny a personne de rel qui puisse mriter cette qualification deSans retour.Parce quaucun tre anim na jamais t libr para le Tathgata. Et sil advenait, Subhti, quun seul tresoit libr par le Tathgata, cela trahirait de la part du Tathgata une croyance au soi, ltre anim, la vie, lindividu.[...] car les tres rellement engags dans la voie des bodhisattvas nont jamais proclam la moindredestruction ni lanantissement de quelque phnomne que ce soit - Sutra do Diamante, traduzido dotibetano por Philippe Cornu, XXV e XXVII, in Sotra du Diamant et autre sotras de la Voie mdiane ,tradues do tibetano por Philippe Cornu, du chins e do snscrito por Patrick Carr, Fayard, 2001, pp.33, 63

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    Corao do Conhecimento Transcendente 16. Como o sugere a lngua tibetana, cujo termo

    para o que designamos como budista nang pa, o que apenas designa aquele que se ocupa

    do interior ou um cuidar do interior. Aquele que habita uma intimidade no apenas oupropriamente sua, mas de todos os fenmenos, como sugere o vocbulo prximosnang wa,

    que designa a luz nica de tudo o que se manifesta, de tudo o que aparece, externa ou

    internamente. A nossa intimidade o mundo e somos a intimidade do mundo. Sem interior

    nem exterior.

    Segundo a experincia e doutrina dos trs corpos (kayas) de Buda, a realidade

    primordial plenamente iluminada manifesta-se em trs nveis: mente, verbo/energia e corpo

    fsico (usamos a palavra mente em vez de esprito para evitar conotaes

    substancialistas ou religiosas). Enquanto ao Nirmanakaya, corpo de apario fsica,

    corresponde nesta era o Buda Shakyamuni e o ensinamento das vias comuns dos Sutras, ao

    Samboghakaya, corpo subtil de fruio, corresponde Vajradhara e o ensinamento dos

    Tantras, e ao Dharmakaya, Corpo absoluto da realidade em si, corresponde Samantabhadra,

    o Buda primordial, cuja experincia e ensinamento no seno a da auto-perfeio eterna e

    imediata de tudo, ou seja, oDzogchen. Os veculos fundados nos Sutras, como o Hinayana e

    o Mahayana, preconizam uma prtica particularmente ligada ao corpo, pela renncia

    exterior ou interior aos actos negativos e a adopo dos positivos como antdotos, sendo queo primeiro visa o reconhecimento da ausncia de entidade intrnseca, ou vacuidade, do eu, e

    o segundo lhe acrescenta a de todos os fenmenos, bem como a compaixo universal. Os

    veculos assentes nos Tantras propem uma prtica fundamentalmente ao nvel do

    verbo/energia, procurando, a partir da experincia da vacuidade e da compaixo, no a

    renncia, mas a transformao das emoes negativas na sua dimenso primordial de

    conscincia pura. Em todos eles h portanto a ideia de algo a praticar por algum que tem

    um dado caminho a percorrer at Iluminao, vista como um objectivo a alcanar ou um

    potencial a realizar, ou seja, vista em funo do sujeito no iluminado e da sua percepo

    distorcida da realidade e de si mesmo. Todos estes veculos so condicionados pelos trs

    e 66.16 [...] todos os fenmenos so vacuidade: desprovidos de caractersticas essenciais, no nascem nemcessam Sutra do Corao do Conhecimento Transcendente, traduzido do tibetano por Philippe Cornu, inSotra du Diamant et autre sotras de la Voie mdiane, p.88.

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    crculos (khor gsum) da mente conceptual (sems): sujeito, objecto e aco. Ao contrrio,

    o Atiyoga ou Dzogchen consiste no simples e imediato reconhecimento e permanncia no

    estado natural e no-dual de Iluminao, experienciado desde o incio como a verdade erealidade nica de tudo, como perfeio absoluta na qual nada h nem jamais houve a obter

    ou a rejeitar, a renunciar, a corrigir ou a transformar. No Atiyoga, ou Yoga Primordial, a

    palavra yoga no denota, como em snscrito, a partir da raiz yuj, um vnculo e um

    domnio, no caso o acto de atrelar os cavalos , o que remete ainda para uma experincia

    de dualidade, oposio e esforo 17, mas o seu sentido o da palavra equivalente em

    tibetano: rnal byor, o unir-se ou fundir-se no estado fundamental 18 ou o fruir a

    condio autntica 19. Menos uma via do que uma no-via, a prtica no supe aqui um

    mtodo e um caminho em direco a um qualquer objectivo ou resultado, praticar no visa

    evitar ou realizar algo, praticar no uma prtica, mas um simples residir no que , nesse

    autoreconhecimento imediato e constante do real, onde todo o fenmeno emergente o

    jogo ou dinamismo da natureza e liberdade primordiais da presena/conscincia no-

    duais, rigpa, e como tal perfeio espontnea e pura, no sentido de que tudo o que se

    manifesta livre de qualquer limite conceptual: ser e no ser, princpio e fim, positivo e

    negativo, puro e impuro, etc. um exerccio fundamentalmente contemplativo, mas onde a

    dificuldade, para mentes habituadas ao esforo para fazer ou evitar algo, reside exactamenteem manter uma conscincia impecavelmente atenta sem tenso, objecto ou objectivo, ou

    seja, sem nada fazer, em termos de adopo ou rejeio, enquanto simultaneamente se vai

    vivendo a vida quotidiana e pensando, dizendo e fazendo tudo o que espontaneamente brota

    do fundo do ser, na natural harmonia, criatividade e compaixo da no-dualidade. O que

    pode ser, pelo menos no incio, muito mais rduo do que abandonar-se s objectivaes da

    mente e s distraces do re-agir que geram e reproduzem o ilusrio mundo convencional.

    Tradicionalmente, e normalmente, ao menos no budismo, os ensinamentos

    Dzogchen no se comunicam seno como corolrio da via gradual, mais ou menos longa

    segundo as qualidades e aplicao dos discpulos, em que primeiro se renuncia ao

    17 Cf. Jean Varenne,Aux Sources du Yoga, Paris, ditions Jacqueline Renard, 1989, p.79.18 Cf. Sarat Chandra Das, A Tibetan-English Dictionary with sanskrit synonyms, Deli / Patna / Varanasi,Motilal Banarsidass, 1973, p.763.19 Namkha Norbu Rinpoch,Dzogchen. Ltat dAuto-Perfection, p.47.

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    sofrimento e s suas causas, os dez actos negativos de corpo, palavra e mente, depois se

    transforma o egocentrismo pelo cultivo do Bodhicitta, o esprito de Iluminao, tendo em

    vista atingir o estado de Buda para libertar todos os seres do sofrimento da existnciacondicionada, e depois se transmutam progressivamente todos os conceitos e emoes na

    experincia da vacuidade ltima de si e de todos os fenmenos. Nesta perspectiva, antes do

    acesso aoDzogchen suposto que a mente se haja estabilizado na prtica da meditao com

    suporte, em que a concentrao unidireccionada na respirao ou num objecto, exterior ou

    interior, proporciona a calma mental, shin, tendo-se depois emancipado dos suportes

    meditativos na experincia da viso profunda, lhaktong, em que todos os fenmenos,

    exteriores e interiores, so acolhidos com equanimidade, sem nada rejeitar ou adoptar, numa

    conscincia panormica e no-dual 20. Todavia, e em si mesma, a experincia do Dzogchen

    a da perfeio e iluminao eterna, actual e natural da mente e de todos os fenmenos, e

    como tal pode irromper subitamente, independentemente de quaisquer mtodos ou

    exerccios preparatrios. nesse sentido que apresentado como um ensinamento alm da

    lei de causa e efeito, pois consiste na introduo directa ao incondicionado, alm do

    pensamento e da aco dualista, ou seja, alm do karma 21. Segundo alguns textos, a via

    gradual, necessria para os seres comuns, em funo da maior ou menor intensidade dos

    seus obscurecimentos conceptuais e emocionais, pode tornar-se, para outros, um obstculo, ou um desvio da, compreenso e fruio imediata da Grande Perfeio. Da, sobretudo

    recentemente, que o Dzogchen seja mais divulgado e, por vezes, directamente ensinado,

    embora com fortes reservas dos mestres mais tradicionais, que apontam o risco do prejuzo

    de muitos pelo benefcio de alguns, considerando que, sem uma prvia purificao da

    mente, o acesso prtica do Dzogchen como comear a construir uma casa pelo telhado,

    aludindo ainda ao perigo de algum, presa ainda da conscincia egolgica, se presumir um

    20 Para uma exposio clssica e detalhada dos preliminares aoDzogchen, cf. Patrul Rinpoch, Words of MyPerfect Teacher, traduzido pelo grupo de traduo Padmakara, com um prefcio de S. S. o Dalai Lama,Walnut Creek, AltaMira Press, 1998. Para uma sntese, cf. Tulku Pema Wangyal Rinpoch, Diamants deSagesse, editado pelo grupo de traduo Padmakara, Saint-Lon-sur-Vzre, Padmakara, 1996 (edio

    portuguesa:Diamantes de Sabedoria, traduo de Filipe Valente Rocha, Lisboa, ncora Editora, 2002).

    21 Cf. Namkha Norbu Rinpoch,Dzogchen et Tantra. La Voie de la Lumire du bouddhisme tibtain, pp.54-55, que remete a compreenso disto para a viso da vacuidade exposta no Sutra do Corao doConhecimento Transcendente, atrs citado.

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    ser plenamente realizado, no entendendo que a Iluminao jamais pode ser uma realizao

    subjectiva. Em qualquer dos casos, seriam grandes e graves os riscos de extravio e queda.

    De qualquer modo, seja por via gradual, seja por introduo directa, ou no-via, nose considera que o acesso ao Dzogchen possa residir numa mera relao intelectual com os

    textos. Esta pode ser vlida como instncia preparatria ou posterior, de iniciao ou

    esclarecimento filo-sficos, sem que, para ser uma experincia integral, dispense uma

    relao pessoal com um mestre realizado, que possa efectuar a indispensvel apresentao

    da natureza da presena/conscincia pura, rigpa, ao discpulo, a qual pode ser oral,

    simblica ou directa, de esprito a esprito, fundindo-os num s.

    Considera-se que a obra que nos ocupa, Rangdrl Khorsum, em tibetano, pertence a

    uma das trs sries de ensinamentos Dzogchen: semd, a srie da mente, dita mais

    apropriada para os intelectuais, aqueles que carecem de raciocnios para compreender.

    uma trilogia, sendo cada uma das suas partes composta por dois textos. O primeiro um

    longo poema em verso em trs captulos, que expem a viso, a meditao e o fruto, sendo

    o segundo um dntri, uma instruo essencial sobre a prtica, que indica o modo de nela

    se integrar a vida quotidiana, a experincia do sono e do sonho e a dos vrios bardo, ou

    estados intermdios, que se sucedem ao momento da morte. Actualmente os comentrios arespeito da presente obra perderam-se.

    Da trilogia elegemos a terceira parte, intitulada A Liberdade natural da igualdade

    segundo a Grande Perfeio, texto que o tradutor e apresentador, Philippe Cornu, considera

    o mais radical e [...] abrupto dos trs 22. Comeando pela homenagem ao Buda primordial,

    Samantabhadra, e pela afirmao de que o estado da Grande Perfeio a tudo engloba,

    igualando todos os fenmenos num puro e eterno despertar, esta viso reclama-se da

    expresso intemporal de uma doutrina que no se realiza nem pelo esforo, nem pela

    adopo ou rejeio. Embora considerando os nove veculos budistas como adequados s

    capacidades dos seres, Longchenpa esclarece que, em verdade, (...) / no h nem veculos

    nem renncia, / nem idas nem vindas, nem antdotos nem obtenes, pois todas as coisas

    22 Philippe Cornu in Longchenpa, La Libert Naturelle de lEsprit, apresentado e traduzido do tibetano porPhilippe Cornu, ditions du Seuil, 1994, p.197.

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    so o estado de realidade absoluta, imvel e imutvel. O bodhicitta, o esprito de

    iluminao, no pois, contrariamente perspectiva do Mahayana, algo a ser cultivado,

    primeiro em inteno e depois em aplicao, comeando por ser um bodhicitta relativo, masantes um estado espontaneamente presente e luminoso desde sempre, o bodhicitta

    absoluto. No h seno que permanecer, completamente vontade, num repouso sem

    artifcios, nesse estado natural de si e de tudo, sem captar objectos na conceptualizao

    discriminatria e predicativa, sem procurar ou modificar, negar, afirmar, adoptar ou

    rejeitar o quer que seja. Assim, sem conceptualizar nem moralizar, sem as rejeitar nem a

    elas aderir, as cinco emoes procedentes da mente obscurecida pela dualidade,

    responsveis pela sua errncia nos seis mundos psicocosmolgicos do samsara - desejo-

    apego, dio-averso, ignorncia, orgulho e cime - 23, desde que surgem espontaneamente

    se convertem nos cinco respectivos aspectos da Sabedoria primordial, manifestados nas

    cinco famlias de Budas 24. Tudo o que emerge de rigpa, a presena/conscincia pura,

    vacuidade, luminosidade e criatividade indissociveis - ou, na terminologia do Dzogchen,

    essncia, natureza e energia 25 - , nele imediatamente se auto-liberta, no carecendo de ser

    rejeitado, corrigido ou transformado, o que marca toda a diferena do Atiyoga a respeito dos

    Sutras e dos Tantras. Assim as manifestaes mais comuns e elementares do estado

    primordial se reconhecem como a mandala, a global estrutura simblica, da sua perfeioespontnea. Os cinco agregados (skandhas) componentes da experincia do eu-sujeito -

    forma, sensao, percepo, concepo-impulso e conscincia dualista - so desde o incio

    reconhecidos como os budas das cinco famlias, do mesmo modo que os cinco elementos

    csmicos - terra, gua, fogo, ar e ter-espao - so as suas respectivas consortes, consoante a

    23 Sobre os seis mundos ou seis modos de ser, numa vertente mais psicolgica, cf. Chgyam Trungpa,

    Bardo. Au-del de la folie, traduzido do americano por Stphane Bdard, prefcio de Judith L. Lief, ditionsdu Seuil, 1995, pp. 232-328. Para uma apresentao mais existencial e cosmolgica, cf. Patrul Rinpoch,Words of My Perfect Teacher, pp.61-99.24 Sobre as cinco famlias de Budas, cf. Chgyam Trungpa, Voyage sans fin. La Sagesse Tantrique duBouddha, ditions du Seuil, 1992, pp.103-115. Para uma apresentao esquemtica da sua relao com ascinco emoes, as cinco sabedoria e outras correspondncias, cf. Philippe Cornu, in Le Miroir du Coeur deVajrasattva. Tantra du Dzogchen, traduzido do tibetano e comentado por Philippe Cornu, ditions du Seuil,1995, pp.125-129.25 Cf. Namkha Norbu Rinpoch,Dzogchen. Ltat dAuto-Perfection, pp.49-50.

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    iconografia tntrica 26. Ou seja, todas as formas da experincia mental e sensvel do mundo,

    todas as percepes, so o prprio estado natural e primordial de iluminao.

    Vista na luz que a sua, a luz primordial e sempre instante, a existncia fenomenal absolutamente pura. Livres da parcialidade do intelecto discriminante, da errncia

    especulativa, da normatividade moral acerca do que h a fazer e a evitar e da ascese que

    supe nveis de progresso ou vias por renncia e adeso, livres, como diz Longchenpa,

    de todas as veleidades poderamos dizer, glosando o Eclesiastes (1, 2), de todas as

    vaidades - que se esgotam a querer corrigir o cu, livres de todo o artifcio corruptor,

    todas as coisas so o esplendoroso e espontneo desdobramento e cumprimento da

    realidade absoluta. Nada sendo estranho natureza imaculada e imaculvel do Real,

    alheia a qualquer noo de identidade e diferena, unio e ciso, uno e mltiplo, ser e no-

    ser, toda a fenomenalidade, tudo o que na perspectiva das conscincias dualistas emerge

    como puro e impuro, samsara e nirvana, universo, seres e Budas, visto como o seu

    prodgio mgico ou jogo ilusrio 27 - note-se que a iluso remete aqui menos para o

    sentido de erro ou engano, consistentes no tomar como existente o que o no , dominante

    na ontognosiologia ocidental, do que para aquele outro, de ironia e diverso ldica, afim

    il-lusio, onis latina, ou, mais, de impulso criador, mantido no castelhano e plenamente

    assumido, entre ns, no pensamento potico de Teixeira de Pascoaes 28

    . No sendo arealidade interpretada em termos deseres, mas defenmenos igualmente vazios e aparentes,

    enquanto formas que, emergentes na interdependncia com todas as demais e com a prpria

    percepo, transcendem toda a caracterstica conceptual e no possuem substancial

    existncia prpria, nada em verdade existe independentemente desse incriado jogo criador

    que simultaneamente repouso e movimento.

    A manifestao assim radicalmente irrepresentvel, sem substncia, fundamento,

    origem, causa ou fim, no havendo em si ou fora de si algo de fixo e categorizvel, o que

    mostra o vazio de todas as designaes intelectuais. O que no impede que seja na mesma

    realidade nica, omni-envolvente como o espao, que se manifestem os mltiplos

    26 Cf. Longchenpa,La Libert Naturelle de lEsprit, pp.301-304.27 Cf.Ibid.,pp.304-305 e 312.28 Cf. Paulo A. E. Borges,Metafsica e Teologia da Origem em Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Imprensa

    Nacional-Casa da Moeda (no prelo).

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    sistemas filosficos procedentes do intelecto discriminante, os quais, como todas as

    coisas, igualmente se reunificam e libertam no esprito de despertar da Grande

    Perfeio 29. A libertao das etiquetas mentais, a evaso da gaiola das diferentesfilosofias, acompanha-se da dos estados psicolgicos, reconhecendo-se a

    insubstancialidade das alegrias e penas ou dos altos e baixos da existncia 30.

    A experincia da Grande Perfeio de tudo, desde o incio e desde sempre, o

    desvelamento de todos os fenmenos como a prpria natureza de Buda, cumpre o fito dos

    vrios nveis de ascese budista na exacta medida em que mostra a sua iluso constitutiva.

    Assim, desde os trs veculos da causa, os dois nveis do Hinayana e o Mahayana, aos seis

    veculos da fruio, do Tantrayana, externos e internos, incluindo o prprio Atiyoga onde

    oDzogchen emerge, se denuncia como todos afinal embaraam a mente imaculada no

    esforo, na realizao, no abandono, na adopo ou ainda, no caso do Atiyoga, no apego

    ao inconcebvel 31. que, se o esprito de despertar a prpria essncia do espao, ou

    seja, se a Iluminao natural e omni-englobante, no h sequer lugar para que alteridade

    alguma se lhe acrescente ou a diminua. Onde se encontra ento aquele que percorre a via

    do despertar ? 32 - interroga Longchenpa, sugerindo que, na sbita assuno e

    reconhecimento, pela mente que julga progredir em direco ao real e verdade, da sua

    inerncia aos mesmos, cessa a fico do Dharma como uma via e da Budeidade como algo aser realizado ou atingido por algum. Contemplao que a essncia mesma da sabedoria

    transcendente, transcendente da prpria noo de haver sabedoria e sua realizao de um

    sujeito, j segundo o Prajna-paramita sutra 33. Todos os desvios e obscurecimentos, dos

    quais resulta a ideia de progresso espiritual, procedem do intelecto que, no abdicando da

    apreenso objectivante, se obstina em olhar a onde no h nada a ver, velando-se

    ilusoriamente a luz prpria, tanto mais quanto assim porfia na zelosa busca da virtude e do

    conhecimento. Sendo a natureza da mente (...) pura desde sempre, sem nada a criar nem

    29 Cf. Longchenpa,La Libert Naturelle de lEsprit, pp.305-306.30 Cf.Ibid., p.305.31 Cf.Ibid.,pp.307-308.32 Cf.Ibid.,p.309.33 Il ny a pas de sagesse, pas de fruit atteindre ou ne pas atteindre Sutra do Corao doConhecimento Transcendente, traduzido do tibetano por Philippe Cornu, in Sotra du Diamant et autresotras de la Voie mdiane, p.89.

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    a dissipar, toda a via pela qual se busque a si mesma afinal um artifcio e um extravio

    onde no pode deixar de se iludir - iludiragora no sentido do fundamental engano que leva

    a procurar pela reflexo e pelo conhecimento objectivante e conceptual, ou pela prpriameditao e prtica espiritual, o que primordial, pura e espontnea presena, sem

    dualidade, atributos ou caractersticas 34.

    Natureza ltima da mente e de todas as coisas, ela o tal qual, Buda primordial e

    Iluminao universal, sem limites nem centro, sem alto nem baixo, sem dicotomias. Ela

    a quinta-essncia de todos os ensinamentos e de todos os Budas, inacessvel por

    qualquer via que no o seu reconhecimento e fruio imediatos, inacessvel por qualquer via

    que o seja, diferindo-a como objecto-objectivo a alcanar. Exerccios ascticos, mtodos e

    tcnicas meditativas, vises, doutrinas, smbolos, palavras e aces so ultimamente

    obstculos se no se dissolverem na experincia, sem esperana nem temor, disso que 35. Livre do agir e do fazer o quer que seja, desguarnecido das armas com que se defende de

    ser o que , a mente repousa na frescura desse reconhecimento de que todo o fenmeno

    emergente, exterior ou interior, sujeito ou objecto, a cada instante o incondicionado e

    espontneo jogo de rigpa 36. Sem noes de ganho ou de perda, de bem ou de mal, sem

    nada afirmar ou negar, quebram-se as cadeias da viso, da meditao e da aco, as

    trs instncias da realizao espiritual nos anteriores veculos. Sem distraco nem no-distraco cessam as crispaes da concentrao que porfia em unificar o fluxo ldico das

    manifestaes do Corpo absoluto, reconhecido como a prpria mente natural. Cessando

    todo o esforo e zelo, cessam as causas e os futuros frutos do samsara, ou seja, a

    constituio krmica das existncias condicionadas pelo ilusrio auto-condicionamento da

    mente que ignora a sua perfeio inata e, pelo sucedneo desejo-averso, se extravia no bem

    e no mal, nas absores meditativas e no apego vacuidade, tanto nos mundos inferiores

    como nos ditos superiores do plano do desejo, da forma e do sem forma 37.

    Na concluso deste primeiro captulo d A Liberdade natural da igualdade segundo

    a Grande Perfeio, que diz tratar da libertao dos seres de capacidade superior pelo

    34 Cf. Longchenpa,La Libert Naturelle de lEsprit, pp.309-310.35 Cf.Ibid.,pp.310-311.36 Cf.Ibid.,pp.311-312.37 Cf.Ibid.,p.313.

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    meio da realizao da base, Longchenpa apresenta uma viso absolutamente pura, no

    dual, das aparncias, to desprovida de esforo e elaborao como elas mesmas.

    Mente e aparncias, mente-aparncias e aparncias-mente, nica realidade absolutaimutvel onde inseparavelmente as coisas aparecem como formas variadas, incessantes e

    individualizadas, so o prprio estado da Grande Perfeio natural. Sabedoria incriada e

    omnipenetrante, simples e natural, ela o supremo segredo e reconhec-la a

    proclamao (...) do oceano dos mistrios 38. Segundo a classificao budista dos quatro

    nveis da realidade, da conscincia e, portanto, do prprio ensinamento, oral ou escrito -

    exterior, interior, secreto e alm do secreto - , diramos que o Dzogchen corresponde ao

    ltimo. Alm do secreto no por ser, em si, a mais oculta e sigilosa das doutrinas e prticas,

    mas, exactamente ao contrrio, porque a sua extrema simplicidade e naturalidade se tornam

    o mais difcil de transmitir e de experienciar numa poca onde se confunde profundidade

    com complexidade ou complicao das elaboraes conceptuais e dos estados emocionais,

    ao ponto de se fazer com que o mais evidente surja como o mais hermtico.

    Nesta devoluo da conscincia e da vida inocncia do devir universal, tal o

    infantil jogo de Heraclito 39, ambiguamente retomado por Nietzsche 40, a questo

    permanecer na frescura e intensidade originria da experincia, seja ela qual for, sem lhe

    reagir, desejando-a com apego, rejeitando-a ou sendo-lhe indiferente, isto , sem lhe apor oquer que seja. O que se estende, naturalmente, s prprias formas de a ela reagirmos, ao

    desejo-apego, averso e indiferena, os quais, se no forem por sua vez objecto de

    desejo-apego, averso e indiferena, se forem plenamente contemplados, sem qualquer re-

    aco, sincopando o processo da sua intrmina reproduo, impedindo que se convertam em

    tendncias habituais e inconscientes, ou seja, em impregnaes e impulsos krmicos

    latentes, naturalmente se auto-libertam na nica base e fonte universal, a realidade absoluta.

    Como diz Chgyam Trungpa: Deixemos pois os fenmenos brincarem. Deixemo-los

    ridicularizarem-se por si mesmos 41. Se no imaginarmos que h problemas, se, quando

    imaginarmos que h problemas, no reagirmos reproduzindo o problema continuando a38 Cf.Ibid.,pp.314-315.

    39 Cf. Heraclito, frag. 52 (Diels-Kranz).40 Cf., entre outras passagens, F. Nietzsche, La Volont de Puissance, II, traduo de G. Bianquis, Paris,Gallimard, 1948, liv. III, 458, p.143.

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    imaginar que h solues, o problema a sua prpria auto-dis-soluo. Como se diz: tudo

    como uma serpente cujos ns se desatam por si mesmos 42.

    assim que, conforme sugere a palavra tibetana agro-wa, que designa o acto de ir,de se mover, de existir, mas tambm os seres arrastados pelas iluses nos seis mundos

    samsricos, este sentido negativo da sua errncia parece ser inerente ao facto de se

    imaginarem mt-odos, vias, sentidos e objectivos quando tudo desde sempre e para

    sempre livre dos nossos conceitos de origem, fim, lugar, sentido ou rumo. Mas, sem nos

    refugiarmos do que como o que instantaneamente advem, sem nos reproduzirmos como

    cadveres adiados na memria do passado ou em projectos de futuro, sem nos adiarmos

    mais, seja por medo ou por esperana, seja em nome da moral, da filosofia ou da religio,

    do homem, de Deus ou do Buda, tudo Grande Perfeio. Tudo Grande Perfeio. Que

    alvio !

    41 Cf. Chgyam Trungpa,Folle Sagesse, traduzido do americano por Zno Bianu, seguido de CasseDogme, por Zno Bianu e Patrick Carr, ditions du Seuil, 1993, pp.56-57.42 Aplicando isto, como j referido, aos fenmenos emocionais: Mais un pratiquant Dzogchen, linstant oil se met en colre, ne tente ni de bloquer ni de transformer la passion, mais lobserve sans la juger. Ainsi la

    passion se dissoudra delle-mme dans sa condition naturelle Namkha Norbu Rinpoch,Dzogchen.Ltat dAuto-Perfection, p.55.

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