A experiência religiosa e a institucionalização da religião

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A experincia religiosa e a institucionalizao da religio

Antonio Gouva Mendona

RESUMO NA DINMICA do campo religioso brasileiro, grupos diferentes surgem constantemente, permanecendo alguns, desparecendo outros. Este trabalho constitui uma tentativa de mostrar como esses grupos situam-se num gradiente que caminha do momento inicial de um grupo at sua institucionalizao final, seja em forma de igreja ou outra segundo sua maneira de instituir o sagrado. A referncia terica principal o conceito de sagrado selvagem de Roger Bastide.

ABSTRACT WITHIN the dynamics of the Brazilian religious milieu, different groups are constantly emerging some remain, while others disappear. This essay is an attempt to show how these groups constitute a gradient, a continuum that stretches from their inception to their ultimate institutionalization, either as a church or in peculiar manners of institutionalizes sacredness. The main theoretical reference is Roger Bastide's concept of savage sacredness.

EM 10 DE ABRIL de 1974 falecia em Paris, aos 76 anos, Roger Bastide, pioneiro da Sociologia da Religio no Brasil. O servio fnebre, oficiado na capela protestante da Clnica de Maisons-Laffite pelo pastor Raymond Leenhardt, do Instituto de Lnguas Orientais da Sorbonne, foi acompanhado por "tambores religiosos, alternando toques brasileiros e africanos, reunindo assim numa s homenagem as religies que sem dvida formavam o pano de fundo de todo o pensamento de Roger Bastide, homem e socilogo: o protestantismo e os cultos afro-brasileiros"1. extraordinrio que um protestante de tradio calvinista, formado, portanto, no rigor dogmtico e tico da Reforma franco-sua, com seu culto extremamente intelectual e, diramos mesmo, desencantado e quase secular, beirando o profano no sentido puramente tcnico deste termo, tivesse uma cerimnia fnebre de tal natureza. Pois que os tambores afros no representavam outra coisa se no o mistrio de cultos em que os deuses se mostram de maneira diferente, no enquadrados em dogmas ou ticas institucionais.

Talvez um trecho do sermo fnebre do pastor Leenhardt nos ajude a entender a personalidade de Bastide, personalidade que o levou a perseguir tenazmente a percepo do sagrado nas religies. Disse o pregador: "Sua grandeza d'alma se desenvolveu estreitamente ligada ao torro cevenol, e a mensagem evanglica trouxe ao vigor de seu pensamento uma abertura, um equilbrio entre esprito e corao"2. H, neste trecho do sermo, uma chave para entender a razo do porque um protestante, formado e preso a uma tradio religiosa fortemente instituda, pode abrir-se para religies sem dogmas e a-ticas e praticamente semiinstitucionalizadas, ou mesmo anteriores a qualquer institucionalizao. O pastor Leenhardt faz uma ligao entre a mensagem evanglica que Bastide recebera na sua formao na regio de Cvennes, na Frana, teatro de terrvel guerra religiosa provocada pela revogao do Edito de Nantes, em 1685, por Lus XIV, e o equilbrio entre o esprito, aqui a razo, e o corao, isto , a emoo. Pode-se inferir que a tradio de lutas religiosas pode introduzir numa cultura religiosa minoritria fortes traos emocionais que se superpem religiosidade dogmtica e mesmo intelectual. No caso de Bastide, ento, o peso do Evangelho, a narrativa dos atos de Jesus de Nazar, antecede, no somente no tempo mas tambm no conceito, a progressiva institucionalizao do Cristianismo. Se isto verdade, embora no me lembre de nenhuma referncia feita por ele, ou por algum a respeito dele, que autorize o que estou dizendo, parece que Bastide se alinha, embora de forma absolutamente distinta, de um lado, aos telogos liberais do sculo XIX e, de outro, aos msticos que viveram muito prximos, mas fora da igreja. Os chamados liberais evanglicos buscavam, antes de qualquer outra coisa, o modelo de beleza tica encarnado em Jesus de Nazar, historicamente comprovado, e os msticos, uma contnua aproximao no mediada do mesmo Senhor, tido como existente e vivo, mas no sujeito aos limites do dogma e da tica institucionais. Se os liberais buscavam provar a historicidade de Jesus, ao mesmo tempo livrando-o, como dizia Harry Emerson Fosdick3, das teologizaes j presentes nos textos evanglicos, os msticos buscavam Jesus pelo atalho da intuio no discursiva. No exagero dizer que, em ltima instncia, tanto os liberais como os msticos prescindiam da instituio religiosa, neste caso a igreja, como necessria para a vida crist. Alguns liberais protestantes foram hostilizados pela ortodoxia, mas a histria registra que o padre Alfred Loisy (1857-1949), lder do movimento modernista catlico, foi excomungado em 1908 ou 1909 pelas idias por ele expostas no seu clebre livro L'Evangile et l'Eglise, publicado em 1902. Neste livro, Loisy exara a clebre frase "Jesus pregou o Reino e veio a Igreja"4. Quanto aos msticos, pela prpria natureza de sua experincia religiosa, difcil de ser posta em forma discursiva e sistemtica, em geral no incomodavam a igreja. Regra geral, tm uma trajetria paralela vida da igreja, no contribuindo diretamente para a sistemtica, mas oferecendo exemplos notveis para a vida crist. Em suma, o que estou querendo dizer que esta questo da experincia religiosa, ou a viso e a experimentao do sagrado como sendo algo exclusivo de religies exticas e primitivas, no prevalece hoje no estudo das religies. A histria da vida institucional do Cristianismo mostra, em todas as suas diversas manifestaes, que a experincia religiosa, seja individual ou coletiva (neste caso, grupos ou comunidades msticas em fase s vezes pr-institucional), est sempre presente provocando retornos e simplificaes institucionais.

A inteno deste texto demonstrar que entre a experincia religiosa e a institucionalizao da religio h um caminho s vezes curto, s vezes longo, que em certos casos se completa e noutros no. Para isso, dedicarei espao tanto para as teorias sobre a experincia religiosa como para os processos de institucionalizao e suas formas de diferenciao por estgios.

As formas do sagradoO subttulo em si j denota uma dificuldade lgica ou um paradoxo de conceito, pois que o sagrado absolutamente a priori no pode ter formas, pois que se as tivesse seria objeto de conhecimento sensvel. E no o . A experincia do sagrado fundamenta-se num fenmeno, numa apario. Ora, um fenmeno, ou uma "apario" como preferem os existencialistas, por si s, ou por definio, j uma limitao do ser, no todo o ser. O sagrado da experincia no se mostra por inteiro, pois que se isto ocorrer j no mais um sagrado, no um deus. Comecei falando em Roger Bastide e vou caminhar por um pouco com ele nesta questo, embora na ordem dos autores que pretendo examinar, ele no seja o primeiro. Comeo por Bastide pelo fato de ter sido ele o criador de um conceito que se tornou clssico em Cincias da Religio: o conceito de "sagrado selvagem". Alm desse conceito, Bastide criou o de "ciso" (coupure) que pode nos ajudar a compreender outras questes, como o choque tico entre culturas religiosas diferentes e a possibilidade de viver uma religio sem os compromissos institucionais. Tratemos primeiro do tema do "sagrado selvagem", um dos textos mais ricos de Bastide e que traz em si uma teoria consistente a respeito das variaes da experincia do sagrado nas religies. O livro, que traz o ttulo do seu ltimo captulo ("Le sacr sauvage")5, foi o ltimo de Roger Bastide e contm artigos publicados entre 1931 e 1973. O livro saiu em 1977 por iniciativa de seu amigo Henri Desroche, de quem falarei mais adiante. O captulo sobre o "sagrado selvagem" parte de recorrncias do sagrado no sonho, nos mitos, na prece, no milenarismo do candombl da Bahia. Neste ponto, Bastide parte de seus conhecidos pontos de vista psicolgicos e psicanalticos sobre a religio. Segundo ele, o homem uma "mquina de fazer deuses" que, medida em que o sagrado se torna "frio" (froid) nas instituies religiosas (igrejas) recria o sagrado "quente" (chaud), que ele chama de "sagrado selvagem". A irrupo do sagrado constitui um ponto de efervescncia, un point d'orgue, isto , uma suspenso na cadncia musical (caldeiro). mile Durkheim afirmara que a religio surge nos estados de efervescncia social, em que o tempo sagrado interrompe o tempo profano das atividades sociais e econmicas. Bastide conclui, a partir da, que os estados de efervescncia religiosa no so durveis. Aps a efervescncia h uma queda do fervor sociolgico. A religio j instituda desenvolve-se a partir dessa queda "como gestora da experincia do sagrado". Essa gesto do sagrado pela igreja, diz Bastide, ao contrrio do que se pode pensar, tem um aspecto ou valor positivo, pois que assegura sua continuidade sob a forma de uma comemorao, de uma "lembrana" ensurdecida, de uma memria ou tradio. Por outro lado, porm, a instituio, atravs de sua liturgia

burocratizada, impede que o sagrado volte em inovaes perigosas, e tambm com outro discurso, um discurso diferente do aceito pela ortodoxia. A liturgia padro, assim como o discurso certo da ortodoxia, aprisiona o sagrado, transformando-o de selvagem em dominado. Repetindo o que eu disse de incio, mas agora com as prprias palavras de Bastide, "toda igreja constituda tem, sem dvida, seus msticos, mas ela desconfia deles, ela lhes delega seus confessores e seus diretores para dirigir, canalizar, controlar seus estados extticos, quando ela no os prende em algum convento que seus gritos de amor perdido no possam perfurar". Os movimentos de reforma, as heresias, os messianismos e os milenarismos so expresses sociais do desejo de volta a um passado vibrante e efervescente de "deuses sonhados". Da, todos esses delrios msticos que, de vez em quando, abalam o equilbrio das igrejas. Os catlicos sonhariam com Joaquim de Fiore e, aps ele, com o reino do Esprito Santo que substituiria os reinos da lei e da graa, um reino messinico de guerra contra a opresso, como exemplo a Teologia da Libertao, ou um reino de liberdade e de paz, como no movimento de renovao. Em ambos os casos, algo que, embora no mbito da igreja, manteria boa margem de autonomia a partir da liberao, ao menos parcial do sagrado institudo ou dominado. No protestantismo, os despertamentos, como o do sculo XIX, liberaram o sagrado para sacudir os pecadores impenitentes, para em seguida subordin-los tica do trabalho e do progresso sob a gide da moral vitoriana; os pentecostalismos, por sua vez, substituem a religio do livro, sistemtica e racional, pela inspirao divina com parcial descontrole do sagrado. Neste ponto, sugestivo que apontemos as diferenas entre o catolicismo e o protestantismo, no que tange ao controle do sagrado. No catolicismo, os mecanismos de controle do sagrado so mais elsticos. Raramente o rigorismo institucional se preocupa com os msticos. Estes, embora vivam sombra do sagrado como tal, portanto desteologizado, vivem ao mesmo tempo sob o plio da igreja qual confessam. Quando, por um motivo ou outro, propem inovaes, so submetidos s regras de uma ordem. Se revolucionrios, vo aos poucos tambm sendo submetidos hierarquia institucional. Raramente a Igreja Catlica exclui os que pretendem liberar o sagrado; antes, os envolve com seu plio e os transforma em agentes eficientes da sua continuidade, como diz Bastide. No protestantismo, ao contrrio, os inovadores, os reformadores, todos aqueles que se esforam por voltar a um sagrado mais "quente", so logo excludos. Como o sistema, ou princpio, de ordenao tornou-se legal ou burocrtico, independente da transmisso do carisma, os dissidentes formam logo outras instituies e consagram seus pastores sem outras formalidades. Alm disso, a ausncia de um centro exclusivo de poder e de gesto do sagrado permite o surgimento circunstancial de confisses de f que sustentam as diversas denominaes. Para simplificar e exemplificar, poderamos dizer que as tradies surgidas diretamente da Reforma, nas suas vertentes principais que foram a anglicana, a luterana e a calvinista ou reformada propriamente dita, mantendo, ou procurando manter, seus elementos religiosos fundantes, viram e continuam vendo sucessivas e mltiplas dissidncias que se propem a recuperar um sagrado mais "quente". Nesse permanente movimento de aprisionamento e liberao parcial do sagrado, numa seqncia dialtica de afirmao e negao, pode-se depreender uma lei que rege o caminho da experincia religiosa (experincia do fenmeno do sagrado) institucionalizao da religio e vice-versa: quanto mais rgida e sujeita a doutrinas estabelecidas e consolidadas for uma instituio religiosa, mais sujeita estar a divises ocasionadas pela necessidade de liberao do sagrado. A histria mostra

que, das tradies crists, a vertente mais sujeita a divises a calvinista, ou reformada propriamente dita, pela simples razo de que a que mais produziu confisses ou smbolos de f. No universo da Reforma, essa tendncia caminha inversamente na medida em que documentos simblicos escasseiam ou so ausentes: os luteranos com sua Confisso de Augsburgo e os anglicanos, em que um corpo doutrinrio est ausente. Mesmo que nos lembremos da Lei dos 39 artigos de religio, promulgada por Isabel I, assim como do Livro de Orao Comum, o fato que aquela s conservada como testemunho histrico e este, como o diretrio da devoo e do culto. No tm valor dogmtico. Vale aqui relembrar o surto teolgico havido no mundo protestante de meados do sculo passado: o movimento teolgico da "morte de Deus". Dos grandes embates entre liberais ou modernistas e conservadores, acentuados pela Guerra e o incio da Guerra Fria, surgiu um grande desapontamento com respeito s igrejas. Elas tinham encastelado Deus a tal ponto que ele se tornou impotente diante das necessidades do mundo. Elas haviam se transformado em "tmulos de Deus", asilo de um Deus morto. Foram protagonistas desta teologia Thomas J. J. Altizer e William Hamilton ("Teologia da morte de Deus")6 e, controvertidamente arrolados, como diz Gibellini7, Gabriel Vahanian8, Bispo J. A. T. Robinson9 e Harvey Cox10. No se tratava, como parece, de um surto de atesmo, da conscincia de que Deus aprisionado nas igrejas e na cultura perdera relevncia. Para os telogos da "morte de Deus", a excessiva transcendncia de Deus, alm de seu aprisionamento institucional, deixava-o distante e inoperante. Para Vahanian, por exemplo, seria necessrio lembrar que o Deus transcendente tambm imanente, bem na linha dos liberais evanglicos, dos msticos e dos messianismos polticos. Embutida ou paralela teologia da morte de Deus estava a da secularizao, principalmente em Harvey Cox. Para estes telogos, a secularizao uma purificao dos entraves do mito, da metafsica e da religio11. O fato que o movimento teolgico da morte de Deus, da secularizao, assim como da poltica, produziu grande abalo nas igrejas protestantes no perodo psSegunda Guerra, do movimento ecumnico e da Guerra Fria. At aqui tentei expor a teoria bastidiana que nos ajuda a compreender e a explicar os movimentos e as mutaes no interior das religies institudas. Voltarei a essa questo mais adiante. Vou dividir a parte que se segue em trs momentos daquilo que chamamos de experincia religiosa: a experincia fundante, que Mircea Eliade chama de hierofania, a institucionalizao ou a formao da religio e, por fim, os mecanismos de transformao e manuteno da instituio. Para isso, recorrerei ao auxlio dos clssicos das Cincias da Religio.

A experincia fundante da religio

A experincia fundante ou modificadora da religio, chamada na filosofia e na histria das religies de hierofania, foi magistralmente trabalhada por Mircea Eliade. um tema considerado por ele em toda a sua vasta obra, mas o principal est em Tratado de histria das religies (1970). Eliade pretende, nesse trabalho, chegar normalmente definio do fenmeno da religio sem a necessidade de comear pelos a priori da essncia da religio. O estudo da hierofania, ou dos grupos de hierofanias, nos leva a refletir sobre a morfologia do sagrado. Cada tipo de hierofania, entendida esta como a irrupo do sagrado, cada uma ao seu modo, permite uma dada e diferente aproximao do sagrado. A hierofania, com poucas excees, um epifenmeno que se apresenta a um indivduo e constitui nele uma experincia fundante ou transformadora, ou mesmo mantenedora de uma forma de religio. No primeiro caso, temos os indivduos fundadores de religies; no segundo, os profetas que pregam a volta s origens da religio instituda ou a correo de seus desvios e, por ltimo, o reforo do sagrado dominado, cujos exemplos melhores so as aparies da Virgem que estabelecem romarias a locais sagrados. Neste ltimo caso, a "apario" do sagrado que se revela em um de seus aspectos, mas que traz em si, por definio, a totalidade do seu ser (no caso da Virgem que se revela por inteira), a religio instituda apressase em limitar ou especializar seu poder de modo a domin-lo. Toda limitao (regulamentao) da apario ou epifenmeno significa coloc-lo sob custdia. Na rota conceitual de Eliade, vamos tentar, limitando-nos ao judeu-cristianismo, dar alguns exemplos de hierofanias narradas na Bblia e que nos ajudam a entender melhor o que estamos vendo em sua teoria. Vamos, didaticamente, partir da hierofania fundante da religio do Antigo Testamento: Moiss e a sara ardente. Pastor, Moiss apascentava o rebanho de seu sogro quando, chegando a um monte, viu uma sara que ardia mas no se consumia. Curioso, Moiss tenta se aproximar, mas Deus o advertiu que permanecesse distncia e se revela como o Deus de seus pais e faz promessas de salvamento para o seu povo (hebreus, escravos no Egito). As promessas deviam ser transmitidas ao povo, mas em nome de quem? Deus responde: "Eu sou o que sou". Diga a eles: o "Eu sou mandou" (Ex. 3, 1-6). Moiss no viu a Deus, no pde faz-lo porque foi impedido de se aproximar, mas viu o fogo, smbolo do sagrado, centro mesmo da hierofania. A voz se identificava com o ser absoluto de Deus: "Eu sou", aquele que a plenitude do ser e, por isso, no tem nome porque o nome por si j limita o ser. Mas este pleno "Eu sou" apresenta-se limitado a Moiss porque o sujeito da hierofania incapaz de apreender o "Eu sou" pleno. O que Moiss v? V o fogo que, com seu poder extremamente mvel, imprevisvel, no dominado, que no se sabe de onde vem nem para onde vai e que no consumia a sara, como parte do sagrado que assim se revelava. Eliade nos chama a ateno para a recorrncia do fogo nas mais diversas culturas e religies para significar, particularmente, a energia ao mesmo tempo criadora e sustentadora. Diz Ernst Cassirer que o fogo uma metfora radical. Herclito de feso, segundo Digenes Larcio, afirmava que o fogo o princpio de todas as coisas, no da fixidez, mas da mutao, sendo capaz de fazer passar a matria de um estado a outro. O fogo o sujeito do movimento do mundo, inteligente e divino12. A experincia de Moiss, essa hierofania do fogo no monte de Deus, o Horebe, autorizou-o a falar ao povo em nome de Deus. O discurso de Moiss da em diante parte dessa experincia e segue na direo da criao de uma religio. Num outro

passo (Ex. 33, 12-23), Moiss, desejando a confirmao de que Deus o acompanhava na pesada misso de conduzir o povo Terra Prometida, roga a Deus que lhe mostre sua glria. No pde ver a face de Deus, o que seria conhec-lo por inteiro, mas "sentiu" sua presena (glria) e "viu-o" pelas costas. Os profetas do Antigo Testamento desempenharam a funo de guardas da memria e da tradio diante de uma religio sacerdotal j instituda e confundida com um estado hierocrata, assim como de arautos de eventos desastrosos futuros por causa da infidelidade e dos desvios de reis sagrados e sacerdotes. Todos eles partiam de experincias pessoais hierofnicas com Deus. Basta citar o episdio do chamamento de Isaas (Is. 6, 1-8). No caso das hierofanias de Moiss, temos experincias religiosas fundantes e, no dos profetas, hierofanias de conservao da religio instituda. Voltemos a mais uma hierofania do fogo. Trata-se de uma hierofania coletiva e transformadora. O Cristianismo comea de fato a ser uma religio com o Pentecostes, embora ainda como uma seita do Judasmo. A narrativa de Atos 2, 1-43 constitui-se na hierofania do Esprito. Ela se distingue de outras, como as de Moiss, porque foi testemunhada por uma comunidade de pessoas e no por um indivduo. Liga-se a uma promessa de Jesus aos seus seguidores como aparece no Evangelho de Joo (16, 17). Os elementos dessa hierofania, como sempre composta por homens e elementos da natureza, so o fogo e o vento de um lado, e Pedro, os onze e demais circunstantes de outro. A metfora do fogo como elemento principal do mito hierofnico do Pentecostes pode significar, com toda a sua riqueza, o sagrado como o logos que cria, mantm, transforma, purifica e est presente em todas as coisas. princpio de transformao; movimento, mas movimento no previsvel porque se processa segundo o destino. um poder que vem de fora do mundo, mas que tudo penetra, conserva e transforma e cuja trajetria imprevisvel para os homens. A metfora radical do fogo introduz, no interior mesmo dos elementos da hierofania do Pentecostes, uma conseqncia direta: a distribuio de lnguas que unifica o discurso querigmtico de Pedro. Fecha-se, assim, o crculo simblico da hierofania do Pentecostes: um poder vindo de fora do mundo, um sagrado universal, fora do crculo do Judasmo, mas que remete sara ardente que fascinou Moiss no Horebe e que cumpriria a promessa do Evangelho (parcleto) e, ao mesmo tempo, o compromisso de romper o crculo religioso a que se achava restrita a "mensagem nova" ("at os confins da terra"). Rompem-se, ao mesmo tempo, os crculos geogrfico e religioso-cultural. significativo para o estudioso da experincia religiosa fundante que o mistrio do sagrado, no mito cujo centro o fogo, conserva aquela qualidade essencial descrita por Rudolf Otto13: o mysterium tremendum, porque no se sabe de onde vem nem para onde vai. Outro elemento da natureza que aparece na narrativa do Pentecostes o vento e tem um sentido complementar ao fogo no conjunto dessa hierofania do Esprito. O Evangelho de Joo (3, 8) diz assim: "O vento sopra onde quer e ouves o seu rudo, mas no sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasce do Esprito" (Bblia de Jerusalm). Agora, so quatro os elementos da hierofania: o fogo, o vento, o dom de lnguas e o discurso fundante do Apstolo entendido por dezenas de falantes de outras lnguas.

O sentido desse mito hierofnico deve ser buscado, como de regra, nas condies scio-histricas dos seus sujeitos. Eram eles pescadores, artesos ou pequenos funcionrios pblicos oprimidos entre as elites politicamente comprometidas da Palestina e o poderio romano. De um lado, o monotesmo judaico dos sacerdotes e levitas, ou legistas, e de outro, o politesmo helenizado dos romanos. Nada restava ao pequeno grupo de oprimidos, seguidores de um mestre que, ao mesmo tempo, mantinha diplomaticamente distncia o opressor poltico e demolia a elite sacerdotal comprometida e sua religio, a no ser proclamar-se detentor de um poder universal outorgado de modo espetacular pelo mestre sacrificado pelo conluio dos dois poderes poltico-religiosos opressores. Assim, uma pequena seita do Judasmo rompe seus estreitos limites geogrficos, sociais e polticos, para dois sculos e meio depois se transformar na religio mais poderosa do mundo antigo, uma religio do Imprio. O evento mtico, ao mesmo tempo transformador e fundante, transformador quanto ao Judasmo e fundante quanto ao Cristianismo, "racionaliza" ou "justifica" a tese de origem sobrenatural da igreja, sua universalidade e pobreza original. O livro de Atos narra outros eventos hierofnicos miraculosos, como a nova manifestao de foras da natureza na libertao de Paulo e Silas da priso de Filipos (Atos 16, 26), para legitimar a hierofania e, como sugere Eliade, corrigir rotas e consolidar princpios da nova religio. Mas, o Pentecostes, como tal, no se repetiu nos registros do Novo Testamento. Mesmo a Reforma no abalou esse fundamento institucional do Cristianismo. Fixaram-se somente os ritos e as doutrinas em torno deles. Concluindo estas consideraes a respeito da experincia bblica do Pentecostes, oportuno lembrar a nossa insistncia em recusar o pentecostalismo como um continuum em relao ao protestantismo histrico, como uma espcie de popularizao das igrejas da Reforma. Em primeiro lugar, como bem frisou o telogo da cultura Paul Tillich, o popular no da ndole do protestantismo, ele no uma religio de massas. Em segundo lugar, e mais relevante neste caso, a diferena fundamental entre o protestantismo e os pentecostalismos: para estes, o Pentecostes se repete infinitamente pelo derramamento do Esprito ao passo que, para aquele, o Pentecostes no se repete porque o Esprito veio, segundo a promessa do Evangelho, e ficou com a Igreja, mantendo-a e renovando-a sempre. Alis, este o princpio tambm de todo o Cristianismo tradicional. Voltemos um pouco atrs a fim de completar esta teoria sobre as hierofanias bblicas. A hierofania de Moiss no Horebe fundante no Judasmo; a do Pentecostes transformadora em relao ao Judasmo e fundante face ao Cristianismo. Mas, entre elas h outra que no pode ser omitida: a epifania de Deus em Cristo, Deus conosco. Deste modo, a epifania fundante em relao ao Cristianismo e o Pentecostes, uma transformao da epifania e a institucionalizao da igreja crist. Vemos ento que o mesmo sagrado est presente nos trs momentos fundantes e transformadores da religio.

O sagrado instituinte e o sagrado institudoA experincia religiosa do sagrado, portanto, a rigor teorizada por Eliade no seu conceito e anlise das hierofanias, fundante e transformadora da religio, podendo ser ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas, tambm pode ser conservadora, mantendo no interior mesmo da religio aquela dinmica, ou ebulio, necessria para que continue viva. Mesmo que as religies acreditem permanecer como tais porque se remetem sempre sua tradio e memria, por

intermdio do seu instrumento clerical e sacerdotal, elas esto sempre se modificando atravs de outro instrumento que o profetismo constestatrio e corretivo que h no seu interior. Para que possamos prosseguir e atingir nosso objetivo ser necessrio, neste ponto, estabelecer alguns parmetros terico-conceituais. Tentemos, para isso, distinguir religio de instituio religiosa, ou se preferirmos maior clareza, de igrejas. Diversos estudiosos da histria das religies ou, de maneira mais particular, das cincias da religio, procuram distinguir religio de igreja, ou religio instituda. Antes e depois de Bastide, a distino aparece com insistncia. Nenhum historiador, filsofo ou cientista da religio apresenta igreja ou instituio religiosa, ao menos de maneira direta, como seu objeto de estudo. A instituio aparece como simples referncia em alguns casos. Especificamente, o estudo da instituio religiosa como tal estaria noutro campo de estudos, como a Sociologia das Instituies, por exemplo. Falamos em antes e depois de Bastide, porque foi ele que, ao escrever o seu clssico texto "O sagrado selvagem", definiu com clareza todo o processo dialtico que h entre o sagrado no dominado, o sujeito-objeto da experincia religiosa, e o sagrado dominado da instituio religiosa. Embora a sociologia de Bastide nada tenha a ver com as teorias de Max Weber, neste caso, as que dizem respeito aos tipos puros ou ideais, no h como no observar que ambos os conceitos de Bastide, o de sagrado dominado e no dominado, so tipos puros ou ideais. No h, na realidade, nenhum sagrado absolutamente dominado, como tambm no h um sagrado absolutamente selvagem. Nenhuma instituio ou igreja pode, com seus dogmas ou confisses, engessar completamente o sagrado: ele guardar sempre suas franjas de mistrio pois, caso contrrio, deixar de ser sagrado; um deus conhecido no mais um deus, disse algum. Por outro lado, a experincia religiosa, seja ntima ou objetiva, neste caso hierofnica, jamais capta o sagrado por inteiro pela mesma razo anterior. O que h um espao mais ou menos desorganizado, ou s vezes mais ou menos organizado, entre a experincia religiosa, espao da religio propriamente dita, e a religio instituda, ou igreja. Este espao pulsa antes da instituio ou no interior dela como um elemento regulador entre sua inrcia e dinmica. Um discpulo e companheiro de Bastide na Sorbonne, Henri Desroche (1914-1994), nos ajudar a tornar mais clara esta teoria. No seu livro pouco conhecido e quase nunca citado, Sociologia da esperana (1985), ele consagra a "Introduo" ao que ele chama de "milagre da corda". O milagre da corda, recorrente na histria das religies, aparecendo em vrios lugares e autores, inclusive em Mircea Eliade, consiste no seguinte: um xam, faquir, ou malabarista, lana uma corda para o ar e ela, espiralando para cima, fica firme e ereta ao ponto de permitir que ele suba por ela. Est presa firmemente em algum lugar acima, em algo que no se sabe o que , mas que oferece ao xam ou seu secretrio confiana para subir por ela. Desroche serve-se deste mito da corda para ir desenvolvendo-o em outras direes de acordo com seus objetivos no livro. Mas, como o mito permite outros usos e interpretaes, servimo-nos dele para o nosso prprio fim: o do mistrio do sagrado. Lanar a corda e subir por ela numa aproximao infinita, porque nunca chega l, de algo que no se sabe o que mas que me d segurana e esperana, seria a essncia da religio. Essa confiana, ao mesmo tempo perigosa e angustiante, em algo que no vejo e que no conheo, distingue-se da religio instituda em que os dogmas e os preceitos ticos concedem conforto e paz.

Podemos avanar mais nesta questo caminhando ainda com Desroche, agora relendo a introduo primeira edio do seu dicionrio de messianismos e milenarismos14. Estamos trabalhando com os conceitos de religio e instituio, mas Desroche fala em sentimento religioso e religio como patamares distintos: aquele, a experincia religiosa antes da religio ou instituio. Creio que no h discrepncia entre a proposta anterior e esta. Mas, no seria inconveniente observar que a experincia religiosa como simples sentimento nos remeteria mais a William James15 com sua proposta mais psicolgica e subjetiva, ao passo que a experincia objetiva nos remeteria a Mircea Eliade, que parte do estudo das hierofanias. Entendemos, ainda, que ambas as propostas no se excluem, mas se completam. No mesmo passo, Desroche desfila os autores que desenvolveram o tema de vrias maneiras, mas que acabam convergindo para o sentido que buscamos. Assim desfilam as teorias de Durkheim (religio de efervescncia e de administrao), religio de primeira mo e religio de segunda mo (W. James), religio fechada e religio aberta (H. Bergson), e religies vivas e religies em conserva (R. Bastide).

O estudo sociolgico dos messianismos e milenarismos empreendido por Desroche leva-o a registrar que o fato do sentimento religioso vivido, como ato efervescente, de primeira mo, invade a sociedade, ou o grupo religioso, em momentos de sobressalto da vida. As grandes religies tradicionais, em momentos sociais de efervescncia, ou tambm de grandes mudanas, que podem ser rpidas ou lentas, tendem a assumir posies que variam da indiferena a tentativas de ajuste tico, mas sempre preservando as posies dogmticas tradicionais. Algumas com maior capacidade de ajustamento sem romper, ou enfraquecer, posies dogmticas, se saem melhor, no mximo perdendo adeptos que, no todo, no lhes comprometem o futuro. Exemplo no Brasil foi a Igreja Catlica no perodo dos militares e da Teologia da Libertao. Quanto ao protestantismo, nessa mesma circunstncia, as perdas foram grandes porque sendo religio mais secularizada e leiga, o impacto de novas idias polticas atingiu questes dogmticas ao mesmo tempo rgidas e fracas quanto a centros de poder encarregados de sustent-las. H, no protestantismo, particularmente na tradio reformada propriamente dita, um paradoxo permanente: ao mesmo tempo em que sustenta forte rigidez dogmtica, seja por determinadas formas de interpretao da Bblia, seja pelas formulaes simblicas consagradas em confisses de f, falta-lhe centros de autoridade que definam pontos de divergncia. Como conseqncia, so freqentes os expurgos de pessoas e grupos que, por seu lado, reiniciam processos de institucionalizao que desembocam em novas igrejas. Quanto maior for a rigidez dogmtica, maior ser a possibilidade de divergncias no interior da religio instituda, ou igreja. Quando falamos em religio instituda como aquela que atingiu o mximo em sua construo dogmtica, temos de considerar que esta religio formou poderosa elite intelectual capaz no somente de sustentar seus smbolos, mas tambm de oferecer alternativas quando estes smbolos so contestados. Quando a contestao se d no campo intelectual, os contestrios so geralmente tolerados; no mximo so olhados com desconfiana pela ortodoxia e, vez por outra, sofrem pequenas advertncias ou disciplinas. Neste caso, as querelas ainda laboram no campo do sagrado dominado. Os problemas surgem com maior gravidade quando pessoas ou grupos insatisfeitos com a rotina eclesistica, ou acicatados por situaes de efervescncia social, decidem liberar o sagrado em favor de uma religio mais emocional que possa amenizar os impactos situacionais do cotidiano. As mudanas institucionais, regra geral, tm incio, no por contestao intelectual, mas pela liberao ao menos parcial do sagrado atravs de formas emocionais de experincia religiosa. Estudos consagrados, como os de Max Weber16 e Ernst Troeltsch17 mostram que as contestaes de ordem emocional, que caminham como que num retrocesso em busca da recuperao do sagrado ao menos mais puro de um passado fundante tendem a formar grupos com pouca organizao interna, assegurados por simples laos de comunho. So chamados seitas. Mas, atingido um ponto mximo nesse retrocesso efervescente, tem incio um processo gradativo de rotinizao e organizao dogmtica cuja tarefa assumida pelos intelectuais. Voltamos a dizer que entre o sagrado instituinte da experincia religiosa e o institudo da instituio religiosa, h um gradiente cujos segmentos mostram o grau de dominao do sagrado. A maneira de determinar em que ponto do gradiente certo grupo religioso se encontra verificar o grau de intelectualizao que atingiu, principalmente pela produo dogmtica escrita, como tambm pelo grau de controle do sagrado nas reunies religiosas ou cultos. Pode, todavia, haver casos em que o grupo religioso se recuse a produzir escritos ao expressar recusa ao labor

intelectual, mas que apresentam certo grau de rotinizao ou controle do sagrado ao mesmo tempo em que mantm praxes e doutrinas por transmisso oral. Duas grandes instituies religiosas brasileiras de perfil pentecostal podem servir de exemplo para o que estamos dizendo. Ambas tiveram incio quase que ao mesmo tempo e em circunstncias praticamente iguais. Tratam-se da Assemblia de Deus e da Congregao Crist no Brasil, aquela surgida no norte do Brasil em 1911 e esta, no sul em 1910. Ambas fazem parte do que temos chamado de pentecostalismo clssico. A Assemblia de Deus, ou Assemblias de Deus, pois que seguem a tradio batista de autonomia das congregaes locais, comeou com um movimento de experincia religiosa induzida por dois missionrios sueco-americanos em uma igreja batista de Belm do Par. Da experincia da posse do Esprito Santo com o sinal da glossolalia percorreram um longo caminho de institucionalizao at chegar hoje a ocupar o lugar de maior igreja evanglica no Brasil. A no ser a nfase ainda mantida na posse do Esprito, com certa liberao emotiva, principalmente nas oraes, a Assemblia de Deus pouco se distancia das igrejas protestantes tradicionais. Possui uma teologia explcita calcada no metodismo wesleyano18, isto , na variante arminiana do calvinismo, textos teolgicos, um jornal semanal vendido em bancas, assim como seminrios para a educao de sua liderana. Em seus cultos, h um espao limitado e controlado para o sagrado mais livre. o seu nico distintivo em relao s igrejas tradicionais pois que, no gradiente, est muito prxima delas. A Congregao Crist no Brasil inicia-se com a mesma experincia fundante da Assemblia de Deus e acabou fortemente institucionalizada. Talvez esta caracterstica tenha seu fundamento no trao calvinista herdado de seu fundador, o valdense e depois presbiteriano nos Estados Unidos, Luis Francescon. A herana calvinista da CCB reflete-se bastante na ordem e na disciplina, tanto na vida privada como no culto, assim como na vida institucional. A forte institucionalizao dessa igreja, ao que se observa, reduziu mais ainda o espao para a ao livre do sagrado. Dentro de um culto extremamente racionalizado, h dois momentos de liberdade: um a abertura para qualquer membro da congregao tomar a iniciativa de ler a Bblia e pregar, o outro o momento de testemunho, ou "testemunhana" como eles preferem dizer. O testemunho o espao do culto em que qualquer pessoa pode relatar alguma experincia religiosa em sua vida. A liberdade de pregar, apesar de continuar a ser oferecida nos cultos, quase que no mais aproveitada pelos adeptos que preferem deixar a prdica por conta dos lderes. O testemunho atentamente fiscalizado pelo lder frente do culto que, ao notar irrelevncia ou inconvenincia no relato, tem a autoridade para interromp-lo dizendo "no vem do Esprito".

A transmisso religiosa na CCB exclusivamente oral eclesial (na igreja). Os nicos textos so a Bblia, e ainda exclusivamente a verso de Joo Ferreira de Almeida Revista e Corrigida, o livro de hinos e o relatrio anual de atividades da igreja. Circulou entre os membros da Igreja, ao menos at recentemente, um folheto com poucas pginas, de autoria do fundador Lus Francescon, uma narrativa de sua experincia religiosa. Este autor foi informado de que o folheto no estava mais sendo impresso porque muitas pessoas estavam tomando Francescon por santo e orando com sua intermediao.

Tanto uma como outra dessas igrejas, fortes no cenrio religioso brasileiro, representam estgios diferentes no gradiente sagrado selvagem ou instituinte e sagrado dominado ou institudo.

Experincia religiosa e institucionalizaoTentamos expor as variaes, tanto instituidoras como transformadoras, no campo representado pelo gradiente sagrado selvagem ou instituinte e sagrado dominado ou institudo. Agora, caminhando para a concluso deste texto, desejamos apresentar uma teoria que nos ajuda a resumir de forma clara tudo o que j foi exposto e discutido. O autor desta teoria, que tomamos a iniciativa de denominar "teoria dos crculos concntricos", Frederico Heiler (1892-1967), cientista da religio que comea a circular no Brasil recentemente atravs de Giovanni Filoramo e Carlo Prandi19. Suas obras tiveram circulao restrita, parecendo que com mais evidncia na Itlia, onde pelo menos sua obra principal Erscheinungsform und Wesen der Religion (1961) foi traduzida20. Tenho tentado inteirar-me o melhor possvel da teoria de Heiler sobre a fenomenologia da religio. Encontrei o melhor material em seu livro, o nico ao que se sabe traduzido para o ingls, que Das Gebet (1923). Quanto sua obra principal, valho-me da excelente exposio de Peter Mckenzie21, The Christians, their Beliefs and Practices (1988). A teoria dos crculos concntricos permite-nos percorrer a trajetria, ou o gradiente sagrado-instituinte-sagrado-institudo, inclusive as diferentes formas de expresso individual e social da religio. Suponhamos trs crculos concntricos. O primeiro, o exterior, revela parcialmente o objeto sagrado, as maneiras pelas quais o sagrado se revela no mundo emprico porque pode ser percebido pelos sentidos, fenomenologicamente nas "aparies" das condutas pessoais e nas instituies. So as maneiras ou formas pelas quais o sagrado se manifesta, principalmente nas instituies religiosas visveis: templos, cultos, ritos, objetos sagrados etc. o mundo do sagrado dominado, institudo. O crculo intermedirio trata das concepes e idias religiosas (teogonias ou teologias). o lugar dos sistematizadores da experincia religiosa, dos dogmticos e seus representantes e guardies. o espao dos intelectuais da religio instituda. As efervescncias que comeam no crculo externo so controladas neste crculo, pois que elas tendem para o crculo central, lugar do sagrado puro ou instituinte. O crculo central , pois, o lugar do sagrado absoluto. o mundo vivido da experincia religiosa. Este o lugar dos msticos, dos ascetas. o corao da religio, mas no ainda a religio em si. O asceta, o mstico, no tem religio alguma; s tem a posse parcial, limitada, do sagrado. Em resumo, quando o sujeito da experincia religiosa, partindo do crculo central chega ao intermedirio, cria uma religio; quando parte do crculo externo, crculo dos leigos por excelncia, ou do intermedirio, crculo dos intelectuais e sacerdotes, e chega ao central, sai da religio.

O mstico sai da religio porque na sua ascenso para o sagrado ele vai abandonando todas as formas de crena anteriores, assim como as sistematizaes adquiridas. O mstico contempla o sagrado sem intermediaes e nisto se contenta.

ConclusoNosso intuito foi expor o duplo caminho, de ida e volta, entre a experincia religiosa psicolgica ou hierofnica, se que se pode separar uma da outra, religio institucionalizada ou igreja, no caso do Cristianismo. Esse percurso, que constitui um gradiente, apresenta o sagrado como constituinte ou constitudo e , ao mesmo tempo, conservador e transformador da religio. E, por fim, atravs da teoria dos crculos concntricos de Frederico Heiler, mostrar idealmente os campos especficos da religio, dedicando ateno especial formao da religio como instituio e o caminho de sada da religio, modelarmente representado pela mstica.

Notas1 Cadernos do Ceru, n. 7, out. 1974. 2 Idem, p. 9. 3 Herry Fosdick, The Man from Nazareth, New York, Pocket Books, 1953. 4 Traduo inglesa The Gospel and the Church, 1908, p. 115. 5 Rger Bastide, Le Sacr Sauvage et autres tudes, Paris, Payot, 1975. 6 Thomas J. J. Altizer e William Hamilton, Radical Theology and The Death of God, 1966 7 Rosino Gibellini, A teologia do sculo XX, 1998, p. 142. 8 Gabriel Vahanecin, The Death of God, 1961. 9 J. A. T. Robinson, Honest to God, 1965. 10 Havey Cox, The Secular City, 1965 (A cidade do homem, So Paulo, 1971). 11 Robert Adolfs, Igreja, tmulo de Deus?, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968. 12 IX, 1-17 (DK 22 A 1), em "Os Pr-Socrticos", Coleo Os Pensadores, p. 83. 13 Rudolf Otto, O sagrado, S. Bernardo do Campo, Imprensa Metodista/ Instituto Ecumnico de Ps-Graduao em Cincias da Religio, 1985. 14 Dieux d'hommes - Dictionnaire des Messianismes et Millnarismes de l're Chrtienne, 1969 (Dicionrio de messianismos e milenarismos, So Bernardo do Campo, Universidade Metodista de So Paulo, 2000).)

15 The varieties of religious experience: a study in human nature, 1902 16 Max Weber, Economia e sociedade, vol. 1, 1991, pp. 310 e ss. 17 Ernst Troeltsch, The Social Teaching of the Christian Churches, vol. 2, London, George Allen & Unwin Ltd./New York, The Macmillan Company, 1956, pp. 691 e ss. 18 De John Wesley (1703-1791), fundador do metodismo. 19 Giovanni Filoramo e Carlo Prandi, As cincias das religies, So Paulo, Paulus, 1999, pp. 27 e ss. 20 Traduzido com o ttulo Le religioni dell'umanit, 1985. 21 Peter Mckenzie, The Christians, their Beliefs and Practices, Nashville, Abingdon Press, 1988.

BibliografiaADOLFS, Robert. Igreja, tmulo de Deus? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968. ALTIZER, Thomas J. J. e HAMILTON, William. Radical Theology and The Death of God, 1966. BASTIDE, Roger. Le Sacr Sauvage et autres essais. Paris, Payot, 1975. BISHOP, J. A. T. Robinson. Honest to God, 1965. Cadernos do Ceru-Centro de Estudos Rurais e Urbanos, n. 10, nov. 1977 (nmero dedicado a Roger Bastide). COX, Harvey. The Secular City, 1965. Trad. em portugus Cidade do homem, So Paulo, Paz e Terra, 1971. DESROCHE, Henri. Sociologia da esperana. So Paulo, Paulinas, 1985. ________. Dicionrio de messianismos e milenarismos. So Bernardo do Campo, Universidade Metodista de So Paulo, 2000. FILORAMO, Giovanni e PRANDI, Carlo. As cincias das religies. So Paulo, Paulus, 1999. FOSDICK, Harry E. The Man from Nazareth, New York, Pocket Books, 1953. GIBELINI, Rosino. A teologia do sculo XX. So Paulo, Loyola, 1998. MCKENZIE, Peter. The Christians. Nashville, Abingdon Press, 1988. Os Pr-Socrticos. Coleo Os Pensadores, So Paulo, Nova Abril Cultural, 1996.

OTTO, Rudolf, O sagrado, So Bernardo do Campo, Imprensa Metodista/ Instituto Ecumnico de Ps-Graduao em Cincias da Religio, 1985. TROELTSCH, Ernst. The Social Teaching of the Christian Church London, George Allen & Unwin Ltd./New York, The Macmillan Company, 1956. VAHANIAN, Gabriel. The Death of God, 1961. WEBER, Max. Economia e sociedade. Braslia, Editora UNB, 1991, vol. 1.

Texto recebido e aceito para publicao em 27 de agosto de 2004.

Antonio Gouva Mendona doutor em Cincias Humanas pela Universidade de So Paulo e professor do Curso de Ps-Graduao em Cincias da Religio, Universidade Presbiteriana Mackenzie, So Paulo.