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ELISA FRANCA E FERREIRA O HOMEM, A ALMA E O VIVENTE: A DEFINIÇÃO DO HOMEM NAS ENÉADAS DE PLOTINO Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Linha de Pesquisa: História da Filosofia Orientador: Leonardo Alves Vieira Belo Horizonte- MG Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas- UFMG 2009

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  • ELISA FRANCA E FERREIRA

    O HOMEM, A ALMA E O VIVENTE: A DEFINIO DO

    HOMEM NAS ENADAS DE PLOTINO

    Dissertao apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    Linha de Pesquisa: Histria da Filosofia

    Orientador: Leonardo Alves Vieira

    Belo Horizonte- MG Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas- UFMG

    2009

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Leonardo Alves Vieira, pela grandiosa dedicao minha pesquisa, desde

    o incio da graduao, por nosso estudo frequente. A ele, minha imensa gratido pelo auxlio

    fundamental e decisivo, por sua orientao rigorosa e cuidadosa, um grande privilgio do qual

    pude desfrutar; pelo esmero na leitura dos meus textos e na reviso das tradues do grego;

    por seu estmulo para o estudo de outras tradies filosficas alm da greco-romana.

    Ao prof. Fernando Rey Puente, pela maneira como me despertou para a Filosofia e o estudo

    de Plotino.

    prof. tutora do PET durante minha passagem pelo grupo na graduao, Lvia Guimares,

    pelos incentivos pesquisa.

    prof. Miriam Campolina, por ter me convidado e acolhido em seu grupo de estudos. Pelas

    colaboraes na pesquisa. querida Miriam, sempre gentil e atenciosa, pelos encontros

    especiais.

    Ao prof. Mauricio Pagotto Marsola, pelas importantes contribuies na pesquisa.

    Aos meus interlocutores de pesquisa: em especial, Loraine, pela grandiosa contribuio, as

    discusses, o material bibliogrfico cedido e as atenciosas leituras, sugestes e observaes

    aos meus textos; ao Bernardo, agradeo imensamente a reviso da traduo, as discusses e o

    material bibliogrfico cedido.

    Andra, secretria do programa da Ps-Graduao, pela prontido e destreza em nos

    auxiliar.

    s instituies e bibliotecas, fundamentais para minha formao acadmica, UFMG e FAJE.

    A Capes.

  • Ao meu magnnimo pai, Cid, a quem dedico esta dissertao, pelo amor, puro e

    incondicional, e pelos generosos incentivos. A ele, minha eterna gratido, por tudo.

    minha irm gmea Slvia, Pequena, pelo amor e companheirismo, por tudo. Ao meu

    cunhado Marcus e Marlene, sempre presentes. A toda a famlia.

    Aos amigos. Carol, amiga de infncia, Paulinha, Aline e Fabiane, amigas de longa data. Juca,

    Criatura, pelo carinho. Aos amigos mais que especiais, Anderson, Jnia e Maria Helena.

    Loraine, querida irm gacha. Turma da graduao e amigos da Fafich, Daniel Arelli,

    Marlia, Mnica e Roberta, tambm Camila, Daniela, Dbora, Felipe, Juliana, Juliano, Karina

    e Leila, pelos momentos inesquecveis, como o Simpsio no Caraa e outros; turma da Fale e

    os encontros divertidos, em especial, Clara e Manuela, tambm Lira, pela reviso do texto.

    Aos amigos da Faje, Srgio e lvaro.

    Ao Govinda, Alexandre, e a Beatriz/ Ncelo Ananda, por tudo que semearam e despertaram

    em meu corao. querida Lcia/ Ncelo Satya. A todos os alunos. Agradeo muito as

    oportunidades e experincias, todo o aprendizado.

    Wiliane, por ter me conduzido ao curso de Filosofia.

    A todos que contriburam de alguma maneira para este trabalho e que certamente reconhecem

    meu agradecimento. A todos que estiveram e esto em meu percurso da Filosofia, acadmica

    e extra-acadmica.

    A Plotino.

  • Se preciso ousar dizer mais claramente contra as opinies dos outros, diremos que nem mesmo nossa alma est completamente mergulhada, mas algo dela est sempre no inteligvel. Mas, se aquilo que est no sensvel domina, ou melhor, se dominado e perturbado, no nos permitido perceber aquelas coisas que o pice da alma contempla.

    Plotino. Enada IV 8 [6], 8, 1-6.

  • RESUMO

    O objetivo desta dissertao discutir a definio do homem nas Enadas de Plotino.

    A pesquisa aborda alguns aspectos da alma individual que se mostraram importantes como

    pressupostos. Tentamos compreender a descida da alma aos corpos e analisamos a alma que

    sempre permanece no inteligvel, separada. Para tanto, esclarecemos a unidade e a

    divisibilidade da alma, bem como o direcionamento de suas potncias, daquelas que se voltam

    para o corpo e das que se mantm no alto. Assim, o homem examinado considerando a

    unio e a separao da alma e do corpo. O trabalho prossegue investigando a articulao do

    homem com a alma, por meio da discusso da identidade do homem sensvel e a alma

    sensvel e o lgos, e do homem racional e a alma racional e o lgos, e com o Intelecto, pelo

    mbito da Forma. Quanto articulao com o sensvel e o corpo, o intuito esclarecer as

    distines entre o homem e o vivente ou conjunto da imagem da alma e o corpo,

    compreendendo a atribuio das afeces. Buscando a definio do homem a partir do critrio

    do inteligvel e do sensvel, mostramos que, sob a perspectiva do Intelecto, ele a Forma, sob

    a da alma, alma e lgos, sob a do corpo, ele no o , nem o vivente, ao qual se atribuem as

    afeces. Desse modo, ao oferecer uma leitura de partes do texto plotiniano para a discusso

    do tema proposto, este estudo pretende elucidar algumas dificuldades decorrentes da definio

    do homem.

    Palavras-chave: Homem. Alma. Corpo. Afeces. Vivente.

  • RSUM

    Lobjectif de cette dissertation est de discuter la dfinition de lhomme dans les

    Ennades de Plotin. La recherche aborde quelques aspects de lme individuelle qui se sont

    montrs importants comme prssuposs. Nous tentons de comprendre la descente de lme

    dans les corps et analysons lme qui reste toujours lintelligible, separe. Dans ce but, nous

    clairons lunit et lindivisibilit de lme, aussi bien que lorientation de leurs puissances, de

    celles qui se dtournent vers les corps et de celles qui si maintiennent dans le haut. Ainsi,

    lhomme est examin considrant lunion et la sparation de lme et du corps. Le travail se

    poursuit en investigant larticulation de lhomme avec lme, travers la discussion de

    lidentit de lhomme sensible et lme sensible et le lgos, et de lhomme rationel et lme

    rationnelle et le lgos, et avec lIntellect, travers le champ de la Forme. Quant

    larticulation avec le sensible et le corps, le propos est dclaircir les distinctions entre

    lhomme et le vivant ou lensemble de limage de lme et le corps, en comprenant

    lattribuition des affections. Cherchant la dfinition de lhomme sous le critre de lintelligible

    e du sensible, nous montrons que sous la perspective de lIntellect, lhomme est la Forme,

    sous celle de lme, il est lme et le lgos, sous celle du corps, il ne lest pas ni est le vivant,

    auquel sattribuent les affections. De cette manire, en offrant une lecture de certains parties

    des Ennades pour la discussion du sujet propos, cette tude prtend lucider quelques

    difficults issues de la dfinition de lhomme.

    Mots-cl: Homme. Ame. Corps. Affections. Vivant.

  • ADVERTNCIAS

    Seguimos o seguinte critrio da numerao das Enadas de Plotino: o primeiro

    nmero, em algarismo romano, indica a Enada de acordo com a edio de Porfrio, de I a VI.

    O segundo, arbico, indica a posio do tratado dentro da Enada, entre 1 a 9. O terceiro,

    arbico e entre colchetes, representa a ordem cronolgica do tratado. O nmero seguinte

    indica o captulo, e os dois ltimos, as linhas da citao, onde ela se inicia e termina. Por

    exemplo, Enada IV 8 [6], 7, 1-5 deve ser lido do seguinte modo: oitavo tratado da quarta

    Enada, sexto na ordem cronolgica, captulo sete, linhas um a cinco. Essa numerao situa o

    tratado tanto na edio de Porfrio como na ordem cronolgica. Nas referncias a alguma

    Enada, omitimos o nome de Plotino e da obra, optando, pois, somente pela notao

    numrica. Por vezes, no corpo do texto, referimo-nos ao tratado na ordem cronolgica e, entre

    parnteses, sua posio na edio de Porfrio, por exemplo: segundo tratado (Enada IV 7).

    Quanto s tradues das passagens das Enadas, so de nossa responsabilidade. Foram

    consultadas as tradues lusfonas de B. G. L. Brando para a Enada VI 9 [9] e de J. C.

    Baracat Jnior para as Enadas I a III. Utilizamos a edio grega de Henry-Schwyzer.

  • SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................................ 10

    CAPTULO 1: Aspectos da alma individual 1.1 Introduo..................................................................................................................... 15

    1.2 Unidade e divisibilidade da alma.................................................................................. 18

    1.3 A descida e a unio [da imagem] da alma aos corpos................................................... 27

    1.3.1 Enada IV 8 [6].......................................................................................................... 27

    1.3.2 Enada I 1 [53]........................................................................................................... 35

    1.4 A alma que no desce.................................................................................................... 41

    1.5 Aspectos das potncias da alma..................................................................................... 55

    1.5.1 Alma vegetativa e alma sensitiva................................................................................ 58

    1.5.2 Alma racional.............................................................................................................. 62

    1.5 Concluso....................................................................................................................... 66

    CAPTULO 2: A Forma do homem, o homem racional e o homem sensvel 2.1 A definio do homem- Enada IV 7 [2]...................................................................... 68

    2.2 A definio do homem- Enada VI 7 [38]. Lgos e lgoi............................................ 75

    2.2.1 A Forma do homem.................................................................................................... 82

    2.2.2 O homem racional e o homem sensvel...................................................................... 87

    2.3 Concluso...................................................................................................................... 98

  • CAPTULO 3: O homem, as afeces e o vivente 3.1 Introduo..................................................................................................................... 100

    3.2 A atribuio das afeces.............................................................................................. 101

    3.3 O homem, o vivente e o ns.......................................................................................... 112

    3.4 O vivente e a separao do corpo e do sensvel............................................................ 123

    3.5 Concluso...................................................................................................................... 126

    CONCLUSO.................................................................................................................... 128

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................. 135

    APNDICE......................................................................................................................... 141

  • 10

    INTRODUO

    Nas Enadas, deparamo-nos com certa identidade entre o homem e a alma, bem como

    com certa separao e distino entre o homem e o corpo, o homem e o vivente, e entre a

    alma e o corpo. O intuito desta pesquisa discutir a definio do homem, compreendendo

    suas articulaes com a alma, o corpo e o conjunto desses dois, o vivente. Fazem-se

    necessrias, no entanto, algumas observaes sobre a palavra definio utilizada aqui. Ela no

    se refere a um objeto esttico, unidimensional e fechado em si mesmo, mas multifacetado e

    multidimensional. Ademais, no pretende ser uma palavra final sobre o homem, mas uma

    reflexo sobre sua estrutura ou constituio fundamental. Definio diz respeito a certas

    perspectivas tomadas por Plotino a partir dos debates com seus interlocutores, nas quais sua

    concepo de homem vem tona. De acordo com a interconexo dessas perspectivas e esse

    sentido preciso, a definio do homem investigada ao longo deste texto.

    Mas qual seria um bom ponto de partida? Percebemos que teramos que investigar

    pressupostos fundamentais. No decorrer de nossa investigao, procurando a questo

    especfica da definio do homem, vimos que seria foroso desenvolver um exame preliminar

    de temas e questes que lhe fornecem bases e a antecedem argumentativamente, isto , que

    geram e consolidam a definio do homem.

    Nessa nossa busca incessante pela compreenso do que o homem para Plotino,

    constatamos que algumas dificuldades concernentes alma individual humana voltavam

    insistentemente, o que nos fez manter a deciso de traarmos a ordem deste trabalho, mesmo

    vislumbrando sua amplitude e suas dificuldades. Uma vez que Plotino afirma, de um modo

    amplo, que o homem a alma, vimos que precisaramos compreender o que a alma

    individual, mais especificamente sua estrutura, isto , suas partes, funes, potncias e

  • 11

    faculdades. Tambm a questo do vivente e sua distino do homem nos levaram a discutir

    alguns pontos sobre a alma, a fim de esclarecermos a unio e a separao entre ela e o corpo.

    Mas como no abordar tais questes da alma superficialmente, sobrevoando por temas to

    caros e complexos? Em virtude disso, a fim de evitar a superficialidade, delimitamos alguns

    aspectos a serem examinados e, neles, alguns pontos fundamentais, tentando no perder de

    vista nossa questo crucial.

    Devido exigncia de percurso que, a nosso ver, o tema nos imps, fomos conduzidos

    a tratar primeiramente da alma, tendo em vista a alma individual, pois notamos tambm que o

    mbito da alma base para aquele do homem e ambos possibilitam uma melhor compreenso

    do das virtudes. Pode-se dizer que h uma convergncia desses campos e, at mesmo, uma

    superposio. Sendo assim, mesmo que uma pesquisa exija certa separao deles, mister

    ressaltar que eles constituem uma rede complexa em que os fios se interligam. No inclumos

    um estudo mais detido sobre a purificao, mas delineamos e indicamos alguns fundamentos

    para tanto.

    Tentemos esclarecer a metodologia a partir da qual nosso trabalho foi desenvolvido.

    Sabemos da dificuldade de lidar com as Enadas no que concerne aos diversos temas

    abordados, s vezes, em mais de um tratado. Ademais, geralmente, uma questo pressupe e

    implica outra(s), formando um grande e complexo bloco temtico, o que gera a dificuldade de

    nos concentrarmos em determinados problemas e aprofund-los em todos os pontos. Em

    outras palavras, o pensamento de Plotino envolve questes em que uma converge para outra.

    Muitas vezes, Plotino no erige demonstraes evidentes, mas nos apresenta apenas algumas

    premissas, lanando a concluso de sbito.

    Nosso percurso por alguns tratados se deve ao fato de que as questes relativas ao

    homem no se limitam a um nico texto, mas se dispersam coerentemente, apesar de

    aparentes incoerncias. claro que esse caminho pode ser problemtico em algum momento.

  • 12

    Buscando e considerando o contexto de cada tratado, julgamos que procedemos de um modo

    adequado. Algumas vezes fomos conduzidos a enveredar por tratados aparentemente sem

    conexo direta com nosso propsito a fim de que alguma nota que julgamos importante fosse

    registrada. Mesmo na amplitude de alguns tratados, escolhemos alguns pontos relevantes para

    nosso tema. Esse talvez no seja o mtodo mais propcio, mas, pelo menos, assim nos

    mantemos em ressonncia com a descontinuidade temtica dos escritos, nesse sentido em que

    Plotino retoma alguns pontos recorrentemente ou, diramos, circularmente. Nosso

    procedimento , pois, uma leitura analtica transversal das Enadas, concentrando-nos mais

    em alguns tratados 2 (Enada IV 7), 4 (Enada IV 2), 6 (Enada IV 8), 38 (Enada VI 7) e

    no 53 (Enada I 1) , mas, muitas vezes, buscando as nuances do tema em outros.

    Outra metodologia que adotamos sempre considerar a especificidade de cada tratado

    e de algumas passagens, mesmo sabendo que dispomos dos textos tais como foram

    organizados por Porfrio e no como foram compostos por Plotino. Ainda que Porfrio tenha

    dividido alguns tratados e agrupado notas s vezes sem conexo entre elas, apoiamo-nos no

    fato de que vemos, por exemplo, uma continuidade ou uma sequncia imediata num mesmo

    captulo e entre um captulo e outro de um mesmo tratado. Se esse no um mtodo muito

    condizente com o arranjo e a edio das Enadas, pelo menos nos permite ter mais uma chave

    de compreenso. Se Plotino delimitou intencionalmente ou no a particularidade de cada texto

    ao elabor-los, no importa tanto. A questo que no perder de vista a(s) finalidade(s) do

    tratado facilita sua anlise, bem como sua relao com os outros e seu lugar na totalidade das

    Enadas, a qual no estamos desconsiderando. Apesar de cientes dos problemas da escolha

    desse caminho, ele foi uma tentativa de iluminar para ns algo que por si j iluminado, mas

    que se mostra obscuro.

    A partir do que foi exposto, apresentamos a sequncia do presente estudo. O primeiro

    captulo versa sobre alguns aspectos da alma individual. Tais aspectos foram selecionados

  • 13

    pela relevncia para o esclarecimento da definio do homem. A questo da unidade e da

    divisibilidade da alma se imps como condio para compreendermos a descida da alma ao

    corpo, a unio e a separao dos mesmos. Por sua vez, essa descida da alma exigiu-nos uma

    anlise de sua imagem que se dirige ao corpo formando o vivente e, por conseguinte tambm,

    de algo da alma que permanece no alto, separada. Tal unio e a efetivao das potncias

    inferiores da alma no corpo, bem como tal separao e o desempenho das atividades

    superiores exigiram que expusssemos, na medida do possvel e necessrio, alguns aspectos

    relevantes das potncias da alma. Analisamos algumas relaes do apetitivo e do irascvel

    com a alma vegetativa e com a sensitiva. Discutimos as relaes entre o dianoetikn, o

    logistikn e o nos da alma, tendo em vista a possvel identificao deles, como alma superior

    ou alma racional como um todo, ou de algum deles, com a alma que no desce.

    No segundo captulo, analisamos o incio do segundo tratado (Enada IV 7), o qual

    nos oferece uma definio do homem de acordo com seu contexto de enfatizar a

    incorporeidade e a imortalidade da alma. Procuramos esclarecer o enfoque que Plotino

    confere ao homem, apresentando-o atrelado alma e sua natureza, em oposio ao corpo. O

    argumento de que o homem a alma e tem o corpo mostra-se chave para compreend-lo em

    sua definio e em sua composio. Entrementes, concentramo-nos, sobretudo, no tratado 38

    (Enada VI 7), a fim de compreendermos os homens ou tipos de homens ali expostos, a

    Forma do homem, o homem racional e o homem sensvel. Mostramos em que sentido a

    Forma do homem superior aos outros homens. Discutimos a definio desse texto de que o

    homem a alma e o lgos. Conduzimos o exame dos homens racional e sensvel, visando

    suas articulaes ou coincidncias com as respectivas almas e lgoi, racional e sensvel. As

    noes de lgos e lgoi se mostraram fundamentais para a definio do homem nesse tratado

    e, portanto, no podiam escapar de nossa pesquisa.

  • 14

    O terceiro captulo, finalmente, dedicado a uma detida anlise do tratado 53 (Enada

    I 1). Examinamos a atribuio das afeces a fim de compreendermos o que o vivente,

    ordinariamente tido como o homem. Acompanhamos Plotino traar as diferenas entre o

    homem e o vivente, apontando, assim, para uma definio do homem atravs da

    demonstrao do que ele no , do que distinto dele. Defrontamo-nos com o ns e suas

    relaes com o homem e o vivente. Apesar de no nos determos em alguns pontos

    concernentes ao ns, como a especificidade de suas atividades, discutimos alguns pontos

    sobre ele, como a possibilidade de sua identificao com o homem. Por fim, discutimos a

    separao do vivente em relao ao corpo, mostrando que nossa investigao fornece bases

    para o mbito moral, da purificao e das virtudes.

    Nas consideraes finais, apontamos o que esta pesquisa pde depreender sobre a

    definio do homem nas Enadas. Apresentamos nossa busca em compreender o homem de

    um modo mais abrangente, em sua relao com o sensvel e o inteligvel.

  • 15

    CAPTULO 1 ASPECTOS DA ALMA INDIVIDUAL

    1.1 INTRODUO

    Nosso propsito analisar a concepo de homem nas Enadas por meio do exame de

    alguns tratados e passagens que a discutem direta e indiretamente. Entretanto, deparamo-nos

    com alguns impasses que dificultam a compreenso do tema. A importncia do tema

    percebida, sobretudo, pela recorrncia em todas as fases das Enadas, desde os primeiros

    tratados at o penltimo. No segundo tratado (Eneda IV 7), Plotino relaciona o homem

    imortalidade da alma e no 38 (Enada VI 7), s almas sensitiva e racional; no tratado 53

    (Enada I 1), a partir da problematizao da atribuio das afeces, Plotino apresenta o

    vivente, diferenciando-o do homem.

    Constatamos que, para Plotino, o principal problema em torno da definio do homem

    a sua relao com a alma e com o corpo, por conseguinte, a relao da alma com o corpo.

    No segundo tratado (Enada IV 7), ao relacionar o homem com a alma e sua imortalidade,

    parece-nos que Plotino sugere uma identificao do homem com a alma, conferindo tambm

    ao primeiro, como essncia, o carter atemporal. Todavia, se o homem eterno, Plotino no

    descarta o corpo, temporrio, na composio do mesmo, uma vez que afirma que o homem a

    alma e tem o corpo. Enquanto tem um corpo, o homem no algo simples. Todavia, mesmo

    se ele tem um corpo, isso no o principal e sim a alma. O homem a alma, independente se

    ela como a forma na matria ou como aquela que se serve de seu instrumento. Dessa

    maneira, nesse texto, o homem parece ser essencialmente a alma, apesar de manter alguma

  • 16

    articulao com o corpo que possui, mas que no o define. Mas, se o homem tem um corpo,

    como se d sua relao com ele e quais seriam as implicaes disso, por exemplo, quanto s

    afeces?

    No tratado 38 (Enada VI 7), Plotino apresenta o homem como eterno e independente

    do corpo, como Forma no Intelecto. Esse homem no Intelecto completo, tendo

    potencialmente tudo que constitui o homem; ele o homem antes de todos os outros. Mas

    Plotino tambm expe sobre o homem como alma determinada por um lgos. Ele o descreve

    atravs dos homens sensvel e racional, relacionando-os s almas sensitiva e racional e

    sugerindo que eles se identificam com elas e seus respectivos lgoi. Ora, se h a possibilidade

    e a hiptese dessa identificao do homem com a alma ou com certas almas, preciso

    esclarec-las, na medida do possvel, atendo-nos mais a uma caracterizao geral das mesmas.

    Portanto, faz-se necessria uma articulao do homem com sua Forma e com a alma e o

    lgos. Por conseguinte, julgamos que teramos que tentar compreender melhor a estrutura da

    alma individual com suas potncias e lgoi, bem como a relao deles com o inteligvel e com

    o devir, isto , o sensvel e o corpo.

    Sem perder de vista a definio do homem, seguimos o percurso da argumentao de

    Plotino que, por meio do tratado 53 (Enada I 1), mostra como se d a relao da alma com o

    corpo mediante a discusso sobre o vivente e as afeces. Plotino diferencia o homem do

    vivente, atribuindo as afeces a esse ltimo, indicando a impassibilidade da alma, j que no

    ela propriamente que se une ao corpo para produzir o vivente, mas um trao dela, como uma

    luz que projeta um reflexo; preciso discutir se Plotino tambm sugere a impassibilidade do

    homem como alma. Sendo assim, notamos a importncia da delimitao entre o homem e o

    vivente e entre a alma e sua imagem. Se o vivente definido como o conjunto da imagem da

    alma e do corpo, isso requer uma discusso sobre a descida da alma aos corpos. Diante disso,

    uma anlise sobre a tangncia do homem com a alma e com o corpo, atravs do vivente e das

  • 17

    afeces, mostrou-se necessria. A noo de vivente e de imagem da alma nos leva a adentrar

    na questo da potncia e das potncias da alma, tentando esclarecer o que exatamente essa

    projeo da alma que se associa aos corpos.

    Por sua vez, o tema da descida da alma exige, por si s, que compreendamos seu

    oposto, a alma que no desce. E a abordagem dessas questes demanda uma apresentao

    mnima do que as fundamenta, a unidade e a divisibilidade da alma. Afinal, se seguirmos o

    percurso de Plotino na ordem cronolgica dos tratados, percebemos que ele expe sobre a

    unidade e a divisibilidade da alma para ento discorrer sobre a unio e a separao da alma,

    construindo as bases tericas para mostrar, no penltimo tratado, que no a alma que desce

    ao corpo formando o vivente, mas sua imagem.

    A partir do estudo preliminar proposto neste captulo, teremos condies de discutir a

    pertinncia de algumas interpretaes dualistas e no dualistas das relaes do homem com a

    alma e com o corpo. Com esse exame, poderemos indicar a questo da separao do homem e

    da alma em relao ao sensvel e ao corpo.

    evidente que uma anlise de toda a teoria da alma em Plotino seria demasiado ampla

    e complexa para nossa atual pesquisa, o que justifica no ser possvel realiz-la, mas nos

    restringirmos a apenas alguns aspectos mais importantes para o nosso tema. Assim, nosso

    objetivo fornecer alguns pressupostos para a questo central da definio do homem, sem

    pretendermos dar conta de toda a teoria da alma; por exemplo, no nos caber problematizar a

    imortalidade da alma, mas sim tom-la como pressuposto.

    Logo, ao investigarmos as questes envolvidas na definio plotiniana do homem,

    vimos que ela implica uma articulao com a alma e sua estrutura, assim como nos impele a

    discutir a relao do homem e da alma com o inteligvel, o corpo e o sensvel. Desse modo,

    esperamos ter justificado a importncia de um estudo preliminar da alma e, por conseguinte,

  • 18

    da seleo de alguns aspectos da teoria da alma, tomados como pressupostos ou condies

    para a compreenso da definio do homem para Plotino.

    Indicamos, resumidamente, os passos seguidos neste captulo que fornece o substrato

    terico desta pesquisa, isto , os argumentos preliminares para os outros captulos e para a

    questo principal da definio do homem nas Enadas. Partiremos de uma discusso sobre a

    unidade e a divisibilidade da alma, pois esse o tema que justifica e fundamenta as questes

    sobre a descida da alma aos corpos. No segundo tpico, sobre a unio da alma aos corpos,

    investigaremos a imagem da alma que se volta para os corpos, por meio dos tratados 6

    (Enada IV 8) e 53 (Enada I 1). Abordaremos a problemtica da alma que no desce e,

    finalmente, alguns aspectos das potncias da alma, a fim de compreendermos melhor a unio

    e a separao entre a alma e o corpo.

    Julgamos que importante tecer algumas consideraes acerca do contexto, da

    estrutura e do procedimento de cada tratado. Procuraremos sempre delimitar, ao menos de um

    modo geral, a finalidade dos tratados analisados, pois, a nosso ver, no podemos prescindir da

    especificidade de cada um deles, j que eles tm seus objetivos em si mesmos, referindo-se

    raramente a outro(s) 1 . Analisaremos tambm, na medida do possvel, as rupturas e

    continuidades entre eles, afinal, exigir uma coerncia pura e simples entre os escritos

    plotinianos pode ser um sinal de que se est desconsiderando a particularidade dos mesmos.

    1.2 UNIDADE E DIVISIBILIDADE DA ALMA

    Tentaremos esclarecer algumas passagens das Enadas nas quais Plotino expe a

    natureza una e divisvel da alma. Vejamos o quarto tratado (Enada IV 2) segundo a

    1 Cf. PLOTIN, Ennades, p. xxx.

  • 19

    cronologia de Porfrio. Nesse texto, nota-se que Plotino no se ocupa em postular a unidade-

    multiplicidade da alma para estabelecer a imortalidade da alma; a isso, ele j dedicou o

    segundo tratado (Enada IV 7). O que se encontra, pois, em questo expor a essncia da

    alma por ela mesma, sem ter em vista qualquer outra particularidade da alma. Logo, esse

    objetivo no pode ser ignorado, pois, do contrrio, compromete a compreenso do tratado e

    do modo como ele desenvolvido, enfim, do que e no importante nesse momento.

    Plotino visa discorrer sobre a essncia da alma que, como ele j argumentou no

    segundo tratado, no nem um corpo, nem harmonia, nem mesmo entelkheia do corpo. Para

    ele, tais teses, alm de no serem verdadeiras, no dizem o que a alma. Ele, ento, menciona

    noes fundamentais, apesar de saber que no so suficientes para a compreenso desse seu

    objeto de pesquisa: a alma de natureza inteligvel e divina2. Essa caracterizao de base da

    alma necessria, visto que Plotino recorrentemente deseja ressaltar as distines entre as

    coisas inteligveis e as sensveis. As sensveis so divisveis por natureza, tendo essncia

    divisvel; suas partes so diferentes e cada parte menor que o todo; cada uma ocupa um

    lugar, no podendo estar em vrios ao mesmo tempo3. Diferente dessas e de sua essncia

    divisvel, h uma outra natureza, uma essncia indivisvel da qual a divisvel deriva e que no

    fragmentada como os corpos.

    Mas no s as coisas sensveis tm uma essncia divisvel, a alma tambm. Assim,

    Plotino indica a distino entre duas essncias na alma, uma divisvel e uma indivisvel4. A

    divisvel recebe a indivisibilidade da indivisvel, mas ela tende para a divisibilidade e no

    como uma qualidade (poio/thv) que a mesma em todos os lugares. Mas em que sentido a

    alma possui uma essncia divisvel? Plotino declara que somente porque os corpos so

    2 IV 2 [4], 1, 5-7.

    3 IV 2 [4], 1, 11-17. No de se espantar que Plotino recorra a essa distino de base entre sensvel e inteligvel

    para explicar o desenvolvimento de seu pensamento, endossando sua exegese de Plato. 4 Cf. PLATO, Timeu 34c-35a. Cabe a ressalva de que, ao aludir alma como essncia indivisvel, Plotino j

    indica que a alma faz parte do inteligvel e inteligvel (noeto/n).

  • 20

    divisveis a forma contida neles se divide; mantendo-se inteira, a forma se multiplica e cada

    parte se separa das outras:

    Como os corpos so divididos, a forma contida neles tambm dividida. No entanto, ela est inteira em cada uma das partes. a mesma forma que se multiplica e cada uma das partes se separa totalmente da outra, uma vez que

    ela se torna totalmente dividida5.

    O verbo tornar-se (gi/gnomai) crucial: a alma no divisvel, mas torna-se

    divisvel nos corpos e somente neles. Mas como a alma se torna divisvel ao vir aos corpos?

    Em que sentido deve ser compreendido que a forma (ei]dov) da alma se divide e torna-se

    mltipla?

    Ainda a propsito das diferenas entre as coisas sensveis e as inteligveis, Plotino

    sublinha que a unidade do corpo diferente daquela da alma. A unidade do corpo se d pela

    continuidade das partes, as quais so diferentes. A unidade da alma, por sua vez, no a

    unidade de algo contnuo de partes distintas. Segundo Plotino, a alma divisvel na medida

    em que est em cada parte do corpo e, indivisvel, por estar toda inteira em todas e em cada

    uma das partes do corpo; assim, ela se divide e se d toda inteira ao corpo6.

    Portanto, a alma , ao mesmo tempo, indivisvel e divisvel, pois se divide nos corpos,

    mas permanece toda inteira e a mesma. Ela divisvel nos corpos (meristeh\ peri\ ta\

    sw/mata), mas tal diviso acidental, no constituindo, portanto, uma propriedade da alma e

    sim do corpo; por isso, ela mesma no se divide, mas se divide no corpo o qual s a recebe

    5 IV 2 [4], 1, 34-38. #Wste diairoume/nwn tw~n swma/twn meri/zesqai me\n kai\ to\ e)n au)toi~v ei}dov, o#lon ge mh\n e)n e0ka/stw|? ei}nai tw~n merisqe/ntwn polla\ to\ au)to\ gigno/menon, w{n e#kaston pa/nth a1llou a)pe/sth, a#te pa/nth meristo\n geno/menon. Plotino compara essa diviso da forma da alma com a da forma (morfh/), a das cores e a das qualidades (poio/thtev), as quais tambm permanecem inteiras ao mesmo tempo em vrios corpos separados.

    6 Cf. IV 2 [4], 1, 60-66 e IV 1 [21], 1, 18-22.

  • 21

    indivisivelmente devido diviso que lhe prpria. Assim, divisvel, ela no divisvel7. A

    essncia divisvel procede da essncia indivisvel e mantm o carter indivisvel.

    Percebemos como Plotino prev possveis confuses e refutaes que poderiam surgir

    com essas noes de unidade e divisibilidade da alma ao rechaar qualquer transferncia de

    propriedades do corpo alma. Dizer que a alma divisvel significa que ela o por

    concomitncia e acidente de uma necessidade exclusivamente do corpo. Denotar qualquer

    outro sentido implica o que Plotino ora insinua, ora explicita: que conhecer a alma a partir do

    corpo um grande erro. Transcrevemos uma passagem que resume bem indivisibilidade e a

    divisibilidade da alma:

    Ento, nos corpos para os quais ela vem, mesmo que venha no maior e que

    se estenda a todos, ela se d inteiramente sem deixar de ser una; no no sentido em que o corpo uno, porque ele uno pela continuidade; cada uma

    das partes diferente da outra e tambm em lugares diferentes8.

    Plotino postula a unidade e a multiplicidade da alma como algo necessrio. O autor

    explicita que preciso admitir que algo possa estar em vrios lugares, tendo e administrando

    tudo com sabedoria9. O leitor, por sua vez, poderia indagar: mas como a alma pode estar em

    vrios lugares ao mesmo tempo? O tratado 53 (Enada I 1) nos auxiliar, pois a metfora da

    difuso da luz que projeta seu reflexo e a noo de imagem (ei!dwlon) da alma conferem-nos

    respostas chaves a esse tipo de indagao.

    No tratado em questo, Plotino se posiciona contra aqueles que defendem que a alma

    um corpo divisvel e aqueles que negam sua divisibilidade. Quanto refutao da tese

    7 Cf. IV 2 [4], 1, 69-76.

    8 IV 2 [4], 1, 57-60. )En oi{v ou}n gi/netai sw/masi, ka@n e)n tw~| megi/stw| gi/netai kai\ e)pi/ pan/ta diesthko/ti, dou~s e9auth\n tw|~? o#lw| ou)k a)fi/statai tou~ ei}nai mi/a: ou)x ou#twv, w(v to\ sw~ma e#n. tw~| ga\r sunexei~ to\ sw~ma e#n, e#kaston de\ tw~n merw~n a!llo, to\ d a!llo kai\ a)llaxou~.

    9 Cf. IV 2 [4], 1, 39-48. Supomos que tal necessidade tambm se deva natureza divisvel do corpo ao qual a

    alma precisa associar-se. Pretendemos examinar a necessidade da descida alma aos corpos no prximo item.

  • 22

    segundo a qual a alma um corpo divisvel, em suma, ele mostra que, se a alma tivesse partes

    diferentes em lugares diferentes, quando uma delas fosse afetada, as outras no sentiriam as

    afeces. Haveria ento vrias almas para governar cada parte de ns. Por conseguinte, no

    existiria uma alma nica, mas uma infinidade de almas separadas umas das outras e, assim,

    seria em vo defender a continuidade das partes diferentes10. Ora, Plotino est ratificando a

    ideia de que a alma de uma natureza capaz de ser nica e a mesma em diversos lugares ao

    mesmo tempo: se for o caso dela sofrer as afeces, o faz como um todo e o mesmo. Em

    relao necessidade da divisibilidade da alma, eis o que Plotino diz:

    Se, ao contrrio, a alma fosse totalmente una, completamente indivisvel e una nela mesma, se escapasse toda multiplicidade e diviso, nada daquilo que ela envolve seria animado por inteiro; mas se ela mesma fosse colocada no centro de cada um, ela deixaria inanimada toda a massa do

    vivente11.

    Plotino ataca os estoicos, segundo os quais as afeces chegam parte dirigente da

    alma por uma transmisso progressiva. Para ele, alm dos estoicos no realizarem um exame

    suficiente sobre essa parte dirigente (h(gemo/nov) da alma, no claro se, admitindo tal tese,

    somente a parte dirigente perceberia a sensao. Se assim o fosse, as outras partes no o

    fariam, pois seria intil; ou haveria uma infinidade de sensaes diferentes. Plotino questiona:

    se ela no a nica a sentir, no h motivo para ser dirigente, afinal, por que ela seria a

    dirigente quando outra que sente? E por que a sensao precisaria chegar at ela12?

    10 Cf. IV 2 [4], 2, 5-10.

    11 IV 2 [4], 2, 35-39. Ei ) dau} pa/nth e$n h( yuxh\ ei!h, oi{on a)me/riston pa/nth kai\ e)f e)autou~ e#n, kai\ pa/nth plh/qouv kai\ merismou~ e)kfeu/goi fu/sin, ou)de\n o#lon, o#ti a@n yuxh\ katala/boi, e)yuxwme/non e!stai: a)ll oi[on peri\ ke/ntron sth/sasa e9auth\n e)ka/stou a!yuxon a@n ei!ase pa/nta to\n tou~ zw/|ou o!gkon.

    12 Frequentemente, Plotino convoca o leitor em seu discurso, evocando interlocutores fictcios para o desenvolvimento das questes.

  • 23

    Nesse tratado, alm dessas, Plotino suscita diversas perguntas retricas sobre a

    concepo estoica de alma: como eles dividem a alma; como dizem onde comea uma parte e

    onde termina outra; qual a diferena entre elas, j que formam algo contnuo; e qual a

    extenso conferida a cada uma delas. As crticas aos estoicos so constantes, sendo que

    adquirem um tom retrico, pois, na maioria das vezes, sem se aproximar detidamente do

    pensamento dos mesmos, Plotino ressalta que eles se enganaram, que no explicaram bem

    certas noes etc. como se o leitor os conhecesse bem e no precisasse de uma

    recapitulao minuciosa de suas ideias. Afigura-nos que Plotino opta retoricamente por deixar

    prevalecer suas ideias sobre aquelas de seus adversrios ao invs de discutir com eles de um

    modo mais detido e deixar que o leitor tire suas prprias concluses.

    A respeito da divisibilidade da alma devido s suas potncias ou faculdades, Plotino

    explicita, em algumas passagens das Enadas, que a alma una apesar da multiplicidade de

    suas potncias. O oitavo tratado (Enada IV 9), que expe o tema da unidade das almas,

    elucida brevemente a questo. Plotino argumenta que a essncia que se divide nos corpos

    una e produz as potncias, como a de sentir, dividindo-se; assim, apesar de refletir mais de

    uma potncia, tal essncia una, sendo que dessa unidade provm a multiplicidade una

    (polla\ e#n)13. A ideia de multiplicidade una ou de unidade diferenciada esclarecedora, pois

    mostra como a unidade prevalece na diversidade: as potncias procedem de uma unidade que

    se desdobra em uma multiplicidade sem deixar de ser una. Uma breve passagem merece

    ateno, pois, nela, Plotino enftico em afirmar que a alma tem potncias, mas no tem

    partes: ento, tambm a alma mltipla, mesmo se no tem partes, pois h muitas potncias

    nela14.

    13 Cf. IV 9 [8], 3, 10-18.

    14 VI 9 [9], 1, 39- 40. e1peita de\ pollh\ h( yuxh\ kai\ h( mi/a ka@n ei) mh\ e)k merw~n: plei~stai ga\r du/nameiv e0n au)th|~. Cf. II 9 [33], 2, 6.

  • 24

    Blumenthal 15 auxilia-nos ao comentar que, muitas vezes, Plotino no segue a

    tripartio platnica, mas o modelo aristotlico de alma una com vrias potncias, funes e

    faculdades, apesar de tambm mostrar, por uma aparente inconvenincia, as dificuldades das

    categorias aristotlicas. Diramos que as Enadas se mostram fiis a Plato e a algumas de

    suas noes, deixando-se impregnar por seu vocabulrio e por suas ideias, mas tambm

    dialogam com Aristteles16. Os principais textos nos quais Plotino alude tripartio da alma

    e a adota so as Enadas IV 4 [28] e IV 7 [2]. A Enada IV 4 aborda a diviso da alma em

    potncias ou faculdades e as distines entre elas. Em IV 7, ele delineia a alma tripartite

    encarnada em oposio quela que indivisvel em sua natureza. Pode-se dizer que Plotino

    est sugerindo dois modos de existncia da alma?

    Vejamos brevemente se e como possvel falar em diferentes modos de existncia da

    alma. claro que, se a alma vive no corpo, isso no deixa de ser um modo de existncia dela,

    no sentido de ser um tipo de manifestao de sua essncia, diramos. O outro modo seria sua

    vida junto Alma universal, sem estar encarnada. Portanto, no vemos problema em dizer que

    h modos da alma expressar sua essncia, mas que ela pode viver de modos diversos.

    Voltando discusso sobre as partes da alma, Plotino oscila entre os termos parte

    (me/rov) e potncia (du/namiv). Porm, apesar de falar recorrentemente de partes, parece-nos

    que esse mais um dos termos utilizados por ele que no podemos entender literalmente, pois

    essa mais uma exigncia de coerncia nossa do que dele. Isso no significa dizer que Plotino

    no foi cuidadoso em seus escritos, mas que aponta ciente ou no os limites do discurso

    para expressar as sutilezas prprias aos inteligveis, nesse caso. como se ele pensasse que

    seus leitores no se ateriam s falhas prprias razo discursiva e que, por isso, no fosse

    necessrio ser to minucioso na distino dos termos, o que poderia implicar mais falhas.

    15 Cf. BLUMENTHAL, Plotinus Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 23.

    16 Poder-se-ia dizer que h uma sntese peculiar de Plato e Aristteles, mas lembramos que h, sobretudo, uma

    centralidade de Plato nos textos plotinianos.

  • 25

    Como bem nota Blumenthal17, Plotino parece frequentemente inconsistente e incoerente em

    sua terminologia, mas no em seu pensamento. Com efeito, a linguagem discursiva se mostra

    ambgua, contraditria e insuficiente muitas vezes nas Enadas, gerando dificuldades

    conceituais no leitor.

    Santa Cruz18 nota que a alma essencialmente una, mas possui uma funo dupla: a

    superior, que se mantm consagrada contemplao de sua fonte, e a inferior, que se dirige

    para o sensvel sem se separar da outra. Blumenthal tambm utiliza esse termo e Pradeau, por

    sua vez, o indica ao dizer que o carter divisvel da alma no uma diviso substancial, mas

    uma aptido funcional 19 . Vejamos a pertinncia e o cuidado exigido para adotar essa

    interpretao.

    Pensar em funo ao invs de parte da alma parece-nos adequado, pois remete ao

    sentido de atividade (e!rgon), termo bastante empregado por Plotino para se referir s

    operaes das potncias da alma. Afinal, exatamente desse modo que compreendemos: a

    alma desempenha vrias funes atravs de suas potncias, mas permanece a mesma, ou seja,

    ela realiza diferentes atividades, sem, no entanto, deixar de ser ela mesma, isto , una20.

    Depreendemos que a divisibilidade da alma no oposta sua indivisibilidade, mas

    algo que procede dela necessariamente, pois sua multiplicidade de potncias no anula sua

    unidade. Assim, pode-se notar que Plotino ratifica as teses platnicas de simplicidade e de

    composio da alma. Entrementes, isso no significa unificar as duas concepes na natureza

    da alma, que, em essncia, una, pois, do contrrio, torn-la composta seria retirar seu carter

    divino e imortal; ademais, sintetiz-las seria igual-las, conferindo-lhes o mesmo peso e

    sentido. A composio e a divisibilidade da alma devem ser compreendidas como uma

    17 Cf. BLUMENTHAL, Plotinus Psychology. His Doctrines of the embodied soul, p. 14.

    18 Cf. SANTA CRUZ, La gense du monde sensible dans la philosophie de Plotin, p. 48.

    19 Cf. PRADEAU, Limitation du principe. Plotin et la participation, p. 77-78.

    20 Seria preciso esclarecer os conceitos de potncia e ato para Plotino atravs, por exemplo, da Enada II 5 [25]. Apesar de no ser possvel adentrarmos nesse complexo tratado, sabemos que isso seria foroso para evitar equvocos sobre as distines entre ato e potncia no sensvel e no inteligvel, tema que ele apresenta nesse texto.

  • 26

    necessidade do corpo, mas no dela propriamente, de sua essncia. Em outros termos, a alma

    divisvel nos corpos, mas no em si mesma. Dizer que ela composta uma maneira de

    expressar e mais uma falha da linguagem que no capaz de traduzir, nesse caso, a natureza

    da alma. Esse mais um dos momentos em que percebemos a limitao e a imperfeio do

    discurso para transcrever determinadas coisas como elas so exatamente e de um modo que

    seja compreensvel para todos.

    Muitas vezes, Plotino parece delimitar os receptores de seu discurso, o qual no seria

    para todos, mas somente para aqueles que podem compreend-lo, aqueles que, de alguma

    maneira, j experienciaram o que ele diz. Na medida em que cada um est em um nvel

    cognitivo, muitos no o compreendem nem mesmo o aceitam. Ora, como aceitar um discurso

    que sempre ser falho, j que se encontra na dualidade? O discurso, de algum modo, capaz

    de conduzir a alma para o alto, mas Plotino parece querer demonstrar que nenhuma teoria

    esgotar toda a verdade sobre o tipo de experincia que ele teve e que incita os outros a terem.

    Afinal, o discurso, o raciocnio e mesmo a presena das hipstases e do Uno em todas as

    coisas no so suficientes e no substituem a apreenso do Intelecto e do Uno.

    Vimos que Plotino enftico em conceber a alma, ao mesmo tempo, como indivisvel

    e divisvel nos corpos. Por isso, mister discutir, de modo mais profundo, como essa

    diviso da alma nos corpos, em outros termos, como se opera sua descida (ka/qodov) ou queda

    (e!kptwsiv) nos mesmos21. Afinal, a unio e a relao desses dois elementos constituem um

    problema que gera implicaes em uma discusso sobre a natureza do conjunto deles; enfim,

    elas incluem importantes noes e argumentos que as fundamentam e que conduzem

    justificao do que o homem. Plotino introduz o tema no quarto tratado (Enada IV 2) e o

    desenvolve mais detalhadamente no sexto (Enada IV 8).

    21 Vogel nota bem que a descida da alma nos corpos no necessariamente uma queda no sentido de ser um mal em si mesmo. Isso pode ocorrer se a alma perder o contato com o que est acima dela e permitir que o corpo lhe seja uma priso. A alma tem que cuidar do corpo, mas ela pode realizar essa tarefa devidamente mantendo-se para o que lhe anterior. Cf. VOGEL, Plotinus image of man. Its relationship to Plato as well as to later neoplatonism, p. 147-148.

  • 27

    1.3 A DESCIDA E A UNIO [DA IMAGEM] DA ALMA AOS CORPOS

    1.3.1 Enada IV 8 [6]

    Logo no incio do sexto tratado (Enada IV 8), de um modo muito breve, mas

    impactante, Plotino relata seu frequente (polla/kiv) despertar para si e sua sada do corpo

    para a contemplao de uma beleza imensa e admirvel, pertencente ao que h de melhor.

    Interior a ele mesmo e estabelecido no divino, exerce uma atividade suprema. Ele vive a

    melhor vida e se assemelha ao divino, mas, aps esse repouso no divino, desce do Intelecto ao

    raciocnio (logismo/v)22. A partir de ento, questiona por que ocorre tal descida e por que a

    alma adentrou no corpo, estando ela nela mesma tal como lhe pareceu, apesar de habit-lo.

    Percebemos que, j de incio, Plotino fixa o propsito de esclarecer no s a unio e a

    separao da alma com o corpo, mas tambm de ratificar a natureza divina da alma. Mesmo

    estando no corpo, a alma no somente divisvel, mas conserva sua indivisibilidade, a

    natureza de sua totalidade23.

    evidente como Plotino utiliza sua experincia para tentar expor sua viso de que a

    alma no desce, efetivamente, aos corpos. Ele sublinha que voltou para si mesmo,

    permanecendo alheio e estranho a qualquer outro 24 . Ento, explicita que a alma que

    contemplou naquele momento se encontra no inteligvel e, portanto, difere daquela ligada ao

    sensvel. notvel como Plotino sugere a interiorizao e o mergulho para dentro de si em

    22 Por ora, traduzimos logismo/v por raciocnio, sem especificar sua discursividade, reflexividade e logicidade; tambm traduzido por reflexo e pensamento reflexivo. Optamos por um termo mais geral que designa, com menos problemas, a atividade intelectiva prpria da alma, sendo que, somente quando houver necessidade de acrescentar sua especificidade, assim o faremos para uma melhor compreenso dos diferentes aspectos do termo e de seus derivados, como o logistikn; mas observamos a fluidez da terminologia de Plotino e, por isso, a dificuldade em determinar a qual acepo ele se refere o que gera as adequaes dos tradutores e intrpretes.

    23 Cf. IV 1 [21], 1, 17-19.

    24 IV 8 [6], 1, 2. Gino/menov tw~n me\n a1lwn [e!xw], e)mautou~ de\ ei!sw.

  • 28

    oposio exteriorizao para que se realize a contemplao do que superior ao sensvel e

    imediato. Lembramos que, no tratado 49 (Eneda V 3), Plotino compara a atividade da

    potncia sensitiva da alma de se direcionar para o exterior com aquela do Intelecto, cujos

    objetos de conhecimento so internos, para afirmar a superioridade do conhecimento de si

    desse ltimo. Tambm cabe observar que tal atitude de se interiorizar um despertar

    (e)geiro/menov), como se estar voltado para o exterior fosse um estado de sono, nescincia ou

    iluso.

    Nesse texto, Plotino analisa o aspecto moral da descida da alma aos corpos e o mbito

    cosmolgico do governo dos corpos pela alma e da necessidade (e1dei) da descida da alma.

    Seu intuito discutir os problemas decorridos das interpretaes que foram feitas a respeito

    desses dois aspectos. No que tange ao aspecto moral, a questo discutir se qualquer relao

    da alma com o corpo um mal.

    Analisemos o que Pradeau e Santa Cruz comentam sobre o tema25. Em suma, h um

    paradoxo nessa descida da alma aos corpos que, por um lado, um mal que impede a alma de

    exercer suas atividades superiores como o pensamento discursivo (dinoia), mas, por outro,

    faz parte de uma necessidade cosmolgica de haver, no sensvel, todos os entes do inteligvel,

    e de a alma animar todo o mundo e os entes26. No nos parece satisfatria tal justificativa de

    ser um mal a alma no exercer o pensamento discursivo quando est no corpo, afinal, ela o

    exerce, mas a questo como o faz; o mal dela est em se deixar dominar por ele, isto ,

    deixar as atividades da alma inferior sobressarem. Ademais, o fato de a alma estar em um

    corpo o que possibilita suas potncias exercerem suas atividades, como essa do pensamento

    discursivo, j que no vemos dificuldade ou problema em admitir que elas so potncias da

    alma encarnada.

    25 Cf. PRADEAU, Limitation du principe. Plotin et la participation, p. 73-79. SANTA CRUZ, La gense du monde sensible dans la philosophie de Plotin, p. 118-123.

    26 A nosso ver, nesse tratado, Plotino sugere que a necessidade da alma de descer aos corpos a primeira encarnao; em outros tratados ele ir discutir a escolha da alma para novas encarnaes, retomando o mito do livro X da Repblica.

  • 29

    A est o carter, por assim dizer, positivo da descida da alma aos corpos: Plotino

    explica que ela possibilita a manifestao das potncias, j que, do contrrio, elas seriam

    inertes27. Ora, assim que a razo discursiva e a linguagem se revelam e se desenvolvem.

    Nesse contexto, mergulhar na multiplicidade um movimento necessrio para a processo.

    Ademais, tambm uma oportunidade para a alma conhecer o Bem comparando-o com seu

    contrrio28. Desse modo, poderamos dizer que essa descida tem sua importncia, tem uma

    funo pedaggica no sentido de auxiliar e ensinar a alma a conhecer o Uno-Bem. possvel

    inferir tambm o papel do mal como contrrio do bem e como falta dele e do corpo. Mas

    claro que tal vantagem ou positividade tem tambm seu reverso, qual seja, a de as almas se

    afastarem do Uno-Bem, j que a razo discursiva e a linguagem geram a dualidade e

    permanecem nela. Sendo assim, abre-se um ciclo de afastamento e de aproximao do

    Princpio Supremo. Podemos concluir que Plotino tenta integrar os dois aspectos da descida

    da alma aos corpos, mostrando que eles so compatveis e no excludentes.

    Notamos que, durante todo o tempo, se trata da seguinte questo: por que a alma ou

    melhor, determinada alma inclina-se para o sensvel e para o corpo, para fora do inteligvel?

    Segundo Plotino, uma vez que h uma multiplicidade de inteligncias no inteligvel, preciso

    que, a partir de uma alma nica, surjam vrias almas, diferentes hierarquicamente. Ele ainda

    esclarece que a alma se inclinaria para baixo porque se lembra das coisas terrestres. H

    tambm uma imprudente temeridade ou audcia (to/lma) da alma de se afastar do inteligvel,

    direcionando-se para o oposto do Bem a matria e para o sensvel29. Contudo, apesar de se

    difundir em direo ao sensvel, isso no impede que ela possa se voltar para o inteligvel.

    Assim, percebe-se que h um conjunto de causas que levam a alma a se voltar para o

    sensvel, embora ela tenha a possibilidade de se manter no inteligvel. Tambm se nota que

    Plotino no explicito quanto ordem dessas causas, qual ou quais teriam mais fora,

    27 Cf. IV 8 [6], 5, 29-33.

    28 Cf. IV 8 [6], 7, 15.

    29 Cf. V 2 [11] 2, 6. Tal audcia possibilita alma constituir-se no sensvel.

  • 30

    determinando a inclinao ao sensvel. Mas nos parece que a causa intrnseca ao inteligvel,

    de ter que haver diferentes almas por haver diferentes inteligncias, a causa base. Tentemos

    mostrar o que nos impele a adotar tal posio.

    Julgamos importante discutir brevemente alguns aspectos da liberdade e

    voluntariedade, e da necessidade da inclinao da alma aos corpos, j que um problema se

    impe: a descida seria motivada no s pelo desejo e pela audcia da alma, mas tambm por

    um certo dever imposto a ela? A inclinao para o sensvel voluntria e importante para que

    a alma desenvolva suas potncias e, assim, ordenar o que est abaixo dela. Para Plotino, no

    ruim que a alma fuja rpido e conhea o mal e o vcio, exercitando suas potncias. Pelo

    contrrio, manifest-las bom, pois, no incorpreo, elas so inativas e, logo, seriam vs se

    no passassem ao ato30. Sendo assim, se h necessidade e exigncia de ordenao, ela no

    contraditria liberdade e voluntariedade na descida31. Mas como dever de ordenao e de

    liberdade em ordenar conjugada com o desejo de descer no seriam excludentes nesse

    caso?

    Banacou-Caragouni aprofunda bem tal questo da necessidade da descida da alma aos

    corpos, auxiliando-nos a obter uma compreenso mais precisa sobre o carter voluntrio da

    inclinao da alma ao sensvel. Segundo ele, a necessidade a expresso de uma lei universal

    que determina a conduta das hipstases, de modo que sempre haja ordem no universo; essa lei

    a prpria natureza das hipstases, no sentido de ser uma exigncia (a)napo/drastov) natural

    qual no se pode escapar; em outras palavras, a necessidade se estabeleceu na natureza da

    alma. Por isso, a determinao de ordenar, por ser natural e intrnsica alma, significa

    liberdade, no havendo, portanto, nenhuma contradio. Para ele, nesse sentido que se deve

    30 Cf. IV 8 [6], 5, 26-30.

    31 IV 8 [6], 5, 7-8. To\ e)kou/sion th~v kaqo/dou kai\ to\ a)kou/sion au}.

  • 31

    compreender que a necessidade implica a liberdade32. As almas no se sentem limitadas

    pela necessidade, pois essa lhes uma tendncia natural e, por assim dizer, inoprimvel33.

    O tratado 27 (Enada IV 3) explcito em afirmar, ao mesmo tempo, a necessidade, a

    justia, a involuntariedade, a vontade e a espontaneidade da descida da alma. No preciso

    que algo a conduza, mas, no momento certo, ela desce ao corpo apropriado e semelhante, e de

    acordo com sua disposio (diaqe/sewv)34. como se ela seguisse apelo de um arauto. Assim,

    presume-se (ei)ka/zw) que a alma movida por uma potncia mgica de uma atrao

    irresistvel. Portanto, a descida no voluntria, mas, ao mesmo tempo, a alma no enviada;

    pelo menos sua vontade ou desejo (proqumi/a) no uma escolha, mas como um salto por

    impulso, segundo a natureza (kata\ fu/siv) ou como quando se realizam belas aes sem

    reflexo (logismo/v).

    Todavia, por vezes, Plotino sugere que a queda da alma, sua perda das asas e seu

    aprisionamento nos corpos fazem parte de uma espontaneidade ruim de determinadas almas e

    no da necessidade da ordem das coisas. As almas se desviaram do governo dos seres

    superiores, guiados pela Alma do todo ou universal (yuxh/ th~~v o#lhv). Mas tal afastamento

    em relao Alma universal ou hipstase devido a um impulso de produo35. Assim, as

    almas so obrigadas a se introduzirem nos corpos para govern-los, pois o fazem no por

    vontade36 de escolha delas, mas por seguirem inevitavelmente uma lei estabelecida nelas

    mesmas. Mas, como vimos, seguir essa lei ou necessidade no algo contrrio natureza e

    tendncia das almas. Assim, Plotino s vezes afirma a necessidade, mas o faz no sentido de

    32 IV 8 [6], 5, 3-4. )Epei/per e!xei to\ ekou/sion h( a)na/gkh.

    33 Cf. BANACOU-CARAGOUNI, Observations sur la descente de lme dans les corps chez Plotin, p. 59, 62.

    34 Nesse texto, Plotino explica que cada alma desce para um corpo feito para receb-la, conforme sua prpria disposio; elas so transportadas para o corpo com o qual elas tm mais semelhanas, uma em um corpo de homem, outra em um corpo de um animal, diferente para cada uma. IV 3 [27], 12, 35-39. Ressaltamos que esse tratado fundamental no tema amplo e complexo da liberdade e da responsabilidade, junto providncia, ao determinismo e ao destino; mas no temos condies de discuti-lo aqui e lembramos ainda que tal tema pouco examinado pelos intrpretes de Plotino e merece uma investigao.

    35 Cf. IV 7 [2], 13 e IV 8 [6], 4.

    36 Banacou-Caragouni lembra a diferena da vontade espontnea e unvoca das almas individuais daquela vontade de essncia da Alma universal. Cf. BANACOU-CARAGOUNI, Observations sur la descente de lme dans les corps chez Plotin, p. 62-64. Cf. IV 8 [6], 2, 18-29; IV 3 [27], 9, 38-40.

  • 32

    ela implicar automaticamente e simultaneamente a liberdade. Da o carter paradoxal da

    descida: involuntria, mas, ao mesmo tempo, efeito do movimento prprio alma, ou seja,

    liberdade e necessidade esto juntas e no se excluem.

    Em contrapartida, se as almas permanecem no inteligvel, preservam-se do sofrimento;

    mas elas se separam dele e das outras almas, o que faz com que vivam uma vida entre o

    sensvel e o inteligvel. Significa que, uma vez que elas caem nos corpos, tm

    necessariamente essa vida dupla, tornando-se anfbias e desenvolvendo uma funo (e!rgon)

    dupla37. Elas vivem a vida do sensvel daqui e a do inteligvel de l. Ressaltamos

    que, mais uma vez, Plotino emprega o verbo tornar-se (gi/gnomai): as almas passam a ter

    uma vida dupla, pois elas no a tm desde a origem38, o que demonstra que essa uma

    caracterstica que lhes foi acrescida ou adquirida. Schniewind39 refora a ideia de que

    somente porque as almas descem e entram no devir que elas vivem, necessariamente, uma

    vida dupla. De fato, o que Plotino diz:

    Aps sua queda, a alma foi presa e acorrentada, agindo apenas pelos sentidos, pois, no incio, est impedida de agir pelo intelecto. Ela est, como se diz [Plato], em um tmulo e em uma caverna, mas, voltando-se para a inteleco, livra-se dos laos e parte da reminiscncia para contemplar os

    seres. Pois ela tem algo que sempre permanece no alto. Ento, as almas

    passam a ter necessariamente, por assim dizer, vidas duplas e vivem, em parte, a vida de l e, em parte, a daqui; vivem mais a de l, quando so

    37 Cf. IV 8 [6], 3, 21-31. importante ressaltar que, nesse contexto, se trata da vida dupla da alma. Quando discutirmos a concepo de homem para Plotino, avaliando a possibilidade de sua identificao com a alma, retomaremos esse ponto, analisando se adequado dizer que o homem tambm tem uma vida dupla.

    38 Mais tarde tentaremos esclarecer a natureza originria da alma (a(rxai~an fu/siv), isto , a alma sem acrscimos, no item A alma que no desce.

    39 Cf. SCHNIEWIND, Les mes amphibies et les causes de leur diffrence. propos de Plotin, enn. IV 8 [6], 4. 31-5, p. 185.

  • 33

    capazes de se unir ao Intelecto e mais a daqui, quando, ou pela natureza ou

    por circunstncias acidentais, ocorre o contrrio40.

    Tentemos compreender melhor essa vida dupla da alma. Destacamos que Plotino

    ressalta a ideia de consequncia (ou}n): como a alma pode agir apenas pelos sentidos ou se

    voltar para o Intelecto, ento, ela tem, necessariamente, uma vida dupla. Segundo

    Schniewind41, h uma perspectiva espacial atravs dos termos aqui e l, sendo que o ser

    anfbio sublinhado por essa dimenso. Dessa forma, a alma estaria dividida entre o sensvel

    e o inteligvel, vivendo, ao mesmo tempo, uma e a outra vida. Para ela, essa natureza dupla da

    alma permite-lhe viver nos dois elementos. Entretanto, no nos parece adequado analisar tais

    termos, aqui e l, somente e simplesmente no sentido espacial e nem afirmar que h uma

    ideia implcita de que a alma vive as duas vidas sempre e ao mesmo tempo.

    Literalmente, Plotino diz que ela vive em parte (para/ me/rov) a vida de l, em parte, a

    daqui. A nosso ver, estar entre o inteligvel e o sensvel significa que a alma pode se dirigir

    para um ou para o outro, no de um modo simultneo. Afinal, certamente, essa sua

    possibilidade de alternncia de foco que a faz ser algo intermedirio. Ademais, evidente

    que as metforas so falhas, mas, ao comparar a alma a um anfbio, Plotino elucidaria o

    significado do ser anfbio, aquele que vive ora em um ambiente, ora em outro e no nos dois

    ao mesmo tempo. Preferimos ento sustentar que Plotino parece destacar que ora a alma est

    voltada para o inteligvel, ora para o sensvel, sendo que, com isso, ele traa o papel

    intermedirio da alma. A alma pode viver no inteligvel e participar do sensvel ou vice-versa.

    40 IV 8 [6], 4, 25-35. Ei!lhptai ou}n pesou~sa kai\ pro\v tw|~ desmw~| ou}sa kai\ th~ ai)sqh/sei e)nergou~sa dia\ to\ kwlu/esqai tw|~ nw|~ e)nergei~n katarxa/v, teqa/fqai te le/getai kai\ e)n sphla/iw| ei}nai, e0pistragei~sa de\ pro\v no/hsin lu/esqai\ te e)k tw~~n desmw~~n kai\ a)nabai/nein, o#tan a)rxh\n la/bh| e)c a)namnh/sewv qea~sqai ta\ o!nta. !Exei ga\r a0ei\ ou)de\n h{tton u(pere/xon ti. Gi/gnontai ou}n oi{on a)mfi/bioi e)c a)na/gkhv to/n te e)kei~ bi/on to/n te e(ntau~qa para\ me/rov biou~sai, plei~on me\n to\n e)kei~, ai$ du/nantai ple/on tw~| nw~~| sunei~sai, to\n de\ e0nqa/de plei~on, ai{v to\ e)nanti/on h@ fu/sei h@ tu/xaiv u(ph~rcen.

    41 Cf. SCHNIEWIND, Les mes amphibies et les causes de leur diffrence. propos de Plotin, enn. IV 8 [6], 4. 31-5, 185-186, 190.

  • 34

    A funo intermediria da alma mencionada em vrias passagens desse tratado, eis uma

    delas:

    Sendo sua natureza dupla, inteligvel e sensvel, ento, melhor para a alma estar no inteligvel, mas necessrio, tendo aquela natureza, que ela participe tambm do sensvel. E ela no deve se irritar contra si mesma se ela no , de modo pleno, o superior. Ela ocupa uma posio intermediria entre os seres, pois, tendo uma parte divina, est na extremidade inferior do inteligvel. Estando no limite do sensvel, ela lhe d algo; dele, ela recebe algo em troca se no se ordena em sua estabilidade e se, por muito ardor, mergulha para dentro sem permanecer completamente junto alma do todo. Contudo, possvel a ela novamente vir tona a partir do sensvel42.

    Plotino ainda tece uma comparao entre as almas no que concerne capacidade de se

    orientarem para o Intelecto, deixando prevalecer a vida do inteligvel. claro que, apesar de

    estarem nos corpos e, por isso, terem que participar do sensvel, elas tm a liberdade e a

    possibilidade de retornarem para o inteligvel, porm, umas tm mais dificuldades do que

    outras para tanto, ou por natureza ou por circunstncias acidentais43. O curioso que Plotino

    no se refere s almas nesses tratados como homens. Ele estaria aludindo s diferenas dos

    42 IV 8 [6], 7, 1-14. Ditth~v de\ fu/sewv tau/thv ou!shv, th~v me\n nohth~v, th~v de\ ai)sqhth~v, a!meinon me\n yuxh~| e)n tw|~ nohtw|~ ei}nai, a)na/gkh ge mh\n e!xei kai\ tou~ ai)qhtou~ metalamba/nein toiau/thn fu/sin e)xou/sh|, kai\ ou)k a)ganakthte/on au)th/n, ei) mh\ pa/nta e)sti\ to\ krei~tton, me/shn ta/cin e)n toi~v ou}sin e)pisxou~san, qei/av me\n moi/rav ou}san, e)n e)sxa/tw| de\ tou~ nohtou~ ou}san, w)v o#moron ou}san th|~ ai)sqhth|~ fu/sei dido/nai me\n ti tou/tw| tw~n par au(th~v, a)ntilamba/nein de\ kai\ par au)tou~, ei) mh\ meta\ tou~ au9th~v a)sfalou~v diakosmoi~, proqumi/a|, de\ plei/oni ei)v to\ ei!sw du/oito mh/ mei/nasa o#lh meq o#lhv, a!llwv te kai\ dunato\n [o@] au)th~| pa/lin e)canadu~nai, i9stori/na w{n e)ntau~qa ei}de/ te kai\ e!paqe proslambou/sh| kai\ maqou/sh|, oi{on a!ra e)sti\n e)kei~ ei]nai kai\ th~| paraqe/sei tw~n oi{on e)nanti/wn safe/steron ta\ a)mei/nw maqou/sh|.

    43 O que as torna mais ou menos capazes de retornarem ao Intelecto e ao Uno? No tratado em questo, Plotino admite a existncia de uma causa interna e de algumas externas: a primeira seria a disposio (dia/qesiv) interna da alma e as segundas, os eventos fortuitos (tu/xai). Nesse texto, Plotino no precisa essas causas, mas o faz em IV 3, quando as elenca: 1. diferena dos corpos nos quais a alma entra; 2. eventos fortuitos; 3. tipos de educao; 4. diferena inerente das almas; 5. todas as razes juntas; 6. combinao de algumas razes. Plotino ainda expe sobre causas geogrficas e ambientais, hereditrias e astrolgicas; alm dessas, h a experincia passada, a qual tambm contribui para o carter. Cf. III 1 [3], 5 e IV 3 [27], 8.

  • 35

    homens ou das almas? Fazemos coro com Schniewind44 em afirmar que isso soa como um

    problema de rdua compreenso nas Enadas. Acrescentamos que esse um ponto que

    mostra o quanto se faz necessrio uma discusso sobre a identificao do homem com a alma,

    a qual constitui a grande questo que motiva este trabalho.

    Segundo Plotino, antes de se separarem do inteligvel e das outras almas, as almas

    estavam em um estado melhor, pois, aps a queda, agem apenas pelos sentidos e no pela

    inteligncia. Retornando ao inteligvel e se mantendo ligada a ele, a alma se livra dos seus

    laos com o sensvel e se eleva quando parte da reminiscncia para contemplar os seres

    superiores. Isso ocorre porque ela tem algo que sempre permanece no alto45. Assim, se a

    alma se inclina para o sensvel, ela no desce completamente. Mas o que seria esse algo da

    alma que permanece sempre no inteligvel? o que nos propomos a tentar compreender em

    seguida.

    1.3.2 Enada I 1 [53]

    A fim de compreender melhor como se d a descida ou a unio da alma aos corpos,

    ateremo-nos a essa questo no tratado 53 (Enada I 1). Esse tratado fundamental para a

    compreenso do tema, pois Plotino traz cena um nvel psquico, qual seja, o da imagem da

    alma, para justificar que no a alma que se inclina para baixo, mas algo derivado dela. A

    alma gera essa imagem quando desce, isto , quando se inclina para o sensvel e o corpo.

    Consciente de que a linguagem no capaz de exprimir adequadamente a descida ou a unio

    da alma aos corpos, Plotino recorre metfora da luz que projeta seu reflexo sem se confundir

    44 Cf. SCHNIEWIND, Les mes amphibies et les causes de leur diffrence. propos de Plotin, enn. IV 8 [6], 4. 31-5, p. 199.

    45 IV 8 [6], 4, 30-31. !Exei ga\r ti a0ei\ ou)de/n h{tton u(pere/ron ti.

  • 36

    ou ser afetada pelo que ilumina46. Desse modo, quando Plotino apresenta a descida e a unio

    da alma aos corpos, no se pode esquecer que ele se refere imagem da alma; logo, quando

    ele exprime que o corpo participa da alma e que a recebe, refere-se a essa outra espcie de

    alma47.

    importante destacar que Plotino discute com a tradio, em especial, Plato,

    Aristteles e os estoicos. Contudo, nosso intuito no analisar como Plotino retoma algumas

    doutrinas da tradio e estabelece relaes com esses autores; visamos apenas reproduzir o

    modo como ele se apropria de algumas teses de Plato, de Aristteles e dos estoicos, e no

    avaliar a pertinncia ou no da leitura plotiniana dos mesmos. Evidenciaremos a presena

    desses autores e os dilogos mantidos com eles por Plotino por meio de alguns temas que so

    importantes para este trabalho.

    Dito de um modo geral, para Plotino, o instrumentalismo platnico48 no d conta

    plenamente da unio da alma com o corpo expressa, no tratado 53, sobretudo, pela sensao

    e pela afeco , pois no garante a impassibilidade da alma49. Na analogia instrumentalista

    do piloto no navio, a qual representa a forma em contato com o corpo, o piloto s est

    presente em uma parte do navio, ao contrrio da alma, que anima todo o corpo. O timoneiro,

    sim, tem uma relao diferente com o timo: ele no tem apenas uma presena espacial, local

    ou parcial, pois o timo seu instrumento conatural. Reformulando o instrumentalismo

    platnico, Plotino sugere que a alma e o corpo podem estar unidos tese aristotlica de que o

    corpo um instrumento conatural da alma, porque ele no subsiste sem ela50. A questo que

    ele explicita que no a alma que se une aos corpos, mas sua imagem, o que assegura a

    impassibilidade daquela. Sendo assim, dizemos que o instrumentalismo no d conta da unio

    46 Cf. I 1 [53], 4, 12-16; 7, 4; 12, 25; 11, 14.

    47 Cf. I 1 [53], 7, 1-6 e 12, 23-24.

    48 Cf. PLATO, Alcibades, 129c.

    49 Cf. PLOTIN, Trait 53, p. 137.

    50 Cf. ARISTTELES, De Anima II 1. 413a.

  • 37

    de certa alma com o corpo ou que ele no se aplica irrestritamente a todo tipo de unio da

    alma e do corpo.

    Em I 1 [53], 3, 21-26, Plotino afirma que h uma alma separada que utiliza o

    instrumento e outra que se mistura de alguma maneira. A dificuldade est em compreender

    qual alma exatamente essa que separada e utiliza o corpo como seu instrumento conatural.

    Ademais, de qual alma Plotino almeja estabelecer a impassibilidade? Essa alma que utiliza o

    corpo no seria a alma indivisvel, pois ela no tem nenhuma relao com o corpo, nem

    mesmo de instrumento. A alma que se mistura ao corpo a imagem da alma, mas o que ela

    no evidente nesse tratado, muito menos o que a alma que utiliza o corpo como

    instrumento conatural. Eis o que pode ser uma evidncia de que a alma utilizadora e a que se

    mistura, isto , a imagem da alma, so diferentes: se a alma utilizadora separada, ela no

    seria a imagem da alma, pois vimos que essa ltima desce e se une ao corpo. Mas em que

    sentido a alma que utiliza o instrumento separada dele? No precisaria haver alguma relao

    entre eles? Para Aubry, a alma utilizadora a dinoia, a qual governa e comanda o corpo51.

    Retomaremos a questo mais adiante.

    Em relao aos estoicos, Plotino tece sua objeo mistura (kra/siv) da alma e do

    corpo tal como apresentada por eles. Ele ratifica a tese estoica de que, em uma krsis, os

    componentes no perdem sua identidade, ao contrrio de uma fuso (su/gxisiv), na qual h

    uma troca de qualidades. Se a alma e o corpo estivessem unidos em uma fuso, a alma, o

    melhor, teria se tornado pior, e o corpo, o pior, melhor; isso significa que a alma receberia a

    morte e o corpo, a vida52; e, por conseguinte, recebendo a morte, a alma no seria impassvel.

    Sendo assim, a fuso da alma e do corpo contraria o modelo de unio de ambos proposto por

    Plotino.

    51 Cf. PLOTIN, Trait 53, p. 150-151.

    52 Cf. I 1 [53], 4, 1-4.

  • 38

    Plotino aceita a krsis no sentido de que ela expressa uma unio em que a alma

    permanece essencialmente inalterada. Todavia, se, para os estoicos, a aliana corprea

    entre dois elementos corpreos , para Plotino, ela o entre um corpreo e um incorpreo.

    Ele os critica, pois, para ele, em toda mistura corprea, os componentes perdem suas

    qualidades, permanecendo apenas em potncia. Dessarte, para Plotino, a krsis estoica no lhe

    parece verdadeira, uma vez que os elementos se alteram. Na concepo de Plotino, a alma

    desenvolve suas funes em direo ao corpo, porque ela no corprea nem se corporaliza.

    Faz-se mister lembrar que, nesse tratado, Plotino no visa demonstrar a imortalidade da alma

    o que foi feito no segundo tratado (Enada IV 7)53 , mas identificar os problemas da unio

    ou mistura de dois elementos corpreos. Segundo ele, preciso pensar a unio da alma e do

    corpo, mas de um modo restrito.

    Quanto a Aristteles, Plotino no adere sua concepo de uma unio substancial da

    alma e do corpo, o que evidencia uma diferena crucial entre os autores nesse ponto. Ao

    contrrio, ele postula uma unio acidental, ou seja, pensa a unio, pensando na separao, ou

    melhor, sugere uma distino na unio, atravs da imagem platnica de um entrelaamento de

    ambos. Essa imagem confere a impassibilidade alma, apesar de no ratificar sua

    possibilidade: o entrelaamento no implica, necessariamente, a simpatia pela qual um

    experencia algo do outro. Plotino acrescenta, imagem do entrelaamento, aquela da luz, para

    demonstrar que a alma projeta sua sombra (skia/) nos corpos, no se dividindo, de fato,

    neles54: como a luz que ilumina (oi{on fw~~v e!llamyiv), a imagem da alma se difunde e

    entrelaa-se nos corpos. Ele utiliza os termos simulacro, aparncia, vestgio, espcie de eco,

    53 Em suma, nos primeiros sete captulos, ele aponta argumentos contra a corporeidade da alma, dos quais enumeramos alguns: se ela fosse um corpo, no seria possvel explicar nem a memria, pois no haveria fixao das impresses nem o pensamento, j que algo corpreo, que admite grandeza, no perceberia algo sem grandeza; como ela permanece inteira em cada parte do corpo, no pode ser corprea. No oitavo e no nono captulos, ele discorre sobre a natureza divina em geral, demonstrando, no dcimo, que a alma pertence a tal natureza para, a partir disso, deduzir sua imortalidade no dcimo primeiro e no dcimo segundo. Cabe registrar que Plotino descarta qualquer caracterizao que implique uma concepo material da alma e, por isso, no permite que se entreveja qualquer delimitao ou localizao espacial da alma.

    54 Cf. I 1 [53], 12, 12-18 e 20-30.

  • 39

    espcie de luz, trao, calor e irradiao. Com essa metfora, Plotino explica a imanncia e a

    transcendncia da alma nos corpos, ela est ao mesmo tempo presente e separada deles. Logo,

    a alma permanece indivisvel apesar da diversidade das almas individuais, pois a

    divisibilidade imagtica e funcional no substancial , sendo necessria para animar os

    corpos.

    Ainda em relao a Aristteles, Plotino aceita o hilemorfismo, isto , a imposio da

    forma matria ou a unio de ambas, ou, ainda, a alma como forma (morfh/) do corpo. Ele

    retoma a analogia aristotlica de que a alma est para o corpo, assim como a forma imposta ao

    ferro est para o machado. Se Plotino adapta o instrumentalismo platnico pelo vis do

    hilemorfismo, ele modifica esse ltimo: a forma que se une matria a imagem da alma; a

    alma indivisvel se mantm separada da matria, havendo, portanto, uma separao na

    unio55.

    Nos tratados analisados, percebemos que Plotino concilia 56 Plato e Aristteles,

    independente se ele tem ou no essa inteno, o que difcil de detectar. s vezes, ele parece

    pressupor que seus leitores e interlocutores j tm conhecimento desses autores. Outras vezes,

    as aluses so mais pormenorizadas e ele explicita o que no evidente nos textos platnicos,

    ou seja, revela suas entrelinhas, buscando explicar seus enigmas. cabvel considerar que,

    nessa explicitao, aos olhos do leitor e de alguns intrpretes, Plotino modifica ou transforma

    Plato. Entretanto, a nosso ver, seria exagerado afirmar que ele vai at mesmo contra Plato e,

    ainda, que o faz propositalmente, mas ntido que ele no repete nem aceita pura e

    simplesmente a tradio, no a abraa integralmente. Em suma, ele realiza uma exegese

    55 Quanto tese aristotlica de que a alma entelkheia do corpo, no segundo tratado (Enada IV 7, 8), Plotino elabora alguns argumentos contra ela, os quais apenas elencamos, sem ser possvel mostrar como Plotino os desenvolve e tambm sem investigar a pertinncia da crtica plotiniana: 1. um membro mutilado deveria levar uma parte da alma com ele; 2. no seria possvel explicar a oposio da razo ao desejo; 3. no seria possvel explicar a existncia do pensamento independente do corpo; 4. no seria possvel explicar a conservao de imagens independentes das coisas sensveis; 5. no seria possvel explicar a direo do desejo em relao ao objeto incorpreo; 6. no seria possvel explicar a propagao da alma vegetativa de uma planta a outra; 7. a alma seria divisvel, se entelkheia de um corpo divisvel; 8. no seria possvel explicar como os animais transformam-se em outros animais.

    56 Pode-se dizer que, nessa conciliao, h uma centralidade dos textos platnicos.

  • 40

    explicativa e crtica dos antigos. fato que ele apresenta algumas questes de um modo

    singular, como essa da imagem da alma, mesmo se, para ele, elas j esto em Plato de um

    modo implcito e obscuro. Contudo, a discusso da exegese plotiniana de Plato na qual est

    em questo a ortodoxia e o ecletismo ultrapassa este estudo, pois esse um tema grandioso

    por si s57.

    Pode-se inferir que Plotino atenua, de certa maneira, o alcance da descida da alma aos

    corpos. Como bem declara Schuhl58, a descida, na verdade, como o raio de uma luz que se

    estende para baixo, emitindo apenas seu reflexo. Portanto, a alma essencialmente separada

    do corpo ao qual se associa atravs de sua imagem. Desse modo, Plotino explicita um nvel

    psquico entre a alma propriamente dita e o corpo. Mediante a noo de imagem da alma, ele

    demonstra como a alma desce ao corpo: ela comunica ou participa algo (ti) dela a ele. Em

    outras palavras, o corpo no recebe a alma mesma, mas um vislumbre (i!ndalma) dela; a alma

    no se dirige diretamente aos corpos, mas o faz com algumas de suas potncias. Ademais,

    como vimos, a descida uma inclinao da alma. Descer e entrar no corpo significa que a

    alma d algo dela a ele, mas no se torna ele59. Assim, Plotino garante a impassibilidade e a

    indivisibilidade da alma em si e por si.

    Enfim, para Plotino, a separao da alma e do corpo, garantida pela imagem da alma,

    a condio de sua unio; a alma separada do corpo no sentido de no perder sua essncia ao

    se unir a ele. Em outros termos, h uma participao sem ciso e uma unio que no

    comunho devido superabundncia e difuso das imagens ou potncias da alma. Atravs

    das noes de imagem da alma e de separao na unio corpo-alma, Plotino explica a

    presena da alma nos corpos e salvaguarda, ao mesmo tempo, sua transcendncia e sua

    impassibilidade. O fato de a alma gerar uma imagem no lhe modifica em nada. O que se

    57 Aubry, em seu comentrio ao tratado 53, sustenta o ecletismo em vrios momentos. Pradeau tende ortodoxia, apesar de no ser to incisivo, pois afirma que Plotino tem particularidades distintivas quando conduz a definio de processo. Cf. PRADEAU, Limitation du principe. Plotin et la participation, p. 63.

    58 Cf. SCHUHL, La descente de lme selon Plotin, p. 67.

    59 Cf. VI 4 [22], 16, 14-15.

  • 41

    pode extrair que a alma no se relaciona diretamente com o corpo, mas o faz por meio de

    sua imagem que constitui um elemento intermedirio entre a alma e o corpo. Dir-se-ia que h

    uma relao de exterioridade entre a alma e o corpo o que no significa que no h relao

    entre eles , sendo que o elemento que os liga a imagem da alma.

    1.3 A ALMA QUE NO DESCE

    Vimos que Plotino insiste em afirmar que no a alma que se une ou desce aos

    corpos, mas algo derivado dela, sua imagem. Eis uma passagem importante em que Plotino

    expe sobre a alma ou algo dela que no desce, isto , que permanece sempre no inteligvel:

    Se preciso ousar dizer mais claramente o que nos parece contra as opinies dos outros, diremos que nem mesmo a nossa alma est completamente mergulhada [no sensvel], mas algo dela est sempre no inteligvel. Mas, se aquilo que est no sensvel domina, ou melhor, se dominado e perturbado, no nos seria permitido perceber aquelas coisas que

    o pice da alma contempla60.

    Essa passagem crucial por vrios motivos. Primeiro, porque Plotino audaz em relao

    s outras opinies, opondo-se a elas. Segundo, porque ele nos oferece poucas, mas

    importantes informaes acerca dessa alma que no desce:

    60 IV 8 [6], 8, 1-6. Kai\ ei) para\ do/can tw~n a!llwn tolmh~sai to\ faino/menon le/gein safe/steron, ou) pa~sa ou)d h( h(mete/ra yuxh\ e!du, all e!sti ti au)thv~ e)n tw~| nohtw~| a)ei/: to\ de\ e)n tw~| ai)sqhtw|~ ei) kratoi~, ma~llon de\ ei) kratoi~to kai\ qoruboi~to, ou)k e)a|~ ai!sqhsin h(min ei}nai w{n qea~tai to\ th~v yuxh~v a!nw. Aludindo ao Fedro, Plotino recorre a algumas metforas de imerso para explicar em que sentido a alma est fora ou alm do corpo: h um mergulho da alma superior para seu lugar originrio, subindo para um lugar supracelestial.

  • 42

    1. A alma, mesmo a nossa, no est completamente mergulhada no sensvel e no corpo;

    2. H algo da alma que sempre permanece no inteligvel;

    3. Se aquilo da alma que est no sensvel domina e est perturbado, no conhecemos a

    atividade do cume da alma;

    4. Esse algo da alma que permanece no inteligvel superior quela alma que est no

    sensvel.

    A primeira e a segunda coincidem ou se complementam: h algo da alma que sempre

    permanece no inteligvel ou que no est completamente mergulhado no sensvel61. Todavia,

    a primeira enfatiza a diferena da opinio de Plotino em relao quelas segundo as quais a

    alma estaria totalmente mergulhada no sensvel. Entendemos que a nossa alma que no est

    inteiramente no sensvel seja a individual encarnada, a qual nos interessa mais neste estudo.

    Mas mister observar que Plotino tambm discorre sobre outra alma que tambm no est

    completamente voltada para o sensvel, a Alma do todo, cujo algo inferior62 organiza o

    universo. Segundo ele, toda alma tem algo de inferior voltado para o corpo e algo de superior

    voltado para o Intelecto63.

    O fato de algo da alma estar sempre no inteligvel merece ateno: isso implica que

    essa alma no se relaciona com o sensvel e com o corpo? Mas como possvel que a alma

    esteja separada do corpo mesmo estando nele? A questo que sempre h a dificuldade de

    identificar a qual alma Plotino se refere.

    A segunda informao obscura e problemtica quando diz que algo (ti) da alma

    permanece sempre no inteligvel: Plotino emprega o pronome indefinido ti, deixando incerto o

    que exatamente da alma que no desce. Ela explcita em postular que algo da alma e no

    do Intelecto hipstase. Porm, ser algo da alma no implica estar nela, necessariamente;

    61 Essa alma superior que permanece sempre no inteligvel s vezes interpretada como sendo a parte primeira da alma (prw~ton) de algumas passagens como em III 8 [30], 5, 9.

    62 Alma do mundo.

    63 Cf. IV 8 [6], 8, 11-13.

  • 43

    somado a isso, a afirmao volta a ser vaga quando diz que essa alma sempre est no

    inteligvel (nohto/v), no o diferenciando segundo as hipstases, afinal, ele pode ser tanto a

    alma quanto o Intelecto, j que ambos so inteligveis. Portanto, pode-se dizer que no

    evidente se a alma que no desce permanece em si mesma ou no Intelecto64. A nosso ver,

    Plotino estaria recorrendo, mais uma vez, linguagem metafrica para dizer que a alma est e

    no est no Intelecto, do mesmo modo que diz que tudo est e no est no Uno. Desse modo,

    ele expressa relaes de participao e dependncia. Ademais, estar no sensvel e no corpo ou

    estar no inteligvel e no Intelecto significa que as potncias da alma se dirigem para baixo ou

    para o alto. Outra passagem confirma a impreciso pelo pronome indefinido: como a alma

    indivisvel? porque ela no se afastou completamente, mas h algo dela que no vem, cuja

    natureza no divisvel65.

    A dificuldade, explica Szlezk e com o qual concordamos, reside nas descries

    imprecisas da alma que no desce, as quais ora a aproximam da prpria alma, ora do Intelecto

    hipstase, sendo que isso se deve ao fato de no haver uma separao clara entre eles, alma e

    Intelecto. E lembramos que as que se aproximam da alma no so evidentes quanto sua

    relao com a alma racional. Em um de seus estudos, Szlezk afirma que ela se encontra no

    Intelecto. Segundo ele, o inteligvel no qual a alma que no desce sempre est o Intelecto,

    porque a independncia em relao ao corpo significa um acesso direto s Ideias66. Parece que

    ele identifica a alma que no desce com a alma mais racional, a alma sem acrscimo, que

    puro pensar e no se distingue do Intelecto, sendo um intelecto singular, individual; essa alma

    mais racional no pode ser o dianoetikn, pois ele transcorre no tempo. No obstante, ele

    reconhece que h problemas na localizao da alma que no desce e em sua relao com o

    raciocnio discursivo. Portanto, como ele bem observa, incorreto dizer que o problema da

    64 Cf. BLUMENTHAL, On soul and intellect, p. 100.

    65 IV 1 [21], 1, 12-13. Pw~v ou}n kai\ a)me/ristov; Ou) ga\r o#lh a0pe/sth, a)ll e1sti ti au)th~v ou0k e)lhluqo/v, o$ ou) pe/fuke meri/zesqai.

    66 Cf. SZLEZK, Platone e Aristotele nelle dottrina del Nous di Plotino, p. 246.

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    alma que no desce est solucionado. Em outro estudo, ele diz que impossvel encontrar o

    lugar da alma que no desce entre as duas hipstases, a Alma e o Intelecto67.

    Ademais, essa segunda informao suscita um problema quanto diviso da alma

    individual: Plotino se refere a uma mesma alma ou parte da alma, que ora se inclina para o

    sensvel, ora se mantm afastada dele, ou a almas distintas? Para Szlezk, a parte orientada

    para o alto, alm do corpo, separada daquela que est voltada para o corpo68. A questo

    que em alguns momentos Plotino diz que h uma alma que no desce, em outros, algo dela,

    sendo que as duas maneiras de expressar, a nosso ver, se confundem. notvel como Plotino,

    muitas vezes, no parece to rigoroso com as terminologias, ou melhor, no se interessa pelas

    distines que ns exigimos; no h uma inconsistncia terminolgica, mas uma fluidez. Por