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À margem das noites - J. B. Pontalis (1º capítulo)

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À margem das noites - J. B. Pontalis (1º capítulo)

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Como são ricas as margens da noite, com seus entes misteriosos, que proliferam desse negro vazio sem fundo. Terra dos sonhos e dos medos, às vezes terrores, nela a morte aparece um pouco mais perto, mais envolvente e mais sedutora – já que dormir é como morrer um pouco, colocar o mundo em suspenso, somente o entrevendo pelas janelas oníricas, que recor-tam e remontam as paisagens mundanas em mosaicos bizarros.

Espaço e tempo paradoxais, nos quais tudo é escuro e, no entanto, pode se ver as coisas

Prefácio

1 Psicanalista, mestre em Filosofia pela USP, doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós- -Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, autor de livros e artigos so-bre psicanálise e música, principalmente. Acabou de lançar o livro: Casta Diva – Callas e a pulsão de morte, em coedição Escuta e Eduel.

Alfredo Naffah Neto1

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com maior clareza. Como diz o poeta:

O sonho que me inventa tem os grandes olhos abertos

E eu fecho os olhos para enxergar o mundo2.

E como são ricas as margens da noite, quan- do são evocadas por uma livre pensador do calibre do J. B. Pontalis. Psicanalista de profissão – um dos grandes, diga-se de passagem –, autor de inúmeros livros e editor – por meio da Gallimard – de um sem número de autores, nunca chegou, entretanto, a fundar uma escola psicanalítica.

Enquanto Lacan era marginalizado pela I. P. A. e, a partir daí, criava uma escola que atra-vessaria oceanos para se espalhar pelo mundo – há, hoje, no Brasil, mais psicanalistas lacanianos do que de qualquer outra vertente – Pontalis permaneceria na I. P. A. mas, paradoxalmente, para se tornar mais marginal do que seu ilustre colega francês. Quem são os pontalisanos? Existem?

2 Os trechos em itálico são, todos, citações do presente livro. Prefiro, entretanto, não colocar as referências de páginas, para propiciar ao leitor o prazer de descobri-los por conta própria, ao longo da leitura do livro.

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Desde que me tornei psicanalista, meus únicos

mestres foram meus pacientes. Muitos analistas me

nutriram, muitos me construíram, mas nunca erigi

nenhum deles como mestre de pensamento.

Fico feliz por não ter discípulos...

No entanto, ele possui uma bússola muito bem calibrada, que lhe permite navegar tanto por mares freudianos, quanto apreciar (e avaliar) os cataclismos kleinianos, as profundezas das cor-rentes ferenczianas e as mudanças de paisagem nas praias winnicottianas. Sua envergadura lhe permite, inclusive, colocar em questão a máxima postulada por Bion: “É verdade que o analista pode ser sem expectativa, nem desejo?”. Atravessa, assim, países e línguas para dialogar com os seus co-legas de profissão. Um espírito livre, no melhor sentido do termo.

En marge des nuits é um conjunto de crônicas, muito bem escritas, às vezes irreverentes, às ve-zes tristes, mas que mantêm, o tempo todo, co- mo uma constante, o bom humor. A versão bra-sileira do livro, que ora lhes chega às mãos: À margem das noites, constitui uma excelente tradu-ção realizada por Lidia Rosenberg Aratangy, pre-senteando o leitor de língua portuguesa com mais

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esse magnífico livro de Pontalis (cuja obra, aliás, é muito menos traduzida para o nosso idioma do que deveria ser). Escrito como a contra- parte do seu congênere: En marge des jours (também traduzido por Lidia e lançado por essa mesma editora, com o título: À margem dos dias), En marge des nuits diferencia-se desse primeiro livro por seu colorido afetivo mais escuro, mais enigmático, mais soturno. Destila temas que pertencem aos mistérios da noite, como os sonhos, a proximi- dade da morte, as estranhezas do envelhecimen-to, mas que, por vezes, também atravessam a escuridão e se iluminam pela luz do dia, como os medos diurnos ou a felicidade e a calma pro-duzidas por um lugar tranquilo, capaz de nos revelar “a doçura das coisas”.

Na leitura deste livro, o leitor certamente perceberá, dentre outra coisas, quanto sarcasmo e sagacidade Pontalis exibe, ao definir a dinâmica secreta do deprimido, na seguinte passagem:

A vitória do nada esmaga o deprimido.

Talvez lhe reste um recurso. Desde que ele está

excluído dos vivos, ele pode, por sua vez, excluir

aqueles que se gabam de estar vivos. Não haverá no

fundo do deprimido, um ódio secreto?

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Também, certamente, será afetado pelo hu- mor psicanalítico do autor em relatos como es-te, de uma viagem de trem, envolvendo a sua vizinha, do outro lado do corredor:

Dez minutos antes da chegada, ela abre um livro

grosso, cujo título indiscretamente leio: De Freud a

Lacan: du roc de la castration au roc de la structure

(De Freud a Lacan: do rochedo da castração

ao rochedo da estrutura). Logo começa a bocejar.

Efetivamente, dar de frente contra uma rocha depois

da outra não deixa espaço para o sonho...

Também é provável que fique impressio-nado pela bela sabedoria de que ele nos dá mos- tra, ao diagnosticar por que uma velha senhora não pode esperar, em uma farmácia, que os re- médios prescritos pelo seu médico fiquem prontos. Ela alega que precisa ir à estação buscar o seu filho, que chama de “meu menino”.

“Meu menino”. Creio que não é apenas porque seu

filho, mesmo crescido, continua sendo seu menino

que ela o chamou assim. Ela queria ignorar, por meio

dele, a inexorável passagem do tempo. O menino

permite que a velha senhora se esqueça, ao menos

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no momento em que se prepara para encontrá-lo, de

sua extrema fragilidade. É o remédio que o médico

deixou de lhe receitar.

Para encerrar, podemos perguntar agora, qual é esse tão falado mistério da noite, que contamina as suas margens e que fascina tanto o escritor que delas se apropria, na sua narrativa. Pontalis responde: “Proust escrevia durante a noite, em um quarto fechado. A noite dilata a memória até torná-la infinita”.

Segredos de psicanalista...

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1. De olhos fechados ........................................................................... 132. Desordem no sótão ......................................................................... 153. Adeus ao Discurso ........................................................................... 214. Fúnebre balanço .............................................................................. 255. Divergência com Epicuro ................................................................. 276. Mousse ............................................................................................ 317. Passagem por Bruxelas .................................................................... 338. Lento progresso em direção ao desaparecimento ......................... 359. Bilhete de ida ................................................................................... 3910. Próximo e distante ......................................................................... 4111. Mau pensamento ........................................................................... 4312. Um mau dia .................................................................................... 4513. Paris nas trevas .............................................................................. 4714. Quando a noite deixa de ser romântica ........................................ 4915. Com que eles poderiam sonhar? ................................................... 5116. Separar-se de si mesmo ................................................................ 5917. A vizinha do T.G.V.* ....................................................................... 6118. Consertar a máquina ..................................................................... 6319. O pulo ............................................................................................ 6520. Objetos Pedidos ............................................................................ 67

Sumário

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21. Elas envelheceram ......................................................................... 6922. A torrente subterrânea .................................................................. 7123. Dispersão ....................................................................................... 7324. Pedir perdão .................................................................................. 7725. Estonteante beleza de um sonho ................................................. 7926. O que faço aqui? ........................................................................... 8327. A resposta é não ........................................................................... 8528. Ego scriptor ................................................................................... 8929. Quando sonhar cansa ................................................................... 9330. O turbilhão das palavras ............................................................... 9531. Ver em pintura ................................................................................ 9732. A carícia ......................................................................................... 9933. Vozes que ressoam ....................................................................... 10134. Palpar ............................................................................................ 10335. O gosto do nada ........................................................................... 10536. O fim dos fins ................................................................................ 10737. O alto e o baixo ............................................................................. 10938. A velha dama e seu filho ............................................................... 11339. “Um lugar onde eu não esteja” ..................................................... 11540. Sartre diante de Descartes ............................................................ 11741. A luz da noite ................................................................................ 11942. A espessura do tempo ................................................................... 12343. Voltar sobre os passos de quem? .................................................. 12744. Pesadelo diurno ............................................................................. 13545. Batismos ........................................................................................ 13946. Decepção, traição .......................................................................... 14347. A fábrica ......................................................................................... 14748. “Esse sei lá o quê” ........................................................................ 15549. Alice e Norbert .............................................................................. 161Notas do autor .................................................................................... 163

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Para Alice

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When most I wink, then do mine eyes best see,

For all the day they view things unrespected;

All days are nights to see till I see thee,

And nights bright days when dreams do show thee me.1

Intensa visão onírica, que nos dá a sensação de uma presença imediata, à qual não temos acesso quando estamos de olhos abertos.

Estranho poder dos sonhos: mesmo que sejam desprovidos de cores, conseguem colorir nossos dias.

É à pessoa amada que Shakespeare se dirige. Mas o que ele diz é verdadeiro para tudo o que surge

1. De olhos fechados

1 Shakespeare, soneto 43.

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do noturno “pais anterior”.Precisamos da ausência para que nos seja

restituída a plenitude da presença?

Le songe qui m’invente a les yeux grands ouverts

Et je ferme les yeux pour regarder le monde2

2 O sonho que me inventa tem os olhos bem abertos e eu fecho os olhos para enxergar o mundo. (Claude Roy)

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Eu ignorava, ao querer colocar um pouco de ordem na desordem amontoada durante anos no cômodo sob o sótão que me serve de escritório em Boissy – onde, quando está aberta a janela em forma de meia-lua, encontro-me quase no nível do cimo das árvores – sim, eu ignorava o que me esperava quando comecei a abrir caixas, dossiês, fichários mal classificados, valises empoeiradas. Cartas, fotos, manuscritos da juventude, anotações de cursos que ministrei por aí, o curso que Sartre deu no Liceu Pasteur, cadernetas escolares, dissertações, restos de papéis rabiscados, papelada de todos os tipos, velhos recibos de aluguel, lista dos artigos do tio Eugene, faturas detalhadas do marceneiro pendura-das em um prego, propaganda eleitoral de um bisavô que foi candidato a deputado, a condecoração do

2. Desordem no sótão

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meu pai: uma bagunça na qual todas as épocas se misturam e se chocam.

Aqui estou eu totalmente desorientado, como que tomado por um passado que está a ponto de me devorar. Mas não é o meu passado: estão aí apenas farrapos de um tecido, restos estranhamente conser-vados, apesar dos deslocamentos de cidades, de lugares, das mudanças de casas.

Sinto-me transportado para dentro de um so-nho, um desses sonhos que franqueiam o tempo, mas também te deixam apenas com restos de um tecido rasgado cujas cores empalideceram; apenas fragmentos cujo sentido te escapa, embora tratem de ti mesmo e de pessoas que te foram próximas, mas das quais esqueceste até o nome, é isso que, nessas folhas esparsas, às vezes até ilegíveis, indecifráveis, como se tivessem sido banhadas pela chuva noturna de um tempo passado, perturba-te, transtorna-te, provoca-te vertigens, a ponto de não saberes mais qual é tua identidade, sequer se tens alguma, torna--te incapaz de diferenciar o que é do presente ou do passado, da memória esquecida ou do sonho que revela, e te faz gritar com as palavras que Guy Goffette3 empresta de seu amigo, o poeta Paul de

3 Poeta e escritor belga, nascido em 1947.

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Roux: “Minha vida, onde estás?”

Quando eu era muito jovem, fui tomado pela ideia – da qual é testemunha um pedaço de papel saído da valise empoeirada – da unidade da vida, como se eu pressentisse que minha vida viria a ser descontínua – o que ela efetivamente foi durante anos. Houve um tempo de efervescência sobre um fundo de tristeza, quando me acreditei poeta, quando quis, sem ter conseguido, escrever romances; houve um tempo em que me acreditei marxista, outro em que me acreditei filósofo. Felizmente, nunca me to-mei por psicanalista, o que talvez me tenha permitido vir a sê-lo.

Surgem de uma pasta, como se tivessem acaba-do de chegar, cartas de Max Jacob datadas de 1942. Max, que fui encontrar em Saint-Benoît, depois de embarcar minha bicicleta no trem para Aubrais, pa-ra em seguida montar nela. Do que podíamos falar por tantas horas? Um pacote de cartas de M., que acreditei que não me amava, mas cujas cartas provam o contrário – mas são apenas cartas... Cartas de meu irmão, que parecem declarações de amor – mas en-tão por que mais tarde me transformei em objeto de seu ódio? Da minha mãe, cheias de afeto por mim, a mim que a acreditava indiferente. E mais, e mais,

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outro cartão, outras mensagens: do jovem Pierre Nora4, de André Fermigier5, uma de Pierre Moinot6, uma carta calorosa de Giono7, que me levou a ler Un de Baumugnes8, algumas cartas de Merleau-Ponty... Quais guardar? Quais jogar fora?

Interrompo minha busca por um instante, mas não consigo me impedir de retomá-la febrilmente. Agora são fotografias, essas também bagunçadas: as fotos das classes da escola, ano após ano, aquela de M.-C. posando para uma revista de moda e, sur-presa!, fotos de atrizes de cinema propícias aos amores imaginários: Katharine Hepburn, Micheline Presle, Mireille Balin, Viviane Romance. Entre elas se meteu uma de Michel Leiris9, totalmente sinistro. De repente, aparece – outra surpresa – uma fotografia de Guillaume com um ano, todo loiro, risonho, em-poleirado nos meus ombros. Qual dos dois está mais feliz? Eu, por ter um filho? Ele, por ter um pai?

Ainda não terminou. Eis que emergem meus

4 Historiador francês, nascido em 1937, conhecido por sua obra sobre a identidade e memória da França.

5 Escritor francês nascido em 1923 e falecido em 1988, especialista em His-tória da Arte.

6 Romancista francês, membro da Academia Francesa, nascido em 1920 e falecido em 2007.

7 Romancista francês nascido em 1898 e falecido em 1970. 8 Romance de Giono, publicado em 1929 (sem tradução para português).9 Antropólogo e escritor francês, nascido em 1901 e falecido em 1990, mem-

bro do movimento surrealista.

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romances inacabados. Alguns têm apenas o título, O Dia e a Noite (já!). Outros, como Une vie d´Hildegarde, preenchem um caderno inteiro (jogar fora!). Eu devia ter escrito outro, ao ter perdido aquele, mas desisti ao descobrir essa carta datilografa de Raymond Que-neau10: “Li Les Dimanches illustrés e gostaria de con- versar com você. Você poderia passar quarta-feira, 2 de dezembro, por volta das 17 horas, na Rua Sé-bastien-Bottin? Mas gostaria desde já de demovê--lo da esperança de uma possível publicação pela Gallimard”– e, acrescentadas a mão, essas palavras: “por esta vez”.

Que incrível atrevimento o meu! Com dezoito anos, encaminhar, sem o menor escrúpulo, um ma-nuscrito à sacrossanta N.R.F.11!

Que mais, na minha colheita? Um argumento de filme, uma novela escrita às pressas, “Le Bizuth Calypso”. E numerosos poemas: alguns imitando de- sajeitadamente a poesia de Valéry, que queria imitar Mallarmé; outros intitulados “Prosas Poéticas”, que reli com prazer. Jogar fora? Não, vou guardá-los, me dizendo com um sorriso: para o caso de algum dou-

10 Romancista francês nascido em 1903 e falecido em 1976, editor da Ed. Gallimard, conhecido por seu romance Zazie no Metrô, publicado em português pela Ed. Cossac-Naif.

11 Nouvelle Revue Française – revista literária editada pela Gallimard.

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torando corajoso se interessar por minhas obras completas!

Bom, agora basta. Faço um esforço para voltar, para reencontrar o presente. Tenho uma urgente ne-cessidade de dar um passeio por uma floresta que não seja de papel e que não me lembre de nada.

A valise empoeirada pode esperar.