Upload
silvio-moreira
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
1/227
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
A EXPRESSO EM LEIBNIZ
TESSA MOURA LACERDA
So Paulo
2006
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
2/227
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
A EXPRESSO EM LEIBNIZ
TESSA MOURA LACERDA
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, do
Departamento de Filosofia, da Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
da Universidade de So Paulo, para a
obteno do ttulo de Doutor em
Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva
So Paulo
2005
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
3/227
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, ao Professor Franklin Leopoldo e Silva, por
ter orientado meu trabalho desde a graduao, sem jamais questionar minha liberdade de
interpretao e, ao mesmo tempo, sem jamais me deixar sozinha nos caminhos de leitura que
escolhi. Devo-lhe muito mais do que este texto, devo-lhe a maneira como encaro o trabalho
filosfico.
Agradeo tambm Professora Marilena Chaui, com quem convivo desde a minha
graduao. Nessa relao quase cotidiana, em nossas discusses tericas, em nossas
conversas sobre o fazer filosfico e sobre poltica, nas leituras que ela faz de meus textos,
inclusive como membro da banca de mestrado e da qualificao do doutorado, aprendi e
aprendo muito mais do que Filosofia.
Agradeo ao Professor Carlos Alberto Ribeiro de Moura, pelas observaes valiosas
nos exames de qualificao para o mestrado e para o doutorado.
Agradeo ao Professor Luiz Roberto Monzani, pelas questes que me fez na defesa
de mestrado e que me levaram a escrever este doutorado.
Agradeo a todos os meus colegas do Grupo de Estudos Espinosanos ou Seiscentistas,
no qual encontro um espao de discusso, de partilha das angstias filosficas, de conversa,
um espao de convivncia por vezes difcil, mas sem o qual estudar Filosofia seria uma
atividade bem menos prazerosa. Todos eles, seja pelas observaes que fazem aos meus
textos, seja pelas interpretaes que apresentam em seus prprios textos, contriburam para
este trabalho.
Agradeo a Mariluce Moura, minha me, por muitas coisas, mas sobretudo por criar
as condies intelectuais e materiais que me permitem estudar Filosofia e, particularmente,
escrever este texto. Sem sua ajuda concreta, cotidiana, infalvel, sua orientao, seu
companheirismo, eu no teria escrito este doutorado.A Rino Marconi, meu pai, porque mesmo de longe nunca deixou de estar presente e
inspirar este trabalho com sua perspectiva nica sobre a vida.
A Jos Bento Ferreira, com quem divido angstias e alegrias cotidianas, e que me
ajudou a encontrar o tempo de me dedicar ao doutorado.
A Elisa Pereira, Luiza Pereira e Tiago Marconi, por tornarem o perodo em que me
dediquei a escrever este texto muito divertido.
A Gabriela DElia e Marlia Aceiro, amigas inseparveis que contriburam direta eindiretamente com este trabalho.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
4/227
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
5/227
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
6/227
ABSTRACT
Expression is one of the most important notions of Leibnizs philosophy. The
philosopher addresses it directly in some texts, however, more than an object of
analysis, the notion of expression organizes and makes reflections about Leibnizian
theology, ontology and epistemology converge. Leibniz is not the first to deal with
expression; the originality of his approach lies in a mathematical interpretation of
expression, which makes it possible to define it as an analogy of relations between
expression and expresser. One thing expresses another, says Leibniz, when there is a
regular and reciprocal correspondence between the two, or between what can be said of
one and the other. Accordingly, expression presupposes analogy and harmony.
Having defined the relation of expression in these terms, it is possible, at the
theological or metaphysical level, to explain how God expresses himself in simple,
absolute and infinite forms, which express themselves in general systems of
phenomena or possible worlds, which are expressed in individual notions and do not
exist outside them. At the ontological level, we shall say that individuals express God as
a cause and the world which they are part of. These individuals, in turn, express
themselves as phenomena that are unified by thought as bodies. The relation that
defines the bodies and the relation between bodies express the ideal relations that
individual substances maintain amongst themselves, the physical order expresses the
metaphysical order.
At the epistemological level, we shall say that our ideas express the ideas of
God; we agree with God in the same relations. But to know these relations, the present
expression in an idea has to be developed. The classification of ideas in Leibniz
presupposes this progressive development that takes place as a gradual analysis: the
ideas may be obscure or clear, these ones confused or distinct, these ones inadequate oradequate, and the adequate ideas may be the object of a blind or symbolic knowledge
and of an intuitive knowledge, very rare.
The scope of the notion of expression makes it possible to put heterogeneous
orders into a relation and to show the convergence and similarity of different things. In
this measure, we can relate such different things as characters and thoughts, hence
Leibnizs quest for a universal language or Characteristic.
Key words: Expression, Analogy, Harmony, Relation, Character.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
7/227
NDICE
INTRODUO..................................................................................................................p.09
A gnese da expresso: analogia matemtica?.....................................................p.10
Expresso e harmonia............................................................................................p.15
Uma filosofia expressiva.........................................................................................p.23
CAPTULO I A MATEMTICA DA EXPRESSO
A relao entre a matemtica e a metafsica: modelo.........................................p.31
O infinito..................................................................................................................p.36
O novo algoritmo....................................................................................................p.43
Um pensamento cego..............................................................................................p.53
A relao entre a filosofia e a matemtica: expresso.........................................p.58
A caracterstica geomtrica....................................................................................p.71
CAPTULO II UMA ONTOLOGIA EXPRESSIVA: DE DEUS AOS CORPOS
A prova da existncia de Deus...............................................................................p.85
Analogia...................................................................................................................p.89
Simplicidade............................................................................................................p.98
Uma tese: o nada...................................................................................................p.102
Do nada, nada vem................................................................................................p.105
O princpio de continuidade.................................................................................p.113
O indivduo como ponto ou centro expressivo...................................................p.120
O corpo como fenmeno da alma........................................................................p.124
A harmonia preestabelecida................................................................................p.130
CAPTULO III A EXPRESSO IDIA
A expresso um gnero......................................................................................p.142
Conhecer criar?..................................................................................................p.147Pensamentos e idias.............................................................................................p.153
Entre Plato e Aristteles.....................................................................................p.159
O que idia?........................................................................................................p.163
As definies e os signos.......................................................................................p.174
A classificao das idias: do obscuro ao intuitivo............................................p.186
CONCLUSO...................................................................................................................p.200
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...........................................................................p.217
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
8/227
A Nara Lacerda Ferreira, minha filha.
Em memria de suas bisavs,
Regina Moura,
de uma sabedoria indescritvel,
e Clia Lacerda.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
9/227
tudo como aqui, em toda parte e sempre.
G. W. Leibniz
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
10/227
INTRODUO
O que a expresso? O que significa exprimir e exprimir-se? Como indivduos
distintos, mundos particulares, comunicam-se entre si e se entendem? Entendem-se de fato?
E o que significaria entender-se? Seguramente no ver pelos olhos do outro, no estar no
lugar do outro se fosse assim, colocar-se no lugar do outro no precisaria ser um
mandamento moral e religioso, seria uma obviedade. As lnguas distintas, as culturas
diferentes estabelecem separaes entre grupos de indivduos, mas jamais se colocam como
uma barreira intransponvel quando os indivduos buscam um ideal comum. Um ideal
comum capaz de tornar mais prximo que um vizinho, mais compreensvel que um
familiar, uma pessoa de um universo cultural completamente distinto. Como isso possvel?
H uma estrutura comum a todos os homens que permite a comunicao entre eles? Mas,
ento, por que se desentendem? O que os afasta e o que os aproxima? Se a nfase for posta
na diferena determinante da perspectiva que cada indivduo tem do mundo, perspectiva que
o define como indivduo, ento aparentemente no h comunicao possvel. Se, ao
contrrio, a nfase estiver na identidade do mundo que cada um percebe sua maneira, ento
talvez possamos vislumbrar a possibilidade de comunicao, sem, no entanto, jamais
esquecer as diferenas que definem a individualidade. Mas se essas diferenas individuais
so to determinantes, como se d esse milagre da comunicao? E como pode haver
indivduos capazes de comunicar algo debochando do tempo e do espao, capazes de dar
uma expresso atemporal de sua individualidade como os artistas e, tambm, os filsofos?
So essas questes que movem este trabalho. No sero objeto direto de estudo, mas
esto no horizonte deste estudo. Pode ser inusitado comear um texto fazendo perguntas que
no pretendemos responder, pelo menos no de maneira direta. Mas talvez seja tambm um
modo de mostrar a importncia de uma filosofia que no pode ficar restrita ao tempo que lhe
deu origem. com essas dvidas que lemos um texto escrito h mais de trs sculos hoje.Poderamos sublinhar as influncias de Leibniz na filosofia, o uso cientfico que se faz de
certos conceitos deste filsofo ainda hoje, as conseqncias dessa filosofia para a histria do
pensamento ocidental e mostraramos, ento, quo importante ainda essa filosofia. Nosso
intuito bem mais modesto. Queremos apenas entender como, no interior desse pensamento,
concebida a expresso.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
11/227
10
A gnese da expresso: analogia matemtica?
O que expresso? O que significa exprimir-se? Por que podemos dizer que uma
coisa exprime outra? Leibniz afirma: diz-se exprimiruma coisa aquilo em que h relaes
(habitudines) que correspondem s relaes da coisa a ser exprimida1. Esta
provavelmente a primeira formulao de uma das noes mais importantes de sua filosofia.
A idia de expresso perpassa a obra madura de Leibniz em sua totalidade, fazendo convergir
reflexes matemticas, epistemolgicas, metafsicas, ontolgicas. Mais que um fio de
Ariadne, a expresso como uma linha que constitui os tecidos das diferentes temticas
dessa filosofia, parte da matria de cada uma dessas tramas. Por isso, para pensar a
expresso em Leibniz, no basta tratar desse tema abstratamente, preciso penetrar nos
temas mais importantes de sua filosofia e, no interior deles, procurar analisar como a
expresso opera.
A definio do opsculo citado acima, Quid sit idea, do fim da dcada de 70, uma
definio bastante geral de expresso. Nesse texto, partindo da anlise da idia, Leibniz
levado a definir a expresso como uma correspondncia entre dois elementos quaisquer, a
coisa que exprime e a coisa exprimida, sem especificar a natureza da relao ou dos termos
que se relacionam. Num primeiro momento essa correspondncia parece ter apenas um
sentido, isto , o que exprime corresponde ao que exprimido, as relaes presentes no que
exprime correspondem s relaes do exprimido. Segundo os exemplos, o mdulo de uma
mquina exprime a mquina (trata-se de uma relao entre um e mltiplo, o mdulo uma
regra de construo comum a quantas mquinas se queira construir, uma regra que se
conserva na construo das mquinas); um desenho no plano exprime um slido (trata-se de
uma relao ponto a ponto, ou seja, cada ponto do plano corresponde a um ponto do slido,
, portanto, uma relao entre duas multiplicidades); as oraes exprimem pensamentos e
verdades, os caracteres exprimem nmeros (so relaes entre multiplicidades: o conjunto de
sons exprime o conjunto de pensamentos e verdades, um conjunto de caracteres exprime oconjunto dos nmeros); a equao algbrica exprime o crculo ou outra figura (h uma
correspondncia ou correlao na traduo de uma figura por uma equao). Esses exemplos
que, primeira vista, parecem aleatrios, podem ser compreendidos no interior de uma
1
Quid sit idea, in Die Philosophischen Schriften, herausgegeben von Gerhardt, Berlin: GeorgOlms Verlag, 1890 (doravante citado PS, seguido do volume e da pgina). VII, p.263.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
12/227
11
mesma rede expressiva. Para Michel Serres2, h uma correspondncia das verdades em
relao s palavras, das palavras aos caracteres, dos caracteres aos nmeros, dos nmeros aos
pontos, dos pontos figura plana, dessa projeo ao slido, do slido matemtico mquina.
Leibniz no afirma de imediato a possibilidade do sentido inverso de correspondncia, o que
s far depois das sucessivas precises desse conceito extremamente geral de expresso,
atravs desses exemplos particulares, no fim do texto, ao afirmar que essa relao pode ser
recproca: Pode tambm acontecer que se exprimam mutuamente as coisas que provm da
mesma causa3. Essa afirmao poderia ser lida simplesmente como, por exemplo, todas as
mquinas, que provm do mesmo mdulo, exprimem-se mutuamente. Mas se ampliarmos a
noo de causa at o limite da causa universal do que existe, podemos dizer que no s as
mquinas se exprimem mutuamente, mas exprimem tambm o mdulo, a regra de sua
construo. E assim a expresso pode ser pensada no apenas na correspondncia da
expresso em relao ao exprimido, mas, reciprocamente, do exprimido a sua expresso o
que fica mais claro atravs dos exemplos que colocam em correspondncia no uma unidade
e uma multiplicidade, mas multiplicidades distintas (nmeros e caracteres, palavras e sons,
pontos de um slido e pontos no plano).
Embora Deleuze, ao opor uma certa pureza da categoria de expresso em Espinosa
extenso que essa categoria adquire em Leibniz, faa questo de frisar que Leibniz, ao
contrrio de Espinosa, trata explicitamente da compreenso e da extenso da categoria de
expresso4, a definio de exprimirque o filsofo nos d no Quid sit idea uma das nicas
que pode ser dita explcita. Como explica Rauzy5, essa parcimnia na exposio da idia
de expresso se funda na confiana de Leibniz em uma noo cuja significao, estabelecida
nesse opsculo, no devia variar. Precisando essa significao, depois dos exemplos, Leibniz
prossegue: pelo simples exame das relaes do que exprime podemos chegar ao
conhecimento das propriedades correspondentes da coisa a ser exprimida. V-se assim que
no necessrio que o que exprime seja semelhante coisa exprimida, contanto que seja
2Serres, M. Le systme de Leibniz et ses modeles mathmatiques. Paris: PUF, 1968 volume
I, pp.57-58.3PS, VII, p.264.4Deleuze, G. Spinoza et le problme de lexpression. Paris: Les ditions de Minuit, 1968
p.305.5
Rauzy, J.-B., in Leibniz Recherches gnrales sur lanalyse des notions et des vrits. Paris:Presses Universitaires de France, 1998 p.441.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
13/227
12
preservada uma certa analogia das relaes.6O que h de comum entre essas expresses (o
mdulo da mquina, a figura no plano, a orao, os caracteres etc.) essa analogia de
relaes. Essa analogia de relaes um elemento invarivel. Quando a correspondncia
entre a expresso e o exprimido plena h uma identidade, nada varia, a analogia total e,
em ltima instncia, deixa de ser analogia para se transformar em identidade. Essa analogia
pode ser pensada, ento, como um cadeia gradativa, do mximo de analogia (a identidade) ao
mnimo de analogia (a diferena). Eis por que Leibniz afirma que todo efeito integral
representa a causa plena: a identidade como um caso particular de analogia, o caso limite 7.
Neste caso, a fidelidade total, mas no preciso que haja identidade para haver expresso,
basta que se conserve alguma analogia, basta que se mantenha a correspondncia entre
expresso e exprimido por algum elemento invarivel. Definida em termos matemticos
como analogia, ou conservao de uma relao (habitus o termo usado por Leibniz para
relao, o mesmo termo que aparece nos Elementos de Euclides e em Descartes8), a
palavra expresso usada por Leibniz, no entanto, de uma maneira mais ampla, tambm em
sentido metafsico. Isso fica evidente pelos exemplos trazidos por Leibniz para ilustrar essa
definio: as aes de cada um representam sua alma e o prprio Mundo representa de
alguma maneira Deus9. Assim, mesmo que tenha uma origem matemtica, a noo de
expresso ganha uma amplitude metafsica, e ontolgica dir Lamarra10, desde o momento
em que foi definida.
Este comentador procura traar o percurso das reflexes leibnizianas acerca da teoria
da expresso que, diz ele, a partir doDiscurso de metafsicaaparecer como um dos temas
mais originais e profundos da filosofia de Leibniz. A relao de expresso, determinante na
ontologia leibniziana apresentada noDiscurso de metafsica, estava se delineando como tema
na filosofia de um jovem Leibniz. O horizonte problemtico em que a relao de expresso
vai tomando corpo o projeto da Caracterstica Universal e o reconhecimento da funo
paradigmtica das matemticas. A desconfiana de Leibniz em relao a um conhecimentointuitivo, sua apreciao do aspecto formal do raciocnio e da demonstrao explicam seu
6Quid sit idea, PS, VII, p.264.7Cf. Serres, M. Op. cit. volume I, p.59.8Cf. Rauzy, J.-B., in Leibniz Recherches gnrales sur lanalyse des notions et des vrits.
Ed. cit. p.480.9Quid sit idea, PS, VII, p.264.10
Lamarra, A. Sur lorigine de la theorie de lexpression dans la philosophie de Leibniz inRecherches sur le XVIIe sicle , nmero 5 p. 78-83.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
14/227
13
interesse pelo simbolismo. A Caracterstica seria um instrumento algortmico adequado a
uma nova lgica baseada em relaes e no mais no silogismo aristotlico. Segundo
Lamarra, a tentativa de Leibniz de estabelecer esse instrumento algortmico encontra
resposta, num primeiro momento, nas pesquisas, amplamente difundidas no sculo XVII,
sobre uma lngua universal. Para Lebniz, a possibilidade de formulao de uma linguagem ou
uma escritura filosfica est vinculada possibilidade de reduzir os pensamentos humanos a
elementos simples, a um alfabeto das noes humanas, o que coloca em primeiro plano a
questo da definio. O risco a ser evitado a reduo da verdade ao carter convencional da
linguagem. Eis por que Leibniz distingue as condies que so fundamento da verdade (isto
, a coerncia lgica do enunciado de uma verdade ou a no contradio das relaes
estabelecidas em uma definio entre os diferentes contedos ou idias) e as condies que
tornam possvel a expresso de uma verdade (ou seja, a estrutura algortmica deve refletir
aquelas relaes entre idias da maneira mais adequada).
Pensada inicialmente a partir das palavras, a funo simblica e cognitiva passa a
englobar todo tipo de simbolizao do pensamento, todo tipo de caractere. nesse contexto
que a matemtica adquire valor exemplar para Leibniz: uma vez que os smbolos se mostram
imprescindveis para o pensamento humano Leibniz afirma em um texto contemporneo ao
Quid sit idea que nunca poderei conhecer, descobrir, provar sem me servir de palavras ou
sem que outros smbolos estejam presentes em meu esprito, na ausncia de caracteres
nunca pensaramos em algo com distino, nem seramos capazes de raciocinar11 ,
preciso encontrar um sistema de smbolos que exprima adequadamente a verdade. Ora, como
mostra F. Leopoldo e Silva, o conhecimento simblico pode ser entendido de duas maneiras:
na matemtica, em que os smbolos empregados correspondem a idias claras que a mente
no focaliza momentaneamente (mas poderia faz-lo se quisesse); e nas verdades de fato, em
que as idias dos elementos s podem ser pensadas confusamente. Neste segundo caso,
corremos o risco de usar um smbolo em lugar de uma idia que cremos possuir, sem possu-la realmente, ou de supor que analisamos alguma vez a noo que o smbolo pretensamente
exprime, sem jamais termos feito isso. A flutuao semntica da linguagem natural no afeta
a matemtica: precisamente porque podemos estabelecer significados unvocos para os
smbolos matemticos que esta cincia verdadeiramente demonstrativa. A certeza
11
Dialogus, PS, VII p.191. (traduo argentina: Dilogo sobre la conexin entre las cosas ylas palavrasin Escritos Filosoficos. Ed. E. de Olaso, Buenos Aires: Editorial Charcas, 1982 p.175).
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
15/227
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
16/227
15
Seja forjado a partir da reflexo sobre a Caracterstica, seja a partir da leitura das
obras de Espinosa, o fato que o conceito de expresso em Leibniz parece ter uma origem
matemtica. Mas, desde o momento em que Leibniz o define explicitamente no Quid sit idea
e vale notar, isso se d na mesma poca em que lia a obra pstuma de Espinosa , o
conceito de expresso jamais estar restrito a seu sentido matemtico. Inclusive porque essa
definio da expresso, por mais geral que seja, se d atravs da definio de idia, a
atividade representativa da mente humana, apontando no apenas uma amplitude do
conceito, indicada tambm pelos exemplos do texto, mas tambm deixando aberto o caminho
para um ulterior e definitivo alargamento rumo doutrina da substncia e ontologia15.
Expresso e harmonia
Dissemos que a definio de expresso do opsculo Quid sit idea uma das nicas
definies explcitas do conceito. Quase uma dcada mais tarde, em seu debate com Arnauld,
Leibniz levado a definir mais uma vez esse conceito que, em linhas gerais, permanece o
mesmo, com a diferena de que, agora vinculado diretamente ontologia leibniziana, passa a
implicar a teoria da harmonia preestabelecida. Vejamos.
Na carta de 9 de outubro de 1687, Leibniz escreve: Uma coisa exprimeuma outra
(em minha linguagem) quando h uma relao constante e regrada entre o que se pode dizer
de uma e da outra. assim que uma projeo em perspectiva exprime seu geometral16.
Definio to geral quanto a do opsculo do fim da dcada de 70 e igualmente vinculada s
matemticas, como mostra o exemplo, mas alm da observao acerca da prpria linguagem
para sublinhar a diferena em relao ao mesmo conceito em Espinosa? , essa definio
difere da anterior na medida em que relaciona no mais as propriedades do que exprime e as
propriedades do exprimido, mas o que se pode dizer de uma coisa e o que se pode dizer
da outra. Dessa maneira, Leibniz descarta de vez a semelhana como critrio da relao de
expresso. J no texto de 1678 a semelhana, basicamente a semelhana visual ou a imagem,era afastada como critrio, mas ali esse movimento se dava depois de uma preciso do
conceito de expresso por meio de exemplos particulares e para unificar esses exemplos.
Agora, com o uso da expresso o que se pode dizer, Leibniz introduz no interior mesmo da
15Lamarra, A. Sur lorigine de la theorie de lexpression dans la philosophie de Leibniz in
Recherches sur le XVIIe sicle , nmero 5 p. 82.16
Leibniz Carta de 9 de outubro de 1687, in Correspondance entre Leibniz et Arnauld. Paris:Vrin, 1966 p.180-181.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
17/227
16
definio do conceito de expresso a separao entre relao expressiva e relao de
semelhana. Dessa maneira, o filsofo pode redefinir a idia de representao, eis por que
essa segunda definio da expresso seguida por um complemento: A expresso comum
a todas as formas, e um gnero do qual a percepo natural, o sentimento animal e o
conhecimento intelectual so as espcies17. Assim, na idia de expresso esto
compreendidos todos os graus de percepo aquilo que, mais tarde, no 14 da
Monadologia, Leibniz definir como o estado que envolve e representa a multiplicidade na
unidade ou substncia simples. Assim definida, a expresso envolve a teoria da harmonia
preestabelecida: todas as substncias simples simpatizam com todas as outras e cada
mudana nelas corresponde a uma mudana no universo. A unificao da multiplicidade
fsica se realiza atravs da expresso na unidade metafsica de substncias cuja natureza ser
uma expresso do universo. Forma, ento, pode ser pensada primeiramente com o sentido
bvio de forma substancial: a expresso comum a todas as formas, isto , a todas as
mnadas. Cada uma por essncia representao e todas se entreexprimem. Cada uma
exprime seu corpo, o universo e Deus. Cada uma exprime todas e todas exprimem cada uma,
h uma relao biunvoca entre a totalidade e a unidade. A expresso comuma todas as
formas, universal, no somente porque a totalidade est concentrada em cada indivduo
(percepo), mas sobretudo porque a expresso constitui a comunidade ou comunicao de
todas as substncias, uma relao universal e uma relao constitutiva do universo: o
mundo essa reunio de expresses. Mas forma pode tambm ser pensada, sugere Serres18,
como signo, caractere, marca. Embora no contexto da carta a Arnauld a palavra forma
parea ter necessariamente o sentido de forma substancial, a hiptese de Serres, que vincula
forma ao universo do discurso e do conhecimento prprio s criaturas racionais, pode ser
corroborada por um trecho daMonadologiaem que Leibniz afirma experimentamos em ns
mesmos um Estado no qual no nos lembramos de nada, nem temos nenhuma percepo
distinta, como quando sofremos um desmaio ou somos vencidos por um profundo sono semsonhos. Neste estado a alma no difere sensivelmente de uma simples Mnada19. Em outras
palavras, ns, criaturas racionais, capazes de conhecimento intelectual, experimentamos no
17Leibniz Carta de 9 de outubro de 1687, in Correspondance entre Leibniz et Arnauld. Ed.
cit. p.181.18Serres, M. Op. cit. volume I, p.147.19
Leibniz Monadologia, 20.In Discurso de metafsica e outros textos. So Paulo: MartinsFontes, 2004 p.134.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
18/227
17
somente o sentimento animal, mas inclusive a percepo natural das mnadas brutas. Assim,
forma pode ser entendida tambm desse ponto de vista, da perspectiva do conhecimento. A
mnada percebe universalmente e exprime passivamente o universo por essa
multiplicidade interna de sua essncia; mas por um esforo ativo, a mnada novamente
expresso desse universo quando passa das percepes inapercebidas apercepo.
Representar tornar presente o que inato ou escrito. Perceber, diz Serres, ter sofrido uma
impresso (seja impresso de impressionado, seja impresso de impresso). A atividade do
percipiente reconhecer nessa impresso a expresso, desenvolver o envolvido, perceber
que essa impresso expresso do universo, de Deus. Para compreender como a
multiplicidade exprimida por uma unidade, temos ento que pensar tambm como a
multiplicidade exprimida por outra multiplicidade: como, no universo dos caracteres, das
marcas, os sons exprimem os signos e vice versa, como uma lngua exprime outra lngua, e
vice versa, como uma multiplicidade de caracteres exprime uma multiplicidade de outros
caracteres. Cada conjunto tem uma conexo prpria interior, essa conexo que permanece
na relao de expresso. As conexes so congruentes, embora as multiplicidades sejam de
natureza diferente, sejam essencialmente separadas.
Arnauld quem primeiro coloca a questo da expresso em termos de percepo
quando insiste na dvida acerca do que Leibniz entende por esse termo: se o que vs
chamais expresso no nem pensamento nem conhecimento, no sei o que 20. Mas na
origem dessa perspectiva introduzida pela dvida est o problema da relao entre a alma e o
corpo. Com efeito, Leibniz introduz a palavra na correspondncia com Arnauld a fim de
explicar a hiptese da concomitncia e se afastar tanto da hiptese de uma causalidade real
entre alma e corpo, quanto da hiptese das causas ocasionais. Quando meu brao ferido, a
dor que sinto na alma no nem causada pelo corpo, nem por Deus que age imediatamente
sobre minha alma provocando esse sentimento. Ento, como a alma sabe dessa m disposio
do corpo? Respondo que no por nenhuma impresso ou ao dos corpos sobre a alma,mas porque a natureza de toda substncia envolve uma expresso geral de todo o universo, e
porque a natureza da alma envolve mais particularmente uma expresso mais distinta do
que acontece agora com seu corpo21. O corpo se move de acordo com suas prprias leis,
20Arnauld Carta de 9 de outubro de 1687, in Correspondance entre Leibniz et Arnauld. Ed.
cit. p.172.21
Leibniz Carta de 28 nov./8 dez. 1686 in Correspondance entre Leibniz et Arnauld. Ed. cit. p.144.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
19/227
18
mas por um acordo admirvel estabelecido por Deus de uma vez por todas na criao, as
aes e sentimentos da alma correspondem ao que acontece com o corpo e vice versa.
Leibniz fala de expresso aqui no seio de sua ontologia e tem total clareza disso Tudo isso
so as conseqncias da noo de uma substncia individual que envolve todos os seus
fenmenos22, diz ele.
A condio para que haja essa relao de expresso entre a alma e o corpo, ou entre
quaisquer outros dois termos, consiste na existncia de uma regularidade, uma lei de
correspondncia entre duas sries (mais que termos individuais). A relao de expresso,
como ficava claro j no Quid sit idea, no exige que os termos em relao sejam individuais,
a expresso pode se estabelecer tanto entre substncias como entre agregados (o modelo
exprime a mquina) e, inclusive, entre termos puramente ideais (a equa o algbrica exprime
o crculo). O que importa em toda relao de expresso, dizia Leibniz no texto de 1678, que
pela contemplao das relaes que constituem o que exprime possamos chegar ao
conhecimento das relaes anlogas do exprimido e, para isso, preciso que haja uma
relao constante e regrada entre os dois termos ou sries. Para a expresso de uma coisa
em uma outra, afirma Leibniz em outro texto, basta que exista uma lei constante de
relaes pelas quais os elementos singulares da primeira possam ser relacionados aos
elementos singulares que correspondem a eles na segunda23. Assim, explica Leibniz a
Arnauld, o estado de um corpo no momento B (em que sofre uma picada) segue de seu
estado no momento A; e o estado da alma no momento B (em que sente dor) segue do estado
da alma no momento A, segundo a noo de substncia: um movimento segue
necessariamente de outro movimento, e uma representao, de outra representao. As duas
sries no tm qualquer ponto em comum, so multiplicidades 24 de natureza distinta e
interiormente organizadas de maneira independente uma da outra, mas h uma relao
analgica que pe em conexo a lei de uma srie e a lei da outra. No h relao causal entre
a alma e o corpo, mas como os estados da alma so naturalmente expresses dos estadocorrespondentes do mundo e particularmente de seu corpo, a representao ou expresso da
picada, ou seja, a dor, faz parte da alma no momento B, embora a causa dessa representao
seja outra representao. Um elemento singular da alma, a dor, corresponde a um elemento
22Idem ibidem.23Leibniz [Sur le principe de raison] in Opuscules et fragments indits de Lebniz (edit par
L. Couturat), Paris: 1903 p.15.24Cf. Serres, M. Op. cit. volume I, p.150.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
20/227
19
singular do corpo, a picada. H uma lei que regula a relao de momento a momento
estabelecendo a correspondncia entre as sries. Essa lei a harmonia preestabelecida.
Mas por que a dor exprime a picada? O que significa dizer que a dor uma expresso
da picada? Antes de nos debruarmos sobre o tema da harmonia vale a pena pensar o que
essa analogia de relaes que dispensa uma semelhana em sentido estrito e permite a
existncia de expresses sem fundamento na natureza, parcialmente arbitrrias como aquelas
que se do por sons e caracteres. De fato, Leibniz distingue as expresses em parte arbitrrias
das expresses fundadas na natureza; mas mesmo entre as expresses que tm um
fundamento natural no se exige a similitude entre a expresso e o exprimido, j que, alm
daquelas em que aparece essa similitude um crculo grande e um pequeno ou uma regio e
seu mapa , h tambm as expresses em que se conserva no uma semelhana, mas uma
conexo como entre o crculo e a elipse, na medida em que todo ponto da elipse
corresponde segundo uma lei determinada a um ponto do crculo25. Leibniz no afirma que
existam expresses inteiramente arbitrrias, jamais poderia ser considerado um
convencionalista estrito; mas no por isso restringe a expresso relao de similitude, basta
que haja uma conexo entre os elementos singulares de dois termos ou duas sries (os pontos
do crculo e os da elipse ou os momentos da alma e do corpo), uma lei que regule a relao
entre as sries, no caso das substncias a harmonia. Ora, a pergunta que abriu esse pargrafo
poderia ser refeita neste ponto: a conexo (ou a lei da harmonia) entre os estados da alma e os
estados do corpo estabelece a expresso da picada pela dor, mas por que a dor exprime a
picada? A dor conserva algo da picada para ser uma expresso dela? O que faz dessa
expresso natural uma expresso menos arbitrria do que a expresso das idias por
palavras?
A pista para responder a essas questes dada por Lebrun26. Segundo este autor,
Leibniz no exclui a semelhana como critrio da expresso, ele opera uma revoluo na
noo de semelhana. O paradigma cartesiano da semelhana dado pela viso, o que levaDescartes, mas tambm os empiristas, a restringir a semelhana imitao, equivalncia
entre uma cpia e seu modelo, de modo que quando no satisfeita a exigncia da
semelhana, quando uma coisa no efgie de outra, ela s pode traduzir a outra um
quadrado visvel apenas traduz o quadrado tangvel. Leibniz diferentemente encontrar na
25Quid sit idea, PS, VII, p.264.26
Lebrun, G. A noo de semelhana de Descartes a Leibniz in Dascal, M. (org.) Conhecimento, linguagem, ideologia. So Paulo: Perspectiva, 1989 p.41-61.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
21/227
20
audio um modelo mais pertinente para pensar a equivalncia entre coisas diferentes na
audio uma fonte sonora a mesma por mais tempo e distncia, pelos ecos e ressonncias,
enquanto a viso indica o mesmo apenas enquanto uma forma for reconhecvel. O filsofo
procura a afinidade ou a similitude atravs das maiores dessemelhanas intuitivas, O
critrio da similitude,afirma Lebrun, , pois, deslocado: no mais reside na fidelidade a
um original, mas no retorno a um invariante27. O que isso significa? Enquanto no modelo
cpia-original este domina aquela, o invariante aparece no encadeamento das variaes, o
invariante justamente a ampla correspondncia entre duas sries que o paradigma visual
no deixa ver: no preciso que a dor seja semelhante picada, ou melhor, a semelhana
entre a dor e a picada no uma semelhana no sentido de imitao. O invariante est na
correspondncia entre multiplicidades distintas, dotadas de leis distintas e constantes como a
prpria correspondncia. A similitude assim pensada por Leibniz neutraliza diferenas
imaginativas. No suprime nem abole a diferena, mas mostra como sries imaginativamente
diferentes esto em ressonncia. E suprime, isto sim, diz Lebrun, a independncia das sries
diferentes, de modo que a correspondncia entre os estados da alma e os do corpo no
aparecem como uma coincidncia a ser explicada. Mas preciso esclarecer: as sries no so
independentes porque esto em correspondncia, mas em outro sentido, se considerarmos
que so diferentes, dotadas de leis diferentes que organizam como um invarivel em outro
nvel as variaes de cada srie, podemos dizer que so independentes sim, no sentido de que
o que se passa no interior de cada srie respeita a lei interna srie. Se a similitude pensada
por Leibniz nesses termos, ou seja, como a conservao de uma lei de correspondncias,
como o retorno dos variantes a um invarivel, ou, numa palavra, como a harmonia, ento no
faz sentido perguntar pelo modo de presentificao de uma coisa na outra. Uma vez que a
expresso no implica trajeto, nem mesmo metafrico, no cabe a pergunta: como a dor
exprime a picada, como a existncia da picada pode ser lida na existncia da dor? So
perguntas suprfluas quando se pensa em termos de expresso e no mais de uma similitudeestrita entre um original e sua cpia Lebrun chega mesmo a sugerir que, na expresso
leibniziana, no se saberia quem imita quem (para responder a um ouvinte ingnuo que
quisesse saber como se pode sincronizar sries distintas ou as orquestras que tocam
separadamente ao mesmo tempo a mesma partitura28). Sugesto que, alis, coincide em certo
27Lebrun, G. A noo de semelhana de Descartes a Leibniz. Ed. cit. p.49.28
Leibniz Carta de 30 de abril de 1687, in Correspondance entre Leibniz et Arnauld. Ed. cit. p.163.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
22/227
21
sentido com a definio de expresso dada pela matemtica do sculo XVII, a saber, a
correspondncia biunvoca entre elementos pertencentes a conjuntos distintos ou um
isomorfismo de relaes. O que ter importncia crucial para entender o lugar que Leibniz
reserva simbolizao, como veremos mais adiante, e d sentido ao adgio leibniziano
tudo como aqui em toda parte e sempre.
Quando Leibniz escreve que as coisas mais afastadas e mais escondidas se explicam
perfeitamente pela analogia com o que est visvel e perto de ns (...). tudo como aqui em
toda parte e sempre29, quando afirma to universalmente a existncia da analogia, est
afirmando tambm a harmonia, essa lei que estabelece a relao entre os diferentes, esse
invarivel que faz a correspondncia e por que no? a semelhana dos variveis. Ora, a
harmonia no somente uma harmonia preestabelecida entra alma e o corpo, mas uma
harmonia universal. Como o gesto e a linguagem, que, provindo da mesma causa, se
exprimem mutuamente, todas as substncias devem ter uma harmonia e uma relao entre
si, e todas devem exprimir o mesmo universo e a causa universal que a vontade de seu
criador30. Assim h uma correspondncia mtua entre as substncias, todas simpatizam com
as demais, todas exprimem as demais.
A harmonia definida por Leibniz, como mostra Belaval31, como a unidade (ou
simplicidade, similitude, identidade, acordo) na variedade (ou multiplicidade, vrios,
diversidade). Definio que simetricamente oposta definio de percepo (a
multiplicidade na unidade), mas enquanto a percepo concerne a uma parte (mesmo que
parte total), a harmonia existe em um todo. A harmonia uma variedade bem ordenada. a
maneira de existir do mundo, o resultado da ao de um Deus sbio: como na matemtica,
Deus ordena as sries da alma e do corpo, das substncias individuais de modo que elas
se desenvolvem harmonicamente em contraponto, a srie de fenmenos da alma corresponde
ao que se passa em seu corpo, que, por sua vez, exprime o que acontece no universo inteiro.
A alma percebe o todo do mundo, mas confusamente, atravs de seu corpo, por isso, percebe
29Leibniz Considrations, 1705, citado por Grua Jurisprudence universelle et thodice
selon Leibniz. Ed.cit. p.64.30Leibniz Carta de 9 de outubro de 1687, in Correspondance entre Leibniz et Arnauld. Ed.
cit. p.183.31Belaval, Y. Lharmonie in tudes leibniziennes. Paris: Gallimard, 1976 p.86-105.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
23/227
22
com mais distino aquilo que lhe est prximo alis, diz Leibniz32, a noo que temos de
tempo e espao est fundada nessa correspondncia do esprito com as demais substncias.
A harmonia, como a causalidade entre as substncias, ideal. As substncias se
entreexprimem porque tm todas a mesma causa, que exprimem segundo seu ponto de vista e
capacidade. O acomodamento de cada substncia a todas as demais estabelecido por Deus
antes da criao, nas idias de seu entendimento: as idias, ou noes completas, no
existem isoladas, elas tm relaes entre si, que as distinguem e as unem s demais. Alis,
poderamos dizer que o que constitui essas noes individuais so as prprias relaes e,
nesse sentido, o mundo, que s existe atravs de suas expresses, as substncias individuais,
na medida em que a expresso comum de todas as substncias, anterior s noes como
pr-requisido de constituio delas33(embora naturalmente no seja anterior de fato, porque
no existe fora de suas expresses). As noes e suas relaes existem no entendimento
divino; ao serem criadas, as noes do lugar a indivduos e as relaes entre as noes
permanecem no entendimento divino, no so exteriorizadas seno como harmonia ou
entreexpresso, que pois puramente ideal. como se cada substncia agisse sobre as
demais, mas essa ao ideal, cada substncia exprime todas as demais. Assim, a harmonia
entre as substncias criadas dada por Deus, Ele personifica a harmonia. A harmonia
universal a expresso da harmonia da causa universal.
A harmonia a unidade na variedade, mas, afirma Belaval34, essa definio varia
conforme a variao do conceito de unidade. Seja pensada como a simplicidade da substncia
(a simplicidade como lei da srie da substncia ou fonte da variedade), como o um de um
todo, como a unicidade do conjunto optimumdo universo, como a relao ou a ordem que
unifica os termos, como a permanncia da ao que define um ser, como o ponto de vista que
determina uma srie etc., a unidade exigida para se pensar a harmonia, e,
conseqentemente, se a expresso no exige a individualidade, ela exige a unidade.
justamente partindo dessa relao entre um e mltiplo que Deleuze far a crtica teorialeibniziana de expresso.
32Leibniz Carta de 9 de outubro de 1687, in Correspondance entre Leibniz et Arnauld. Ed.
cit. p.184.33
Cf. Deleuze, G. Diferena e repetio. Buenos Aires: Amorrortu editores, 2002 p.89.34Belaval, Y. Lharmonie in tudes leibniziennes. Ed. cit. p.95.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
24/227
23
Uma filosofia expressiva
Deleuze se debrua pioneiramente sobre a noo de expresso na filosofia de
Espinosa explorando uma perspectiva inaudita e negligenciada pela histria da filosofia,
como ele mesmo afirma. Procura mostrar, por um lado, a histria do conceito, isto , como a
expresso, de um ponto de vista ontolgico, se insinua no interior de duas tradies
teolgicas, da emanao e da criao, para finalmente neg-las de maneira definitiva com
Espinosa; e como a expresso, de um ponto de vista lgico, nasce ao abrigo da lgica
aristotlica para contest-la e revolucion-la. E, por outro lado, reconstri o movimento da
expresso no interior da filosofia espinosana como uma categoria que, portadora de um vis
teolgico, um vis ontolgico e um vis gnosiolgico, permite a Espinosa ultrapassar as
dificuldades do cartesianismo, integrando, no entanto, as aquisies de Descartes em um
sistema que seu herdeiro direto, mas que o contesta profundamente. Nessa reao
anticartesiana Espinosa e Leibniz esto irmanados: Na medida em que se pode falar de um
anticartesianismo de Leibniz e de Espinosa, esse anticartesianismo se funda na idia de
expresso.35
Para pensar essa superao de Descartes empreendida por Espinosa, mas tambm por
Leibniz, Deleuze considera que a noo de expresso uma trada. Todo conceito, diz ele,
possui um aparelho metafrico: o aparelho metafrico do conceito de expresso o
espelho e o germe. Ora, mas o espelho absorve tanto o ser que se reflete nele, como o ser que
olha a imagem; e o germe, por sua vez, absorve a rvore de que provm e a rvore a que d
origem. Essa existncia no espelho, ou essa existncia implicada e envolvida pelo germe o
exprimido. Na expresso h, pois, o que se exprime, a expresso, mas tambm o exprimido.
Munidos com esse instrumento que a expresso, redescoberta, por um, a partir da
tradio judaica e, por outro, da tradio crist, Espinosa e Leibniz, quase em unssono,
fazem a crtica da filosofia cartesiana como uma filosofia que, porque muito fcil ou muito
rpida, deixa escapar a razo suficiente e se fia unicamente no relativo. isso que acontecequando o filsofo fala de Deus (a prova ontolgica feita a partir da qualidade de
infinitamente perfeito, que relativa e no d a natureza de Deus), quando fala das idias
(o critrio de clareza e distino no ensina nada acerca da natureza e da possibilidade da
coisa da idia, nem do pensamento), e, finalmente, quando fala dos indivduos e de suas
aes (pensado como um composto real de duas substncias heterogneas, o indivduo
cartesiano deixa muitas coisas como incompreensveis). A expresso permite ultrapassar o
35Deleuze, G. Spinoza et le problme de lexpression. Ed. cit. p.13.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
25/227
24
infinitamente perfeito e chegar ao absolutamente infinito como natureza de Deus; possibilita
pensar o verdadeiro conhecimento como uma espcie de expresso, ou seja, a idia dotada
de um contedo imanente e no representativo e a forma da conscincia psicolgica
substituda por um formalismo lgico, e o autmato espiritual d a identidade dessa forma e
desse contedo; e, finalmente, a expresso garante a superao da incompreensibilidade da
relao entre alma e corpo: h, no indivduo, correspondncias no causais que tornam intil
a causalidade real, de maneira que h um invariante, que d a quase identidade entre os dois,
mas eles permanecem heterogneos, duas sries variveis, uma espiritual e outra corprea.
At aqui, Espinosa e Leibniz esto de pleno acordo, segundo Deleuze. Ambos
desenvolvem sua crtica e superao de Descartes a partir da expresso. Mas se o conceito de
expresso aproxima essas duas filosofias, ele tambm aquilo que determina suas diferenas
mais profundas. Para Deleuze, a expresso em Leibniz funda em todos os domnios uma
relao entre o Um e o Mltiplo em que o primeiro aparece como superior ao segundo, seja
porque possui uma identidade reproduzida pelo segundo, seja porque envolve a lei que o
outro desenvolve. Deleuze no aceitaria, ento, que na expresso leibniziana exista aquela
igualdade entre os termos que a analogia matemtica parece sugerir, como indicamos mais
acima; nem que para pensar a relao entre o Um e o Mltiplo, preciso pensar tambm a
relao entre multiplicidades. Se h uma relao hierrquica entre Um e Mltiplo, uma
certa zona obscura ou confusa sempre introduzida na expresso: o termo superior, em
razo de sua unidade, exprime mais distintamente o que o outro exprime menos
distintamente em sua multiplicidade.36 Mais que isso, afirma Deleuze, como o segundo
termo exprimido no primeiro, a expresso distinta deste cercada por obscuridade, eis por
que se cada mnada exprime o todo, o faz confusamente, e tem uma expresso distinta
apenas parcial. O que vale para o mundo, vale tambm para os pensamentos, aponta Deleuze,
nossa alma s reflete sobre os fenmenos que se distinguem dos outros, embora seu
pensamento se estenda a tudo confusamente. Por isso no temos idias adequadas. E,prossegue Deleuze, isso vale inclusive para Deus: em alguma regio de seu entendimento o
Um se combina ao zero para que haja criao, os diferentes mundos possveis so um fundo
obscuro a partir do qual Deus escolhe o melhor. E o filsofo conclui Tudo isso forma uma
filosofia simblica da expresso, na qual a expresso no jamais separada dos signos e
de suas variaes, nem das zonas obscuras na qual mergulha37.
36
Deleuze, G. Spinoza et le problme de lexpression. Ed. cit. p.305.37Deleuze, G. Spinoza et le problme de lexpression. Ed. cit. p.307.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
26/227
25
O pressuposto de que Deleuze parte nessa crtica a tese de que Espinosa possui uma
autntica filosofia expressiva, e Leibniz, para salvar a riqueza do conceito de expresso e
ao mesmo tempo conjurar o perigo de pantesmo38encontra uma nova frmula para esse
conceito que, ento, passa a abarcar inclusive os signos. Mas Uma tal filosofia simblica
necessariamente uma filosofia de expresses equvocas39, enquanto para Espinosa o
essencial separar o domnio dos signos do domnio das expresses cuja regra a
univocidade.
Ora, se aceitamos essa tese, devemos considerar que toda a filosofia leibniziana
representa um recuo em relao ousadia da filosofia espinosana que, esta sim, levou o
conceito de expresso a seu limite, chegando imanncia que este conceito necessariamente
implicava. Leibniz repe no uma, mas as duas tradies teolgicas nas quais a expresso se
imiscuiu e que Espinosa teve a coragem de negar: a criao e a emanao, que se
transformam em dimenses ou espcies da expresso a criao seria a constituio de
unidades expressivas anlogas e a emanao, o desenvolvimento das multiplicidades
exprimidas em cada tipo de unidade na srie derivada40.
inegvel que na filosofia de Leibniz o ideal de racionalismo integral esbarra na
finitude humana, criando um abismo entre a determinao racional completa (do mundo, dos
indivduos e de Deus mesmo), para Deus, e a indeterminao trazida pelo contingente, para o
homem. Da o esforo do filsofo para, diante da impossibilidade de um conhecimento
humano enciclopdico, criar paliativos como a Caracterstica Universal, que teria lugar de
um conhecimento adequado, embora seja a expresso simblica de verdades. Essa uma
leitura. Poderamos at dizer que, uma vez que a impossibilidade de determinao completa
do real uma impossibilidade de fato, no de direito, no h nada que enfraquea aquele
racionalismo integral. Afinal, ao homem que vedado o conhecimento dos dois extremos
da tipologia das verdades: como mostra F. Leopoldo e Silva41, o homem no pode conhecer o
indivduo singular porque, para isso, precisaria ter uma viso analtica de todos os elementose conexes existentes na realidade e de que dependem a determinao necessria do
indivduo e sua insero na totalidade; tampouco capaz de conhecer as leis universalssimas
que do a razo de ser do mundo, pois para isso precisaria ter uma viso da estrutura analtica
38Idem ibidem.39Idem ibidem.40
Cf. Deleuze, G. Spinoza et le problme de lexpression. Ed. cit. p.307.41Cf. Leopoldo e Silva, F. Universalidade e simbolizao em Leibniz, indito p.5.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
27/227
26
da realidade. Mas se o homem no pode conhecer nem a singularidade do particular, nem o
universal, nada se furta oniscincia divina, e o racionalismo integral da realidade
permanece intacto. Todavia Deleuze parece sugerir mais que isso, as zonas obscuras dos
signos e de suas variaes no se restringem limitao humana, a obscuridade invade
inclusive o Deus leibniziano, no qual o Um se combina ao zero para dar lugar criao, e a
infinidade de mundos possveis so um fundo obscuro a partir do qual Deus cria o melhor.
inegvel tambm que Leibniz quer evitar o pantesmo. Talvez por isso no leve o
conceito de expresso at a imanncia que ele implica, recriando esse conceito de maneira a
compatibiliz-lo com a transcendncia divina, fazendo da criao e da emanao dimenses
da expresso. No poderamos fazer a reconstruo histrica desse conceito como fez
Deleuze no temos essa pretenso, e alis seria pouco inteligente no nos guiar pelo
trabalho cuidadoso j feito por esse filsofo. Porm, no podemos deixar de notar o risco
dessa leitura: se na histria do conceito de expresso, ele encontra seu desenvolvimento
pleno na filosofia de Espinosa, ento, para exagerar nas palavras, a verdade de uma filosofia
que recua diante da fora da afirmao espinosana a filosofia de Espinosa. A verdade de
Leibniz Espinosa. No isso que Deleuze afirma, nos parece que este filsofo considera
que Leibniz realmente recria o conceito de expresso mas o faz em oposio a Espinosa.
No poderamos inverter a perspectiva? Seria destituir Leibniz de seu lugar de
origem, que a filosofia moderna, considerar a presena da obscuridade, desse fundo
obscuro em que, nas palavras de Deleuze, mergulha a filosofia leibniziana, como a riqueza da
expresso leibniziana? Seria trair o ideal leibniziano de racionalismo integral considerar a
expresso tal como o filsofo alemo a define como a ressonncia harmnica que mantm
a analogia entre realidades heterogneas precisamente o que faz a verdade dessa filosofia?
Em outras palavras, a indeterminao constitutiva das coisas na filosofia de Leibniz, a
impossibilidade de uma adequao completa (pelo menos para o conhecimento humano) tal
como pensada por Espinosa, que em uma perspectiva pode ser entendida como um fracasso(assim como fracassada a empresa de criao de uma lngua universal), no pode ser
pensada, de um outro ponto de vista, como elemento necessrio dessa filosofia ou como o
que a define positivamente e no por oposio a algum outro sistema filosfico?
*
Lebniz sempre desconfiou do conhecimento intuitivo. Se jamais negou
definitivamente a possibilidade de um conhecimento adequado, no acreditava que esse
conhecimento poderia se dar por intuio. Conhecemos, raciocinamos, descobrimos,provamos por smbolos, em suma, o pensamento opera com smbolos. No pensamos
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
28/227
27
expressamente, ou explicitamente, em todas as marcas que caracterizam uma noo. Nem
poderamos. Cada pensamento envolve o infinito, as idias simples so simples apenas em
aparncia, so acompanhadas de circunstncias que tm ligao com elas, ainda que essa
ligao no seja entendida por ns, e essas circunstncias oferecem alguma coisa explicvel
e suscetvel de anlise42. Uma idia verdadeiramente adequada pressupe a multiplicidade
infinita de substncias e a intuio da totalidade desse mltiplo que se exprime em toda idia.
Talvez por isso, sem jamais abandonar a idia de uma Caracterstica universal, Leibniz
abandona o projeto de um alfabeto dos pensamentos humanos acreditando que os nomes
primitivos, a partir dos quais se daria a combinatria para a expresso e a descoberta de
verdades, podem ser postulados para a comodidade do clculo, sem que sejam pensados
como termos ltimos, atmicos No existe tomo (...). Segue da que em cada partcula do
universo est contido um mundo de infinitas criaturas (...). No h nenhuma figura
determinada nas coisas, porque nenhuma figura pode satisfazer s infinitas impresses43.
Por outro lado, a Caracterstica universal, como instrumento de comunicao
universal que remete preocupao de Leibniz com a questo irnica , no jamais
pensada como uma lngua universal isenta de ambigidade ou uma lngua filosfica que
elimine a confusio linguarum da linguagem natural celebrada como um fato positivo por
quem ficara sempre fascinado pela riqueza e pluralidade das lnguas naturais, a cujas
geraes e filiaes dedicara tantas pesquisas44, como mostra Umberto Eco. Admitindo a
impossibilidade de fato de descoberta da lngua admica e o absurdo da hiptese de voltar a
pratic-la, Leibniz pensa a Caracterstica como a criao de uma linguagem cientfica, um
instrumento de descoberta da verdade, no como um substituto formal, artificial, da primitiva
lngua dos homens.
preciso levar em conta duas coisas em relao Caracterstica universal. Em
primeiro lugar, o que fundamenta a idia de uma linguagem cientfica como essa so os j
citados pensamentos cegos, isto , pensamentos que manipulam smbolos sem que se faanecessrio evocar as idias que lhes correspondem, anulando a necessidade de uma anlise
exaustiva das idias que tornaria a descoberta de verdades praticamente invivel ou bastante
42Leibniz Nouveaux essais sur lentendement humain, III, iv, 16. Paris, Flammarion, 1990
pp.232-233.43Leibniz Opuscules et fragments indits(ed. par L. Couturat). Paris: Alcan, 1903 pp. 518-
23 (citado por Eco, U. A busca da lngua perfeita. Bauru: Edusc, 2001 p.334.)44Eco, U. A busca da lngua perfeita. Ed. cit. p.327.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
29/227
28
demorada. Assim, a Caracterstica retira sua fora da formado clculo, que tem um de seus
modelos na lgebra, e no no significado dos termos, a sintaxe dessa linguagem mais
importante que a semntica. A Caracterstica permitiria a realizao de um clculo com rigor
quantitativo, embora com a utilizao de noes qualitativas: como na lgebra e na
aritmtica, em que qualquer raciocnio consiste no uso de caracteres [isto , sinais escritos,
ou desenhados], e todo erro mental um erro de clculo , a Caracterstica, diz Leibniz, seria
o um clculo feito a partir de caracteres que substituem pensamentos primitivos e com os
quais seria possvel formar caracteres de noes derivadas, das quais, inversamente,
possvel deduzir os requisitos, ou seja definies e valores, e as modificaes derivveis das
definies. Uma vez feito isso, conclui o filsofo, quem ao raciocinar e ao escrever se
servisse dos caracteres assim descritos, ou jamais cometeria erros, ou os reconheceria
sempre por si mesmo, sejam seus ou dos outros, por meio de exames faclimos.45
Suponhamos que Leibniz no tivesse decidido abandonar a construo de um alfabeto dos
pensamentos humanos e que a Caracterstica embora a criao dessa linguagem no
dependa necessariamente desse alfabeto fosse, ento, produzida a partir de smbolos que
exprimissem pensamentos primitivos que esto na origem de qualquer outro pensamento.
Ainda assim, no haveria uma adequao absoluta de um conhecimento intuitivo. Existiria
sim uma certeza matemtica no raciocnio, mas nem por isso o pensamento seria transparente
para si mesmo. Se o imenso edifcio filosfico lingstico de Leibniz, para usar a expresso
de Umberto Eco, erguido sobre o fundamento dos pensamentos cegos, Leibniz jamais
pretendeu que o conhecimento humano alcanasse a clareza da intuio cartesiana ou
espinosana. Jamais pensou que fosse humanamente possvel esclarecer a obscuridade,
iluminar com clareza meridiana o fundo obscuro subjacente em cada pensamento distinto.
Por melhor elaborados que fossem os caracteres dessa linguagem universal, so ainda e
sempre caracteres, smbolos, expressivos, mas smbolos.
Todavia, e em segundo lugar, como mostra Lebrun, quando Leibniz pensa umahomogeneidade de direito entre os sentidos e o entendimento pelo que criticado por no
preservar a diferena de natureza do sensvel em relao ao inteligvel, relegando aquele
funo de deformar as representaes do entendimento porquenenhum signo, no limite,
signo de instituio; ou melhor, porque desaparece a fronteira entre signos naturais e
signos de instituio, substitutos que mostram e substitutos que dissimulam a razo de sua
45Leibniz citado por Eco, U. A busca da lngua perfeita. Ed. cit. p. 338.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
30/227
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
31/227
30
para no ter seno xcaras de ouro, ter botes somente de diamante, comer apenas perdiz,
beber somente vinho da Hungria ou de Shiras; isso poderia ser chamado de razo?48
A filosofia expressiva de Leibniz, porque inclui na concepo de expresso a analogia
e a harmonia, uma filosofia simblica e Deleuze tem toda razo em afirmar isso: enquanto
para Espinosa o essencial separar o domnio das expresses, cuja regra deve ser a
univocidade, do domnio dos signos, Leibniz jamais separa a expresso dos signos e das
variaes que eles trazem em cada expresso, o distinto e o confuso variam. Mas o smbolo
para Leibniz no mistificador, como para Espinosa por isso ele pode pensar em criar uma
Caracterstica universal como linguagem cientfica que favorea a descoberta de verdades. E
o obscuro precisamente o que faz a riqueza de um universo em que cada ponto de vista
como um mundo inteiro, e o mundo multiplicado por cada uma das vrias perspectivas
individuais, por cada expresso singular do todo.
48Leibniz Teodicia , II, 124. Paris: Flammarion, 1969 p.181.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
32/227
CAPTULO I
A MATEMTICA DA EXPRESSO
A relao entre a matemtica e a metafsica: modelo
A origem da teoria da expresso poderia serprocurada em toda parte, na filosofia
anterior a Kant. Leibniz no o primeiro a afirmar que o esprito o espelho do real.
Deleuze, como j dissemos, mostra que a teoria da expresso tem como aparelho metafrico,
de um lado, a noo de germe, de outro, a de espelho. a partir dessas metforas que este
filsofo poder interpretar a expresso como uma trada: a existncia no espelho (que
absorve tanto o ser refletido como o ser que olha a imagem) ou a existncia envolvida no
germe (que absorve a rvore de que provm e a rvore a que d origem) o exprimido. H,
segundo o Deleuze, aquilo que se exprime, sua expresso e, embora sem uma existncia
independente da expresso mas distinta dela, o exprimido. O que nos importa aqui menos
questionar essa interpretao tridica da noo de expresso que considerar, supondo a
reconstruo histrica do conceito de expresso empreendida por Deleuze, como Leibniz est
intimamente ligado a uma tradio que fez amplo uso dessas metforas. O que constitui,
ento, a originalidade do conceito em Leibniz? A hiptese de Belaval1 que, ao pensar a
expresso como uma relao regrada e constante entre a expresso e o exprimido, garantindo
uma exatido, Leibniz estabeleceu uma explicao matemtica da expresso, ou, mais que
isso, um pensamento matemtico da expresso. Isso significa que a filosofia leibniziana seja
um matematismo? No nos precipitemos, toda afirmao categrica acerca de um dos muitos
aspectos dessa filosofia corre o risco de desprezar outras perspectivas igualmente
importantes.
A maior parte dos que se comprazem no estudo da matemtica sentem averso pelo
estudo da metafsica, j que naquela encontram luz e nesta, trevas2: este o diagnstico de
Leibniz em um texto de 1694, A reforma da filosofia primeira e a noo de substncia. E,como indica o ttulo do texto, como reformador da filosofia primeira que Leibniz pretende
esclarecer noes que se tornaram ambguas e obscuras por negligncia dos homens,
1Cf. Belaval, Y. Leibniz critique de Descartes. Paris: Gallimard, 1960 p.148, nota 3.2Leibniz A reforma da filosofia primeira e a noo de substncia in Die philosophischen
Schriften. Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, Halle: 1949-63; reimpresso Hildesheim, 1962
(doravante citado como PS) IV, p.468. (Traduo de Olaso, E. in Leibniz -Escritos Filosficos.Buenos Aires: Editorial Charcas, 1982 p.455).
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
33/227
32
substituindo definies pueris por definies claras, e regras vulgares por axiomas
realmente universais: para estabelecer as proposies metafsicas necessrio um certo
mtodo particular, qual fio de Ariadne, com cuja ajuda, e no menos certeza que com o
mtodo de Euclides, se resolvam os problemas como se resolvem os problemas do clculo,
sem sacrificar a clareza por fazer concesses s formas correntes da linguagem3. No se
trata, pois, de fazer uma simples transposio da matemtica ou da linguagem matemtica
para a metafsica. As formas correntes da linguagem mantm seu lugar nesta filosofia
reformada, mas devem ser de alguma maneira purificadas de sua ambigidade e obscuridade,
para que a metafsica seja capaz de resolver problemas como a matemtica, cujo xito se
deve em grande medida ao fato de possuir seu prprio sistema de comprovao, resolve seus
problemas de clculo.
No texto citado acima, alis como em textos importantes da maturidade, Leibniz
considera que a noo central para essa reforma da filosofia a noo de substncia proposta
por ele, noo to fecunda que dela se seguem as verdades primeiras, inclusive a respeito
de Deus e dos espritos e da natureza dos corpos4. Mas talvez seja a noo de Deus a que
melhor se preste a elucidar a relao entre a matemtica e a metafsica no pensamento
leibniziano. Ao comentar o artigo 26 dos Princpios de Descartes, em que este afirma que
no devemos discutir nada acerca do infinito, Leibniz escreve:
Embora sejamos finitos, podemos saber muitas coisas acerca do infinito, como o
que sabemos sobre as retas assntotas, ou seja, aquelas que, prolongadas ao infinito,
aproximam-se cada vez mais sem jamais unir-se; ou acerca dos espaos infinitos em
3PS, IV, p.469.4PS, IV, p.469.
Tambm em textos de sntese, como a Monadologiae os Princpios da natureza e da graa,
ambos de 1714, Leibniz parte da noo de substncia e, por um movimento progressivo, vai do
simples ao complexo, elevando-se a considerao de Deus, para ento falar do mundo esse percurso
descrito por alguns comentadores como um ritmo binrio de ascenso e descendncia que se ope
ao percurso argumentativo doDiscurso de metafsica, um texto igualmente de sntese, mas anterior
dcada de 90. H quem veja nessa mudana de tratamento de questes fundamentais da filosofia o
sinal de constituio de uma filosofia propriamente leibniziana, j afastada da influncia do mtodo
clssico de apresentao dos temas presente, por exemplo, nos sistemas neoplatnicos, nas Sumas
medievais e no Tratado da natureza e da graa de Malebranche. Sobre essas questes, verApresentao inLeibniz -Discurso de metafsica e outros textos. So Paulo: Martins Fontes, 2004.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
34/227
33
comprimento mas de superfcie no maior que um espao finito dado; ou sobre as
somas de sries infinitas. De outra maneira, tampouco conheceramos algo com
certeza a respeito de Deus. Sem dvida saber algo sobre uma coisa diferente de
compreende-la, isto , ter em nosso poder o que ela encerra. 5
Neste texto, Leibniz reconhece que h limites para o conhecimento humano, conhecer
diferente de compreender, como o prprio Descartes afirmava, mas recusa a afirmao
cartesiana que estabelece uma distino entre infinito e indefinido para negar nosso acesso ao
conhecimento do infinito. Enquanto Descartes recusa considerar o infinito nas matemticas,
como algo que escapa evidncia racional, para Leibniz no apenas possvel um saber
positivo acerca do infinito, como mostra a matemtica, como sem esse saber no
conheceramos nada de certo a respeito de Deus. Qual , ento, a relao entre a matemtica
e a metafsica? O conhecimento de Deus se d a partir do conhecimento do infinito
matemtico? Por que podemos dizer que o conhecimento desses infinitos matemticos no
mnimo facilita o conhecimento da infinitude divina?
Quando fala em matemtica e pensa a reforma da filosofia tendo no horizonte a
maneira da matemtica proceder em seus clculos, Leibniz est falando da matemtica do
infinito. Se quisermos compreender a relao entre matemtica e filosofia, temos que entrar
no labirinto do contnuo. No prefcio Teodicia, Leibniz apresenta este labirinto afirmando
que consiste na discusso da continuidade e dos indivisveis, que parecem ser os elementos
daquele, e no qual deve entrar a considerao do infinito.6E acrescenta que o labirinto do
contnuo envolve os filsofos no dos matemticos que ele fala, como se poderia pensar
, por no conceberem corretamente a natureza da substncia e da matria que os filsofos
fizeram colocaes falsas que levam a dificuldades insuperveis. Talvez o pressuposto de
uma distino entre filosofia e matemtica tal como a pensamos hoje deva ser questionado.
Isso no quer dizer que Leibniz, e os filsofos do sculo XVII de maneira geral, noestabelecessem uma separao entre os dois domnios, mas certamente no como a que existe
hoje. E a percepo disso de fundamental importncia para a compreenso dessa relao
que procuramos delinear entre filosofia e matemtica. Para Leibniz, e diria mais, para a
filosofia do sculo XVII como um todo, no h um corte definitivo separando a filosofia da
5Leibniz Animadversiones...PS, IV, p. 360. (Traduo in Escritos filosoficos, ed. cit. p.
423). 6Leibniz Teodicia , Prefcio. Paris: GF-Flammarion, 1969 p.29.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
35/227
34
matemtica, e justamente porque no h esse divrcio, a relao entre elas no pode ser a de
uma transposio de um domnio para o outro, como se uma devesse ser explicada pela outra.
Poderamos dizer que trata-se de uma filosofia matemtica e de uma matemtica filosfica.
Durante o sculo XVII, como afirma Michel Serres, o sucesso do modelo
matemtico e importao de seu mtodo na pesquisa filosfica so (...) coisas ordinrias 7.
H um consenso na filosofia sobre a importncia da matemtica. Leibniz se destaca de seus
contemporneos por ser, neste ponto (e na verdade em muitos outros tambm), ao mesmo
tempo tradicionalista e moderno: Leibniz fiel a uma concepo de sistema presente na
filosofia estica, da qual herda a idia de que todas as coisas concorrem, conspiram,
consentem, e graas a qual pode recusar uma restrio do modelo matemtico, liberando-se
do more geometrico. O modelo matemtico de Leibniz, segundo Serres, est alicerado na
multi-linearidade (que concerne s noes e s ordens que as organizam) e na multi-
valncia (ordens analgicas que se aplicam a regies diferentes do sistema), que se mostram
pela integrao de uma noo a ordens diferentes, por discursos que, analisando um
problema singular, analisam vrios problemas de maneira analgica, permitindo a traduo
em nveis diferentes de uma mesma coisa. A filosofia leibniziana, segundo o comentador,
reproduz o que se passa no interior da matemtica, em que uma mesma noo pode ter um
valor aritmtico, um valor geomtrico etc. H uma multiplicidade de caminhos para abordar
uma idia, um ser, de maneira que imagem do encadeamento de razes presente em
Descartes, Leibniz substitui a imagem da rede, em que h uma variedade de cadeias
concorrentes, como em um tecido. Eis por que, em Leibniz, a filosofia tende a se tornar
matemtica, mas esse devir tem por horizonte uma matemtica inconcebvel em seu tempo8.
Embora Leibniz coloque como objetivo a ser seguido o estabelecimento de uma ordem
elementar como a de Euclides, tal como vimos em A reforma da filosofia primeira, sua
filosofia no se apresenta more geomtrico, e as ordens parciais que estabelece, ou as
diferentes perspectivas das mesmas questes, embora partes-totais, no se deixam reordenarde maneira linear.
Essa matemtica multilinear e polivalente pensada por Leibniz um modelo.
Podemos dizer com Serres9 que h um paralelismo de estruturas entre a matemtica e a
7 Serres, M. Le systme de Leibniz et ses modles mathmatiques. Paris: PUF, 1968.
volume I, p.15.8
Serres, M. Op. cit. volume I, p.18.9Cf. Serres, M Op. cit. volume I, p.44.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
36/227
35
filosofia, no uma relao de causa e efeito, insistimos: no se trata de uma simples
transposio da matemtica para a filosofia, ou de uma aplicao literal do conceito
matemtico de infinito, por exemplo, idia de Deus. Trata-se sim de um pensamento
matemtico da filosofia, e com isso, de uma matematizao da idia de expresso. Esse
modelo matemtico, por sua vez, no se refere a teorias singulares, ou a modelos parciais de
cada matemtica, da lgebra, da geometria etc., mas sim sistemtica dos modelos
matemticos. Por isso Leibniz passa de uma matemtica a outra (veremos mais adiante, por
exemplo, a passagem da lgebra para a geometria a fim de pensar um novo clculo) na busca,
atravs de modelos parciais, daMathesis, no para acumular modelos, mas para organizar um
pensamento matemtico. O sentido da Mathesis leibniziana , sugere Serres10, a unificao
de mltiplas regies do mundo, mais que uma logicidade universal, a unificao de
domnios separados, o estabelecimento de relaes, correspondncias, analogias. Eis por que
a matemtica no apenas um modelo de referncia, mas um sistema de referncia. A
matemtica , para o filsofo, um modelo de sistematicidade para a metafsica: em filosofia,
como em matemtica, trata-se de reunir e compreender diversas regies do mundo. A
maneira de proceder da matemtica no simplesmente imitada em filosofia, ela organiza o
pensamento filosfico mesmo.
As matemticas so erigidas em modelo da filosofia por sua funo heurstica e
pedaggica: elas servem de paradigma porque so simples, ou, para lembrar A reforma da
filosofia primeira, por sua luz, sua clareza, garantida por um mtodo que inclui a verificao
de suas afirmaes. Essa simplicidade est ligada ao fato da matemtica ser antes de tudo
uma lgica da imaginao, o que leva simplificao de uma complexidade inteligvel ou
real. Mas devemos considerar com cuidado essa afirmao, j que, veremos, Leibniz um
crtico contundente da imagem e da imaginao tal como empregadas por Descartes. Para
Leibniz A Matemtica universal deve tratar de um Mtodo exato de determinao das
coisas que caem no poder da imaginao: ela , por assim dizer, uma lgica daimaginao, eis por que possvel falar de uma incompatibilidade entre essa matemtica,
concreta, e a metafsica, abstrata, como acrescenta Leibniz em seguida por isso que
esto excludas da Matemtica universal as coisas Metafsicas que tratam das coisas
10Cf. Serres, M Op. cit. volume I, Introduo, em particular pp.64-70.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
37/227
36
puramente inteligveis, como o pensamento, a ao.11. Enquanto lgica da imaginao, a
matemtica ainda e sempre um modelo para a metafsica, mas justamente por essa relao
com a imaginao, apenas um modelo.
Ser preciso entender o que significa exatamente modelo, mas para isso
necessrio antes entrar de fato no labirinto do contnuo. Por ora sugerimos apenas que essa
idia da matemtica como modelo para a filosofia no apenas ajuda na compreenso da
noo de expresso, como ele mesma explicada pela teoria da expresso. E, se matemtica
modelo da metafsica, por outro lado, a metafsica serve no mnimo de inspirao para a
matemtica, inclusive no que diz respeito ao infinito. Da a pertinncia da imagem sugerida
por Serres para pensar essa relao entre filosofia e matemtica: paralelismo entre dois
sistemas distintos. Mas vamos ao labirinto.
O infinito
A considerao do infinito fundamental para a compreenso do labirinto do
contnuo. No prefcio dos Novos ensaios Leibniz fala da imensa sutileza das coisas que
envolve um infinito atual sempre e em toda parte12. A primeira observao que devemos
fazer acerca do infinito em Leibniz que, para este filsofo, o infinito atual. Leibniz retoma
a distino aristotlica entre ser em ato e ser em potncia para explicar o infinito: um infinito
em ato existe como uma coisa ou uma propriedade de coisas existentes, o que significa que,
se operamos uma diviso ou uma soma ao infinito, isso s possvel porque o infinito, como
um fato, preexiste a essas operaes do pensamento; um infinito potencial no uma
realidade em si mesma, a ausncia de limites, neste caso, no existe em si mesma, como no
caso de um nmero dado em que podemos sempre acrescentar mais uma unidade,
ultrapassando o limite posto inicialmente por aquele nmero. Para Aristteles, embora o
infinito exista, ele s pode existir em potncia, visto que carece de uma identidade, e jamais
se atualiza. Leibniz no despreza a idia de potencial a potncia de atuar, por exemplo,que define a substncia na Reforma da filosofia primeira , mas o infinito potencial
corresponde sempre a um infinito atual se a extenso divisvel ao infinito, isto ,
11 Couturat, L. Opuscules et fragments indits de Leibniz. Paris: 1903 (reimpresso
Hildesheim, 1961) (doravante citado como C) - p. 348. Traduzido por Serres, M Op. cit. volume I,
p.63, nota 2.12
Leibniz Nouveaux essais sur lentendement humain. Paris: GF-Flammarion, 1990(doravante citado NE, seguido do livro, do captulo e do artigo) Prefcio, p.43.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
38/227
37
potencialmente infinita, porque a matria composta de uma infinidade de criaturas.
Assim, embora o infinito atual no exista como uma coisa, existe como propriedade de todas
as coisas, o que fica claro naMonadologia.
Neste texto, embora a noo de infinito aparea em cinco contextos diferentes, como
mostram Burbage e Chouchan13, em todos os casos trata-se sempre do infinito atual. O
infinito afirmado, em primeiro lugar, de Deus: onde no h limites, ou seja, em Deus, a
perfeio absolutamente infinita14. A perfeio e a infinitude so consideradas aqui como
necessariamente implicadas, e o infinito pensado como ausncia de limites, em oposio
perspectiva aristotlica que considera perfeito o que dotado de limites15; a realidade no
pode mais, portanto, ser identificada limitao e essa ausncia de limites no pode estar
associada a indeterminao. O infinito encontra-se, em segundo lugar, nas idias de Deus:
h uma infinidade de universos possveis nas idias de Deus e apenas um deles pode
existir16.Esse Deus infinito, que pensa infinitos universos possveis, a razo suficiente ou
ltima do universo das criaturas, isto , da seqncia ou das sries das contingncias, que
poderia chegar a um detalhamento sem limite devido variedade imensa das coisas da
natureza e diviso dos corpos at o infinito17. No apenas Deus infinito, mas infinito
tambm o universo, e esse o terceiro contexto em que aparece a idia de infinito na
Monadologia. Esse universo infinito, por sua vez, composto de uma infinidade de
substncias que abarcam o infinito, a natureza das substncias individuais, ou mnadas,
sendo representativa, no poderia ser limitada, por coisa alguma, a representar s uma
parte das coisas (...). Todas [as mnadas] tendem confusamente ao infinito, ao todo18. O
finito e o infinito deixam de se opor quando pensamos a relao entre as substncias, simples
e finitas, e o infinito que constitui seu mundo interior e esse o quarto contexto em que
aparece a idia de infinito. Essas substncias aparecem como corpos e a matria que constitui
esses corpos no contm tomos, ela no s divisvel ao infinito, como reconheceram os
antigos, como ainda est subdividida atualmente sem fim, cada parte em partes19 esse o
13Burbage, Frank e Chouchan, Natalie Leibniz et linfini. Paris: PUF, 1993 p.21-33.14Monadologia, 41. In Discurso de metafsica e outros textos. So Paulo: Martins Fontes,
2004. p.138.15Cf. Aristteles Fsica, III, 207a.16Monadologia, 53. Ed. cit. p.141.17Monadologia, 36. Ed. cit. p.137 (no itlico meu).18
Monadologia, 60. Ed. cit. p.142.19Monadologia, 65. Ed. cit. p.144.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
39/227
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
40/227
39
quisermos retomar o vocabulrio cartesiano. por isso que para responder afirmao de
que finito e infinito so modos da quantidade, Leibniz precisa, por um lado, falar de um
verdadeiro infinito, que no pode ser uma modificao, mas o absoluto, anterior a qualquer
composio, e que, uma vez modificado, passa a ser limitado ou finito; mas, por outro lado,
precisa tambm mostrar que, do ponto de vista da quantidade, podemos sempre conhecer a
razes que explicam o infinito.
A primeira diferena que ope Leibniz a Locke que, para o primeiro, a idia de
infinito no produzida, nem no caso do infinito absoluto, nem quando se trata do infinito
quantitativo, essa idia se encontra em ns mesmos, e no poderia vir das experincias dos
sentidos, assim como as verdades necessrias no poderiam ser provadas por induo ou
pelos sentidos23. Uma vez que se trata de uma idia inata, como um fato da razo o infinito
quantitativo pode ser explicado, analisado, no produzido. Assim, considerando por exemplo
uma linha reta, podemos prolong-la de modo que tenha o dobro da medida da primeira,
pode haver ainda uma terceira, semelhante s demais, que tenha trs vezes o tamanho da
primeira e assim sucessivamente: neste caso, a considerao do infinito vem da
considerao da similitude ou da mesma razo, e sua origem a mesma que a das verdades
universais e necessrias.24A linha infinita conhecida no por ser um todo, no porque
interrompemos essa progresso ao infinito, mas porque, subsistindo sempre a mesma razo
nesse processo de adio, possvel conhecer essa razo. Conhecemos a lei que rege o
processo de aumento, e graas a ela sabemos que a linha infinita, eis por que no estamos
condenados, como quer Descartes, a uma idia indefinida do infinito.
Ora, mas esses infinitos quantitativos, esses todos infinitos e seus opostos
infinitamente pequenos tm lugar apenas no clculo dos gemetras, assim como as razes
imaginrias da lgebra.25 No limite, o ponto de vista que determina as consideraes de
Locke restritivo, porque desconhece a idia de diferentes ordens de infinito e no pode, por
isso, explicar a infinitude do ser absoluto, nem as grandezas infinitas do mundo (quer se tratedo universo como um todo, quer das substncias individuais, e talvez mesmo de seus
fenmenos), mas apenas um certo infinito de quantidades matemticas. Se o infinito no
um modo da quantidade e, ao contrrio, a modificao do infinito verdadeiro que gera o
finito ou limitado, porque a idia de infinito verdadeiro ou absoluto no obtida a partir da
23NE II, xvii, 3 p.124.24
NE II, xvii, 3 p.124.25NE II, xvii, 3 p.125.
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
41/227
8/12/2019 A EXPRESSO EM LEIBNIZ tessa_lacerda_dout
42/227
41
ponto de vista fenomnico, o universo, como matria (potncia extensa e passiva), divisvel
ao infinito: cada poro de matria pode ser concebida como um jardim cheio de plantas e
como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo da planta, cada membro do Animal, cada
gota de seus humores, tambm um jardim ou um lago.29 Somente nesse sentido, isto ,
pensando nos fenmenos, possvel entender a afirmao de Leibniz, em uma carta de 1706
a Des Bosses, que diz dado o infinito sincategoremtico, ou potncia passiva contendo
partes; entendo com isso a possibilidade de um desenvolvimento ulterior por diviso,
multiplicao, subtrao, adio30. Partes? Como pensar um infinito sincategoremtico
composto de partes, que pressupem a idia de unidades discretas, mesmo na matemtica, se
no em analogia com o infinito sincategoremtico do mundo fenomnico, ou seja, como
partes que se dividem em partes, e essas em outras ao infinito? Nesse caso, poderamos dizer
que, assim como no alfabeto dos pensamentos humanos Leibniz se contenta em determinar
arbitrariamente os primeiros termos indefinveis (diante da impossibilidade humana de
atingir os termos simples absolutos, ou primeiros atributos de Deus), na matemtica seria
possvel determinar arbitrariamente essas partes. Seria essa a soluo? De qualquer forma
subsistiria a primeira dificuldade, porque enquanto o infinito do mundo fenomnico
corresponde a verdadeiras unidades, as substncias, e tem por isso realidade, o infinito da