Upload
jurandyr-joaquim-dias-filho
View
234
Download
5
Embed Size (px)
Citation preview
ELISA FRANCA E FERREIRA
O HOMEM, A ALMA E O VIVENTE: A DEFINIO DO
HOMEM NAS ENADAS DE PLOTINO
Dissertao apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.
Linha de Pesquisa: Histria da Filosofia
Orientador: Leonardo Alves Vieira
Belo Horizonte- MG Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas- UFMG
2009
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Leonardo Alves Vieira, pela grandiosa dedicao minha pesquisa, desde
o incio da graduao, por nosso estudo frequente. A ele, minha imensa gratido pelo auxlio
fundamental e decisivo, por sua orientao rigorosa e cuidadosa, um grande privilgio do qual
pude desfrutar; pelo esmero na leitura dos meus textos e na reviso das tradues do grego;
por seu estmulo para o estudo de outras tradies filosficas alm da greco-romana.
Ao prof. Fernando Rey Puente, pela maneira como me despertou para a Filosofia e o estudo
de Plotino.
prof. tutora do PET durante minha passagem pelo grupo na graduao, Lvia Guimares,
pelos incentivos pesquisa.
prof. Miriam Campolina, por ter me convidado e acolhido em seu grupo de estudos. Pelas
colaboraes na pesquisa. querida Miriam, sempre gentil e atenciosa, pelos encontros
especiais.
Ao prof. Mauricio Pagotto Marsola, pelas importantes contribuies na pesquisa.
Aos meus interlocutores de pesquisa: em especial, Loraine, pela grandiosa contribuio, as
discusses, o material bibliogrfico cedido e as atenciosas leituras, sugestes e observaes
aos meus textos; ao Bernardo, agradeo imensamente a reviso da traduo, as discusses e o
material bibliogrfico cedido.
Andra, secretria do programa da Ps-Graduao, pela prontido e destreza em nos
auxiliar.
s instituies e bibliotecas, fundamentais para minha formao acadmica, UFMG e FAJE.
A Capes.
Ao meu magnnimo pai, Cid, a quem dedico esta dissertao, pelo amor, puro e
incondicional, e pelos generosos incentivos. A ele, minha eterna gratido, por tudo.
minha irm gmea Slvia, Pequena, pelo amor e companheirismo, por tudo. Ao meu
cunhado Marcus e Marlene, sempre presentes. A toda a famlia.
Aos amigos. Carol, amiga de infncia, Paulinha, Aline e Fabiane, amigas de longa data. Juca,
Criatura, pelo carinho. Aos amigos mais que especiais, Anderson, Jnia e Maria Helena.
Loraine, querida irm gacha. Turma da graduao e amigos da Fafich, Daniel Arelli,
Marlia, Mnica e Roberta, tambm Camila, Daniela, Dbora, Felipe, Juliana, Juliano, Karina
e Leila, pelos momentos inesquecveis, como o Simpsio no Caraa e outros; turma da Fale e
os encontros divertidos, em especial, Clara e Manuela, tambm Lira, pela reviso do texto.
Aos amigos da Faje, Srgio e lvaro.
Ao Govinda, Alexandre, e a Beatriz/ Ncelo Ananda, por tudo que semearam e despertaram
em meu corao. querida Lcia/ Ncelo Satya. A todos os alunos. Agradeo muito as
oportunidades e experincias, todo o aprendizado.
Wiliane, por ter me conduzido ao curso de Filosofia.
A todos que contriburam de alguma maneira para este trabalho e que certamente reconhecem
meu agradecimento. A todos que estiveram e esto em meu percurso da Filosofia, acadmica
e extra-acadmica.
A Plotino.
Se preciso ousar dizer mais claramente contra as opinies dos outros, diremos que nem mesmo nossa alma est completamente mergulhada, mas algo dela est sempre no inteligvel. Mas, se aquilo que est no sensvel domina, ou melhor, se dominado e perturbado, no nos permitido perceber aquelas coisas que o pice da alma contempla.
Plotino. Enada IV 8 [6], 8, 1-6.
RESUMO
O objetivo desta dissertao discutir a definio do homem nas Enadas de Plotino.
A pesquisa aborda alguns aspectos da alma individual que se mostraram importantes como
pressupostos. Tentamos compreender a descida da alma aos corpos e analisamos a alma que
sempre permanece no inteligvel, separada. Para tanto, esclarecemos a unidade e a
divisibilidade da alma, bem como o direcionamento de suas potncias, daquelas que se voltam
para o corpo e das que se mantm no alto. Assim, o homem examinado considerando a
unio e a separao da alma e do corpo. O trabalho prossegue investigando a articulao do
homem com a alma, por meio da discusso da identidade do homem sensvel e a alma
sensvel e o lgos, e do homem racional e a alma racional e o lgos, e com o Intelecto, pelo
mbito da Forma. Quanto articulao com o sensvel e o corpo, o intuito esclarecer as
distines entre o homem e o vivente ou conjunto da imagem da alma e o corpo,
compreendendo a atribuio das afeces. Buscando a definio do homem a partir do critrio
do inteligvel e do sensvel, mostramos que, sob a perspectiva do Intelecto, ele a Forma, sob
a da alma, alma e lgos, sob a do corpo, ele no o , nem o vivente, ao qual se atribuem as
afeces. Desse modo, ao oferecer uma leitura de partes do texto plotiniano para a discusso
do tema proposto, este estudo pretende elucidar algumas dificuldades decorrentes da definio
do homem.
Palavras-chave: Homem. Alma. Corpo. Afeces. Vivente.
RSUM
Lobjectif de cette dissertation est de discuter la dfinition de lhomme dans les
Ennades de Plotin. La recherche aborde quelques aspects de lme individuelle qui se sont
montrs importants comme prssuposs. Nous tentons de comprendre la descente de lme
dans les corps et analysons lme qui reste toujours lintelligible, separe. Dans ce but, nous
clairons lunit et lindivisibilit de lme, aussi bien que lorientation de leurs puissances, de
celles qui se dtournent vers les corps et de celles qui si maintiennent dans le haut. Ainsi,
lhomme est examin considrant lunion et la sparation de lme et du corps. Le travail se
poursuit en investigant larticulation de lhomme avec lme, travers la discussion de
lidentit de lhomme sensible et lme sensible et le lgos, et de lhomme rationel et lme
rationnelle et le lgos, et avec lIntellect, travers le champ de la Forme. Quant
larticulation avec le sensible et le corps, le propos est dclaircir les distinctions entre
lhomme et le vivant ou lensemble de limage de lme et le corps, en comprenant
lattribuition des affections. Cherchant la dfinition de lhomme sous le critre de lintelligible
e du sensible, nous montrons que sous la perspective de lIntellect, lhomme est la Forme,
sous celle de lme, il est lme et le lgos, sous celle du corps, il ne lest pas ni est le vivant,
auquel sattribuent les affections. De cette manire, en offrant une lecture de certains parties
des Ennades pour la discussion du sujet propos, cette tude prtend lucider quelques
difficults issues de la dfinition de lhomme.
Mots-cl: Homme. Ame. Corps. Affections. Vivant.
ADVERTNCIAS
Seguimos o seguinte critrio da numerao das Enadas de Plotino: o primeiro
nmero, em algarismo romano, indica a Enada de acordo com a edio de Porfrio, de I a VI.
O segundo, arbico, indica a posio do tratado dentro da Enada, entre 1 a 9. O terceiro,
arbico e entre colchetes, representa a ordem cronolgica do tratado. O nmero seguinte
indica o captulo, e os dois ltimos, as linhas da citao, onde ela se inicia e termina. Por
exemplo, Enada IV 8 [6], 7, 1-5 deve ser lido do seguinte modo: oitavo tratado da quarta
Enada, sexto na ordem cronolgica, captulo sete, linhas um a cinco. Essa numerao situa o
tratado tanto na edio de Porfrio como na ordem cronolgica. Nas referncias a alguma
Enada, omitimos o nome de Plotino e da obra, optando, pois, somente pela notao
numrica. Por vezes, no corpo do texto, referimo-nos ao tratado na ordem cronolgica e, entre
parnteses, sua posio na edio de Porfrio, por exemplo: segundo tratado (Enada IV 7).
Quanto s tradues das passagens das Enadas, so de nossa responsabilidade. Foram
consultadas as tradues lusfonas de B. G. L. Brando para a Enada VI 9 [9] e de J. C.
Baracat Jnior para as Enadas I a III. Utilizamos a edio grega de Henry-Schwyzer.
SUMRIO
INTRODUO................................................................................................................ 10
CAPTULO 1: Aspectos da alma individual 1.1 Introduo..................................................................................................................... 15
1.2 Unidade e divisibilidade da alma.................................................................................. 18
1.3 A descida e a unio [da imagem] da alma aos corpos................................................... 27
1.3.1 Enada IV 8 [6].......................................................................................................... 27
1.3.2 Enada I 1 [53]........................................................................................................... 35
1.4 A alma que no desce.................................................................................................... 41
1.5 Aspectos das potncias da alma..................................................................................... 55
1.5.1 Alma vegetativa e alma sensitiva................................................................................ 58
1.5.2 Alma racional.............................................................................................................. 62
1.5 Concluso....................................................................................................................... 66
CAPTULO 2: A Forma do homem, o homem racional e o homem sensvel 2.1 A definio do homem- Enada IV 7 [2]...................................................................... 68
2.2 A definio do homem- Enada VI 7 [38]. Lgos e lgoi............................................ 75
2.2.1 A Forma do homem.................................................................................................... 82
2.2.2 O homem racional e o homem sensvel...................................................................... 87
2.3 Concluso...................................................................................................................... 98
CAPTULO 3: O homem, as afeces e o vivente 3.1 Introduo..................................................................................................................... 100
3.2 A atribuio das afeces.............................................................................................. 101
3.3 O homem, o vivente e o ns.......................................................................................... 112
3.4 O vivente e a separao do corpo e do sensvel............................................................ 123
3.5 Concluso...................................................................................................................... 126
CONCLUSO.................................................................................................................... 128
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................. 135
APNDICE......................................................................................................................... 141
10
INTRODUO
Nas Enadas, deparamo-nos com certa identidade entre o homem e a alma, bem como
com certa separao e distino entre o homem e o corpo, o homem e o vivente, e entre a
alma e o corpo. O intuito desta pesquisa discutir a definio do homem, compreendendo
suas articulaes com a alma, o corpo e o conjunto desses dois, o vivente. Fazem-se
necessrias, no entanto, algumas observaes sobre a palavra definio utilizada aqui. Ela no
se refere a um objeto esttico, unidimensional e fechado em si mesmo, mas multifacetado e
multidimensional. Ademais, no pretende ser uma palavra final sobre o homem, mas uma
reflexo sobre sua estrutura ou constituio fundamental. Definio diz respeito a certas
perspectivas tomadas por Plotino a partir dos debates com seus interlocutores, nas quais sua
concepo de homem vem tona. De acordo com a interconexo dessas perspectivas e esse
sentido preciso, a definio do homem investigada ao longo deste texto.
Mas qual seria um bom ponto de partida? Percebemos que teramos que investigar
pressupostos fundamentais. No decorrer de nossa investigao, procurando a questo
especfica da definio do homem, vimos que seria foroso desenvolver um exame preliminar
de temas e questes que lhe fornecem bases e a antecedem argumentativamente, isto , que
geram e consolidam a definio do homem.
Nessa nossa busca incessante pela compreenso do que o homem para Plotino,
constatamos que algumas dificuldades concernentes alma individual humana voltavam
insistentemente, o que nos fez manter a deciso de traarmos a ordem deste trabalho, mesmo
vislumbrando sua amplitude e suas dificuldades. Uma vez que Plotino afirma, de um modo
amplo, que o homem a alma, vimos que precisaramos compreender o que a alma
individual, mais especificamente sua estrutura, isto , suas partes, funes, potncias e
11
faculdades. Tambm a questo do vivente e sua distino do homem nos levaram a discutir
alguns pontos sobre a alma, a fim de esclarecermos a unio e a separao entre ela e o corpo.
Mas como no abordar tais questes da alma superficialmente, sobrevoando por temas to
caros e complexos? Em virtude disso, a fim de evitar a superficialidade, delimitamos alguns
aspectos a serem examinados e, neles, alguns pontos fundamentais, tentando no perder de
vista nossa questo crucial.
Devido exigncia de percurso que, a nosso ver, o tema nos imps, fomos conduzidos
a tratar primeiramente da alma, tendo em vista a alma individual, pois notamos tambm que o
mbito da alma base para aquele do homem e ambos possibilitam uma melhor compreenso
do das virtudes. Pode-se dizer que h uma convergncia desses campos e, at mesmo, uma
superposio. Sendo assim, mesmo que uma pesquisa exija certa separao deles, mister
ressaltar que eles constituem uma rede complexa em que os fios se interligam. No inclumos
um estudo mais detido sobre a purificao, mas delineamos e indicamos alguns fundamentos
para tanto.
Tentemos esclarecer a metodologia a partir da qual nosso trabalho foi desenvolvido.
Sabemos da dificuldade de lidar com as Enadas no que concerne aos diversos temas
abordados, s vezes, em mais de um tratado. Ademais, geralmente, uma questo pressupe e
implica outra(s), formando um grande e complexo bloco temtico, o que gera a dificuldade de
nos concentrarmos em determinados problemas e aprofund-los em todos os pontos. Em
outras palavras, o pensamento de Plotino envolve questes em que uma converge para outra.
Muitas vezes, Plotino no erige demonstraes evidentes, mas nos apresenta apenas algumas
premissas, lanando a concluso de sbito.
Nosso percurso por alguns tratados se deve ao fato de que as questes relativas ao
homem no se limitam a um nico texto, mas se dispersam coerentemente, apesar de
aparentes incoerncias. claro que esse caminho pode ser problemtico em algum momento.
12
Buscando e considerando o contexto de cada tratado, julgamos que procedemos de um modo
adequado. Algumas vezes fomos conduzidos a enveredar por tratados aparentemente sem
conexo direta com nosso propsito a fim de que alguma nota que julgamos importante fosse
registrada. Mesmo na amplitude de alguns tratados, escolhemos alguns pontos relevantes para
nosso tema. Esse talvez no seja o mtodo mais propcio, mas, pelo menos, assim nos
mantemos em ressonncia com a descontinuidade temtica dos escritos, nesse sentido em que
Plotino retoma alguns pontos recorrentemente ou, diramos, circularmente. Nosso
procedimento , pois, uma leitura analtica transversal das Enadas, concentrando-nos mais
em alguns tratados 2 (Enada IV 7), 4 (Enada IV 2), 6 (Enada IV 8), 38 (Enada VI 7) e
no 53 (Enada I 1) , mas, muitas vezes, buscando as nuances do tema em outros.
Outra metodologia que adotamos sempre considerar a especificidade de cada tratado
e de algumas passagens, mesmo sabendo que dispomos dos textos tais como foram
organizados por Porfrio e no como foram compostos por Plotino. Ainda que Porfrio tenha
dividido alguns tratados e agrupado notas s vezes sem conexo entre elas, apoiamo-nos no
fato de que vemos, por exemplo, uma continuidade ou uma sequncia imediata num mesmo
captulo e entre um captulo e outro de um mesmo tratado. Se esse no um mtodo muito
condizente com o arranjo e a edio das Enadas, pelo menos nos permite ter mais uma chave
de compreenso. Se Plotino delimitou intencionalmente ou no a particularidade de cada texto
ao elabor-los, no importa tanto. A questo que no perder de vista a(s) finalidade(s) do
tratado facilita sua anlise, bem como sua relao com os outros e seu lugar na totalidade das
Enadas, a qual no estamos desconsiderando. Apesar de cientes dos problemas da escolha
desse caminho, ele foi uma tentativa de iluminar para ns algo que por si j iluminado, mas
que se mostra obscuro.
A partir do que foi exposto, apresentamos a sequncia do presente estudo. O primeiro
captulo versa sobre alguns aspectos da alma individual. Tais aspectos foram selecionados
13
pela relevncia para o esclarecimento da definio do homem. A questo da unidade e da
divisibilidade da alma se imps como condio para compreendermos a descida da alma ao
corpo, a unio e a separao dos mesmos. Por sua vez, essa descida da alma exigiu-nos uma
anlise de sua imagem que se dirige ao corpo formando o vivente e, por conseguinte tambm,
de algo da alma que permanece no alto, separada. Tal unio e a efetivao das potncias
inferiores da alma no corpo, bem como tal separao e o desempenho das atividades
superiores exigiram que expusssemos, na medida do possvel e necessrio, alguns aspectos
relevantes das potncias da alma. Analisamos algumas relaes do apetitivo e do irascvel
com a alma vegetativa e com a sensitiva. Discutimos as relaes entre o dianoetikn, o
logistikn e o nos da alma, tendo em vista a possvel identificao deles, como alma superior
ou alma racional como um todo, ou de algum deles, com a alma que no desce.
No segundo captulo, analisamos o incio do segundo tratado (Enada IV 7), o qual
nos oferece uma definio do homem de acordo com seu contexto de enfatizar a
incorporeidade e a imortalidade da alma. Procuramos esclarecer o enfoque que Plotino
confere ao homem, apresentando-o atrelado alma e sua natureza, em oposio ao corpo. O
argumento de que o homem a alma e tem o corpo mostra-se chave para compreend-lo em
sua definio e em sua composio. Entrementes, concentramo-nos, sobretudo, no tratado 38
(Enada VI 7), a fim de compreendermos os homens ou tipos de homens ali expostos, a
Forma do homem, o homem racional e o homem sensvel. Mostramos em que sentido a
Forma do homem superior aos outros homens. Discutimos a definio desse texto de que o
homem a alma e o lgos. Conduzimos o exame dos homens racional e sensvel, visando
suas articulaes ou coincidncias com as respectivas almas e lgoi, racional e sensvel. As
noes de lgos e lgoi se mostraram fundamentais para a definio do homem nesse tratado
e, portanto, no podiam escapar de nossa pesquisa.
14
O terceiro captulo, finalmente, dedicado a uma detida anlise do tratado 53 (Enada
I 1). Examinamos a atribuio das afeces a fim de compreendermos o que o vivente,
ordinariamente tido como o homem. Acompanhamos Plotino traar as diferenas entre o
homem e o vivente, apontando, assim, para uma definio do homem atravs da
demonstrao do que ele no , do que distinto dele. Defrontamo-nos com o ns e suas
relaes com o homem e o vivente. Apesar de no nos determos em alguns pontos
concernentes ao ns, como a especificidade de suas atividades, discutimos alguns pontos
sobre ele, como a possibilidade de sua identificao com o homem. Por fim, discutimos a
separao do vivente em relao ao corpo, mostrando que nossa investigao fornece bases
para o mbito moral, da purificao e das virtudes.
Nas consideraes finais, apontamos o que esta pesquisa pde depreender sobre a
definio do homem nas Enadas. Apresentamos nossa busca em compreender o homem de
um modo mais abrangente, em sua relao com o sensvel e o inteligvel.
15
CAPTULO 1 ASPECTOS DA ALMA INDIVIDUAL
1.1 INTRODUO
Nosso propsito analisar a concepo de homem nas Enadas por meio do exame de
alguns tratados e passagens que a discutem direta e indiretamente. Entretanto, deparamo-nos
com alguns impasses que dificultam a compreenso do tema. A importncia do tema
percebida, sobretudo, pela recorrncia em todas as fases das Enadas, desde os primeiros
tratados at o penltimo. No segundo tratado (Eneda IV 7), Plotino relaciona o homem
imortalidade da alma e no 38 (Enada VI 7), s almas sensitiva e racional; no tratado 53
(Enada I 1), a partir da problematizao da atribuio das afeces, Plotino apresenta o
vivente, diferenciando-o do homem.
Constatamos que, para Plotino, o principal problema em torno da definio do homem
a sua relao com a alma e com o corpo, por conseguinte, a relao da alma com o corpo.
No segundo tratado (Enada IV 7), ao relacionar o homem com a alma e sua imortalidade,
parece-nos que Plotino sugere uma identificao do homem com a alma, conferindo tambm
ao primeiro, como essncia, o carter atemporal. Todavia, se o homem eterno, Plotino no
descarta o corpo, temporrio, na composio do mesmo, uma vez que afirma que o homem a
alma e tem o corpo. Enquanto tem um corpo, o homem no algo simples. Todavia, mesmo
se ele tem um corpo, isso no o principal e sim a alma. O homem a alma, independente se
ela como a forma na matria ou como aquela que se serve de seu instrumento. Dessa
maneira, nesse texto, o homem parece ser essencialmente a alma, apesar de manter alguma
16
articulao com o corpo que possui, mas que no o define. Mas, se o homem tem um corpo,
como se d sua relao com ele e quais seriam as implicaes disso, por exemplo, quanto s
afeces?
No tratado 38 (Enada VI 7), Plotino apresenta o homem como eterno e independente
do corpo, como Forma no Intelecto. Esse homem no Intelecto completo, tendo
potencialmente tudo que constitui o homem; ele o homem antes de todos os outros. Mas
Plotino tambm expe sobre o homem como alma determinada por um lgos. Ele o descreve
atravs dos homens sensvel e racional, relacionando-os s almas sensitiva e racional e
sugerindo que eles se identificam com elas e seus respectivos lgoi. Ora, se h a possibilidade
e a hiptese dessa identificao do homem com a alma ou com certas almas, preciso
esclarec-las, na medida do possvel, atendo-nos mais a uma caracterizao geral das mesmas.
Portanto, faz-se necessria uma articulao do homem com sua Forma e com a alma e o
lgos. Por conseguinte, julgamos que teramos que tentar compreender melhor a estrutura da
alma individual com suas potncias e lgoi, bem como a relao deles com o inteligvel e com
o devir, isto , o sensvel e o corpo.
Sem perder de vista a definio do homem, seguimos o percurso da argumentao de
Plotino que, por meio do tratado 53 (Enada I 1), mostra como se d a relao da alma com o
corpo mediante a discusso sobre o vivente e as afeces. Plotino diferencia o homem do
vivente, atribuindo as afeces a esse ltimo, indicando a impassibilidade da alma, j que no
ela propriamente que se une ao corpo para produzir o vivente, mas um trao dela, como uma
luz que projeta um reflexo; preciso discutir se Plotino tambm sugere a impassibilidade do
homem como alma. Sendo assim, notamos a importncia da delimitao entre o homem e o
vivente e entre a alma e sua imagem. Se o vivente definido como o conjunto da imagem da
alma e do corpo, isso requer uma discusso sobre a descida da alma aos corpos. Diante disso,
uma anlise sobre a tangncia do homem com a alma e com o corpo, atravs do vivente e das
17
afeces, mostrou-se necessria. A noo de vivente e de imagem da alma nos leva a adentrar
na questo da potncia e das potncias da alma, tentando esclarecer o que exatamente essa
projeo da alma que se associa aos corpos.
Por sua vez, o tema da descida da alma exige, por si s, que compreendamos seu
oposto, a alma que no desce. E a abordagem dessas questes demanda uma apresentao
mnima do que as fundamenta, a unidade e a divisibilidade da alma. Afinal, se seguirmos o
percurso de Plotino na ordem cronolgica dos tratados, percebemos que ele expe sobre a
unidade e a divisibilidade da alma para ento discorrer sobre a unio e a separao da alma,
construindo as bases tericas para mostrar, no penltimo tratado, que no a alma que desce
ao corpo formando o vivente, mas sua imagem.
A partir do estudo preliminar proposto neste captulo, teremos condies de discutir a
pertinncia de algumas interpretaes dualistas e no dualistas das relaes do homem com a
alma e com o corpo. Com esse exame, poderemos indicar a questo da separao do homem e
da alma em relao ao sensvel e ao corpo.
evidente que uma anlise de toda a teoria da alma em Plotino seria demasiado ampla
e complexa para nossa atual pesquisa, o que justifica no ser possvel realiz-la, mas nos
restringirmos a apenas alguns aspectos mais importantes para o nosso tema. Assim, nosso
objetivo fornecer alguns pressupostos para a questo central da definio do homem, sem
pretendermos dar conta de toda a teoria da alma; por exemplo, no nos caber problematizar a
imortalidade da alma, mas sim tom-la como pressuposto.
Logo, ao investigarmos as questes envolvidas na definio plotiniana do homem,
vimos que ela implica uma articulao com a alma e sua estrutura, assim como nos impele a
discutir a relao do homem e da alma com o inteligvel, o corpo e o sensvel. Desse modo,
esperamos ter justificado a importncia de um estudo preliminar da alma e, por conseguinte,
18
da seleo de alguns aspectos da teoria da alma, tomados como pressupostos ou condies
para a compreenso da definio do homem para Plotino.
Indicamos, resumidamente, os passos seguidos neste captulo que fornece o substrato
terico desta pesquisa, isto , os argumentos preliminares para os outros captulos e para a
questo principal da definio do homem nas Enadas. Partiremos de uma discusso sobre a
unidade e a divisibilidade da alma, pois esse o tema que justifica e fundamenta as questes
sobre a descida da alma aos corpos. No segundo tpico, sobre a unio da alma aos corpos,
investigaremos a imagem da alma que se volta para os corpos, por meio dos tratados 6
(Enada IV 8) e 53 (Enada I 1). Abordaremos a problemtica da alma que no desce e,
finalmente, alguns aspectos das potncias da alma, a fim de compreendermos melhor a unio
e a separao entre a alma e o corpo.
Julgamos que importante tecer algumas consideraes acerca do contexto, da
estrutura e do procedimento de cada tratado. Procuraremos sempre delimitar, ao menos de um
modo geral, a finalidade dos tratados analisados, pois, a nosso ver, no podemos prescindir da
especificidade de cada um deles, j que eles tm seus objetivos em si mesmos, referindo-se
raramente a outro(s) 1 . Analisaremos tambm, na medida do possvel, as rupturas e
continuidades entre eles, afinal, exigir uma coerncia pura e simples entre os escritos
plotinianos pode ser um sinal de que se est desconsiderando a particularidade dos mesmos.
1.2 UNIDADE E DIVISIBILIDADE DA ALMA
Tentaremos esclarecer algumas passagens das Enadas nas quais Plotino expe a
natureza una e divisvel da alma. Vejamos o quarto tratado (Enada IV 2) segundo a
1 Cf. PLOTIN, Ennades, p. xxx.
19
cronologia de Porfrio. Nesse texto, nota-se que Plotino no se ocupa em postular a unidade-
multiplicidade da alma para estabelecer a imortalidade da alma; a isso, ele j dedicou o
segundo tratado (Enada IV 7). O que se encontra, pois, em questo expor a essncia da
alma por ela mesma, sem ter em vista qualquer outra particularidade da alma. Logo, esse
objetivo no pode ser ignorado, pois, do contrrio, compromete a compreenso do tratado e
do modo como ele desenvolvido, enfim, do que e no importante nesse momento.
Plotino visa discorrer sobre a essncia da alma que, como ele j argumentou no
segundo tratado, no nem um corpo, nem harmonia, nem mesmo entelkheia do corpo. Para
ele, tais teses, alm de no serem verdadeiras, no dizem o que a alma. Ele, ento, menciona
noes fundamentais, apesar de saber que no so suficientes para a compreenso desse seu
objeto de pesquisa: a alma de natureza inteligvel e divina2. Essa caracterizao de base da
alma necessria, visto que Plotino recorrentemente deseja ressaltar as distines entre as
coisas inteligveis e as sensveis. As sensveis so divisveis por natureza, tendo essncia
divisvel; suas partes so diferentes e cada parte menor que o todo; cada uma ocupa um
lugar, no podendo estar em vrios ao mesmo tempo3. Diferente dessas e de sua essncia
divisvel, h uma outra natureza, uma essncia indivisvel da qual a divisvel deriva e que no
fragmentada como os corpos.
Mas no s as coisas sensveis tm uma essncia divisvel, a alma tambm. Assim,
Plotino indica a distino entre duas essncias na alma, uma divisvel e uma indivisvel4. A
divisvel recebe a indivisibilidade da indivisvel, mas ela tende para a divisibilidade e no
como uma qualidade (poio/thv) que a mesma em todos os lugares. Mas em que sentido a
alma possui uma essncia divisvel? Plotino declara que somente porque os corpos so
2 IV 2 [4], 1, 5-7.
3 IV 2 [4], 1, 11-17. No de se espantar que Plotino recorra a essa distino de base entre sensvel e inteligvel
para explicar o desenvolvimento de seu pensamento, endossando sua exegese de Plato. 4 Cf. PLATO, Timeu 34c-35a. Cabe a ressalva de que, ao aludir alma como essncia indivisvel, Plotino j
indica que a alma faz parte do inteligvel e inteligvel (noeto/n).
20
divisveis a forma contida neles se divide; mantendo-se inteira, a forma se multiplica e cada
parte se separa das outras:
Como os corpos so divididos, a forma contida neles tambm dividida. No entanto, ela est inteira em cada uma das partes. a mesma forma que se multiplica e cada uma das partes se separa totalmente da outra, uma vez que
ela se torna totalmente dividida5.
O verbo tornar-se (gi/gnomai) crucial: a alma no divisvel, mas torna-se
divisvel nos corpos e somente neles. Mas como a alma se torna divisvel ao vir aos corpos?
Em que sentido deve ser compreendido que a forma (ei]dov) da alma se divide e torna-se
mltipla?
Ainda a propsito das diferenas entre as coisas sensveis e as inteligveis, Plotino
sublinha que a unidade do corpo diferente daquela da alma. A unidade do corpo se d pela
continuidade das partes, as quais so diferentes. A unidade da alma, por sua vez, no a
unidade de algo contnuo de partes distintas. Segundo Plotino, a alma divisvel na medida
em que est em cada parte do corpo e, indivisvel, por estar toda inteira em todas e em cada
uma das partes do corpo; assim, ela se divide e se d toda inteira ao corpo6.
Portanto, a alma , ao mesmo tempo, indivisvel e divisvel, pois se divide nos corpos,
mas permanece toda inteira e a mesma. Ela divisvel nos corpos (meristeh\ peri\ ta\
sw/mata), mas tal diviso acidental, no constituindo, portanto, uma propriedade da alma e
sim do corpo; por isso, ela mesma no se divide, mas se divide no corpo o qual s a recebe
5 IV 2 [4], 1, 34-38. #Wste diairoume/nwn tw~n swma/twn meri/zesqai me\n kai\ to\ e)n au)toi~v ei}dov, o#lon ge mh\n e)n e0ka/stw|? ei}nai tw~n merisqe/ntwn polla\ to\ au)to\ gigno/menon, w{n e#kaston pa/nth a1llou a)pe/sth, a#te pa/nth meristo\n geno/menon. Plotino compara essa diviso da forma da alma com a da forma (morfh/), a das cores e a das qualidades (poio/thtev), as quais tambm permanecem inteiras ao mesmo tempo em vrios corpos separados.
6 Cf. IV 2 [4], 1, 60-66 e IV 1 [21], 1, 18-22.
21
indivisivelmente devido diviso que lhe prpria. Assim, divisvel, ela no divisvel7. A
essncia divisvel procede da essncia indivisvel e mantm o carter indivisvel.
Percebemos como Plotino prev possveis confuses e refutaes que poderiam surgir
com essas noes de unidade e divisibilidade da alma ao rechaar qualquer transferncia de
propriedades do corpo alma. Dizer que a alma divisvel significa que ela o por
concomitncia e acidente de uma necessidade exclusivamente do corpo. Denotar qualquer
outro sentido implica o que Plotino ora insinua, ora explicita: que conhecer a alma a partir do
corpo um grande erro. Transcrevemos uma passagem que resume bem indivisibilidade e a
divisibilidade da alma:
Ento, nos corpos para os quais ela vem, mesmo que venha no maior e que
se estenda a todos, ela se d inteiramente sem deixar de ser una; no no sentido em que o corpo uno, porque ele uno pela continuidade; cada uma
das partes diferente da outra e tambm em lugares diferentes8.
Plotino postula a unidade e a multiplicidade da alma como algo necessrio. O autor
explicita que preciso admitir que algo possa estar em vrios lugares, tendo e administrando
tudo com sabedoria9. O leitor, por sua vez, poderia indagar: mas como a alma pode estar em
vrios lugares ao mesmo tempo? O tratado 53 (Enada I 1) nos auxiliar, pois a metfora da
difuso da luz que projeta seu reflexo e a noo de imagem (ei!dwlon) da alma conferem-nos
respostas chaves a esse tipo de indagao.
No tratado em questo, Plotino se posiciona contra aqueles que defendem que a alma
um corpo divisvel e aqueles que negam sua divisibilidade. Quanto refutao da tese
7 Cf. IV 2 [4], 1, 69-76.
8 IV 2 [4], 1, 57-60. )En oi{v ou}n gi/netai sw/masi, ka@n e)n tw~| megi/stw| gi/netai kai\ e)pi/ pan/ta diesthko/ti, dou~s e9auth\n tw|~? o#lw| ou)k a)fi/statai tou~ ei}nai mi/a: ou)x ou#twv, w(v to\ sw~ma e#n. tw~| ga\r sunexei~ to\ sw~ma e#n, e#kaston de\ tw~n merw~n a!llo, to\ d a!llo kai\ a)llaxou~.
9 Cf. IV 2 [4], 1, 39-48. Supomos que tal necessidade tambm se deva natureza divisvel do corpo ao qual a
alma precisa associar-se. Pretendemos examinar a necessidade da descida alma aos corpos no prximo item.
22
segundo a qual a alma um corpo divisvel, em suma, ele mostra que, se a alma tivesse partes
diferentes em lugares diferentes, quando uma delas fosse afetada, as outras no sentiriam as
afeces. Haveria ento vrias almas para governar cada parte de ns. Por conseguinte, no
existiria uma alma nica, mas uma infinidade de almas separadas umas das outras e, assim,
seria em vo defender a continuidade das partes diferentes10. Ora, Plotino est ratificando a
ideia de que a alma de uma natureza capaz de ser nica e a mesma em diversos lugares ao
mesmo tempo: se for o caso dela sofrer as afeces, o faz como um todo e o mesmo. Em
relao necessidade da divisibilidade da alma, eis o que Plotino diz:
Se, ao contrrio, a alma fosse totalmente una, completamente indivisvel e una nela mesma, se escapasse toda multiplicidade e diviso, nada daquilo que ela envolve seria animado por inteiro; mas se ela mesma fosse colocada no centro de cada um, ela deixaria inanimada toda a massa do
vivente11.
Plotino ataca os estoicos, segundo os quais as afeces chegam parte dirigente da
alma por uma transmisso progressiva. Para ele, alm dos estoicos no realizarem um exame
suficiente sobre essa parte dirigente (h(gemo/nov) da alma, no claro se, admitindo tal tese,
somente a parte dirigente perceberia a sensao. Se assim o fosse, as outras partes no o
fariam, pois seria intil; ou haveria uma infinidade de sensaes diferentes. Plotino questiona:
se ela no a nica a sentir, no h motivo para ser dirigente, afinal, por que ela seria a
dirigente quando outra que sente? E por que a sensao precisaria chegar at ela12?
10 Cf. IV 2 [4], 2, 5-10.
11 IV 2 [4], 2, 35-39. Ei ) dau} pa/nth e$n h( yuxh\ ei!h, oi{on a)me/riston pa/nth kai\ e)f e)autou~ e#n, kai\ pa/nth plh/qouv kai\ merismou~ e)kfeu/goi fu/sin, ou)de\n o#lon, o#ti a@n yuxh\ katala/boi, e)yuxwme/non e!stai: a)ll oi[on peri\ ke/ntron sth/sasa e9auth\n e)ka/stou a!yuxon a@n ei!ase pa/nta to\n tou~ zw/|ou o!gkon.
12 Frequentemente, Plotino convoca o leitor em seu discurso, evocando interlocutores fictcios para o desenvolvimento das questes.
23
Nesse tratado, alm dessas, Plotino suscita diversas perguntas retricas sobre a
concepo estoica de alma: como eles dividem a alma; como dizem onde comea uma parte e
onde termina outra; qual a diferena entre elas, j que formam algo contnuo; e qual a
extenso conferida a cada uma delas. As crticas aos estoicos so constantes, sendo que
adquirem um tom retrico, pois, na maioria das vezes, sem se aproximar detidamente do
pensamento dos mesmos, Plotino ressalta que eles se enganaram, que no explicaram bem
certas noes etc. como se o leitor os conhecesse bem e no precisasse de uma
recapitulao minuciosa de suas ideias. Afigura-nos que Plotino opta retoricamente por deixar
prevalecer suas ideias sobre aquelas de seus adversrios ao invs de discutir com eles de um
modo mais detido e deixar que o leitor tire suas prprias concluses.
A respeito da divisibilidade da alma devido s suas potncias ou faculdades, Plotino
explicita, em algumas passagens das Enadas, que a alma una apesar da multiplicidade de
suas potncias. O oitavo tratado (Enada IV 9), que expe o tema da unidade das almas,
elucida brevemente a questo. Plotino argumenta que a essncia que se divide nos corpos
una e produz as potncias, como a de sentir, dividindo-se; assim, apesar de refletir mais de
uma potncia, tal essncia una, sendo que dessa unidade provm a multiplicidade una
(polla\ e#n)13. A ideia de multiplicidade una ou de unidade diferenciada esclarecedora, pois
mostra como a unidade prevalece na diversidade: as potncias procedem de uma unidade que
se desdobra em uma multiplicidade sem deixar de ser una. Uma breve passagem merece
ateno, pois, nela, Plotino enftico em afirmar que a alma tem potncias, mas no tem
partes: ento, tambm a alma mltipla, mesmo se no tem partes, pois h muitas potncias
nela14.
13 Cf. IV 9 [8], 3, 10-18.
14 VI 9 [9], 1, 39- 40. e1peita de\ pollh\ h( yuxh\ kai\ h( mi/a ka@n ei) mh\ e)k merw~n: plei~stai ga\r du/nameiv e0n au)th|~. Cf. II 9 [33], 2, 6.
24
Blumenthal 15 auxilia-nos ao comentar que, muitas vezes, Plotino no segue a
tripartio platnica, mas o modelo aristotlico de alma una com vrias potncias, funes e
faculdades, apesar de tambm mostrar, por uma aparente inconvenincia, as dificuldades das
categorias aristotlicas. Diramos que as Enadas se mostram fiis a Plato e a algumas de
suas noes, deixando-se impregnar por seu vocabulrio e por suas ideias, mas tambm
dialogam com Aristteles16. Os principais textos nos quais Plotino alude tripartio da alma
e a adota so as Enadas IV 4 [28] e IV 7 [2]. A Enada IV 4 aborda a diviso da alma em
potncias ou faculdades e as distines entre elas. Em IV 7, ele delineia a alma tripartite
encarnada em oposio quela que indivisvel em sua natureza. Pode-se dizer que Plotino
est sugerindo dois modos de existncia da alma?
Vejamos brevemente se e como possvel falar em diferentes modos de existncia da
alma. claro que, se a alma vive no corpo, isso no deixa de ser um modo de existncia dela,
no sentido de ser um tipo de manifestao de sua essncia, diramos. O outro modo seria sua
vida junto Alma universal, sem estar encarnada. Portanto, no vemos problema em dizer que
h modos da alma expressar sua essncia, mas que ela pode viver de modos diversos.
Voltando discusso sobre as partes da alma, Plotino oscila entre os termos parte
(me/rov) e potncia (du/namiv). Porm, apesar de falar recorrentemente de partes, parece-nos
que esse mais um dos termos utilizados por ele que no podemos entender literalmente, pois
essa mais uma exigncia de coerncia nossa do que dele. Isso no significa dizer que Plotino
no foi cuidadoso em seus escritos, mas que aponta ciente ou no os limites do discurso
para expressar as sutilezas prprias aos inteligveis, nesse caso. como se ele pensasse que
seus leitores no se ateriam s falhas prprias razo discursiva e que, por isso, no fosse
necessrio ser to minucioso na distino dos termos, o que poderia implicar mais falhas.
15 Cf. BLUMENTHAL, Plotinus Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 23.
16 Poder-se-ia dizer que h uma sntese peculiar de Plato e Aristteles, mas lembramos que h, sobretudo, uma
centralidade de Plato nos textos plotinianos.
25
Como bem nota Blumenthal17, Plotino parece frequentemente inconsistente e incoerente em
sua terminologia, mas no em seu pensamento. Com efeito, a linguagem discursiva se mostra
ambgua, contraditria e insuficiente muitas vezes nas Enadas, gerando dificuldades
conceituais no leitor.
Santa Cruz18 nota que a alma essencialmente una, mas possui uma funo dupla: a
superior, que se mantm consagrada contemplao de sua fonte, e a inferior, que se dirige
para o sensvel sem se separar da outra. Blumenthal tambm utiliza esse termo e Pradeau, por
sua vez, o indica ao dizer que o carter divisvel da alma no uma diviso substancial, mas
uma aptido funcional 19 . Vejamos a pertinncia e o cuidado exigido para adotar essa
interpretao.
Pensar em funo ao invs de parte da alma parece-nos adequado, pois remete ao
sentido de atividade (e!rgon), termo bastante empregado por Plotino para se referir s
operaes das potncias da alma. Afinal, exatamente desse modo que compreendemos: a
alma desempenha vrias funes atravs de suas potncias, mas permanece a mesma, ou seja,
ela realiza diferentes atividades, sem, no entanto, deixar de ser ela mesma, isto , una20.
Depreendemos que a divisibilidade da alma no oposta sua indivisibilidade, mas
algo que procede dela necessariamente, pois sua multiplicidade de potncias no anula sua
unidade. Assim, pode-se notar que Plotino ratifica as teses platnicas de simplicidade e de
composio da alma. Entrementes, isso no significa unificar as duas concepes na natureza
da alma, que, em essncia, una, pois, do contrrio, torn-la composta seria retirar seu carter
divino e imortal; ademais, sintetiz-las seria igual-las, conferindo-lhes o mesmo peso e
sentido. A composio e a divisibilidade da alma devem ser compreendidas como uma
17 Cf. BLUMENTHAL, Plotinus Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 14.
18 Cf. SANTA CRUZ, La gense du monde sensible dans la philosophie de Plotin, p. 48.
19 Cf. PRADEAU, Limitation du principe. Plotin et la participation, p. 77-78.
20 Seria preciso esclarecer os conceitos de potncia e ato para Plotino atravs, por exemplo, da Enada II 5 [25]. Apesar de no ser possvel adentrarmos nesse complexo tratado, sabemos que isso seria foroso para evitar equvocos sobre as distines entre ato e potncia no sensvel e no inteligvel, tema que ele apresenta nesse texto.
26
necessidade do corpo, mas no dela propriamente, de sua essncia. Em outros termos, a alma
divisvel nos corpos, mas no em si mesma. Dizer que ela composta uma maneira de
expressar e mais uma falha da linguagem que no capaz de traduzir, nesse caso, a natureza
da alma. Esse mais um dos momentos em que percebemos a limitao e a imperfeio do
discurso para transcrever determinadas coisas como elas so exatamente e de um modo que
seja compreensvel para todos.
Muitas vezes, Plotino parece delimitar os receptores de seu discurso, o qual no seria
para todos, mas somente para aqueles que podem compreend-lo, aqueles que, de alguma
maneira, j experienciaram o que ele diz. Na medida em que cada um est em um nvel
cognitivo, muitos no o compreendem nem mesmo o aceitam. Ora, como aceitar um discurso
que sempre ser falho, j que se encontra na dualidade? O discurso, de algum modo, capaz
de conduzir a alma para o alto, mas Plotino parece querer demonstrar que nenhuma teoria
esgotar toda a verdade sobre o tipo de experincia que ele teve e que incita os outros a terem.
Afinal, o discurso, o raciocnio e mesmo a presena das hipstases e do Uno em todas as
coisas no so suficientes e no substituem a apreenso do Intelecto e do Uno.
Vimos que Plotino enftico em conceber a alma, ao mesmo tempo, como indivisvel
e divisvel nos corpos. Por isso, mister discutir, de modo mais profundo, como essa
diviso da alma nos corpos, em outros termos, como se opera sua descida (ka/qodov) ou queda
(e!kptwsiv) nos mesmos21. Afinal, a unio e a relao desses dois elementos constituem um
problema que gera implicaes em uma discusso sobre a natureza do conjunto deles; enfim,
elas incluem importantes noes e argumentos que as fundamentam e que conduzem
justificao do que o homem. Plotino introduz o tema no quarto tratado (Enada IV 2) e o
desenvolve mais detalhadamente no sexto (Enada IV 8).
21 Vogel nota bem que a descida da alma nos corpos no necessariamente uma queda no sentido de ser um mal em si mesmo. Isso pode ocorrer se a alma perder o contato com o que est acima dela e permitir que o corpo lhe seja uma priso. A alma tem que cuidar do corpo, mas ela pode realizar essa tarefa devidamente mantendo-se para o que lhe anterior. Cf. VOGEL, Plotinus image of man. Its relationship to Plato as well as to later neoplatonism, p. 147-148.
27
1.3 A DESCIDA E A UNIO [DA IMAGEM] DA ALMA AOS CORPOS
1.3.1 Enada IV 8 [6]
Logo no incio do sexto tratado (Enada IV 8), de um modo muito breve, mas
impactante, Plotino relata seu frequente (polla/kiv) despertar para si e sua sada do corpo
para a contemplao de uma beleza imensa e admirvel, pertencente ao que h de melhor.
Interior a ele mesmo e estabelecido no divino, exerce uma atividade suprema. Ele vive a
melhor vida e se assemelha ao divino, mas, aps esse repouso no divino, desce do Intelecto ao
raciocnio (logismo/v)22. A partir de ento, questiona por que ocorre tal descida e por que a
alma adentrou no corpo, estando ela nela mesma tal como lhe pareceu, apesar de habit-lo.
Percebemos que, j de incio, Plotino fixa o propsito de esclarecer no s a unio e a
separao da alma com o corpo, mas tambm de ratificar a natureza divina da alma. Mesmo
estando no corpo, a alma no somente divisvel, mas conserva sua indivisibilidade, a
natureza de sua totalidade23.
evidente como Plotino utiliza sua experincia para tentar expor sua viso de que a
alma no desce, efetivamente, aos corpos. Ele sublinha que voltou para si mesmo,
permanecendo alheio e estranho a qualquer outro 24 . Ento, explicita que a alma que
contemplou naquele momento se encontra no inteligvel e, portanto, difere daquela ligada ao
sensvel. notvel como Plotino sugere a interiorizao e o mergulho para dentro de si em
22 Por ora, traduzimos logismo/v por raciocnio, sem especificar sua discursividade, reflexividade e logicidade; tambm traduzido por reflexo e pensamento reflexivo. Optamos por um termo mais geral que designa, com menos problemas, a atividade intelectiva prpria da alma, sendo que, somente quando houver necessidade de acrescentar sua especificidade, assim o faremos para uma melhor compreenso dos diferentes aspectos do termo e de seus derivados, como o logistikn; mas observamos a fluidez da terminologia de Plotino e, por isso, a dificuldade em determinar a qual acepo ele se refere o que gera as adequaes dos tradutores e intrpretes.
23 Cf. IV 1 [21], 1, 17-19.
24 IV 8 [6], 1, 2. Gino/menov tw~n me\n a1lwn [e!xw], e)mautou~ de\ ei!sw.
28
oposio exteriorizao para que se realize a contemplao do que superior ao sensvel e
imediato. Lembramos que, no tratado 49 (Eneda V 3), Plotino compara a atividade da
potncia sensitiva da alma de se direcionar para o exterior com aquela do Intelecto, cujos
objetos de conhecimento so internos, para afirmar a superioridade do conhecimento de si
desse ltimo. Tambm cabe observar que tal atitude de se interiorizar um despertar
(e)geiro/menov), como se estar voltado para o exterior fosse um estado de sono, nescincia ou
iluso.
Nesse texto, Plotino analisa o aspecto moral da descida da alma aos corpos e o mbito
cosmolgico do governo dos corpos pela alma e da necessidade (e1dei) da descida da alma.
Seu intuito discutir os problemas decorridos das interpretaes que foram feitas a respeito
desses dois aspectos. No que tange ao aspecto moral, a questo discutir se qualquer relao
da alma com o corpo um mal.
Analisemos o que Pradeau e Santa Cruz comentam sobre o tema25. Em suma, h um
paradoxo nessa descida da alma aos corpos que, por um lado, um mal que impede a alma de
exercer suas atividades superiores como o pensamento discursivo (dinoia), mas, por outro,
faz parte de uma necessidade cosmolgica de haver, no sensvel, todos os entes do inteligvel,
e de a alma animar todo o mundo e os entes26. No nos parece satisfatria tal justificativa de
ser um mal a alma no exercer o pensamento discursivo quando est no corpo, afinal, ela o
exerce, mas a questo como o faz; o mal dela est em se deixar dominar por ele, isto ,
deixar as atividades da alma inferior sobressarem. Ademais, o fato de a alma estar em um
corpo o que possibilita suas potncias exercerem suas atividades, como essa do pensamento
discursivo, j que no vemos dificuldade ou problema em admitir que elas so potncias da
alma encarnada.
25 Cf. PRADEAU, Limitation du principe. Plotin et la participation, p. 73-79. SANTA CRUZ, La gense du monde sensible dans la philosophie de Plotin, p. 118-123.
26 A nosso ver, nesse tratado, Plotino sugere que a necessidade da alma de descer aos corpos a primeira encarnao; em outros tratados ele ir discutir a escolha da alma para novas encarnaes, retomando o mito do livro X da Repblica.
29
A est o carter, por assim dizer, positivo da descida da alma aos corpos: Plotino
explica que ela possibilita a manifestao das potncias, j que, do contrrio, elas seriam
inertes27. Ora, assim que a razo discursiva e a linguagem se revelam e se desenvolvem.
Nesse contexto, mergulhar na multiplicidade um movimento necessrio para a processo.
Ademais, tambm uma oportunidade para a alma conhecer o Bem comparando-o com seu
contrrio28. Desse modo, poderamos dizer que essa descida tem sua importncia, tem uma
funo pedaggica no sentido de auxiliar e ensinar a alma a conhecer o Uno-Bem. possvel
inferir tambm o papel do mal como contrrio do bem e como falta dele e do corpo. Mas
claro que tal vantagem ou positividade tem tambm seu reverso, qual seja, a de as almas se
afastarem do Uno-Bem, j que a razo discursiva e a linguagem geram a dualidade e
permanecem nela. Sendo assim, abre-se um ciclo de afastamento e de aproximao do
Princpio Supremo. Podemos concluir que Plotino tenta integrar os dois aspectos da descida
da alma aos corpos, mostrando que eles so compatveis e no excludentes.
Notamos que, durante todo o tempo, se trata da seguinte questo: por que a alma ou
melhor, determinada alma inclina-se para o sensvel e para o corpo, para fora do inteligvel?
Segundo Plotino, uma vez que h uma multiplicidade de inteligncias no inteligvel, preciso
que, a partir de uma alma nica, surjam vrias almas, diferentes hierarquicamente. Ele ainda
esclarece que a alma se inclinaria para baixo porque se lembra das coisas terrestres. H
tambm uma imprudente temeridade ou audcia (to/lma) da alma de se afastar do inteligvel,
direcionando-se para o oposto do Bem a matria e para o sensvel29. Contudo, apesar de se
difundir em direo ao sensvel, isso no impede que ela possa se voltar para o inteligvel.
Assim, percebe-se que h um conjunto de causas que levam a alma a se voltar para o
sensvel, embora ela tenha a possibilidade de se manter no inteligvel. Tambm se nota que
Plotino no explicito quanto ordem dessas causas, qual ou quais teriam mais fora,
27 Cf. IV 8 [6], 5, 29-33.
28 Cf. IV 8 [6], 7, 15.
29 Cf. V 2 [11] 2, 6. Tal audcia possibilita alma constituir-se no sensvel.
30
determinando a inclinao ao sensvel. Mas nos parece que a causa intrnseca ao inteligvel,
de ter que haver diferentes almas por haver diferentes inteligncias, a causa base. Tentemos
mostrar o que nos impele a adotar tal posio.
Julgamos importante discutir brevemente alguns aspectos da liberdade e
voluntariedade, e da necessidade da inclinao da alma aos corpos, j que um problema se
impe: a descida seria motivada no s pelo desejo e pela audcia da alma, mas tambm por
um certo dever imposto a ela? A inclinao para o sensvel voluntria e importante para que
a alma desenvolva suas potncias e, assim, ordenar o que est abaixo dela. Para Plotino, no
ruim que a alma fuja rpido e conhea o mal e o vcio, exercitando suas potncias. Pelo
contrrio, manifest-las bom, pois, no incorpreo, elas so inativas e, logo, seriam vs se
no passassem ao ato30. Sendo assim, se h necessidade e exigncia de ordenao, ela no
contraditria liberdade e voluntariedade na descida31. Mas como dever de ordenao e de
liberdade em ordenar conjugada com o desejo de descer no seriam excludentes nesse
caso?
Banacou-Caragouni aprofunda bem tal questo da necessidade da descida da alma aos
corpos, auxiliando-nos a obter uma compreenso mais precisa sobre o carter voluntrio da
inclinao da alma ao sensvel. Segundo ele, a necessidade a expresso de uma lei universal
que determina a conduta das hipstases, de modo que sempre haja ordem no universo; essa lei
a prpria natureza das hipstases, no sentido de ser uma exigncia (a)napo/drastov) natural
qual no se pode escapar; em outras palavras, a necessidade se estabeleceu na natureza da
alma. Por isso, a determinao de ordenar, por ser natural e intrnsica alma, significa
liberdade, no havendo, portanto, nenhuma contradio. Para ele, nesse sentido que se deve
30 Cf. IV 8 [6], 5, 26-30.
31 IV 8 [6], 5, 7-8. To\ e)kou/sion th~v kaqo/dou kai\ to\ a)kou/sion au}.
31
compreender que a necessidade implica a liberdade32. As almas no se sentem limitadas
pela necessidade, pois essa lhes uma tendncia natural e, por assim dizer, inoprimvel33.
O tratado 27 (Enada IV 3) explcito em afirmar, ao mesmo tempo, a necessidade, a
justia, a involuntariedade, a vontade e a espontaneidade da descida da alma. No preciso
que algo a conduza, mas, no momento certo, ela desce ao corpo apropriado e semelhante, e de
acordo com sua disposio (diaqe/sewv)34. como se ela seguisse apelo de um arauto. Assim,
presume-se (ei)ka/zw) que a alma movida por uma potncia mgica de uma atrao
irresistvel. Portanto, a descida no voluntria, mas, ao mesmo tempo, a alma no enviada;
pelo menos sua vontade ou desejo (proqumi/a) no uma escolha, mas como um salto por
impulso, segundo a natureza (kata\ fu/siv) ou como quando se realizam belas aes sem
reflexo (logismo/v).
Todavia, por vezes, Plotino sugere que a queda da alma, sua perda das asas e seu
aprisionamento nos corpos fazem parte de uma espontaneidade ruim de determinadas almas e
no da necessidade da ordem das coisas. As almas se desviaram do governo dos seres
superiores, guiados pela Alma do todo ou universal (yuxh/ th~~v o#lhv). Mas tal afastamento
em relao Alma universal ou hipstase devido a um impulso de produo35. Assim, as
almas so obrigadas a se introduzirem nos corpos para govern-los, pois o fazem no por
vontade36 de escolha delas, mas por seguirem inevitavelmente uma lei estabelecida nelas
mesmas. Mas, como vimos, seguir essa lei ou necessidade no algo contrrio natureza e
tendncia das almas. Assim, Plotino s vezes afirma a necessidade, mas o faz no sentido de
32 IV 8 [6], 5, 3-4. )Epei/per e!xei to\ ekou/sion h( a)na/gkh.
33 Cf. BANACOU-CARAGOUNI, Observations sur la descente de lme dans les corps chez Plotin, p. 59, 62.
34 Nesse texto, Plotino explica que cada alma desce para um corpo feito para receb-la, conforme sua prpria disposio; elas so transportadas para o corpo com o qual elas tm mais semelhanas, uma em um corpo de homem, outra em um corpo de um animal, diferente para cada uma. IV 3 [27], 12, 35-39. Ressaltamos que esse tratado fundamental no tema amplo e complexo da liberdade e da responsabilidade, junto providncia, ao determinismo e ao destino; mas no temos condies de discuti-lo aqui e lembramos ainda que tal tema pouco examinado pelos intrpretes de Plotino e merece uma investigao.
35 Cf. IV 7 [2], 13 e IV 8 [6], 4.
36 Banacou-Caragouni lembra a diferena da vontade espontnea e unvoca das almas individuais daquela vontade de essncia da Alma universal. Cf. BANACOU-CARAGOUNI, Observations sur la descente de lme dans les corps chez Plotin, p. 62-64. Cf. IV 8 [6], 2, 18-29; IV 3 [27], 9, 38-40.
32
ela implicar automaticamente e simultaneamente a liberdade. Da o carter paradoxal da
descida: involuntria, mas, ao mesmo tempo, efeito do movimento prprio alma, ou seja,
liberdade e necessidade esto juntas e no se excluem.
Em contrapartida, se as almas permanecem no inteligvel, preservam-se do sofrimento;
mas elas se separam dele e das outras almas, o que faz com que vivam uma vida entre o
sensvel e o inteligvel. Significa que, uma vez que elas caem nos corpos, tm
necessariamente essa vida dupla, tornando-se anfbias e desenvolvendo uma funo (e!rgon)
dupla37. Elas vivem a vida do sensvel daqui e a do inteligvel de l. Ressaltamos
que, mais uma vez, Plotino emprega o verbo tornar-se (gi/gnomai): as almas passam a ter
uma vida dupla, pois elas no a tm desde a origem38, o que demonstra que essa uma
caracterstica que lhes foi acrescida ou adquirida. Schniewind39 refora a ideia de que
somente porque as almas descem e entram no devir que elas vivem, necessariamente, uma
vida dupla. De fato, o que Plotino diz:
Aps sua queda, a alma foi presa e acorrentada, agindo apenas pelos sentidos, pois, no incio, est impedida de agir pelo intelecto. Ela est, como se diz [Plato], em um tmulo e em uma caverna, mas, voltando-se para a inteleco, livra-se dos laos e parte da reminiscncia para contemplar os
seres. Pois ela tem algo que sempre permanece no alto. Ento, as almas
passam a ter necessariamente, por assim dizer, vidas duplas e vivem, em parte, a vida de l e, em parte, a daqui; vivem mais a de l, quando so
37 Cf. IV 8 [6], 3, 21-31. importante ressaltar que, nesse contexto, se trata da vida dupla da alma. Quando discutirmos a concepo de homem para Plotino, avaliando a possibilidade de sua identificao com a alma, retomaremos esse ponto, analisando se adequado dizer que o homem tambm tem uma vida dupla.
38 Mais tarde tentaremos esclarecer a natureza originria da alma (a(rxai~an fu/siv), isto , a alma sem acrscimos, no item A alma que no desce.
39 Cf. SCHNIEWIND, Les mes amphibies et les causes de leur diffrence. propos de Plotin, enn. IV 8 [6], 4. 31-5, p. 185.
33
capazes de se unir ao Intelecto e mais a daqui, quando, ou pela natureza ou
por circunstncias acidentais, ocorre o contrrio40.
Tentemos compreender melhor essa vida dupla da alma. Destacamos que Plotino
ressalta a ideia de consequncia (ou}n): como a alma pode agir apenas pelos sentidos ou se
voltar para o Intelecto, ento, ela tem, necessariamente, uma vida dupla. Segundo
Schniewind41, h uma perspectiva espacial atravs dos termos aqui e l, sendo que o ser
anfbio sublinhado por essa dimenso. Dessa forma, a alma estaria dividida entre o sensvel
e o inteligvel, vivendo, ao mesmo tempo, uma e a outra vida. Para ela, essa natureza dupla da
alma permite-lhe viver nos dois elementos. Entretanto, no nos parece adequado analisar tais
termos, aqui e l, somente e simplesmente no sentido espacial e nem afirmar que h uma
ideia implcita de que a alma vive as duas vidas sempre e ao mesmo tempo.
Literalmente, Plotino diz que ela vive em parte (para/ me/rov) a vida de l, em parte, a
daqui. A nosso ver, estar entre o inteligvel e o sensvel significa que a alma pode se dirigir
para um ou para o outro, no de um modo simultneo. Afinal, certamente, essa sua
possibilidade de alternncia de foco que a faz ser algo intermedirio. Ademais, evidente
que as metforas so falhas, mas, ao comparar a alma a um anfbio, Plotino elucidaria o
significado do ser anfbio, aquele que vive ora em um ambiente, ora em outro e no nos dois
ao mesmo tempo. Preferimos ento sustentar que Plotino parece destacar que ora a alma est
voltada para o inteligvel, ora para o sensvel, sendo que, com isso, ele traa o papel
intermedirio da alma. A alma pode viver no inteligvel e participar do sensvel ou vice-versa.
40 IV 8 [6], 4, 25-35. Ei!lhptai ou}n pesou~sa kai\ pro\v tw|~ desmw~| ou}sa kai\ th~ ai)sqh/sei e)nergou~sa dia\ to\ kwlu/esqai tw|~ nw|~ e)nergei~n katarxa/v, teqa/fqai te le/getai kai\ e)n sphla/iw| ei}nai, e0pistragei~sa de\ pro\v no/hsin lu/esqai\ te e)k tw~~n desmw~~n kai\ a)nabai/nein, o#tan a)rxh\n la/bh| e)c a)namnh/sewv qea~sqai ta\ o!nta. !Exei ga\r a0ei\ ou)de\n h{tton u(pere/xon ti. Gi/gnontai ou}n oi{on a)mfi/bioi e)c a)na/gkhv to/n te e)kei~ bi/on to/n te e(ntau~qa para\ me/rov biou~sai, plei~on me\n to\n e)kei~, ai$ du/nantai ple/on tw~| nw~~| sunei~sai, to\n de\ e0nqa/de plei~on, ai{v to\ e)nanti/on h@ fu/sei h@ tu/xaiv u(ph~rcen.
41 Cf. SCHNIEWIND, Les mes amphibies et les causes de leur diffrence. propos de Plotin, enn. IV 8 [6], 4. 31-5, 185-186, 190.
34
A funo intermediria da alma mencionada em vrias passagens desse tratado, eis uma
delas:
Sendo sua natureza dupla, inteligvel e sensvel, ento, melhor para a alma estar no inteligvel, mas necessrio, tendo aquela natureza, que ela participe tambm do sensvel. E ela no deve se irritar contra si mesma se ela no , de modo pleno, o superior. Ela ocupa uma posio intermediria entre os seres, pois, tendo uma parte divina, est na extremidade inferior do inteligvel. Estando no limite do sensvel, ela lhe d algo; dele, ela recebe algo em troca se no se ordena em sua estabilidade e se, por muito ardor, mergulha para dentro sem permanecer completamente junto alma do todo. Contudo, possvel a ela novamente vir tona a partir do sensvel42.
Plotino ainda tece uma comparao entre as almas no que concerne capacidade de se
orientarem para o Intelecto, deixando prevalecer a vida do inteligvel. claro que, apesar de
estarem nos corpos e, por isso, terem que participar do sensvel, elas tm a liberdade e a
possibilidade de retornarem para o inteligvel, porm, umas tm mais dificuldades do que
outras para tanto, ou por natureza ou por circunstncias acidentais43. O curioso que Plotino
no se refere s almas nesses tratados como homens. Ele estaria aludindo s diferenas dos
42 IV 8 [6], 7, 1-14. Ditth~v de\ fu/sewv tau/thv ou!shv, th~v me\n nohth~v, th~v de\ ai)sqhth~v, a!meinon me\n yuxh~| e)n tw|~ nohtw|~ ei}nai, a)na/gkh ge mh\n e!xei kai\ tou~ ai)qhtou~ metalamba/nein toiau/thn fu/sin e)xou/sh|, kai\ ou)k a)ganakthte/on au)th/n, ei) mh\ pa/nta e)sti\ to\ krei~tton, me/shn ta/cin e)n toi~v ou}sin e)pisxou~san, qei/av me\n moi/rav ou}san, e)n e)sxa/tw| de\ tou~ nohtou~ ou}san, w)v o#moron ou}san th|~ ai)sqhth|~ fu/sei dido/nai me\n ti tou/tw| tw~n par au(th~v, a)ntilamba/nein de\ kai\ par au)tou~, ei) mh\ meta\ tou~ au9th~v a)sfalou~v diakosmoi~, proqumi/a|, de\ plei/oni ei)v to\ ei!sw du/oito mh/ mei/nasa o#lh meq o#lhv, a!llwv te kai\ dunato\n [o@] au)th~| pa/lin e)canadu~nai, i9stori/na w{n e)ntau~qa ei}de/ te kai\ e!paqe proslambou/sh| kai\ maqou/sh|, oi{on a!ra e)sti\n e)kei~ ei]nai kai\ th~| paraqe/sei tw~n oi{on e)nanti/wn safe/steron ta\ a)mei/nw maqou/sh|.
43 O que as torna mais ou menos capazes de retornarem ao Intelecto e ao Uno? No tratado em questo, Plotino admite a existncia de uma causa interna e de algumas externas: a primeira seria a disposio (dia/qesiv) interna da alma e as segundas, os eventos fortuitos (tu/xai). Nesse texto, Plotino no precisa essas causas, mas o faz em IV 3, quando as elenca: 1. diferena dos corpos nos quais a alma entra; 2. eventos fortuitos; 3. tipos de educao; 4. diferena inerente das almas; 5. todas as razes juntas; 6. combinao de algumas razes. Plotino ainda expe sobre causas geogrficas e ambientais, hereditrias e astrolgicas; alm dessas, h a experincia passada, a qual tambm contribui para o carter. Cf. III 1 [3], 5 e IV 3 [27], 8.
35
homens ou das almas? Fazemos coro com Schniewind44 em afirmar que isso soa como um
problema de rdua compreenso nas Enadas. Acrescentamos que esse um ponto que
mostra o quanto se faz necessrio uma discusso sobre a identificao do homem com a alma,
a qual constitui a grande questo que motiva este trabalho.
Segundo Plotino, antes de se separarem do inteligvel e das outras almas, as almas
estavam em um estado melhor, pois, aps a queda, agem apenas pelos sentidos e no pela
inteligncia. Retornando ao inteligvel e se mantendo ligada a ele, a alma se livra dos seus
laos com o sensvel e se eleva quando parte da reminiscncia para contemplar os seres
superiores. Isso ocorre porque ela tem algo que sempre permanece no alto45. Assim, se a
alma se inclina para o sensvel, ela no desce completamente. Mas o que seria esse algo da
alma que permanece sempre no inteligvel? o que nos propomos a tentar compreender em
seguida.
1.3.2 Enada I 1 [53]
A fim de compreender melhor como se d a descida ou a unio da alma aos corpos,
ateremo-nos a essa questo no tratado 53 (Enada I 1). Esse tratado fundamental para a
compreenso do tema, pois Plotino traz cena um nvel psquico, qual seja, o da imagem da
alma, para justificar que no a alma que se inclina para baixo, mas algo derivado dela. A
alma gera essa imagem quando desce, isto , quando se inclina para o sensvel e o corpo.
Consciente de que a linguagem no capaz de exprimir adequadamente a descida ou a unio
da alma aos corpos, Plotino recorre metfora da luz que projeta seu reflexo sem se confundir
44 Cf. SCHNIEWIND, Les mes amphibies et les causes de leur diffrence. propos de Plotin, enn. IV 8 [6], 4. 31-5, p. 199.
45 IV 8 [6], 4, 30-31. !Exei ga\r ti a0ei\ ou)de/n h{tton u(pere/ron ti.
36
ou ser afetada pelo que ilumina46. Desse modo, quando Plotino apresenta a descida e a unio
da alma aos corpos, no se pode esquecer que ele se refere imagem da alma; logo, quando
ele exprime que o corpo participa da alma e que a recebe, refere-se a essa outra espcie de
alma47.
importante destacar que Plotino discute com a tradio, em especial, Plato,
Aristteles e os estoicos. Contudo, nosso intuito no analisar como Plotino retoma algumas
doutrinas da tradio e estabelece relaes com esses autores; visamos apenas reproduzir o
modo como ele se apropria de algumas teses de Plato, de Aristteles e dos estoicos, e no
avaliar a pertinncia ou no da leitura plotiniana dos mesmos. Evidenciaremos a presena
desses autores e os dilogos mantidos com eles por Plotino por meio de alguns temas que so
importantes para este trabalho.
Dito de um modo geral, para Plotino, o instrumentalismo platnico48 no d conta
plenamente da unio da alma com o corpo expressa, no tratado 53, sobretudo, pela sensao
e pela afeco , pois no garante a impassibilidade da alma49. Na analogia instrumentalista
do piloto no navio, a qual representa a forma em contato com o corpo, o piloto s est
presente em uma parte do navio, ao contrrio da alma, que anima todo o corpo. O timoneiro,
sim, tem uma relao diferente com o timo: ele no tem apenas uma presena espacial, local
ou parcial, pois o timo seu instrumento conatural. Reformulando o instrumentalismo
platnico, Plotino sugere que a alma e o corpo podem estar unidos tese aristotlica de que o
corpo um instrumento conatural da alma, porque ele no subsiste sem ela50. A questo que
ele explicita que no a alma que se une aos corpos, mas sua imagem, o que assegura a
impassibilidade daquela. Sendo assim, dizemos que o instrumentalismo no d conta da unio
46 Cf. I 1 [53], 4, 12-16; 7, 4; 12, 25; 11, 14.
47 Cf. I 1 [53], 7, 1-6 e 12, 23-24.
48 Cf. PLATO, Alcibades, 129c.
49 Cf. PLOTIN, Trait 53, p. 137.
50 Cf. ARISTTELES, De Anima II 1. 413a.
37
de certa alma com o corpo ou que ele no se aplica irrestritamente a todo tipo de unio da
alma e do corpo.
Em I 1 [53], 3, 21-26, Plotino afirma que h uma alma separada que utiliza o
instrumento e outra que se mistura de alguma maneira. A dificuldade est em compreender
qual alma exatamente essa que separada e utiliza o corpo como seu instrumento conatural.
Ademais, de qual alma Plotino almeja estabelecer a impassibilidade? Essa alma que utiliza o
corpo no seria a alma indivisvel, pois ela no tem nenhuma relao com o corpo, nem
mesmo de instrumento. A alma que se mistura ao corpo a imagem da alma, mas o que ela
no evidente nesse tratado, muito menos o que a alma que utiliza o corpo como
instrumento conatural. Eis o que pode ser uma evidncia de que a alma utilizadora e a que se
mistura, isto , a imagem da alma, so diferentes: se a alma utilizadora separada, ela no
seria a imagem da alma, pois vimos que essa ltima desce e se une ao corpo. Mas em que
sentido a alma que utiliza o instrumento separada dele? No precisaria haver alguma relao
entre eles? Para Aubry, a alma utilizadora a dinoia, a qual governa e comanda o corpo51.
Retomaremos a questo mais adiante.
Em relao aos estoicos, Plotino tece sua objeo mistura (kra/siv) da alma e do
corpo tal como apresentada por eles. Ele ratifica a tese estoica de que, em uma krsis, os
componentes no perdem sua identidade, ao contrrio de uma fuso (su/gxisiv), na qual h
uma troca de qualidades. Se a alma e o corpo estivessem unidos em uma fuso, a alma, o
melhor, teria se tornado pior, e o corpo, o pior, melhor; isso significa que a alma receberia a
morte e o corpo, a vida52; e, por conseguinte, recebendo a morte, a alma no seria impassvel.
Sendo assim, a fuso da alma e do corpo contraria o modelo de unio de ambos proposto por
Plotino.
51 Cf. PLOTIN, Trait 53, p. 150-151.
52 Cf. I 1 [53], 4, 1-4.
38
Plotino aceita a krsis no sentido de que ela expressa uma unio em que a alma
permanece essencialmente inalterada. Todavia, se, para os estoicos, a aliana corprea
entre dois elementos corpreos , para Plotino, ela o entre um corpreo e um incorpreo.
Ele os critica, pois, para ele, em toda mistura corprea, os componentes perdem suas
qualidades, permanecendo apenas em potncia. Dessarte, para Plotino, a krsis estoica no lhe
parece verdadeira, uma vez que os elementos se alteram. Na concepo de Plotino, a alma
desenvolve suas funes em direo ao corpo, porque ela no corprea nem se corporaliza.
Faz-se mister lembrar que, nesse tratado, Plotino no visa demonstrar a imortalidade da alma
o que foi feito no segundo tratado (Enada IV 7)53 , mas identificar os problemas da unio
ou mistura de dois elementos corpreos. Segundo ele, preciso pensar a unio da alma e do
corpo, mas de um modo restrito.
Quanto a Aristteles, Plotino no adere sua concepo de uma unio substancial da
alma e do corpo, o que evidencia uma diferena crucial entre os autores nesse ponto. Ao
contrrio, ele postula uma unio acidental, ou seja, pensa a unio, pensando na separao, ou
melhor, sugere uma distino na unio, atravs da imagem platnica de um entrelaamento de
ambos. Essa imagem confere a impassibilidade alma, apesar de no ratificar sua
possibilidade: o entrelaamento no implica, necessariamente, a simpatia pela qual um
experencia algo do outro. Plotino acrescenta, imagem do entrelaamento, aquela da luz, para
demonstrar que a alma projeta sua sombra (skia/) nos corpos, no se dividindo, de fato,
neles54: como a luz que ilumina (oi{on fw~~v e!llamyiv), a imagem da alma se difunde e
entrelaa-se nos corpos. Ele utiliza os termos simulacro, aparncia, vestgio, espcie de eco,
53 Em suma, nos primeiros sete captulos, ele aponta argumentos contra a corporeidade da alma, dos quais enumeramos alguns: se ela fosse um corpo, no seria possvel explicar nem a memria, pois no haveria fixao das impresses nem o pensamento, j que algo corpreo, que admite grandeza, no perceberia algo sem grandeza; como ela permanece inteira em cada parte do corpo, no pode ser corprea. No oitavo e no nono captulos, ele discorre sobre a natureza divina em geral, demonstrando, no dcimo, que a alma pertence a tal natureza para, a partir disso, deduzir sua imortalidade no dcimo primeiro e no dcimo segundo. Cabe registrar que Plotino descarta qualquer caracterizao que implique uma concepo material da alma e, por isso, no permite que se entreveja qualquer delimitao ou localizao espacial da alma.
54 Cf. I 1 [53], 12, 12-18 e 20-30.
39
espcie de luz, trao, calor e irradiao. Com essa metfora, Plotino explica a imanncia e a
transcendncia da alma nos corpos, ela est ao mesmo tempo presente e separada deles. Logo,
a alma permanece indivisvel apesar da diversidade das almas individuais, pois a
divisibilidade imagtica e funcional no substancial , sendo necessria para animar os
corpos.
Ainda em relao a Aristteles, Plotino aceita o hilemorfismo, isto , a imposio da
forma matria ou a unio de ambas, ou, ainda, a alma como forma (morfh/) do corpo. Ele
retoma a analogia aristotlica de que a alma est para o corpo, assim como a forma imposta ao
ferro est para o machado. Se Plotino adapta o instrumentalismo platnico pelo vis do
hilemorfismo, ele modifica esse ltimo: a forma que se une matria a imagem da alma; a
alma indivisvel se mantm separada da matria, havendo, portanto, uma separao na
unio55.
Nos tratados analisados, percebemos que Plotino concilia 56 Plato e Aristteles,
independente se ele tem ou no essa inteno, o que difcil de detectar. s vezes, ele parece
pressupor que seus leitores e interlocutores j tm conhecimento desses autores. Outras vezes,
as aluses so mais pormenorizadas e ele explicita o que no evidente nos textos platnicos,
ou seja, revela suas entrelinhas, buscando explicar seus enigmas. cabvel considerar que,
nessa explicitao, aos olhos do leitor e de alguns intrpretes, Plotino modifica ou transforma
Plato. Entretanto, a nosso ver, seria exagerado afirmar que ele vai at mesmo contra Plato e,
ainda, que o faz propositalmente, mas ntido que ele no repete nem aceita pura e
simplesmente a tradio, no a abraa integralmente. Em suma, ele realiza uma exegese
55 Quanto tese aristotlica de que a alma entelkheia do corpo, no segundo tratado (Enada IV 7, 8), Plotino elabora alguns argumentos contra ela, os quais apenas elencamos, sem ser possvel mostrar como Plotino os desenvolve e tambm sem investigar a pertinncia da crtica plotiniana: 1. um membro mutilado deveria levar uma parte da alma com ele; 2. no seria possvel explicar a oposio da razo ao desejo; 3. no seria possvel explicar a existncia do pensamento independente do corpo; 4. no seria possvel explicar a conservao de imagens independentes das coisas sensveis; 5. no seria possvel explicar a direo do desejo em relao ao objeto incorpreo; 6. no seria possvel explicar a propagao da alma vegetativa de uma planta a outra; 7. a alma seria divisvel, se entelkheia de um corpo divisvel; 8. no seria possvel explicar como os animais transformam-se em outros animais.
56 Pode-se dizer que, nessa conciliao, h uma centralidade dos textos platnicos.
40
explicativa e crtica dos antigos. fato que ele apresenta algumas questes de um modo
singular, como essa da imagem da alma, mesmo se, para ele, elas j esto em Plato de um
modo implcito e obscuro. Contudo, a discusso da exegese plotiniana de Plato na qual est
em questo a ortodoxia e o ecletismo ultrapassa este estudo, pois esse um tema grandioso
por si s57.
Pode-se inferir que Plotino atenua, de certa maneira, o alcance da descida da alma aos
corpos. Como bem declara Schuhl58, a descida, na verdade, como o raio de uma luz que se
estende para baixo, emitindo apenas seu reflexo. Portanto, a alma essencialmente separada
do corpo ao qual se associa atravs de sua imagem. Desse modo, Plotino explicita um nvel
psquico entre a alma propriamente dita e o corpo. Mediante a noo de imagem da alma, ele
demonstra como a alma desce ao corpo: ela comunica ou participa algo (ti) dela a ele. Em
outras palavras, o corpo no recebe a alma mesma, mas um vislumbre (i!ndalma) dela; a alma
no se dirige diretamente aos corpos, mas o faz com algumas de suas potncias. Ademais,
como vimos, a descida uma inclinao da alma. Descer e entrar no corpo significa que a
alma d algo dela a ele, mas no se torna ele59. Assim, Plotino garante a impassibilidade e a
indivisibilidade da alma em si e por si.
Enfim, para Plotino, a separao da alma e do corpo, garantida pela imagem da alma,
a condio de sua unio; a alma separada do corpo no sentido de no perder sua essncia ao
se unir a ele. Em outros termos, h uma participao sem ciso e uma unio que no
comunho devido superabundncia e difuso das imagens ou potncias da alma. Atravs
das noes de imagem da alma e de separao na unio corpo-alma, Plotino explica a
presena da alma nos corpos e salvaguarda, ao mesmo tempo, sua transcendncia e sua
impassibilidade. O fato de a alma gerar uma imagem no lhe modifica em nada. O que se
57 Aubry, em seu comentrio ao tratado 53, sustenta o ecletismo em vrios momentos. Pradeau tende ortodoxia, apesar de no ser to incisivo, pois afirma que Plotino tem particularidades distintivas quando conduz a definio de processo. Cf. PRADEAU, Limitation du principe. Plotin et la participation, p. 63.
58 Cf. SCHUHL, La descente de lme selon Plotin, p. 67.
59 Cf. VI 4 [22], 16, 14-15.
41
pode extrair que a alma no se relaciona diretamente com o corpo, mas o faz por meio de
sua imagem que constitui um elemento intermedirio entre a alma e o corpo. Dir-se-ia que h
uma relao de exterioridade entre a alma e o corpo o que no significa que no h relao
entre eles , sendo que o elemento que os liga a imagem da alma.
1.3 A ALMA QUE NO DESCE
Vimos que Plotino insiste em afirmar que no a alma que se une ou desce aos
corpos, mas algo derivado dela, sua imagem. Eis uma passagem importante em que Plotino
expe sobre a alma ou algo dela que no desce, isto , que permanece sempre no inteligvel:
Se preciso ousar dizer mais claramente o que nos parece contra as opinies dos outros, diremos que nem mesmo a nossa alma est completamente mergulhada [no sensvel], mas algo dela est sempre no inteligvel. Mas, se aquilo que est no sensvel domina, ou melhor, se dominado e perturbado, no nos seria permitido perceber aquelas coisas que
o pice da alma contempla60.
Essa passagem crucial por vrios motivos. Primeiro, porque Plotino audaz em relao
s outras opinies, opondo-se a elas. Segundo, porque ele nos oferece poucas, mas
importantes informaes acerca dessa alma que no desce:
60 IV 8 [6], 8, 1-6. Kai\ ei) para\ do/can tw~n a!llwn tolmh~sai to\ faino/menon le/gein safe/steron, ou) pa~sa ou)d h( h(mete/ra yuxh\ e!du, all e!sti ti au)thv~ e)n tw~| nohtw~| a)ei/: to\ de\ e)n tw~| ai)sqhtw|~ ei) kratoi~, ma~llon de\ ei) kratoi~to kai\ qoruboi~to, ou)k e)a|~ ai!sqhsin h(min ei}nai w{n qea~tai to\ th~v yuxh~v a!nw. Aludindo ao Fedro, Plotino recorre a algumas metforas de imerso para explicar em que sentido a alma est fora ou alm do corpo: h um mergulho da alma superior para seu lugar originrio, subindo para um lugar supracelestial.
42
1. A alma, mesmo a nossa, no est completamente mergulhada no sensvel e no corpo;
2. H algo da alma que sempre permanece no inteligvel;
3. Se aquilo da alma que est no sensvel domina e est perturbado, no conhecemos a
atividade do cume da alma;
4. Esse algo da alma que permanece no inteligvel superior quela alma que est no
sensvel.
A primeira e a segunda coincidem ou se complementam: h algo da alma que sempre
permanece no inteligvel ou que no est completamente mergulhado no sensvel61. Todavia,
a primeira enfatiza a diferena da opinio de Plotino em relao quelas segundo as quais a
alma estaria totalmente mergulhada no sensvel. Entendemos que a nossa alma que no est
inteiramente no sensvel seja a individual encarnada, a qual nos interessa mais neste estudo.
Mas mister observar que Plotino tambm discorre sobre outra alma que tambm no est
completamente voltada para o sensvel, a Alma do todo, cujo algo inferior62 organiza o
universo. Segundo ele, toda alma tem algo de inferior voltado para o corpo e algo de superior
voltado para o Intelecto63.
O fato de algo da alma estar sempre no inteligvel merece ateno: isso implica que
essa alma no se relaciona com o sensvel e com o corpo? Mas como possvel que a alma
esteja separada do corpo mesmo estando nele? A questo que sempre h a dificuldade de
identificar a qual alma Plotino se refere.
A segunda informao obscura e problemtica quando diz que algo (ti) da alma
permanece sempre no inteligvel: Plotino emprega o pronome indefinido ti, deixando incerto o
que exatamente da alma que no desce. Ela explcita em postular que algo da alma e no
do Intelecto hipstase. Porm, ser algo da alma no implica estar nela, necessariamente;
61 Essa alma superior que permanece sempre no inteligvel s vezes interpretada como sendo a parte primeira da alma (prw~ton) de algumas passagens como em III 8 [30], 5, 9.
62 Alma do mundo.
63 Cf. IV 8 [6], 8, 11-13.
43
somado a isso, a afirmao volta a ser vaga quando diz que essa alma sempre est no
inteligvel (nohto/v), no o diferenciando segundo as hipstases, afinal, ele pode ser tanto a
alma quanto o Intelecto, j que ambos so inteligveis. Portanto, pode-se dizer que no
evidente se a alma que no desce permanece em si mesma ou no Intelecto64. A nosso ver,
Plotino estaria recorrendo, mais uma vez, linguagem metafrica para dizer que a alma est e
no est no Intelecto, do mesmo modo que diz que tudo est e no est no Uno. Desse modo,
ele expressa relaes de participao e dependncia. Ademais, estar no sensvel e no corpo ou
estar no inteligvel e no Intelecto significa que as potncias da alma se dirigem para baixo ou
para o alto. Outra passagem confirma a impreciso pelo pronome indefinido: como a alma
indivisvel? porque ela no se afastou completamente, mas h algo dela que no vem, cuja
natureza no divisvel65.
A dificuldade, explica Szlezk e com o qual concordamos, reside nas descries
imprecisas da alma que no desce, as quais ora a aproximam da prpria alma, ora do Intelecto
hipstase, sendo que isso se deve ao fato de no haver uma separao clara entre eles, alma e
Intelecto. E lembramos que as que se aproximam da alma no so evidentes quanto sua
relao com a alma racional. Em um de seus estudos, Szlezk afirma que ela se encontra no
Intelecto. Segundo ele, o inteligvel no qual a alma que no desce sempre est o Intelecto,
porque a independncia em relao ao corpo significa um acesso direto s Ideias66. Parece que
ele identifica a alma que no desce com a alma mais racional, a alma sem acrscimo, que
puro pensar e no se distingue do Intelecto, sendo um intelecto singular, individual; essa alma
mais racional no pode ser o dianoetikn, pois ele transcorre no tempo. No obstante, ele
reconhece que h problemas na localizao da alma que no desce e em sua relao com o
raciocnio discursivo. Portanto, como ele bem observa, incorreto dizer que o problema da
64 Cf. BLUMENTHAL, On soul and intellect, p. 100.
65 IV 1 [21], 1, 12-13. Pw~v ou}n kai\ a)me/ristov; Ou) ga\r o#lh a0pe/sth, a)ll e1sti ti au)th~v ou0k e)lhluqo/v, o$ ou) pe/fuke meri/zesqai.
66 Cf. SZLEZK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 246.
44
alma que no desce est solucionado. Em outro estudo, ele diz que impossvel encontrar o
lugar da alma que no desce entre as duas hipstases, a Alma e o Intelecto67.
Ademais, essa segunda informao suscita um problema quanto diviso da alma
individual: Plotino se refere a uma mesma alma ou parte da alma, que ora se inclina para o
sensvel, ora se mantm afastada dele, ou a almas distintas? Para Szlezk, a parte orientada
para o alto, alm do corpo, separada daquela que est voltada para o corpo68. A questo
que em alguns momentos Plotino diz que h uma alma que no desce, em outros, algo dela,
sendo que as duas maneiras de expressar, a nosso ver, se confundem. notvel como Plotino,
muitas vezes, no parece to rigoroso com as terminologias, ou melhor, no se interessa pelas
distines que ns exigimos; no h uma inconsistncia terminolgica, mas uma fluidez. Por