41
55 5 A VIDA EM CAMPO BELO A vida em Campo Belo (MG) era muito alegre para as crianças, afirma João Cândido, mas éramos muito pobres. Vivia, a ‘Família Silva’, nas proximidades da linha do trem. Nesse período, o denominado ‘distrito da cidade’ de Campo Belo possuía por volta de 16.000 (dezesseis mil habitantes) 12 , e a economia estava baseada no plantio e comércio de café e cereais. Na verdade, a própria linha ferroviária foi construída para atender à demanda do transporte de café, conforme verificamos nas obras que nos foram cedidas pela Fundação Museu e Arquivo Público do Município de Campo Belo – FUMAP, situado naquela cidade, bem como de trabalhos acerca das ferrovias , consultados mais tarde. Ilustração 5.1 Mapa do Município de Campo Belo e suas regiões. Velharias. Notas para a História de Campo Belo. pág.153 1 CARVALHO, Jose Miserani de. Velharias. Notas para a História de Campo Belo, 2ª. edição, Belo Horizonte(MG): Editora Prograf, 1993. 2 Esse número refere-se ao distrito de Campo Belo. Na região o total era de 46.265 habitantes, ai compreendidos os distritos de Campo Belo (distrito da cidade, 16.853 hab.); Candeias (12.851 hab.); Cristais (9.615 hab); Santana do Jacaré (4.076 hab.); e Porto dos Mendes (2.870 hab.).

5 A VIDA EM CAMPO BELO - Portal Mackenzietede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2696/2/Marcia...55 5 A VIDA EM CAMPO BELO A vida em Campo Belo (MG) era muito alegre para as crianças,

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

55

5 A VIDA EM CAMPO BELO

A vida em Campo Belo (MG) era muito alegre para as crianças,

afirma João Cândido, mas éramos muito pobres.

Vivia, a ‘Família Silva’, nas proximidades da linha do trem. Nesse

período, o denominado ‘distrito da cidade’ de Campo Belo possuía por

volta de 16.000 (dezesseis mil habitantes)12, e a economia estava

baseada no plantio e comércio de café e cereais. Na verdade, a própria

linha ferroviária foi construída para atender à demanda do transporte de

café, conforme verificamos nas obras que nos foram cedidas pela

Fundação Museu e Arquivo Público do Município de Campo Belo – FUMAP,

situado naquela cidade, bem como de trabalhos acerca das ferrovias ,

consultados mais tarde.

Ilustração 5.1 Mapa do Município de Campo Belo e suas regiões. Velharias. Notas para a História de Campo Belo. pág.153

1 CARVALHO, Jose Miserani de. Velharias. Notas para a História de Campo Belo, 2ª. edição, Belo Horizonte(MG): Editora Prograf, 1993. 2 Esse número refere-se ao distrito de Campo Belo. Na região o total era de 46.265 habitantes, ai compreendidos os distritos de Campo Belo (distrito da cidade, 16.853 hab.); Candeias (12.851 hab.); Cristais (9.615 hab); Santana do Jacaré (4.076 hab.); e Porto dos Mendes (2.870 hab.).

56

Ilustração 5.2 Agência Chevrolet em Campo Belo. Década de 30. 3

Ilustração 5.3 À espera do Presidente Getúlio Vargas. Estação Ferroviária de Campo Belo. 1931.4

3 CONRADO, Vanessa de Cássia Viegas. A Princesa d’Oeste. Campo Belo e Sua Memória.Belo Horizonte (MG): Editora O Lutador, 2000. Figura n°. 57

4 CONRADO, Vanessa de Cássia Viegas. A Princesa d’Oeste. Campo Belo e Sua Memória.Belo Horizonte (MG): Editora O Lutador, 2000.Figura n° 45.

57

Ilustração 5.4 Avenida João Pinheiro, uma das avenidas principais de Campo Belo em 1935. 5

Ilustração 5. 5 Igreja (Velha) Matriz do Senhor Bom Jesus. Saída da Missa. Campo Belo. Década de 30. 6

Alí, a casa da ‘Família Silva’ era bastante simples, de tijolos, da

olaria próxima, e madeira. Como informaram os ‘Silva’ 7 naquele local

morava a “turma”. “Turma” era o nome que se dava aos empregados da

estrada de ferro. As casas dos trabalhadores da ferrovia ficavam próximas

umas das outras, junto ao terminal dos trens, das oficinas. A roupa era

5 CONRADO, Vanessa de Cássia Viegas. A Princesa d’Oeste. Campo Belo e Sua Memória. Belo Horizonte (MG): Editora O Lutador, 2000.Figura n° 17 6 CONRADO, Vanessa de Cássia Viegas. A Princesa d’Oeste. Campo Belo e Sua Memória. Belo Horizonte (MG): Editora O Lutador, 2000. Figura n° 44 7 Conceição, Efigênia, João e Ilza Jacob em viagem ocorrida em 2006.

58

lavada no Ribeirão8 e havia gado que pastava nos arredores bem como os

animais de criação, galinhas, patos, e porcos. As crianças ajudavam a

mãe nos afazeres domésticos, o que incluía também plantar, escolher

feijão, cuidar da roupa. A área urbana era pequena e o restante do

território da cidade era rural.

Desde 1726, aquela região foi esparsamente ocupada por

comunidades pobres e quilombos. Os quilombos eram formados por

negros forros, mulatos, brancos desvalidos e negros fugidos9. Após a

Abolição, “libertos, mas estigmatizados, e sem meios de sobrevivência,

muitos dos ex-escravos foram absorvidos pelas fazendas, onde sempre

trabalharam (...)” (CONRADO, 2000:42). Portanto, desde essa época

encontramos alí, a cultura negra permeada à cultura local.

Ilustração 5.6 Catadoras de café. Campo Belo. 1936. CONRADO, Vanessa de Cássia Viegas. A Princesa d’Oeste. Campo Belo e Sua Memória. Belo Horizonte (MG): Editora O Lutador, 2000. Figura n° 55.

Na história de Campo Belo e região, encontramos registros das

festividades religiosas e folclóricas tradicionais, de origem afro-brasileira,

como, por exemplo, os “Massambiques” ou “Moçambiques”, “Congados”

8 Ribeirão Vermelho9 CONRADO, Vanessa de Cássia Viegas. A Princesa d’Oeste. Campo Belo e Sua Memória.Belo Horizonte (MG): Editora O Lutador, 2000, pág. 06 e seguintes.

59

ou “Congadas”, a “Festa de Reinado”, a “Festa do Divino”, “Festa de

São Sebastião”, ‘Festas de São João’, e a “Mesa para Nossa Senhora do

Rosário”10.11

Nas Festas de Nossa Senhora do Rosário, a título de exemplo,

salienta Conrado (2000), que era “(...) predominante a participação da

comunidade negra, o sincretismo religioso mesclava elementos de religião

católica e outros da cultura africana, como o ‘toque de caixa’12.

Os festejos católicos e afro-brasileiros remanescem até hoje e

integram o calendário de efemérides da cidade: Festa do Rosário (06 a 15

de agosto); Festa de Nossa Senhora Aparecida (09 a 12 de outubro) Folia

de Reis (24 de dezembro a 06 de janeiro) Festas de Reinado que, desde

1935, realizam-se sem interrupções, e que constam com 17 ternos13 na

cidade de Campo Belo e dois no Porto de Mendes. (CONRADO, 2000:109)

Há em Campo Belo e região, desde o século XVII, Igrejas dedicadas

a santos negros - Nossa Senhora do Rosário, Igreja de São Benedito14-,

grupos de dança africana, como o ‘Moçambique’, freqüentado por João

Cândido para cumprir a promessa feita por sua Mãe, Maria Almeida, ao

São Benedito (patrono da dança) e Nossa Senhora do Rosário, para que o

menino se curasse da bronquite asmática intermitente, como relatado em

sua biografia.

10 Ibid.pág.83. 11 Vide glossário. 12 Vide glossário.13 Ternos:vide glossário. 14 Ibid.pág. 65.

60

Ilustração 5.7 Comboio para A Mesa de Nossa Senhora do Rosário.Porto de Mendes. 1998. CONRADO, Vanessa de Cássia Viegas. A Princesa d’Oeste. Campo Belo e Sua Memória. Belo Horizonte (MG): Editora O Lutador, Figura n° 36.

Ilustração 5. 8 Congado. Irmandade Nossa Senhora do Rosário. Década de 90. CONRADO, Vanessa de Cássia Viegas. A Princesa d’Oeste. Campo Belo e Sua Memória. Belo Horizonte (MG): Editora O Lutador, 2000, Figura n° 49.

61

5.1 TUDO ERA MOTIVO PARA DAR FESTA.

‘Acho que se meus pais não fizessem tanta festa.... Teríamos muito dinheiro. Tudo que tínhamos gastávamos com as festas e convidávamos todos os compadres da vizinhança.’15

Em todos os relatos da Família Silva há referências a festas. Mesmo que não houvesse uma comemoração específica, os Silva faziam da própria reunião familiar uma festa, em torno do fogão. Cantavam, recitavam, dançavam.

Em Campo Belo os festejos locais, principalmente os de origem afro, envolviam a família que participava ativamente. Como mencionado, o Moçambique era uma dessas festas, que, ao mesmo tempo, era “devoção” como disse João Cândido.

5.1.1 Como funcionava o Moçambique?

“Os dançadores eram divididos em grupos de homens e mulheres com trajes iguais: com calças compridas, com guizos16, tipo bolas de gude de lata chamadas de “campainhas” nas duas pernas; camisa branca de mangas compridas até o pulso, com botões normais. Só que as camisas davam a impressão de “saiotes” devido a uma fita amarrada na cintura.

Uma turma usava uma fita vermelha que passava por um dos ombros até a cintura, dali dava a volta no próprio cinto, e fechava do outro lado, com um laço e as pontas caiam para baixo. Cada um com um bastão decorado na mão, na cabeça um casquete vermelho e branco.

Outra turma, também toda de branco, com casquete e tudo mais, somente as fitas mudam para azul colocadas da mesma forma e com campainhas nas pernas. Conforme (as pessoas) dançam, as campainhas emitem sons não muito ardentes, parecendo som de afoxés17 e os caxexes18 dos

15 SILVA, João Candido. Autobiografia. 2007. 16 Guizo.[De or. incerta.]Substantivo masculino.1.Pequena esfera oca de metal, com pequenas aberturas ou furos, que tem dentro um pedaço de metal ou bolinha(s), e que, ao ser agitada, produz som. 17 Afoxé. [Do ior.]Substantivo masculino Bras. BA RJ.1.Cortejo de natureza semi-religiosa e que, no carnaval, desfila cantando e dançando, mas sem se mesclar com as outras manifestações carnavalescas. 2.Rel. Candomblé tido como de nível inferior.3.Rel. Pej. Quimbanda. [Var. pros.: afoxê.]18 Caxexe.[Do quimb. ka- (dim.) + xexe, nome dum pássaro. Substantivo masculino Angol.

62

berimbaus19. Os bastões, todos deviam usar devido às coreografias que iam exibir.

Por outro lado existiam também os músicos que podiam tocar uma caixa, um repique20, sanfona, violão, violino, reco-reco21 e pandeiro; um cantando, e os próprios músicos fazendo o coro ou resposta.

Ilustração 5.9 Guarda do Moçambique, da comunidade de Arturos, Minas Gerais.

As cantigas são sempre referentes aos patronos: São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, sempre depois do Pai, do Filho, e do Espírito Santo, sem dúvida!

Mas nesse tempo existiam as Mirongas22, segredos das magias ou mandingas 23 ... Deixa pra lá!»24

19 Vide Glossário.

20 Repique (também chamado de repinique) é um tambor pequeno com peles em ambos os lados, tocado com uma baqueta em uma das mãos enquanto a outra mão toca diretamente sobre a pele. Criado pelas escolas de samba para repinicar um som mais agudo e freqüentemente ele serve como uma espécie de condutor musical das escolas de samba, anunciando "deixas" para o grupo. Ele é também destacado como instrumento solista, as vezes tocando introduções para sambas ou solando em batucadas. Também é tocado junto com os tamborins em ritmo galopado.

21 Reco-reco. [Voc. onom.] Substantivo masculino. Instrumento de percussão que produz um ruído rascante e intermitente, causado pelo atrito de duas partes separadas, e que, em seu feitio mais conhecido, consiste num gomo de bambu no qual se abrem regos transversais e que se faz soar passando por estes uma varinha ou tala: “Zumbem, zunzunem os tambus e os urucungos, .... gritam estrídulos apitos, troam tambores, reco-recos e timbales” (Martins Fontes, A Dança, p. 91). [Sin.: (bras., santom.) canzá, (bras.) caracaxá, cracaxá, ganzá, querequexé.].

22 Milonga.[Do quimb. milonga, ‘palavras’, pelo esp. plat. milonga.].Substantivo feminino. 3. Bras. Rel. No candomblé e na macumba, feitiço, sortilégio, bruxedo.

63

A função do cortejo folclórico era percorrer determinado itinerário e retornar à sua sede. Neste itinerário (os devotos) levavam as bandeiras, o estandarte dos dois patronos (cada um o seu).

São Benedito sempre na frente com Menino Jesus no colo! No itinerário, muitos devotos montavam na porta de sua residência um altar com a imagem dos patronos e outras, além de uma mesa com bolões e comidas para o grupo que vai passar.

Para isto o terno inteiro fazia o seguinte procedimento: dançavam cantando e fazendo as coreografias com bastões e passos diversos, enquanto isso, os carregadores das bandeiras benziam as casas dos devotos por dentro e por fora, inclusive quintais e criações de galinha etc. Não sei se dancei, mas fui levado várias vezes, chorando ou não.

Além do Moçambique, os Silva participavam de outros festejos,

como mencionou Natália Natalice25. Uma delas, era a Festa de São

Gonçalo, o santo padroeiro dos violeiros comemorado no dia 10 de

janeiro. Todos os anos, o Sr. José Cândido organizava a festa para toda a

vizinhança. Ali os Silva faziam o que os mineiros denominam de

“quitanda”. Quitanda26 naquela região, são biscoitos, bolos, doces,

quitutes.

No mês de junho, tendo em vista que João Cândido melhorou da

bronquite asmática, a família, para pagar as promessas, fazia sempre uma

grande festa, no Dia de São João (24 de junho), quando hasteavam a

23 Mandinga [Do top. Mandinga (África).] Substantivo de dois gêneros .1.Etnôn. Indivíduo dos mandingas, povo de religião predominantemente maometana, que vive na parte norte da África ocidental; mandê: “O Islão já tinha, havia mais de cem anos, boas raízes entre os mandingas”.(Alberto da Costa e Silva, A Enxada e a Lança, p. 304.).Substantivo masculino. 2.Gloss. Língua falada pelos mandingas. V. mandê (3). Substantivo feminino. 3. V. bruxaria (1 e 2). Adjetivo de dois gêneros.4.Pertencente ou relativo a mandinga (1 a 3); mandê: “Esta batalha é apresentada, nas sagas mandingas,como uma peleja entre dois grandes magos.” (Id., ib., p. 303.). 24 SILVA, João Cândido. Autobiografia. São Paulo, 2007. 25 Natalia Natalice da Silva, vg Biografia. 26 Quitanda. Do quimb. kitanda, ‘feira’, ‘venda’.] Substantivo feminino. “Tomar café com quitanda às duas da tarde, jantar às cinco” (Caio de Freitas, Intrusos no Paraíso, p. 5). FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª. Edição. Curitiba: Positivo, 2004. 1 CD-ROM.

64

bandeira do santo, pulavam fogueira, soltavam balões, dançavam e

cantavam a noite inteira, sem falar na grande quantidade de quitutes27 .

O ar bucólico, o cultivo da terra, a presença do trem, das

brincadeiras infantis de “empinar pipa”, “soltar balões”, “as bandeirolas e

as fogueiras” para “festejar São João”, e os demais festejos do interior de

Minas, miscigenados às festas católicas e os cultos afro, ficaram na mais

profunda memória daquelas crianças da ‘Família Silva’.

Tais imagens, como mais tarde veremos, eclodiram das mentes dos

‘Silva’ e transformaram-se em telas, esculturas, colagens, bordados,

bonecos, poesias, batuques, músicas e cantorias.

Ilustração 5.10 Local da antiga casa dos Silva em Campo Belo (MG) próxima à linha do trem. Fotografia do arquivo de João Cândido da Silva (1995).

27 Quitute [Do quimb. kitutu, ‘indigestão’.]Substantivo masculino 1.Angol. Bras. V. petisco (1). 2.Bras. Fig. Meiguices, carinhos, quindins.

65

Ilustração 5.11 Mercearia próxima à linha do trem. Campo Belo. Minas Gerais. Fotografia do acervo da Família Silva (1995).

Ilustração 5.12 Bifurcação da Estrada para seguir à Campo Belo. Foto MRB. 2006.

66

Ilustração 5.13 Olaria de Campo Belo próxima ao local aonde residia a ‘Família Silva’ nos anos 30-40. Foto MRB. 2006.

Ilustração 5.14 Desenho de João Cândido para explicar a localização da casa em que residiam os Silva em Campo Belo, nas imediações da linha do trem e da Olaria. (SILVA, João Cândido. Autobiografia. 15.01.2007).

67

Ilustração 5.15 Estação ferroviária de Campo Belo. Foto MRB. 2006.

Ilustração 5.16 Imagens de Campo Belo. MRB (2006).

68

Ilustração 5.17 Imagens de Campo Belo. MRB (2006).

Na “turma28”, os pais cultivavam uma bela hortaliça. Tinham tudo

que podemos imaginar, de verduras a legumes, de feijão a ervilha,

mandioca, batata doce, batatinha etc., tinha até um pé de articum 29

Criavam galinhas, engordavam os porcos, não muito, não sempre; Os vizinhos ajudavam com a lavagem (resto de comida). Também quando matavam o bicho tinham que mandar, nem que seja um pedacinho para cada família dali, até de quilômetros de distância.

Mas o interessante é que a vasilha que mandavam nunca voltava vazia, sempre tinha retorno agradável! No mínimo doces de fubá fresquinho, lingüiça... Era costume da região mesmo.

28 Turma” era o nome que se dava aos empregados da estrada de ferro. 29 Articum, também chamado de Araticum, é um fruto cor de ferrugem que se assemelha à pinha, embora bem maior. Originário da região do cerrado. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª. Edição. Curitiba: Positivo, 2004. 1 CD-ROM.

69

5.2 O PLANEJAMENTO DA VIAGEM DE MUDANÇA DEFINITIVA DA FAMÍLIA SILVA PARA SÃO PAULO.

O pai, José Cândido, ganhava Cr$ 216,00 (duzentos e dezesseis)30

cruzeiros31 na Rede Mineira de Viação, e tal valor não era suficiente

para a numerosa família. Assim, Maria de Almeida trabalhava, além dos

serviços domésticos de sua própria casa, como lavadeira de muitas

pessoas da região. Também foi ‘ama de leite32’, conforme a própria

narrativa de João Cândido em sua autobiografia. :

Como disse os dois, papai e mamãe orientavam meus irmãos mais velhos - Vicente era o mais desinibido, atirado, enfim sabido – a catar esterco de animais, moê-los, ensacar e vender na cidade, e ele assim procedia ajudando com dinheiro em casa.

Benedita33 tomava conta da gente, dos menores, de modo que cada um tinha uma obrigação diária. Contudo, mamãe muitas vezes amamentou filhos de suas amigas ali nessa vila.

Nas visitas que meus pais recebiam, um pessoal mineiro que morava em São Paulo também aparecia. Eles estavam convencendo meus pais a mudar definitivamente para São Paulo. A questão é que meu pai alimentava um sonho de arrendar terras tornando-se um agricultor por conta própria. Para isso pretendia embrenhar-se pelos sertões mineiros.

E mamãe como filha de Sorocaba, (SP) e consciente do sabor de cidade grande e suas vantagens culturais; optava de corpo e alma por São Paulo, acabou por ganhar a teima.

Daí começaram ambos a estudar a maneira mais fácil de vir definitivamente para São Paulo. Eis que no correr dos dias o governo brasileiro, acho que foi Getulio Vargas, abriu uma anistia sobre viagens: abatia ou doava passagens a quem pretendesse viajar34.

Minha mãe, com suas lavagens de roupa, havia guardado algum (dinheiro). Decidiu rapidamente arranjar as malas e tratar

30 Correspondente a aproximadamente um salário mínimo. Disponível em : http://www.fructal.com.br Acesso em 27 de julho de 2007. 31 Maria Almeida da Silva: a arte não mostra idade. Matéria de Jornal não identificado, sem data.onde Maria de Almeida discorre sobre a sua vida e de sua família. 32 Ama-De-Leite Substantivo feminino 1.Mulher que amamenta criança alheia; ama, babá, criadeira, mamã, mãe-de-leite. [Pl.: amas-de-leite.] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª. Edição. Curitiba: Positivo, 2004. 1 CD-ROM

33 Filha do primeiro casamento de José Cândido. 34 Período em que se realizou o Congresso Eucarístico em São Paulo.

70

da partida. Sentaram os dois e combinaram o seguinte: ela partiria conosco, os filhos, e ele permaneceria para acertar as contas com a Ferrovia35 e outros negócios pendentes.

Assim foi feito, o povo mineiro que residia em São Paulo nos esperaria no Largo Sagrado Coração de Jesus e nos hospedaria onde residiam no bairro da Casa Verde.36

35 Maria Almeida da Silva: a arte não mostra idade. Matéria de Jornal não identificado, sem data. Na matéria em seu depoimento, Maria de Almeida narra que veio com os filhos para São Paulo. O marido, José Cândido, teve que ir a Belo Horizonte para pedir autorização para sair da empresa Rede Mineira de Viação.36 SILVA, João Cândido. Autobiografia. 2007.

71

6 A MUDANÇA DE CAMPO BELO PARA SÃO PAULO.

‘Nosso pai tinha espírito de “bicho do mato”, «da roça»... Nossa mãe já tinha o espírito mais evoluído, tinha sonhos. Sempre foi muito ambiciosa e queria o bem estar da família. Meu pai queria se embrenhar pelo sertão, ser do mato, plantar, criar, ser fazendeiro talvez... Às vezes eu me pergunto se tivéssemos ficado lá (em Campo Belo) se seríamos fazendeiros ou peões... ’ (risos)

João Cândido. (João Cândido da Silva)

Os Silva, na época cinco irmãos1, contam que deixaram a sua cidade

natal, Campo Belo, em Minas Gerais, e vieram para São Paulo junto com a

mãe no inicio da década de 40.

Lembra-se, João Cândido que com seus nove anos ‘deixaram tudo’,

atrás de um sonho, atrás das riquezas, e vieram de trem, para a cidade

de São Paulo. Para as crianças aquilo foi ‘uma aventura’, exclamou João.

Após mais de um dia de viagem, chegamos.

Era a época do Congresso Eucarístico, muita garoa, prédios fantásticos e bondes “adoidado”, que emitiam um cheiro de fio queimado e um som cantado com pessoas penduradas. Outros bondes eram totalmente fechados.

Descemos na ‘estação do Brás’’2, e fomos a pé, até o Largo Coração de Jesus3, no mesmo bairro.

1 A mãe Maria de Almeida, e os irmãos: Maria Auxiliadora, Conceição Silva, Vicente de Paulo Silva, Efigênia Rosaria, e Benedito da Silva.

2 Nessa época tratava-se da chamada São Paulo Railway, SPR ou popularmente "Ingleza" (1867-1946), posterior E. F. Santos-Jundiaí (1946-1975), RFFSA (1975-1994), e atual CPTM (1994-2007). Foi a primeira estrada de ferro construída em solo paulista. Construída entre 1862 e 1867 por investidores ingleses, tinha como um de seus maiores acionistas o Barão de Mauá. Ligando Jundiaí a Santos, transportou durante muito anos - até a década de 30, quando a Sorocabana abriu a Mairinque-Santos - o café e outras mercadorias, além de passageiros de forma monopolística do interior para o porto, sendo um verdadeiro funil que atravessava a cidade de São Paulo de norte a sul. Em 1946, com o final da concessão governamental, passou a pertencer à União sob o nome de E. F. Santos-Jundiaí (EFSJ). O nome pegou e é usado até hoje, embora nos anos 70 tenha passado a pertencer à REFESA, e, em 1997, tenha sido entregue à concessionária MRS, que hoje a controla. O tráfego de passageiros de longa distância terminou em 1997, mas o transporte entre Jundiaí e

72

Ao chegarmos ao largo propriamente dito e combinado, mamãe nos acomodou sentados nas trouxas de roupas e malas. Ela sentou num banco de cimento existente ali.

Este foi o local combinado para encontrarem os amigos de família e

ao mesmo tempo compadres, que viriam buscá-los. Tudo era

absolutamente novo para aquelas crianças do interior. Cansaço, fome,

medo, curiosidade, todas as emoções se misturavam. A mãe demonstrava

coragem e segurança. Chegaram à tarde.

Ilustração 6.1 Estação do Brás. sem data.São Paulo (SP) . Foto do acervo do DPH; SP. Cedida por Wanderley Duck. Disponível em <http://www.estacoesferroviarias.com.br/b/braz.htm>Acesso aos 10 de maio de 2007.

Paranapiacaba, continua até hoje com as TUES dos trens metropolitanos. A estação do Braz foi inaugurada em 1867, com a linha, para atender o bairro do mesmo nome. Ela é anterior à estação Roosevelt, também chamada originalmente de Braz, na linha da Central do Brasil, aliás, seu ponto terminal. As linhas da SPR e da Central se juntavam ali, o que ainda hoje ocorre. Em 1978, foi aberta a estação Brás (agora com s) do metrô, próxima às duas, e aos poucos as três estações foram se fundindo. Hoje praticamente não há diferença entre as estações Brás da Santos-Jundiaí ea Roosevelt, as plataformas são comuns, e se entra ou pela Roosevelt, no largo da Concórdia, ou pela estação Brás do metrô, onde se cruza as linhas por passarelas e se atinge as linhas da CPTM, as quais a estação Brás e a Roosevelt hoje atendem. O prédio da estação Brás da antiga SPR está hoje tombado pelo Condephaat. http://www.estacoesferroviarias.com.br/b/braz.htm

3

73

Ilustração 6.2 Estação do Brás. sem data.São Paulo (SP) . Foto do acervo do DPH. SP.Disponível em <http://www.estacoesferroviarias.com.br/b/braz.htm> , Acesso aos 10 de maio de 2007.

Mas o tempo foi passando, o dia foi escurecendo, e todos

ficaram sentados nos bancos de jardim, próximos a um ponto de táxi,

para esperar o Sr. Geraldo Herculino, que havia combinado tudo com a

‘nossa mãe’ diz João. - Demorou muito tempo para virem nos buscar. As

pessoas do Largo Coração de Jesus passavam, e viam aquelas crianças ali

com frio e com fome.

Começou a noite e um dos taxistas ficou com pena de ver aqueles meninos ali sonolentos e com frio. Comprou uma ‘bengala’4 colocou mortadela, repartiu, e distribuiu a todos. E o Sr. Herculino não aparecia... Longas horas se passaram e as pessoas começaram a se preocupar com o quadro: mamãe com crianças pequenas, de colo mesmo!5

Depois de um tempo, duas mulheres se aproximaram. Após tomarem conhecimento de que esperávamos o conterrâneo da minha mãe, ofereceram para que dormíssemos um pouco na casa aonde iriam fazer uma festa. Eram mulheres de programa, como se diz hoje, enfeitadas para arranjar parceiros. Levaram-nos para uma

4 Bengala. Reg. (São Paulo) Pão alongado mais fino que o filão. MICHAELIS (1998:317) ou filão. 5 SILVA, João Cândido. Autobiografia. São Paulo, SP. 2007.

74

casa, ali perto, e me lembro que ficamos debaixo de uma escada, um tipo de porão da casa, aonde dormimos. Ali se via todo o movimento, os namoros, o sobe e desce de homens e mulheres, muita comida e bebida. As duas mulheres que nos convidaram aconselharam a minha mãe para que não deixasse as crianças olharem as coisas que estavam acontecendo. Esta noite aconteceu um baile no recinto e nos ficamos encolhidinhos embaixo da escada existente na sala, lembro-me que tomamos café.

Minha mãe, a Dna. Maria de Almeida seguiu a orientação, mas “a gente espiava”.

Finalmente nossa mãe veio avisar que o Sr. José Inácio havia chegado. Veio nos buscar em um Chevrolet preto, 1941, e nos levou para o bairro da Casa Verde6.Passamos pelo Rio Tietê, por uma ponte de madeira7, e chegamos à casa desses amigos que prometeram nos hospedar até que nossa mãe conseguisse trabalho. Era a ‘Vila de Zé Inácio’.

Ilustração 6.3 Imagens da Oficina de São José na Casa Verde após restauro e tombamento. Anexo à Casa Sede da Chácara dos Padres Beneditinos onde habitavam os Silva na década de 40, recém chegados e Minas Gerais.8

José Inácio, além de alugar casas na viela, era sócio de ‘Juca

Leiteiro’. E os dois entregavam leite de charrete.

6 Bairro da Zona Norte de São Paulo. 7 A ponte foi substituída por uma de concreto em 1954 segundo informes da Prefeitura de São Paulo. Disponível em: <http://www.virtuabairro.com.br/3.html› Acesso aos 06 de julho de 2007. 8 Disponível em: <http://www.virtuabairro.com.br/3.html› Acesso aos 06 de julho de 2007.

75

A viela do ‘Zé Inácio’ ficava vizinha à ‘Chácara dos Padres’, que

depois passou a chamar-se Jardim São Bento9.

- Fomos morar “de favor” na casa desse pessoal que minha família conheceu em Minas. Conheceram nas lavouras. A família do ‘Zé Inácio’ veio para São Paulo primeiro. Tinham espírito de negociantes. Vendiam ‘quitutes’, ‘pão-de-ló’10...Quando iam a Minas contavam “mil maravilhas” de São Paulo. Por isso que minha mãe se animou em mudar de lá, para cá. Nosso pai tinha espírito de “bicho do mato”, “da roça”... Nossa mãe já tinha o espírito mais evoluído, tinha sonhos. Sempre foi muito ambiciosa e queria o bem estar da família. Meu pai queria se embrenhar pelo sertão, ser do mato, plantar, criar, ser fazendeiro talvez...

Às vezes eu me pergunto (João Cândido) se tivéssemos ficado lá (em Campo Belo) se seríamos fazendeiros ou peões... (risos)

Imagino a frustração da minha mãe ao viver em São Paulo, pois ficamos envolvidos em trabalhos braçais. O ordenado do meu pai, quando veio mais tarde para cá, era muito pouco. Então ele achava que as crianças deveriam parar de estudar e ajudar. Foi o que aconteceu. Vicente e Sebastião foram trabalhar como engraxates na Estação da Luz, e mais tarde trabalharam nos portos de areia no Bairro do Limão.Maria Auxiliadora trabalhou em casas de família e ajudava a minha mãe com a costura e bordados que fazia para uma confecção do Bom Retiro... 11

Os padres, que eram vizinhos da viela, distribuíam o ‘pão de Santo

Antonio’ e ‘soro com açúcar’ para as crianças, o que já ajudava na

alimentação. Mas, logo Dna. Maria de Almeida arranjou uma cesta e

9 Este bairro surgiu com esse nome na década de 50. Foi doado ao Município de São Paulo em 1948, pertencente até esse ano à Ordem dos Beneditinos que produziam nesse sitio legumes e verduras para suprir o Mosteiro de São Bento ou Abadia Nossa Senhora de Assunção. A casa e a Oficina de São José, hoje pertencem ao DPH - Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo, e foram tombadas pelo IPHAN - Instituto Histórico e Artístico Nacional. O local na época em que a ‘Família Silva ‘ mudou-se para a região, servia para as atividades desportivas dos alunos da Escola do atual Mosteiro de São Bento, no centro da cidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.virtuabairro.com.br/3.html› Acesso aos 06 de julho de 2007.

10 Bolo muito leve e fofo, feito de farinha de trigo, ovos e açúcar. Buarque de Holanda, Aurélio. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Ferreira. 3ª. Ed.Curitiba: Positivo, 2004.11 SILVA, João Cândido. Autobiografia. São Paulo, SP. 2007.

76

começou a vender ‘pão-de-ló´ para ganhar a vida... Mais tarde começou a

bordar e fazer bonecas de pano... e finalmente, passou a expor na Praça

da República e no Embu das Artes, e seguiu a sua carreira artística.

- Nossa ansiedade (das crianças) era que nosso pai chegasse logo. Ele ficou um tempo ainda, em Campo Belo, para acertar as contas com a Companhia de Estrada de Ferro 12, pagar as dívidas, e vender objetos que não ia trazer para São Paulo. Máquina de costura... e outras coisas da casa.

Ilustração 6.4 Casa sede da Chácara dos Padres. DPH. 2005 (Imóvel vizinho à ‘Vila de José Inácio’, constante da narrativa de João Cândido)

Vicente (o segundo irmão por ordem de idade), principalmente, era

o braço direito da mãe, Dna. Maria de Almeida.

- Acho que veio grávida de Minas Gerais. Logo que chegamos a São Paulo ela ficou doente, foi para o hospital, e quem cuidava de nós todos em casa, era o Vicente, que lavava roupa e tudo o mais. Era o mais velho.

Tudo por ali, no bairro, era estrada de terra e a ponte da Casa Verde era ainda de madeira. O tempo foi passando e a saudade de papai aumentando. O pessoal que nos incentivou a vir e nos abrigava, também estava tratando de arranjar emprego na Prefeitura Municipal de São Paulo para meu pai logo que ele chegasse na capital.

12 Cia. de Estrada de Ferro Oeste de Minas.

77

Este local onde estávamos morando, ficava à esquerda da Rua Ouro Grosso saindo da Brás Leme. No lado contrário, a aproximadamente 300 metro,s estava o Rio Tietê, com sua escandalosa ponte de Madeira na época, pois quando passavam veículos, suas madeiras faziam barulhos; por ali trafegavam os bondes que subiam até a igreja da Casa Verde pela Rua Inhaúma, hoje Ceza Castglone ou rua dos Bancos. Faziam o balão logo em cima, e retornavam pelo mesmo caminho até a ponte de novo e daí, para o centro.

No Rio Tietê passavam remadores pertencentes ao Parque Tietê, ou seja, Clube de Regatas Tietê e de outros clubes, Clube Floresta, hoje Espéria.

Fomos curtindo fome, falta de calor humano de familiares, devido a fatores emocionais, e preocupações da ausência de papai,...

Certo dia vimos, de onde estávamos, ele chegando, todo de brim branco, acompanhado de uma carroça. Alegria Total!

José Cândido (Pai) era trabalhador braçal em Campo Belo, pois que

trabalhava na ‘estrada de ferro’ assentando dormentes. Quando veio a

São Paulo, passou a trabalhar nas Dragas do Rio Tietê, «emendando os

tubos», trabalho que Vicente e Sebastião também fizeram, segundo os

depoimentos colhidos. A família era muito grande. E todos precisavam

trabalhar.

O Interessante é que já haviam lhe arranjado emprego na Prefeitura, portanto nem sequer tomou fôlego e já foi, dois dias depois, assumir ou dar entrada com os documentos etc.

A Família Silva foi, pouco a pouco, fazendo amizades no local e todos

se empregaram de uma forma ou de outra, para o seu sustento: desde

serviços públicos (nas dragas do Tietê), até serviços autônomos de

doméstica, bordado, porto de areia, dentre outros.

O outro meio de vida era que, devido à guerra, o ferro velho comprava de tudo, até retalho de pneus, mangueira

78

velha, qualquer tipo de lata, arame de ferro, de cobre, alumínio, chumbo, etc.

Existia ali o aterro feito pela draga que, cavando, encontrava latas, pneus e vários tipos de metais. Nós fazíamos este trabalho por algum tempo e vendíamos tudo depois!

O contato com diversos tipos de materiais, somado à necessidade de

subsistência, talvez tenha contribuído para que os Silva tivessem aguçado

o seu lado criativo. Para tudo que viam, encontravam aplicação. Vicente

Paulo começou a esculpir em pequenos pedaços de madeira, o que Maria

de Almeida também fazia. As técnicas de bordado e rendas usadas para

os trabalhos encomendados nas confecções do Bom Retiro, mais tarde

foram aplicadas nos quadros de Maria Auxiliadora. Os carvões de

churrasco, a cerâmica da olaria... os materiais, de acordo com a intuição

de cada qual passou a reger os Silvas nas suas artes.

79

7 POR QUE NÄIF?

Disseram que sou “naïf”, não tenho a culpa.

Ivonaldo1

Pietro Maria Bardi, além ter elaborado a obra biográfica, sobre a

pintora Maria Auxiliadora, como veremos na biografia desta2, realizou

duas mostras de arte naïf: A primeira, coletiva, “Festa de Cores”, em

1975, e a segunda, individual,3 em 1984, ambas no MASP.

A primeira mostra suscitou grande polêmica, pelo fato do MASP ter

uma exposição de artistas naïfs.

Transcrevemos, a seguir, um trecho de entrevista de JOS LUYTEN4 à

Folha de São Paulo – caderno Folha Ilustrada, Artes Visuais, datado de 6

de julho de 1975:

Artes Visuais:

«Não acha um exagero, o fato de o maior museu de São Paulo apresentar em seu salão nobre, uma coletiva de artistas primitivos»?

JOS LUYTEN:Bem. Segundo o próprio diretor do MASP, o Prof.

Pietro Maria Bardi, quando foi convidado a selecionar os representantes brasileiros na Bienal de Veneza em 1966, incluiu, além de Arthur Piza, Sérgio Camargo e Wesley Duke Lee, os «‘Primitivos» Agostinho Batista de Freitas e José Antonio da Silva.

A razão disso foi simplesmente mostrar ao mundo o que estava fazendo no Brasil com referência às Artes Plásticas.

1 Exclamação de Ivonaldo, artista plástico naïf, em entrevista na Sala Pretérito Perfeito.São Paulo, SP. 2oo7. 2 Vide biografia de Maria Auxiliadora da Silva. 3 Vide biografia de Maria Auxiliadora da Silva.4 JOS LUYTEN, critico de arte, Professor da ECA-USP.

80

O fato de em 1975 o museu de Arte de São Paulo apresentar uma coletiva de artistas ingênuos, conceituados no Brasil, obedece ao mesmo pensamento: mostrar ao espectador brasileiro o que se está fazendo em seu próprio país. Eu não tenho dúvida alguma de que os nossos bons artistas ingênuos não envergonham de maneira alguma o ambiente artístico nacional. Até pelo contrário, é muitas vezes preferível vê-los, do que os que se limitam a imitar tendências estrangeiras”.

Na realidade, o professor Jos Luyten , há mais de trinta anos atrás,

queria demonstrar que , de alguma forma os brasileiros precisavam

reconhecer a sua própria arte.

No mesmo sentido, Jorge Amado, ao prefaciar o catalogo,na exposição de Miranda diz:

Sou daqueles que acham que a única pintura - falo de pintura, não de gravura e desenho – brasileira que possui caráter realmente nacional e se expressa numa forma decorrente de nossa cultura mestiça é a pintura naïf, ingênua, primitiva - cada um escolha a designação que lhe pareça melhor. O resto – peço perdão, mas é verdade - é a Escola de Paris transposta para a circunstância brasileira. Não temos, como a têm os mexicanos, uma escola nacional de pintura, somos cópia, por vezes excelente, por vezes com a marca da cor e do sentimento brasileiros, mas cópia da Escola de Paris.

Excetuam-se os primitivos, e primitivos são alguns dos maiores mestres brasileiros, se bem se oculte tal característica como coisa feia, menor, limitadora. Sei de artistas primitivos brasileiros que se sentem profundamente ofendidos se alguém chama a atenção para a qualidade naïf de sua pintura.

Que se há de fazer? O mundo é assim, feito de vaidades tolas, de equívocos culturais. Felizmente existem pessoas como este colecionador Lucien Finkelstein, capazes de perceber e de se apaixonar pela criação extraordinária dos primitivos brasileiros.5

5 FINKELSTEIN, Lucien. Brasil Naïf - Arte Naïf: Testemunho e Patrimônio da Humanidade. Rio de Janeiro: Novas Direções, 2001.

81

Carlos Cavalcanti (1981) ao escrever sobre o tema destaca que:

(...) no seu desenvolvimento estilístico, a pintura brasileira sofreu inesperado e rápido desvio com a chegada da missão artística francesa de 1816, mandada por Dom João VI, que tinha por finalidade instalar no País o ensino oficial de Artes e Ofícios. (...) Na realidade , embora sentida e executada no Brasil, (a pintura) não era distintivamente brasileira. Era européia, importada, como quase tudo que nós utilizávamos na estreita dependência em que vivíamos da Europa..

O mesmo autor destaca que não será o conteúdo, tema ou assunto

que dará autenticidade brasileira a uma pintura. O simples fato de pintar

uma baiana, um sambista ou um papagaio, não quer dizer que o pintor seja

autenticamente brasileiro. (...) é necessário que brasileira seja a forma,isto

é o sentimento ou caráter (...) posto nas linhas e nas cores.

Carlos Gomes apesar de sua temática, os índios Ceci e Peri em o

Guarani, é um músico italiano, como Alberto Nepomuceno é francês. Ambos

possuem conteúdos brasileiros e formas européias. (CAVALCANTI, 1981)

Ainda que filiados aos europeus, como os acadêmicos, os pintores,

vindos da Semana de Arte Moderna de 22, exerceram influência que não se

deve subestimar. Podemos afirmar que a base paulistana rompeu com a

tradição acadêmica, mas continuou na trilha européia. Verifica-se que os

moldes de pintura são cubistas (Picasso6)7, isto é, utilizam estratégias de

imagem também européias e africanas. Quando mencionamos a “quebra

das tradições acadêmicas, não significa que tenhamos posicionamento

contrario às artes européias, artes acadêmicas pois estas constituem um

patrimônio estético riquíssimo .Mas, ao contrario procuramos conduzir o

olhar para o que temos de genuíno em termos de arte em nosso próprio

território com a nossa gente.

6 As Senhoritas de Avignon (19o7), por exemplo, onde os traços e os corpos violentamente disformes têm, segundo JANSON (1996:365), todas as características bárbaras da arte primitiva.7 Outro momento importante data de 19o7, quando Picasso deu atenção à arte negra e a arte polinésica, embora se ativesse antes a seus aspectos plásticos formais do que ao espírito do seu conteúdo.FROTA (1978)

82

Na seqüência da Semana de 22, convém destacar, a existência de

mais dois momentos importantes da modernidade brasileira que se

materializaram no Salão Revolucionário de 1931, no Rio de Janeiro, e a

Exposição de Arte Moderna, em 1944, em Belo Horizonte (esta última

exposta em São Paulo no MAB-FAAP).8

Denise Mattar (2oo6), curadora da mostra “O Olhar Modernista de

JK”, dá ênfase ao movimento entre as décadas de 3o e 4o:

Nessa época a tensão política vinda de fatos como a ascensão do nazismo e do fascismo na Europa, a quebra da bolsa de Nova Iorque, a recessão americana e, finalmente a longa Segunda Guerra Mundial se refletiu na arte através de uma produção mais comedida, um momento conhecido internacionalmente como volta à ordem. Fazendo eco às preocupações políticas, a arte voltara-se para uma temática social. O país não era mais o Brasil idealizado dos primeiros modernistas, era um Brasil real.

Surge, então o Grupo Santa Helena (1933-1934), cujos participantes

tem em comum o fato de serem artistas de origem mais humilde,

geralmente filhos de imigrantes. Esses artistas não se conduziam pelas

regras acadêmicas valorizando os processos artesanais de pintura.

“Forçados a dividir o tempo entre o trabalho de ganha pão e sua paixão pela pintura, seu engajamento político é de outra ordem: é uma luta pela profissão, o que subentende uma luta pela classe social” (BRIL ,1984)9

O cenário político e econômico de época contemplavam a crise do

café, que levou a aristocracia rural à falência (em São Paulo). Com a

Revolução de 1932 e a ascensão de Getulio Vargas, a cidade vivia

momentos muito difíceis. O Santa Helena tornou-se o núcleo da Família

Artística Paulista, que realizou mostras em 1937,1939 e 1940.

8 O Olhar Modernista de JK. Salão Cultural da FAAP, 11 de marco a 23 de abril de 2oo6. Curadoria Denise Mattar. São Paulo: FAAP, 2oo6. 9 BRIL, Alice. Mario Zanini e seu tempo. São Paulo: Perspectiva, 1984, pág 5o, Apud MATTAR (2oo6)

83

Em 1944 participaram os principais artistas desses dois grupos Volpi,

Mario Zanini, Quirino Silva10, dentre outros. Os temas desses grupos eram

paisagens de subúrbio, pintadas ao ar livre, naturezas-mortas e retratos de

pessoas do povo, vistas de maneira lírica, um pouco estilizada e, às vezes

tocando o cubismo, o qual possui raízes européias e também africanas.

Portanto , ainda não propriamente arte genuína brasileira.

Fizemos esse intróito, para demonstrar que a arte, denominada

ingênua (naïf) por alguns, e primitiva, para outros, no sentido de colocar

determinados artistas, não acadêmicos, ou não europeizados, dentro de um

rótulo ou categoria, talvez constitua, o maior índice de brasilidade que temos

como bem destaca CAVALCANTI (1981).

Talvez esteja nas obras desses artistas, populares, naïfs, de arte

ingênua, primitivos, ínsitos11, liminares12, periféricos ou

marginais13,ou ainda intuitivos14 não importa como se queira chamá-los, as

verdadeiras características do Brasil: como vemos em José Antonio da Silva,

por exemplo, com seus terreiros e galinhas; em Heitor dos Prazeres, com

suas danças; em Cardosinho; em Chico da Silva; em Miranda;e na Família

Silva, objeto de nossas indagações que ensejaram a presente pesquisa.

Para que pudéssemos adentrar no universo naïf, buscamos nos

diferentes autores os principais conceitos de cultura popular e cultura

dominante, procuramos diferenciar arte de artesanato, e também entender

10 Quirino da Silva (Rio de Janeiro, 1897 — São Paulo, 1981) foi um crítico de arte, pintor, escultor, desenhista, ceramista, gravador brasileiro. (1897 - 1981). Escreveu sobre os trabalhosdos primitivistas da Praça da República em matéria publicada em 1969: Quirino da Silva.“4Primitivistas”. Diário de Noticias (sem data) Matéria que noticia a mostra na Galeria KLM dos artistas: Izabel dos Santos, Ivonaldo Veloso de Melo, Maria Auxiliadora da Silva e Paulo Wladmir, ocorrida em 1969.10

11 Do latim insitus, inato. 12 FROTA, Lélia Coelho. Mitopoética de Artistas Brasileiros.São Paulo:FUNARTE,1978. 13 (...) Poderíamos, efetivamente, qualificá-lo como um artista marginal, atendendo à definição de Everett V. Stonequist: "individuo que por meio de migração, educação, casamento ou outras influências deixa um grupo social ou cultura, sem realizar um ajustamento satisfat6rio a outro, encontrando-se à margem de ambos e não estando integrado em nenhum". Stonequist,Everett V. apud FROTA, Lélia Coelho,1975.Pág.o3.

14 ‘Intuitivos’ foi o termo utilizado por Sebastião Cândido em sua entrevista, ao se referir à arte de seus irmãos e da mãe.

84

as diferentes terminologias aplicadas aos trabalhos dos artistas da Família

Silva, objeto de nosso estudo. Para uns os Silva são primitivos, para outros

sem técnica, populares, autodidatas... as suas artes muitas vezes

incompreendida, como se fosse repetitiva, ou “não evoluída”.

Desde autores como Darcy Ribeiro, que aborda a deculturação do

negro15 até CAVALCANTI (1981) e ZANINI (1983) que explicam o

surgimento das artesanias, os conceitos de arte e artesanato, arte

popular, näif, dentre outros, foram objeto de nosso estudo para tentar

qualificar e situar os “Silva” dentro do “sistema da arte”.

7.1 ARTE

Arte (do latim ars, significando técnica ou habilidade) normalmente

é entendida como a atividade ligada a manifestações de ordem estética

por parte do ser humano.

Para o homem grego a arte se presentificava na habilidade do fazer,

na tekné, o que lhe garantia um principio epifânico de totalidades entre

si e o homem, pois que a transcendência da arte deveria estar em cada

realizar empírico humano(ANTHONIO e SILVA,2005:152).

15 RIBEIRO, Darcy. Os brasileiros. Livro I - Teoria do Brasil, 1972. Disponível em <http://www.academia.org.br> . Acesso em 27 de julho de 2oo6. “O negro saía, assim, do desenraizamento de sua própria tradição - através da deculturação - para aculturar-se num corpo de compreensões co-participadas, de técnicas bem definidas de provimento da subsistência, de crenças e de valores de uma etnia embrionária. Ali onde, ao contrário, faltaram essas protocélulas étnicas, o escravo se encontrou só diante do capataz e do senhor. Não podendo entender-se com seus companheiros, tomados de outras tribos, teve de apelar ao mais fundo de sua humanidade para conservar-se humano, na condição de besta de trabalho a que fora reduzido. Nestas circunstâncias, ao ser deculturado, só aprendia a falar boçalmente a língua do amo e a produzir, segundo técnicas inteiramente novas para ele, exibindo, por isso, uma infantilidade que parecia corresponder ao seu primitivismo, mas que só exprimia as terríveis condições em que vivia, como carvão humano das lavouras e das minas”.

85

Para Shiller16, a especialização constante do mundo objetivo fez desaparecer o senso de sacralidade antes impresso no viver comum, como entendia a habilidade para a realização de coisas, que tanto faz regenerar sentimentos adormecidos no homem, pondo-o como instrumento estético em conjunção do geral e do particular, entre o transitório e o permanente, entre o físico e o metafísico. Equilibrando antagonismos com a sabia inflexão dos pinceis, da voz que glorifica o som, das mãos que escrevem églogas e dos cinzéis que da pedra bruta fazem uma representação sensível, o artista demonstra, criativamente a força da Estética na conformação da nobreza do caráter, porque razão e sensibilidade são o substrato do fazer artístico , na criação e na formulação da obra de arte.

Diante de tamanha grandeza que constitui a arte nos sentimos

absolutamente prostrados diante de sua magnitude

A definição de arte, no entanto, é fruto de um processo sócio-

cultural e depende do momento histórico em questão, variando bastante

ao longo do tempo. Originalmente, a arte poderia ser entendida como o

produto ou processo em que conhecimento é usado para realizar

determinadas habilidades. Esse é o sentido usado em termos como "artes

marciais". No sentido moderno, também podemos incluir o termo arte

como a atividade artística ou o produto da atividade artística.

Jorge Coli (1995) ressalta como é difícil delimitar a linha que separa

os objetos artísticos dos não artísticos. Possui limites imprecisos.

Comenta o autor que “se não podemos encontrar critérios a partir do

interior mesmo da noção da obra de arte, talvez possamos descobri-los

fora dela”.

E prossegue: nossa cultura possui instrumentos específicos. Um

deles é o discurso sobre o objeto artístico, ao qual reconhecemos

competência à autoridade.

Esse discurso é o que proferem o crítico, o historiador

16 Apud ANTHONIO e SILVA, Friedrich Von Shiller e a Educação Estética do Homem. In:Encontros Estéticos.(Coletânea de Textos). São Paulo: Conjunto Cultural da Caixa,2005.

86

da arte, o perito, o conservador de museu. São eles que conferem estatuto da arte ao objeto. Nossa cultura também prevê locais específicos onde a arte pode manifestar-se, quer dizer, locais que também dão estatuto da arte a um objeto; Num museu, numa galeria, sei, de antemão que encontrarei obras de arte. (...) esses locais garantem-me, assim, o “rótulo” arte às coisas que apresentam, enobrecendo-as.

Impossível, portanto definir o que é uma obra de arte ou o o que

não é uma obra de arte, pois são muitas as variáveis que poderão influir

nesse conceito. COLI (1995) menciona Duchamp, para exemplificar essa

dificuldade: ao abrir um livro consagrado vê, entre as suas obras,

conservado em um museu, um sanitário de mictório.

7.2 ARTE POPULAR

Sem dúvida alguma, afirma Finkelstein (2001), a arte naïf deriva da

arte popular. Pode ser considerada descendente da arte popular, por

evolução e mutação naturais.

Porém, dentro da arte popular, apenas uma pequena categoria à parte, um ramo isolado, como os pintores de anúncios ou os pintores de ex-votos, possuem um talento evidente de criadores. Sé a essa ínfima representação da arte popular se poderia, a rigor, outorgar o titulo de antecessores de nossos pintores naïfs modernos. Fora essas exceções, a arte popular se situa no extremo oposto ao da arte naïf.

A arte popular esta ligada à tradição e o artista popular é um

simples depositário da mesma. Trata-se de uma arte regional, com

estilo bem demarcado e submetido a regras e modelos precisos,

transmitidos de geração em geração. Aquele que a exerce é mais

artesão que artista e repete formas e técnicas tais como lhe foram

87

ensinadas.

A arte popular é coletiva, padronizada e geralmente anônima.

Perpetua os usos e costumes de um povo. Por ser também uma arte

utilitária, paulatinamente encontra-se fadada ao desaparecimento. Os

objetos que constituíam a sua originalidade são substituídos pelos

produtos industriais. Assim, se a arte popular é histórica, tradicional,

coletiva, regional, anônima e utilitária, com estilo padronizado, com

modelos herdados e reproduzidos indefinidamente, a arte naïf é o seu

ao contrário: original, personalizada, única.

A arte naïf é essencialmente individual. Não tem estilo próprio, cada pintor é um mundo à parte, com sua maneira toda pessoal de pintar. o artista naïf é um criador nato, tudo é original, dos temas às técnicas. Sua arte não é utilitária. Visa apenas o prazer para si próprio e para os outros. Solitária e isolada de tudo, a arte naïf é um autêntico impulso artístico. 17

Anatole Jakovsky, por sua vez, acredita que entre os artistas

populares haja verdadeiros naïfs18.

Jean Cuisinier, mencionado por FROTA (1978) ao analisar em L'Art

Populaire en France o fenômeno naïf, adverte para o equivoco que essa

denominação de naiÏfs (ingênuos) pode acarretar. Esclarece ele que não

será ingênuo o individuo que apresenta em seu trabalho a boa composição

de um espaço pictórico, povoando-os de signos e de símbolos e

agenciando formas e cores com maestria. Tratar-se-á antes de um

autodidata, com valores mentais e formais diversos dos nossos.

(grifamos)

17 FINKELSTEIN, Lucien. Brasil Naïf - Arte Naïf: Testemunho e Patrimônio da Humanidade. Rio de Janeiro: Novas Direções, 2001.

18 JAKOVSKY,Anatole. Peintre Naïfs – Dictionnaire des Peintres Naïfs du Monde Entier. Suíça/Basel: Basilius Presse, 1976.

88

Parece ser unânime o posicionamento dos autores quanto à arte naïf

pertencer à categoria de cultura popular.

7.3 CULTURA POPULAR

Há uma resistência quando se trata de relacionar e exibir essas criações ao público, que muitas vezes congela as artes populares como pertencentes ao passado, enquanto qualifica a arte alta das elites como contemporânea e/ou projetada para o futuro.

(...) Já as culturas do povo são historicamente desconhecidas. Muitas de suas criações são até denominadas por nós de “primitivas” , como se fossem de grupos tribais distantes no espaço e no tempo das sociedades complexas, urbanas. Precisamos, portanto, estudar com mais regularidade e tornar conhecido um corpus de informações sobre as criações do povo. (FROTA, 2oo5)

A cultura popular, segundo Chauí (1986), caracteriza-se por

"(...) um conjunto disperso de práticas, representações e formas de consciência que possuem lógica própria (o jogo interno do conformismo, do inconformismo e da resistência) distinguindo-se da cultura dominante exatamente por essa lógica de práticas, representações e formas de consciência".

Para Teixeira Coelho (2004) o conceito de cultura popular é, hoje,

extremamente controvertido. As concepções do dedutivismo e do indutivismo

sumarizam, em grande parte, as diversas correntes que discutem o tema:

89

Para os dedutivistas, não há propriamente uma autonomia da cultura popular, subordinada que está à cultura da classe dominante, cujas linhas de força regem a recepção e a criação populares. Para os indutivistas, pelo contrário, a cultura popular é um corpo com características próprias, inerentes às classes subalternas, com uma criatividade específica e um poder de impugnação dos modos culturais prevalentes sobre o qual se fundaria sua resistência específica. (grifamos)

Se para os dedutivistas só se pode conhecer aquilo que é chamado de cultura popular a partir das lentes da culturadominante, para os indutivistas somente é possível apreender a natureza dessa cultura mediante seus próprios depoimentos diretos, expressos em suas obras ou em declarações explícitas de seus produtores.

Entendimentos intermediários buscam apresentar a cultura popular como um conjunto heterogêneo de práticas que se dão no interior de um sistema cultural maior e que se revelam como expressão dos dominados, sob diferentes formas evidenciadoras dos processos pelos quais a cultura dominante é vivida, interiorizada, reproduzida e eventualmente transformada ou simplesmente negada.

Nesta concepção, a cultura popular não se apresenta como uma cultura à parte da cultura erudita ou dominante mas como um modo no interior de outro, com o qual dialoga (ou não) em diferentes comprimentos de onda. Sob este aspecto, a cultura popular não é apenas tradição e folclore—i.e., aqueles modos e formas culturais congelados, que se reproduzem a si mesmos sem variação ou que se mostram como resíduos históricos, como ocasionais monumentos (embora monumentos preservados sejam quase sempre apenas aqueles da cultura dominante ou erudita) — mas uma constelação, se não um sistema, de diferentes perspectivas e produtos culturais cujos traços específicos, se existentes, devem ser procurados caso a caso e não definidos a priorí.

Coelho (2004) ainda esclarece que estas diversas concepções da questão

manifestam-se nas diferentes políticas culturais.Assim algumas verão a

cultura popular como um gueto a ser resguardado contra a cultura

dominante (e, por vezes, contra si mesmo), enquanto outras deixarão livre

o caminho para os modos da indústria cultural eliminarem os bolsões de

cultura popular e outras ainda procurarão, pelo contrário, considerar a dinâmica

cultural em sua totalidade fenomenológica e incentivar a popularização ou

democratização da cultura ou, melhor ainda, o livre trânsito dos sujeitos e

90

objetos culturais em toda sua multiplicidade.

Também pesquisamos acerca da Arte Popular no intuito de verificar as

suas eventuais conexões com a arte naïf.

7.4 ARTESANATO

Apenas para esclarecimento abordamos, a seguir, também o

conceito de artesanato19 o qual é:

(...) tradicionalmente a produção de caráter familiar, na qual o produtor (artesão) possui os meios de produção (sendo o proprietário da oficina e das ferramentas) e trabalha com a família em sua própria casa, realizando todas as etapas da produção, desde o preparo da matéria-prima, até o acabamento final; ou seja não havendo divisão do trabalho ou especialização para a confecção de algum produto. Em algumas situações o artesão tinha junto a si um ajudante ou aprendiz.

Já o denominado artesanato de tradição é uma habilidade

compartilhada por grupos sociais específicos, geralmente de baixo poder

econômico, que transmitem, de geração a geração, uma técnica, e um

repertório determinados. Alguns artesãos são chamados de mestres, e são

estes que repassam o seu saber aos mais jovens, os aprendizes.

Quando o trabalho de um mestre atinge uma identidade própria,

autoral, ele pode ser considerado um artista popular.

Parte substancial desta cultura está representada pelas artes e técnicas. A tecnologia rudimentar procede. Tanto em seu ritmo peculiar de fazer, organizado em trabalho, como na expressão de símbolos. Indicativos de valores estéticos ou significados específicos no contexto cultural, dessas vertentes, cujas matrizes étnicas eram igualmente portadoras de complexa cultura e apreciáveis habilidades motoras. Lidar com a matéria. para transformá-la em utilidades, constitui a essência do artesanato, fenômeno que se estende no tempo e no espaço marcando a vida dos seres humanos em todas as sociedades(ZANINI,1983).

19 ZANINI,Walter,org. História Geral da Arte no Brasil, São Paulo, Instituto Walter Moreira Salles,1983, VOL.II Págs. 1037-1039

91

7.5 ARTES LIMINARES

Lelia Frota (1978) adota a expressão ‘liminar’ para o que

anteriormente classificou de ínsita, isto porque a liminaridade dos artistas

(...) patenteia-se nos dados oferecidos pela sua própria história de vida.Todos provêm de culturas populares, exibindo uma produção artística altamente individualizada, diversas dos padrões de gosto regional em que transcorreu a sua infância, e adolescência. (...) A sua produção artística é adquirida pelas pessoas da norma culta com razoável poder aquisitivo dos grandes centros urbanos. Liminares entre a cultura onde se formaram, e a que consomem a sua arte, num processo de transição enfatizado ainda pelas migrações internas que quase todos realizaram, estes indivíduos permanecem efetivamente marginais, ou periféricos, tanto à norma popular quanta à erudita. Suas produções, altamente individualizadas, de autoria reconhecível à primeira vista, são olhadas com estranheza pela comunidade vicinal a que pertencem. Por outro lado, eles não se ajustam social e culturalmente às elites que apreciam o seu trabalho. Assim, preferimos chamar de liminar, marginal, periférica, àquela produção autodidata que em 1975 denominamos de ínsita (do latim insitus,inato) embora continuemos a reconhecer-lhe uma espontaneidade criadora só remissível a raízes arquetípicas, que referem, por sua vez, à discutida questão dos universais.

7.6 ARTE NAÏF

Tentaram-se várias outras denominações para os artistas naifs: pintores de domingo, pintores do coração sagrado, ingênuos, primitivos modernos, autodidatas, primitivos de hoje, instintivos, espontâneos, ínsitas, etc. Mas o primeiro adjetivo, o ambíguo naïf, lançado há uma centena de anos, ficou em definitivo, foi adotado e consagrado internacionalmente. A mim, a poética palavra

92

cândido20 21 não teria desagradado.

A arte naïf é a república das artes: una e indivisível. Imutável e impermeável a qualquer atração

O dicionário diz que naïf 22é aquilo que retrata simplesmente a

verdade, a natureza sem artifício ou esforço: que é graciosamente

inspirado pelo sentimento Finkelstein (2001). O adjetivo francês naïf vem

do latim nativus, que significa a nascente, natural, espontâneo, primitivo.

Assim, pode ser substituído também por ingênuo e primitivo, mas as três

palavras devem ser tomadas ao pé da letra. Todas têm origem no latim:

ingênuo vem de ingenuus (nascido livre) e primitivo, de primitivus (que

pertence ao primeiro estado de uma coisa). Essas três definições

poderiam servir para caracterizar a pintura naïf, que é natural, livre e

pura.

O termo naïf, utilizado na França desde os escritos de Montaigne, no

século XVI, consolidou-se durante o século XVIII por meio dos outros

grandes escritoresfil6sofos da época: Montesquieu, Jean-Jacques

20 Na família Silva temos três com o nome Cândido: José Cândido, Sebastião Cândido e João Cândido. 21 cândido[Do lat. candidu.] Adjetivo. 1.Alvo, imaculado: “O lírio é menos cândido, a neve é menos pura / Que uma criança loira no berço adormecida” (Fagundes Varela, PoesiasCompletas, I, p. 238). 2.Fig. Puro, ingênuo, inocente.

22 Naïf [naÈIf] [Fr.] Art. Plást. Adjetivo de dois gêneros. 1.Diz-se de arte, esp. pintura, desvinculada da tradição erudita convencional e de vanguarda, e que é espontânea e popularesca na forma sempre figurativa, valendo-se de cores vivas e simbologia ingênua: “A pintura naïf se impõe por sua autenticidade” (João Spinelli, em Bienal Naïfs do Brasil 1998, p. 100). 2.Diz-se de quem pratica arte naïf (1), ou daquilo que é próprio, ou característico, dessa arte; ingênuo, primitivo: “A apropriação de símbolos e mitos da cultura popular rural e da periferia urbana é recuperada pelos artistas naïfs.” (Id., ib., p. 100.) Substantivo masculino. 3.A arte naïf (1). Substantivo de dois gêneros. 4.Artista, em geral autodidata, que pratica o naïf (3): Ela é uma das mais talentosas naïfsbrasileiras;“Assim como fazem nos países realmente cultos, devemos dar vivas aos naïfsdo Brasil.” (Romildo Sant’Anna, ib., p. 99). [Embora em francês naïf seja voc. masculino (fem.: naïve), no Brasil é us., nas acepç. 1, 2 e 4, como voc. de dois gêneros.]

93

Rousseau, Diderot. Este último considerava que «nem tudo que é

verdadeiro é naïf, mas tudo que é naïf é verdadeiro, de uma ingenuidade

tocante, original e rara».

Segundo Finkelstein (2001) o adjetivo naïf perdeu seu verdadeiro significado, “saiu de moda” e foi jogado para o extremo oposto. As pessoas outrora chamadas de ingênuas por causa da pureza de seus sentimentostornaram-se hoje ingênuas demais, ultrapassadas pela evolução de seu tempo; como se estivessem fora do mundo atual e, a rigor, fossem um tanto tolas.

7.6.1 Douanier Rousseau

Por volta de 1890, a palavra naïf foi usada para designar a pintura

de Henri Rousseau, o chamado douanier Rousseau que foi o primeiro naïf

moderno a ser exposto e valorizado. Na realidade o termo naïf referia-se

à sua pintura e à própria natureza do personagem, um funcionário público

dos portos. A denominação, atribuída a título de zombaria, tornou-se um

grande movimento assim como outros movimentos de pintura que se

sucederam na mesma época, com nomes até pejorativos:

impressionistas, fovistas, cubistas, e impressionistas, futuristas,

surrealistas, abstratos, dentre outros.

Ainda segundo Finkelstein (2001) tentaram-se várias outras

denominações para os artistas naïfs: pintores de domingo, pintores do

coração sagrado, ingênuos, primitivos modernos, autodidatas, primitivos

de hoje, instintivos, espontâneos, ínsitos. Mas, permanece

mundialmente a denominação “Naïf”.

94

7.6.2 Finkelstein (2001) esclarece que Naïf difere de Primitivo23

No Brasil sempre se usou o termo primitivo para designar os artistas

naïfs, algumas vezes também chamados de ingênuos.

A arte primitiva, conhecida e reconhecida mundialmente sob este nome,na realidade , trata-se da produção dos pintores primitivos flamengos e italianos, dos séculos XIV e XV; e, ultimamente, a arte dos povos e tribos primitivas da África, da Oceania etc., exercida por seres de civilizações menos complexas.24

Essa arte nada tem a ver com a pintura naïf brasileira, que não é

feita por pessoas primárias. Por isso, o termo naïf é preferível a primitivo.

Para evitar o mesmo gênero de confusão mencionado entre as palavras naïf e primitivo, para distinguir bem a arte dos povos primitivos da que foi "batizada" de primitiva, dos pintores flamengos e italianos dos séculos XIV e XV -, a denominação art premier (arte primeva) foi lançada, há algum tempo, para designar as artes realmente primitivas.

Dessa forma ficaram separadas nitidamente as duas

denominações, que se tornaram ambíguas demais. 25

Se, como vimos é difícil definir arte, definir arte naïf constitui

23 Primitivo [Do lat. primitivu.] Adjetivo. 1.De primeira origem; original, inicial, inaugural: os tempos primitivos. 2.Dos primeiros tempos; primordial, primeiro: povos primitivos. 3.Que não é derivado; básico, primário. 4.V. primigênio. 5.Diz-se de um organismo, órgão, etc., em começo de evolução, ou muito pouco diferenciado de seus antepassados mais remotos. 6.P. ext. Simples; áspero, rude: É uma alma primitiva;Usa métodos primitivos para alcançar seus fins. 7.Antrop. Obsol. Relativo aos povos não letrados, que vivem em sociedades ger. caracterizadas como de escala menor, organização social menos complexa e nível tecnológico menos desenvolvido do que as sociedades ditas civilizadas, e vistos pelo evolucionismo social (q. v.) como representantes de um estado social e mental supostamente mais próximo da condição original, natural, da humanidade, ou dela sobreviventes.8.Art. Plást. Num conceito que data do romantismo, diz-se da arte (pintura e escultura) própria dos séculos que precederam imediatamente a eclosão do Renascimento. 9.Diz-se do artista do final da Idade Média cujos valores clássicos se prendem à mensagem do cristianismo e que, como os primitivos italianos, aliam a pureza da inspiração ao despojamento técnico. 10.V. naïf (2).

24 Finkelstein,op.cit. 25 Finkelstein na obra citada menciona que em 2001 em Paris seria aberto o primeiro museu - chamado de Art Premier -reunindo todas as coleções existentes em outros museus, dessa arte antes denominada de primitiva.

95

tarefa ainda mais complexa.

(...) não se pode definir o indefinível : Pode-se analisar um sentimento, o amor, a poesia, a beleza, a pureza, a arte? Todas essas palavras, tão grandes e tão simples, são daquelas que não se explicam. A pintura naïf é tudo isso e muito mais. Ela faz o que pode como pode, com os meios que conquistou sozinha, e isso constituí a sua força. 26

Esses breves conceitos foram esboçados para que possamos

ingressar no criativo universo de vida de nossos Silvas, com suas

diferentes artes. Sabemos com antecedência que no mundo da arte são

autodidatas, de cultura popular, naïfs. Adentraremos seus percursos de

vida e carreira artística. Esclarecemos por oportuno, que a biografia de

alguns possui mais informações do que de outros decorrência da falta de

dados ou do fato de a carreira artística conter menos participações em

mostras e acervos.

Como utilizamos o recurso da História Oral, também contamos com

as dificuldades naturais para a obtenção de depoimentos: disponibilidade

de tempo, locomoção, sem falar nas questões pessoais em responder a

esta ou àquela pergunta de nosso roteiro.

26 Finkelstein,op.cit.