8
Iniciar por expor os caminhos que poderiam ser tomados nessa reflexão – o possível, portanto – e buscar construir, a partir daí, o que foi feito, ou seja, a possibilidade central tornada efetiva e, assim sendo, o real deste trabalho. Poder-se-ia pensar a composição na qual os personagens são misturados – não há palavra melhor – depois de construídos, nas relações nas quais são inseridos às vezes inutilmente, seus medos, os dramas emergentes daí, etc. e relacioná-los com a contemporaneidade. Fazer, assim, uma espécie de crítica ou de leitura crítica da obra. Apesar do pendor para essa direção advindo da imediatez de toda leitura, reflexão ulterior fez-me situar essa dimensão próxima a uma certa tentativa de psicossociologia mal desenhada. Foi Marshall Berman em seu “Tudo que é sólido desmancha no Ar” quem talvez melhor tenha feito uma leitura da contemporaneidade a partir de personagens literários e clara é a distância entre a sua proposta e esta que propus anteriormente. Por outro lado, poder-se ia pensar na análise da obra enquanto obra, ou seja, uma espécie de close reading talvez até hiperbólico como fez Derrida outrora em relação a Joyce, o que o fez dedicar mais de 80 páginas à palavra sim em seus Ulysses Gramophone. Por profícua que possa ser a análise dada certa obra literária que comporte tal análise, suponho não ser o melhor caminho, vez que a autora não procura redefinir nenhum caminho literário novo em termos de apresentação da história (Como faz Joyce, mas também

50shades of Society

Embed Size (px)

DESCRIPTION

50 tons

Citation preview

Iniciar por expor os caminhos que poderiam ser tomados nessa reflexo o possvel, portanto e buscar construir, a partir da, o que foi feito, ou seja, a possibilidade central tornada efetiva e, assim sendo, o real deste trabalho. Poder-se-ia pensar a composio na qual os personagens so misturados no h palavra melhor depois de construdos, nas relaes nas quais so inseridos s vezes inutilmente, seus medos, os dramas emergentes da, etc. e relacion-los com a contemporaneidade. Fazer, assim, uma espcie de crtica ou de leitura crtica da obra. Apesar do pendor para essa direo advindo da imediatez de toda leitura, reflexo ulterior fez-me situar essa dimenso prxima a uma certa tentativa de psicossociologia mal desenhada. Foi Marshall Berman em seu Tudo que slido desmancha no Ar quem talvez melhor tenha feito uma leitura da contemporaneidade a partir de personagens literrios e clara a distncia entre a sua proposta e esta que propus anteriormente. Por outro lado, poder-se ia pensar na anlise da obra enquanto obra, ou seja, uma espcie de close reading talvez at hiperblico como fez Derrida outrora em relao a Joyce, o que o fez dedicar mais de 80 pginas palavra sim em seus Ulysses Gramophone. Por profcua que possa ser a anlise dada certa obra literria que comporte tal anlise, suponho no ser o melhor caminho, vez que a autora no procura redefinir nenhum caminho literrio novo em termos de apresentao da histria (Como faz Joyce, mas tambm Guimares Rosa em seu Grande Serto, Virginia Woolf em quase toda sua obra, etc.), mas sim em termos de quais elementos so eleitos enquanto participantes dessa histria. Dito de outro modo: no a narrativa per se que se altera nesta obra, mas o que escolhido para ser narrado, sendo neste caso especfico a presena de um erotismo BDSM softcore. Sendo estas duas alternativas expostas interditadas pelo pouco que pareciam responder ao objeto de anlise em questo, desenvolvi algo a partir de Zizek (Sublime objeto, Eles no sabem o que fazem e Um mapa da ideologia), Adorno (Dialtica do Esclarecimento; Cultura de Massas) e Michel Pecheux (especificamente a noo de ideologia herdeira de Bakhtin), i.e. desenvolvi algo que busca o pano de fundo no qual esta narrativa faz sentido, qual seja, a ideologia que lhe d significado, vez que esta o que confere algum sentido linguagem (como bem afirma Bakhtin).Situar, assim, a leitura da obra numa certa chave da crtica da ideologia e fazer de 50 tons uma obra refratria da ideologia que permeia a sociedade contempornea na sua manifestao literria maior, qual seja, o fenmeno best seller, fenmeno este que, desde j, indica uma certa relao de inverso entre a relao venda e qualidade. A esta inverso na relao, um dos primeiros a not-la, dentre muitos, no foi Marx mas Beethoven, dizem os boatos (que dizem muito mais que a Histria oficial, a bem da verdade). Conta-se que teria exclamado, sobre um romancista francs absurdo, ele faz esses romances para vend-los! e, nesse sentido, j temos a delineada toda a configurao da relao do best seller com seu pblico, qual seja, uma certa indiferena quanto ao contedo propositivo da obra e sua possvel alterao de mundo (nas palavras de Assis, na sua possibilidade de tocar o Homem) para uma sensao simplria como o alvio dos estresses do cotidiano ou simplesmente se emocionar Sempre de forma bem superficial) com as histrias. Penso que este manejo das emoes de forma simplria, esta construo de uma narrativa completamente superficial cumpre a um papel que Adorno chamou de pedaggico mais de uma vez, sendo essa pedagogia um certo direcionamento das descargas pulsionais a um certo modo correto e inofensivo. Nesse sentido, no toa que toda a narrativa se passa sempre em relao negativa com a sociedade que a rodeia, ou seja, a sociedade s aparece enquanto um estrangeiro que se compe ou enquanto obstculo ou enquanto mundo, mas nunca enquanto objetos participantes e molas propulsoras da prpria histria. No igualmente toa que o incio da histria se d por uma casualidade: a personagem principal, Anastasia, substitui sua amiga que est doente entrevista o milionrio Christian Grey. O acaso do encontro destes personagens faz com que uma histria de amor se desenvolva apesar de dificuldades iniciais, quais sejam: o personagem principal praticante de BDSM e toda a sua vida sexual se estrutura com relao a submissas contratadas e no a namoradas; o personagem oscila entre dominador e educado, gentil e cruel; ela se sente indecisa quanto ao fato de ser uma submissa, etc. Estes fatos isolados so todos amarrados numa explicao dos aspectos psicolgicos do personagem, explicado ento em termos de quo ruim havia sido sua infncia por ter sofrido nas mos de uma viciada em crack e seu cafeto at vir a ser adotado por sua famlia rica, etc. Vai-se um pouco alm. Evoca-se, na obra, no apenas a psicologia mas a prpria psiquiatria enquanto personagem. Um dos personagens presentes na obra e que desempenham certa funo at mesmo principal em alguns momentos o psiquiatra de Christian, Dr. Flynn. Quer aconselhe um dos dois, quer explique o comportamento de um pra outro, etc. o personagem desde de sua introduo na histria serve como uma espcie de apoio ao qual recorrer. A psiquiatria aparece aqui como a redentora das situaes mais difceis, inclusive a perverso de Christian.Perverso esta, alis, que se inscreve num lifestyle muito particular, qual seja o do BDSM (Bondage, Domination Sadomasoquismo). At mesmo sua perverso inscrita, numa espcie de forma de lidar com seu trauma. por isso o personagem confessa que s escolhe morenas: todas elas lembram sua me e o leitor levado a entender, a partir da introduo desse elemento de psicologia pop, que a cada mulher que ele bate ele bate na verdade em sua me, sendo o BDSM adotado para extirpar certa raiva que ele sentia dela, alm de certa necessidade de controle (fundante na personalidade do personagem). No h por onde comear a demolio desta construo situacional: quer seja pela escolha do cabelo, quer seja pela adoo da identificao com o agressor (pausa para explicar a teoria de Anna Freud), quer seja pelo fato da perverso ser algo do qual no h vergonha, h tanto de cincia psicolgica nessa construo quanto h na construo dos horscopos cotidianos, ou seja, antes ao leitor e pressupondo esse leitor que se constri essa situao. Dizendo de outra forma, com Adorno em seu As estrelas descem terra, precisamente o leitor que desvelado nesse tipo de construo e no o personagem; sempre sabendo de sua curiosidade por elementos de psicologia pop e parecendo lhe dar de fato mais do que de fato se d, ensinar-lhe mais do que de fato se lhe ensina que tanto a coluna de astrologia objeto de anlise de Adorno quanto 50 tons constroem esse tipo de derivao. Se Adorno demonstra que o leitor pressuposto pela coluna de horscopos adereado como vice presidente mas na verdade algum de baixo escalo na empesa, podemos afirmar aqui, sem grande dificuldade, que a leitora pressuposta pela autora uma leitora jovem, provavelmente no incio de sua vida adulta, talvez com alguma educao formal mas preferencialmente no (e definitivamente no na rea de cincias humanas) ao passo que adereado indiretamente como algum que entende algo de psicologia. A mesma lgica utilizada em seriados como The Mentalist, Criminal Minds, Lie to Me, etc., sendo esta lgica a de misturar alguns pequenos fatos particulares eventuais do vasto campo de saber psi e torna-los fatos quase naturais. No sequer necessrio afirmar a natureza preditiva imputada psicologia mas que prpria das cincias naturais presente tanto nos seriados quanto no livro, mas o fao mesmo assim.Para alm disso, as cenas de sexo descritas no livro so absolutamente vazias de contedo, sendo as palavras deliberadamente romanceadas e as descries sendo propositalmente vazias em termos sexuais. Se em Sade h certo choque tanto pelas palavras quanto porque h inclusive certa metafsica e certa tica da Natureza que do suporte aos atos, nenhuma tentativa de mudana de mundo (no sentido heideggeriano do termo) tentada nem pelo BDSM nem pelas cenas de sexo. Descries presentes nas cenas sexuais contam com intercalaes de frases do tipo Minha deusa interior est danando merengue com passos de salsa ou ainda Minha deusa interior est sentada em posio de ltus com uma expresso serena, apesar do sorriso maroto de autofelicitao e a vacuidade dessas cenas absolutamente tributria de um certo gozo discursivo (Lacan), no qual goza-se apenas com o discurso, mas no coma s coisas elas mesmas. Nessa leitura desse conceito de gozo discursivo, temos algo similar neurose obsessiva em Freud: todo ato um ato...mental. A diferena fundamental existente mesmo no campo do texto exatamente se pensarmos em Sade (mas tambm em Sacher Masoch), qual seja, a representao ainda corresponde coisa de forma direta. As palavras de Sade so frontalmente colocadas como representantes das coisas (e, nesse sentido, saem de sua pena: pau, cu, buceta, penetrar, etc.) ao passo que em 50 tons temos apenas uma referncia distante coisa e nem sequer pode-se dizer sublimada mas sim reprimida, no termo mais especfico da psicanlise. Nesse sentido, as distores romnticas do contedo so propsotas de modo que se tenha precisamente aquilo que Zizek identificou como sexo sem sexo (explicar substncia dessubstancializada). Com isso, tem-se estruturalmente o mesmo que o gozo com o dinheiro para pessoas muito ricas, por exemplo: um smbolo que no mais se refere a nada de fora, mas sim que desejado por si mesmo. Estruturalmente no se adquire mais nada com o dinheiro que no mais dinheiro.Por fim/no obstante a introduo da psiquiatria e do BDSM como salvaes (e no como um prazer possvel e acessvel) a autora prossegue introduzindo o amor como a salvao final para Christian. Tendo sido introduzido como algum que pratica o BDSM por dio, deve agora o personagem abandonar seu BDSM enquanto modo de existncia (frise-se isso) por amor personagem. Nota-se, aqui, o mesmo tipo de relao presente em quaisquer comdias romnticas, mas especialmente de uma que tem esse elemento do amor como cura fortemente marcado, qual seja, Como se fosse a primeira vez. A personagem de Drew Barrymore perde sua memria recente, o que leva o personagem de Adam Sandler a reconquist-la todos os dias. Esse enredo se segue at o momento em que ele se d conta, por um sinal (certa msica) de que ela se lembra dele. Temos, tambm aqui, o amor sendo utilizado como blsamo da existncia. O que isso traz de fato para Christian o abandono do BDSM e sua inscrio mais sadia como uma espcie de adendo uma vida sexual normal. Apesar de tratar de todos esses temas, entretanto, a narrativa nunca levanta uma questo acerca da normalidade, optando, sempre, por deixar nas entrelinhas (ainda que em letras garrafais) que todos j sabem o que o normal: um psiquismo normatizado pela psiquiatria, um sexo normatizado pelo amor, uma relao amorosa normatizada pela monogamia e uma mulher normatizada por seu homem.

ApendiceEsses quatro elementos normativos da ideologia corrente (sexo normatizado pelo amor, mente normatizada pela psiquiatria, relaes normatizadas pela monogamia e, por fim, a mulher dominada pelo homem) e o fato do livro ter sido to compulsivamente consumido revelam antes de tudo uma sociedade to densamente distante de si prpria como um todo que se torna incapaz de se reconhecer mesmo em coisas cotidianas. (continuar exposio