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A História sob o Olhar da Química QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Vol. 32, N° 2 , MAIO 2010 84 HISTóRIA DA QUíMICA Esta seção contempla a história da Química como parte da história da ciência, buscando ressaltar como o conhecimento científico é construído. Recebido em 30/06/09, aceito em 07/12/09 Ronaldo da Silva Rodrigues e Roberto Ribeiro da Silva A história das especiarias e sua relação com as grandes navegações é um assunto que desperta a curiosidade e o interesse de professores e estudantes. Este artigo aborda um pouco dessa história, adicionando um ingre- diente que pode tornar sua leitura um pouco mais saborosa: a importância que as especiarias desempenharam na alimentação de nossos antepassados. especiarias, historia da ciência, história da alimentação A História sob o Olhar da Química: As Especiarias e sua Importância na Alimentação Humana Pesquisas recentes descritas na literatura buscam relacionar o uso da história com objetivos de uma alfabetização científica, que busque romper com as imagens deformadas da Ciência. F atos ligados à história têm sido sugeridos como alternativas, visando possíveis melhorias no ensino de Ciências. Adicionalmente, pesquisas recentes descritas na li- teratura buscam relacionar o uso da história com objetivos de uma alfabe- tização científica, que busque romper com as imagens deformadas da Ciência. Dentre as justificativas apre- sentadas, podemos citar algumas tais como: a) pode ser motivadora; b) contradiz o cienticifismo e o dogma- tismo presente nos textos escolares; c) favorece a interdisciplinaridade; d) é um instrumento eficiente na oposi- ção ao presenteísmo muito comum entre os jovens de hoje; e) pode contribuir para uma análise da diversidade cultu- ral; e f) muitos fatos da história são do conhecimento dos alunos (Pereira e Silva, 2009). A his- tória das especiarias, sem sombra de dúvida, encaixa-se dentro de algumas das justificativas apontadas acima. Viajemos por ela. O processo de efetiva ocupação da América pelos europeus a partir do século XVI foi ocasionado, inicialmen- te, pela necessidade desses povos em traçar novas rotas para tornar mais acessível o comércio das espe- ciarias, termo atribuído a mercadorias caras e difíceis de serem obtidas e usadas para temperar comida. Em 1453, o império turco-otomano tomou Constantinopla e colocou sob seu jugo todo o comércio dos prin- cipais condimentos utilizados na alimen- tação europeia bem como as rotas para alcançá-los. No velho continente, as espe- ciarias eram impres- cindíveis por compo- rem os conservantes de alimentos e por se- rem utilizadas como remédios, afrodisíacos, temperos, perfumes, incensos etc. Praticamente todos necessitavam dessas “dádivas” da natureza (Nepomuceno, 2005). Não apenas o ouro e a prata, mas também os sabores e odores d’além mar fizeram parte das motivações que impeliram homens a lançarem-se rumo ao oceano desconhecido em busca de fortuna. Os metais preciosos sempre foram alvo da cobiça dos seres huma- nos, mas por qual motivo as especia- rias eram tão importantes? Para se ter uma ideia do valor que era conferido a esses produtos, basta dizer que o pri- meiro mapa que incluiu o novo mundo e lhe atribuiu o nome de América, feito pelo monge alemão Martin Waldsee- müller, em 1507 (Menezes e Santos, 2006), identificava determinadas regi- ões do globo com pequenos textos nos quais constavam comentários a respeito desses alimentos 1 . As quatro mais valorizadas na- quele tempo eram a pimenta-do- reino, o cravo, a canela e a noz-mos- cada. De acordo com Nepomuceno (2005), essas especiarias “eram moedas de troca, dotes, heranças, reservas de capital, divisas de um reino. Pagavam serviços, impos- tos, dívidas, acordos e obrigações religiosas” (p. 25). Segundo essa

A História sob o Olhar da Química - As Especiarias

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  • A Histria sob o Olhar da QumicaQUMICA NOVA NA ESCOLA Vol. 32, N 2 , MAIO 2010

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    Histria da Qumica

    Esta seo contempla a histria da Qumica como parte da histria da cincia, buscando ressaltar como o conhecimento cientfico construdo.

    Recebido em 30/06/09, aceito em 07/12/09

    Ronaldo da Silva Rodrigues e Roberto Ribeiro da Silva

    A histria das especiarias e sua relao com as grandes navegaes um assunto que desperta a curiosidade e o interesse de professores e estudantes. Este artigo aborda um pouco dessa histria, adicionando um ingre-diente que pode tornar sua leitura um pouco mais saborosa: a importncia que as especiarias desempenharam na alimentao de nossos antepassados.

    especiarias, historia da cincia, histria da alimentao

    A Histria sob o Olhar da Qumica: As Especiarias e sua Importncia na Alimentao Humana

    Pesquisas recentes descritas na literatura buscam

    relacionar o uso da histria com objetivos de uma alfabetizao cientfica,

    que busque romper com as imagens deformadas da

    Cincia.

    Fatos ligados histria tm sido sugeridos como alternativas, visando possveis melhorias no ensino de Cincias. Adicionalmente, pesquisas recentes descritas na li-teratura buscam relacionar o uso da histria com objetivos de uma alfabe-tizao cientfica, que busque romper com as imagens deformadas da Cincia. Dentre as justificativas apre-sentadas, podemos citar algumas tais como: a) pode ser motivadora; b) contradiz o cienticifismo e o dogma-tismo presente nos textos escolares; c) favorece a interdisciplinaridade; d) um instrumento eficiente na oposi-o ao presentesmo muito comum entre os jovens de hoje; e) pode contribuir para uma anlise da diversidade cultu-ral; e f) muitos fatos da histria so do conhecimento dos alunos (Pereira e Silva, 2009). A his-tria das especiarias, sem sombra de

    dvida, encaixa-se dentro de algumas das justificativas apontadas acima. Viajemos por ela.

    O processo de efetiva ocupao da Amrica pelos europeus a partir do sculo XVI foi ocasionado, inicialmen-te, pela necessidade desses povos em traar novas rotas para tornar mais acessvel o comrcio das espe-ciarias, termo atribudo a mercadorias caras e difceis de serem obtidas e usadas para temperar comida.

    Em 1453, o imprio turco-otomano tomou Constantinopla e colocou sob seu jugo todo o comrcio dos prin-

    cipais condimentos utilizados na alimen-tao europeia bem como as rotas para alcan-los. No velho continente, as espe-ciarias eram impres-cindveis por compo-rem os conservantes de alimentos e por se-rem utilizadas como

    remdios, afrodisacos, temperos, perfumes, incensos etc. Praticamente

    todos necessitavam dessas ddivas da natureza (Nepomuceno, 2005).

    No apenas o ouro e a prata, mas tambm os sabores e odores dalm mar fizeram parte das motivaes que impeliram homens a lanarem-se rumo ao oceano desconhecido em busca de fortuna. Os metais preciosos sempre foram alvo da cobia dos seres huma-nos, mas por qual motivo as especia-rias eram to importantes? Para se ter uma ideia do valor que era conferido a esses produtos, basta dizer que o pri-meiro mapa que incluiu o novo mundo e lhe atribuiu o nome de Amrica, feito pelo monge alemo Martin Waldsee-mller, em 1507 (Menezes e Santos, 2006), identificava determinadas regi-es do globo com pequenos textos nos quais constavam comentrios a respeito desses alimentos1.

    As quatro mais valorizadas na-quele tempo eram a pimenta-do-reino, o cravo, a canela e a noz-mos-cada. De acordo com Nepomuceno (2005), essas especiarias eram moedas de troca, dotes, heranas, reservas de capital, divisas de um reino. Pagavam servios, impos-tos, dvidas, acordos e obrigaes religiosas (p. 25). Segundo essa

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    autora, as principais especiarias co-mercializadas na poca das grandes navegaes eram nativas da sia Tropical2, das florestas quentes e midas, e no podiam ser produzi-das na Europa. Assim,

    [...] eram compradas secas e dessa forma utilizadas. Sua grande durabilidade, resis-tncia a mofos e pragas nos longos tempos de estocagem, tornara possvel e prspero seu comrcio: suportavam por meses e at anos as travessias por mar ou terra sem perder as qualidades aromticas e medicinais. (p. 25)

    O comrcio com os produtos advin-dos do Oriente era to lucrativo que deu origem a homens extremamente ricos na Europa. Eduardo Galeano (1992), na obra As veias abertas da Amrica Latina, registra que Karl Marx, no livro I do segundo volume de O Capital, destacou que o descobri-mento das jazidas de ouro e prata da Amrica, [...] o comeo da conquista e saqueio das ndias Orientais, a converso do continente africano em local de caa de escravos negros: so todos feitos que assinalam os al-vores da era de produo capitalista (p. 39). Muitos desses abastados ne-gociantes ergueram ou prejudicaram reis somente com o poder do capital que detinham e das negociatas lucra-tivas que articulavam.

    Os navegadores saram em di-reo ao oeste (o que ocasionou a posterior ocupao das Amricas pelos europeus) e ao sul, contornando a frica. Segundo Huberman (1986), em sua primeira viagem ndia, Vasco da Gama obteve um lucro de 6.000%! Como essa oportunidade comer-cialmente lucrativa no poderia ser explorada por uma nica pessoa nem mesmo por um pequeno grupo delas devido aos altos custos envolvidos, surgiram, a essa poca, as socieda-des por aes, capazes de levantar os enormes capitais necessrios

    ao gigantesco empreendimento de comrcio com a sia, frica e, pos-teriormente, Amrica. Foram criadas, ento, sete companhias das ndias Orientais (as mais famosas eram a inglesa e a holandesa) e quatro companhias das ndias Ocidentais como era chamado o continente americano. O importante era saber que mesmo algumas expedies realizadas por corsrios foram orga-nizaes com base na sociedade por aes. A prpria rainha da Inglaterra possua aes de uma das campa-nhas do famoso pirata Francis Drake3 (Huberman, 1986).

    A descoberta de novas rotas em busca de especia-rias do Oriente no ocasionou a diminui-o do preo des-ses artigos na Euro-pa. Pelo contrrio, a busca por riqueza desmedida aumen-tou o preo dessas mercadorias, e esse fator aliado a outros

    (como, por exemplo, a guerra) foi mais que suficiente para espalhar a misria entre uma boa parte da po-pulao da Europa, frica, sia, Oce-ania e Amrica. Vasco da Gama (em 1503), ao retornar cinco anos aps a sua primeira e amigvel visita Ca-licute na costa oeste da ndia , no teve a inteno de realizar qualquer tipo de negcio com os governantes da regio. Segundo Le Couteur e Burreson (2006), l desembarcou com os soldados a seu comando e tomou fora a cidade, garantindo o controle portugus sobre o comrcio da pimenta e o incio do que viria a ser o imprio portugus que se estendeu por parte da frica, da ndia, da Indonsia e do Brasil.

    Da mesma forma que os portugueses, espanhis, holande-ses e ingleses co-biavam praticar o comrcio das especiarias. No sculo XVII, os ho-landeses dominaram essa atividade garantindo o seu monoplio depois que expulsaram das Molucas os

    ltimos espanhis e portugueses. Para consolidarem o comrcio de noz-moscada produzida nas ilhas de Banda (na Indonsia), massacraram a populao local, escravizando os que sobraram, alm de destrurem as rvores de noz-moscada que no estavam situadas em torno de suas construes fortificadas (Le Couteur e Burreson, 2006). Alm disso, nego-ciaram em 1667 a sada dos britni-cos da regio, cedendo-lhes a Nova Amsterd (atual Nova York).

    Nesse contexto, a elite europeia financiou a viagem por mar de aventu-reiros capazes de trazer, diretamente do Oriente, as to desejadas merca-dorias. Assim eles poderiam vend-las e garantir a entrada de metais preciosos via comrcio exterior em seu territrio.

    Curiosamente, a utilizao de dinheiro na atividade de compra e venda desses produtos levou para o dia a dia do europeu

    [...] uma abstrao prpria de um tipo de raciocnio te-rico, antes patrimnio exclu-sivo de intelectuais, no qual smbolos podiam representar objetos concretos. Alm disso, a manipulao da moeda nas sociedades em franco desen-volvimento comercial gerou a necessidade do aprendizado do clculo matemtico pela gente simples das cidades e dos campos. [...] Em pouco tempo multiplicaram-se as escolas de clculo, e a ma-temtica passou a fazer parte da formao das populaes urbanas. (Braga e cols., 2004,

    p. 18-19)

    Por conta dessa necessidade prti-ca da matemtica, ou t ras reas do conhecimento aca-baram tambm se desenvolvendo. Nas

    discusses cotidianas, como j havia ocorrido h bem mais tempo nas rodas filosficas, confirmava-se a capacidade que a racionalidade representada pelos nmeros tinha

    As principais especiarias comercializadas na poca das grandes navegaes

    eram nativas da sia Tropical, das florestas

    quentes e midas, e no podiam ser produzidas na

    Europa.

    O comrcio com os produtos advindos do

    Oriente era to lucrativo que deu origem a homens

    extremamente ricos na Europa.

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    para encontrar a soluo de muitos problemas. A partir da, comearam a ser procurados novos caminhos, que utilizassem a linguagem mate-mtica na busca da verdade (Braga e cols., 2004, p. 21). A avidez pelo comrcio transformou a Holanda em uma potncia na explorao de novas terras, impulsionando a tecnologia nessa nao. Em todos os pases exploradores da Europa, os proble-mas impostos pelas navegaes provocaram o desenvolvimento da engenharia (inveno de mquinas capazes de marcar melhor o tempo), da astronomia (definio de pontos de referncia no cu to importantes para a navegao noturna), enfim, de diversas reas do conhecimento. Na Itlia, os abastados comerciantes financiavam aqueles que detinham a tcnica de manipular os materiais naturais disponveis e promoveram a construo de palcios, catedrais e todo tipo de edificaes e obras de arte capazes de tornar a vida nas cidades mais confortvel e mais agradvel.

    A metodologia prtica necessria ao trabalho nas navegaes sus-citou, em alguns filsofos, a ideia de que o conhecimento deveria ser construdo a partir da experincia, como j havia sido sugerido em textos da Antiguidade: o progresso tecnolgico requeria liberdade na busca do conhecimento. As aven-turas em terras exticas sacudiam a mesmice desafiando a sabedoria vigente e mostrando que ideias acei-tas h anos poderiam estar erradas (Sagan e Soter, 2000, s/p). Nessa viso, identificam-se aspectos do que seria denominado para a cin-cia moderna como experimentao (Braga e cols., 2004). Dessa forma,

    [...] as grandes navegaes mudaram por completo a his-tria da Europa. Alm de serem fundamentais para o estabele-cimento da cincia moderna, possibilitaram a queda de vrios mitos medievais. Alm disso, mostraram que a adoo de um planejamento para a in-vestigao podia levar, no s a novos conhecimentos, mas

    superao e correo dos antigos, dando vida a um novo ideal: o progresso (p. 32-33)

    As especiarias, to importantes quando analisadas sob o ponto de vista poltico e econmico, tive-ram sua relevncia social retratada tambm pela elite artstica daquele perodo (Figuras 1 e 2). Muitas pin-turas registraram sua utilizao na preparao de vrios pratos e na composio de valorizados costumes como, por exemplo, o de consumir ch em reunies sociais ou familia-res (Figura 3). Assim, no podemos negar que esses alimentos possuem caractersticas intrnsecas que cer-tamente os colocaram em situao de destaque e possibilitaram sua explorao comercialmente lucrati-va. Nesse sentido, encontramos na literatura justificativas capazes de esclarecer o motivo da extrema va-lorizao das especiarias na poca das grandes navegaes com base na forma como eram utilizadas.

    Uma dessas explicaes diz res-peito capacidade de as especiarias servirem para conservar as carnes ou para mascarar o gosto infecto das malconservadas. Entretanto, para Flandrin e Montanari (1998), essa explicao se revela insatisfatria. Em primeiro lugar, segundo eles, porque os agentes de conservao das car-nes j conhecidos naquela poca eram o sal, o vinagre, o leo e no as especiarias. Em seguida, porque, com exceo das salgas, as carnes

    eram comidas muito mais frescas do que atualmente.

    Outra tese considera que mui-tos desses produtos importados do Oriente no tinham uma funo culinria, mas teraputica. Flandrin e Montanari (1998) revelam que em um livro intitulado Le thresor de sant (O tesouro da sade), publicado em 1607, est registrado que a pimenta-do-reino

    [...] mantm a sade, con-forta o estmago [...], dissipa os gases [...]. Cura os calafrios das febres intermitentes, cura tambm picada de cobras. Quando bebida, serve para tosse [...] mastigada com uvas passas purga o catarro, abre o apetite. O cravo-da-ndia, por sua vez, serve para os olhos, para o fgado, para o corao, para o estmago. Seu leo excelente contra dor de dentes. Serve [...] para as doenas frias do estmago [...]. Ele ajuda muito na digesto, se for cozido num bom vinho com semente de funcho. (p. 480-481)

    Dessa forma, imaginava-se que todas as especiarias tivessem pro-priedades semelhantes. Inclusive essa funo medicinal precedia a utilizao da especiaria como con-dimento, pois os temperos empre-gados na cozinha no fim da Idade Mdia foram importados, a princpio,

    Figura 1: Cozinheira. Obra de Frans Snyders, 1630. Museu Wallraf-Richartz, Colnia (Alemanha). Cozinheira moendo temperos em um almofariz. Notam-se sobre a mesa, entre outras coisas, cravos-da-ndia e diferentes animais abatidos. Fonte: WGA (2008).

    Figura 2: Refeio com ostras. Pintura de Pieter Claesz, 1633. Os cidados abas-tados de Haarlem (na Holanda) estavam particularmente abertos ao gosto refinado exibido no caf da manh. Nessa pin-tura, notam-se, entre outras coisas, po, avels, um limo cortado e descascado, ostras e um pequeno cone de papel com pimenta. Fonte: WGA (2008).

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    como medicamento e s depois para temperar alimentos.

    Assim, do sculo XIII ao incio do sculo XVII, os mdicos no cessaram de recomendar o uso de especiarias no tempero das carnes para torn-las mais fceis de digerir. Segundo Flandrin e Montanari (1998), Aldebrandin de Siena escreveu em seu Le rgime du corps (1256) que a canela tem a capacidade de reforar a virtude do fgado e do estmago [...] [e de] fazer que a carne tenha um bom cozimento [...]; [os cravos-da-ndia] reforam a natureza do estmago e do corpo, [...] eliminam a ventosidade e os maus humores [...] engendrados pelo frio, e ajudam no cozimento da carne (p. 481) etc.

    Naquele tempo, todos aqueles instrudos pela restrita educao elitista entendiam a digesto como um processo de cozimento. O mais importante agen-te desse processo era o calor animal, responsvel pelo lento cozimento do alimento no estma-go. Segundo essa viso, as especiarias contrabalanavam a casual frieza dos alimentos, contri-buindo assim para a sua coco, uma vez que todas elas eram classificadas como quentes e, em sua maioria, secas (Flandrin e Montanari, 1998).

    Livros de cozinha franceses publi-cados entre o sculo XIV e meados do sculo XVI atestam que as especiarias

    eram utilizadas em 58 a 78% das re-ceitas, e cidos, em 48 a 65%. Nessa perspectiva, as especiarias (considera-das quentes e secas) eram desman-chadas, diludas ou neutralizadas com cidos (sempre frios e secos) antes de serem adicionadas ao prato. Supunha-se que os cidos teriam a propriedade de se infiltrar nos canais mais estreitos e, assim, esperava-se que eles levassem o calor das especiarias para todas as partes do corpo. Dos mate-riais de carter cido utilizados pelos co-zinheiros franceses, dois apareciam com maior frequncia: o agrao (suco extrado de uvas verdes) e o vinagre.

    Dado que os con-ceitos de medicina antiga eram muito prximos da expe-rincia vulgar, os princpios da diettica podiam ser difundidos por outros meios alm dos livros. Todos, na sociedade medie-val, os aprendiam comendo como acontece ainda hoje com todos os tipos de sociedades que consomem especiarias. Os provrbios antigos testemunham a circulao oral de de-terminadas prescries da diettica antiga. Acreditava-se, por exemplo,

    que as carnes salga-das provocavam o escorbuto, por isso sempre eram consu-midas com um anti-escorbuto: a mostar-da. Da os provrbios do sculo XVI:

    De carne salga-da sem mostarda/Libera nos Domi-ne. Que Deus nos

    proteja: de mulher que se pinta, de criado que em frente ao espelho tarda, e de carne de boi sem mostarda. (Flandrin e Montanari, 1998, p. 494)

    Portanto, o uso dos temperos tinha pelo menos dois objetivos:

    tornar os alimentos mais apetitosos e de fcil digesto. Podemos dizer que cozinhar naquela poca, assim como hoje, era dar aos alimentos os sabores mais agradveis de acordo com as crenas dietticas e os h-bitos alimentares dos indivduos de uma determinada cultura.

    Na Amrica do Sul, antes da colo-nizao, a populao autctone tinha

    a seu dispor muitas plantas adequadas para temperar seus alimentos, cujos sa-bores tiveram sua boa qualidade com-provada pelo paladar dos prprios explo-radores, dos mais antigos aos mais contemporneos. Conforme registrou o marechal Cndi-do Mariano Rondon, aps suas viagens pelo interior do Brasil no incio do sculo

    XX, certas tribos preparavam o peixe para suas refeies de forma incom-parvel (Cascudo, 2004).

    Os nativos, diferentemente dos invasores, no temperavam seu alimento antes ou durante o seu cozi-mento. A carne que no fosse consu-mida ainda fresca, por exemplo, era conservada a partir de um processo denominado moqum (a carne era tostada ao calor). Nas palavras de Lery4 (apud Cascudo, 2004), ao pre-parar seu tempero preferido,

    [...] os selvagens pilam (a pimenta) com sal, que sabem fabricar retendo a gua do mar em valos. A essa mistura cha-mam Ionquet e a empregam como empregamos o sal; entre-tanto no salgam os alimentos, carne, peixe etc., antes de p-lo na boca. Tomam primeiro o bocado e engolem em seguida uma pitada de Ion quet para dar sabor comida. (p. 120)

    De acordo com os registros da poca, muitos dos habitantes destas terras no gostavam do sal e sequer o usavam de forma isolada. Mesmo

    Figura 3: Tigelas de ch chinesas. Pieter Gerritsz. van Roestraeten sc. XVII Museu do Estado, Berlim. O ch estava entre os principais itens de importao holandesa. Fonte: WGA (2008).

    A elite europeia financiou a viagem por mar de

    aventureiros capazes de trazer, diretamente do

    Oriente, as to desejadas mercadorias. Assim eles poderiam vend-las e

    garantir a entrada de metais preciosos via comrcio

    exterior em seu territrio.

    Em todos os pases exploradores da Europa, os problemas impostos pelas navegaes provocaram o desenvolvimento da

    engenharia (inveno de mquinas capazes de

    marcar melhor o tempo), da astronomia (definio de pontos de referncia no cu to importantes

    para a navegao noturna), enfim, de diversas reas do

    conhecimento.

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    88Quadro 1: A qumica das especiarias

    Especiaria Substncia presente

    Pimenta-do-reino: um fruto que d em cachos de trepadeiras no sudoeste da ndia, regio de grandes florestas. Verdes e postas a secar, tornam-se pretas. Tm propriedades digesti-vas, estimulantes do apetite, da circulao e so boas para resfriados.

    Piperina substncia responsvel pelo sabor picante. Foi extrada pela primeira vez em 1877 e sintetizada em 1882.

    Cravo-da-ndia: o cabinho de odor agradvel que sustenta a flor de uma rvore nativa da Indonsia. Na medicina asitica, tonifica os rins, combate bactrias, fungos, parasitas, micoses e entra em preparados para dor de dente como analgsico.

    Eugenol substncia que caracteriza o odor. Obtida de dife-rentes fontes naturais e sintetizada em 1919.

    Canela: rvore cujos galhos secos so separados de suas cascas marrom-avermelhadas, muito perfumadas. Nativa do antigo Ceilo, atual Sri Lanka, ao sul da ndia. Tem pro-priedades analgsicas e digestivas, combate a fraqueza e o desnimo.

    Aldedo cinmico substncia responsvel pelo odor carac-terstico da canela. Foi sintetizada em 1884.

    Noz-moscada: o caroo de um fruto que d em imensa rvore da ilha de Banda. utilizada na indstria farmacu-tica, na perfumaria e para conferir sabor e odor a alimentos. Na medicina asitica, anti-inflamatria, tonifica corao e crebro e combate fungos e bactrias.

    Miristicina substncia responsvel pelo sabor e odor carac-terstico da noz-moscada. Isolada em 1907 e sintetizada em 1939.

    sendo bem reduzida a sua ingesto, esses indivduos no apresentavam qualquer problema relacionado sua falta. Para Cascudo (2004), a pele dos nativos sul-americanos era protegida da perda de sais minerais, considerando que sua cobertura com pigmentos naturais retirados do genipapo (Genipa americana) e do urucum (Bixa orellana), argila e p de carvo reduzia a sudorese. Tanto os povos da frica como boa parte dos povos americanos preteriam o sal em favor da pimenta:

    Ambos, indgena e negro, eram e so fanticos pela pimenta cujos alcaloides da Capsicum encarregar-se-iam de estimular-lhes o apetite pela excitao digestiva. De Lagos, na Nigria, Antonio Olinto5 fala-me, em janeiro de 1963, que a pimenta empregada em nvel inimaginvel. As pimen-

    A pimenta brasileira (do gnero Capsicum), ou

    quiya, era um condimento largamente utilizado pelos primeiros habitantes das

    terras americanas.

    tas substituam o sal e, depois reunidas a ele nas inquitaias e ijuquis, foram suficientes para a castidade gustativa dos dois grupos tnicos. (p. 127)

    A pimenta brasileira (do gnero Capsicum), ou quiya, era um con-dimento largamente utilizado pelos pri-meiros habitantes das terras america-nas. Quase todas as tribos conhecidas no sculo XVII tinham hortas das quais re-tiravam a pimenta para condimentar suas refeies. O mercenrio alemo Hans Staden, no sculo XVI, foi testemunha do con-trabando realizado pelos franceses na costa brasileira, de onde estes levavam enormes carregamentos de pau-brasil, algodo e pimenta, frutos de negociatas com os tupiniquins

    (Cascudo, 2004). Podemos notar a relevncia ine-

    gvel de diferentes condimentos nas mais variadas culturas que estiveram e ainda esto relacionados e depen-dentes das sensaes que podem proporcionar aos nossos sentidos (Quadro 1). A busca pelos condimen-

    tos que davam alma s refeies forou o alargamento dos horizontes geogr-ficos e intelectuais das pessoas que vi-veram no perodo da expanso martima. A Europa passou a

    ser considerada apenas como mais um lugar no vasto planeta Terra. Por conta dessas novas noes de mun-do que, no sculo XVI, Coprnico pde inaugurar a nova astronomia, retirando, das mentes de seus con-temporneos, o prprio planeta do centro do universo.

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    SAGAN, C. e SOTER, S. Saga dos viajantes. Srie Cosmos. Direo: Adrian Malone. Los Angeles: Cosmos Studios, 2000. DVD.

    WGA. Web Gallery of Art. Disponvel em: . Acesso em 01 out. 2008.

    Abstract: A Chemical view on the history of spices. The history of spices and its relation to the discovery of new trade routes to the East during 15th and 16th centuries is a subject that attracts curiosity and interest from teaches and students. This article brings some of this history, showing how important spices were in our forefathers nutrition habits.Keywords: Chemistry history, spices, history of nutrition.

    Notas:

    1. Para maiores detalhes acesse: .

    2. A sia tropical compreende inmeros pases na atualidade: n-dia, Sri Lanka, Maldivas, Paquisto, Nepal, Buto, Bangladesh, Mianmar, Tailndia, Vietn, Laos, Camboja, Cin-

    gapura, Indonsia, Filipinas, Brunei, Malsia (sola e Caldini), entre outros.

    3. Para os ingleses, Sir Francis Drake era um corsrio, ou seja, um patriota que pilhava os navios dos inimigos da Inglaterra. No entanto, claro que para os espanhis, por exemplo, no passava de um pirata.

    4. LERY, J. Viagem terra do Brasil. So Paulo: Martins, 1941.

    5. Mineiro de Ub, Antonio Olin-

    to integrante da Academia Brasileira de Letras e fez estudos a respeito da relao entre as culturas africanas e o Brasil.

    Ronaldo da Silva Rodrigues ([email protected]), licenciado em Qumica e mestre em Ensino de Cin-cias pela Universidade de Braslia (UnB), docente do Colgio Militar Dom Pedro II, Braslia. Roberto Ribeiro da Silva ([email protected]), bacharel em Qumica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Qumica pela Universidade de So Paulo (USP), docente do Instituto de Qumica da UnB.

    A perspectiva dos estudos cultu-rais institui, como campo de investi-gao e teorizao, que as prticas culturais so produtoras de significa-dos. Assim, como sujeitos, estamos constantemente sendo interpelados por diferentes discursos, pois parti-cipamos de muitas instncias sociais como a famlia, a escola, a mdia, o

    clube etc. O livro Os laboratrios de qumica no ensino mdio: um olhar na perspectiva dos estudos culturais das cincias, do professor Dr. Moiss Alves de Oliveira da Universidade Estadual de Londrina/PR, traz, para ns, a leitura da vida cotidiana de uma escola, no qual o laboratrio escolar (re)visitado sob o olhar dos estudos culturais. Nesse livro, possvel ob-servar pontos importantes da teia que envolve as atividades nos laboratrios escolares e como funcionam os dis-cursos que circulam nesse ambiente, prevalecendo alguns e apagando-se outros. Assim a dinmica das prticas experimentais acaba por corporificar os conhecimentos que so produ-zidos nos prprios laboratrios, de acordo com as possibilidades e negociaes que se estabelecem no momento da sua execuo. A tarefa realizada no laboratrio, vista

    na perspectiva dos estudos culturais e apresentada nesse livro, mostra-nos que o laboratrio apresenta uma trama enunciativa complexa, sobre a qual, ns professores e pesquisa-dores da rea de cincias devemos estar atentos. Assim, recomendo a leitura desse livro especialmente por trazer a possibilidade de ver a prtica no laboratrio com outras lentes e, dessa forma, buscar novos caminhos para essa atividade pedaggica to importante para o ensino de cincias.

    Profa Dra. Marcia Borin da Cunha (Unioeste/PR)

    OLIVEIRA, Moiss Alves. Os labo-ratrios de qumica no ensino mdio: um olhar na perspectiva dos estudos culturais das cincias. Londrina: EDUEL, 2009. 322 p. ISBN 978-85-7216-542-6.

    Resenha

    Os laboratrios de qumica no ensino mdio: um olhar na perspectiva dos estudos culturais das cincias