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A FUNÇÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA DE MITOS, RITOS E
RITUAIS
Carlos Roberto Fernandes1
O que são mitos, ritos e rituais
Mitos, ritos e rituais podem ser considerados – e são efetivamente – a
expressão de cuidado de grupos, comunidades, culturas e sociedades por suas vivências
e experiências significativas, partilhadas ao longo dos séculos e dos milênios: eis porque
é mister considera-los uma expressão de cuidado. Estritamente nesse sentido, propus e
sistematizei o conceito de trajetórias e memórias de corpo; 2,3,4:89, 242-245
nas quais estão
evidentes as marcas de cuidado e as marcas de não cuidado de individualidades e de
coletividades na composição ou não de seus mitos.
Com o estudo das Obras Completas de Carl Gustav Jung compreende-se
sistematicamente que o mito era a vida e o pensamento do homem e da mulher na
Antiguidade; tal qual os sonhos, mitos não são puerilidades, fruto de uma mera
invenção ou construção; estruturas vivas e padronizantes da existência humana, os
mitos se manifestam através de símbolos universais, imagens, forças e fantasias
colocando a consciência em contato com o inconsciente coletivo.
Ao contrário do que comumente se prega e se acredita, o mito não se limita a
ser relatório da criação de realidades novas ocorridas em tempos remotos e com
intervenções sobrenaturais: intervenções sobrenaturais são a expressão simbólica de
forças naturais ainda não total ou parcialmente percebidas, compreendidas.
Subcampos da Mitologia
A tentativa de compreensão humana das próprias forças interconexas,
registradas por essa mesma humanidade sob a forma de mitos, criou o campo
epistêmico denominado Mitologia.
1 Professor de Magistério Superior da Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Enfermagem,
Membro da Academia Internacional da União Cultural. 2FERNANDES, Carlos Roberto. Concepções de corpo na Enfermagem dos anos noventa no Brasil:
uma abordagem com Wilhelm Dilthey. 2003. 179f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de
Enfermagem da UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003. 3FERNANDES, Carlos Roberto. Propedêutica: introdução à Ciência do Cuidado. Rio de Janeiro:
EDA/BN, 2004; p. 28-29. 4 FERNANDES, Carlos Roberto. Fundamentos do processo saúde-doença-cuidado. Rio de Janeiro:
Águia Dourada, 2010.
Na Mitologia existem muitos subcampos epistêmicos e interconexos:
- da Antropogonia ou dos mitos relativos ao nascimento do homem;
- da Cosmogonia ou dos mitos relativos ao nascimento do cosmos;
- da Escatologia ou dos mitos relativos ao destino do homem após a morte e da sua
volta ao mundo terreno;
- da Teogonia ou dos mitos relativos ao nascimento dos deuses;
- ainda existem os mitos fundados nas relações e ações de deuses e homens no mundo
histórico e que compõem um subcampo a que eu proponho a denominação de
Sociogogia.
Racionalidade indígena e roupa mítica
Particularmente, quando se busca entender e compreender a mitologia indígena
percebe-se nela a não existência de sobrenatural: tudo é natural, tudo procede, está na
natureza, nela e dela se desenrola. E essa natureza é unidade de vida da qual se
desdobram todas as unidades de vida conhecidas, interconexas e coexistentes, sejam
minerais, vegetais, humanas, supra-humanas, divinas. Por isso, na racionalidade
indígena tudo tem alma porque tudo é unidade de vida: acidentes geográficos, vegetais,
animais, minerais, rios, lagos, mares, coisas e objetos, artefeitos, astros celestes e
fenômenos da natureza, matas e florestas. Não se trata da expressão de modos distintos
de objetivação da natureza, conhecidos com os nomes de totemismo, de animismo, de
naturalismo, nem de supostos campos pre-subjetivos e pre-objetivos.
Na racionalidade indígena as unidades de vida criam e usam diversas roupas
trocáveis de animais, de humanos, de vegetais, de minerais, de espíritos e de divindades:
são roupagens das unidades de vida no mesmo sentido ou num sentido mais vitalmente
radical do que Carl Gustav Jung nomeia de persona5.
De acordo com os meus estudos, a experiência indígena de roupa diferencia-se
fundamentalmente do conceito junguiano de persona.
Roupa mítica é o conceito diferenciador de persona para aquela racionalidade
indígena da roupa criada e utilizada pelas unidades de vida em suas trajetórias e
5“Segmento arbitrário da psique coletiva, elaborado às vezes com grande esforço. [...] É uma simples
máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma individualidade, procurando convencer aos outros
e a si mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel, no qual fala a
psique coletiva” (JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. v. VII/2. Trad. Dora Ferreira da Silva. 24.
ed. Petrópolis: Vozes, 2011; §245).
memórias não divididas, não fragmentadas porque são o desdobramento de um único
evento cósmico – o ritmo da vida.
Com a roupa mítica os povos indígenas estão ensinando a si mesmos e a toda a
humanidade que tudo na vida, sempre natural, é unidade de vida. Mais precisamente
ensinam que a coexistência, a interconexão e o co-pertencimento dessas unidades de
vida na vida coletiva, grupal, social, cultural, individual, pessoal não são aparência,
máscara convencional para a relação indivíduo e sociedade.
A roupa mítica da racionalidade indígena ensina que todas as unidades de vida
estão mergulhadas na vida, são o desdobramento da vida e que todas elas são princípios
inteligentes fragmentários, a caminho da completude ou completos: não se trata da
Monadologia de Gottfried Wilhelm Leibnitz.
Consequentemente, para a racionalidade indígena no que denomino roupa
mítica não existem consciente e inconsciente; existem vivências e experiências das
unidades de vida ou princípios inteligentes em seus desdobramentos nas trajetórias
quase infinitas da vida.
O conceito de roupa mítica permite conhecer e entender as expressões
indígenas de antropomorfismo, de zoomorfismo, de antropozoomorfimo, incluindo-se a
ciência indígena da nominação de pessoas com nomes de animais, de vegetais, de
minerais, de fenômenos da natureza, de astros celestes, segundo analogia e correlação
de qualidades, de comportamentos e de funções sociopolíticas.
Inconsciente coletivo, pessoal, social
O conceito de inconsciente coletivo de Jung refere-se ao essencial e ao
necessário à humanidade em sua trajetória de vida coletiva, incluindo-se a pré-
humanidade, permanentemente interatuante na vida da pessoa.
O inconsciente pessoal refere-se à vida íntima e pessoal: seus conteúdos
incluem vivências e experiências adquiridas durante a vida histórica atual da pessoa, ou
seja, da concepção à morte.
O inconsciente coletivo e o inconsciente pessoal para Jung distanciam-se
imensamente daquilo que Sigmund Freud chama de id e superego, respectivamente. O
aprofundamento da compreensão dessas diferenças deve ser buscado nas irretocáveis
obras daqueles teóricos.
A capacidade de uma cultura para formar mitos, ritos e rituais expressa a sua
capacidade coletiva para simbolizar as próprias e relevantes experiências de vida:
simbolização e símbolos é um universo extensa e profundamente oposto às ideologias
de representação e representações.
Na estrutura do sistema de personalidade em Carl Ramson Rogers são
sinonímios as noções de representação, simbolização e consciência da experiência
vivida6: a experiência vivida simbolizada de alguma forma será o que se entende por
consciência; a experiência simbolizável, sem dificuldades, é a que está disponível à
consciência. As simbolizações da pessoa podem ser corretas, ou seja, expressam
exatamente a experiência vivida, e podem ser incorretas, deturpadas, incompatíveis, ou
seja, não expressam exatamente a experiência vivida. Nesse último caso, há desacordo
entre a pessoa e a própria experiência vivida, gerando por isso deformações e
interceptações da experiência vivida, além de rigidez perceptual; a deformação e a
interceptação ocorrem porque a pessoa se percebe em situações de vulnerabilidade,
angústia, ameaça, desajustamento psíquico.
Outro conceito compreensivo da pessoa humana, junto aos conceitos de
inconsciente coletivo e inconsciente pessoal, é o de inconsciente social, criado por Erich
Fromm para designar a trajetória de vida coletiva de uma sociedade ou povo
determinado7.
Erich Fromm7 também cria o conceito de caráter social para designar o
produto da interação e interinfluência da estrutura psíquica das pessoas, individualmente
consideradas, e a estrutura socioeconômica de uma dada sociedade.
Para Jung e Fromm as estruturas sociais, as sociedades e o caráter social dos
povos fundam-se e se desenvolvem na estrutura e com os conteúdos do inconsciente
coletivo, social e pessoal. A grande lição de tudo isso está no engano de se reduzir
desenvolvimento social, histórico e humano a desenvolvimento econômico ou
tecnológico, necessários como instrumentos e não fundamentos de formação
sóciocultural. Tal engano responsabiliza-se pelos desastres pessoais e coletivos do que
Jung nomeia de ataque e domínio do arquétipo Sombra nas emoções e afetos e domínio
completo da Sombra na invasão8: esses domínios se darão – e têm-se dado - , pois, por
ataque e invasão dos conteúdos do inconsciente coletivo não digeridos, não integrados
ao cotidiano de indivíduos e coletividades.
6 ROGERS, Carl R. Definições das noções teóricas. Capítulo VIII. In: ROGERS, Carl R.; KINGET, G.
Marin. Psicoterapia e relações humanas. Volume 1. 2. ed. Belo Horizonte: Interlivros, 1977 7 FROMM, Erich. Lo inconsciente social. Barcelona: Paidos Iberica, 2003.
8 JUNG, Carl G. Aion: estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo. Vol. IX/2. Trad. Mateus Ramalho
Rocha. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2018.
Ritos (o que se faz para atualizar o mito) e rituais (como se faz atualização) são
um modo milenar pelo qual os povos encontraram digeriam e integravam, no cotidiano,
os conteúdos do inconsciente coletivo. Trata-se, pois, de sistemas e processos
terapêuticos eficientes de revivência e atualização de mitos expressivos da vida
cotidiana de nossos antepassados.
Anteriormente a Jung e Fromm, Giambattista Vico apresenta ao mundo a sua
Ciência Nova e a concepção de historiografia das nações dos povos, do pensamento, da
cultura, das instituições e da Política expressa nas tradições e nos mitos criados pelos
povos9; posteriormente, afirmando que vivemos em símbolos
10, Wilhelm Dilthey cria o
conceito de crítica da razão histórica para significar a capacidade dos homens e das
mulheres compreenderem que são históricos e que história e sociedade são formados
por eles11
.
Formação histórica é o conceito diltheyano para demonstrar a historicidade da
consciência humana, da sociedade criada pelas pessoas que a compõem e do que pode
ser nomeado de história: caberá ao historiador filósofo ou ao filósofo historiador
apreender o essencial e o necessário daquele mar empírico de história.
O conceito de Karl Marx de formação social, por ele mesmo reduzido à
formação econômica por modo de produção, é um derivado do conceito diltheyano de
formação histórica, obviamente não limitado à formação econômica ou modo de
produção.
Duas novas lições são aprendidas com Vico e Dilthey:
- para o filósofo napolitano mitos e tradições são historiografias de povos;
- para o historiador e filósofo alemão mitos e tradições são história, vivência e
expressões da vivência.
A tradição historista (e não historicista) de pensamento, iniciada com Vico e
encontrada na obra de Dilthey, tem continuidade no pensamento de Jung12:§93
quando
este afirma, por exemplo, que os diferentes estratos da mente, apresentados na sua
topografia da psique humana, correspondem à história das raças. Na mesma tradição,
9 VICO, Giambattista. A Ciência Nova. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2005
10 DILTHEY, Wilhelm. Teoria de la concepción del mundo. Obras de Wilhelm Dilthey - volume VIII.
2. ed. española. Tradução de Eugenio Ímaz. México: Fondo de Cultura Económica, 1954. 11
DILTHEY, Wilhelm. Crítica de la razón histórica. Trad. Carlos Moya Espí. Barcelona: Península,
1986. 12
JUNG, Carl Gustav. Fundamentos de Psicologia Analítica. v. XVIII/1. Trad. Araceli Elman. 14 ed.
Petrópolis: Vozes, 2008.
José Ortega y Gasset13
afirmará com tranquilidade intelectual que a pessoa humana não
tem natureza, tem história.
Na humana história e na história humana, atento aos sofrimentos e às
fragilidades cotidianas das pessoas, Jung nos aconselha a meta de sermos completos – e
não perfeitos. A incompletude é o motivo, ou um dos maiores motivos, das fragilidades
e sofrimentos individuais e coletivos.
Histórica e ciclicamente, pessoas individualmente consideradas, sociedades e
povos incompletos têm estruturado vidas pessoais, sociedades, governos e Estados
dominados relativamente por emoções e afetos e/ou dominados completamente por
invasões da Sombra não integrada, responsáveis por todas as formas de violência
interpessoal, social, política, inclusive as violências ambientais e planetárias,
costumeiramente racionalizadas por sistemas culturais diversos e por sistemas de
organização externa da sociedade: a Ciência Moderna e o Colonialismo são exemplos
de tais racionalizações.
Talvez não exista nada mais messiânico e mítico do que a construção da noção
de Ciência e a chamada Ciência Moderna: e esse engano é responsável pela situação
humana e pela situação das sociedades desde o Antigo Regime no mundo europeu ou
desde o Colonialismo sobre os povos dos continentes americano, africano e asiático.
O mundo do método e da ciência, das técnicas e das tecnologias é mais um
mito e de construção muito recente de seus ritos e rituais na história das sociedades e
dos povos. Esses mitos, ritos e rituais iniciaram-se com os povos europeus, notadamente
povos de estrutura psicossocial bélica, conforme destaca Michel Foucault ao afirmar
que a história do povo europeu é a história de um povo de relações bélicas e não
linguística14
.
O mundo mítico das técnicas e das tecnologias é, portanto, campo e objeto de
estudo da Mitologia. E, Mitologia é absolutamente história – e história viva, sem
passado, sem presente e sem futuro, mas eterna. Bastar-nos-á lembrar dois deuses da
guerra em diferentes mitologias.
O mito iorubano do orixá Ogum o apresenta como um deus da guerra, não
diabólico, talvez porque proteja combatentes e não instigue o combate; seu arquétipo
está simbolizado por sete instrumentos de ferro dependurados numa haste de metal; é,
13
GASSET, José Ortega. História como sistema: Mirabeau ou o político. Trad. J. A. G. Sobrinho e E.
H. C. Costa. Brasília: UnB, 1982. 14
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 30. Reimpr. Graal: Rio de
Janeiro, 2012.
também, um deus do ferro, simbolizando a força do trabalho humano na transformação
da natureza. Na crença iorubana, nada se pode fazer de útil no campo ou nas cidades
sem a permissão e a proteção de Ogum que pode muito bem ser considerado o
inspirador ou o patrono da concepção marxiana de mundo.
O mito grego do deus Ares, ao contrário do deus Ogum, personifica a coragem
que significa cegueira e brutalidade, forjada de batalhas, sangue derramado e
carnificinas. O cognome de Ares é o deus das lágrimas, derramadas pela ação do seu
terror, de sua fúria, de sua crueldade; com certeza é o patrono das chamadas expansões
marítimas portuguesa e espanhola, iniciadas no século XV, cujas atividades genocidas e
etnocidas devastaram por séculos as Américas, a África e a Ásia.
Como se vê, mitos são sempre referências ao que homens e mulheres fazem na
realidade humano-sócio-histórica.
Mitos, Criatividade e Fantasias
Na concepção junguiana, mitos são ativadores de criatividade, gerando novas
atitudes e novos comportamentos, promovendo mudança no processo de individuação,
inclusive o de uma determinada cultura. E isto porque, pela interação consciente-
inconsciente coletivo e social, a consciência individual ou coletiva se amplia e se
renova, no dinamismo integrador dos símbolos míticos; como indivíduos e povos,
produzimos e criamos ethos e consciência através da relação dinâmica entre consciência
e inconsciente coletivo. A identidade de ethos é formada e mantida com os ingredientes
eternos dos mitos e por isso conhecemos a psicologia, a alma de um povo analisando e
compreendendo os mitos em que se padronizaram as vivências e experiências
existenciais desse povo.
Junito de Sousa Brandão15
reafirma que os mitos são referenciais históricos de
revigoramento da vida humana presente pelos quais homens e mulheres buscam as suas
origens e raízes. Nesse itinerário, é preciso relembrar que a proveniência (Herkunft) e a
emergência (Entestehung) do povo brasileiro são, primeiramente, a matriz indígena e,
depois, a luso-indígena, a afro-lusitana, a afro-indígena.
Até hoje lamento ter estudado mais os deuses e a mitologia grega e, somente na
vida adulta, ter descoberto os deuses e a mitologia indígena, os deuses e a mitologia
africana.
15
BRANDÃO, Junito de Sousa. Mitologia grega I. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
O aprendizado intelectual com Jung16
ainda esclarece que as nossas fantasias
atuais constituem-se das vivências e experiências dos povos antigos, quando tais
experiências e vivências estruturavam as crenças e o cotidiano daqueles povos; que a
difusão ampla de tais crenças dava-lhes o caráter de verdade universal; que a fantasia
escolhe a forma clássica e tradicional, outrora real e manifesta para os povos antigos a
fim de apresentar-se à nossa mente na atualidade; que as imagens e símbolos são formas
arquetípicas de expressão dos mitos; que os ritos são a atualização dos mitos, sua
revivência.
Ritos e Rituais
O rito é a ressurreição do mito.
No desenvolvimento do rito pelo ritual, ativam-se e energizam-se os materiais
e os conteúdos psicoarquetípicos dos mitos, trazendo-os à consciência, integrando-os;
consequentemente, ampliando e aprofundando a percepção de si mesmo.
Ritos e rituais são, pois, estratégias pedagógicas de desenvolvimento de
indivíduos e grupos de indivíduos, desde que por desenvolvimento se entenda processo
de diferenciação e de aperfeiçoamento: nesse sentido, ritos caracterizam-se sempre por
serem ritos de passagem e rituais são os cerimoniais daqueles ritos.
Vários são os tipos de ritos de passagem, criados desde a Antiguidade por
diversas e diferentes culturas e civilizações: um dos primeiros teóricos, dedicado ao
estudo de ritos de passagem, foi o etnólogo alemão17
Charles-Arnold van Kurr Gennep
(1873-1957)18,19
: seu livro sobre o assunto, originalmente publicado em alemão no ano
de 1909, foi traduzido e publicado em língua inglesa no ano de 1960; no Brasil, a
tradução e publicação ocorreu em 1978.
Os símbolos e as imagens emergentes nos ritos e criados nos mitos afloram e se
interconectam à vida consciente da pessoa ou do grupo de pessoas, possibilitando-lhes
novas sínteses, expansividade da cosmovisão, enriquecimento da personalidade e,
também, das sociedades.
16
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. Trad. Mateus Ramalho Rocha. 9. ed. Petrópolis: Rio de janeiro, 2018. 17
Arnold van Gennep nasceu em Ludwigsburg (Alemanha), era filho de pai alemão e mãe holandesa; após
o divórcio dos pais, na adolescência foi morar na França com a mãe. 18
GENNEP, Charles-Arnold Kurr van. Les Rites de Passage: étude systématique ... Paris: E. Nourry.
1909. 19
GENNEP, Charles-Arnold Kurr van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
Os ritos de iniciação constituem-se de fronteiras predeterminadas
culturalmente e por cuja transposição se dá o processo de desenvolvimento da pessoa e
das sociedades, entendendo-se por desenvolvimento um processo de diferenciação e de
aperfeiçoamento.
A primeira proposição esquemática para a compreensão das diversas e
diferentes etapas ou dimensões dos ritos de iniciação foi feita por Arnold van Gennet. A
sua proposição (não necessariamente hierárquica e nem rígida ou linear) partiu da
observação das ocorrências gerais e comuns a todos os ritos de passagem por ele
estudados e que foram colocados como estágios, fases ou subfases dos próprios ritos de
passagem:
Preliminares
Ritos de separação
Liminares
Ritos de margem (ou de iniciação)
Pós-liminares
Ritos de agregação (ou de retorno)
Pela diversidade e diferença entre as culturas, em cada uma das fases ou
subfases (Preliminares, Liminares, Pós-Liminares) a complexificação dos rituais fazem
com determinados ritos (de separação, de margem, de agregação) ganhem a autonomia
de um único tipo de rito de passagem.
Os ritos de separação representam o primeiro passo de diferenciação e têm por
função realizar cortes da pessoa ou do grupo com um estágio, condição ou situação
anterior; daí, desde a Antiguidade, conhecemos vários rituais de corte, tais como: cortes
de cabelo, de prepúcio, de unhas, acompanhados de mudança de nome, mudanças de
sexo, mudanças geográficas.
Todos os rituais de separação visam romper os vínculos da pessoa ou do grupo
com o mundo físico ou mental infantil, vivido até o momento e vão introduzindo um
universo de novas realidades por onde experiências não vividas ou não conscientizadas
afloram e são metabolizadas.
Após os ritos de separação, tomam curso os ritos de passagem, representados
por morte simbólica, mergulho nas águas, passagens pela água ou pelo fogo, a entrada
nalgum labirinto, o androginismo, o travestismo, a mudança de nomes. Tais rituais
simbolizam a entrada do aprendiz num mundo até então desconhecido, passando de um
estado consciencial inferior para outro superior. Na passagem, há integração na
consciência de conteúdos psico-históricos dispersos, oposicionados, aparentemente
contraditórios, numa busca de síntese e aprofundamento de si mesmo ou do grupo.
No mundo atual, por falta de ritos de iniciação com mana, ou seja,
verdadeiramente capazes de promover o desenvolvimento dos homens e pela carência
de outros homens velhos individuados como exemplos tutelares para os homens menos
velhos, grande parte dos homens passa a vida inteira buscando implementar ritos de
iniciação: sem consciência da meta ou simplesmente sem meta, e portanto sem a
alcançarem, condenam-se a permanentes cortes, rupturas, separações, violências e
novos começos sempre frustrantes e sem que promovam sequer o início da
individuação.
A grande maioria dos homens da atualidade cresce e envelhece como crianças
desorientadas, inseguras e incompletas, agravado ainda mais quando se tornam adultos
sem terem sido crianças e isso não significa desenvolvimento mas impossibilidade de
terem se tornado plenamente humanos: e tal desorientação, insegurança e incompletude
estão evidente nas ruas, nos cinemas, nas uniões conjugais atrapalhadas, no cenário
político, nas escolas, nos metrôs, nas prisões, nos morros e nas favelas, nos iates e nas
coberturas de luxo, nos pregões das bolsas de valores, em todas as formas de violência
na atualidade.
Pela incapacidade, impotência de grande maioria das famílias e das sociedades
atuais em criarem processos de individuação para a formação de homens individuados,
construímos os “sepulcros caiados” ou os ladrões das ovelhas disfarçados em
cuidadores das mesmas na simbologia usada por Jesus, os “santos-do-pau-oco” e as
“taquaras rachadas” da linguagem mineira.
Quando a desorientação, a insegurança e a incompletude é de todo um povo e
de uma nação, a história evidencia os desastres, sob todas as formas e inutilmente
racionalizados como processo civilizatório ou processo civilizador: o expansionismo
comercial iniciado no século XV desembocado na globalização (apenas comercial e da
informação) da contemporaneidade, o colonialismo, o imperialismo, o absolutismo, o
socialismo sem povo comunitário, o republicanismo sem república ou república sem
homens repúblicos, a democracia sem democratas.
Nos ritos de passagem tem-se a simbologia do mergulho nos conteúdos
inconscientes pelo batismo, pelo banho, pelo afogamento, pelo fogo. Tal simbologia é,
de igual modo, um ritual de purificação, ou seja, desfaz-se de todas as sujidades
presentes até aquele momento.
O processo de toda a iniciação, a grande meta é a transformação da criança em
adulto, do homem velho em homem novo, o autoconhecimento, sempre acompanhada
por outras pessoas que já alcançaram a individuação. Essa etapa final é chamada
anábase.
Adquirindo-se o autoconhecimento, finaliza-se o processo de iniciação e a
pessoa ou o grupo retorna, transformado, ao seu povo, à sua família, percebendo-se e
sendo percebida como nova pessoa ou novo grupo; mas a transformação realmente é
interior, não é uma mudança de roupa ou uma nova viagem para o exterior, não é
abandonar compromissos e mudar de residência.
Não se compra formação e transformação interior: a individuação é uma meta,
não é um capital, não é um mercado.
Antes do retorno, dá-se, quase sempre, a morte simbólica de quem está em
iniciação, representada na descida ao mundo dos mortos, das sombras, do desconhecido.
Essa morte simbólica é chamada catábase.
A descida ao mundo dos mortos é o enfrentamento do que Jung nomeia de
Sombra, composta das trajetórias e memórias da vida reprimida, negada ou impedida
que não vivemos; nesse enfrentamento, dá-se a conscientização e a integração criativa
do arquétipo Sombra, tanto da sombra individual como da sombra coletiva.
Conscientização e integração da Sombra significa tomar conhecimento de todos os
aspectos e conteúdos da própria corpopsique, sem projetá-los nos outros, nas coisas. As
provas a serem vencidas, os riscos encontrados na descida e na volta do mundo dos
mortos simbolizam os obstáculos, as resistências, as armadilhas, os perigos e as ilusões
a serem combatidos e ultrapassados pela pessoa ou grupo a fim de liberta-los, caso
contrário sucumbem e não retornam. Eis, também, a perspicácia e a paciência, a
perseverança e a perícia de se lidar com os próprios conteúdos inconscientes aflorados
que, se mal integrados, podem inundar, afogar, destruir o equilíbrio da pessoa em
processo de autodescobrimento.
As três grandes fases ou estágios gerais dos ritos de iniciação podem ser mais
detalhadas em seis subfases:
SUBFASES DOS RITOS DE INICIAÇÃO
Separação física e psicológica dos pais ou de vínculos familiares gerais e significativos
Morte da dependência infantil
Renascimento
Ensinos e Aprendizagens específicos
Período de Provação ou Refinamento
Retorno
Cada uma das subfases é caracterizada por específicos e variados ritos de
passagem e seus respectivos rituais com o objetivo de autodescobrimento,
autoconhecimento, autognose.
Jung está plenamente convencido de que o autoconhecimento é a tarefa
fundamental para a vida humana; Dilthey está plenamente convencido de que o
fundamental para a vida humana é a autognose histórica ou conhecimento de si pela
história e conhecimento da história pelo indivíduo.
Historicidade e Corpitude
Para Jung a meta é a individuação na qual a psique humana é histórica, traz em
si a memória filogenética e ontogenética das trajetórias pré-humanas e humanas;
individuação seria desenvolvimento (diferenciação e aperfeiçoamento) dessa memória
histórica; para Dilthey a meta é a consciência histórica significando a compreensão
dessa memória histórica, estrita ao mundo histórico-sócio-humano. Em ambos, a pessoa
humana é histórica.
Historicidade e corpitude20
são condições humanas: não existe pessoa humana
fora da história nem fora do corpo.
Viver significa reviver, atualizar permanentemente a condição humana de
historicidade e de corpitude; nessa revivência ou atualização permanente, desenvolvida
por trajetórias e memórias de corpo, formam-se tecidos emaranhados da história no
mar empírico da história: mitos e ritos tem exatamente a função e a capacidade para
promoverem aquela revivência ou atualização.
Do mar empírico da história se adstraem os conteúdos construtores de
sistemas culturais, de sistemas de organização interna e externa da sociedade21
;
consequentemente, todos os conhecimentos e saberes humanos são memórias de corpo,
ou seja, objetivações de conhecimentos e saberes do corpo na sua historicidade. Nessa
formação histórica de memórias de corpo inúmeras travessias ou passagens são
20
Com este conceito, distancio-me de todos dualismos ou trialismos e dicotomias presentes nos conceitos
de corporalidade e de corporeidade. Corpitude é o conceito pelo qual entendo que tudo, relativo ao
humano, é algo do corpo, no corpo, pelo corpo e para o corpo – inclusive os conceitos psicológicos de
alma (psiquê) e de espírito. 21
Tais sistemas ou formações históricas já foram sistemática e historicamente classificados e explicitados
(DILTHEY, Wilhelm. Introdução às ciências humanas: tentativa de uma fundamentação para o estudo
da sociedade e da história. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010).
necessárias e que expressam a infância, a juventude, a madureza e a senilidade dos
processos educacionais de indivíduos, de povos e de nações.
O problema (empecilho, impedimento, obstáculo) da eficácia, da eficiência e
da efetividade das Políticas Públicas no Brasil está no fato delas não serem adstrações
mas abstrações dos sistemas culturais e dos sistemas de organização interna e externa da
sociedade brasileira; independente do brilhantismo da formulação e da elaboração
daquelas Políticas, nelas não existe um objetivo, uma meta adstraída das necessidades
sociopolíticas da sociedade brasileira. E mais: tenho revisto a escrita metodológica das
Políticas, dos Programas, dos Planos e dos Projetos Públicos. Raros deles conseguem
formular objetivos.
Objetivo não é ideal, mas uma meta concreta a ser realizada num prazo
determinado: se não houver essa concreticidade da meta e limite de tempo para alcançá-
la é impossível falar em gestão, monitoramento, avaliação, auditoria e controle de
Políticas, Programas, Planos, Projetos.
Diretrizes, prioridades, estratégias, ações e atividades são consequentes à
definição do objetivo, ou seja, definição da meta concreta a ser alcançada num prazo
determinado. Novamente e atualíssima é a explicitação concreta do ideal de indivíduo,
de povo, de nação que se pretende construir e alcançar. E, isso é uma tarefa pedagógico-
filosófica22
, antes que a Pedagogia se transformasse num ossuário de regulamentos de
práticas educacionais.
Sem citações, em vários documentos do Governo e em vários trabalhos
científicos de renomadas revistas nacionais, encontramos a inexistência de objetivos
para Políticas, Programas, Planos e Projetos. O que chamam objetivo não é objetivo e
por isso suas ações e atividades são fragmentadas e descoladas daquelas Políticas,
Programas, Planos e Projetos. Exemplificando com alguns dos verbos de ideal e não de
objetivo usados naqueles documentos ou artigos, temos: promover, socializar,
desenvolver, ampliar, empoderar, aumentar, interferir, incrementar, possibilitar, ajudar,
prover, contribuir, desencadear, implementar, valorizar, compartilhar, oferecer,
incentivar, assegurar, colher subsídios, afinar (depurar), aperfeiçoar, estabelecer,
garantir, apoiar, superar, recuperar, instituir, estimular, resgatar, recomendar, fortalecer,
aprimorar, manter, potencializar, articular, alcançar.
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Consultar as obras: DILTHEY, Wilhelm. Fundamentos de un sistema de Pedagogia. Trad. Lorenzo
Luzuriaga. 3. Ed. Buenos Aires: Losada, 1949; ____________. Historia de la Pedagogia. Trad. Lorenzo
Luzuriaga. Buenos Aires: Losada, 1957.
Consideração final
A incapacidade de se estabelecer legitimamente objetivos está
fundamentalmente ligada à memória histórica e à consciência histórica de indivíduos, de
povos e de nações: o Estado, o governo e a sociedade brasileira não conhecem ampla e
fundamentalmente a realidade humano-sócio-histórica brasileira. Uma das expressões
daquela memória e consciência históricas são os mitos, ritos e rituais porque eles
traduzem as trajetórias e memórias de um povo, formadas e desenvolvidas segundo os
objetivos (ou ideais) das nações, das sociedades, das comunidades. Eis porque mitos,
ritos e rituais são indicadores básicos, estratégicos e operacionais da saúde cultural e da
saúde mental de nações, sociedades e comunidades em seus processos sempre políticos
e pedagógicos de formação e de desenvolvimento.