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À margem dos dias - J. B. Pontalis (1º capítulo)

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À margem dos dias - J. B. Pontalis (1º capítulo)

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É um prazer a oportunidade de descobrir e prefaciar estes “fragmentos”, anotações fei-tas por Pontalis em um caderno “à margem dos dias” – oportunidade esta propiciada pela curiosidade, bom gosto e paixão pelo texto da amiga, psicoterapeuta experiente e, no caso, tradutora competente, Lidia Rosenberg Aratangy.

Os fragmentos são reflexões, ou melhor, Memórias-Sonho de um filósofo-escritor-psica-nalista atuante e produtivo, expressas com a liberdade e autoridade que a sensibilidade, inte-ligência e maturidade lhe conferem. Quando jo-vem, encarou o desafio de fazer o “Vocabulário de Psicanálise”, obra estritamente conceitual, desenvolvida em parceria com Jean Laplanche, sob a orientação de Daniel Lagache (1967); logo se afastou da expressão conceitual e se aproxi-mou da literária. E hoje temos, em português, esta obra, na qual os conceitos psicanalíticos,

Prefácio

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introjetados e na base das apreensões do autor, refletem uma formação sofisticada ao lado de uma riquíssima experiência. Pontalis enfatiza justamente a força e sentido da experiência, a importância de não a trair nem negligenciar em sua relação com as teorias.

O leitor encontrará comentários reflexivos sobre fatos da Vida e da Morte, sobre leituras, sobre lembranças de viagens, sobre a relação entre linguagem e comunicação, e ainda sobre senescência, dor, realidade, formação e função psicanalítica, feitos por um psicanalista excep-cionalmente informado e formado em contato íntimo tanto com a clínica como consigo próprio. Um homem sábio, por volta dos 80 anos, se havendo, inexoravelmente, com uma questão vital: “Como considerar a morte ao mesmo tem-po certa e improvável”?

Quanto à prática psicanalítica, encontramos referências ricas e atuais, destacando-se a consi-deração de que o essencial da Psicanálise é o Desconhecido, com ênfase na experiência e na possibilidade de pensá-la; aproximação entre sonho e pensamento (como oriundos da mesma fonte); a memória, concebida como construção

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e não como registro fidedigno; a interpretação, como “relâmpagos que cortam a pesada massa de nuvens que incendeiam o céu noturno”; a perplexidade como mais desejável (e real) do que as certezas; e finalmente indagações so-bre a função analítica, isto é, as dificuldades vividas pelo analista que só pode exercer a psicanálise tendo como instrumento sua própria personalidade.

Lembra-nos do “básico humano do analista que não o diferencia das pessoas comuns ou dos analisandos”, a não ser no compromisso e responsabilidade de exercer uma ética voltada para “nunca fazer nada que possa reforçar a submissão dos pacientes, sua dependência, so-bretudo se voluntária”. Ao analista ainda, deixa a recomendação de tentar se afastar de toda dependência em relação às teorias, a começar pela própria.

Trata-se de uma boa recomendação, porém é impossível, a meu ver, isentar-se das teorias em nossas formulações. Existem as bem esta-belecidas e identificáveis dentro de um referen-cial e as que têm sua origem em modelos, mitos, literatura, experiências pessoais, crenças etc...

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O importante talvez seja tê-las introjetadas, principalmente as que nos brindam com um modelo de funcionamento mental, e não usá- -las como uma chave para decodificar o outro, saturando prematuramente o desconhecido e a singularidade da experiência.

Nos “fragmentos” em questão, percebemos o Édipo ou, melhor dito, a relação com os pais como estruturante da personalidade, a consi- deração da dualidade instintiva (vida e morte), ou seja, a admissão da sexualidade e da destru-tividade como parte do humano demandando administração constante, o Inconsciente expres-so exitosa e poeticamente por Paul Valéry na epígrafe “alguma coisa acontece em uma região de mim da qual estou ausente”.

Estes são, a meu ver, os elementos que real- mente identificam os psicanalistas. As linhas teóricas não se explicitam pela adesão ou pre-ferência por tal ou qual autor, e sim pela adesão aos princípios centrais da Psicanálise e a forma de operar com eles.

A psicanálise é de fato uma prática estra-nha, baseada em teorias sofisticadas, que, no final das contas, se traduz em uma conversa de

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preferência coloquial e íntima sobre a vida real. Encontrar este caminho na escrita e publicação psicanalíticas é não só desejável quanto necessá-rio para que a difusão transmita algo do que realmente se trata.

“À margem dos dias” se enquadra nesta vertente de escrita psicanalítica, além de difun-dir em português um psicanalista francês de relevância inquestionável. A realização é muito bem-vinda, e tanto um leitor da área “psi” quanto um leigo interessado desfrutarão, sem dúvida, dos conteúdos aqui apresentados em um estilo mais literário do que científico, que nada, no entanto fica a dever ao científico.

Evelise de Souza Marra

Membro Efetivo da SBPSP

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Alguma coisa acontece em uma região de mim da qual estou ausente.

Paul Valéry

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Há cerca de vinte anos, Pierre Nora teve a ideia de pedir a alguns historiadores de renome que se fizessem historiadores de sua própria história. Dessa ideia nasceu um livro: Essais d’ego-histoire. Muitos dos autores declinaram do convite, reticentes diante do que lhes pareceria um indecente exercício de auto-análise. Outros fizeram simplesmente um relato da sua trajetória profissional. Os que aceitaram as re-gras do jogo adotaram uma postura de historiador: discreta evocação da infância e das figuras dos pais, descrição precisa do ambiente familiar e social, do meio geográfico e cultural. Reconstruíram a própria história como teriam, ou tinham, feito com qualquer personagem que tivessem encontrado em função de suas pesquisas históricas – conduzidas em um período determinado, sobre uma região, um vilarejo ou uma classe social. Mesmo quando se trata de si, é preciso manter-se ao objetivável: pudor ou respeito por um método que exige provas e exclui o “subjetivo”?

Um único colaborador se arriscou a ir mais lon-

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ge. As primeiras palavras do depoimento de Pierre Chaunu têm o tom de um Michelet: “Sou historiador porque sou filho da morte, e o mistério do tempo me assombra desde a infância […] Por muito tempo acreditei que a memória servia para lembrar-se, agora sei que ela serve, sobretudo, para esquecer. […] No começo, era a morte, no começo era o es-quecimento.”

Por que é assim difícil, talvez mesmo impossível, encontrar, e mais ainda relatar, o trajeto que nos levou a ser historiador? Ou psicanalista? Creio que já citei, em algum lugar, as palavras de um escritor: “Nós nunca estamos no lugar em que tivemos início.”

Só a própria análise revela o que levou uma pessoa, obrigou-a, a empreender uma análise, para além da demanda consciente que a motivou a pro-curá-la. Mas permanece obscuro o que leva alguém a se dedicar à psicanálise, essa prática estranha, com uma finalidade tão pouco social. Profundo silêncio, nada além de: “Pude avaliar os limites da psiquiatria, da psicologia, percebi o que há de imaterial na filo-sofia”, etc. Mas onde estão as fontes infantis? Que destino elas terão conhecido?

É bem possível que também a memória dos psicanalistas lhes sirva principalmente, como diz Chaunu, para esquecer. Eles, no entanto, os “es-

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pecialistas” da memória viva. De que morte, de que mortes eles serão filhos? Contam-se às centenas os livros sobre a origem da psicanálise, sobre sua con-turbada história. Mas não conheço nenhum sobre a história subjetiva de um psicanalista – para não falar de um registro autobiográfico. Freud, pouco incli-nado a confidências, revelou mais de si que qualquer de nós.

Debato-me desesperadamente na redação de um texto que prometi. No que fui me meter? É sem-pre a mesma coisa. As duas ou três primeiras páginas me vêm facilmente, depois já não sei mais para onde ir, nem mesmo se vou a algum lugar, risco o que escrevi, começo de novo, paro, desencorajado: “Parti de uma ideia falsa, que não vai me levar a nada, não vou conseguir, melhor desistir.” Consegui realizar inúmeros projetos de livros, de artigos, nada funciona, porque nada é adquirido nessa área, tenho de recomeçar do zero, com a angústia de chegar… a nada. O cúmulo: quantas vezes me disseram: “Que sorte você tem de ter essa facilidade para escrever!”

Agitação no local. Se uma câmara o filmasse, ele

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apareceria sentado à sua mesa de trabalho; começa fazendo anotações, acende um cigarro, consulta um livro atrás do outro, corta as unhas, limpa as lentes dos óculos, levanta-se, dá alguns passos na sala, vol-ta à sua cadeira, retoma as anotações interrompidas, abre a agenda, observa a chuva cair, crê agarrar uma ideia ao voo, para perdê-la em seguida. Alguns versos lhe vêm à cabeça: “Borboleta do Parnaso e, como as abelhas, passo de flor em flor e de um objeto a outro.” Ele acrescenta: “Se ao menos fossem flores!” E conclui: “É terrível esta falta de concentração.”

É como se ele quisesse ao mesmo tempo agarrar um objeto e convencer a si mesmo – e a mim – que aquilo que quer prender só pode lhe escapar. Ele conheceu inúmeras mulheres e não pode segurar nenhuma delas. Será ele ou serão todas as mulheres “seres de fuga”? Imita sua mãe, que me descreveu como uma “mulher volátil”, uma encantadora bor-boleta?

Annecy. Colóquio “Sobre a obra de J.- B.Pontalis(!!)” Uma plateia muito receptiva, “debatedores” que co-nhecem melhor que eu tudo o que pude escrever ao longo do tempo – eu estava perplexo. Não é fácil responder de pronto, de improviso, a intervenções

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tão fechadas, tão precisas. Meu “narcizão”(de M’Uzan certamente percebeu a ressonância dessa palavra, bastante vilã, com bebezão) sente-se preenchido. Narcísico ou não, eu não desprezo meu prazer. Pressinto que ele não vai durar muito. O bebezão será insaciável?

Isso acontecia no Imperial Palace, notável hotel estilo 1900 que me lembra o Grand Hotel de Cabourg-Balbec: eu, criança, andava na frente, quando passeávamos pelo dique, de um lado para o outro. Quarto grande, no sexto andar, com vista para o lago. Paradoxalmente, não consegui conciliar no sono, repetindo-me: “Como me sinto bem, como me sinto bem!” Seria essa uma maneira de conjurar a ansiedade que precede uma apresentação pública? No entanto, conscientemente eu não estava ansioso, mas contente por estar lá.

Talvez eu estivesse ao mesmo tempo lá, em Annecy, e em Nova York, de onde eu tinha voltado poucos dias antes. Em minhas horas de insônia, desfilavam imagens da Nova York. Na maior desor-dem: Ellis Island, Between Fear and Hope, emoção forte; a travessia a pé da Brooklyn Bridge, sob um calor abrasador (não fui muito longe). As centenas de quadros vistos nos grandes museus – MoMA, Metropolitan – e nos menores, que me agradam

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mais (Whitney, principalmente a Frick Collection); os leilões, chique a não poder mais, na Christie’s, para os quais K. me empurra e onde uma tela de Caillebotte atinge um preço astronômico; o jardim reservado exclusivamente aos cães; o pequeno ce- mitério antigo, sobrevivendo – se podemos usar essa palavra – entre os prédios; as limusines de dez metros de comprimento e os caminhões com focinhos enormes; o ônibus que leva mais de uma hora para mal atravessar uma quarta parte da cidade; a igreja batista no Harlem; Deus, My Lord, é com certeza negro (eu estava prestes a me con-verter); o musical Kiss me Kate (eu deveria ter sido cantor, bailarino, acrobata); os motoristas de táxi de todas as nacionalidades, mas aqui isso não significa ser estrangeiro, não existem americanos “de berço”; a Grand Central Station, grandiosa proeza arquitetônica que nos transforma em formiguinhas agitadas; a multidão apressada, esmagadora, que anda pela Broadway; o amigo de K., um advogado de negócios quase sempre deprimido, que paga a seu psicólogo duzentos dólares por sessão. Sim, todas essas imagens e muitas outras cruzam-se na minha cabeça e diante de meus olhos de insone, em total contraste com a calma do lago tão próximo.

Excesso de estimulação produzida por essa

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cidade gigantesca. Será possível encontrar a calma em Nova York, que parece devotada a uma atividade incessante (mesmo dentro do Central Park, as pes-soas correm, pedalam…)? Será possível praticar aí a meditação filosófica? É possível ser psicanalista, nessa cidade?

Hopper terá desvendado o que o “dinamismo” americano encobre? Uma solidão extrema, o espaço vazio entre os humanos e dentro de cada um?

Creio que o que mais conservo, das trocas do colóquio, é, mais que o conteúdo, a própria troca, uma livre circulação de palavras. Ninguém se escondia atrás de uma blindagem conceitual. Também não havia reações simplesmente para marcar presença. Nenhum dos meus interlocutores procurava se auto-promover, estavam todos firmemente engajados no encontro. Em resumo, foi atendido meu desejo de que esse encontro não parecesse um congresso, mas uma conversa, onde pudessem coexistir leveza e seriedade, riso e emoção.

Le Clézio, prefaciando em 1967 Les Chants de Maldoror, observa: “Maldoror é o símbolo da rebelião contra a ordem estabelecida, do brado contra a linguagem-prisão”, e acrescenta: “Mas nada além de

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um poema de colegial, a dissertação apressada de um estudante sem criatividade”

Indo um pouco mais longe, ele revela aí a contradição em que muitos outros incorreram, mes-mo sem se dar conta: a revolta contra a “linguagem--prisão”, suas regras, sua sintaxe, a ordem que ele supõe, pode ter o efeito de reforçar a retórica. Ao ler a bela prosa de Breton, posso ouvir Bossuet.

Como seria possível recusar a tirania da lingua-gem sem a valorizar? Yves Bonnefoy, que admiro, e que procura mais intensamente que qualquer outro uma presença que a deficiência essencial das pala-vras não permite atingir, pois nem ele escapa de certa solenidade oratória.

Daí me vem tantas vezes o desejo, sem dúvida absurdo, de encontrar uma escrita sem ornamentos, uma escrita pobre.

Os pacientes que se expressam bem, que falam como se escrevessem, com uma linguagem impecá-vel, com um vocabulário escolhido, parecem-me usar a palavra como um manto para esconder a pobreza. Eu espero até que as palavras lhes faltem. O resto virá em seguida.

“As palavras de nossos discursos cotidianos são

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apenas uma pálida magia” (Freud). Talvez mais valha que seja pálida: o poder mágico das palavras pode ser devastador. Júbilo de Hitler quando descobre, em 1919, em uma cervejaria de Munique, como a palavra pode fascinar uma plateia: “Confirmou-se aquilo de que sempre desconfiei: eu sabia falar.” Mais tarde suas eructações contribuíram para transformar um povo em uma massa, que tinha uma única voz, a do Führer. Veja-se o filme de Leni Riefenstahl Le Triomphe de la volonté e o comentário de Primo Levi: “Quem viu no cinema os diálogos de Hitler com a multidão, assistiu a um espetáculo assustador. Havia uma indução mútua. Hitler respondia à reação que ele pró-prio provocava.”

Quando abro qualquer página dos Fragmentos de Novalis, diante do que me encontro? De lampejos que atravessam e iluminam o pensamento em uma velocidade incrível. É como se o Rimbaud das Ilumi-nações, o Vinci dos Carnets, o Valery dos Cahiers, como se o vivo da inteligência, o brilho poético, a infinita curiosidade pudessem se juntar, formando um único objeto.

Esses fragmentos se opõem à ideia de sistema, até mesmo de obra. Desmentem a ilusão de uma

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“totalidade bela” – a menos que cada fragmento pu-desse valer por um todo.

Novalis se coloca o mais perto possível do produto do espírito, ele se atém ao momento do nascimento, do brilho da ideia que jorra, diretamente, nas palavras, com a mais extrema urgência de ser dita. Nada de fazer esperar essa ideia, essa imagem, essa sensação – que surgiram não se sabe de onde, sem aviso prévio, despencaram sobre você e agora exigem debutar imediatamente, doa a quem doer.

Freud analisou laboriosamente – é seu livro mais tedioso – a “técnica” do chiste, do Witz, enquanto Novalis é o próprio Witz, o rojão, a centelha, o grão de pólen que o vento transporta.

Às vezes, as interpretações do analista, quando não procuram nem explicar nem compreender, são como relâmpagos que cortam a pesada massa de nuvens, clarões que incendeiam o céu noturno.

“A gente acaba se cansando de escrever coisas que não existem para pessoas que não existem.” Flannery O’Connor diz aí o que, imagino, deve ator-mentar e desanimar os romancistas. No entanto, é ele quem mais se aproxima das “coisas que existem”, e, se atinge leitores desconhecidos, também pode

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lhes revelar sua parte desconhecida. À sua maneira, o psicanalista está próximo do romancista, mas uma análise não saberia converter-se em romance. Entre ambos há mais que uma diferença: há uma antinomia.

O romancista, mesmo que recuse a narração li-near, mesmo que ambicione modificar o idioma para torná-lo próprio, continua sendo um narrador e tem de se fiar naquilo que as palavras escritas podem transmitir. Uma análise não se narra, uma análise tem um compromisso com a linguagem oral e resiste à escrita. Ela é uma boca que se abre.

“Cadernos privados”: privados de quê? De início, associei privado a íntimo, destinado apenas a mim. Há algum tempo, comecei a perceber outro significado. Constato, não sem alguma decepção, que aquilo que confio ao meu caderno (formato grande, escrita minúscula, quase ilegível) permanece quase sempre na superfície das coisas. São anotações escritas com pressa, ao correr da pena, nada elaboradas, privadas da densidade que somente o trabalho poderia even-tualmente lhes conferir. Trabalho, para mim, não significa esforço (jamais fui um trabalhador que es-cava obstinadamente sulco por sulco, jamais um estudioso, um “caxias” como dizíamos no colégio),

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mas evoca sobretudo o trabalho do sonho, o trabalho do luto, aquele que opera por dentro de nós sem que percebamos. No entanto, a escrita espontânea não é o meu forte. Às vezes, ainda assim, encontro em meus cadernos os germes do que mais tarde, em geral muito mais tarde, tomará a forma de um artigo, inspirará o projeto de um ensaio ou de uma palestra.

O que registro neles: o menos possível de queixas (há uma tendência dos diários íntimos de ser apenas uma sequência de queixas), o menos possível dos meus humores do dia (“dormi mal”, “acordei com uma rouquidão humilhante”, “tenho um desânimo total”; “uma febre estranha”; etc, como um resumo do boletim meteorológico da alma). Na maioria, ideias recolhidas por aí, vindas do divã, de um encontro, uma leitura, esboços de projetos. Uma espécie de “livro de pensamentos”, ou um balanço dos dias, com longos intervalos. Registro tudo isso como um viajante que confia sua valise ao guarda- -volumes, para evitar que ela se perca ou seja rou-bada, esperando a partida do trem ou o barco que o levará, assim ele espera, para longe de casa. Mas mesmo assim ele não quer perder sua valise…

Eu me lembro que, quando comprei o primeiro desses cadernos, há uns dez anos, eu tinha uma intenção bem precisa: montar uma espécie de agenda.

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Eu invejava uma paciente que, sem dificuldade, podia situar e datar cronologicamente os menores fatos de sua vida. Era uma memória viva, que não se limitava a registrar. Situar no tempo trazia de volta para o presente, e para meu uso, (a lembrança não estava privada de um ouvinte, um destinatário) os lugares, rostos, emoções, sensações, todo um universo.

Fico constrangido por não ser capaz de me lem- brar o que fiz em determinado ano, onde teria pas-sado as férias, quando conheci determinada pessoa. Como assim? Um ano apaga o precedente, um dia apaga o anterior! Agora é mais simples: quando me deparo com um dos meus inúmeros brancos de memória (prefiro branco a buraco), abro um dos meus cadernos e encontro a resposta. E, como mi-nha paciente, reencontro o sabor de um verão, o nascimento de uma amizade, a perda de um amor, as preocupações que me torturavam (hoje me pergunto por quê…).

Aonde isso me leva? Não sei. Talvez sirva apenas para me assegurar que há certa continuidade em minha vida, uma frágil permanência do “eu” através dos anos. Talvez assim algumas migalhas do tempo perdido me sejam, por um instante, devolvidas.

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Em contradição com o que acabo de escrever: não datar os fragmentos. Para mim, eles estão à margem do tempo que passa, da corrente do tempo. Mesmo quando evocam uma circunstância, um re-encontro, uma leitura de outro tempo, essas circuns-tâncias, reencontros, leituras fazem parte do meu presente.

Retiro esses fragmentos das margens da minha memória, ela mesma fragmentada, lacunar, para levá--los não ao centro – ninguém tem um centro, ou ao menos esse centro não é encontrável, pois não ocu-pa nunca o mesmo lugar – mas para que venham à luz do presente vivo.

Escrever é querer reencontrar esse tempo em que, ao sair da infância, procurávamos febrilmente, repetitivamente, uma assinatura, testando uma após outra em uma folha de papel: uma assinatura que marcasse para sempre nossa identidade nessa época em que ela era tão incerta. Como confirmá-la a não ser depois de mil tentativas de encontrar sua as-sinatura, uma marca que fosse exclusivamente sua?

“Eu confirmo e assino”: assino minha confir-mação. Meu sobrenome foi herdado. Meu nome foi escolhido por meus pais. Mas sou o autor da minha

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assinatura.Jean Paulhan, em uma atitude que acredito um

tanto provocadora, propôs que os livros saíssem sem o nome do autor. Ninguém assumiu essa utopia.

Supervielle: para mim, seu nome rima com merveille. Sua arte de transformar insensivelmente a realidade em poesia, o mineral em volátil. Com ele, o leitor muda de elemento. Sente-se mais leve sem, no entanto, esquecer, como Supervielle, a persistência da dor da criança.

A análise favorece esse movimento, essa muta-ção, quando as palavras conseguem decolar, libertar--se daquilo que acreditam designar: aquilo e nada mais.

As palavras do deprimido são pobres – ele sabe, e sofre por isso. Elas não chegam sequer a expressar seu sofrimento; em vez de traduzir, refletem o so-frimento. Nada lhe diz nada, essa é sua queixa. Mais doloroso ainda do que a impotência da fala, do que a inapetência generalizada é a constatação de que o mundo mergulhou no silêncio: está, como ele, desesperadamente mudo. Dar a palavra às árvores e aos pássaros (é mais fácil), ao vento e às pedras (mais difícil), tornar essa palavra volátil quando ela

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fica presa ao solo – é o que consegue um poeta como Supervielle-merveille, é isso que me faz confiar nos frágeis poderes da análise. O psicanalista não é um poeta, longe disso, mas pode ocorrer que, por seu intermédio, o que indevidamente denominamos “as coisas” ou “o mundo exterior” venha a ser, mais intensamente que nós, uma palavra viva.

J., como todos nós (talvez um pouco mais), tem necessidade de ser amada. Ela ao menos reconhece essa necessidade, sofre por ter de satisfazê-la a cada dia, por procurar continuamente por provas de amor.

Ela acaba de publicar um livro que foi bem recebido, coberto de elogios pela crítica. Mas jamais um texto lhe dirá: “Como te agradeço por me teres feito tão belo e inteligente! Com que amor te olho!” Um livro, esse filho, não te diz nada, não te olha. Ele te é alheio, indiferente.

G. em seu quarto de hospital, outrora chamado de “Asilo dos incuráveis”… Sorridente, corada: efeito euforizante do oxigênio? Ela sabe que vai morrer um dia desses, me diz, mas gostaria de “aguentar até o Natal” e voltar para casa para morrer. Uma calma, uma ingenuidade natural. Como se nada fosse. E talvez, afinal, a morte não seja nada.

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Quando a deixo, dizendo que voltarei a vê-la na semana seguinte, ela me replica, sorrindo: “Se você me encontrar”, como diria qualquer pessoa a quem se anunciasse uma próxima visita e que dissesse: “Telefone antes de vir, pode ser que eu não esteja em casa nesse dia.”

Missa do funeral de G. Escuto a fala tranqui-lizadora do padre, da qual, de repente, destacam-se essas palavras: “O Senhor destruirá a morte”. Eis uma mudança do discurso habitual: libertação, promessa de vida eterna, radiosa. Não há negação da morte nesse “destruirá”, há a mesma violência da própria morte, que enfim encontra um adversário à sua altu-ra. A morte existe de fato, não é uma passagem, um falecimento. Morte à morte.

Vou procurar na Bíblia – será que tenho uma? – que profeta rebelde ousou ameaçar a morte de destruição.

Por dever de ofício, esse homem está em cons-tante contato com a morte, aquela que vai acontecer, aquela que, daqui a uma semana, um ano, vai chegar. Ela já está em ação. Não se deixa esquecer por muito

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tempo. Para ele, e certamente não apenas por sua profissão, a fronteira entre os mortos e os vivos é das mais tênues. É como se ele a pudesse cruzar de um lado para o outro.

A noite passada, ele despertou tomado por uma crise de angústia próxima ao pânico. Levantou-se, ficou alguns instantes de pé, mas só se acalmou quan-do sua esposa tocou seu corpo. Então ele se sentiu vivo, sentiu-a viva e pode adormecer.

Para ele, o silêncio tem duas caras. Há o silêncio como o que produz a neve, que o angustia, é um silêncio que absorve todos os ruídos da vida. E existe outro de que ele gosta, aquele sem palavras, que lhe permite ouvir o canto dos pássaros, o farfalhar da folhagem. Então ele está ao abrigo de tudo que o ameaça, de dentro e de fora. Até as coisas inertes, até as pedras respiram.

O sentimento de vazio: o mais das vezes, es-se vazio – de pensamentos, de emoções – é um tempo pleno, é medo do informe; pior: medo do caos. Sinaliza o pavor de se confrontar com forças desconhecidas, incontroláveis, que sequer se opõem entre si (como no conflito), mas se entrelaçam selva-gemente. (Eu deveria mergulhar na Theogonia de Hesíodo.)

Sentir-se lançado no vazio é outra história, talvez

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próxima da fantasia de ser enterrado vivo. Terror à ideia de cair fora do mundo. F. (uma criança cuja mãe jogou-se da janela) se representa dentro de um túmulo com uma pequena chaminé que abre para o exterior.

Quando tenho muitos sonhos, e sua marca (não seu conteúdo) permanece, eu me sinto pesado, sem ânimo (nada me anima), como se os sonhos tivessem absorvido toda a minha energia.

Naquela manhã, a inércia também estava no céu. Não é o cinzento do céu que suscita a melancolia, mas sua imobilidade. Fica muito melhor quando as nuvens se movem, quando uma brisa leve faz farfa- lhar a folhagem. Tenho sempre presente, com insis-tência, a dupla mobilidade-imobilidade, vida-morte. Será que isso também me vem da infância, de minha mãe, do apartamento da rua P., daquilo que denominei, no primeiro livro que escrevi, “Concessão à perpetuidade”, inscrição que vi gravada em algumas sepulturas do Père Lachaise, como aquela em que está enterrado meu pai? Um pai que, tenho certeza, nunca deixou de me acompanhar e que eu nunca abandonei.

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Ele sempre começa a leitura do Monde pelo “Carnet”, onde estão os anúncios fúnebres (aqueles que se beneficiam de alguma notoriedade figuram sob a rubrica “Desaparecimentos”, o que faz supor uma partida temporária, mas nos dois casos está ba-nida a palavra morte).

Ganha em todos os lances. Se há mortos mais jovens que ele, é bom: ele tem a vantagem de con-tinuar vivo; mortos muito mais velhos, melhor ainda: ele tem tempo pela frente. Também foi capaz de me dizer, com o erro de um mês, a data de nascimento de todos os seus amigos. Nunca me fala da sua morte, e acho que ele não pensa em outra coisa.

Agora mesmo ouvi um dos meus pacientes me comunicar o que ele acreditava ser uma descoberta: “Mentem e mentem a si mesmos os que declaram que aquilo que os assusta na morte é deixar as pessoas próximas desamparadas: “Que será delas sem mim, que sou seu único apoio? Vão desabar!”. Mentem ainda mais os que, após a morte da pessoa amada – “eu o amava tanto, ele era tudo para mim!” – e se lamentam: “Como posso continuar a viver sem ele? Nunca terei coragem.” Bobagens! Por minha parte, sei que o que me angustia é a perspectiva, a certeza, de estar para sempre separado de mim mesmo. A

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morte é apenas isso e isso me é insuportável: a ideia de que vou me abandonar para sempre.”

Fico perplexo com o que ele afirma com uma força que é rara nele. Eu me digo que ele não está errado, que ele vê com clareza onde preferimos continuar cegos. Depois: “Que cínico aquele cara!” (“aquele” para ficar mais distante dele). Após o que, pergunto-me de onde lhe vem essa necessidade de não se deixar enganar por aquilo que ele denuncia, nos outros, como mentira, hipocrisia. Será que ele nunca amou? Jamais conheceu a dor de ser deixado, abandonado, desamparado, separado? Jamais imagi-nou que se possa morrer de tristeza, ou se recusar à morte … de sobreviver?

Eu me lembrava, no entanto, que ele tinha me procurado depois do que ele chamou de uma ruptura amorosa difícil. Sim, mas o que isso provava? Talvez ele tivesse o coração seco, talvez não tivesse amado mais do que uma expansão de si mesmo. “Amor nar-císico” a gente se compraz em dizer, em oposição ao “amor de objeto”. Seja, mas de que vale essa distinção? Mesmo quando estamos convencidos de que é a outra, a radicalmente outra, que nos atrai nessa mulher, não será uma outra parte de nós mesmos, aquela que recusamos em nós, aquela à qual não temos acesso, que nos fascina e nos atrai?

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Eis que volto a meu ponto de partida: esse homem, decididamente, não está errado. Por mais cansativa, desagradável, penosa que seja nossa con- vivência conosco mesmo, nós não temos verdadei-ramente nenhuma vontade de nos abandonar! De-finitivamente.

Como fazer para considerar nossa morte ao mesmo tempo certa e improvável?

Senescência, palavra não mais utilizada, parceira negativa de adolescência; não um estado, como sugere velhice, mas um processo ao qual nos submetemos e que vincula o humano à ordem vegetal, animal, e o faz dependente das leis da natureza. Como proceder para não ser apenas uma etapa de um processo? Como poderia admitir isso alguém que é louco o bastante para acreditar que é, se não o senhor, o agente de sua vida?

A. não admite. Ela recorre à cirurgia plástica (re-paradora), multiplica as temporadas nos institutos de talassoterapia, procura seduzir homens mais jovens (às vezes até consegue). Recusa-se a ser uma “velha dama” – como minha avó se comprazia em ser, desde os sessenta anos, tão bonita, tão discretamente elegante… – ferrenha vontade de permanecer jovem,

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embora seja a sombra da morte o que se estende sobre a jovem em flor de outros tempos (flores hoje mais do que secas, a essas não falta charme: mur-chas).

Adolescência: tempo de incertezas, ansiosa oscilação entre “tudo é possível” e “nada é possível”, entre “tudo pode me acontecer” e “nada me aconte-ce” ou “nunca vou chegar a lugar algum”: no future.

Senescência: o que pode acontecer, além da morte? No entanto – pude constatar em pacientes muito idosos – não raro a velhice, longe de ser sentida como um declínio progressivo, como uma involução, é vivida como uma renovação; perda das inibições, desatar dos nós que entravam: uma forma de adoles-cência no que esta tem de positivo. Despertar da libido, por pouco que se dê uma acepção ampla a essa palavra, que Freud resgatou da tradição: essa libido migrante tem mais de uma carta na manga, seus objetos são múltiplos, ela ignora a morte.

Desde que fraturou a cabeça do fêmur, ela não sai da cama, as raras palavras que pronuncia são confusas, parece já ausente de nosso mundo.

Mantém, no entanto, certa coqueteria: usa uma camisola de cetim rosa; digo camisola, mas para ela

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não existe a alternância entre dia e noite, pois cochila durante o dia e dorme mal à noite, quando lança gritos que incomodam os vizinhos. Sua velha empregada, que continua a tratá-la de “patroa”, embora tenha pouco serviço, prepara-lhe pratos suculentos que ela não precisa mastigar, como a comida de um bebê. E muitas vezes ela lhe oferece à noite alguns goles de champanhe. E então a velha senhora diz: “É bom.” É o único prazer que lhe resta. Suas últimas palavras, quando a cabeça lhe pendeu sobre a almofada, com uma gota de champanhe nos lábios, foram essas: “É bom.”

Às vezes, quando me encontro em uma fase espe- cialmente favorável, tenho a forte sensação de que estou “na flor da idade”, que meu prazer de viver nunca foi tão vivo, e me deixo levar pela ilusão de que novas possibilidades me estão abertas. Um sentimento que não está em contradição com a percepção, tão difícil de aceitar quanto de recusar, de que o tempo que me resta é, infelizmente, contado (sempre é, digamos melhor que ele é reduzido). De fato, esse sentimento é suscitado por tal percepção.

Dobremos os bocados, antes que nos retirem os talheres!

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Eu a atendi uma vez por semana durante meses. Como ela era reservada, prudente, tão discreta nas palavras quanto nas expressões do rosto, pronta a atenuar com um sorriso qualquer coisa que, no passado ou no presente, arriscasse sugerir sofrimento, pudesse evocar angústia ou desencadeasse um conflito entre suas aspirações – eu a imaginava uma jovem perdidamente apaixonada, um pouco exal-tada. E que vida apagada ela levava atualmente!

O câncer, de que antes ela se considerava curada, se generalizara. Os tratamentos se fazem, a cada mês, mais penosos e agressivos. Eu a vejo definhar. Nós sabemos, ambos, que a morte se aproxima. Muitas vezes o humor nos – digo: nos – faz bem. Ao mesmo tempo em que o câncer ganha terreno, algo como um “amor transferencial”, não declarado e portanto mais ativo, eclode e se desenvolve.

Até o dia em que ela me presenteia com o que ela designa como uma árvore de vida: a imagem de uma árvore, em uma pequena bola de vidro, uma árvore cujas flores são ao mesmo tempo estrelas coloridas.

Será que ela queria me transmitir essa vida que ia abandoná-la e que, desde o início eu tinha tentado lhe insuflar?

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Esse presente foi sua despedida.

Egon Schiele escreveu: “Tudo o que vive está morto.” Ele, que pôde escrever: “O pintor sabe olhar, mas ver é algo mais”, vê a morte no amor, no abraço, vê sobre a carne transparente os feixes de nervos de um corpo dissecado.

A senilidade suscita dois sentimentos opostos: o do desaparecimento de todas as coisas, inelutável e, já prestes a atuar, o do milagre da graça daquilo que surge. Essa conjunção de dois sentimentos – a atração pela morte e a sedução do que acontece aí, oferecido por um instante, precioso: o efêmero – suscita tanto a melancolia quanto a alegria, uma alegria tanto mais viva quanto maior sua fragilidade.