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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DO MOVIMENTO HUMANO
Maitê Venuto de Freitas
A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NO ESPORTE DE ALTO REND IMENTO: PARA ALÉM DO ‘COMO DEVE SER’
Porto Alegre
2015
Maitê Venuto de Freitas
A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NO ESPORTE DE ALTO REND IMENTO: PARA ALÉM DO ‘COMO DEVE SER’
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito para a obtenção do título de mestre em Ciências do Movimento Humano.
Orientador: Prof. Dr. Marco Paulo Stigger
Porto Alegre 2015
CIP - Catalogação na Publicação
Elaborada pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).
Venuto de Freitas, Maitê A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NO ESPORTE DE ALTORENDIMENTO: PARA ALÉM DO ‘COMO DEVE SER’ / Maitê Venutode Freitas. -- 2015. 141 f.
Orientador: Marco Paulo Stigger.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal doRio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Programade Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano,Porto Alegre, BR-RS, 2015.
1. Crianças. 2. Infância. 3. Esporte. 4. GinásticaArtística. I. Stigger, Marco Paulo, orient. II. Título.
Maitê Venuto de Freitas
A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NO ESPORTE DE ALTO REND IMENTO: PARA ALÉM DO ‘COMO DEVE SER’
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito para a obtenção do título de mestre em Ciências do Movimento Humano.
Orientador: Prof. Dr. Marco Paulo Stigger
Banca examinadora:
Prof. Dr. Antonio Jorge Gonçalves Soares..................................... – UFRJ ____________________________________________________
Prof. Dr. Elisandro Schultz Wittizorecki ..................................... – UFRGS
____________________________________________________
Prof. Dra. Fernanda Bittencourt Ribeiro..................................... – PUCRS
____________________________________________________
Orientador – Prof. Dr. Marco Paulo Stigger – UFRGS
___________________________________________________
AGRADECIMENTOS
Um trabalho científico é construído a partir de muitas trocas, debates e reflexões. Por
esse motivo, considero essa dissertação uma construção coletiva. Nessa página, tentarei
expressar a minha gratidão a todas as pessoas que considero também contribuintes dessa
produção.
Gostaria de iniciar agradecendo aos integrantes do Grupo de Estudos Socioculturais
em Educação Física (GESEF). Foi a partir das contribuições desses colegas que consegui
desenvolver as ideias que deram concretude à pesquisa. Da mesma forma, é com muito
carinho que agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Marco Paulo Stigger, por ser, desde o
início da minha graduação, uma grande referência de professor, pesquisador e ser humano.
Minha gratidão estende-se ao clube esportivo Grêmio Náutico União, que abriu as
suas portas com muita receptividade para a realização desse trabalho. Assim como agradeço a
paciência, a confiança e as contribuições da coordenadora de Ginástica Artística, das
treinadoras e das ginastas que colaboraram com esse estudo. Reitero, nessas linhas, o respeito
e a admiração que tenho pelo trabalho desenvolvido por elas.
Também agradeço às queridas amigas que participaram desse estudo com escuta
atenta e palavras de incentivo. Também sou grata pela compreensão e pelo carinho do meu
companheiro, Paulo De Tarso Pillar, pessoa que me ajudou a manter o entusiasmo até o
último momento desse percurso.
Por fim, gostaria de agradecer o amor incondicional, a paciência e o apoio da minha
família, meus alicerces Antônio Ricardo Drago de Freitas, Maria Luísa Venuto de Freitas,
Gabriela Venuto Spadari, Gustavo Spadari, Lucas Spadari e Luísa Venuto de Freitas. O apoio
e a estrutura familiar foram indispensáveis para a finalização desse trabalho.
RESUMO
A iniciação esportiva voltada para o alto rendimento na infância é um tema que gera muitas críticas, dentre as quais destacam-se as afirmativas de que essa prática retira a ludicidade da vida das crianças, o que conduz ao baixo rendimento ou mesmo ao abandono da escola, também causando estresse pelas altas cargas do treino físico e exigências por resultados em competições. Na Educação Física, os estudos sobre essa temática centram-se basicamente em três temas: a busca por talentos esportivos, a crítica ao esporte de alto rendimento e a importância dos pais e treinadores na carreira esportiva das crianças. Esses estudos abordam os aspectos do desenvolvimento físico, psicológico e social das crianças quando envolvidas com o esporte de alto rendimento, e, com isso, diversas sugestões pedagógicas são apontadas. Assim, a partir dessa revisão de literatura, percebo que muito se sabe sobre o que é recomendado ou não para as crianças no campo esportivo, porém pouco se sabe sobre como as crianças vivenciam e atribuem significados ao esporte com o qual se envolvem. Por conta disso, o objetivo desse trabalho é compreender como crianças são constituídas atletas na iniciação esportiva para o alto rendimento na Ginástica Artística e quais os significados que essas crianças atribuem ao contexto do treino esportivo do qual fazem parte. Para o desenvolvimento do estudo, realizei – durante 9 meses – observações em treinos e competições de uma pré-equipe feminina de Ginástica Artística (GA), composta por atletas com idades entre 8 e 12 anos, de um clube esportivo de Porto Alegre/RS. Além das observações, desenvolvi diários de campo e entrevistas semiestruturadas com as atletas e uma treinadora. A partir da produção dos dados, identifiquei que o processo da formação de ginasta ia além do preparo de corpos hábeis para a prática da GA, pois as meninas também aprendiam a ‘ser’ e a se ‘comportar’ como ginastas. Essas maneiras de ‘agir’ nos treinos incluíam aspectos estéticos, como prender os cabelos, e comportamentais, como saber resistir à dor, enfrentar o medo, submeter-se a algumas restrições e assumir muitos compromissos. Diante desse processo de socialização, questionei: por que as meninas frequentavam os treinos de GA? A partir desse questionamento, percebi que alguns aspectos dos treinos eram ‘atrativos’ para as ginastas, como o ‘movimento’, o enfrentamento de ‘desafios’ que essa modalidade exigia e a ‘diversão’. Após os apontamentos sobre alguns significados que o contexto esportivo possuía para as ginastas, estabeleci uma relação entre o debate sobre o esporte na Educação Física e a Infância em diferentes áreas. Do mesmo modo que o esporte é muitas vezes tratado como uma prática homogênea, disciplinadora e reprodutora da lógica capitalista, a infância é entendida de um modo generalista, assim como a criança é vista como reprodutora da cultura que lhe é transmitida e um produto da sociedade capitalista. Diante dessa relação, busquei mostrar como perspectivas advindas da Antropologia da Criança e da Sociologia da Infância ajudam para o avanço desse debate. Palavras-chave: crianças; infância; esporte; Ginástica Artística.
RESUMEN
La iniciación deportiva orientada para el alto rendimiento en la infancia es un tema que genera muchas críticas, entre las cuáles se destacan las afirmaciones de que esta práctica retira lo lúdico de la vida de los niños, lo que conduce a un bajo rendimiento o al abandono escolar, también causando estrés por las altas cargas de los entrenamientos físicos y la exigencia por los resultados en las competiciones. En Educación Física, los estudios sobre esa temática se centran básicamente en tres temas: la búsqueda por talentos deportivos, la crítica al deporte de alto rendimiento y la importancia de los padres y los entrenadores en la carrera deportiva de los niños. Estos estudios abordan aspectos del desarrollo físico, psicológico y social de los niños mientras están involucrados en el deporte de alto rendimiento, y, con eso, se señalan diferentes propuestas pedagógicas. Así, a partir de la revisión de esta literatura, percibo que mucho se sabe sobre lo que es recomendado o no para los niños en el campo deportivo, pero poco se sabe sobre cómo los niños vivencían y atribuyen significados al deporte con el que están envueltos. Por esto, el objetivo de este trabajo es comprender cómo los niños son constituidos atletas en la iniciación deportiva de alto rendimiento en la Gimnasia Artística y cuáles son los significados que ellos atribuyen al contexto del entrenamiento deportivo del cual hacen parte. Para el desarrollo de la investigación, realicé – durante 9 meses – observaciones en los entrenamientos y las competiciones de un pre equipo femenino de Gimnasia Artística (GA), compuesto por atletas entre 8 y 12 años de edad, de un club deportivo de Porto Alegre/RS. Además de las observaciones, desarrollé diarios de campo y entrevistas semi estructuradas con las atletas y una entrenadora. A partir de la producción de los datos, identifiqué que el proceso de formación de la gimnasta va más allá de la preparación de los cuerpos hábiles para la práctica de la GA, pues las niñas también aprenden a ‘ser’ y a ‘comportarse’ como gimnastas. Esas formas de ‘actuar’ en el entrenamiento incluyen aspectos estéticos, tal como saber recoger el cabello, y conductual, cómo resistir al dolor, enfrentar el miedo, someterse a algunas restricciones y asumir muchos compromisos. Ante este proceso de socialización, me pregunté: ¿Por qué las niñas frecuentaban los entrenamientos de GA? A partir de este cuestionamiento, me di cuenta que algunos aspectos de los entrenamientos eran ‘atractivos’ para las gimnastas, como el ‘movimiento’, el enfrentamiento de ‘desafíos’ que esta modalidad exige y la ‘diversión’. Después de las notas sobre algunos significados que el contexto deportivo tenían para las gimnastas, establecí una relación entre el debate sobre el deporte en la Educación Física y la infancia en diferentes áreas. Así como el deporte es muchas veces tratado como una práctica homogénea, disciplinadora y reproductora de la lógica capitalista, la infancia es entendida de una forma general, así como el niño es visto como reproductor de la cultura que se le transmite y un producto de la sociedad capitalista. Frente a esta relación, busqué mostrar cómo perspectivas provenientes de la Antropología del niño y de la Sociología de la Infancia ayudan para el avance de este debate. Palabras-claves: niños; infancia; deporte; Gimnasia Artística.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 – Fotografia do ginásio de Ginástica Artística do clube GNU ............................ 51 Ilustração 2 – Movimento realizado na paralela assimétrica #1 ............................................. 69 Ilustração 3 – Movimento realizado na paralela assimétrica #2 ............................................. 70 Ilustração 4 – Movimento realizado na trave .......................................................................... 70 Ilustração 5 – Movimento realizado na mesa de saltos .......................................................... 71
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 8
2 PROBLEMATIZAÇÃO: A EDUCAÇÃO FÍSICA E O ESPORT E DE ALTO RENDIMENTO NA INFÂNCIA ................................................................................... 11
2.1 DE QUAL INFÂNCIA ESTAMOS FALANDO? ............................................................ 21 2.2 CHEGANDO AO PROBLEMA DE PESQUISA: OLHANDO PARA AS CRIANÇAS
NO ESPORTE DE ALTO RENDIMENTO A PARTIR DA SOCIOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA ............................................................................................................ 25
3 METODOLOGIA ............................................................................................................ 32 3.1 IMPLICAÇÕES ÉTICAS NA PESQUISA ETNOGRÁFICA ......................................... 38 3.2 UM OLHAR PANORÂMICO SOBRE O CLUBE GRÊMIO NÁUTICO UNIÃO E A
GINÁSTICA ARTÍSTICA ................................................................................................ 42
4 A FORMAÇÃO DE CRIANÇAS ATLETAS: A PRÉ-EQUIPE FEMININA DE GINÁSTICA ARTÍSTICA ............................................................................................. 50
4.1 ELISA: A ‘NOVATA’ DA PRÉ-EQUIPE ........................................................................ 55 4.2 “ELISA É DE COMPETIÇÃO” ....................................................................................... 61 4.3 “SER CORAJOSA”: O ENFRENTAMENTO DA DOR E DO MEDO .......................... 68 4.4 A NATURALIZAÇÃO DO CHORO E O SURGIMENTO DE UMA CONCEPÇÃO DE
INFÂNCIA ........................................................................................................................ 77
5 A GINÁSTICA ARTÍSTICA: ENTRE OS ‘ENCANTOS’ E OS ‘DESENCANTOS’ .......................................................................................................... 83
5.1 SOBRE OS ‘ENCANTOS’: MOVIMENTO, DESAFIO E COMPETIÇÃO ................... 90 5.2 SOBRE OS ‘ENCANTOS’: A DIVERSÃO ................................................................... 100
6 ESPORTE E INFÂNCIA: ALGUMAS APROXIMAÇÕES .... ................................. 109 6.1 A CRIANÇA NO ESPORTE DE ALTO RENDIMENTO ............................................. 113
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 121
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 127
APÊNDICES ......................................................................................................................... 133
8
1 INTRODUÇÃO
A primeira vez que os estudos sobre a infância despertaram o meu interesse foi em um
seminário do qual participei, promovido pelo Grupo de Estudos Socioculturais em Educação
Física (GESEF)1, em 2009. Nesse seminário, realizamos leituras e debates sobre pesquisas
desenvolvidas nas áreas da Antropologia e Sociologia da Infância e da Criança. Chamou-me
atenção a abordagem desses estudos, muito diferente do que eu havia visto na graduação até o
presente momento. Essas diferenças estavam relacionadas à forma com que o
desenvolvimento das crianças era tratado.
As disciplinas do curso de Educação Física com as quais eu havia tido contato
abordavam, na sua maioria, aspectos biológicos do desenvolvimento motor das crianças e
teorias pedagógicas que tratavam de como ensiná-las; pouco era tratado sobre aspectos
culturais desses indivíduos. Lembro que me surpreendi ao ler um texto da autora Barbara
Rogoff (2005), no qual o objetivo foi mostrar como a cultura influencia o desenvolvimento
humano. Nesse texto, a autora menciona crianças de comunidades africanas, com menos de
um ano de idade, as quais são autorizadas pelos adultos a manusearem facas pontiagudas. Tal
contexto fez com que eu indagasse: como uma criança que ainda está aprendendo a caminhar
pode manusear uma faca? Era evidente, portanto, que essa experiência narrada no texto
antropológico citado ia de encontro ao que eu havia aprendido até então nas disciplinas da
graduação. A partir dessas novas leituras, percebi o quanto o contexto cultural no qual as
crianças se desenvolvem, juntamente com os aspectos biológicos, são fatores determinantes
para o desenvolvimento físico, emocional e social dos sujeitos.
Em 2011, iniciei o estágio na Educação Infantil e foi nesse momento da minha
formação que as primeiras inquietações sobre a necessidade de compreender o universo
infantil surgiram. Com isso, desenvolvi o trabalho de conclusão de curso a partir da minha
experiência de estágio e aprofundei as leituras no campo da Antropologia e da Sociologia da
Criança e da Infância, estudo que já havia iniciado em 2009.
No momento em que construí o trabalho de conclusão de curso, meu objetivo era
compreender os significados que as crianças davam às brincadeiras dirigidas nas aulas de
Educação Física. A partir desse estudo, foi possível estabelecer um diálogo entre os objetivos
dos professores e os interesses dos alunos. No entanto, considerando as leituras que realizei,
1 Grupo no qual fui bolsista de iniciação científica durante a minha graduação, coordenado pelo professor Dr. Marco Paulo Stigger.
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outras questões surgiram para além do universo do meu estágio e passei a questionar a ideia
de infância presente no campo da Educação Física.
A partir de discussões em sala de aula e considerando a sua evidência na sociedade
contemporânea, o esporte de alto rendimento na infância foi um assunto que despertou o meu
interesse. Observa-se que, cada vez mais cedo, as crianças se envolvem com essa prática.
Sobre isso, alguns temas são recorrentes na área, como a detecção de talentos, a crítica à
especialização precoce e a importância dos pais e treinadores na carreira esportiva dos atletas.
Sobre a detecção de talentos, os estudos buscam identificar os perfis físicos,
psicológicos e sociais das crianças para o desempenho de determinados esportes (BÖHME,
2007). Já no que se refere às críticas à iniciação esportiva precoce, destaca-se a perda da
ludicidade e os prejuízos nos desenvolvimentos físico, emocional e social pelas altas cargas
de treino, cobranças e afastamento da escola (KUNZ, 1994; MARQUES, 1991; SANTANA,
2004). Além desses temas, a participação dos pais e dos treinadores na vida das crianças
atletas também é um assunto bastante debatido por autores que se dedicam ao estudo do
esporte de alto rendimento na infância (NUNOMURA; OLIVEIRA, 2014).
Em que pese esses esforços, no campo da Educação Física, parece que as
preocupações não estão centradas na ‘compreensão’ da infância também como uma
construção social e em ‘como’ as crianças estão vivenciando o esporte de alto rendimento. O
que se percebe são estudos prescritivos, cujas contribuições estão em torno dos aspectos do
desenvolvimento físico e técnicas pedagógicas na perspectiva de ensinar, de um modo
adequado e eficiente, o esporte para crianças. Mas, como as crianças veem-se a si mesmas
nesse contexto?
Foi a partir de questões como essa e da constatação de ausência de trabalhos nessa
ótica no campo da Educação Física que surgiu a motivação para o desenvolvimento do
presente estudo. Dessa forma, o meu objetivo é compreender como as crianças constituem-se
atletas em uma equipe esportiva e como elas significam esse contexto. A partir dessa reflexão,
desenvolvi alguns diálogos com autores que problematizam aspectos sobre o esporte de alto
rendimento a partir da análise do trabalho empírico que foi realizado nessa pesquisa.
Nas páginas que seguem, detalharei aspectos da construção dessa pesquisa, iniciando
com as inquietações que surgiram ao longo da minha graduação sobre o esporte de alto
rendimento na infância e estabelecendo diálogos com estudos sobre o tema no campo da
Educação Física. Após essa problematização, apresentarei como os estudos no campo da
Sociologia da Infância e da Antropologia da Criança auxiliaram-me nas reflexões sobre o
tema e na formulação dos objetivos e das perguntas orientadoras da pesquisa.
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Com isso, no capítulo que segue ao objetivo e às questões orientadoras, descrevo o
método de pesquisa utilizado para a realização desse estudo. Para tanto, discorrerei sobre a
etnografia, e mais especificamente sobre as observações sistemáticas, os diários de campo e as
entrevistas com crianças, além das questões éticas que envolvem a pesquisa etnográfica,
relacionando-as com esse estudo em particular. Após apresentar a etnografia e as
especificidades desse estudo, relatarei como se deu a minha entrada no campo de pesquisa,
assim como descreverei a pré-equipe2 feminina de Ginástica Artística (GA) que acompanhei.
Uma vez detalhados os aspectos metodológicos, nos tópicos seguintes apresentarei os
resultados da investigação. A partir desse ponto, serão expostos os elementos que compõem a
formação de ginastas que buscam o alto rendimento. Com base nessas informações, voltando
o meu olhar para as crianças, serão discutidos alguns significados, representações e formas de
apropriações das ginastas diante desses elementos formadores. E, por fim, estabelecerei uma
reflexão sobre as temáticas ‘esporte’ e ‘infância’, apontando algumas aproximações e
buscando diálogos entre os campos da Educação Física, da Antropologia da Criança e da
Sociologia da Infância.
2 A pré-equipe de ginastas é composta por crianças entre 7 e 12 anos de idade. Após completarem 13 anos de idade, as ginastas são encaminhadas para a equipe de Ginástica Artística do clube.
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2 PROBLEMATIZAÇÃO: A EDUCAÇÃO FÍSICA E O ESPORTE DE ALTO RENDIMENTO NA INFÂNCIA
Durante uma disciplina da graduação realizada no primeiro semestre de 2013,
debatíamos sobre a especialização precoce de crianças com idades entre 5 e 10 anos em
escolinhas de Futebol e Ginástica Artística. Uma de nossas colegas, que é treinadora da
categoria de base de um clube de Futebol de Porto Alegre/RS, foi questionada pela turma
sobre a especialização precoce das crianças que lá frequentavam. A treinadora relatou não
concordar com a constância de treinos imposta pelo clube (todos os dias na semana),
afirmando que existe uma sobrecarga física. Além do estresse físico, segundo a treinadora,
está presente, nesse ambiente, a pressão dos pais e treinadores para a obtenção de bons
resultados e a ascensão na carreira de atleta. Alguns dos meus colegas apontaram questões
sobre a decepção dessas crianças quando percebem que suas carreiras não deram certo ou que
podem ser substituídas facilmente por outras crianças que apresentem melhor desempenho no
esporte.
O assunto gerou muitos debates entre os acadêmicos, e percebi o espanto de alguns
com determinados fatos, como a quantidade de dinheiro que um jogador de Futebol muito
jovem chega a ganhar ou, ainda, a idade das crianças que são submetidas a altas cargas de
treino, inclusive igual à dos atletas adultos, como ocorre na Ginástica Artística. No final dessa
aula, o professor concluiu o assunto afirmando que existe hoje um modelo de mercado
pautado pelo consumo. Dessa forma, há uma demanda de especialização cada vez mais
precoce para fins lucrativos. O professor deixou como mensagem final para a turma da
graduação a necessidade de resistirmos – nós, futuros treinadores e professores – a essa
lógica.
No entanto, o debate de que a competição e o alto rendimento pautam as práticas
esportivas das crianças da atualidade não acontece apenas entre os estudantes e os professores
de Educação Física. Em uma reportagem exibida pelo programa Profissão Repórter, da Rede
Globo, no dia 12 de abril de 2011, o tema foi o treinamento intenso de jovens atletas. A
equipe de repórteres acompanhou ginastas de 9 a 11 anos e uma bailarina de 14 anos. Os
temas abordados no programa foram as cobranças por resultados e desempenhos, a grande
exigência na preparação física, além da dor, do nervosismo e da expectativa que as atletas
enfrentam nas competições.
De acordo com o que foi apresentado no programa, a rotina das ginastas era composta
por treinos diários, exceto aos domingos, com duração de 3 horas e meia. Ao serem
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entrevistadas pelos repórteres, algumas meninas contaram que não realizavam atividades
simples como assistir televisão, jogar videogame ou encontrar as amigas, em função dos
compromissos com a Ginástica.
Sobre a dor, algumas atletas, ao serem filmadas durante a competição, disseram que
não haviam desempenhado bem uma das provas porque suas mãos estavam machucadas. A
repórter olhou com espanto para as mãos dessas garotas e questionou a forma corriqueira com
que elas falavam dos seus machucados. Todas riram e uma delas disse que aquilo era
“normal”3.
Uma das atletas ganhou destaque nas filmagens por apresentar grande nervosismo e
até mesmo chorar durante a competição. Uma mãe, ao ser questionada sobre a pressão a que
as atletas estavam sendo submetidas, comparou a situação da competição com as exigências
da vida, a exemplo dos compromissos diários e do desempenho esperado na escola. Essa
mesma atleta, quando procurada algum tempo depois pelos repórteres no clube em que
treinava, foi encontrada compondo a equipe da Natação. A mãe da ex-ginasta afirmou que a
sua filha estivera muito nervosa, por isso abandonou o esporte. Contudo, apesar de a história
da ex-ginasta ganhar evidência, muitas meninas entrevistadas mostraram gostar das suas
rotinas e não pensavam em abandonar a Ginástica Artística.
Outro recorte da reportagem foi a rotina de uma jovem bailarina do interior de Piauí. A
menina era de uma família humilde e realizava aulas gratuitas de Balé. No período em que a
reportagem foi realizada, o treino da bailarina tinha duração de 4 horas por dia, todos os dias
da semana, pois a jovem iria viajar para os Estados Unidos para concorrer a uma bolsa de
estudos em uma escola de Balé de Nova York. A família havia juntado dinheiro com rifas e
eventos para que a menina pudesse viajar. Tal como no caso das ginastas, a exigência física e
a tolerância à dor e aos machucados também faziam parte da vida da bailarina. Durante a
seleção para concorrer à bolsa de estudos em Nova York, também ficou evidente o
nervosismo da menina, a qual, ao final da seleção e das inúmeras provas que teve que
executar, conseguiu a bolsa que desejava em uma escola em Washington, capital do país.
O programa Profissão Repórter mostrou dois casos opostos: uma menina que desistiu
da Ginástica porque não resistiu à pressão psicológica e física no esporte, e outra, que após
muito esforço, conseguiu a bolsa que tanto esperava e iria morar nos Estados Unidos.
Sabemos que o esporte de alto rendimento implica a vitória e a derrota, e que os atletas devem
3 Uma explicação formal: ao longo desse trabalho, utilizo aspas duplas (“ ”) para destacar frases ditas e expressões utilizadas pelas pessoas com as quais estabeleci contato durante a pesquisa de campo, bem como para demarcar citações diretas e títulos de artigos. Já as aspas simples (‘ ’) são empregadas nos destaques feitos por mim.
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lidar com esses aspectos. Mas, como fazem isso, então? O que representa para a jovem
bailarina mudar a sua vida e ir estudar Balé em outro país? E a menina que desistiu da
Ginástica: será apenas a pressão exigida que a fez procurar outra modalidade esportiva? Quais
outros aspectos podem ter levado a ex-ginasta a desistir do esporte que praticava? Por que ela
escolheu a Natação no lugar da Ginástica?
A mesma problemática também foi abordada no documentário “Buffalo Girls -
meninas de fibra”, exibido pelo programa SporTV Repórter, no canal pago SporTV da
Globosat, no dia 25 de agosto de 2013, porém em um contexto bastante diferente daquele
exibido pelo programa Profissão Repórter. O documentário mostrou a vida de Stam e Pet,
meninas tailandesas com 8 anos de idade que lutavam Boxe para ajudarem a sustentar as suas
famílias, isso porque as lutas de Boxe infantil, prática comum na Tailândia, envolvem apostas,
gerando lucro para as famílias dos lutadores vitoriosos.
Stam era uma menina pobre que, além de trabalhar na feira com seus pais, praticava
Boxe para ajudar a construir a casa da sua família, moradia essa que ainda não estava pronta
por carência financeira. Quando queria comprar alguma coisa, Stam tinha que fazer lutas para
conseguir o dinheiro. Pet também era uma menina pobre que vivia com os pais e o irmão e, da
mesma forma que Stam, ajudava a família. O pai de Pet havia sofrido um acidente com a
moto com que trabalhava e não podia desempenhar sua profissão. Com isso, o dinheiro das
apostas das lutas de Pet era indispensável para a sobrevivência de toda a família. Ao serem
indagadas pela repórter se gostavam de lutar e por que lutavam, as respostas das meninas
eram as mesmas: elas queriam ajudar as suas famílias e gostavam de lutar.
O medo das fraturas e dos machucados parecia não existir, tanto por parte dos pais
quanto das crianças. Mas, para isso, as meninas deveriam treinar com intensidade, pois,
segundo os pais, ficariam mais fortes e resistentes aos golpes. Dessa forma, o treino de ambas
era realizado todos os dias, durante muitas horas, e era composto por diversos exercícios de
força, corridas e combates simulados. O documentário mostra uma cena em que Stam estava
treinando até tarde da noite com um de seus irmãos. A menina segurava as pernas do irmão
enquanto esse fazia exercícios abdominais. Para torná-lo mais resistente à dor, ela batia na
barriga do menino. O irmão, aborrecido, disse que aquilo doía e ela respondeu, com firmeza,
que doer era bom, pois, quando fosse atingido por um adversário, ele ficaria bem.
Chamou-me a atenção que, nesse mesmo treino, a mãe de Stam e os seus outros
irmãos assistiam a um filme enquanto a menina treinava na rua. A lutadora, mostrando
interesse em acompanhar o filme, fazia os exercícios de frente para a janela, de forma que
conseguisse enxergar a televisão e treinar ao mesmo tempo.
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O documentário também mostra a preparação intensa das meninas para um
campeonato que envolveria muito dinheiro e um título na categoria até 22 kg. Stam e Pet
iriam se enfrentar nessa disputa. Enquanto Stam dependia desse dinheiro para dar sequência à
construção da sua casa, Pet precisava ajudar o pai, que não podia trabalhar. O combate,
realizado em meio aos gritos dos apostadores e dos treinadores, teve como vencedora Stam. A
campeã conseguiu ajudar na finalização da construção da sua casa, além de mobiliar o seu
quarto. Pet continuou treinando e lutando.
Enquanto eu assistia ao documentário, era inevitável não ficar impressionada com uma
realidade tão diferente da minha. A ideia de ver crianças praticando um esporte considerado
‘violento’ e ainda terem a responsabilidade de sustentar as suas famílias parecia-me
inaceitável. No entanto, ao ver que aquilo que eu considerava ‘violento’ era ‘normal’ naquele
contexto, e que ajudar no sustento da família era motivo de orgulho e satisfação para as
meninas, o meu olhar crítico em relação ao documentário foi sendo suavizado. Além disso, ao
estabelecer uma relação entre os dois programas de televisão mencionados, percebi que a dor,
o compromisso, a dedicação, a cobrança, a expectativa, a derrota e a vitória estavam presentes
tanto na vida das ginastas e da bailarina brasileiras quanto na vida das lutadoras tailandesas.
Com isso, questionei-me: por que a história das lutadoras chocou-me mais do que a história
das ginastas e da bailarina? Fazer uma prova de Ginástica com as mãos machucadas ou dançar
com os pés em feridas não exige tanta resistência à dor quanto receber golpes da adversária na
luta? Praticar o esporte para sustentar a família ou buscar ascensão social não envolvem
igualmente dedicação e compromisso?
Dialogando com esse tema, uma pesquisa sociológica desenvolvida em Portugal
debate o trabalho infantil artístico (TIA) e as consequências que o mesmo pode causar no
tempo destinado ao lazer e às brincadeiras das crianças. A pesquisa mostra o crescimento das
crianças que desenvolvem trabalhos artísticos como atores, modelos e atletas. Nesse contexto,
destacam-se o esporte federado e as competições esportivas, sendo esses fenômenos sociais
bastante presentes no país – aspecto que leva inúmeras escolas a prepararem atletas desde
muito cedo nessas modalidades. Em tal contexto, a autora menciona a importância de
“melhorar as regras jurídicas e os novos códigos de proibição de trabalho para as crianças e
jovens atores, manequins, jogadores etc.”. Ela também chama a atenção para o fato de que o
trabalho infantil artístico, muitas vezes, passa despercebido pela sociedade “na medida em
que nos diverte quando o vemos” (MELRO, 2010, p. 18).
Ainda nesse estudo, a autora entrevista algumas crianças e percebe que o trabalho e o
lazer, por vezes, misturavam-se nesses ambientes. Tendo notado que as crianças desejavam se
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envolver com as atividades artísticas por gostarem da prática ou por almejarem uma carreira,
a autora identifica que o trabalho misturava-se ao lazer. O que a autora busca problematizar
são as consequências que esse tipo de trabalho, que é mais ou menos aceito pela sociedade,
pode trazer para a vida das crianças: sobrecarga física e emocional, distanciamento da escola e
pouco tempo para brincar. Apesar da pesquisa de Ana Melro apresentar entrevistas com as
crianças e identificar a vontade das mesmas em estarem envolvidas com suas atividades
artísticas, a autora não deixa de afirmar que o envolvimento com os compromissos do
trabalho artístico distancia as crianças do divertimento e das brincadeiras infantis. Diante
dessa afirmação da autora, questiono sobre qual infância estamos falando e quais as
possibilidades de se viver a infância no esporte de alto rendimento.
A partir dessas inúmeras reflexões, retorno o meu olhar para a Educação Física e
busco entender como o esporte de alto rendimento é abordado nessa área do conhecimento.
Para isso, voltemos para a narrativa que iniciou esse texto. Assim como o professor que
mediava o debate da disciplina que cursei, alguns pesquisadores da Educação Física também
afirmam que o esporte de alto rendimento na infância é o reflexo da sociedade capitalista.
Antònio Teixeira Marques (1991) destaca que a sociedade tecnológica e industrial na qual
vivemos exige de todas as atividades humanas, incluindo o esporte, a especialização e o
rendimento. Sobre o esporte, o autor afirma que “a valorização política e social do desporto de
alto rendimento teve como consequência a preocupação de encontrar, mais cedo, jovens com
talento para a alta competição e de prepará-los convenientemente” (MARQUES, 1991, p. 9).
A preparação das crianças para o esporte de alto rendimento, quando desenvolvida a
partir de um treinamento a longo prazo e respeitando os aspectos físicos, psicológicos e
sociais de cada criança, não é vista como um problema por alguns teóricos no campo da
Educação Física. Nessa direção, muitos programas de ‘descoberta’ de jovens talentos são
desenvolvidos levando em consideração a relação entre as disposições genéticas, a idade
relacionada com a fase de desenvolvimento do indivíduo, as exigências do treinamento e as
qualidades psicológicas (BÖHME, 2007).
Ao realizar uma revisão bibliográfica sobre o tema talento esportivo no Brasil, Böhme
(2007) identifica diversos estudos que abordam assuntos como: maturação sexual,
crescimento físico, composição corporal, aspectos psicossociais do talento esportivo, relações
entre estatura e maturação sexual, aptidão física de jovens atletas, dentre outros. Todos esses
aspectos visam à identificação e o treinamento de jovens talentos. Dessa forma, a maior
crítica presente na área não está centrada na preparação das crianças para o esporte de alto
16
rendimento, mas, sim, na especialização precoce desses sujeitos para uma determinada
modalidade esportiva.
A literatura aponta para a diferença entre a iniciação esportiva e a especialização
esportiva precoce, podendo a primeira ser iniciada desde muito cedo. Recomenda-se que a
iniciação esportiva ofereça à criança movimentos variados em atividades também
diversificadas, a fim de que haja o desenvolvimento de todas as habilidades motoras. Isso é
diferente da especialização esportiva precoce, a qual tem como característica o treino
específico de competências físicas que são exigidas em determinado esporte (MOREIRA,
2003).
Quando o tema é a especialização precoce, as perguntas que orientam muitos trabalhos
desenvolvidos na Educação Física são: qual a idade recomendada para iniciar um treino
especializado? Quais as consequências do treino especializado precoce no desenvolvimento
físico e emocional das crianças? Quais as consequências do treino especializado precoce na
vida adulta? Quais os métodos de treinos utilizados nos clubes e escolas de formação
esportiva para o alto rendimento? Quais os riscos e benefícios do esporte de alto rendimento
na infância? Qual a relação existente entre a iniciação esportiva precoce e o abandono do
esporte na vida adulta? (NUNOMURA; CARRARA; TSUKAMOTO, 2010; ARENA;
BÖHME, 2010; DARIDO; FARINHA, 1995). Apesar de as respostas para essas questões
serem diversas e expressarem as diferentes abordagens existentes sobre o tema, parece-me
que as inquietações aproximam-se à medida que buscam identificar as consequências do
treinamento precoce e as recomendações para o ingresso adequado das crianças nesse
universo.
Nunomura, Carrara e Tsukamoto (2010), em uma pesquisa desenvolvida com 46
técnicos de Ginástica Artística no Brasil, apontaram que a especialização acontece desde
muito cedo nesse esporte, por volta dos 4 ou 5 anos de idade para ambos os sexos. Dessa
forma, os autores recomendam que sejam respeitadas as fases de desenvolvimento das
crianças a fim de que essas não abandonem o esporte e não percam o gosto pela prática de
atividade física na vida adulta.
Na mesma direção, Arena e Böhme (2010), ao desenvolverem um estudo com
entidades esportivas de diferentes modalidades em São Paulo, identificaram a iniciação
esportiva para o alto rendimento abaixo dos 12 anos, idade considerada por alguns autores
como ideal para iniciar a especialização esportiva. Nesse estudo, as autoras orientam que os
treinos para crianças menores de 12 anos devem ser variados, ou seja, que sejam
17
desenvolvidas diferentes capacidades físicas. Além disso, são recomendadas atividades
atraentes para as crianças, como jogos lúdicos.
Darido e Farinha (1995) desenvolveram uma pesquisa com ex-atletas de Natação com
o objetivo de verificar as consequências, na idade adulta, da iniciação esportiva precoce. Os
resultados dessa pesquisa apontaram para aspectos positivos e negativos da especialização
precoce. No que se refere aos aspectos positivos, os autores destacam: força de vontade,
determinação e novos contatos sociais. Entre os aspectos negativos, foram mencionados o
imediatismo, o isolamento social, as luxações e o despreparo dos técnicos. A partir dos fatores
negativos identificados, os autores listaram uma série de recomendações para a superação das
dificuldades e as consequências da especialização precoce.
Com esse foco, a especialização esportiva precoce é entendida como sendo o
desenvolvimento específico de capacidades físicas ainda não maduras na infância, podendo
acarretar, por exemplo, a redução do repertório motor das crianças e o aumento de incidências
de lesões. Em alguns estudos, o treino que caracteriza a especialização precoce é composto
por aulas sistemáticas, de alta intensidade e não diversificadas para crianças menores de 12
anos, além de envolver competições e exigência de resultados.
Vale ressaltar, porém, que a idade considerada adequada para a prática do esporte de
alto rendimento não é consenso na Educação Física, assim como há desacordo em relação ao
número mínimo de aulas e à carga horária para caracterizar um treinamento de alto
rendimento. Nesse sentido, existe variação conforme o esporte praticado: na Ginástica
Artística, por exemplo, pelas capacidades complexas exigidas nessa prática, alguns
treinadores recomendam que as crianças iniciem os treinos a partir dos 4 ou 5 anos, para
obterem maior sucesso na carreira de atleta (KUNZ, 1994; DARIDO; FARINHA, 1995;
SANTANA, 2004; TSUKAMOTO; NUNOMURA, 2005).
Além das consequências físicas, alguns estudos no campo da Educação Física
destacam outros efeitos da especialização precoce no esporte, como a sobrecarga emocional, o
prejuízo à ludicidade na vida das crianças, o baixo desempenho na escola e o abandono da
prática esportiva. Atentando para esses aspectos, Kunz, em 1994, escreveu um artigo fazendo
uma forte crítica à especialização precoce, afirmando olhar para esse fenômeno como um
professor de Educação Física que tem preocupações pedagógicas sobre a infância e o esporte.
Nesse estudo, o autor destaca quatro consequências que esse tipo de treinamento causa na
vida das crianças. São eles: a formação escolar deficiente em função das exigências na
participação nos treinos e campeonatos, a diminuição do repertório motor, a participação
18
reduzida em atividades consideradas do “mundo infantil” e, por fim, as saúdes físicas e
psíquicas prejudicadas (KUNZ, 1994, p. 12).
Quando Kunz menciona a redução das atividades consideradas do “mundo infantil”
em consequência do envolvimento da criança no esporte de alto rendimento, fica evidente a
ideia de infância que pauta o olhar desse autor. Em seu texto, Kunz afirma que as brincadeiras
e os jogos infantis são indispensáveis para o desenvolvimento da personalidade na infância e
que as crianças não optariam por praticar o esporte de forma especializada por vontade
própria, mas, sim, por imposição dos adultos, como os pais e os treinadores. Apesar dessa
última afirmação parecer forte e questionável, o fato é que existe uma imagem de criança
frágil, dependente e passiva nesse processo, semelhante ao que presenciei no debate ocorrido
na aula da graduação do curso de Educação Física, narrado no início desse capítulo. Assim,
cabe questionar de que infância estamos falando. Quem são, afinal, essas crianças?
Na mesma direção de Kunz (1994), Tsukamoto e Nunomura (2005) chamam atenção
para alguns aspectos considerados negativos na iniciação esportiva precoce, como o
esgotamento físico e psicológico, o abandono do esporte e a limitação dos movimentos
motores pela especialização dos gestos. As autoras, em um estudo desenvolvido na cidade de
São Paulo, analisam as características de determinados programas de iniciação esportiva na
modalidade Ginástica Artística (GA). Nessa pesquisa, são destacados os benefícios da prática
da GA para as crianças, quando desenvolvida de forma global, pela ampla possibilidade de
utilização de competências físicas. No entanto, a partir dos dados obtidos, as autoras afirmam
que a especialização dos movimentos é desenvolvida precocemente nos clubes, trazendo,
dessa forma, prejuízos para o desenvolvimento das crianças. Sendo assim, para as autoras, o
envolvimento precoce das crianças com o esporte de alto rendimento é uma atitude “contrária
às necessidades das crianças, em especial do ponto de vista motor, considerando a
importância da variedade de experiências nessa fase, principalmente para ampliar o acervo
motor e ter condições de optar pela modalidade que deseja praticar” (TSUKAMOTO;
NUNOMURA, 2005, p. 158).
A partir do excerto citado acima, para Tsukamoto e Nunomura, se as crianças não
experimentarem diversas atividades motoras, não terão condições de optar por alguma
modalidade esportiva que seja do seu agrado, cabendo, então, ao adulto proporcionar as
oportunidades e apresentar as possibilidades de esportes que elas poderão praticar. Nesse
sentido, pergunto: as crianças, independentemente do seu acervo motor, não são capazes de
escolher o esporte que desejam praticar?
19
A participação dos pais na vida das crianças atletas também é um tema recorrente na
literatura da Educação Física. Nunomura e Oliveira (2014), em uma pesquisa desenvolvida
com 34 técnicos de Ginástica Artística, distribuídos em 29 instituições do Brasil,
identificaram e discutiram, por meio de entrevistas semiestruturadas, como os técnicos
avaliam a participação dos pais no desenvolvimento das ginastas nas categorias formativas.
Os autores justificam o estudo afirmando que, mesmo a literatura apontando para o
envolvimento dos pais como sendo o aspecto crucial para que as crianças permaneçam e
tenham sucesso em algum esporte, “são poucos os estudos que analisaram esta temática na
perspectiva daqueles que vivem o cotidiano da modalidade e desenvolvem as jovens ginastas,
ou seja, os técnicos” (NUNOMURA; OLIVEIRA, 2014, p. 2).
Foi identificado, a partir da visão dos técnicos, que a participação dos pais na vida dos
atletas é dividida segundo dois aspectos: o positiva e o negativa. Sobre a participação positiva,
os pais são apontados como mediadores entre a comunicação das crianças com os técnicos,
pois, em alguns casos, as crianças apresentam dificuldade de expressar o que sentem para os
treinadores. Outro aspecto positivo é a participação dos pais quanto à solução de problemas
financeiros, como o levantamento de recursos para uniformes e viagens.
No que diz respeito à participação considerada negativa, é destacada a participação
excessiva dos pais, como assistir a todos os treinos, opinar sobre as condutas dos técnicos,
interferir sobre quem deve compor a equipe em competições e eventos, e cobrar resultados, o
que pode gerar estresse nas atletas. Considerada por outro ângulo, a pouca participação dos
responsáveis também foi identificada como aspecto negativo, uma vez que, segundo os
autores, pode gerar insegurança nas crianças já que “é uma fase em que elas necessitam de
aceitação e aprovação para a construção de sua autoestima e autoconfiança” (NUNOMURA;
OLIVEIRA, 2014, p. 7).
Os autores, além de afirmaram a importância dos pais no sucesso das atletas, também
reconhecem que, na falta dos progenitores, os técnicos possuem um importante papel de
incentivadores na aproximação e participação dos pais na vida esportiva das crianças. A
sugestão apontada por Nunomura e Oliveira (2014) para superar os aspectos negativos é a
busca pelo ponto de equilíbrio para um convívio harmonioso que possa impulsionar o sucesso
das crianças atletas. Os autores destacam que o trinômio técnicos-pais-ginastas deve ser
estudado e compreendido, havendo a necessidade de uma investigação que aborde a
percepção dos pais sobre a atuação tanto dos técnicos quanto dos filhos.
Ainda sobre a participação dos pais na vida esportiva das crianças, outro estudo aborda
o esporte praticado na escola em atividades extracurriculares. Nesse estudo, os autores
20
problematizam a influência da família, da escola, do clube esportivo, dentre outras
instituições, na formação esportiva das crianças. Em tal processo, o esporte espetáculo é
destacado como um componente norteador das orientações educativas das práticas esportivas,
havendo exigências e cobranças acerca do desempenho das crianças por parte dos adultos. Os
autores referem-se às crianças que participam dos programas esportivos escolares como
“mini-atletas” (SIMÕES; BÖHME; LUCATO, 1999).
A partir dessa discussão, e considerando a forte influência dos pais na vida esportiva
das crianças, os autores buscaram verificar, a partir do ponto de vista das crianças, a
participação do pai e da mãe, separadamente, na experiência esportiva dos filhos. Nesse
contexto, o estudo considera a assistência direta, o incentivo, o nível de exigência para a
prática esportiva e o nível de exigência para que os filhos se tornem bons atletas. Para o
desenvolvimento da pesquisa, participaram 143 meninos e 94 meninas, com idades entre 12 e
14 anos, de diferentes modalidades esportivas de equipes escolares na cidade de Jundiaí/SP.
Os dados foram coletados a partir de um questionário.
Como resultados, o estudo encontrou que pais e mães oferecem assistência direta aos
filhos nas atividades esportivas desses, assim como incentivam os seus filhos a praticarem
esportes, considerando importante auxiliá-los no processo de escolha de uma modalidade que
proporcione-lhes prazer. Os autores também notaram que a maioria dos pais e das mães não
exigia que seus filhos se tornassem bons atletas; porém, percebeu-se uma diferença
estatisticamente significativa na exigência do pai no desempenho do filho do sexo masculino.
Diante dos resultados e analisando a influência do esporte espetáculo na prática esportiva
escolar, os autores consideraram importante “indagar como é possível a certos educadores
cumprirem seus papéis e quais são as condições adequadas para que possam formar e
desenvolver a personalidade infantil através das práticas esportivas escolares” (SIMÕES;
BÖHME; LUCATO, 1999, p. 44).
Com base no que foi apresentado até aqui, identifiquei três temas que atravessam os
estudos sobre o esporte de alto rendimento ‘na infância’ no campo da Educação Física. São
eles: a busca por talentos esportivos, a crítica à especialização precoce e a importância dos
pais e técnicos/treinadores no sucesso da vida esportiva das crianças. Nas pesquisas que
apresentei, resta a impressão de que muito se sabe e/ou se procura saber sobre o que é
recomendado ou não para as crianças, mas pouco se sabe e se busca saber sobre como as
crianças atletas representam e vivem o universo esportivo do qual fazem parte.
Essa constatação possibilitou que eu voltasse o meu olhar para as crianças e as suas
infâncias a fim de compreender esse universo a partir de outra perspectiva: ao invés de olhar
21
para o esporte de alto rendimento na infância, a partir de agora buscarei olhar para as crianças
no esporte de alto rendimento. Estudar a infância é diferente de estudar as crianças. A infância
é entendida como uma categoria social do tipo geracional, sendo que algumas abordagens
mencionam infâncias, no plural, alegando que existem diferentes possibilidades de se viver
esse momento da vida. Já os estudos sociológicos e antropológicos que se focam nas crianças
preocupam-se em compreender as diversas representações e modos de atuar das crianças a
partir daquilo que lhes é transmitido. Com isso, estudos no campo da Sociologia e da
Antropologia vêm auxiliando-me a compreender as crianças e a(s) infância(s).
Com base nessas ideias, olharei para as crianças e as suas representações, porém sem
desconsiderar que esses sujeitos estão inseridos em uma sociedade e que possuem trajetórias
de vida diferentes, aspectos que contribuem para constituir os modos como vivem a infância.
Para desenvolver essa reflexão, trago, nos próximos tópicos, um breve debate sobre a noção
de infância presente hoje na sociedade e um panorama sobre os estudos sobre a infância e as
crianças na Sociologia e na Antropologia, buscando estabelecer diálogos com o campo da
Educação Física.
2.1 DE QUAL INFÂNCIA ESTAMOS FALANDO?
Segundo Ariès (1978), a infância que conhecemos atualmente é uma invenção da
modernidade. Para o autor, a criança começou a conquistar espaço na família e na sociedade
no início no século XIII, e se expandiu no final do século XVI e durante o século XVII. Antes
do século XIII, a infância era vista como uma fase transitória e as crianças como pequenos
adultos, independentes e capazes de realizar as mesmas tarefas que os adultos executavam.
Segundo ele, a mudança de visão da infância e das crianças veio por meio de uma
cristianização dos costumes e da escolarização, momento em que a criança passou a ser vista
como um ser inocente e que necessitava de cuidados e educação. Dessa forma, ao longo dos
anos, a infância moderna veio sendo definida a partir da oposição entre o mundo adulto e o
mundo da criança. Na tentativa de preservação da inocência e da pureza das crianças, são
criados espaços, vestimentas, atividades e brincadeiras específicas para esses indivíduos.
Dornelles e Bujes (2012) afirmam que a modernidade trouxe a ideia de seres humanos
iguais, com características inatas, que não mudam na sua essência – mas que podem ser, no
entanto, aperfeiçoadas. As autoras destacam que “pensar a infância como um ‘dado natural’ é
esquecer que ela é produto da invenção da escola, de mudanças na família, das condições de
vida na sociedade, dos jogos e passatempos inventados para ela, das relações das crianças
22
com os adultos e com outras crianças” (DORNELLES; BUJES, 2012, p. 14, destaques das
autoras). Além desses aspectos, segundo as autoras, a infância também é resultado de tudo o
que se produz, discute e pensa sobre ela por meio da pedagogia, da filosofia, dos livros de
etiqueta, das pinturas, da mídia, dos brinquedos e das brincadeiras.
A partir disso, Dornelles e Bujes mencionam que existe uma preocupação vigente na
sociedade acerca das formas adequadas de se viver a infância. Para exemplificar essa
afirmação, as pesquisadoras citam os dilemas das famílias quanto ao ingresso das crianças nas
creches e ao tempo certo para a criança começar a andar e falar e para deixar as fraldas, a
mamadeira, a chupeta, entre outros, dilemas os quais impulsionam a produção de inúmeros
livros, revistas, programas de televisão ou até mesmo cursos que visam orientar os
responsáveis para o cuidado com as crianças nesse processo.
Há também um debate sobre a falta de habilidade dos adultos em lidar com as crianças
na atualidade. Um exemplo disso foi uma reportagem que assisti em um jornal da rede aberta
sobre crianças consumidoras. O conteúdo da reportagem chamava a atenção para a forma
como essa “turminha cheia de opinião”4 conseguia assumir o controle dos hábitos
consumidores dos pais e exigir a compra de brinquedos e jogos. Na mesma direção, Costa
(2006) afirma que estamos vivenciando a invenção de uma criança mais esperta e
autossuficiente. A autora, ao considerar os diferentes meios de socialização das crianças
contemporâneas e como essa diversidade reflete na escola, afirma que:
as professoras estão preparadas para educar a infância inventada no século XIX − ingênua, dependente dos adultos, imatura e necessitada de proteção − enquanto suas salas de aula estão repletas de crianças do século XXI − cada vez mais independentes, desconcertantes, erotizadas, acostumadas com a instabilidade, a incerteza e a insegurança (COSTA, 2006, p. 2).
Alguns autores afirmam que estamos presenciando a morte da infância moderna, ou
seja, a ideia de criança inocente, frágil e pueril surgida na modernidade está desaparecendo
(CASTRO, 2002). Nesse contexto, Postman (1999, p. 97) afirma que o surgimento da
televisão e comunicações em massa acarretou as principais mudanças sociais que borraram as
fronteiras entre crianças e adultos. Segundo o seu ponto de vista, “a televisão revela segredos,
torna público o que antes era privado”. Dessa forma, o autor acredita que o fato de os adultos
e as crianças terem acesso às mesmas informações faz desaparecer a ideia de infância. Assim,
Postman (1999) não sugere apenas o desaparecimento da infância, mas também o
desparecimento do adulto, estando as crianças cada vez mais adultizadas e os adultos mais 4 Expressão utilizada na reportagem.
23
infantilizados. Debert (2010) vai nessa mesma direção ao refletir sobre a dissolução das faixas
etárias na contemporaneidade:
As crianças ganham, cada vez mais, acesso ao que antes era visto como aspectos da vida adulta, posto que a mídia dissolve os controles que os adultos tinham sobre o tipo desejável de informação às faixas mais jovens. As informações disponíveis, os temas que são objetos de preocupação, a linguagem, as roupas, as formas de lazer tenderiam cada vez mais a perder uma marca etária específica (DEBERT, 2010, p. 60).
Paterno e Müller (2009), ao debaterem sobre a situação das crianças na atual sociedade
de consumo, afirmam que, cada vez mais, as crianças assumem comportamentos
característicos dos adultos, tornando-se miniadultos. A televisão, os outdoors e as revistas são
mencionados pelas autoras como meios de comunicação que transmitem imagens e
informações inadequadas para as crianças, como a sexualidade exacerbada.
Kramer (2000), que compactua com a ideia do desaparecimento da infância, acredita
que, na sociedade hodierna, a violência e a hostilidade pautam a educação das crianças, sendo
tais a origem dos problemas educacionais enfrentados hoje nas escolas. Também nessa linha,
Tomás (2006) discute a situação da infância no conjunto da vida contemporânea marcado pela
violência, injustiça e desigualdades sociais. A autora defende a ideia de que deveria haver
movimentos sociais que assegurassem os direitos das crianças, os quais não estão sendo
respeitados na configuração social atual.
A partir do que vem sendo desenvolvido até agora, é possível observar que essas
transformações na infância do século XXI são apontadas por muitos estudos como um
problema social. No entanto, ao invés de afirmarem a morte da infância ou tomarem essas
transformações como um problema, alguns autores buscam compreender o sentimento de luto
em relação às mudanças na concepção de infância construída na modernidade. Expressando a
dificuldade para tratar desse assunto, Castro (2002) considera que:
não veria motivo de angústia, frente à afirmada morte da infância, mas sim da angústia por não encontrar novos significantes e metáforas que delineiem para nós sua nova face, transformada, que ronda imperceptível e cabreira, frente às nossas teorias de antanho (CASTRO, 2002, p. 57).
Para a autora, o “mal-estar” e a “inquietação” diante dessa nova infância têm relação
com a naturalização de uma noção de infância frágil e inocente. A autora também afirma que
a ideia de infância está relacionada a uma ideia de adulto, estando essas categorias sociais
marcadas por diferenças, ou seja, uma criança imatura e frágil frente a um adulto maduro e
24
forte. Dessa forma, a morte da infância diria respeito também à morte dessas diferenças
(CASTRO, 2002, p. 47).
Segundo Barbosa (2007), a construção das identidades pessoais e sociais das crianças
se dá no contato com os adultos e entre as próprias crianças, por meio de brincadeiras e jogos.
A partir dessas relações, as crianças criam suas “sínteses e expressões” (BARBOSA, 2007, p.
1066), o que leva a pensar em uma infância contemporânea marcada pela heterogeneidade e
mutabilidade. A autora acrescenta:
As crianças se misturam, assimilam e produzem culturas que provêm da socialização tanto da cultura dos vídeos games, das princesas, das redes, dos CDs, como também da cultura dos amigos, do futebol, dos laços de afeto, da vida em grupo na escola e na família, tudo em um mesmo espaço e tempo social pessoal (BARBOSA, 2007, p. 1067).
Na mesma direção, Barra (2004, p. 63-64) aponta que os meios eletrônicos e a internet
“permeiam as vivências quotidianas das crianças e estão presentes nos dispositivos, modos e
processos de elaboração e reelaboração dos saberes das crianças”. Dessa forma, há estudiosos
que defendem a ideia de que existe um processo de interpretação e apropriação das crianças
daquilo que está sendo transmitido pelos diferentes meios de comunicação. Esses autores não
debatem o que a mídia está mostrando, mas, sim, o que as crianças “fazem com aquilo que
veem na mídia” (GOMES, 2008, p. 189).
Sarmento (2003), em seu texto “As Culturas da Infância nas Encruzilhadas da 2ª
Modernidade”, aponta para as mudanças na sociedade contemporânea e as suas implicações
na nova concepção de infância. Sem pensar na morte da infância, o autor busca compreender,
a partir da ideia de que as crianças possuem uma cultura própria, como as crianças constroem
representações e significados no mundo em que estão inseridas. Sarmento afirma a autonomia
relativa das culturas infantis em relação aos adultos. Para o autor, “há muito que se vem
estabelecendo a ideia de que as crianças realizam processos de significação e estabelecem
modos de monitorização da ação que são específicos e genuínos” (SARMENTO, 2003, p. 11).
Com base no exposto, percebo que o debate sobre as mudanças na infância
contemporânea está latente. Alguns teóricos afirmam o seu fim, outros apontam para a
dinamicidade das culturas infantis e a necessidade de se romper com antigas concepções de
infância. Tanto a Sociologia quanto a Antropologia vêm estudando a infância e a criança ao
longo dos anos e muitas são as formas de olhar para esses sujeitos. Sendo assim, trago a
seguir um panorama geral das mudanças de abordagens da Sociologia da Infância e da
25
Antropologia da Criança e como esses estudos auxiliam-me a pensar sobre a infância, e mais
especificamente sobre a participação das crianças no esporte de alto rendimento.
2.2 CHEGANDO AO PROBLEMA DE PESQUISA: OLHANDO PARA AS CRIANÇAS NO ESPORTE DE ALTO RENDIMENTO A PARTIR DA SOCIOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA
Ambientada no século XIX, a Sociologia durkheiminiana foi uma das pioneiras nos
estudos sociológicos sobre a infância (MORUZZI, 2011), considerando as crianças como
receptoras passivas do meio social, moldadas e socializadas pelas instituições escolares e pela
família. Segundo Durkheim, a educação é definida como:
A ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social. Tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais que lhe exigem a sociedade política no seu conjunto e o meio especial ao qual está particularmente destinada (DURKHEIM, 2001, p. 52).
O autor percebia cada geração nova como uma tábula rasa sobre a qual deveria ser
construído o ser social. O ser social resume-se a um sistema de ideais, crenças religiosas,
aspectos morais, tradições e opiniões coletivas de qualquer qualidade que exprimem em nós o
grupo e/ou sociedade em que vivemos.
Apesar da visibilidade dada às crianças e das contribuições trazidas por essa ideia
pioneira, algumas críticas a ela foram feitas. Buss-Simão (2009, p. 5) afirma que, “nessa
perspectiva, às crianças é negada a possibilidade ativa na consolidação e definição de seu
lugar na sociedade, sendo reduzidas a meros receptáculos de papéis funcionais que devem
desempenhar”.
A partir da década de 1980, uma nova corrente de estudos, os chamados “novos
estudos sociais da infância”, criticam a ideia de apropriação passiva pelas crianças no
processo de aprendizagem da cultura (PIRES, 2008). Essa aprendizagem de cultura referida
por Pires é entendida como um processo de socialização. O conceito de socialização, ao longo
dos anos, foi se tornando mais complexo conforme o desenvolvimento das sociedades
contemporâneas. Nesse sentido, Setton (2012, p. 19), ao apresentar um ensaio teórico sobre os
temas socialização e cultura, afirma que, a partir dos anos de 1980, alguns trabalhos no campo
da Sociologia problematizaram o conceito de socialização que centrava as “estruturas” e as
“determinações sociais de ordem material e econômica” como os principais agentes no
processo de aprendizagem de cultura.
26
No entanto, Pires (2008) faz uma crítica à noção de socialização dos novos estudos da
infância. A autora argumenta que esses autores saíram de um extremo e foram para outro,
pois, se antes as crianças não eram consideradas ativas no processo de socialização, agora as
mesmas possuem agência excessiva, no sentido de construírem culturas próprias que são
autônomas em relação à cultura adulta. A autora afirma que:
O problema, nesse caso, é que os new social studies tenderam a inverter a balança, colocando a criança como sujeito pleno da sua própria socialização sem, no entanto, 1) reconhecer o papel do adulto neste processo, e 2) criticar a própria noção de socialização enquanto aprendizado estático e previsível (PIRES, 2008, p. 139).
Prout (2010) afirma que a Sociologia da Infância contemporânea surgiu em um
contexto de grandes transformações sociais. A sociedade nesse período – assim como hoje –
estava marcada pela desordem, instabilidade, fluidez, complexidade, assim como novas
configurações familiares. Apesar do esforço em dar conta dessas mudanças na configuração
da infância, a Sociologia da Infância, segundo Prout, reproduz algumas dicotomias que
marcaram a Sociologia moderna.
Sobre essas dicotomias, Prout (2010) destaca três delas: estrutura e ação, natureza e
cultura e o ser e o devir. Sobre a primeira, o autor afirma que a estrutura diz respeito aos
estudos sobre a infância, e a ação, aos estudos sobre as crianças. Quando os estudos
sociológicos tratam da infância, a abordagem é de âmbito macrossocial, ou seja, a infância é
vista como uma categoria social na qual as crianças estão englobadas. A partir dessa visão, a
noção de infância pode explicar as ações e os comportamentos das crianças. Os estudos sobre
a infância trazem a ideia de estabilidade e homogeneidade. Nessa vertente teórica, a noção de
infância tem fronteiras bem definidas (PROUT, 2010).
Com base nos estudos trazidos sobre o esporte de alto rendimento para crianças, e no
meu percurso de quase 6 anos5 como estudante de Educação Física, posso afirmar que, nessa
área do conhecimento, fala-se mais em infância do que em crianças. Em outras palavras, as
crianças são vistas como indivíduos pertencentes a uma fase da vida com características bem
definidas. O desenvolvimento motor, a aprendizagem motora, assim como outras ciências do
movimento humano, pautam a produção do conhecimento nesse campo acadêmico.
Dornelles e Bujes (2012, p. 16) alertam para a forma atemporal com que muitas vezes
a infância é abordada. Assim, para as autoras, “essas perspectivas de significar a infância
estão de tal maneira naturalizadas que deixam pouco espaço para que percebamos outras
5 Ingressei no curso de Educação Física no primeiro semestre de 2008.
27
formas de pensá-las e também para que ponhamos em questão os processos que vieram a
constituí-la desta forma”. Essas reflexões me fazem questionar a ideia de infância presente
hoje na Educação Física – não no sentido de negar os conhecimentos até então produzidos,
mas de pensar outras possibilidades de se compreender a infância e as crianças, e, assim,
estabelecer diálogos.
Voltando para as dicotomias existentes na Sociologia da Infância, apontadas por Prout
(2010), tem-se que, em outras pesquisas, as quais têm como foco as crianças, a centralidade
da abordagem está nos sujeitos e suas relações com a cultura. Nos estudos sociológicos sobre
crianças, fala-se em infâncias no plural. Para essa vertente, as infâncias são construídas a
partir da interação entre os atores com base em uma pluralidade, sendo que aqui as fronteiras
sociais já não mais estão bem definidas. Para Prout (2010), na Sociologia da Criança, “trata-se
apenas superficialmente da ação das crianças como atores; ela é vista como uma característica
essencial e quase não mediada dos humanos, que não requer muitas explicações” (PROUT,
2010, p. 735).
Na dicotomia natureza vs. cultura, a ação e a estrutura são vistas da mesma forma, ou
seja, são produzidas discursivamente. Baseados em textos pós-estruturalistas, esses estudos
desconstroem os dualismos presentes na Sociologia moderna, porém Prout acredita que seja
alto o custo para a sustentação dessas teorias, isso porque a defesa por tais teorias “garante ao
discurso (narrativa, representação, simbolização etc.) o monopólio como meio pelo qual a
vida social, consequentemente a infância, é construída”. Dessa forma, a materialidade, seja ela
qual for, é omitida como participante dessa construção de infância e de crianças. Com o
intuito de escapar do reducionismo biológico, a Sociologia da Infância tratou a infância como
um fenômeno quase que totalmente social, caindo novamente em um reducionismo: o
sociológico (PROUT, 2010, p. 736).
A partir do dualismo natureza vs. cultura apresentado por Prout, penso que, enquanto a
Sociologia da Infância está de um lado, a Educação Física está do outro. Tanto as pesquisas
que abordam métodos de detecção de talentos quanto as que criticam a especialização precoce
no esporte dão evidência ao corpo e ao desenvolvimento psíquico e social da criança a partir
de discursos biológicos e psicológicos. É, pois, indiscutível a importância desses
conhecimentos produzidos tendo em vista que eles orientam os treinadores e os professores
nas suas intervenções. No entanto, pergunto: é possível compreender um corpo
descontextualizado? Quais outros fatores estão pautando a participação e o aprendizado das
crianças no esporte de alto rendimento?
28
Para finalizar as dicotomias destacadas por Prout (2010), embora o autor afirme que
existem muitas outras, apresento o ser e o devir. O “ser” está ligado a algo pronto, acabado,
completo, enquanto o “devir” traz a ideia de construção, de um ser que se transforma. Prout
alega que alguns autores da Sociologia da Infância defendem fortemente essa dicotomia em
seus estudos. Tendo como referência Nick Lee (1999), o autor reforça que essa área do
conhecimento precisa reconhecer igualmente o ser e o devir nas crianças: ao mesmo tempo
em que a criança é um ser com características próprias, ela também é um sujeito em constante
transformação, ligada a redes complexas de relações, as quais contribuem para essa
mutabilidade.
Para Prout, então, a infância deve ser estudada como um fenômeno complexo, o qual
não se explica a partir de abordagens extremistas. Sendo assim, o pesquisador sugere a
interdisciplinaridade para os estudos sobre a infância, perspectiva em que haveria a soma
entre os conhecimentos produzidos ao longo da história das Ciências Biológicas (citando, por
exemplo, a Psicologia) e Sociais. A dificuldade apontada pelo autor em fazer essa leitura
interdisciplinar da infância é o tempo empreendido para tal tarefa.
Muitas são os estudos sobre a infância e as crianças aos quais temos acesso hoje, e a
Psicologia é uma área com tradição nessas produções. Quando o assunto são crianças na
contemporaneidade, encontramos os seguintes temas: falta de criatividade, agressividade,
competitividade, individualismo, solidão, insatisfação, entre outros, decorrentes das
tecnologias e da lógica de consumo (SALGADO, 2005; BORUCHOVITCH, 2003;
CARRIJO, 2012; FAVILLI; TANIS; MELLO, 2008).
No âmbito do esporte de alto rendimento, encontrei produções do campo da Educação
Física que abordam temas da Psicologia, tais como: motivação, personalidade e o perfil
psicológico de atletas, assim como o estresse diante das exigências de resultados e
competições (ROSE JÚNIOR, 2002; RÉ; ROSE JÚNIOR; BÖHME, 2004; LAVOURA;
ZANETTI; MACHADO, 2008). Mesmo sabendo que todos esses assuntos não são consenso
na Psicologia, percebo muitas dessas abordagens dentro das dicotomias apontadas por Prout,
mais especificamente nas ideias de infância e natureza em oposição aos estudos sobre crianças
e cultura. Embora, muitas vezes, sejam mencionadas as influências do contexto cultural na
formação das crianças, esses estudos parecem buscar uma essência infantil.
Percebendo a influência dessas abordagens no campo da Educação Física, tenho como
objetivo construir diálogos entre natureza e cultura, a fim de ampliar o debate e estabelecer
algumas relações com o que já vem sendo dito sobre a criança e o esporte de alto rendimento.
Para estabelecer essas trocas, entendo que, assim como a Sociologia da Infância, a
29
Antropologia da Criança traz reflexões importantes na medida em que busca compreender as
culturas das crianças e suas formas de se relacionarem e significarem o mundo.
Sobre os estudos antropológicos que centram-se nas crianças, as primeiras pesquisas
realizadas, por volta de 1920, tinham como objetivo compreender de que forma a cultura
moldava o corpo e a personalidade das crianças. Esses sujeitos eram vistos como seres
incompletos e inacabados, que estavam sendo preparados para a vida adulta. Nesse período,
acreditava-se que o desenvolvimento da personalidade das crianças estava inteiramente
pautado pelo contexto cultural. Apesar de esses estudos não olharem para as crianças como
indivíduos ativos na aprendizagem e na construção de culturas, suas abordagens davam
visibilidade às crianças, aspecto antes não presente na Antropologia. Uma das primeiras
pesquisas antropológicas que inicia esse movimento de dar visibilidade às crianças é da
pesquisadora Margaret Mead (BUSS-SIMÃO, 2009).
Cohn (2005) discorre sobre um segundo momento dos trabalhos antropológicos na
área da infância. A autora afirma que, nessa segunda fase, os estudos não estão preocupados
com a formação da personalidade das crianças, mas, sim, com as práticas e o processo de
socialização delas. Dessa forma, “não é uma questão de aquisição de cultura e competências
[...], mas de delimitação de papéis e relações sociais envolvidas nesses processos e que
embasam e realizam essas práticas” (COHN, 2005, p. 15). A socialização, nesse caso, é
entendida como práticas que inserem os sujeitos em categorias sociais que compõem um
sistema. Sendo assim, interessa estudar o sistema para entender a infância, e dessa forma as
crianças são vistas como sujeitos passivos no processo de socialização.
A partir da década de 1960, os estudos antropológicos passaram também por um
processo de inovação significativa, o qual envolvera a revisão de conceitos importantes para a
Antropologia, como os conceitos de cultura, sociedade e ação social. A partir desse momento,
a cultura não é mais vista como algo observável e dado, e fala-se menos em costumes e
crenças, pois a ideia central é estudar aquilo que conforma os valores, os costumes e as
crenças. A cultura aqui é entendida como um sistema simbólico que orienta e dá sentido às
experiências (COHN, 2005).
Esse sistema simbólico referido acima pode ser relacionado com o conceito de cultura
desenvolvido por Geertz (1989). Para esse autor, a cultura é entendida como “um sistema de
significados criados historicamente em termos dos quais damos formas, ordem, objetivo e
direção em nossas vidas” (GEERTZ, 1989, p. 37). A cultura, segundo ele, é constituída por
símbolos significantes, ou seja, palavras, gestos, objetos, desenhos ou tudo aquilo que
transmite significados e dá sentido às experiências. Nessa perspectiva, as representações
30
(significados) sociais são construídas, ressignificadas e compartilhadas a todo o momento
pelos atores sociais, fazendo com que a cultura seja dinâmica.
Da mesma forma como a cultura passa a ser entendida como um sistema simbólico em
constante mudança, a ideia de sociedade também adquire essa característica de mutabilidade –
ou seja, mesmo considerando o contexto social como algo estruturado, existe também uma
constante produção de relações e interações que o constitui. Dessa forma, o indivíduo é visto
como um ator “ativo” nesse processo, pois as relações e as interações são produzidas por ele.
Cohn (2005, p. 20), ao falar sobre esse protagonismo dos indivíduos nas sociedades, afirma:
“se antes eles [indivíduos] eram atores no sentido de atuar em um papel, agora eles são no
sentido de atuar na sociedade recriando-a a todo o momento”.
Sobre essa nova Antropologia, Cohn (2005) destaca que não se trata de uma
Antropologia da Infância, mas, sim, uma Antropologia da Criança. A infância, segundo essa
corrente teórica, é vista como um modo particular de pensar a criança. Na Antropologia da
Criança, acredita-se que existe relativa autonomia do mundo infantil, ou seja, uma forma
particular de as crianças pensarem. Nessa perspectiva, não é negada a característica estrutural
do contexto social, mas, sim, é alertado para o fato de as crianças serem ‘produtoras’ tanto de
relações, estabelecidas entre crianças e adultos e entre pares, quanto de sistemas simbólicos
que vão compor a sociedade em que vivem.
Sobre a Antropologia da Criança contemporânea, Cohn (2005) afirma que:
isso não quer dizer que a antropologia da criança recente se confunda com análises do desenvolvimento cognitivo, ao contrário, dialoga com elas. A questão, para a Antropologia, não é saber em que condição cognitiva a criança elabora sentidos e significados, e sim a partir de que sistema simbólico o faz (COHN, 2005, p. 33-34).
Dessa forma, a questão central é entender como as crianças formulam os sentidos que
dão ao mundo em que vivem, pois acredita-se que as crianças elaboram sistemas de
significados complexos que não necessariamente são iguais aos dos adultos. A Antropologia
da Criança não nega o atravessamento entre as culturas dos adultos e as culturas das crianças,
pois as interações se cruzam e são construídas em conjunto. Porém, para esses teóricos, isso
não justifica colocar as crianças em uma posição de sujeitos incompletos e com entendimento
limitado sobre as coisas e o mundo.
Percebo três fases nos estudos antropológicos sobre as crianças. A primeira parece
focar-se nas crianças e como a “natureza” delas é moldada pela sociedade; a segunda fase
muda o foco para a sociedade e como essa molda as crianças; e a terceira fase volta o olhar
31
para as crianças, porém dá evidência aos modos como esses sujeitos se relacionam, atuam e
criam culturas na sociedade. Portanto, pode ser observado que, nesses estudos, existe uma
busca pelo ponto de equilíbrio entre pensar a criança como um produto da cultura e pensar a
criança como produtora de cultura.
Como todas essas reflexões advindas da Sociologia e da Antropologia levam ao
objetivo dessa pesquisa? Vejo no esporte de alto rendimento uma possibilidade de debater e
dialogar com uma ideia de infância já instituída no campo da Educação Física e que pauta a
produção do conhecimento e práticas pedagógicas. Além disso, esse tema permite estabelecer
relações não de oposição, mas, sim, de complementaridade entre natureza infantil e culturas
de crianças, aspectos fortemente presentes na Educação Física.
Para isso, direciono o meu olhar para as crianças atletas e busco dar evidência às
formas como esses sujeitos apropriam-se de um esporte que exige dedicação, compromisso e
esforço físico. Dessa forma, o objetivo desse estudo é compreender como crianças são
constituídas atletas na iniciação esportiva para o alto rendimento na Ginástica Artística
e quais os significados que as mesmas atribuem ao contexto do treino esportivo do qual
fazem parte.
Algumas questões orientadoras auxiliaram-me no desenvolvimento desse objetivo:
- Quais são os motivos que levam as crianças a desejarem compor a equipe de GA?
- Como essas crianças se relacionam com as exigências físicas dos treinos, com as
competições e com as cobranças de resultados?
Acredito que, da mesma forma como é relevante analisar as consequências que o
esporte de alto rendimento pode causar na formação das crianças, ou, ainda, identificar quais
são as formas mais adequadas de iniciar uma criança no esporte de alto rendimento, é
importante olhar ‘como’ esse processo acontece e ‘de que maneira’ as crianças participam na
sua construção como atletas.
32
3 METODOLOGIA
Para desenvolver esse estudo, apoiei-me no método etnográfico de pesquisa. A
etnografia, desde o século XIX, é um método tradicionalmente utilizado por antropólogos na
busca pela compreensão de diferentes grupos sociais. Em pesquisas antropológicas clássicas,
a etnografia se caracterizava por um ‘mergulho’ em culturas ainda preservadas, ou seja, em
comunidades que não haviam sido colonizadas, a exemplo dos estudos desenvolvidos em
tribos indígenas e africanas. O objetivo dos pesquisadores era entender as formas de vida
desses povos, seus costumes, línguas, religiões, entre outras questões que compõem a cultura.
Foi a partir de 1920 que sociólogos passaram a utilizar a etnografia para compreender
sociedades modernas (ANGROSINO, 2009).
Clifford Geertz (1989, p. 5) afirma que a etnografia busca compreender os significados
das ações dos sujeitos, assim como entender os códigos socialmente estabelecidos pelas
sociedades ou indivíduos estudados. A esse processo de análise e interpretação de
determinada cultura o autor chama de “descrição densa”. A descrição densa vai além do
detalhamento de algum fato: significa a descrição de como as ações são produzidas,
percebidas e interpretadas pelos sujeitos pesquisados, ou seja, busca compreender os seus
significados.
Atualmente, existem diferentes contextos sociais em que a etnografia é utilizada. Em
muitos casos, o pesquisador estuda situações e sujeitos que não lhe são estranhos, pelo
contrário, fazem parte do seu contexto social. No entanto, segundo Velho (1978), o fato de
uma sociedade, grupo ou indivíduos não serem estranhos para o pesquisador não quer dizer
que não haja distâncias simbólicas entre esses atores.
Assim, em princípio, dispomos de um mapa que nos familiariza com os cenários e situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos. Isto, no entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação social nem as regras que estão por detrás dessas interações, dando continuidade ao sistema (VELHO, 1978, p. 40).
Na mesma direção de Gilberto Velho, percebo que existe um mapa que nos familiariza
com as crianças, o qual permite que atribuamos nome, lugar e posição a esses indivíduos. O
mesmo acontece no debate traçado sobre o esporte de alto rendimento na infância, pois
diversos autores, a partir de uma visão de infância, discutem como o esporte
profissionalizante deve ser introduzido na vida das crianças. Como mencionado
anteriormente, na Educação Física, a infância é vista como um período na vida dos seres
33
humanos dividido por fases, as quais possuem características específicas e que servem de
orientação para o ensino dos esportes, assim como de outras práticas corporais. No entanto,
nesse campo, existe uma ausência da compreensão sobre como as crianças vivenciam o
esporte, quais significados atribuem ao que fazem e como constroem as relações sociais nesse
contexto. Dessa forma, por direcionar o meu olhar para os sistemas de relações e significados
que compõem o esporte de alto rendimento a partir da visão das crianças, a etnografia surge
como um método adequado para o desenvolvimento desse estudo.
Dentre as diversas ferramentas etnográficas, utilizei as observações sistemáticas, que
são realizadas a partir da presença cotidiana do pesquisador na rotina de um grupo ou
indivíduos que deseja pesquisar. A partir dessas observações, é possível desenvolver, assim
como afirma Geertz (1989), descrições densas das relações sociais estabelecidas no contexto
da pesquisa. Segundo Rocha e Ecker (2008, p. 11):
O observar na pesquisa de campo implica interação com o Outro, evocando uma habilidade para participar das tramas da vida cotidiana, estando com o Outro no fluxo dos acontecimentos. Isto implica estar atento(a) às regularidades e variações de práticas de atitude, como também reconhecer as diversidades e singularidades dos fenômenos sociais para além das suas formas institucionais e definições oficializadoras por discursos legitimados por estruturas de poder.
Dessa forma, para o desenvolvimento do estudo, realizei observações nos treinos e nas
competições de uma pré-equipe feminina de aproximadamente 10 crianças, com idades entre
8 e 12 anos, que eram preparadas, por três treinadoras, para o esporte de alto rendimento na
Ginástica Artística (GA) do clube Grêmio Náutico União (GNU) da cidade de Porto Alegre.
Em relação ao número de crianças da equipe, é importante destacar que existia uma
movimentação de atletas, sendo que algumas saíram da equipe e outras entraram, o que
causou uma pequena variação no que se refere aos participantes ao longo da pesquisa.
Sobre as observações, é importante apontar que existem diferenças entre observações
‘participantes’ e observações ‘sistemáticas’. A primeira – bastante comum nos estudos
etnográficos – caracteriza-se por uma participação ativa do pesquisador nas tramas cotidianas
do grupo pesquisado, já a segunda é construída a partir de uma observação mais ‘periférica’,
na qual o pesquisador adota uma postura apenas de observador. No caso da presente pesquisa,
em poucos momentos eu ajudei as treinadoras com a movimentação de alguns materiais, dei
assistência às meninas em alguns exercícios e auxiliei no cuidado das meninas em uma
viagem. No entanto, a maior parte das observações foram realizadas de forma passiva, ou
seja, eu não costumava intervir nos treinos. Apesar disso, desenvolvi, segundo Magnani
34
(2002, p. 17), observações de “perto e de dentro”, identificando, descrevendo e refletindo
sobre os aspectos daquele contexto que ‘faziam sentido’ para as ginastas e as treinadoras da
pré-equipe.
As observações foram desenvolvidas durante 9 meses, de março a dezembro de 2014,
com frequência aproximada de duas vezes por semana no turno da tarde (de 2 a 4 horas por
dia). Além dos treinos, acompanhei quatro competições, uma realizada em Guarulhos/SP e as
outras três em Porto Alegre. Ao longo desses 9 meses, foram produzidos 49 diários de campo.
O clube em pauta foi escolhido pelo fato de ser nacionalmente reconhecido por formar
grandes atletas. Já a Ginástica Artística foi escolhida por atender aos objetivos do estudo
enquanto campo de pesquisa, e também por encontrar nesse local aquilo que recomenda
Winkin (1988): um contexto que ofereça uma observação sistematizável, ou seja, um campo
investigativo que possua uma rotina de atividades que não corre o risco de ser encerrada e que
possa ser observada de forma contínua.
Ao iniciar as observações, fiz um movimento de aproximação com as crianças da pré-
equipe. Simbolicamente, eu estava distante dos sujeitos que pretendia estudar, pois sou uma
adulta que não sabia quase nada sobre Ginástica Artística. Tendo em vista esses aspectos, o
meu trabalho de campo e a inserção no contexto social que pretendia estudar se deram de
forma gradual.
Silva (2010, p. 51), ao descrever o seu processo de entrada em campo e aproximação
com escolares, mostra os diferentes significados que as crianças atribuíam ao adulto
pesquisador. Uma das representações dadas era a de um “adulto denunciante”, pois, ao
perceber que o pesquisador estava fazendo anotações em um caderno, logo sua imagem era
associada à de um espião que identificava as crianças bagunceiras e anotava seus nomes. No
entanto, ao longo de sua estada em campo, essa imagem foi sendo desconstruída. A partir de
inúmeros contatos estabelecidos com as crianças, negociações e entendimento das formas
como são mantidas as relações entre elas, o autor conseguiu aproximar-se suficientemente
para compreendê-las.
Wenetz (2011, p. 141) também descreve o seu processo de inserção como
pesquisadora em uma escola pública. Assim que chegou à escola, a autora tornou-se uma
espécie de “atração turística” naquele contexto. Pelo fato de ser argentina e falar o português
com forte sotaque, as crianças iam até ela fazer perguntas apenas para ouvi-la. Durante o
período em que esteve em campo, a pesquisadora recebeu diversas definições das crianças,
como “japonesa”, “italiana”, “espanhola”, “argentina”, “espiã”, “professora”, “estagiária”,
“professora comprida que fala enrolado”, entre outras. Após esse momento de aproximações e
35
familiarização, a pesquisadora passou a brincar com as crianças, possibilitando outros
vínculos e dissociando a imagem de autoridade.
A minha entrada no campo de pesquisa apresentou algumas semelhanças com os
estudos mencionados acima. Assim como apontou Silva (2010), nos primeiros meses de
observações utilizei um caderninho de anotações. Esse caderno, em alguns momentos,
causava curiosidade nas meninas, pois muitas perguntaram o que eu escrevia ali. Porém, além
do meu caderninho, o meu olhar atento a tudo o que as ginastas faziam parecia intimidar
algumas meninas.
Percebi diversas situações em que as meninas falavam mais baixo para eu não ouvir o
que diziam. Em um dia, Míriam e Patrícia6 conversavam sobre algum assunto em um tom
mais baixo. Ao perceber que eu estava olhando, Míriam pediu à Patrícia ficar quieta e, com
gestos, comunicou a sua colega que eu as estava observando. Esse foi um momento bastante
delicado no campo de pesquisa, pois era importante que as meninas não se sentissem coagidas
com a minha presença. Diante disso, embora as treinadoras já tivessem me apresentado para
as ginastas, achei melhor me aproximar das duas meninas e explicar mais uma vez por que eu
estava observando-as e fazendo anotações. Nesse momento, considerei importante dizer para
as meninas que eu estava ali para aprender um pouco sobre a GA e como elas vivenciavam os
treinos. Para o meu alívio, no dia seguinte, Míriam sorriu quando me viu e veio até mim para
cumprimentar-me com um beijo, como costumava fazer com as treinadoras e com as suas
colegas.
Porém, foi apenas depois de alguns meses que consegui aproximar-me suficientemente
das ginastas a ponto de conseguir participar das suas conversas. Para viabilizar essa
aproximação, foi necessário abandonar o caderninho de anotações e mostrar disposição para
aprender os movimentos da Ginástica Artística, processo esse que descreverei ao longo do
trabalho.
Além das observações sistemáticas, apoiei-me na produção dos diários de campo, os
quais fazem parte do processo de observações, pois tudo o que é observado deve ser
registrado. Os diários são anotações confidenciais e reflexivas, que possuem como função
básica o registro de tudo o que sentimos, observamos e refletimos sobre o contexto
pesquisado. Assim como as observações, a releitura dos diários permite que possamos ver
regularidades que nos auxiliam na compreensão dos fenômenos sociais (WINKIN, 1988).
6 Os nomes próprios dos sujeitos dessa pesquisa são nomes fictícios. Mais adiante, elucido a escolha metodológica que justifica tal escolha.
36
Com isso, todas as observações que realizei foram registradas de forma reflexiva, sistemática
e confidencial em 49 diários de campo.
Outra ferramenta utilizada na etnografia é a realização de entrevistas semiestruturadas.
A entrevista semiestruturada é composta por perguntas amplas, que dão margem para o
entrevistado dialogar livremente sobre o tema investigado. Segundo Burgess (1997), as
entrevistas desenvolvidas em forma de conversa, em um ambiente descontraído,
proporcionam informações mais detalhadas. Para esse autor, as entrevistas possibilitam o
acesso às informações que não foram esclarecidas apenas com as observações, servindo como
um complemento para a pesquisa, ou, ainda, podem ser utilizadas para a obtenção de detalhes
sobre situações não presenciadas pelo pesquisador. Mas, quando as entrevistas são com
crianças, como proceder?
Wenetz (2011), apesar de apontar para as poucas referências sobre a realização de
entrevistas com crianças, encorajou-se para utilizar essa ferramenta etnográfica com 58
crianças com idades entre 8 e 9 anos de uma escola pública de Porto Alegre. A autora, a fim
de não constranger as crianças ou ter situações de brigas durante a entrevista, optou por
realizar as entrevistas em duplas, as quais eram formadas pelas próprias crianças. Antes dessa
etapa, o questionário foi apresentado para as crianças em sala de aula e as questões foram
debatidas. Wenetz argumenta que, dessa forma, as crianças não ficariam ansiosas, inibidas ou
surpreendidas com as perguntas que seriam feitas. Segundo a autora, o gravador também foi
um elemento que tornou atrativa e positiva a entrevista, pois as crianças ficaram curiosas e
falavam devagar. A pesquisadora considerou importante explicar para as crianças que aquele
momento era único e por isso não poderiam repeti-lo, evitando, assim, falsas expectativas de
retorno àquela conversa.
Muitos fatores estão envolvidos na realização de uma entrevista semiestruturada, e,
quando os sujeitos são crianças, a situação torna-se ainda mais complexa. Delfos (2001)
afirma que, até os 8 anos de idade, as crianças não sabem claramente quais os códigos sociais
de uma conversa. Dessa forma, é necessário ser explicado pelo pesquisador como a entrevista
será desenvolvida. A autora também destaca algumas formas de orientar conversas dirigidas a
crianças conforme a idade. Um exemplo utilizado em seu texto são conversas com crianças de
4 a 6 anos, sobre o que Delfos sugere: explicar o porquê da conversa, informar à criança que o
que vale na conversa são suas opiniões e ideias verdadeiras e não situações fantasiosas, usar
situações lúdicas durante a entrevista – como jogos –, realizar a conversa juntamente com
algum amigo, parar e continuar a conversa mais tarde se a criança se cansar, e, por fim, cuidar
para a entrevista não se tornar monótona.
37
Diferentemente do que as autoras apontaram, não foi necessário preparar um ambiente
descontraído7 para desenvolver as entrevistas com as ginastas, assim como não foi preciso
familiarizá-las com o gravador, ou explicar detalhadamente como seria a entrevista. Isso se
deu pelo fato de as meninas estarem acostumadas a participar de reportagens8 e entrevistas
para a televisão e para trabalhos acadêmicos de diversas universidades. As meninas pareciam
gostar das câmeras, pois, quando falei a elas que iria realizar as entrevistas, as ginastas
ficaram muito animadas e queriam saber se haveria filmagem. Quando lhes foi dito que não
haveria o uso de câmera durante as entrevistas, algumas até se mostraram desapontadas.
Considerei adequado desenvolver as entrevistas no final das observações, pois possuía
mais elementos para compor o roteiro, baseado nas observações desenvolvidas ao longo dos
meses anteriores. Além disso, as ginastas já estavam acostumadas com a minha presença e eu
já havia construído vínculos afetivos com as meninas, o que facilitou com que se sentissem à
vontade durante a entrevista. Por esse motivo, não foi necessário desenvolver as entrevistas
em duplas: realizei uma entrevista com cada atleta, totalizando 11 entrevistas.
Porém, ao transcrever as entrevistas, percebi que alguns pontos não foram debatidos
com a devida profundidade – talvez pela minha falta de experiência em entrevistar crianças.
Por essa razão, no último dia de observações, resolvi realizar uma conversa em grupo para
retomar os assuntos que eu considerava relevantes para o estudo. Nessa conversa, não
estavam todas as meninas que eu havia entrevistado, mas a maioria delas.
Desenvolvi essa entrevista em uma sala de ginástica que não estava sendo ocupada.
Sentamos em círculo e expliquei para as meninas que seria o meu último dia no clube e que
precisava conversar novamente sobre alguns assuntos tratados nas entrevistas individuais. As
meninas estavam eufóricas, falavam todas juntas, por isso foi importante estabelecer pequenas
regras, como: só poderia falar quem estivesse de posse do meu estojo. Dessa forma, quando
uma atleta concluía a sua fala, passava o estojo para a colega ao lado, seguindo a ordem do
círculo.
Considero que a conversa em grupo teve aspectos positivos e negativos. Sobre os
primeiros, em alguns momentos aconteciam debates ‘calorosos’ entre as meninas diante de
algum tema – a dor, por exemplo. Nessas situações, as meninas relataram alguns sentimentos
que nas entrevistas individuais não apareceram, como ocorrera com a Maria, que na entrevista
relatou que nunca havia pensado em desistir da GA, mas na conversa em grupo afirmou ter
7 As entrevistas individuais foram desenvolvidas no pátio do clube, em lugares onde não havia circulação intensa de pessoas e muito ruído. 8 Não foram poucos os momentos em que encontrei repórteres no ginásio em que a pré-equipe treinava.
38
pensado em desistir de treinar por causa da dor. Portanto, os debates entre elas revelaram
outros (e mais) aspectos sobre os treinos que nas conversas individuais não apareceram.
Já sobre os aspectos negativos, percebi que as meninas repetiam muito as respostas
umas das outras, de maneira que escapavam-lhe um pouco da criatividade e da
espontaneidade das respostas individuais. Apesar disso, essa conversa foi fundamental
também para reforçar alguns assuntos mencionados nas entrevistas individuais.
Além das crianças, considerei importante entrevistar uma das treinadoras, isso porque
essa treinadora possuía uma longa trajetória como atleta e conhecia a maioria das ginastas da
pré-equipe desde muito pequenas, quando iniciaram nessa modalidade. A partir dessa
entrevista, foi possível entender com maiores detalhes o percurso de cada menina dentro da
GA. A entrevista com a treinadora também foi fundamental para uma maior compreensão
sobre o processo de formação das ginastas.
Diante dessas situações metodológicas, no próximo tópico acredito ser relevante
apontar algumas questões éticas que fazem parte da pesquisa etnográfica.
3.1 IMPLICAÇÕES ÉTICAS NA PESQUISA ETNOGRÁFICA
Conforme a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, os riscos são
inevitáveis em estudos que envolvem seres humanos. No caso dessa pesquisa, os riscos estão
relacionados aos constrangimentos relativos à realização do estudo, especialmente no que se
refere às entrevistas e às observações que se pretende realizar. Para minimizar esse aspecto,
esclareci às crianças, aos pais e às treinadoras os objetivos e o processo metodológico da
pesquisa em tela, assim como o fato de que as informações produzidas são sigilosas e
utilizadas apenas para o estudo. Os sujeitos também foram informados que poderiam desistir
de participar da pesquisa a qualquer momento. Durante o desenvolvimento do estudo,
coloquei-me à disposição para fornecer qualquer esclarecimento de dúvidas que poderiam
surgir.
Outro aspecto que foi esclarecido por meio de documentos aos sujeitos é o fato de que
a pesquisa não traria benefícios diretos aos responsáveis pelas crianças, às crianças, às
treinadoras e/ou ao clube, embora tenha sido salientado que o estudo poderá proporcionar
ganhos indiretos, relativos ao avanço do conhecimento sobre o tema pesquisado9.
No que se refere aos benefícios dessa pesquisa, tendo em vista os temas abordados nas
produções acadêmicas no campo da Educação Física sobre o esporte de alto rendimento para
9 Tais documentos compõem a seção ‘Apêndices’ desse trabalho.
39
crianças, a presente pesquisa visou ampliar o que vem sendo produzido até o momento. Para
isso, pretendi inverter o foco e compreender a iniciação esportiva para o alto rendimento a
partir do olhar das crianças. Isso permitiu desenvolver diálogos com os autores que
problematizam o ensino do esporte de alto rendimento para tal público, diálogos os quais
estão pautados por uma ideia de infância construída na modernidade e que vem passando por
um processo de transformação.
No entanto, mesmo adotando todos esses cuidados éticos, existem situações no
exercício da etnografia que são difíceis de serem previstas e, consequentemente, alertadas aos
interlocutores. O tema de pesquisa dessa dissertação provoca muitos debates acirrados em
função dos diversos motivos já apontados, como o fato de observar crianças que devem
resistir à dor. Por ser uma temática que gera muitas discussões, minha tarefa torna-se ainda
mais difícil. Diante dessa situação, cabe aqui lembrar que o objetivo da utilização da
etnografia nesse estudo não é ‘denunciar’ e muito menos apontar aquilo que deve ou não ser
feito nos treinos direcionados para as crianças, mas, sim, compreender a dinâmica das ações
das crianças no contexto do esporte de alto rendimento.
Sobre a utilização da etnografia como método científico, Fonseca (2007), em um texto
redigido para uma palestra no Seminário do Núcleo de Antropologia e Cidadania da UFRGS,
aponta para um dilema ético muito presente nos estudos antropológicos: o uso ou não do
anonimato no texto etnográfico. Para a autora, esse dilema está muito interligado aos
diferentes significados e usos que a etnografia proporciona. Essas diferenças ocorrem
conforme os objetivos das pesquisas que se utilizam da etnografia, tais como estudos que
possuem objetivos políticos e buscam resolver um problema social, ou estudos que visam
mostrar práticas sociais que são construídas por relações de poder mais amplas, interessando-
se mais pela compreensão da estrutura do que dos ‘fazeres’ cotidianos. Em ambos os casos,
costuma-se utilizar os nomes verdadeiros dos interlocutores e dos locais pesquisados.
A autora discorre sobre alguns argumentos utilizados para justificar a escolha pelos
nomes verdadeiros no texto etnográfico. Um desses argumentos é que o pesquisador, ao
‘mascarar’ o nome dos interlocutores, poderia estar sugerindo que existe algo para ser
‘escondido’. Nesse sentido, os sujeitos pesquisados poderiam ser vistos como ‘desviantes’.
Outro argumento seria a veracidade que os nomes verdadeiros dariam para a pesquisa. Nessa
perspectiva, os dados, produzidos a partir de documentos, relatos públicos e acontecimentos já
registrados, são considerados mais ‘concretos’ e ‘reais’. Essa segunda justificativa está
bastante pautada pela ideia de que a análise/interpretação dos acontecimentos não ‘oficiais’
poderia ser constantemente posta em debate, uma vez que se abre espaço para a seguinte
40
pergunta: como saber que o pesquisador não está inventando alguma história? Dessa forma,
segundo os apontamentos de Fonseca (2007), nos estudos em que o olhar do pesquisador não
está direcionado para a compreensão das diversas maneiras de agir dos sujeitos, a utilização
dos nomes verdadeiros não se torna um problema ético.
Mas a autora, diante desse debate, busca tensionar a discussão ao argumentar que a
escolha pelo anonimato no texto etnográfico não significa ‘esconder’ algo que não pode ser
descrito, muito menos configura um aspecto que desqualifica a produção científica, no sentido
de pôr em dúvida a sua veracidade. Para Fonseca (2007), o que dá veracidade e realidade ao
texto etnográfico, em uma perspectiva em que a etnografia está sendo utilizada para
compreender as práticas cotidianas, é a sua densidade descritiva e a riqueza de detalhes dos
fazeres dos sujeitos da pesquisa. Nesse sentido, apesar de a autora destacar os aspectos
importantes de revelar o nome dos interlocutores e locais onde foram realizados os estudos
(como a possibilidade de utilizar os dados para pesquisas futuras nos mesmos locais), Fonseca
acredita que a melhor forma de desenvolver um texto etnográfico é utilizando nomes fictícios.
Para a autora, a pesquisa das práticas cotidianas, a imersão na cultura de um grupo e a busca
pela compreensão desse grupo implica um detalhamento das ações dos sujeitos, assim como
uma aproximação significativa com os mesmos, fato que leva o pesquisador a assumir um
grande compromisso ético: preservar a privacidade dos informantes. Mesmo permitindo que
os seus nomes sejam revelados na pesquisa, os informantes não sabem o que será dito e até
que ponto serão expostos. Nesse compromisso, o pesquisador está sempre buscando o
equilíbrio entre a descrição densa e a ética.
Com isso, ao acompanhar a pré-equipe na sua rotina, descrevendo detalhes dos
diálogos, dos movimentos e dos fazeres cotidianos daquele grupo, a busca por esse equilíbrio
pautou a construção do texto dessa dissertação. Nesse processo, deparei-me com alguns
dilemas éticos, pois muitas observações eram extremamente importantes para a compreensão
daquele contexto, embora a descrição dessas no trabalho pudesse gerar algum
constrangimento para os sujeitos envolvidos. O que fazer quando uma ginasta pergunta na
entrevista se eu iria contar para a coordenadora um dos relatos que ela estava dando na
entrevista? Ou, ainda, o que responder quando uma treinadora me pergunta se eu colocaria
minha filha na GA?
Diante disso, minha postura durante toda a pesquisa foi buscar compreender as
situações, ao invés de julgá-las. Isso significa que eu não tinha uma opinião sobre as situações
que presenciava? Acredito ser impossível não ter alguma opinião sobre os fatos que nos
rodeiam. No entanto, o que busquei fazer foi questionar as minhas percepções, tentando
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estabelecer uma relação entre elas e aquelas que eu identificava como condutoras das ações
no campo pesquisado. O contraste entre a minha forma de ver as situações e as formas com
que as treinadoras e as crianças viam-nas permitiu que eu compreendesse o contexto em que
eu havia imergido.
No entanto, mesmo adotando essa postura, não pude fugir de situações como as
narradas acima. Face a isso, para não gerar constrangimentos, optei por não utilizar os nomes
verdadeiros das ginastas (bem como dos demais sujeitos da pesquisa de campo). Nesse
sentido, esforcei-me em relatar aspectos que não são vivenciados e narrados apenas por uma
ou duas meninas, mas, sim, compartilhados pela maioria. Para isso, utilizo exemplos/casos
para a exposição das categorias, mas é importante esclarecer que essa foi uma forma didática
que encontrei para apontá-las. Assim, todos os casos utilizados representam um aspecto
recorrente no campo, não sendo, portanto, meras exceções.
Além das descrições e dos relatos que compõem os dados, seleciono para compor esse
texto aqueles que eu considero menos expositivos e que possam, de algum modo, revelar
conteúdos confidenciais dos interlocutores.
Diferentemente da decisão de manter o anonimato dos sujeitos, optei por revelar o
nome do clube. Fiz essa escolha considerando que a descrição detalhada de um espaço
impessoal não representaria a exposição dos interlocutores. Por manter o nome real do clube,
o texto final dessa dissertação foi encaminhado para a coordenadora da Ginástica Artística
dessa instituição, além das treinadoras – que tiveram bastante participação na construção do
trabalho –, a fim de que essas tenham o conhecimento do que será abordado sobre o contexto
pesquisado. Dessa forma, conforme referido no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(ver em ‘Apêndices’), à coordenadora e às treinadoras estaria assegurado o direito de
solicitarem a retirada de informações fornecidas para a pesquisa.
Essas atitudes resolvem os dilemas éticos dessa pesquisa? Acredito que não – pelo
menos não de forma ‘completa’. Afinal, a utilização do anonimato não significa que as
meninas não possam ser identificadas. A partir da descrição que fiz, alguém que esteja
familiarizado com a pré-equipe não teria dificuldade de identificar as atletas. Porém, partindo
da ideia de que o conteúdo exposto não é confidencial e que o meu olhar, sem julgamentos,
está direcionado para as maneiras como as ginastas vivenciavam aquele contexto, acredito que
essa questão se ameniza. Contudo, como aponta Fonseca (2007), os dilemas éticos da
etnografia estão longe de serem resolvidos e, além disso, eliminar os dilemas nem deveria ser
uma preocupação dos pesquisadores, pois essa atitude significaria a busca por uma
neutralidade e uma ‘pureza’ na ciência, as quais são inexistentes. A minha preocupação é
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preservar ao máximo os sujeitos que colaboraram com essa pesquisa, de acordo como as
situações me permitiram. Consultar a coordenadora e as treinadoras antes de finalizar a
redação desse texto foi um esforço nessa direção.
Levando em considerações todos os aspectos discutidos acima, descrevo, nos tópicos
que seguem, a minha entrada no campo de pesquisa.
3.2 UM OLHAR PANORÂMICO SOBRE O CLUBE GRÊMIO NÁUTICO UNIÃO E A GINÁSTICA ARTÍSTICA
Ao construir o meu projeto de pesquisa, realizei leituras que me levaram a um esporte
no qual a iniciação esportiva se dá muito cedo: a Ginástica Artística (GA). De posse dessa
informação, pesquisei clubes esportivos da cidade de Porto Alegre que oferecessem essa
modalidade; no entanto, encontrar uma equipe esportiva de alto rendimento composta por
crianças não foi uma tarefa fácil. Existe um clube na cidade que possui tradição na GA,
motivo pelo qual esse foi o primeiro lugar que visitei. Porém, fiquei muito surpresa, e também
decepcionada, quando descobri que lá não havia mais uma equipe de iniciação na GA. Não
entramos em detalhes, mas a coordenadora da modalidade explicou-me que a equipe havia se
extinguido em função de alguns problemas com os pais dos atletas. Pedi uma indicação e a
coordenadora sugeriu-me a equipe de Judô daquele mesmo clube ou a equipe de GA do clube
Grêmio Náutico União – a qual, nas palavras da coordenadora, “estava muito forte”.
Como a aula de Judô iniciaria em poucos minutos, resolvi ficar para assisti-la.
Procurei a sala onde o esporte era desenvolvido e identifiquei o professor responsável.
Aproximei-me dele e expliquei que estava buscando uma equipe para uma pesquisa de
mestrado e pedi autorização para observar a sua aula. O professor foi receptivo e informou
que aquela turma era de iniciação esportiva para o alto rendimento. Sentei-me na
arquibancada e aguardei o início da aula. Crianças e jovens de diferentes idades chegavam em
pequenos grupos e conversavam, animados. Senti um clima de descontração no ambiente.
A aula iniciou com a sala cheia, e então percebi que os praticantes encontravam-se em
diferentes níveis técnicos. Um menino com algumas limitações físicas chegou minutos depois
de ter iniciado a aula. Aquele clima de descontração permaneceu durante o treino, o qual se
desenvolveu em meio a muitas brincadeiras. Tive dúvidas se aquele ambiente seria apropriado
para o objetivo do meu trabalho.
Terminado o treino, conversei com o professor e expliquei que buscava uma equipe de
alto rendimento que treinasse todos os dias e participasse de competições. O professor
explicou-me que aquela turma que eu havia observado era de atletas iniciantes e, por esse
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motivo, não poderiam ainda ser exigidos dessa maneira, mas que a próxima turma, cuja aula
iniciaria em seguida, era de alto rendimento e se encaixava no perfil de grupo que eu estava
procurando. Resolvi aguardar mais um pouco e ver como se configurava essa próxima turma.
Mais uma vez, senti-me decepcionada, pois chegaram adolescentes e adultos para o treino.
Onde estavam as crianças? Então, questionei-me: será que existe alguma equipe composta por
crianças com esse nível de exigência? Retornei para a minha casa com receio de não
conseguir encontrar um grupo para estudar.
Porém, ainda restava a visita ao clube Grêmio Náutico União (GNU), local onde a GA
“estava muito forte”. Fazia muito tempo que eu havia ido a uma das sedes do clube, em uma
visita que realizei com a escola de ensino básico onde estudei quando adolescente, por isso
não recordava da sua estrutura. Mas, apesar de não conhecer o clube, eu sabia da sua
importância no cenário esportivo brasileiro. Além de ser reconhecido como o local onde
grandes atletas iniciaram suas carreiras, o clube também destaca-se pela sua estrutura física e
inúmeras atividades esportivas desenvolvidas em suas três sedes: bairro Moinhos de Vento –
local em que a Ginástica Artística é desenvolvida –, Ilha do Pavão e bairro Alto Petrópolis.
Cada uma das sedes possui um esporte como referência, sendo a primeira representada pela
Natação, a segunda pelo Remo e a terceira pelo Tênis (PILOTTO, 2010).
Segundo a história do clube registrada no seu site, foi fundado em 1906 por seis jovens
de origem alemã, os quais tinham como objetivo buscar um local para desenvolver o remo,
esporte que até hoje é uma marca forte do clube. Atualmente, o GNU possui mais de 60 mil
associados, sendo um dos maiores clubes da América Latina e o terceiro maior no Brasil.
Distribuído em três sedes, o clube oferece aos sócios e não sócios as seguintes atividades:
esporte máster (Natação, Remo e Tênis), escolas esportivas de Basquete, Esgrima, Futebol,
Ginástica Artística, Ginástica Rítmica, Judô, Karatê e Natação. Além dos esportes específicos,
são desenvolvidos o Projeto Despertar, voltado para a iniciação esportiva em esportes
olímpicos, e o Projeto Verão, composto por atividades esportivas realizadas em janeiro, que é
período de férias das escolas. Também acontecem, em duas sedes, atividades do clube de
musculação, hidroginástica, massagem, sauna e ginástica para pessoas acima de 45 anos
(GRÊMIO NÁUTICO UNIÃO, s.p., 2015).
O GNU também promove eventos sociais, como o Carnaval Infantil, Jantar Queijos e
Vinhos, Baile das Debutantes, Dia das Crianças, Destaques Esportivos, dentre outros. O
evento Destaques Esportivos aconteceu enquanto eu desenvolvia a pesquisa, em dezembro de
2014. Nesse evento, alguns atletas do clube são indicados ao prêmio de “atleta destaque” de
cada modalidade esportiva oferecida pelo clube. Para concorrer ao prêmio, os atletas devem
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ter um bom desempenho durante o ano, conquistando medalhas e boas pontuações nas
competições. Esse evento mobilizou treinadores e atletas da GA, pois, quando se aproximou o
dia da premiação, os assuntos eram: a roupa que usariam, quem compareceria, que horas
chegariam, com quem sentariam, quem concorreria ao prêmio etc.
Uma das meninas da pré-equipe que pesquisei, quando perguntei, na entrevista
semiestruturada, por que ela continuava fazendo Ginástica Artística, respondeu: “Porque cada
vez estou ganhando mais pontos nas competições. Esse ano eu vou ser destaque da casa”
(RAQUEL, 21/11/2014). “Destaque da casa” significa concorrer ao prêmio do evento
Destaques Esportivos. Pela fala da menina, e pela mobilização da pré-equipe que presenciei,
esse evento promovido pelo clube representava um momento importante para o grupo
pesquisado. Portanto, além da estrutura – piscinas olímpicas, ginásios, salas, vestiários e
academias –, existem diversos eventos que constituem o cenário esportivo ‘envolvente’ do
clube.
Alguns colegas do grupo de pesquisa do qual faço parte, os quais já haviam tentado
desenvolver suas pesquisas no local, alertaram-me para algumas dificuldades que eu poderia
encontrar naquele ambiente. Diante desses avisos, resolvi aproximar-me aos poucos do clube.
Primeiramente, descobri, através das redes sociais, que a coordenação da GA do GNU havia
realizado uma seletiva de atletas e que esse evento era aberto ao público. Por sorte, quem
havia divulgado a informação era uma treinadora de GA que havia sido minha colega na
graduação. Dessa forma, senti-me mais à vontade para buscar informações com ela. Porém,
essa colega estava apenas substituindo uma professora e o seu tempo de atuação no GNU já
estava terminando. No entanto, mostrando-se muito colaborativa, ela forneceu-me o contato
de uma das treinadoras de uma equipe de alto rendimento do clube.
Entrei em contato com a treinadora pela internet, expliquei a minha pesquisa e pedi
que ela me avisasse quando houvesse outra seletiva. Meu objetivo era ir à seletiva e
apresentar-me pessoalmente para a equipe de treinadores. A treinadora foi receptiva e
informou que ainda não tinha acesso ao calendário de eventos, mas que me avisaria quando
soubesse de algo. Algum tempo se passou, e como ela ainda não havia retornado o contato,
resolvi mandar novamente uma mensagem, mas dessa vez de forma mais direta, perguntando
sobre a possibilidade de realizar a pesquisa na pré-equipe que ela treinava. Transcorreram
algumas semanas e não obtive resposta.
Como já se passara muito tempo e eu necessitava iniciar a pesquisa o mais breve
possível, resolvi ir até o clube e conversar pessoalmente com a treinadora; eu precisava correr
o risco de assumir uma postura mais ativa e ir até o local sem uma combinação prévia. Levei
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comigo os documentos que deveriam ser assinados para o início da pesquisa e os meus
documentos de identificação como discente. Cheguei ao clube sem saber a quem deveria pedir
autorização para entrar. Expliquei para o porteiro a minha situação e esse encaminhou-me
para a secretaria, que se localizava em outro prédio na mesma quadra. Encontrei a secretaria,
expliquei novamente o que pretendia para um recepcionista e consegui a autorização. Retornei
à portaria e mostrei a autorização para o porteiro, que liberou a minha passagem e deu as
orientações para chegar até o ginásio da GA. Senti um alívio naquele momento, pois havia
conseguido passar pela primeira porta. Agora faltava mais uma: a porta do ginásio da GA.
Ao passar pela porta giratória que dá acesso ao clube, fui envolvida pelo cheiro do
cloro das piscinas. Logo na entrada, do lado esquerdo, avistei uma loja com roupas e
acessórios esportivos, uma sala de espera com sofás e uma televisão, uma escola de inglês e
uma grande academia movimentada. No lado direito, havia muitos jovens, com corpos
atléticos, sentados ao redor de algumas mesas, alguns vestindo kimonos10 e, outros, uniformes
de Voleibol. Depois de percorrer esses ambientes, passei por outra porta, a qual dava acesso a
duas piscinas cobertas, e subi um lance de escadas que se localizava à esquerda. Em seguida,
avistei placas indicando o ginásio poliesportivo, a sala de Judô e o ginásio de GA.
Ao passar por todos aqueles espaços e ver pessoas de diferentes idades vestindo seus
uniformes, senti-me estimulada à prática esportiva. Tive vontade de calçar os meus tênis,
vestir um abrigo e desfrutar de qualquer atividade física que aquele ambiente oferecia.
Deslumbrada com tudo o que estava vendo, segui a placa que indicava o ginásio de
GA e deparei-me com uma janela que possibilitava a visualização ampla do ginásio, o qual se
encontrava em um andar abaixo. Fiquei animada com o que eu havia encontrado: um ginásio
de GA repleto de crianças e jovens treinando. Desci mais um lance de escadas, passei por um
corredor estreito e finalmente alcancei a porta que dava acesso àquele espaço.
Na entrada do ginásio, fui recebida por inúmeros troféus, medalhas, quadros com
homenagens aos atletas e reportagens de atletas renomados. O clube Grêmio Náutico União
nomeia-se o “celeiro de grandes ginastas”, destacando no seu site os atletas Daiane dos
Santos11 (“lapidada no GNU”), Mosiah Rodrigues12 e Lucas Cardoso, o qual faz parte da
10 Vestimenta utilizada para a prática do Judô. 11 Em 2003, Daiane dos Santos conquistou medalha de ouro no XXXVII Campeonato Mundial de Ginástica Artística, na cidade de Anaheim (EUA). Nesse campeonato, a atleta executou pela primeira vez na história da GA um movimento chamado duplo twist carpado, ou Dos Santos. Em 2004, executou mais um movimento inédito – o duplo twist esticado, ou Dos Santos II –, que não lhe garantiu medalha de ouro, mas deu-lhe reconhecimento na sua modalidade. 12 Mosiah Rodrigues conquistou inúmeras medalhas competindo em campeonatos importantes, tais como: foi o representante brasileiro nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, conquistando o 33º lugar no ranque geral de ginastas; em 2007, conquistou a medalha de ouro na barra fixa no Campeonato Pan-americano; em 2009, no
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“nova geração de ginastas”. Enquanto eu desenvolvia a pesquisa, Lucas foi disputar os Jogos
Olímpicos da Juventude, na China, e no ginásio havia um banner parabenizando o atleta e o
seu treinador por tal conquista (GRÊMIO NÁUTICO UNIÃO, s.p., 2015).
A Ginástica Artística iniciou suas atividades no clube em 1957. No ano seguinte, a
modalidade já participava de competições, demonstrando um desenvolvimento rápido.
Atualmente, essa modalidade esportiva é a terceira em ordem de prioridades do clube
(PILOTTO, 2010). Durante o período em que desenvolvi a pesquisa, as equipes de GA do
clube GNU eram as principais da cidade, pois participavam de competições importantes no
cenário nacional e internacional.
Voltando para a descrição do ginásio, na recepção, além da estante com os prêmios,
havia bancos onde alguns pais aguardavam o término do treino, uma estante em que os atletas
guardavam os seus pertences, uma esteira que estava inativa e um banheiro. Para acessar o
local onde aconteciam os treinos, era preciso descer uma pequena escada.
Nesse dia, o local do treinamento estava repleto de meninos e meninas, com idades
entre 6 e 12, realizando diversos exercícios. Fiquei muito surpresa ao perceber que os
exercícios eram semelhantes àqueles desenvolvidos em academias de ginástica: abdominais,
elevação na barra fixa, escaladas em cordas, exercícios de força e alongamentos. Além dos
exercícios direcionados para o desenvolvimento da força e da flexibilidade, as crianças e os
jovens realizavam muitas acrobacias.
Até aquele momento, a GA era um esporte estranho para mim. Eu havia visto os
equipamentos que as crianças estavam utilizando apenas no ginásio da faculdade e na
televisão. Olhei com curiosidade para aquelas barras de ferro paralelas, caixas de diferentes
tamanhos e formas, colchões, bancos de madeira, trampolins, cordas etc. Diante de tudo isso,
esses primeiros momentos dentro do ginásio deixaram-me extremamente admirada. A
admiração ocorrera em função da complexidade dos movimentos que aqueles corpos tão
pequenos eram capazes de fazer e pelo nível de seriedade e concentração com que aquelas
crianças treinavam. Pelo clima de seriedade, empenho e intensa atividade em equipamentos
que pareciam máquinas, ao presenciar esse ambiente, eu tive a sensação de que havia entrado
em uma espécie de ‘oficina do corpo’.
Avistei a treinadora com quem eu havia feito contato. Ela estava treinando algumas
meninas, com idades entre 8 e 9 anos, juntamente com outra treinadora. Depois de algum
tempo, fui recebida pela coordenadora da modalidade. Expliquei para a coordenadora os
Campeonato Sul-americano, conquistou cinco medalhas – ouro no cavalo com alças, prata na barra fixa por equipe e no solo, e bronze no individual.
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detalhes do meu projeto de pesquisa e perguntei sobre a possibilidade de desenvolver o meu
estudo com alguma das equipes que estavam treinando naquele momento. A coordenadora foi
bastante direta: disse que ela não via problema algum na minha solicitação, porém havia uma
condição – eu não poderia “detonar a Ginástica Artística”, conforme as suas palavras. A
coordenadora explicou que muitas pessoas vão até lá fazer pesquisa e terminam seus estudos
“falando mal da Ginástica” por não entenderem “esse tipo de treinamento”.
Diante daquela conversa franca e esclarecedora, expliquei que o meu objetivo não era
criticar a Ginástica, mas compreender como as crianças se apropriavam daquele contexto.
Disse, ainda, que enviaria o meu projeto para que ela desse a sua permissão para o início da
pesquisa. Ela concordou e voltou para as suas atividades no interior do ginásio. Assim que me
despedi da coordenadora, uma mãe que estava ouvindo atentamente a nossa conversa
aproximou-se, mostrando-se curiosa sobre a pesquisa e contando-me que seus dois filhos, um
casal de gêmeos de 6 anos, treinam GA no clube. A mãe relatou que perdeu duas amigas por
não concordarem com aquele tipo de atividade para as crianças. Essa mãe concluiu o seu
relato dizendo que era realmente difícil as pessoas entenderem por que ela incentivava os seus
filhos a praticarem GA.
Nesses primeiros contatos, notei que as críticas ao esporte de alto rendimento para
crianças, as quais constatei nas leituras para a construção desse projeto de estudo, também
surgiam, portanto, naquele local. Além disso, diante da dificuldade que descrevi para
encontrar uma equipe de alto rendimento composta por crianças em outro clube, e do discurso
do treinador de Judô, que enfatizou o cuidado que deve existir com o treino para crianças, eu
já havia percebido que o tema que eu gostaria de estudar iria causar alguns debates. E, ao ver
aquelas crianças no ginásio de Ginástica treinando ‘pesado’, sabia que havia encontrado o
campo que daria concretude a esse trabalho.
Dando seguimento ao processo de entrada em campo, encaminhei o projeto para a
coordenadora, que não demorou a dar a sua autorização para o início da pesquisa. Antes de
iniciar as observações, pedi autorização para o clube, o que também foi concedido em um
processo rápido. Cerca de duas semanas depois, eu já estava no ginásio iniciando as
observações.
Porém, optei por iniciar o trabalho de campo sutilmente, observando os treinos fora do
ginásio durante uma semana a fim de não causar estranhamento nas treinadoras e nas crianças.
Decidi acompanhar a pré-equipe feminina, pela qual a treinadora Lívia era responsável, por
essa equipe encaixar-se melhor no perfil que eu buscava: crianças com idades entre 8 e 12
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anos que fazem treinos sistemáticos de cinco a seis vezes por semana, com duração de 4 a 3
horas por dia.
Durante as primeiras observações, eu fiquei sentada com os pais na recepção. Como já
havia percebido na primeira vez em que entrei no ginásio, o principal assunto entre os pais era
os seus filhos e filhas ginastas. Diziam frases como: “Minha filha vai participar do
campeonato no final de semana, e a tua?”; “Meu filho está treinando com o joelho lesionado.
Fico louca quando ele faz esses saltos com o joelho desse jeito, mas não adianta falar!”; “Será
que a minha filha já pode competir? Eu adoro competição!”.
Em um determinado dia, estávamos na recepção assistindo de longe o alongamento
das meninas da pré-equipe. Pelas suas expressões, as ginastas pareciam estar sentindo dor.
Uma das mães, vendo aquela cena, relatou que o seu filho, um jovem de aproximadamente 10
anos, dizia em casa que sentia muita dor no alongamento. Ao saber disso, a mãe questionou
ao filho: “Mas tu gostas disso?”. Segundo o depoimento da mãe, o menino gostava de treinar
e a dor no alongamento não era um motivo para fazê-lo desistir da GA, e por isso ela não o
proibia de treinar.
Em um outro dia de treino, uma menina estava chorando quando foi praticar alguns
movimentos nas paralelas assimétricas13 – sendo esse, aliás, um dos aparelhos em que as
ginastas treinavam que mais lhes causava dor e choro. A mãe da menina que chorava disse,
angustiada: “Me dá uma pena de vê-la chorando no treino! A treinadora não vai dar nem um
abraço [na menina]?”. Uma das mães aconselhou: “Mas nem te preocupa, é melhor assim!
Dessa forma ela vai ficar mais forte!”. Era comum as mães darem conselhos umas às outras
diante das suas angústias ao verem os filhos chorando ou caindo durante o treino.
Quando eu falava sobre o objetivo da minha pesquisa para as mães que me
questionavam, essas pareciam sentirem-se estimuladas a relatarem ainda mais sobre alguns
episódios que aconteceram com os seus filhos na Ginástica. Um desses diálogos foi sobre um
menino que adorava os seus cabelos compridos, pois esperou muito tempo para que
atingissem o comprimento que desejava. Porém, ao entrar na GA, o treinador informou-lhe
que deveria cortar os cabelos caso quisesse participar das competições. Logo que as crianças
entram na Ginástica, essa é uma das primeiras orientações dadas pelos treinadores. Segundo
alguns treinadores, os cabelos curtos evitam acidentes durante os treinos. Porém, além dos
riscos, percebia que os cabelos compridos não eram esteticamente adequados. Dessa forma,
existia também uma dimensão estética, assunto que será abordado mais adiante.
13 Aparelho formado por duas barras de ferro assimétricas onde as ginastas apoiam as mãos, os pés ou o quadril para executar os movimentos da GA.
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Segundo a mãe desse menino, essa foi uma escolha difícil que o seu filho teve que
fazer “sozinho”. A primeira reação do ginasta quando o treinador informou que ele deveria
cortar os cabelos foi dizer para a mãe que não iria permanecer na Ginástica. Porém, passados
alguns dias, e com a competição se aproximando, ele decidiu cortar os cabelos e continuar
treinando.
Em apenas uma semana, presenciei muitos diálogos sobre situações como essa, o que
aguçou ainda mais a minha curiosidade e a vontade de entrar naquele universo para entender
quem eram aquelas crianças e o que aquele contexto significava para elas. A fala da
coordenadora havia me causado curiosidade, afinal, que “tipo de treinamento” era aquele que
as pessoas não entendiam e criticavam? Quem eram aquelas crianças que queriam treinar
mesmo com os joelhos lesionados? Que suportavam a dor do alongamento nos treinos? Que
choravam durante os treinos, mas que retornavam no dia seguinte? Que cortavam os longos
cabelos para poder treinar e competir?
Após uma semana observando de longe e estabelecendo contatos com mães e pais dos
atletas, entendi que já estava no momento de entrar no ginásio e acompanhar as crianças de
perto. Com isso, no texto que segue, descrevo a minha aproximação com as crianças que
compõem a pré-equipe feminina de GA do clube GNU, bem como as suas rotinas. Nesse
processo de familiarização com o ginásio e com as crianças, fui entendendo alguns aspectos
que fazem parte da ‘formação dessas jovens ginastas’, o qual constitui o tema do próximo
capítulo.
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4 A FORMAÇÃO DE CRIANÇAS ATLETAS: A PRÉ-EQUIPE FEMI NINA DE GINÁSTICA ARTÍSTICA
Havia chegado o dia de acompanhar de perto as meninas da pré-equipe. Entrei no
ginásio alguns minutos antes de iniciar o treino. Deixei o meu material na recepção,
juntamente com os pertences dos treinadores, tirei os calçados, peguei o meu caderninho de
anotações e encaminhei-me para o local onde aconteciam os treinos. Dirigi-me até uma
treinadora, a qual desenvolvia os treinos com as meninas mais jovens, e expliquei que entraria
no ginásio para realizar uma pesquisa. Essa treinadora não trabalhava com o grupo que eu
acompanharia, mas frequentava o ginásio nos mesmos horários nos quais eu faria as
observações, portanto considerei adequado apresentar-me a ela. Ela concordou e permitiu a
minha entrada. Desci a pequena escada que dava acesso ao local e observei com atenção o
espaço físico.
Do lado direito do ginásio, estavam localizadas as “barras paralelas assimétricas”14 e
as “argolas”, essas últimas utilizadas pelos meninos, pois fazem parte da prova masculina.
Ainda desse lado encontrava-se a “trave”, uma barra que fica a 1,25 metro do chão, com cinco
metros de comprimento e dez centímetros de largura, onde as meninas se equilibravam e
realizavam saltos e giros. Próximas à “trave” estavam localizadas as “barras paralelas”,
também pertencentes à prova masculina, porém as meninas utilizavam esse aparelho para
desenvolverem exercícios de força. Também havia o “solo”, espaço em que as atletas
ensaiavam suas coreografias e treinavam alguns saltos. Próximo ao “solo” estava localizado o
“cavalo com alças”, aparelho que faz parte da prova masculina, mas também era utilizado
pelas meninas para o desenvolvimento de alguns exercícios. Ainda do lado direito, próximo
ao “solo”, havia um espelho grande que cobria boa parte da parede.
Do lado esquerdo, encontrei uma estante com alteres e caneleiras, além de um espelho
e uma bicicleta ergométrica. Alguns passos à frente podia-se observar uma corda amarrada no
teto do ginásio, com a qual as meninas realizavam escaladas. Desse lado também estava
localizado o “track” uma cama elástica onde as meninas e os meninos aprendiam alguns
saltos. Além desses equipamentos, no fundo do ginásio havia a “mesa de saltos” e uma
‘piscina de espumas’ (assim nomeada por mim), que sustentava as barras simétricas onde os
atletas, apoiando apenas as mãos, os pés e o quadril, realizavam movimentos acrobáticos.
Além desses aparelhos, existiam os equipamentos auxiliares, tais como: trampolim de
molas, colchões de diversos tamanhos, banco sueco, caixas, entre outros. Próximos às
14 Normalmente, a barra mais alta se posiciona a 2,36m de altura e a barra baixa a 1,57m.
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“paralelas assimétricas” e “paralelas simétricas” estavam localizados baldes com magnésio
em pó, aplicado pelos atletas em suas mãos para que não escorreguem ao executarem os
movimentos que exigem o apoio das mãos. A seguir, há uma imagem do ginásio, retirada do
site do clube. Algumas modificações foram feitas no local desde a data dessa imagem, mas as
disposições dos aparelhos são as mesmas.
Ilustração 1 – Fotografia do ginásio de Ginástica Artística do clube GNU
Fonte: GNU. Disponível em: <http://gnu.com.br/altorendimento/1>. Acesso em: 7 ago. 2015
As treinadoras da pré-equipe que eu acompanharia ainda não haviam chegado, porém
algumas meninas já estavam presentes. Quatro atletas, as quais aparentavam ter entre 8 e 9
anos, estavam sentadas uma atrás da outra, formando uma coluna, de forma a permitir que
cada uma fizesse e recebesse massagem. Logo chegaram mais algumas meninas e juntaram-se
ao que chamei de ‘trem da massagem’. Além de fazerem e receberem massagem, algumas
crianças estavam espalhadas pelo ginásio pulando no track e pendurando-se nas barras
paralelas. Havia crianças saltando e correndo por todas as direções.
Não demorou muito para duas das treinadoras da pré-equipe chegarem. Fui até elas e
repeti o processo de apresentação. Apesar de ambas já terem me visto durante aquela semana
em que realizei observações à distância, e de termos trocado algumas palavras, apresentei-me
oficialmente a elas e expliquei-lhes o trabalho que pretendia desenvolver. Fui bem recebida e
as treinadoras não demonstraram constrangimento em ter alguém observando os treinos. Uma
delas, muito comunicativa, falou sobre o funcionamento dos treinos. Foram tantas as
informações que a treinadora forneceu-me que, apesar de eu tentar anotar tudo, ficaram
registradas apenas as explicações mais gerais, e somente com o tempo pude entender, em
detalhes, a dinâmica daquele local.
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A rotina das meninas da pré-equipe era intensa: treinavam de segunda a sábado, com
treinos durando de 3 a 4 horas por dia. As atletas eram divididas em dois grupos: um grupo
que chamei de ‘veteranas’, formado por meninas mais velhas, com idades entre 9 e 12, e com
mais tempo na Ginástica; e o outro grupo, o das ‘novatas’, normalmente composto por
meninas de 8 a 10 anos e com menos tempo na Ginástica. Eram aproximadamente 10 atletas,
sendo 7 ‘veteranas’ e 3 ‘novatas’. Esses números acabaram por ser variáveis, pois, durante os
9 meses que acompanhei a pré-equipe, vi meninas desistirem e outras ingressarem.
O grupo das 10 atletas era acompanhado por três treinadoras, sendo que duas
treinavam o grupo das ‘veteranas’ e uma o grupo das ‘novatas’. As meninas iniciavam o
treino juntas, realizando um aquecimento, geralmente liderado por uma das atletas. Ainda no
início do treino, desenvolviam alguns exercícios de força e de flexibilidade e depois eram
divididas em grupos e direcionavam-se para os aparelhos. Também fazia parte da rotina das
jovens atletas pesar-se semanalmente, fazer aulas de Balé duas vezes por semana com duração
de uma hora, assim como participar de uma terapia em grupo, quinzenalmente, com
estagiários da Psicologia.
Apesar de eu ser professora de Educação Física, aquele espaço era estranho para mim.
Porém, aos poucos ia acostumando-me com as nomenclaturas dos aparelhos e dos
movimentos ou “elementos” da GA (como as treinadoras e as atletas costumavam chamá-los).
Durante as primeiras observações, carreguei comigo um caderninho em que anotava tudo o
que via e ouvia, pois estava ansiosa em não deixar escapar nada. Os olhares estavam atentos
em mim e em vários momentos fui abordada com curiosidade pelos treinadores, que
questionavam-me: “Tu és aluna da Psicologia?”. Por algum tempo, minha imagem esteve
vinculada à Psicologia, talvez pela maneira com que eu me comportava no ginásio, como
alguém que observava e fazia anotações.
Essas primeiras experiências no campo de pesquisa foram de familiarização com a GA
e com os treinos. Eu estava aprendendo questões muito básicas, a exemplo de como
posicionar-me no ginásio. Isso porque não foram raros os momentos em que eu estava no
caminho de alguma atleta, atrapalhando o seu salto. Tinha constantemente a sensação de que
estava mal posicionada e perturbando o treino. Somente depois de alguns meses eu aprendi
como deveria deslocar-me e posicionar-me no local.
Nos primeiros meses de observações, eu estava deslumbrada com o desempenho
daquelas atletas: os saltos, as acrobacias, os alongamentos, a força, e tudo aquilo que aquelas
‘pequenas’ conseguiam fazer. As meninas eram muito fortes, flexíveis, ágeis e coordenadas.
53
Ver crianças treinando daquela maneira, com alta exigência física e concentração, era algo
novo para mim.
Além de muito treino, logo percebi que, para uma criança fazer parte da pré-equipe,
era necessário que ela tivesse algumas características físicas. Considerando esse aspecto, as
atletas que fazem parte da pré-equipe iniciaram de diferentes formas a sua atuação na
modalidade. Existem casos de meninas da pré-equipe que, apesar de serem muito jovens, já
possuíam uma trajetória longa na GA, pois iniciaram cedo, com 3 ou 4 anos. Existem outros
casos em que as crianças foram levadas pelos pais para fazer um teste físico, no qual é
verificado se elas possuem força, coordenação e flexibilidade. Conforme uma das treinadoras,
se a criança não se encontra em um determinado nível dessas competências, irá sofrer muito
para atingir a condição exigida para um ginasta, e por isso essa treinadora prefere não incluir
essa criança no grupo de alto rendimento15. Já outras meninas, em função das suas
características físicas, foram “descobertas” pelas treinadoras e convidadas a fazerem o teste.
Mesmo passando no referido teste e possuindo as características necessárias para se
tornarem ginastas, eu percebia o grande esforço das atletas dessa pré-equipe para
desenvolverem as competências físicas e motoras exigidas nesse esporte. Os momentos dos
treinos em que as crianças realizavam exercícios de alongamento e de força pareciam ser os
mais difíceis. Em muitos desses momentos, eu pensava que eu, enquanto instrutora e
praticante de Pilates, poderia fazer alguns dos exercícios desenvolvidos por elas –
especialmente os abdominais –, mas minhas tentativas durante os treinos sempre foram
frustradas. As atletas realizavam diariamente exercícios como: escaladas na corda apenas com
o uso dos braços; na barra simétrica, com o corpo suspenso e sustentado apenas pelos braços,
realizavam flexão de cotovelos e extensão de ombros; nessa mesma posição, porém no
espaldar, realizavam flexão de quadril até elevarem as pernas na altura da cabeça; entre
muitos outros.
Passados, aproximadamente, três meses, senti a necessidade de aproximar-me mais de
cada uma das meninas. O ambiente, porém, era bastante controlado. As meninas treinavam
concentradas, conversavam pouco, e nesses momentos eu não conseguia ouvir o que falavam
em função da distância que delas eu mantinha. Foi em um dia, em uma conversa com colegas
do grupo de pesquisa, que percebi que deveria comportar-me de uma maneira diferente no
ginásio se quisesse aproximar-me mais das atletas. Para tanto, decidi que deixaria de lado o
caderno de anotações, prenderia os cabelos e colocaria uma roupa de ginástica. Retornei ao
15 Informação obtida por meio da entrevista semiestruturada com uma das treinadoras.
54
campo de pesquisa disposta a ajudar as treinadoras e as atletas no que fosse possível. Foi a
partir desse dia que finalmente tive a sensação de que estava entrando em campo.
Já nos mesmos espaços ocupados pelas ginastas em suas atividades, arrisquei-me a
fazer alguns exercícios de força, mais especificamente abdominais e alongamentos, como os
espacates (abertura de pernas em um ângulo de 180 graus), porém não obtive sucesso. As
meninas achavam graça das minhas tentativas e davam-me algumas dicas, como: “tem que
deixar a coxa bem durinha!”. Quando as jovens atletas viam-me tentando alongar, vinham até
mim, oferecendo ajuda. As meninas me ajudavam da mesma forma que as suas treinadoras as
auxiliavam. As ginastas pareciam gostar muito de estarem nessa posição – de alguém que
ensina –, e pediam mais de uma vez durante o treino para ajudar nos meus alongamentos.
Nesses momentos, eu assumia o papel de ‘aprendiz’ e elas de ‘professoras’.
Em outro dia, compartilhei desse sentimento quando a treinadora solicitou que eu
supervisionasse o treino porque tinha que se ausentar por alguns instantes. Eu deveria cuidar
as meninas enquanto faziam os exercícios e ajudar na execução de algum movimento caso
elas precisassem. Porém, minha supervisão parecia totalmente dispensável, pois eu não sabia
fazer nada daquilo que elas estavam exercitando e muito menos auxiliá-las. Para o meu alívio,
isso não parecia problema, pois elas sabiam o que fazer e como auxiliar as colegas quando
necessário.
Sobre a entrada em campo na pesquisa etnográfica com crianças, Corsaro (2005, p.
444) assinala as distâncias “óbvias” entre o pesquisador, adulto, e os sujeitos pesquisados,
crianças. Diante dessas distâncias, o autor relata como foi o processo de construção da sua
relação com as crianças que fizeram parte dos seus estudos, durante 28 anos, em pré-escolas.
O esforço do pesquisador foi em “não agir como um adulto típico”. O caminho que utilizou,
então, foi o de observar como os adultos agiam e buscar, então, agir de um modo diferente.
Por ser estadunidense que pesquisara crianças italianas, a falta de habilidade com a língua
italiana fez com que as crianças assumissem, por vezes, o papel de professores e ele, de aluno.
Esse aspecto auxiliou na sua aproximação com as crianças em algumas de suas pesquisas, o
que permitiu com que ele se aproximasse suficientemente delas para compreender as suas
culturas. Semelhante ao que Corsaro (2005) apontou, ao mostrar a minha ‘incompetência’
para praticar Ginástica, percebi que as meninas se aproximaram mais de mim. Eu não possuía
autoridade e nem era detentora de algum conhecimento a ser transmitido; pelo contrário, era
alguém que queria aprender sobre aquela modalidade esportiva. Dessa forma, as meninas
explicavam-me os exercícios e mostravam-me o que conseguiam fazer. Diferentemente das
treinadoras, que buscavam sempre a melhora do rendimento das ginastas por meio das
55
correções, eu demonstrava admiração diante de tudo o que elas me mostravam, e isso parecia
estimulá-las. Foi dessa maneira que estreitei a minha relação com as ginastas e passei a
observar situações que não percebera anteriormente.
Da mesma forma como Wacquant (2002) descreveu em seu estudo acerca da sua
aproximação da academia de Boxe (gym), eu, em um primeiro momento, como descrevi
acima, tinha a sensação de que estava entrando em uma ‘oficina do corpo’. Estava assistindo à
produção de corpos fortes, flexíveis, ágeis, coordenados e disciplinados. No entanto, ao
acompanhar de perto o treino da pré-equipe feminina, percebi que não apenas corpos estavam
sendo treinados, mas também as ‘maneiras de ser ginasta’. Algumas frases eram recorrentes
durante os treinos, como: “ginasta tem que ser exibida”, “tem que ter postura de ginasta”,
“aquela ginasta é de competição”. Foi a partir dessas observações que passei a questionar: o
que significa ser “exibida”? O que caracteriza a “postura de ginasta”? O que significa ser uma
“ginasta de competição”? Com o objetivo de compreender essas questões, trago, no próximo
tópico, um caso de pesquisa.
4.1 ELISA: A ‘NOVATA’ DA PRÉ-EQUIPE
Quando me aproximei da pré-equipe do clube, a primeira menina que chamou a minha
atenção foi a Elisa. Todos os dias essa ginasta era levada para o treino pelo avô, que esperava
por ela sentado em um banco do lado de fora do ginásio. Algumas vezes encontrei o avô da
Elisa recolhendo latinhas de refrigerante nos lixos do clube. Surpreendi-me quando presenciei
essa cena, pois considerei contrastante com o espaço sofisticado daquela instituição social e
esportiva.
Eu e Elisa éramos novatas naquele contexto. Elisa havia ingressado na pré-equipe do
GNU havia aproximadamente três meses e eu estava no meu primeiro mês de observações.
Ainda do lado de fora do ginásio, a menina já despertava o meu interesse, pois via Elisa
receber uma atenção especial de uma das treinadoras. Algumas vezes, a treinadora saiu do
treino com a menina e a levou para a recepção, local onde ficavam as mães de alguns atletas.
A treinadora passava-lhe gel nos cabelos e orientava a menina a não cortar franja, pois o seu
cabelo era crespo e ficaria difícil de prendê-lo. Em um desses dias, após pentear a menina e
dar algumas recomendações sobre como fixar os “fios rebeldes”, a treinadora dirigiu-se às
mães explicando que Elisa era uma menina carente e nova na equipe, e por esse motivo estava
aprendendo tudo, até mesmo a prender os cabelos.
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As treinadoras constantemente alertavam as meninas de que os seus cabelos estavam
muito compridos “para uma ginasta”, e que as meninas deveriam manter os cabelos cortados à
altura acima dos ombros, pois dessa forma os cabelos não atrapalhariam os movimentos delas
nos treinos. Porém, percebi que os cabelos compridos, além de não serem funcionais para a
realização das atividades, representavam uma noção estética, de aparência, não desejável
naquele contexto. Os cabelos curtos e bem presos com gel e presilhas eram os cabelos mais
“bonitos” para as ginastas. Em um dia de treino, observei a treinadora das meninas mais
jovens (com idades entre 5 e 7) analisando os cabelos das ginastas. Essas estavam
posicionadas em fila, e a treinadora passou por cada menina e tocou os cabelos presos das
ginastas, dizendo, conforme vistoriava: “Esse está bom, bem curtinho!”, “Que cabeluda! Esse
tem que cortar!”, “Está muito cabeluda!”.
Nessas primeiras observações, além de perceber os esforços da treinadora em adequar
os cabelos da Elisa aos cabelos das demais ginastas, observei que a ‘novata’ ganhava muitas
sacolas de roupas, calçados e brinquedos. Os presentes eram dados por colegas de equipe,
treinadoras e a mãe da Daiane dos Santos. Elisa relatou ser amiga da mãe da atleta. No início,
eu não entendia como ambas haviam se conhecido, porém, na entrevista que realizei com a
menina e com uma das treinadoras, descobri que a mãe da Daiane dos Santos trabalha em um
projeto da Prefeitura de Porto Alegre que auxilia jovens atletas. Foi através desse projeto que
Elisa e a mãe da Daiane dos Santos se aproximaram. Esse projeto, desenvolvido pela
Prefeitura, permite que Elisa ganhe alguns benefícios, como passagens de ônibus e uma
quantia em dinheiro para refeições.
Nas primeiras observações que realizei, o grupo parecia muito harmônico: todas as
meninas treinavam de forma muito parecida, conversavam pouco durante os treinos e faziam
quase tudo o que era solicitado sem contestações. No entanto, Elisa rompia com essa
‘aparente’16 harmonia, pois as treinadoras chamavam-lhe constantemente a atenção nos
treinos. Essa atleta, durante os meses em que estive observando, passou por um processo de
socialização intenso. Não apenas a sua técnica e as suas condições físicas necessitavam ser
desenvolvidas, mas também sua “postura de ginasta”, como dizia a ela a treinadora: “Tu quer
ser uma boa atleta? Tem que ter postura de ginasta” (TREINADORA, 09/05/2014).
Esse processo de socialização, no sentido de ‘ser ginasta’, ocorria também em todos os
dias ao iniciarem e ao finalizarem os treinos, pois as meninas deveriam posicionar-se como
ginastas: em fileira, por ordem de tamanho, com a perna direita na frente, os braços
16 Com o passar dos meses, pude observar que algumas meninas resistiam e/ou se apropriavam dos exercícios de uma maneira diferente da forma como as treinadoras esperavam. Sobre esse assunto, discorrerei mais adiante.
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estendidos e contraídos ao longo do corpo, olhos e ouvidos atentos às treinadoras. Se alguma
das meninas não estava posicionada da forma adequada, ela era cobrada pela treinadora ou
pelas próprias colegas.
A “postura de ginasta” também era solicitada enquanto as meninas executavam os
elementos nos aparelhos, e, sobre esse aspecto, Elisa era a atleta de quem mais se exigia. Em
todos os treinos em que estive presente, eu ouvia as treinadoras corrigirem incansavelmente a
postura da menina, dizendo: “coluna reta”, “ombros baixos”, “posição correta das mãos”,
“queixo alto”, “joelhos bem estendidos”, “dedos dos pés unidos”, “flexão plantar dos
tornozelos”, “glúteos contraídos”, “barriga para dentro”, “peito aberto”, “sorriso”, “leveza nos
movimentos” etc. Para fazer com que a menina entendesse melhor o que diziam, as
treinadoras manipulavam efetivamente o corpo da ginasta, mas, ao se afastarem, Elisa voltava
para o seu padrão postural, o que fazia com que as treinadoras ficassem impacientes com a
ginasta.
As meninas ouviam com frequência das treinadoras que ginasta deve ser “exibida”.
Isso significava que as atletas deveriam realizar os movimentos da Ginástica não apenas com
boa técnica, mas também com uma postura “bonita”, com um “sorriso no rosto” e a “cabeça
erguida”. Da mesma forma, as meninas incentivavam umas às outras durante as suas
apresentações em competições ou nos treinos com as palavras “exibida”, “bonita”, “sorriso”.
Gonçalves (2007), a partir de uma pesquisa desenvolvida com bailarinas e atletas,
identificou que as bailarinas deveriam, através do sorriso, disfarçar o esforço e a dor. A autora
interpreta o sorriso como mais um componente técnico que esconde a dor e mantêm a leveza,
a limpeza e a beleza dos movimentos. As exigências em relação à postura bonita e ao sorriso
das bailarinas, percebidas por essa autora, são muito semelhantes aos aspectos exigidos pelas
treinadoras nos treinos da pré-equipe de GA que acompanhei. Enquanto as ginastas se
apresentassem para as treinadoras, colegas de equipe e jurados – independentemente da dor e
do nervosismo que estivessem sentindo –, deveriam sorrir.
Porém, diferentemente do que Gonçalves (2007) encontrou em seu campo de pesquisa,
onde as bailarinas e os atletas não possuíam espaço para manifestações espontâneas e
brincadeiras, o grupo de ginastas que observei costumava ‘brincar’ com as regras. Em
contraste com a postura “bonita”, as meninas gostavam muito de brincar, durante os treinos,
de fazer os elementos “feios”. Nesses momentos, as atletas chamavam-me para assistir às suas
“melhores apresentações”, o mais bonito que conseguiam fazer. Para a minha surpresa, as
meninas apresentavam os movimentos de forma ‘teatral’, opostamente, portanto, aos que as
treinadoras pediam: subiam os ombros, faziam caretas, as mãos pareciam garras, as pernas
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eram jogadas de um lado para o outro de qualquer jeito. Dessa forma, na brincadeira, o “feio”
se tornava o “bonito”. Sobre tais brincadeiras, discorrerei no próximo capítulo.
Essas apresentações ‘teatrais’ eram frequentes durante os treinos; no entanto, isso não
impedia que as meninas também se esforçassem para manter a postura bonita, conforme
exigem os regulamentos das competições. Acerca desse aspecto, certo dia no treino, percebi
que a treinadora estava com uma planilha da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG), na
qual estavam registrados os regulamentos técnicos para cada aparelho que compõe uma
competição. Pedi autorização da treinadora para ler o regulamento, no que iniciei uma leitura
“dinâmica” do mesmo. Diante das inúmeras regras e detalhes técnicos, chamaram a minha
atenção as normas para o desenvolvimento da coreografia no “solo”, pois apresentavam
expressões que evidenciavam uma ‘maneira’ de se apresentar que ia para além das exigências
técnicas. Na apresentação artística desse aparelho, são exigidos “expressividade”,
“confiança”, “estilo pessoal”, “habilidade em atuar como um papel ou personagem durante a
apresentação”. Além disso, é considerada uma “postura pobre durante a série”: “pés sem
ponta, relaxados, virados para dentro”; pouca amplitude dos movimentos; postura inadequada
do corpo, da cabeça e do olhar, os quais devem estar sempre elevados (CONFEDERAÇÃO
BRASILEIRA DE GINÁSTICA, 2014, p. 19-20).
Essa ‘maneira’ de se apresentar exigida no regulamento não parecia uma tarefa difícil
para as colegas da Elisa, porém a menina apresentava grande dificuldade, uma vez que
mostrava-se muito tímida quando deveria apresentar os elementos da GA no ritmo de uma
música. Para uma das treinadoras, a Ginástica da Elisa não era “bonita”, pois os seus
movimentos eram “grosseiros”.
Além disso, Elisa era considerada muito distraída pelas treinadoras, e não foram
poucas as vezes que observei as treinadoras expressarem cansaço ao chamarem a atenção da
menina. Escutei também expressões de arrependimento por tê-la inscrito em algumas
competições. Nos momentos de ensaio coreográfico, as colegas de equipe de Elisa tentavam
ajudá-la, dando “colas” da sua sequência, mas, ao verem as dificuldades da colega, desistiam
e até achavam graça dos erros que ela cometia.
Os aprendizados da menina Elisa não se esgotavam no âmbito do treino físico. A atleta
apresentava alguns atrasos de aprendizagem escolar em relação às meninas da equipe que
possuíam a mesma idade, 9 anos. Elisa falava muitas palavras erradas e não sabia ver as
horas. Situações como essas levaram uma das treinadoras a afirmar que a menina, “além de
aprender Ginástica, estava aprendendo a falar o português correto”. Outra professora estava
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ensinando-a a ver as horas. Além disso, a menina também era orientada a cuidar da sua
higiene pessoal.
Sobre esse último aspecto, percebi que, por parte das treinadoras, havia uma
preocupação com a higiene das atletas. Elisa, logo que integrou à equipe, estava com uma
inflamação na região da boca. Em um dos treinos, a treinadora chamou-me para olhar a
gengiva da menina, que estava muito vermelha e inchada, apresentando pontos de inflamação.
Assim como a treinadora, eu também fiquei preocupada. No entanto, a treinadora relatou que
elas – as treinadoras – já estavam cuidando da situação: a menina foi liberada de um dos
treinos para ir ao dentista e uma das treinadoras já havia dado escova e pasta de dentes para a
Elisa fazer a sua higiene bucal. Segundo a treinadora, a menina havia prometido que escovaria
os dentes todos os dias após as refeições.
Além desses cuidados, as atletas eram orientadas a terem disciplina com a
alimentação. Em alguns casos, era solicitado um diário de alimentação para que as treinadoras
tivessem conhecimento da dieta das atletas, e tais orientações se intensificavam
principalmente quando a pré-equipe estava na véspera de alguma competição importante. No
final de outubro e início de novembro de 2014, algumas meninas participaram do
Campeonato Brasileiro de Ginástica Artística na cidade de Guarulhos, um dos principais
campeonatos da modalidade, em que atletas de destaque participam e as meninas podem,
então, ter maior visibilidade. Nessa viagem, pude perceber o quanto as restrições alimentares
estão presentes no cotidiano das meninas. A seguir, apresento um trecho do diário de campo
que exemplifica essa questão:
Na chegada ao aeroporto de Guarulhos, fomos fazer um lanche. Todas pediram um pão de queijo e um suco de laranja. Após terminar de comer, uma das meninas disse que queria um chocolate, e a treinadora exclamou: Nem pensar! Miriam e Elisa pediram mais um pão de queijo, o que deixou a treinadora muito brava. Saindo da lanchonete, a treinadora reuniu as meninas e as orientou a ‘comerem como ginastas’ (DIÁRIO DE CAMPO, 29/10/2014).
Após a conversa que a treinadora teve com as meninas no aeroporto, ela dirigiu-se a
mim pedindo para eu não me impressionar com a proibição acerca de alguns alimentos.
Segundo a treinadora, se ela não agisse dessa maneira, as meninas comeriam “tudo o que
vissem pela frente”, principalmente a Elisa, que não estava acostumada com a vasta oferta de
alimentos dos bares e restaurantes. Outra situação, também narrada em um diário de campo,
expressa essa questão levantada pela treinadora:
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Já no hotel, enquanto esperávamos a liberação dos quartos, fomos até o supermercado. Lá a questão da alimentação voltou ao debate. As meninas passaram pelo corredor dos chocolates tapando os olhos. A treinadora, vendo a reação das meninas, disse que, depois da competição, poderiam comer. Elisa aproximou-se de mim dizendo que queria comprar uma bolacha que era tri boa e que não engordava, mas achava que a treinadora não deixaria. A menina resolveu perguntar para a treinadora se podia comprar as bolachas, mas a treinadora negou, pois já havia comprado barras de cereais para o lanche depois dos treinos (DIÁRIO DE CAMPO, 29/10/2014).
“Comer como ginasta” significava comer moderadamente alimentos considerados
saudáveis: frutas, barras de cereais, saladas, legumes, arroz, feijão, uma carne. Para o
equilíbrio da dieta, certos alimentos eram proibidos, como os doces e os refrigerantes. As
meninas foram liberadas para comerem o que tinham vontade somente após a competição.
Quando tal momento chegou, os pedidos das ginastas foram pizza e sorvete, e o momento foi
registrado com uma fotografia, pois estava sendo aguardado ansiosamente pelas meninas.
Na entrevista que realizei com Elisa, a alimentação estava fortemente presente na fala
da menina. Uma das perguntas que fiz foi a de como ela definia uma boa atleta. Elisa falou
bastante sobre a alimentação, e, mesmo quando eu tentava saber sobre outros aspectos que ela
considerava importante, a ginasta voltava para o tema. Segue um trecho da entrevista:
Pesquisadora: Elisa, na tua opinião o que é ser uma boa ginasta? Elisa: Ser uma boa ginasta não pode comer coisas ruins para engordar, se não depois fica difícil para fazer as coisas. Tipo, refri fica ruim para tomar também. A minha mãe queria me encher de sorvete, daí eu disse: “Não! Pode ser um abacaxi?”, daí ela disse “pode”. Pesquisadora: Aham, tá! E o que mais? Elisa: E daí eu tomei um suco natural também. Aí depois, primeiro nós fomos almoçar. Pesquisadora: E aí, o que tu comeste no almoço? Elisa: Arroz, feijão, massa e também... como que é mesmo? Pesquisadora: Não lembra? Elisa: Não [risos]. Carne e também...[risos]...repolho, salada. Pesquisadora: E sobremesa, comeu sobremesa? Elisa: Aham, morango [risos], abacaxi e um suco. Pesquisadora: Legal! Além de cuidar da alimentação, o que mais tu acha que precisa para ser uma boa ginasta? Elisa: Comer gelatina, não engorda a ginasta. A mãe da Daiane dos Santos disse que tem que comer bastante gelatina, não deixar [a gelatina] endurecer muito (ELISA, 17/11/2014).
Notei, assim, que alimentar-se de uma determinada maneira também fazia parte do
comportamento esperado de uma ginasta da pré-equipe. Com isso, a “postura de ginasta”
implicava mais do que manter a coluna ereta e os músculos contraídos; significava também
uma maneira de ‘ser’ e de ‘expressar-se’ com “delicadeza”, “suavidade nos movimentos”,
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“sorriso no rosto”, “concentração” e “disciplina” nos treinos, e tendo cuidados com a
alimentação. Além disso, ao entrar na pré-equipe, Elisa estava aprendendo a falar
corretamente, ver as horas, prender os cabelos “como uma ginasta” e cuidar da sua higiene
pessoal. Observei, portanto, que as aprendizados iam muito além dos movimentos da
Ginástica.
Segundo Le Breton (2007, p. 77), “a aparência corporal responde a uma ação do ator
relacionada com o modo de se apresentar e de se representar. Engloba a maneira de se vestir,
a maneira de se pentear e ajeitar o rosto, de cuidar do corpo, etc.”. Dessa forma, a aparência
corporal orienta o olhar do outro para uma classificação moral e social. Segundo pude
identificar, era isso que levava Elisa – diante das suas características físicas e posturais, as
quais não estavam de acordo com algumas normas estéticas valorizadas e reconhecidas na GA
– a ser considerada pelas treinadoras uma menina que apresentava “problemas” na execução
dos movimentos e uma forma “grosseira” de fazer Ginástica.
Apesar das tantas diferenças entre a forma de fazer Ginástica da Elisa e a Ginástica
esperada pelas treinadoras, assim como o comportamento esperado de uma ginasta e a
maneira de se expressar da menina, Elisa permanecia na pré-equipe. Com isso, passei a buscar
elementos para compreender ‘como’ e ‘por que’ essa atleta permanecia naquele grupo. No
próximo tópico, discorrerei sobre esse aspecto, e, com isso, trago mais elementos que se
mostraram necessários para a formação de uma ginasta no contexto pesquisado.
4.2 “ELISA É DE COMPETIÇÃO”
Em um dia de treino, vi a Elisa com a professora de Balé enquanto as outras meninas
treinavam nos aparelhos. Perguntei para uma das treinadoras por que Elisa não estava
treinando com as colegas. Ela explicou que a menina estava com muita dificuldade para
‘gravar’ (memorizar) a sua sequência coreográfica do solo e a professora de Balé estava
tentando ajudá-la nesse aspecto. Nas palavras da própria treinadora: “Não entendo o que
acontece. Na competição a Elisa se sai bem, faz tudo direitinho! A Elisa é de competição!”.
Ao ouvir essa frase da treinadora, questionei-me: o que significa “ser de competição”?
Como uma menina que apresenta muitas dificuldades nos treinos pode ser considerada boa em
competições? A fim de entender essa questão, passei a prestar mais atenção à forma como as
meninas eram exigidas para as competições e a como as atletas vivenciavam esses momentos,
e, principalmente, a forma como a Elisa competia.
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Uma das primeiras competições que acompanhei aconteceu na Escola de Educação
Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEF/UFRGS). Não era uma
competição considerada importante, pois nela participariam escolas e clubes que não visavam
o alto rendimento; para a treinadora da pré-equipe de GA, esse momento era visto como um
treino para competições importantes. Porém, mesmo não sendo uma competição de acentuada
relevância, as meninas pareciam ansiosas para as suas apresentações. No dia anterior a essa
competição, acompanhei o treino da pré-equipe, o qual foi direcionado como uma simulação
da competição. Havia algumas meninas que não eram da pré-equipe, mas que iriam competir.
Percebi que todas essas ginastas estavam apreensivas: olhavam atentas para a treinadora,
perguntavam se os seus movimentos haviam melhorado e comparavam os seus elementos
com os das colegas. Inclusive algumas meninas quase chegavam a chorar quando erravam
algum movimento. Diante daquele clima, resolvi perguntar como elas se sentiam e todas as
ginastas disseram que estavam nervosas, com exceção da Giovana, atleta da pré-equipe, que
relatou estar tranquila, pois já havia competido várias vezes.
No dia seguinte, quando cheguei ao ginásio, a competição já havia iniciado. O ginásio
estava repleto de pais, parentes, amigos e irmãos, que torciam e ‘gritavam’ orientações
técnicas para as crianças. Além de vibrar com os atletas, a torcida chamava constantemente os
jovens atletas para sorrirem para as câmeras fotográficas. Havia no local muitas equipes de
diferentes clubes e escolas de GA, cada qual com as suas malhas17, as quais ajudavam na
identificação das instituições. As equipes eram de diferentes categorias, motivo pelo qual o
ginásio estava preenchido por meninos e meninas de diferentes idades. Cada equipe
apresentava-se em uma modalidade diferente ao mesmo tempo, e, ao final do tempo
estipulado para as apresentações, trocavam de modalidade. Essa troca era anunciada por
microfone pelos organizadores.
Uma vez que muitas apresentações aconteciam ao mesmo tempo, nas primeiras
competições que acompanhei, tal dinâmica me deixava confusa, pois eu não sabia para onde
olhar. Porém, com as observações sistemáticas, consegui familiarizar-me com o
funcionamento das competições e direcionar o olhar para situações que poderiam auxiliar no
objetivo dessa pesquisa.
Nesse dia da competição, quando cheguei ao ginásio, as meninas da pré-equipe já
haviam realizado a apresentação dos elementos na trave. No intervalo, enquanto
descansavam, tentei aproximar-me da pré-equipe, e, quando consegui chegar perto das
17 Roupas utilizadas pelas ginastas nas competições e nos treinos.
63
meninas, a treinadora convidou-me para sentar-me junto a elas. Como era uma das primeiras
competições que eu acompanhava, perguntei para a treinadora como as meninas estavam se
saindo. Essa relatou que a Camila não estava bem, pois ficou muito nervosa e caiu três vezes
da trave, terminando a série chorando.
Mesmo acompanhando de longe as apresentações, foi fácil perceber o nervosismo de
muitos atletas. No momento das apresentações no solo, antes das meninas do GNU, outra
equipe de uma escola se apresentou. As apresentações de solo são realizadas individualmente,
em que cada atleta deve mostrar uma sequência de movimentos acrobáticos para os jurados ao
som de uma música. Algumas meninas desse outro clube aparentavam muito nervosismo, pois
tremiam bastante a ponto de se desequilibrarem em alguns movimentos e caírem em diversos
saltos. Uma dessas meninas, ao finalizar a sua apresentação com uma queda, saiu do solo e
abraçou uma de suas colegas, chorando muito. Essa menina foi consolada pelo restante da sua
equipe. Situações como essas eram recorrentes nas competições; muitos atletas finalizavam as
suas apresentações chorando e eram consolados pelos treinadores e/ou pelos colegas.
Na sequência, entraram no solo as meninas do GNU. Nesse momento, ficou evidente a
diferença técnica das meninas da pré-equipe em relação às atletas que haviam se apresentado
anteriormente. Mesmo estando há pouco tempo acompanhando os treinos, mas a partir das
orientações que eu já havia recebido das treinadoras, consegui perceber que a pré-equipe tinha
superioridade técnica no tocante à maioria dos movimentos. Porém, comparando a
participação da Camila com o seu desempenho nos treinos, vi que ela estava bastante nervosa
na competição, realizando alguns movimentos de forma tímida.
Não consegui acompanhar até o fim a competição, mas, no treino seguinte, a
treinadora deu-me o seu parecer sobre o desempenho das meninas, o qual descrevo a seguir:
A treinadora veio até mim para cumprimentar-me e perguntar se eu havia acompanhado a competição até o fim, e então eu disse que não e perguntei como havia terminado. A treinadora relatou que Giovana ganhou o primeiro lugar do quadro geral, que estava se sentindo a melhor ginasta de todas, e que antes de terminar a competição sabia que iria ganhar. Camila não ganhou nada, ficou mal colocada porque estava desestruturada emocionalmente e perdeu muitos pontos. Elisa ficou em terceiro lugar e, para a treinadora, ela competiu super bem, concentrada (DIÁRIO DE CAMPO, 18/08/2014).
Mesmo Gionava tendo conquistado o primeiro lugar, para a treinadora, a ginasta não
estava agindo de uma maneira adequada, pois a atleta parecia não querer se esforçar no treino
seguinte. Além disso, a confiança demasiada da atleta durante a competição também não foi
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aprovada pela treinadora, pois, na sua avaliação, a ginasta precisava melhorar muitos aspectos
técnicos e físicos. Camila, mesmo tendo um pouco mais de experiência que a Elisa, ficou
muito nervosa com as suas quedas na primeira prova da competição e, com isso, não
conseguiu seguir bem nas demais atividades. Quando eu perguntei para a Camila sobre como
ela se sentia competindo, a sua resposta foi: “Eu gosto quando o último aparelho é a trave! Na
última competição o primeiro aparelho foi a trave e eu fui mal porque eu caí da trave, daí eu
fiquei triste e fui mal em todos os outros aparelhos. Eu gosto quando é o último!”.
Já Elisa, com menos tempo de ginástica, ‘dentro das suas possibilidades’, apresentou
aquilo que a treinadora esperava: “concentração” e a realização de todas as provas da melhor
forma que conseguia. Para compreender o modo como as meninas eram exigidas nas
competições, segue um excerto de diário de campo que considero elucidativo:
Hoje, no treino, as meninas tiveram, após a aula de Balé, uma conversa sobre a competição que aconteceu no final de semana passado, da qual não pude participar. A treinadora queria ouvir de cada menina o que haviam observado da competição em que as colegas Raquel, Antônia e Ariel participaram. Porém, antes de ouvir as atletas, a treinadora deu o seu parecer. Segundo ela, Antônia foi muito bem, a melhor competição que já viu da menina. A atleta ficou em segundo lugar, mas deu o seu melhor, fez o que ela treinava de melhor e é assim que deve ser. Raquel foi muito bem, mas apresentou alguns erros bobos que devem ser ajustados: ela deve treinar mais a paralela, onde está a sua maior dificuldade. A menina ficou em terceiro, mas poderia ter ganhado a competição se não tivesse errado a paralela. Raquel é da categoria pré-infantil, mas competiu na categoria infantil, com meninas mais velhas do que ela, por isso ela está muito bem apesar de ter ficado em terceiro lugar. Ariel ganhou a competição, mas, segundo a treinadora, poderia ter se saído muito melhor, todos os movimentos da menina poderiam ser melhores. No julgamento da treinadora, foi uma das piores competições dela. Após essa fala da treinadora, as competidoras falaram sobre o que tinham observado dos seus desempenhos. O relato da Ariel, particularmente, chamou a minha atenção, pois a menina disse que poderia ter se saído melhor se não tivesse ficado tão nervosa (DIÁRIO DE CAMPO, 22/09/2014).
O que leva uma atleta, que ficou em primeiro lugar em uma competição, a considerar
que poderia ter se “saído melhor”? O que poderia ser melhor do que ficar em primeiro lugar?
Quando presenciei essa conversa no treino, surpreendi-me com o parecer da treinadora, pois
conquistar o primeiro lugar parecia-me um motivo plausível para considerar como bom o
desempenho da Ariel. Porém, ao analisar as considerações da treinadora sobre o desempenho
da Antônia e da Raquel, pude entender outros aspectos que são valorizados no desempenho
das atletas nas competições.
65
O primeiro deles é o fato de a Raquel ter participado de uma categoria acima da
categoria da sua idade. Esse tipo de transição é possível quando a menina está no último ano
da sua categoria. No caso da Raquel, a atleta enquadrava-se na categoria pré-infantil, de 9 a
10 anos, mas, como tinha 10 anos, último ano da sua categoria, “foi puxada” pela treinadora
para a categoria infantil, composta por atletas com idades entre 10 e 12 anos18. Essa situação
só foi possível porque a menina apresentava um desempenho compatível com a categoria
infantil.
O segundo aspecto é o fato de a Antônia ter dado “o seu melhor” – e, segundo a
treinadora, “é assim que deve ser”. Antônia é uma atleta que não possui todas as
características desejáveis em uma ginasta, conforme o relato da treinadora:
O porte dela, a altura dela é compatível, totalmente compatível, mas ela tem problemas de flexibilidade extrema, é aquela flex [flexibilidade] que tem que sofrer para abrir, muito difícil. Tem problema na questão de força, ela não é tão forte quanto as outras, tem a questão de joelho, questão de ombro. Então é uma ginasta muito complicada que talvez o grande o objetivo não sejam os campeonatos brasileiros, mas sim os torneios (TREINADORA, 27/03/2015).
Por tais motivos, Antônia não é considerada uma atleta com potencial para participar
de competições importantes. Assim, o reconhecimento que a menina teve na competição está
relacionado a uma superação individual. A menina mostrou os seus melhores movimentos na
competição, conseguindo fazer tudo aquilo que vinha demonstrando durante os treinos.
Antônia está longe de ser a melhor atleta da pré-equipe, mas conseguiu destacar-se naquele
momento pela superação do seu próprio desempenho.
Nessa perspectiva, ao passo que Antônia foi elogiada por “ter dado o seu melhor”,
Ariel foi criticada pelo mesmo aspecto. No julgamento da treinadora, e no próprio depoimento
da atleta, o seu desempenho poderia ter sido melhor. O importante, nesse caso, não foi ganhar
a competição, mas, sim, executar a sua melhor série em relação ao que vinha desenvolvendo
nos treinamentos.
Sobre esse aspecto, Pilotto (2010, p. 123), ao buscar entender como os corpos de
ginastas são educados, afirma que a competição “é uma prova constante para si e para os
outros na busca de ser o(a) melhor, ser o(a) número um, ser dez em tudo”. Para a autora, a
ideia de superar-se, também presente entre as ginastas que pesquisou, estava relacionada com
a busca por resultados, estar na frente e destacar-se. E, por conta dessa busca por resultados,
havia muita dedicação e empenho. Porém, a partir do que presenciei nas situações narradas
18 Informação fornecida na entrevista semiestruturada com uma das treinadoras.
66
acima, questiono o empenho e a dedicação apenas com o objetivo de obter destaque e ganhar
o primeiro lugar. ‘Competir bem’ não significava somente ser o ‘número um’, mas, também,
conseguir superar-se – tema que será abordado com maior profundidade no próximo capítulo.
Parece-me que esse é um elemento importante para entender os motivos que levaram
Elisa a ser denominada, por uma das treinadoras, de “atleta de competição”. Surpreendi-me
no dia em que uma das treinadoras veio comunicar que Elisa havia sido convidada para trocar
de turma, passando da turma das ‘novatas’ para a turma das ‘veteranas’. Sabendo que Elisa
era alvo de muitas correções, questionei a treinadora: “O que te levou a tomar essa decisão?”.
A treinadora afirmou que, na última competição, a menina tinha se saído muito bem e por isso
resolveram trocá-la de turma. Na entrevista com outra treinadora, ao perguntar sobre o
desempenho da Elisa, afirmou: “Ela consegue competir super bem no objetivo principal dela.
Mandou ver! Todas as competições que ela entrou, ela entrou super bem!”.
Alguns meses depois, acompanhei o preparo das meninas para o Campeonato
Brasileiro de Ginástica Artística que aconteceria em Guarulhos. Elisa iria participar, pois,
segundo a coordenadora da modalidade, “por sua característica competitiva”, poderia auxiliar
na pontuação da equipe19. Porém, eu presenciei momentos durante os treinos em que as
treinadoras demonstravam não ter certeza se a Elisa estava pronta para competir. Por esse
motivo, a menina era bastante exigida nos treinos.
No dia do campeonato, percebi muitas meninas da pré-equipe nervosas, como era o
caso da Maria, que caiu logo no início da sua série na trave, sendo esse um erro pouco
cometido nos treinos, considerado “bobo”. Segue um trecho da entrevista em que a Maria fala
sobre essa competição.
Pesquisadora: O que tu achaste da competição em São Paulo? Maria: Foi difícil. Pesquisadora: Como é que tu te sentiste? Maria: Fiquei nervosa. Pesquisadora: Por quê? Maria: Porque eu nunca tinha ido viajar para competir. Pesquisadora: Foi a tua primeira viagem? Maria: Para competir, sim. Pesquisadora: O que tu achaste do ginásio? Maria: Tinha um monte de meninas lá. Pesquisadora: E tu ficaste intimidada com as meninas que estavam lá? O que te deixou nervosa? Maria: Tinha um monte de gente. Pesquisadora: No momento da competição tu ficaste nervosa?
19 Nas competições oficiais promovidas pela CBG, são realizadas premiações por equipe. Nessas premiações, deverão concorrer equipes compostas por no máximo 6 ginastas e no mínimo 4. Para a avaliação das equipes, somam-se as 4 melhores notas em cada aparelho.
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Maria: Bastante! Pesquisadora: Onde tu ficaste mais nervosa? Maria: Na trave. Pesquisadora: Por que tu ficaste nervosa na trave? Por que foi o primeiro? Maria: E eu caí (MARIA, 03/12/2014).
Segundo o relato da menina, além de estar competindo em outra cidade, a quantidade
de pessoas no ginásio no dia da competição deixou-a apreensiva. No entanto, o desempenho
da Elisa no mesmo aparelho, a trave, chamou-me a atenção. Mesmo entendendo pouco de
Ginástica, consegui perceber que a menina executou a sua série da trave sem nenhuma queda
e, ao sair do aparelho, executando um mortal, chegou ao solo com apenas um passo de
desequilíbrio, o que é considerado bom para uma ginasta que está iniciando. Nesse aparelho,
Elisa conseguiu contribuir para a equipe na soma das melhores notas, ficando à frente de
Maria, sua colega ‘veterana’.
Competiram cerca de 30 meninas de diferentes estados e, na competição individual,
Elisa ficou entre as últimas colocadas. Mesmo assim, a atleta conquistou uma posição acima
da de Míriam, sua colega de equipe com mais experiência do que ela na Ginástica. Ainda
assim, Elisa não ficou satisfeita com o seu desempenho, e, após a competição, chorou por ter
se considerado “muito ruim”. Tentei consolar a menina de muitas formas e nada do que eu
dizia parecia ter algum significado, até o momento em que as suas colegas da pré-equipe
aproximaram-se dela e utilizaram os seguintes argumentos: “Para um primeiro Brasileiro, tu
foi muito bem! Eu fiquei muito nervosa no meu primeiro Brasileiro e chorei também”; “Elisa,
tu não foi mal! Tu conseguiu ficar uma posição acima da Míriam que tem mais tempo de
Ginástica do que tu”. Foram esses os incentivos que fizeram a menina parar de chorar.
O Campeonato Brasileiro é uma das competições mais significavas para as meninas e
estrear nesse campeonato é um momento importante para as ginastas. Dessa forma, ficar mal
colocada na estreia do “Brasileiro” era considerado “normal” diante da alta competitividade,
porém o importante era “fazer o seu melhor”. Além disso, mesmo tendo ficado entre as
últimas colocadas, o fato de Elisa ter conquistado uma posição acima da sua colega mais
experiente fez com que ela tivesse o reconhecimento das outras atletas.
Portanto, apesar da Elisa apresentar alguns aspectos que dificultam o seu desempenho
nos treinos, como a dificuldade de decorar a sua sequência de movimentos e manter a
“postura de ginasta”, ela conseguia manter a calma e concentrar-se durante as competições,
evitando os erros “bobos”. Além disso, conseguia realizar a sua melhor série diante dos
jurados e do público, mesmo que não representasse a melhor série da competição.
68
Pude observar, ainda, que existe outra característica que faz com que a Elisa se
mantenha na GA: a “coragem”. Em um dos treinos, perguntei para Elisa se ela sentia medo de
fazer algum movimento, e a menina respondeu que não tinha medo algum e que faria
qualquer movimento que a treinadora mandasse. A treinadora, ao ouvir a resposta da menina,
afirmou que gostava de meninas “corajosas”, mas, preocupada com a segurança da atleta,
alertou que Elisa deveria ter cuidado e fazer apenas aquilo que a treinadora autorizasse.
Segundo o relato da treinadora na entrevista, a menina Elisa “não tem medo” e tem “vontade
de aprender”, sendo essas algumas ‘virtudes’ que também se espera que uma ginasta possua.
Ao perguntar para Antônia quais atribuições deveria ter uma ‘ginasta muito boa’, sua
resposta foi: “Não sei, eu acho que ela [uma ginasta muito boa] é muito corajosa, ela faz um
monte de coisas”. Para Raquel, uma boa ginasta deve ser “alegre e corajosa”; já Camila diz
que uma boa ginasta deve “competir bem, não ter medo de fazer as coisas, mostrar que quer
fazer, não faltar muito no treino e estar sempre disposta a fazer as coisas novas”; para Maria, a
boa ginasta “faz várias coisas, não tem medo, tem que ser forte, não pode chorar”. Assim, a
“coragem” de alguma forma atravessa o discurso das meninas da pré-equipe, bem como a
necessidade de “enfrentar o medo” é algo bastante presente nos treinos. A partir dessa
observação, no próximo tópico discorro sobre a “coragem” e como o entendimento dessa
‘categoria’ ajudou-me a entender o processo de formação das atletas.
4.3 “SER CORAJOSA”: O ENFRENTAMENTO DA DOR E DO MEDO
Chamou-me atenção a turma das meninas mais jovens, com idades entre 5 e 7 anos, pois havia duas meninas que estavam fazendo Ginástica pela primeira vez. Quando chegou o momento de as meninas subirem na corda, a treinadora alertou-as do desafio: Quem tem medo não pode ser ginasta. As novatas subiram na corda até o teto e não demonstraram medo de altura. Ao ver que as meninas iriam subir até o fim da corda, a treinadora chamou os demais treinadores do ginásio para vê-las. Aproximei-me também, formando um grupinho de adultos perto da corda. A admiração das treinadoras era a força e a desenvoltura com que as meninas escalavam a corda. A treinadora falava admirada: Foi a primeira vez que elas viram uma corda na vida! (DIÁRIO DE CAMPO, 18/08/2014).
A corda, em função da altura que os atletas ficam quando conseguem escalá-la até o
topo, causa medo em algumas crianças, mas esse não parecera ser o caso das meninas que
protagonizaram a cena narrada acima. Momentos como esse, nos quais as crianças não
demonstram medo ao realizarem algum movimento ou exercício, são valorizados na pré-
equipe. No entanto, com as observações, percebi que, na maioria das vezes, ter coragem
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significava o enfrentamento de algum ‘medo’, e não necessariamente a ausência desse
sentimento.
Segundo uma das treinadoras, uma atleta da pré-equipe, quando mais nova, caiu ao
tentar escalar a corda, porém a treinadora conseguiu segurá-la. Após o acidente, a menina
ficou com muito medo e demorou bastante tempo para conseguir escalar novamente.
Presenciei muitas situações como essa, em que as crianças deveriam enfrentar os medos
causados por traumas desenvolvidos nos treinos ou porque o movimento que deveria ser
executado era de alta complexidade e qualquer erro de execução poderia causar queda ou
lesão.
Para que o leitor tenha uma ideia do que estou relatando, apresento a seguir algumas
imagens (retiradas da internet) de movimentos rotineiros realizados nos aparelhos da GA, mas
que causam ansiedade para um observador não familiarizado com a Ginástica, em especial
quando os executores desses movimentos são crianças de 8 a 12 anos de idade.
Ilustração 2 – Movimento realizado na paralela assimétrica #1
Fonte: Ricardo Bufolin/CBG. Disponível em: <http://cdn.wp.clicrbs.com.br/brasilolimpico/files/ 2015/05/11150776_924184560965928_1800825143120828392_n.jpg>. Acesso em: 10 ago. 2015.
70
Ilustração 3 – Movimento realizado na paralela assimétrica #2
Fonte: Skubik/Wikipedia. Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/7/71/ Skubik_on_Uneven_Bars_2006.JPG>. Acesso em: 10 ago. 2015.
Ilustração 4 – Movimento realizado na trave
Fonte: Luiz Pires/VIPCOMM. Disponível em: <http://rederecord.r7.com/pan-guadalajara-2011/ noticias/brasileiras-ficam-sem-medalha-na-competicao-individual-da-ginastica-artistica.html>. Acesso
em: 10 ago. 2015.
71
Ilustração 5 – Movimento realizado na mesa de saltos
Fonte: Ezra Shaw/Getty Images. Disponível em: <http://i0.statig.com.br/bancodeimagens/an/pc/s4/ anpcs4lo2e798wedwb7rsumug.jpg>. Acesso em: 10 ago. 2015.
Quando acompanhei as meninas da pré-equipe na competição em Guarulhos, duas
atletas do GNU que pertencem à categoria juvenil (12 a 15 anos) também estavam
competindo. Como a categoria juvenil exige das atletas movimentos mais complexos, eu
fiquei impressionada com os elementos que aquelas jovens executaram durante a competição.
No último dia em Guarulhos, após a competição, fomos jantar no shopping e tive a
oportunidade de conversar um pouco com essas atletas. Por causa dos saltos arriscados, a
principal curiosidade que eu tinha era se as meninas não tinham medo de cair. Expus a minha
curiosidade e perguntei para as meninas se sentiam medo de se machucarem enquanto
competiam. Uma das atletas respondeu enfática: “sim, tenho muito medo!”. Segundo a
menina, era por causa do medo que elas ficavam tão nervosas nas competições. A atleta
relatou o que sentia no momento da competição: “mesmo sabendo que consigo fazer, por
exemplo, um mortal na trave, tenho medo de que algo dê errado”. A mesma atleta afirmou
que era por esse motivo que ela queria ser treinadora de Ginástica, pois assim não precisaria
se arriscar.
Logo que iniciei as observações, entendi que o “risco” fazia parte dos treinos das
ginastas. Na entrevista que realizei com todas as ginastas da pré-equipe, em uma conversa em
grupo, perguntei se sentiam medo nos treinos, e uma delas foi quem falou por todas: “sim,
todo mundo!”. Outra atleta reforçou: “quem faz Ginástica tem que saber que pode fazer
alguns machucados mais graves”. Diante dessas respostas, perguntei o que as meninas faziam
72
quando sentiam medo. Algumas atletas relataram que, se não se sentiam seguras para executar
algum elemento, fingiam executar o movimento que a treinadora havia solicitado. Como o
ginásio onde os treinos acontecem é repleto de atletas todos os dias, as treinadoras não
conseguiam olhar o tempo todo o que todas estavam fazendo. Por diferentes motivos, era
comum as meninas “matarem” alguns exercícios, aspecto que abordarei mais adiante.
Porém, em vários momentos elas não conseguiam ‘escapar’ dos elementos que lhes
causavam medo. Segue um fragmento do diário de campo no qual narro um momento como
esse:
Após a paralela, as meninas foram treinar na trave. Nesse aparelho, chamou-me atenção a Antônia que caiu durante o flic-flac (movimento acrobático), e, após todas as suas colegas terminarem suas séries no aparelho, ficou com a treinadora na trave. A treinadora exigiu que a menina repetisse o movimento até acertar – dessa forma, ficou quase o treino inteiro na trave. Antônia chorou o tempo todo em que esteve nesse aparelho. A menina, ao cair três vezes, disse que estava com muita dor na mão. Em uma das suas quedas, torceu o pé. Quanto mais a menina chorava e dizia que estava com dor, mais a treinadora exigia dela. Até que chegou um momento em que a treinadora falou para a atleta: Tu só começaste a sentir dor depois que eu disse que era para repetir! A treinadora julgou que a menina estava com medo e que, por isso, não queria mais fazer aquele movimento (DIÁRIO DE CAMPO, 22/10/2014).
Conforme os relatos das ginastas nas entrevistas, a trave é um dos aparelhos que mais
causa medo nas meninas. Isso porque as ginastas devem executar movimentos acrobáticos em
uma superfície estreita (10 cm) que fica a 1,25 metro de altura do chão. Em um dia de treino,
essa mesma menina executou uma saída de mortal em cima da trave e caiu com a perna
batendo no aparelho. Eu estava muito perto dela quando aconteceu o acidente e fiquei
assustada com a batida, tapando os meus olhos quando a menina caiu. Em vários momentos,
tive essa reação, até que um dia, quando a Elisa realizou um salto sem sucesso, coloquei as
mãos nos olhos rapidamente, e em seguida a treinadora chamou a minha atenção: “Te acalma!
Eu estava perto, ela não ia cair!”. Depois desse dia, procurei controlar mais os meus impulsos
e tentei olhar para aquelas situações de quedas como maior naturalidade, pois percebi que a
minha reação causava estranhamento e reprovação por parte das treinadoras.
Voltando ao relato da queda da Antônia, naquele dia surpreendi-me com a reação da
treinadora. Ao invés de confortá-la, a treinadora repreendeu-a por ter executado o movimento
sozinha e disse para continuar treinando aquele mesmo movimento, porém no solo. A menina
secou as lágrimas e continuou treinando. Segundo o depoimento da Antônia na entrevista:
“Por mais que tu tenha medo, tu não pode ficar nervosa porque tu não vai fazer nada. Tudo dá
73
medo, mas tu tem que vencer os teus medos. Eu acho que isso é uma coisa que me atrapalha
muito porque eu sou muito cagona, tem muita coisa que eu não faço” (ANTÔNIA,
19/11/2015).
De acordo com a coordenadora e uma das treinadoras, por ser a atleta mais velha da
pré-equipe, Antônia, com 12 anos, era ainda mais exigida, pois precisava avançar bastante
para conseguir acompanhar as ginastas da sua idade nas competições.
Ouvi muitos relatos das treinadoras de ginastas que desistiram de ser atletas porque
sentiam medo. Em uma conversa informal que estabeleci com a coordenadora de um dos
clubes de Porto Alegre, essa afirmou que a GA é um esporte muito “difícil” e “precoce”.
Segundo a coordenadora, o primeiro ponto de corte desse esporte é a resistência à dor. Se no
primeiro tombo e trauma a criança não voltar mais, nas palavras da coordenadora: “já era”.
Isso porque as ginastas lidam com as quedas e com a dor todos os dias.
Sobre esse aspecto, não são raras as situações em que ocorrem acidentes, sendo alguns
‘graves’. Um exemplo disso foi quando uma menina de 7 anos da turma da manhã sofreu uma
fratura exposta no braço ao cair da trave. Naquele dia, cheguei ao treino à tarde e senti que
havia algo diferente: uma das treinadoras estava ausente e algumas treinadoras conversavam
baixinho em um canto do ginásio. Aproximei-me e inteirei-me do assunto. As treinadoras
comentavam sobre o ocorrido pela manhã e mostraram-me a radiografia da fratura, algo
impressionante. A treinadora ausente havia levado a menina para o hospital, mas em seguida
retornou ao treino e relatou como havia sido a queda e como ela, treinadora, havia ficado
nervosa com o acidente.
Algum tempo depois, aproximadamente um mês, a menina que havia fraturado o braço
estava presente em um dos treinos preparatórios para um campeonato. A menina não podia
treinar, mas estava lá por vontade própria, apenas assistindo e acompanhando as colegas, não
demonstrando medo ou receio de fazer algum movimento. Após poucos meses, a menina
passou a treinar normalmente, e, segundo as treinadoras, teve uma recuperação muito rápida e
surpreendente, pois a menina não ficou com trauma da queda. Nesse caso, fazendo uma
relação com a conversa que tive com a coordenadora de GA de um dos clubes de Porto
Alegre, essa menina havia passado pelo “ponto de corte”.
Diante dessas observações, entendi que cair, se machucar e continuar treinado com dor
era algo recorrente e necessário para quem quisesse ser ginasta. Além disso, percebi que
existia uma relação entre o medo e a dor. No entanto, a dor também estava presente na
execução repetitiva dos exercícios rotineiros dos treinos, sem ser, portanto, provocada apenas
pelas quedas. As meninas eram solicitadas a irem “até o seu limite”. Naquele local, parecia
74
fazer muito sentido a expressão em inglês ‘no pain, no gain’, que é comumente pronunciada
nos meios de treinamento físico.
As meninas aprendem a conviver com a dor, pois essa sensação acompanha as ginastas
durante todo o seu percurso como atletas. Fraturas e lesões articulares de joelhos, de
tornozelos e de punhos são as mais comuns. Sobre esse aspecto, Antônia relatou na entrevista:
“Eu nunca pensei em sair por causa da dor, porque eu já quebrei braço, eu já quebrei o dedo
do pé, enfaixei o punho e agora estou precisando fazer fisioterapia no ombro. Isso tudo me
atrapalha no treino, mas não me impede de continuar treinando e fazendo o que eu gosto”.
Ariel, uma das atletas da pré-equipe, em uma competição, fraturou o tornozelo, mas
foi sentir dor apenas depois de alguns dias, no treino. Em função dessa fratura, segundo o
médico, a menina deveria parar de treinar por algum tempo. Porém, essa é uma alternativa
impensável para ela e para as treinadoras. A atleta continuava treinando, apesar de ter
algumas restrições, como não realizar exercícios que exigiam impacto da articulação do
tornozelo. Segundo Ariel, se ela parasse de treinar, iria perder todo o condicionamento que
adquiriu até aquele momento. Ao perguntar para a menina como ela havia se sentido quando o
médico deu a notícia de que ela não poderia competir, sua resposta foi: “Eu fiquei meio triste,
mas depois eu pensei que é melhor eu não competir agora. Depois, quando tiver uma
competição mais importante, eu posso competir. Tem um monte de gente que está com dor, se
machuca e continua treinado porque quer competir”. No entanto, após a entrevista, Ariel
competiu, mesmo com a fratura no tornozelo, porém não executou as séries em todos os
aparelhos, evitando o impacto nos tornozelos. Portanto, suportar a dor é necessário para
manter o ritmo dos treinos e conseguir participar de competições.
Em um estudo etnográfico desenvolvido com atletas, bailarinas e lutadores,
Gonçalves, Turelli e Vaz (2012) observaram a superação da dor como um aspecto central no
treinamento dos sujeitos da pesquisa. Para os sujeitos investigados, a dor era reconhecida
como uma sensação necessária para superar os limites e conquistar um maior rendimento.
Nessa perspectiva, a dor era ignorada, suportada, e, em alguns casos, fonte de prazer. As
lesões e as cicatrizes provenientes do treinamento eram consideradas símbolos de superação e
avanço. Assim como as ginastas, também entre esses sujeitos era comum manterem os treinos
mesmo com lesões e machucados: “segundo os próprios informantes, [...] se interromperem o
treinamento, toda a condição física adquirida será fácil e rapidamente perdida”
(GONÇALVES; TURELLI; VAZ, 2012, p. 151). Nesse estudo, os autores entendem que os
atletas, lutadores e bailarinas precisavam mostrar coragem ao demonstrarem indiferença à dor.
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Os autores, ao referirem-se à relação entre técnico/atleta, sensei/carateca,
professora/bailarina, afirmam: “o discurso dos experientes impregna os ouvintes,
incorporando nos mesmos todas as regras e valores das práticas corporais que executam”
(GONÇALVES; TURELLI; VAZ, 2012, p. 153). Segundo os autores, é desse modo que os
sujeitos dessa pesquisa incorporavam a dor – como algo necessário e bom, e, às vezes, como
algo inclusive louvável.
Na mesma direção, também em uma investigação etnográfica realizada em duas
academias de ginástica e musculação, Hansen e Vaz (2006) identificam, entre os
frequentadores (alunos e professores) das academias, a ‘normalização’ da dor, um dos
aspectos que, para os autores, aproxima as práticas da academia às do esporte de alto
rendimento. Nos ambientes estudados, a dor estava relacionada ao “sacrifício” necessário para
o alcance dos objetivos dos praticantes. Em alguns casos, a dor era considerada “prazerosa”,
identificada na maioria das vezes como aspecto de um treino “bem sucedido” (HANSEN;
VAZ, 2006, p. 142-143).
Diferentemente do que os autores dos dois estudos encontraram entre bailarinas,
atletas, lutadores e frequentadores das academias, as meninas na pré-equipe, mesmo adotando
o discurso das treinadoras de que a dor deveria ser superada, não pareciam ver a dor como
algo ‘louvável’ e nem se mostravam indiferentes a ela. Presenciei casos de meninas que
deixaram de ir ao treino por causa das dores musculares, e, ainda, de uma menina que afirmou
que já pensou em sair da Ginástica por causa da dor. Segundo uma das ginastas: “Atrapalha
bastante a dor, tipo, quando a gente faz ‘caninho’20 e fica morrendo de dor, as treinadoras
parecem que não compreendem” (CAMILA, 21/03/2015).
Portanto, mesmo que se possa afirmar que a dor é ‘naturalizada’ entre as atletas da
pré-equipe, isso não quer dizer que ela seja considerada ‘boa’ pelas ginastas. As meninas
aprendem a suportar a dor e encontram formas de conviver com essa sensação no treino,
como não irem ao treino quando estão com muita dor, ou, conforme os relatos das meninas na
entrevista em grupo, “matando” alguns exercícios.
Em A Sociologia do Corpo, Le Breton (2007), antropólogo e sociólogo francês,
dedica-se à compreensão da corporeidade como um fenômeno cultural e social. Na
perspectiva do autor, o corpo “é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o
mundo é construída” (LE BRETON, 2007, p. 7). Assim, para Le Breton, a cultura é percebida
pelo ser humano através do corpo, e é através desse que se materializam aspectos simbólicos
20 Um movimento acrobático realizado nas barras paralelas assimétricas.
76
que organizam uma sociedade. Nessa obra, o autor aborda diversos aspectos que são
construídos socialmente e que perpassam o corpo. Dentre eles está a dor.
Sobre a dor, o autor afirma que a forma como essa sensação é ‘sentida’ e ‘expressada’
pelos sujeitos está interligada com a cultura à qual os corpos pertencem. Nas suas palavras:
A atitude do ator diante da dor e inclusive o limite da dor ao qual reage estão ligados ao tecido social e cultural no qual ele está inserido, com a visão do mundo, as crenças religiosas que lhe são próprias, isto é, a maneira como se situa diante da comunidade de pertencimento [...] Entre o excitante e a percepção da dor, há a extensão do indivíduo enquanto singularidade e ator de uma dada sociedade. As normas implícitas, escapando ao julgamento do indivíduo, determinam sua relação com o estímulo doloroso. Essa relação não responde a nenhuma essência pura, ela traduz uma relação infinitamente mais complexa entre as modificações do equilíbrio interno do corpo e os ressentidos por um ator que “aprendeu” a reconhecer essa sensação e a relacioná-la a um sistema de sentido e valor. Como a fome e a sede, a dor é um dado biológico, mas da mesma forma que não encontram em seus pratos sensações idênticas experimentam a comida de modo diferente, dando-lhe significação própria, os homens não sofrem da mesma maneira e nem a partir da mesma intensidade da agressão. Eles atribuem valor e significados diferentes à dor conforme sua história e pertencimento social (LE BRETON, 2007, p. 53, destaque do autor).
Refletir sobre a dor a partir da perspectiva desse autor é pensar nas ginastas da pré-
equipe como atores que atuam e se situam em uma determinada sociedade ou grupo – atletas
de alto rendimento de Ginástica Artística. As normas implícitas e explicitas desse esporte
exigem que os atletas sejam resistentes à dor e mantenham o controle do modo como irão
expressar essa sensação (secando as lágrimas e voltando ao treino), ou suportando a dor para
continuarem treinando. É importante destacar que, na mesma direção do autor, não estou
negando a dor na sua forma biológica, mas, a partir dos dados construídos no campo de
pesquisa, entendo que a intensidade, o significado e a maneira como a dor é exteriorizada vão
depender dos aspectos culturais que constituem e organizam um grupo.
Mais do que afirmar que sentir dor é algo ‘negativo’ ou ‘positivo’, é central nesse
estudo apontar que sentir dor ‘fazia sentido’ para as ginastas, mas isso não quer dizer que essa
sensação era motivo de orgulho. Muitas vezes, a dor era exteriorizada pelas atletas da pré-
equipe através do choro. Assim, em virtude da presença constante do choro nos treinos,
dedico o próximo tópico ao entendimento dessa manifestação entre as jovens atletas.
77
4.4 A NATURALIZAÇÃO DO CHORO E O SURGIMENTO DE UMA CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA
Diante da necessidade de enfrentar o medo e a dor, o choro entre as ginastas era
rotineiro. Raquel, uma ginasta de destaque na pré-equipe, afirma: “eu choro quando eu tenho
muito medo de fazer alguns elementos”. Já Antônia diz chorar por diferentes motivos: “eu
choro por tudo [risos]. Para forçar, qualquer coisa. Eu sinto muita dor porque eu sou muito
dura21. Estou com um machucado agora e eu estou com muita dor. Eu choro também quando
me xingam por qualquer coisinha”.
A seguir, apresento um excerto de diário de campo em que descrevo um momento em
que todas as ginastas estavam chorando.
O treino parecia tranquilo, até o momento do alongamento. A treinadora colocou estepes em cada perna das meninas, as quais deveriam abrir espacate sem apoiar as mãos no chão, apenas apoiando-se na colega ao lado. Parecia uma tarefa difícil para as meninas: elas se desequilibravam, e não conseguiam sustentar as mãos no ar. Quando uma delas caia, a treinadora solicitava que retornassem todas à posição inicial e recomeçava a contagem. Conforme as tentativas sem sucesso aumentavam, as meninas começavam a chorar, até o momento em que todas estavam chorando. Depois de algum tempo, elas conseguiram concluir o exercício (DIÁRIO DE CAMPO, 08/09/2014).
Embora para mim parecesse óbvio que, quando uma criança chora, é porque algo não
está bem e ela necessita de atenção, nos treinos da pré-equipe observada, chorar era habitual e
ninguém recebia maior atenção por estar chorando; pelo contrário, pois o fato de não haver
choro em determinadas situações causava estranhamento nas meninas. Sobre esse aspecto,
ouvi das meninas, em um treino no qual a Antônia estava sendo alongada por uma das
treinadoras, a seguinte frase: “Milagre a Antônia não chorar hoje no alongamento!”. Nesses
momentos ‘doloridos’ do alongamento, as meninas costumavam dar as mãos umas às outras
com o objetivo de apoiarem emocionalmente a colega que estava sendo alongada.
Outro aspecto que me causou estranhamento foi o fato de as meninas passarem do
choro para o riso, e vice-versa, rapidamente. Em um treino, Elisa estava muito animada.
Contava-me o quanto gostava da Ginástica, os movimentos que já havia conseguido fazer e
mostrava-me os seus saltos. Em seguida, a menina foi para o alongamento com as suas
colegas. Elisa, por estar há pouco tempo na Ginástica se comparada às outras nesse aspecto,
ainda não possuía a flexibilidade considerada boa para uma ginasta. Por essa razão, o treino
21 A menina refere-se à dificuldade em alcançar as amplitudes nos movimentos exigidas pelas treinadoras.
78
de alongamento para a novata parecia muito dolorido. Nesse dia, a treinadora Lívia auxiliou o
alongamento da Elisa, segurando os seus braços e corrigindo a postura da atleta enquanto essa
fazia espacate. Elisa não conseguia manter a postura e chorava muito. A treinadora,
expressando a sua insatisfação com aquela situação, disse que não a ajudaria mais, pois para a
treinadora a menina não estava colaborando e esforçando-se suficientemente.
Esse contraste entre os dois momentos chamou a minha atenção, pois, minutos antes
de a Elisa chorar, ela sorria e falava-me animada sobre a Ginástica. Para mim, os momentos
de estresse pareciam tão intensos que eu não entendia como as meninas conseguiam continuar
treinando. Um exemplo disso aconteceu em um dos treinos em que a Antônia teve que repetir
sua coreografia do solo enquanto chorava muito, pois havia entrado em conflito com uma das
treinadoras. A menina errou movimentos simples que talvez não errasse se não estivesse
chorando. No entanto, as treinadoras não flexibilizaram as suas exigências e pediram para ela
repetir o movimento várias vezes. Essa foi mais uma situação de bastante tensão, porém,
pouco tempo depois desse episódio, a menina passou por mim, sorrindo e conversando
alegremente com uma de suas colegas de equipe.
Estava evidente, então, que a forma com que eu significava essas situações era
diferente da forma como as meninas as vivenciavam. Não pretendo dizer que elas sentiam os
momentos com menor ou maior intensidade, mas que reagiam a essas ocasiões de uma forma
diferente daquela que eu estava esperando em tal situação. Mas o que eu esperava? Que ideia
de infância eu estava levando para o campo de pesquisa? Esses questionamentos começaram a
surgir conforme o meu estranhamento aumentava em relação aos modos como os treinos eram
conduzidos.
Quando acompanhei a equipe no Campeonato Brasileiro em Guarulhos, presenciei
diversas situações de tensão, de quedas e de fracasso dos(as) atletas durante os treinos que
antecederam a competição. Dentre essas situações, uma cena ficou bastante marcada na minha
memória. Um menino de aproximadamente 8 anos de idade tentava fazer alguns movimentos
nas barras paralelas; eu observava, admirada, os movimentos complexos que ele estava
executando. Porém, esse menino não conseguia completar uma série de exercícios. Tentava
muitas vezes e caía, até que começou a chorar. O treinador, ao ver o menino chorando,
chamou-o e repreendeu-o por estar chorando e desistindo do treino. O treinador pegou a
cabeça do menino com uma das mãos e direcionou o olhar do pequeno atleta para os colegas
que estavam treinando, dizendo que os seus colegas não estavam chorando – pelo contrário,
estavam tentando, e era assim que o menino tinha que agir também.
79
À noite, jantei com alguns treinadores, dentre eles estava o treinador que mencionei
acima. Em um determinado momento, o tema da conversa era a forma como as crianças
reagiam nas competições fora das suas cidades. Os treinadores relataram que muitos atletas
ficavam doentes ou com o comportamento alterado por estarem competindo em uma cidade
estranha. O treinador relatou justamente a cena que presenciei, afirmando como os atletas
ficam nervosos e que, às vezes, precisam de um “puxão de orelhas”. Nesse momento, ao ouvir
os relatos, manifestei-me dizendo que eu não poderia ser treinadora, pois ficaria sensibilizada
com os choros, quedas, machucados etc. A manifestação na mesa foi generalizada, e por
alguns instantes arrependi-me de ter expressado a minha opinião. Os treinadores falavam
todos juntos, agitados com a minha fala. Uma treinadora afirmou que, só porque estamos
falando de crianças, pensamos que elas “são criancinhas” e sentimos “pena”. A treinadora,
então, afirmou que “elas sabem muito bem o que fazem e o que querem”.
Após essa conversa, percebi o quanto eu estava com algumas noções de infância
fortemente naturalizadas, as quais faziam pouco ou nenhum sentido naquele ambiente
esportivo. Nos momentos em que as meninas da pré-equipe realizavam suas acrobacias, eu
ficava admirada com a habilidade e a força daquelas meninas franzinas. Eu pensava: como
‘corpos tão pequenos’ conseguiam fazer aqueles movimentos complexos e arriscados?
Percebi que essa admiração advinha de uma ideia de criança frágil e inábil que eu construí a
partir dos aprendizados em diferentes esferas da minha vida, assim como a minha
sensibilidade diante dos momentos de dor, quedas e pressões, chegando ao ponto de cobrir os
olhos diante dessas cenas.
Cohn (2013), ao fazer um levantamento de estudos antropológicos sobre e com
crianças, chama a atenção para a importância de os pesquisadores olharem para as diversas
noções de infância que estão presentes em seus campos de pesquisa. Dessa forma, segundo a
autora, os pesquisadores não devem confundir uma concepção com a outra, ou com a sua
própria. A autora sustenta que compreender como cada sociedade entende a infância permite
entender as ideias que as próprias crianças têm de si e do seu lugar na sociedade, mesmo que
seja resistindo a essa sociedade. Sobre esse aspecto, a autora afirma: “as crianças atuam em
resposta, e cientes, ao modo como se pensa sua infância” (COHN, 2013, p. 230).
Cohn chama a atenção para o fato de que, em uma mesma sociedade, podem existir
diversas formas de se entender e viver a infância, e que o antropólogo, em muitos momentos,
apresenta dificuldades de reconhecer essas outras infâncias. Prossegue a autora:
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Algumas situações nos revelam que não são só os nossos pré-conceitos antropológicos [...] que limitam o bom exercício da antropologia: são também nossos pressupostos, como cidadãos que somos, como humanos que somos, e que também arriscamos carregar a campo. Estes preconceitos – agora assim mesmo, preconceitos – já impediram que víssemos as crianças como sujeitos plenos e capazes; já impediram que víssemos as crianças indígenas em suas especificidades, e não como parte de uma suposta universalidade da infância (ou, pior, como os infantes da infância da humanidade que eram os indígenas até poucas dezenas de anos atrás e ainda o são no senso comum); já impediram que escutássemos (e não regêssemos) suas vozes; já impediram que víssemos, em geral, as crianças e as infâncias em suas multiplicidades e em seus modos de gerenciar suas infâncias. Agora, nos regozijamos com a nossa recém-adquirida capacidade de trazer à antropologia as vozes e as experiências das crianças, e reconhecer suas ações, relações e capacidades. Mas nem sempre isso é feito sem que barreiras reapareçam (COHN, 2013, p. 239, destaques da autora).
A autora cita alguns trabalhos antropológicos em que os dados causaram debates
importantes no campo acadêmico diante de situações vivenciadas na infância que são
questionadas na sociedade em que vivemos, como a iniciação sexual de crianças. Dessa
forma, Cohn questiona: “estamos realmente prontos para ouvir das crianças o que quer que
seja que elas venham nos contar?” (COHN, 2013, p. 240). Mesmo não sendo antropóloga,
mas levando em consideração que meu objetivo com essa pesquisa aproxima-se dos objetivos
dos estudos antropológicos, acredito que dois aspectos são importantes de serem debatidos a
partir do que foi exposto. O primeiro deles é a afirmação de que os pré-conceitos dos
antropólogos e suas trajetórias de vida podem “limitar” o desenvolvimento de uma pesquisa.
Essa afirmativa faz sentido se o pesquisador não ‘está atento’ aos contrastes entre sua cultura
e a cultura do grupo ou sujeitos que está pesquisando. ‘Estar atento’ significa estar com o
olhar preparado, com leituras que sustentam a pesquisa, de modo a não julgar a cultura dos
sujeitos do estudo. Penso que essa é uma forma de evitar o etnocentrismo. Portanto, não
acredito ser possível desfazer-me da minha visão de mundo para entrar em campo, mas, sim,
estar mais atenta à ela. Assim, ao estabelecer o contraste entre a minha concepção de infância
e a concepção de infância dos sujeitos da pesquisa, entendi mais sobre o universo alvo desse
estudo.
O outro aspecto que Cohn menciona é a necessidade de entender a ideia – ou ideias –
de infância presentes no campo de pesquisa, a fim de compreender a forma como as crianças
se relacionam com essa concepção. Para Cohn (2013, p. 241):
devemos sempre levar em conta que, de um lado, a concepção de infância informa (sempre) as ações voltadas às crianças – e, de outro, que as crianças atuam desde este lugar seja para ocupá-lo, seja para expandi-lo, ou negá-lo...
81
É a partir dele que agem ou é contra ele que agem. Por isso, a concepção de infância deve ser sempre considerada nas duas pontas das pesquisas em antropologia que fala de e com crianças – aquela que avalia o lugar da criança e trata de seus direitos, das políticas públicas a elas voltadas, de ações educacionais etc. e aquela que atenta para o ponto de vista das crianças. Se nem todos podemos ver ambos os lados ao mesmo tempo, ou todos os lados destas realidades multifacetadas, ao menos devemos ter isso em mente: que as ações voltadas às crianças e o lugar que lhes é destinado são definidos por concepções de infância na mesma medida em que o modo como as crianças atuam e o que elas pensam do mundo acontece a partir (mesmo que contra) desta posição que lhes é oferecida e que elas conhecem e reconhecem.
Enfrentar os medos, e por isso ser considerada “corajosa”; resistir à dor; chorar, mas
continuar treinando; são aspectos necessários ao processo de formação das jovens atletas e
contribuem para a construção de uma concepção de infância presente no campo de pesquisa.
Outro aspecto que reforçava essa concepção era a presença ‘limitada’ dos pais nos
treinos e nas competições. Quando as meninas foram para o Campeonato Brasileiro de
Ginástica Artística, em Guarulhos, a coordenadora da Ginástica recomendou que os pais não
se hospedassem no mesmo hotel em que as meninas ficariam. Uma das treinadoras, para
justificar a recomendação da coordenadora, afirmou que as meninas mudam os seus
comportamentos quando os pais estão presentes: “ficam mais manhosas”, conforme disse.
Além disso, os pais dão comida e desconcentram as atletas. Segundo a treinadora: “estar
sozinha é um aprendizado, é saber se virar sozinha, um preparo emocional para uma atleta”.
Nessa viagem, as mães, na maioria das vezes, observavam a atuação das filhas de
longe. Nos almoços, acenavam para as suas filhas e sentavam-se em outra mesa. No ginásio,
quando queriam falar alguma coisa com as meninas – como experimentar roupas de Ginástica
que estavam sendo vendidas no local –, pediam permissão para as treinadoras. Uma das mães
falava sobre a sua frustração quando a treinadora informou-lhe que as meninas assistiriam à
competição até o último dia, mesmo já tendo realizado as suas apresentações (essa mãe havia
planejado um passeio na cidade de São Paulo após a apresentação da pré-equipe).
Embora as treinadoras cuidassem das ginastas, as meninas eram estimuladas a serem
responsáveis pelos seus lanches, pelas suas roupas e pela sua higiene pessoal. E,
diferentemente do que algumas mães estavam esperando, era evidente que as meninas não
haviam viajado para passear, mas, sim, para cumprir um compromisso.
Nas observações que descrevi nesse capítulo, a pergunta que me acompanhou durante
todo o trabalho de campo foi: em face das restrições, do enfrentamento da dor e do medo e
das responsabilidades, por que essas meninas escolheram a Ginástica Artística e não outro
82
esporte? Além disso, refleti sobre como as crianças lidam com os seus medos, as suas dores e
as suas responsabilidades. Não foram poucas as vezes em que ouvi que algumas meninas da
pré-equipe estavam pensando em desistir e que as treinadoras estavam tentando convencê-las
a permanecerem, pelo menos até o final do ano. No entanto, no período de observação, vi
apenas duas meninas saindo da pré-equipe. Com isso, outro questionamento surge: por que as
meninas que pensaram em desistir permaneceram treinando?
Considerando uma ideia de infância presente nos ginásios e nas competições de GA
em que circulei, no próximo capítulo olharei para alguns significados e formas com que as
crianças que compõem a pré-equipe vivenciavam esse contexto esportivo.
83
5 A GINÁSTICA ARTÍSTICA: ENTRE OS ‘ENCANTOS’ E OS ‘ DESENCANTOS’
A turma das ‘veteranas’ estava muito animada, pois fariam uma coreo (expressão utilizada para se referir à coreografia) na trave. Nesse momento, as meninas subiram rapidamente no aparelho e brincaram de criar coreografias, enquanto a treinadora buscava algum material. Enquanto eu olhava para as meninas e pensava em como elas pareciam estar se divertindo, um dos treinadores da equipe de meninos disse: “Elas se divertem!”. Eu ri e disse que era exatamente isso que eu estava pensando. O treinador, pai de uma das meninas da pré-equipe, disse que, para a sua filha, a diversão em casa era fazer paradas de mãos e outros movimentos da Ginástica Artística (DIÁRIO DE CAMPO, 28/05/2014). Antônia chorou novamente! Ao tentar realizar paradas de mãos nas barras assimétricas, a menina parecia estar sem forças. A treinadora, percebendo aquela situação e talvez interpretando-a como uma falta de empenho, repreendeu a menina de forma dura. Antônia, diante da sua dificuldade e da repreensão da treinadora, terminou a sua série chorando. Ariel perguntou para a colega o que havia acontecido e Antônia respondeu, tentando controlar o choro, que não estava conseguindo fazer a parada de mãos. Antônia voltou alguns minutos depois e não conseguiu novamente realizar com sucesso o movimento. A treinadora mais uma vez brigou com a ginasta, que terminou o exercício, agora sim, sem conseguir conter o choro (DIÁRIO DE CAMPO, 06/10/2014).
Momentos contrastantes como esses eram muito frequentes nos treinos: ora as
meninas riam e brincavam, ora enfrentavam dificuldades e até choravam. Inicialmente, esses
episódios pareciam-me contraditórios. Porém, aos poucos fui entendendo que sentir dor,
medo, cansaço e frustração não impedia que as meninas experimentassem também momentos
de alegria e de entusiasmo com os treinos. Dessa forma, todos esses sentimentos faziam parte
do treino de GA da pré-equipe e pareciam misturar-se, não havendo fronteiras bem definidas
entre um momento e o outro. Diante dessa situação, as ginastas vivenciavam os treinos de
uma forma ‘não linear’, como mostrarei a seguir.
Antônia era uma das meninas mais velhas da pré-equipe – tinha 12 anos, e iniciou na
Ginástica Artística com 9 anos (o que é considerado uma iniciação tardia para esse esporte).
Após 8 meses treinando na “escolinha” de GA do clube, a menina foi descoberta por uma das
treinadoras e recebeu o convite para fazer o teste e entrar na pré-equipe, conforme apresenta o
relato:
Pesquisadora: Como é que foi a tua passagem para a pré-equipe? Antônia: Foi muito engraçado, na verdade. A minha mãe fazia Ginástica com o Roberto, sabe? Na turma dos adultos. Um dia ela estava fazendo e eu esperando, então entrei [no ginásio] e comecei a fazer arco para trás. A Ângela [coordenadora da GA] me viu, mas não sabia quem eu era, aí eu estava com uma bolha aberta no mesmo dia. Ela me chamou para tirar a
84
bolha da minha mão e eu nem senti dor, então ela achou que eu era forte e persistente porque eu tentei fazer o arco e caí de cabeça umas mil vezes e nem era o horário do meu treino. Foi depois disso que ela me chamou para fazer um teste (ANTÔNIA, 19/11/2014).
No relato da menina, nota-se que a sua resistência à dor e a sua persistência fizeram
com que ela fosse convidada a compor a equipe. Nos treinos, percebia-se que essa ginasta era
muito interessada, perguntando constantemente para as treinadoras se o seu movimento havia
melhorado e dizendo frases do tipo “meu movimento está horrível, preciso melhorar”,
demonstrando exigência consigo mesma. Em um dia, as meninas estavam reunidas antes do
treino, sentadas no chão e fazendo alguns exercícios “preventivos”22, e Antônia relatou:
“Preciso fazer terapia urgente”, referindo-se à necessidade de contar com um
acompanhamento psicológico para ajudá-la a permanecer na Ginástica. Na entrevista,
consegui compreender melhor o que levava Antônia a pensar que precisava de terapia. Disse-
me ela:
Eu tenho um pouco de mania de perseguição, pois eu achava que a Jussara [treinadora] tinha implicância comigo. Por isso, eu entrei em crise uma época, queria sair porque eu achava que a Jussara não gostava de mim. Então eu falei com a minha mãe e ela falou com a Ângela. Depois dessa conversa, a Jussara explicou que na verdade ela gostava muito de mim e queria que eu evoluísse, por isso ficava pegando no meu pé. Agora eu gosto muito da Jussara como técnica e como pessoa (ANTÔNIA, 19/11/2014).
Antônia dizia ser “sensível”. Nas palavras da menina: “Eu não gosto que me xinguem
porque sou muito sensível e começo a chorar. Se eu choro, me xingam e daí eu choro mais
ainda. Eu tento fazer tudo direito para não me xingarem, só que não funciona muito bem”
(ANTÔNIA, 19/11/2014). Porém, enquanto todas as meninas da pré-equipe relatavam que
preferiam treinar com a treinadora Lívia, que era considerada uma “mãezona” e “não gritava
muito”, Antônia afirmava gostar mais da treinadora Jussara porque era mais exigente e fazia
um treino mais “puxado”. Jussara costumava ser uma treinadora bastante rígida, por isso era
temida pelas meninas.
Antônia mostrava-se muito autocrítica nos treinos. Em muitos momentos, não era
necessário a treinadora apontar as correções para a menina, pois essa iniciativa partia da
própria ginasta, como mostro no excerto a seguir:
Antônia ficou brava quando errou um salto na barra, verbalizando sua revolta: “Não acredito que eu errei aquele salto idiota!”. A menina caía e
22 Uma série de exercícios que tinham como função prevenir lesões e dores.
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levantava rapidamente para tentar realizar o salto novamente, repetindo o movimento inúmeras vezes (DIÁRIO DE CAMPO, 16/05/2014).
Ao mesmo tempo em que Antônia afirmava que gostava de ser “puxada”, ela também
dizia que já havia pensado em desistir da Ginástica por causa da rotina e das exigências, o que
se evidencia no relato que segue:
Pesquisadora: Tu já pensaste em algum momento sair da Ginástica? Antônia: Já. Pesquisadora: Quando? Antônia: Ontem, por exemplo. Pesquisadora: Ontem? Conta-me sobre isso. Antônia: É que ontem o treino estava muito ruim. Eu não estava conseguindo fazer nada e a Jussara estava me xingando e ela falou que se eu continuasse assim eu não ia evoluir, não ia fazer mais nada. Aí eu pensei: “tá, então por que não me tiram da Ginástica se eu não vou mais evoluir?”. Mas isso acontece só quando o meu treino é muito ruim. Pesquisadora: O que é um treino ruim para ti? Antônia: Que tu não faz nada direito, que tu... eu estava com o mesmo peso que eu estava nos outros dias e eu estava me sentindo pesada, não saia do chão, não fazia nada, não conseguia fazer série, não fazia nada direito. Pesquisadora: Por que tu achas que estava assim? Antônia: Estava cansada. Pesquisadora: Cansada do que? O que tu fizeste no teu dia que te cansou? Antônia: Não, eu estava cansada da rotina. Pesquisadora: Em alguns momentos tu cansas dessa rotina? Antônia: [afirma com a cabeça]. Pesquisadora: O que tu tinhas vontade de fazer? Antônia: Sair mais ou poder dormir mais tarde na sexta, mas eu tenho que me preocupar se eu não vou estar cansada no sábado. Ou num feriadão poder viajar para ver meus primos que moram longe, mas eu não posso porque tem treino (ANTÔNIA, 19/11/2014).
Assim como Antônia, Míriam demonstrava sentir vontade de desistir da Ginástica. A
frase “Ainda bem que tem gente que não faz Ginástica” foi dita por Míriam enquanto escalava
uma corda em um dia rotineiro de treino. A corda fazia parte do treino de força e com
frequência era utilizada como punição para quem não participava das atividades da forma
esperada. Com isso, não raro as meninas “pagavam” uma quantidade de “cordas”.
Nesse dia, Míriam não estava “pagando cordas”, mas deveria escalar duas vezes para
finalizar o momento do treino em que desenvolviam a força. Ao questioná-la sobre a sua
afirmação, a menina justificou-se dizendo que acha boa a vida de quem pode ficar em casa e
não precisa treinar todos os dias. Ao ser perguntada sobre a razão de fazer Ginástica, já que
pensava dessa forma, a menina explicou que não foi ela quem quis fazer Ginástica, mas, sim,
sua mãe, que a levou para fazer o teste.
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No entanto, apesar de todas as restrições e aspectos dos treinos que a menina parecia
não gostar, Míriam, muitas vezes, também demonstrava empenho e concentração, sem
necessariamente ser cobrada pelas treinadoras. Na entrevista que realizei com a menina,
quando perguntei por que fazia Ginástica e não outro esporte, ela afirmou: “Ginástica é uma
coisa que eu adoro”.
Além da rotina cansativa, as exigências dos treinos compunham outro aspecto
apontado pela maioria das meninas para fazerem-nas pensar em sair da Ginástica. No entanto,
algumas vezes em que as ginastas se sentiram desconfortáveis com a forma como os treinos
eram conduzidos, essas situações foram levadas para a coordenação. Nesses casos,
eventualmente as treinadoras foram solicitadas a ‘suavizarem’ as suas maneiras de conduzir
os treinos23. Assim como as meninas precisavam se dedicar e treinar para manterem-se na
equipe, as treinadoras deveriam manter uma ‘boa relação’ com as ginastas para que essas não
desistissem; caso contrário, não haveria o número mínimo de atletas que representassem o
clube nas competições. Portanto, sobre esse aspecto e também outros, percebi que a relação
entre as atletas e a treinadora estava em constante negociação.
Um exemplo disso foi quando perguntei para Giovana por que ela continuava
praticando GA uma vez que havia pensado em desistir por causa de uma das treinadoras:
Pesquisadora: Por que tu continuaste treinando? Giovana: Porque a minha mãe conversou com os professores e daí os professores pensaram que iam perder uma atleta boa. Então os professores melhoraram. Eu falei para a minha mãe que eu queria continuar na Ginástica porque o treino melhorou bastante e eu continuei na Ginástica até agora (GIOVANA, 02/03/2015).
Boaventura (2011) não identificou o mesmo em sua pesquisa com atletas da Ginástica
Rítmica. A autora percebeu uma relação de subordinação entre ginastas e treinadoras, na qual
as atletas deveriam se adaptar às maneiras como as treinadoras orientavam os treinos.
Segundo a autora: “cada aluna recebe orientações da treinadora que carrega o poder maior
dentro do campo” (BOAVENTURA, 2011, p. 74).
No que diz respeito ao campo em que desenvolvi a presente pesquisa, é inquestionável
o poder que as treinadoras exerciam dentro do ginásio, porém esse poder não era unilateral.
Isso porque existia uma forte relação de ‘interdependência’ entre as atletas e as treinadoras,
uma vez que, sem atletas, não existiria a pré-equipe, e então o trabalho das treinadoras não se
concretizaria; assim como, sem o esforço e a dedicação exigidos às ginastas pelas treinadoras,
23 Informação fornecida por algumas ginastas e mães.
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não seria possível manter os treinos. Talvez seja por isso que eu não presenciara qualquer
situação em que alguma menina fosse retirada da pré-equipe, mesmo tendo percebido que
algumas delas não se encaixavam completamente no ‘perfil de ginasta’.
Sobre a ‘interdependência’, Elias (2014, p. 15) afirma que as pessoas:
através das suas disposições e inclinações básicas, são orientadas umas para as outras e unidas umas às outras das mais diversas maneiras. Estas pessoas constituem teias de interdependência ou configurações de muitos tipos, tais como famílias, escolas, cidades, estratos sociais ou estados.
Para o autor, as relações entre as pessoas são pautadas pelas disputas de poder, que
fazem parte das relações cotidianas de todos os indivíduos. Sobre o poder, o autor afirma que
“desde que nasce, a criança tem poder sobre os pais, e não só os pais sobre as crianças. Pelo
menos a criança tem poder sobre eles, desde que estes lhe atribuam qualquer tipo de valor”.
Dessa forma, existem relações de dependência entre os indivíduos que compõem as
sociedades, e, a partir do momento em que um indivíduo depende do outro, já é estabelecida
entre eles uma relação de poder (ELIAS, 2014, p. 81).
Mariante Neto et al. (2011) operaram com esse conceito em um estudo em que é
analisada a carreira do boxeador Muhammad Ali. Além do conceito de interdependência
fornecido por Norbert Elias (2014), os autores analisaram a carreira do lutador a partir dos
conceitos de ‘configuração’, ‘estabelecidos’ e ‘outsider’. Para desenvolver a análise, os
autores estabeleceram uma relação entre a carreira de Mozart, estudada por Norbert Elias, e a
carreira do boxeador Ali. Os autores concluem que o lutador Muhammad Ali não poderia ser
considerado um outsider24, pois, embora não se encaixasse no padrão da ‘boa sociedade’,
resistiu a três aspectos considerados importantes na sociedade estadunidense: raça, religião e
patriotismo. Porém, por ser um lutador que gerava dinheiro e publicidade no meio esportivo,
‘jogou o jogo’ dos estabelecidos.
Na comparação entre as trajetórias de vida de Mozart e de Ali, os autores demonstram
que o aspecto que permitiu que Ali conseguisse sucesso e reconhecimento foi o fato de viver
em uma sociedade composta por uma teia maior e mais complexa de interdependências. Já
Mozart, apesar de possuir uma história de vida semelhante à do lutador, não conseguiu
reconhecimento na sua época por ter menos possibilidades de estabelecer relações e, dessa
forma, buscar o seu espaço na sociedade.
24 Elias e Scotson (1994 apud MARIANTE NETO et al., 2011) denominam outsider os não membros da boa sociedade, com características de um não grupo, ou seja, difuso e heterogêneo. Já os estabelecidos são considerados um grupo constituído por laços intensos.
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A partir disso, é possível afirmar que as cadeias de interdependências na Ginástica
Artística também são complexas, e as relações não estavam livres de tensões. As relações de
poder se davam em diversas direções, até mesmo entre as próprias ginastas, de modo que as
mais habilidosas e com mais tempo de Ginástica possuíam um reconhecimento maior dentro
do grupo. Da mesma forma, as ginastas consideradas mais habilidosas estabeleciam relações
de interdependência mais fortes na medida em que as treinadoras precisavam delas para
alcançarem bons resultados nas competições.
Sendo um esporte com alto nível de exigência e complexidade – aspectos que são
evidentes nos regulamentos nacionais e internacionais –, existe um esforço, por parte das
treinadoras e também da coordenação dessa modalidade no clube, em montar e,
principalmente, em ‘manter’ uma equipe com um desempenho mínimo para participar de
competições. Recrutar ginastas com as características necessárias para desenvolver esse
esporte não parece ser uma tarefa fácil, pois são várias as exigências, como relata uma das
treinadoras:
A gente faz primeiro um teste com a menina. No que consiste o teste? Em ver a flexibilidade da menina. Se não é aquela flexibilidade bem articular, não tem como, a menina vai sofrer de mais para ganhar, então a gente já nem pega. Vê se tem força. Pegar uma menina muito fraca, que não tem como desenvolver, muito flexível e muito fraca, vai para a Ginástica Rítmica. Tenta encaminhar dessa maneira. Então vê se ela sabe fazer alguns elementos básicos, tipo cachorrinho, que é uma flexibilidade com as pernas afastadas e o tronco tocando no chão, os espacates com o afastamento anteroposterior e o lateral. Ver a ponte, se a menina é muito dura de ombro, se ela tem coragem de se pendurar nos aparelhos, soltar nas espumas, de subir e atravessar a trave, ver se ela consegue ter coordenação motora. Então, a gente dá uma sequência de saltinhos no treque para ver se ela consegue fazer, pular corda ou subir a corda para ver a questão da força, canivete no espaldar, força de sustentar o abdômen. É basicamente isso. E daí, se passa nesse primeiro teste, tem que ver em que grupo ela vai se adequar. Se a menina é iniciante, tem 8 anos, mas está iniciando, eu não vou poder botar um treinamento muito intenso porque eu corro o risco de assustar a menina e a menina cair fora muito rápido. Então tem que ser bem devagar e aos poucos. Se é uma menina que começou lá com 3 anos na escolinha, que já está fazendo, aí chegou com 8 anos, eu posso colocar todos os dias? Para essa menina eu posso porque ela já tem uma carga de trabalho, de Ginástica no corpo que eu não vou assustar, não vai ficar tão cansada que não vai conseguir vir no outro dia. Então depende de menina para menina, de caso a caso (TREINADORA, 27/03/2015).
Como é possível obter do relato dessa treinadora, existe uma preocupação em não
“assustar” as ginastas e desenvolver a inserção nas rotinas dos treinos de forma gradual.
Porém, há casos de meninas que se adaptaram muito rapidamente ao ritmo dos treinos e, por
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isso, logo já estavam treinando todos os dias. Com isso, nota-se que cada menina possui uma
maneira diferente de responder aos treinos, bem como a treinadora se preocupa em não
ultrapassar o limite da criança para não ‘perder’ a atleta por desistência.
No entanto, não foram raras as vezes em que pensei que as meninas estavam em
situações próximas do limite. Diante disso, questionei: como as ginastas percebiam os
treinos? Após as entrevistas, passei a olhar para os treinos de uma forma diferente, pois os
relatos permitiram com que eu visse aspectos que antes eu desconhecia, a exemplo dos treinos
considerados pelas meninas como “bons” ou “ruins”. A seguir, trago um excerto do diário de
campo em que presencio um “treino ruim” para a Antônia e “bom” para a Raquel:
Conforme a conversa que tive com a Antônia há dois dias na entrevista, hoje o treino parecia ruim para essa menina. Como de costume, as meninas foram divididas entre as treinadoras: a Jussara ficou apenas com a Raquel, a Antônia e a Ariel. O treino das três meninas iniciou no solo e depois continuou na trave – o aparelho que a Antônia menos gosta. Eu estava acompanhando o maior grupo, mas logo ouvi a Jussara alterando o seu tom de voz, o que chamou a minha atenção para a trave. O problema era a Antônia, pois a menina caiu e não estava conseguindo fazer um movimento. Jussara solicitou que a Antônia fosse treinar o mesmo movimento, porém no solo. Enquanto Antônia treinava no solo, com sucessivas quedas, Raquel estava conseguindo fazer pela primeira vez alguns movimentos, dentre eles o mortal de costas na trave. A menina muito feliz e foi correndo contar para as outras treinadoras. A Jussara comemorou com a menina batendo as mãos, como de costume. Raquel se aproximou de mim e perguntou se eu havia visto o que ela tinha conseguido fazer, eu disse que sim. Raquel, então, comparou-se com a Antônia: “Eu não vim segunda nem terça, tinha uma apresentação na escola, e estou conseguindo fazer melhor que a Antônia”. Enquanto isso, Antônia tentava realizar o mesmo movimento do início do treino e continuava sem sucesso. Quanto mais a menina tentava, piores ficavam suas quedas. Jussara, numa postura bastante rígida, chamou a menina em particular e comparou o treino dela com o treino da Raquel, afirmando que a Raquel estava evoluindo e a Antônia não estava conseguindo avançar, pois enquanto Antônia tentava um único movimento sem sucesso desde o início do treino, Raquel já havia realizado três movimentos. Após a trave, as três ginastas foram para o track. Lá a situação não melhorou, nem para a Raquel, mas piorou para a Antônia. As meninas fizeram diversos saltos sem sucesso, pois sempre havia alguma correção da treinadora. Terminado as ‘duras’ sequências no track, as meninas foram para o outro canto do ginásio realizar outros saltos. Parece que o treino ficou mais tranquilo nesse momento. Antônia e Ariel passaram por mim conversando e ouvi a Antônia falando: “Pelo menos agora compensei o que eu não fiz na trave e no track!” (DIÁRIO DE CAMPO, 21/11/2014).
Mesmo diante de sucessivos “treinos ruins” que presenciei, os quais eu considerava
próximos do limite, as ginastas seguiam frequentando os treinos. Por quê? O que fazia com
que as meninas retornassem depois de um “treino ruim”? Por que Míriam ora afirmava
“gostar muito da Ginástica”, ora dizia que “é bom quem não faz Ginástica”?
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Quando perguntado para a Antônia por que fazia Ginástica, sua resposta foi: “a minha
vontade de fazer coisas novas, de evoluir. Mostrar para as pessoas que ficavam me dizendo:
‘mas o colégio é mais importante, na Ginástica tu não tens futuro’, e porque eu gosto muito
também de fazer isso”.
Assim como a Antônia, outras meninas relataram “gostar muito” da Ginástica. Sendo
alguém que busca compreender os significados que essas crianças dão ao contexto esportivo
em que vivem, uma pergunta que orientou o meu olhar foi: diante dos ‘desencantos’
(exigências, frustrações, medo, restrições, dor e cansaço), por que as meninas gostam da GA?
Feita essa pergunta, ouvi nas entrevistas as seguintes respostas: “ficar se movimentando”,
“desafio”, “competir”, “mostrar para os outros o que eu sei fazer” e “a gente se diverte”. A
partir dessas respostas, e das observações, no próximo tópico busco compreender os aspectos
que contribuem para que essas meninas permaneçam nesse esporte.
5.1 SOBRE OS ‘ENCANTOS’: MOVIMENTO, DESAFIO E COMPETIÇÃO
Quando perguntei à Antônia por que ela havia escolhido a GA e não outro esporte, a
sua resposta foi: “é porque é um esporte que a gente fica em movimento o tempo inteiro e tu
nunca descansas. E eu venho aqui todo dia e tal. Eu acho muito legal”.
‘Estar em movimento’ parecia algo que atraía as meninas da pré-equipe. Em todos os
treinos, admirava-me com a disposição daquelas ginastas, pois elas se deslocavam pulando e
saltando – caminhar era apenas mais uma possibilidade de locomoção, a qual parecia menos
atraente. Constantemente, eu pensava que elas pareciam ‘macaquinhas’, pois sempre estavam
fazendo alguma acrobacia em algum canto do ginásio.
Míriam era chamada carinhosamente pelas treinadoras de “espoleta”, pois passava boa
parte do treino brincando, pendurando-se nos equipamentos ou conversando. Por esse motivo,
sua rotina na pré-equipe era marcada pelas chamadas de atenção das treinadoras. A atleta tem
9 anos de idade e foi levada aos 7 anos pela mãe para fazer o teste na pré-equipe porque era
muito agitada e em casa estava frequentemente “pulando” e “se pendurando nas coisas”25.
Em uma competição no final de semana, Raquel e mais algumas atletas da pré-equipe
não estavam participando, mas foram até o local acompanhar as outras colegas de treino. No
momento do descanso entre as modalidades, Raquel juntou-se ao grupo que estava
competindo. Enquanto as meninas conversavam e manuseavam um celular, em certo
25 Informação fornecida pela menina na entrevista e pela sua mãe em uma conversa informal.
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momento Raquel, em um suspiro e mexendo impacientemente o corpo, desabafou: “Ai, não
aguento ficar parada! Quero treinar!”.
Esse aspecto surgia com frequência nas conversas que desenvolvi com as atletas, pois
quase todas as meninas afirmavam ser bastante agitadas em casa, que gostavam de brincar se
pendurando em árvores e subindo em muros. Segue um fragmento da entrevista que realizei
com a Raquel no qual falamos sobre as brincadeiras em casa:
Pesquisadora: Tu tens muitas amigas no prédio? Raquel: Faz pouco tempo que eu me mudei, daí eu só tenho uma amiga. Mas no meu prédio antigo, que é na frente do meu atual, eu chamo elas para irem lá. Pesquisadora: E o que vocês fazem? Raquel: Nós costumamos ir à pracinha. Tem uma academia ao ar livre que a gente fica brincando lá. Pesquisadora: Ah, que legal! Brincam do que lá? Raquel: A gente brinca de quem fica de cabeça para baixo mais tempo. A gente fica que nem um morceguinho. Pesquisadora: O que mais que vocês fazem? Raquel: Quando tem borboleta, a gente caça borboleta. E a gente gosta de escalar o muro (RAQUEL, 21/11/2014).
Pilotto (2010), em uma pesquisa na qual buscou entender como os corpos de ginastas
eram educados na GA, percebeu a ‘inquietude’ nas narrativas dos(as) ginastas que
compuseram a sua pesquisa. A autora considera esse aspecto como sendo a incorporação de
um discurso presente em outras esferas sociais, como a escola e a mídia. Segundo a autora:
“não conseguir parar, precisar fazer exercícios para se acalmar, gastar energia e deixar livre
para depois domar são algumas justificativas comuns ao se inserirem crianças e jovens em
modalidades esportivas” (PILOTTO, 2010, p. 115). Para a autora, as crianças e os jovens
incorporam esses discursos em suas narrativas, o que contribui para a construção de suas
identidades.
Quando olho para as ginastas da pré-equipe, vejo a ‘inquietude’ para além dos
discursos, por vezes generalizantes, presentes na sociedade hodierna. Embora eu tenha
escutado muitas histórias – a partir das mães e das próprias ginastas – em que as meninas
eram descritas como agitadas e, por isso, foram levadas para a Ginástica, e reconheça que
existe um discurso de que o esporte pode ‘canalizar energias’, não percebi a ‘inquietude’
como uma narrativa incorporada pelas ginastas que justificasse a sua participação na GA.
Compreendo a ‘inquietude’ como uma ‘vontade de estar em movimento’ e, além disso, um
aspecto que estimulava as atletas nos treinos.
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Buss-Simão (2012) desenvolveu uma pesquisa em aulas da Educação Infantil. O
objetivo do estudo era entender como as crianças faziam uso dos espaços e dos tempos
institucionalizados pelos adultos. A autora percebeu a centralidade que o corpo possuía nos
usos e nas ações das crianças, pois “o corpo não precisa somente sentar, ele precisa deitar,
dobrar, esticar, encolher, conter, relaxar, subir, descer. Enfim, o corpo está na base de toda
experiência social das crianças e na construção de suas relações” (BUSS-SIMÃO, 2012, p.
270). A autora destaca que os diversos usos dos espaços pelas crianças envolvem a construção
de conhecimentos sobre limites e possibilidades dos seus corpos, assim como dos próprios
espaços, pois é possível explorar, descobrir, traçar as primeiras aproximações, manipular e
observar o espaço e os objetos.
Da mesma forma, considerando as particularidades de cada pesquisa, encontrei nos
movimentos da GA uma forma de comunicação e construção de conhecimento e relações
entre as ginastas. Acredito que o espaço do ginásio e o tempo do treino, ainda que bastante
regrado e controlado, propiciavam às crianças o conhecimento e a exploração do corpo, assim
como dos aparelhos. Entendo que a GA, pelas próprias características da prática, contribuía
para esse processo. As meninas conheciam os seus corpos, suas possibilidades, seus limites, e
‘brincavam’ com isso o tempo todo durante os treinos. Não foram raros os momentos em que
eu via uma ginasta pendurada, de cabeça para baixo, saltando, correndo ou alongando entre
um exercício e outro. Ao mesmo tempo, as treinadoras tentavam controlar esses movimentos,
repetindo constantemente frases do tipo: “Míriam, sai daí!”; “Elisa, não te pendura!”; “Gurias,
desçam daí agora!”. Mas era muito difícil conter aqueles corpos ‘pequenos’ e ‘ágeis’ e não
dispostos a parar.
Além de ‘estarem em movimento’, as meninas relataram gostar dos ‘desafios’. Como
mencionado anteriormente, esse esporte possui inúmeras dificuldades e existem muitos
movimentos complexos que ‘desafiam’ quem o está aprendendo. Apesar de as meninas
também afirmarem que, às vezes, sentem medo (e, diante do medo e da dor, procuram
“matar” o exercício), o ‘desafio’ de fazer um movimento novo e difícil atraía a atenção das
meninas. Esse aspecto é reforçado nas entrevistas, visto que as ginastas afirmaram que
consideram um treino “chato” quando devem fazer os mesmos exercícios e movimentos por
muito tempo. Seguem relatos que evidenciam esses aspectos:
Pesquisadora: O que mais te faz não querer vir no treino? Raquel: Quando eu não estou gostando dos treinos, quando os treinos estão muito chatos. Pesquisadora: O que é um treino chato?
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Raquel: É quando, às vezes, a gente faz a mesma coisa. Como agora, estou fazendo a mesma série desde o estadual infantil. Pesquisadora: Entendi! Todo treino tu faz a série que tu compete, é isso? Raquel: Aham, quando não tem competição eu não preciso mais fazer série. Pesquisadora: E o que tu gostarias de fazer? Raquel: Aprender coisas novas (RAQUEL, 21/11/2014).
Pesquisadora: E tu já pensaste em fazer algum outro esporte? Mariana: Já. Pesquisadora: Qual? Mariana: Tênis e também, não esporte, artes. Pesquisadora: Legal! E tu chegaste a fazer essas aulas? Gostou? Mariana: Tênis não. Eu cheguei a fazer uma aula experimental de Natação e de Dança. Pesquisadora: E o que tu achaste dessas aulas que tu fizeste? Mariana: Não tão legal quanto Ginástica. Pesquisadora: Mesmo? Por quê? Mariana: Porque é um esporte desafiador, tem várias coisas difíceis para aprender (MARIANA, 16/04/2015). Pesquisadora: Por que tu fazes Ginástica? Patrícia: Porque eu acho um esporte mais legal, que cada dia tu tá aprendendo uma coisa nova. Pesquisadora: Tu vens todos os dias aqui, inclusive no sábado, 4 horas por dia, por quê? Por que tu achas legal vir todos os dias e fazer Ginástica? Patrícia: Porque a gente fica nos aparelhos, aprende coisas e compete com elementos novos. Como aconteceu outro dia, eu não ia fazer rodante mortal na paralela, mas na segunda-feira eu fiz e então eu consegui fazer na competição (PATRÍCIA, 01/12/2014). Pesquisadora: Por que tu gostas da Ginástica, Camila? Camila: Porque é um esporte que a gente faz umas coisas do tipo ‘mortal’, ou alguma coisa que tem gente que não consegue fazer. E na Ginástica quem está aqui acha legal fazer (CAMILA, 19/11/2014).
Ouvi muitas vezes as meninas relatarem que era “legal” fazer Ginástica. Mas o que era
“legal” na Ginástica? Em um dia de treino, uma das treinadoras havia solicitado para a Elisa
realizar um deslocamento apenas com a força dos dedos dos pés. A menina deveria percorrer
uma pequena distância apenas movendo os dedos. Fiquei observando a ginasta realizar
vagarosamente o exercício. Para tentar agilizar, a menina deu pequenos pulinhos para frente,
impulsionando-se com os braços. A treinadora, observando a ‘técnica de braços’ que a menina
havia desenvolvido, disse que a ginasta não poderia ajudar o seu movimento com os braços,
pois apenas os dedos deveriam fazer força. A menina olhou para mim e disse em voz baixa,
como se estivesse contando um segredo: “Que coisa mais chata!”. Perguntei para a menina o
que ela considerava “legal”, ela apenas riu. Alguns instantes depois, Elisa dirigia-se para o
solo para realizar alguns elementos acrobáticos, como o mortal, então ela olhou-me e disse:
“Viu? Isso que é legal!”.
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Eu poderia citar diversas ocasiões em que vi as meninas entusiasmadas ao realizarem
um movimento novo ou por terem vencido alguns ‘desafios’, como realizar corretamente um
movimento complexo, que não necessariamente era ‘novo’. A seguir, trago alguns exemplos
de situações de conquistas desse tipo:
Hoje percebi as meninas muito animadas. A Elisa veio cumprimentar-me com um beijo, retribuí o cumprimento e perguntei como ela estava e como estava o seu treino. A menina respondeu que estava bem e deu uma relação de elementos novos que ela estava conseguindo fazer. Elisa estava se dedicando no treino, repetindo várias vezes o mesmo elemento, buscando acertá-los, algumas vezes até impedindo que suas colegas também usassem o aparelho, pois ela queria fazer só mais um. Elisa pediu diversas vezes para eu ver como estava o seu movimento, se estava fazendo certo. A menina obteve conquistas hoje e a cada elemento bem feito eu via um sorriso no rosto e mais vontade de fazer e mostrar para quem quisesse olhar. Comentei com a treinadora Lívia que elas estavam animadas hoje e a treinadora disse que ontem foi um dia de muitas conquistas, já que várias delas conseguiram fazer elementos novos e mais complexos. A treinadora acreditava que era por isso que as ginastas estavam animadas nesse treino (DIÁRIO DE CAMPO, 03/12/2014). Maria e Patrícia foram conversar com a Raquel sobre os movimentos que a ginasta havia conseguido fazer naquele dia. Raquel, contente, listou para as colegas o que havia realizado. Após o relato da colega, Maria e Patrícia também compartilharam o que conseguiram fazer e o que iriam tentar nos próximos treinos (DIÁRIO DE CAMPO, 21/11/2014).
A superação dos ‘desafios’ não era apenas compartilhada, como também fortemente
incentivada pelas meninas. Em alguns treinos, a treinadora distribuía as meninas em um
círculo e as atletas deveriam, uma de cada vez, fazer o máximo de esquadra-parada26 que
conseguissem, sem tocar os pés e o quadril no chão no momento da volta da parada de mãos.
Enquanto uma ginasta tentava fazer o movimento, as outras contavam em voz alta com
energia. Além de contar, quando as colegas percebiam que a atleta em movimento estava
cansando, aumentavam o tom de voz e diziam: “Vai!”, “Aperta!”, “Fica!”. Após cada uma
mostrar o seu desempenho, as meninas comparavam os números.
Em outro treino, em que as meninas deveriam fazer diversos testes de força, essa
questão também ficou bastante evidente. Segue o relato desse dia:
O treino hoje seria de teste de força. Chamou-me a atenção Maria, que disse alto: “Ah, não, Lívia [treinadora], eu estou dura, faz três dias que eu não treino!”. A menina demonstrou uma preocupação no seu desempenho no
26 Sentadas no chão com as pernas afastadas, com apenas o apoio das mãos, as meninas deveriam elevar o quadril e as pernas, fazendo extensão e adução do quadril até ficarem de cabeça para baixo e as pernas para cima, na chamada “parada de mãos”.
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teste, e então eu percebi que esse não seria um treino comum. O treino iniciou e não demorou muito para roubar a atenção de todos no ginásio. As meninas deveriam fazer os exercícios que estavam acostumadas, porém fariam uma de cada vez e tentariam fazer o máximo de repetições que conseguissem, ou, ainda, deveriam fazer o máximo de exercícios em um determinado tempo. As meninas torciam muito umas pelas outras, gritavam alto e contagiavam quem estivesse em volta. Quando as treinadoras e as colegas percebiam que quem estava realizando o teste estava cansando, os gritos de motivação aumentavam. Também senti-me contagiada pela torcida e, sem perceber, estava torcendo junto com as meninas. O importante nesse teste não era fazer melhor que as outras, mas sim dar o máximo de si. Isso ficou muito evidente quando a Patrícia foi fazer os abdominais nos espaldares e fez os movimentos até os músculos falharem. Após a Patrícia, foi a vez da Elisa. A menina foi bem, fez um número considerável de abdominais, mas não parecia ter dado o seu máximo, como Patrícia havia acabado de fazer, pois Elisa logo desistiu e desceu do equipamento. Uma das treinadoras questionou a menina, perguntando por que ela havia desistindo se estava evidente que conseguia fazer mais (DIÁRIO DE CAMPO, 15/12/2014).
Como mencionado anteriormente, a superação era um aspecto que fazia sentido nos
treinos. As treinadoras reforçavam a necessidade de as meninas “darem o seu melhor”. Para
algumas meninas, era evidente que o ‘desafio’ também significava a superação das suas
próprias marcas. Porém, não eram todas as meninas que se sentiam ‘desafiadas’ pela
possibilidade de obterem superação pessoal, e mesmo para aquelas que se sentiam desafiadas,
nem sempre o objetivo de ‘fazerem o seu melhor’ tinha centralidade. Trago, a seguir, um
excerto de diário de campo que exemplifica esse ponto:
Eu estava observando o treino da Elisa e da Giovana, quando a Elisa dirigiu-se a mim e disse, desanimada: “Eu tenho só duas esquadra-parada!”. Perguntei o que isso significava e a menina respondeu que ela deveria fazer 5 movimentos e havia feito apenas 2. A menina estava executando o seu terceiro movimento quando a treinadora solicitou que ela interrompesse a sequência para apontar diversas correções. A menina concordou, mas, ao final da fala da treinadora, perguntou: “Mas esse último vale?”. A treinadora ficou incomodada com a pergunta da ginasta e respondeu que prefere poucos movimentos bem feitos do que muitos feitos de qualquer jeito. Para a treinadora, a menina não deveria estar preocupada em terminar logo a sequência solicitada, mas em executá-la corretamente. Pareceu-me, contudo, que essa não era a preocupação da Elisa naquele momento (DIÁRIO DE CAMPO, 03/07/2014).
Em algumas situações, geralmente nos exercícios de força, as meninas pareciam
querer terminar rapidamente a sua sequência para passar logo para o próximo exercício ou
aparelho, isso porque esses exercícios eram considerados “chatos” e “cansativos”. Nesses
casos, tornava-se mais importante ‘cumprir a tarefa’ do que fazê-la com empenho – aspecto
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que ficava evidente nos treinos da Míriam, em especial. A atleta entrava constantemente em
conflito com as treinadoras porque deveria repetir algum exercício que havia sido realizado
“sem capricho” ou de forma errada. A menina, em reação às ordens dadas, fazia “cara feia”.
Percebi que os exercícios que a menina não gostava de fazer eram os específicos de
força, como os abdominais e as escaladas na corda, aos quais ela empregava pouca dedicação.
Na entrevista que realizei, a menina falou sobre os exercícios de força:
Pesquisadora: O que tu não gostas nos treinos? Míriam: Dorsal de pernas, porque a gente tem que fazer com pesinhos de 2kg. Pesquisadora: Eu te vi fazendo hoje. Estava cansativo? Míriam: Estava e por isso fiz bem baixinho (MÍRIAM, 22/12/2014).
“Matar” os exercícios de força era uma prática recorrente entre todas as ginastas da
pré-equipe. Como já mencionado, as meninas costumavam boicotar os exercícios que lhe
demandavam a aplicação de muita força ou aqueles que elas consideravam muito arriscados e
tinham “medo de fazer”. Sobre isso, segue um excerto da entrevista realizada em grupo com
as ginastas:
Pesquisadora: Vocês já sentiram muito medo ao ponto de não quererem fazer algum exercício? Meninas: Sim! Já! Raquel: Eu finjo que faço alguns exercícios quando a treinadora não vê. Quando ela pergunta se já terminei eu digo que já fiz o exercício. Pesquisadora: Vocês fazem muito isso? Camila: A gente mata bastante os exercícios de força. Pesquisadora: Por que vocês matam a força? Camila: Porque é cansativo, é muita coisa! (GINASTAS, 22/03/2014).
Por outro lado, percebia as meninas mais animadas ao realizarem alguns exercícios
rotineiros quando havia a presença de um treinador que, em certos momentos, estava no
ginásio enquanto as meninas da pré-equipe treinavam. Esse treinador incentivava as ginastas,
dizendo frases do tipo: “Quero só ver se tu consegues fazer”. Narro um momento como esse a
seguir:
Fui até a paralela onde estavam Vivian, Antônia, Ariel e Raquel. As meninas estavam se preparando para realizarem os saltos, e passavam com agilidade o magnésio nas mãos e na barra. Um treinador aproximou-se delas, desafiando as atletas. Disse que queria ver quem conseguia fazer 10 movimentos (o chamado Kip). As meninas ficaram empolgadas e formaram uma fila para disputar quem iria começar. As ginastas contavam os movimentos umas das outras e, mesmo recebendo muitas críticas do treinador sobre a técnica do movimento, ao sair do aparelho, comemoravam
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batendo as mãos. Ficou evidente que as correções do treinador naquele momento não eram tão importantes quanto conseguir fazer as 10 repetições (DIÁRIO DE CAMPO, 03/07/2014).
Nessa situação, as meninas não se importavam tanto sobre a técnica dos movimentos,
mas foram incentivadas pelo ‘desafio’ de realizar os 10 movimentos sem queda. Nesse dia,
não estavam apenas ‘cumprindo tarefa’. Com isso, pode-se concluir que o ‘desafio’ consistia
em realizar movimentos novos, movimentos complexos, ou, ainda, concluir uma tarefa, a qual
poderia ser rotineira, mas com o acréscimo de alguma ‘dificuldade’ – como realizar
determinado elemento ‘sem cair’.
Embora em alguns momentos as ginastas não estivessem preocupadas com a técnica,
em outras situações a técnica ganhava maior centralidade. Para que as meninas se dedicassem
a melhorar o desempenho técnico, era preciso que houvesse algum incentivo, como a
preparação para as competições. Em diversos treinos que antecederam competições, percebi
as meninas mais concentradas e preocupadas em executarem bem os elementos. Algumas
vezes, as treinadoras simulavam competições nos treinos, o que fazia com que as ginastas
também se esforçassem mais.
Um exemplo disso aconteceu em um treino que antecedia uma das competições. Nesse
treino, as atletas estavam realizando as sequências de elementos que iriam apresentar para os
jurados. Míriam estava treinando sozinha em um dos aparelhos quando uma de suas colegas
aproximou-se dela para conversar. Míriam, porém, apesar de na maior parte do tempo ser
muito comunicativa, repreendeu a sua colega, dizendo-lhe que precisava manter a
concentração nos elementos do treino. E, diferentemente de outros dias rotineiros de treino,
ela não precisava receber ordens das treinadoras para realizar as suas atividades.
Em alguns momentos nos treinos, Míriam esforçava-se para melhorar os seus
movimentos e perguntava para as treinadoras se eles estava bons, principalmente quando
estava realizando elementos nos equipamentos da GA. Frequentemente, a atleta mostrava com
orgulho para quem estivesse disponível no ginásio (geralmente eu) algum movimento novo
que havia aprendido ou outro que ela acreditava estar realizando corretamente. Assim como
as suas colegas de equipe, a menina, na entrevista, relatou gostar mais do momento do treino
em que exercita os elementos nos aparelhos.
A partir disso, e de muitas outras situações semelhantes, percebi que, além da
competição, outro motivo que levava as meninas a quererem executar bem um elemento era
para ‘mostrar para o outro’ aquilo que elas sabiam fazer. Foram inúmeras as vezes em que fui
chamada pelas ginastas para olhar o que elas haviam conseguido fazer. Esse era um papel que
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eu desempenhava com bastante frequência dentro do ginásio: eu era uma espectadora das
ginastas.
Quando perguntei para a Patrícia: “Se não existisse competição, tu continuarias
fazendo Ginástica?”, a resposta da menina foi: “Eu poderia fazer as coisas, poderia mostrar,
poderia chamar alguém para ver”. A resposta da Patrícia evidencia uma relação entre a
competição e a possibilidade de mostrar os seus movimentos. Dessa forma, a competição era
um momento em que, além da comparação de resultados e da superação individual, as
meninas podiam mostrar para um grande número de ‘espectadores’ o que elas sabiam fazer.
Como expus no capítulo anterior, para as meninas, buscar o primeiro lugar é um elemento que
compõe a competição, mas está longe de ser o único interesse para elas.
Esse aspecto ficou evidente quando presenciei as diferenças de centralidade que os
resultados no Campeonato Brasileiro de GA em Guarulhos tiveram para cada menina.
Finalizadas as apresentações das ginastas na competição, os resultados dos desempenhos
foram divulgados imediatamente. Míriam não ficou bem colocada no ranque individual, mas
não se mostrou decepcionada ou triste com a situação. Já Elisa, que ficou em uma posição
acima da de Míriam, chorou após a competição. Elisa demorou algum tempo para animar-se
depois de conhecer os resultados, e, quando conseguiu, brincou sozinha no ginásio fazendo
exercícios de força, pois dizia que precisava ficar mais forte. Míriam, mesmo tendo o pior
desempenho da equipe, estava animada, brincando com as suas colegas de equipe e comendo
pipoca com a sua mãe na arquibancada.
A partir dessas análises, percebo que, nos treinos, o comportamento das meninas
oscilava entre “fazer o seu melhor” e “matar” um exercício considerado “chato” e
“cansativo”, e entre competir para ficar em primeiro lugar e competir para se superar e/ou
mostrar o que sabe fazer. Diante dessa transitoriedade, acredito ser importante refletir sobre
alguns temas que atravessam o esporte de alto rendimento. Para tanto, gostaria de destacar
duas características do esporte que geram alguns debates: a técnica e a busca pela vitória.
Sobre a técnica, Vaz (2009) problematiza a utilização exacerbada da técnica no
esporte, comparando o corpo com uma máquina. Nesse sentido, o autor afirma que,
atualmente, existe no esporte uma busca pelo rendimento máximo, em que a técnica torna-se
um meio para o atingimento de tal objetivo. Como exemplos desse processo de
‘maquinização’ do corpo, o autor destaca os transplantes, as próteses, além das substâncias
químicas utilizadas para a melhoria das performances. Diante disso, o autor afirma que “é por
meio da técnica que se estabelecem os processos mais refinados de domínio, que expressam,
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por sua vez, a fé no progresso infinito e sem limites do corpo e dos resultados esportivos,
expressões marcantes da razão instrumental” (VAZ, 2009, p. 151, destaques do autor).
Na mesma direção, Boaventura (2011) considera que as ginastas que compuseram a
sua pesquisa submetiam-se e incorporavam a técnica esportiva, a qual tinha uma função
pedagógica, de controle e de domínio corporal. Segundo a autora:
Não importam quais sejam as exigências técnicas e corporais, um modelo de corpo é adotado espontaneamente em função de normas sociais implícitas. Cada sujeito empenha-se em controlar seu corpo e deixar ser controlado, esforça-se para evitar as deformações que poderiam colocá-lo em dificuldades ou induzi-lo ao baixo rendimento (BOAVENTURA, 2011, p. 143).
Uma das críticas feitas a essa supervalorização da técnica é a busca pelo rendimento
máximo, pelo ‘ganhar a qualquer preço’, o que justificaria a utilização de tantos recursos para
potencializar o rendimento dos corpos. Silva e Rubio (2003), em um estudo em que abordam
o tema ‘superação no esporte’, apontam que:
Uma visão que tem prevalecido no esporte é a de que as metas dos atletas se concentram na competição e na conquista de marcas sempre superiores. O corpo deste indivíduo é considerado somente um instrumento para conseguir estes fins. Isso vem ao encontro da proposta do esporte atual que privilegia a competição. Quando um atleta tem determinação por vencer a qualquer preço e a instituição e equipe que o cercam compartilham desse espírito, alguns excessos podem ser cometidos, fazendo com que valores éticos sejam preteridos (SILVA; RUBIO, 2003, p. 73).
Essas visões críticas sobre a técnica e sobre a busca desenfreada pela vitória apontam
questões importantes na medida em que alertam para os limites que podem ser ultrapassados
na busca pelo rendimento esportivo. No entanto, a partir das transitoriedades apresentadas
nesse capítulo, é possível perceber que, além de treinarem para ganhar o primeiro lugar nas
competições, as meninas da pré-equipe de GA treinavam pelo próprio gosto pelo movimento,
pela superação de desafios e para mostrar o que sabiam fazer. Além disso, era comum a
prática de “matar” um exercício e fazê-lo rapidamente e sem empenho, prática essa que
expressa maneiras, utilizadas pelas ginastas, de ‘administrar’ as exigências físicas. Assim,
posso afirmar que o progresso sem limites e o domínio da técnica sobre o corpo e as ações dos
atletas – muitas vezes problematizados no esporte de alto rendimento – podem ser
relativizados no grupo estudado.
Até aqui, abordei o ‘movimento’, o ‘desafio’ e a ‘competição’ como aspectos da
própria prática que mantinham e estimulavam as meninas nos treinos. Além desses elementos,
100
as meninas enfatizavam o ‘divertimento’ ao estarem na GA. Em um primeiro momento, a
partir do meu olhar que era orientado por uma ideia de infância e criança já mencionada
anteriormente, não compreendia o que significava ‘diversão’ naquele contexto. Com o esforço
de compreender essa questão, apresento, no próximo tópico, alguns momentos considerados
‘divertidos’ pelas ginastas.
5.2 SOBRE OS ‘ENCANTOS’: A DIVERSÃO
Pesquisadoras: E de outras coisas do treino, do que tu gostas? Raquel: Gosto quando a gente tá... às vezes a gente se diverte um pouco. Pesquisadora: Como vocês de divertem? Raquel: A gente se diverte na força, porque a gente conversa. No aquecimento, a gente brinca às vezes. E também a gente fez o acantonamento27 agora pouco, a gente dormiu aqui (RAQUEL, 21/11/2014).
A partir desse excerto, gostaria de destacar duas questões: as brincadeiras durante o
treino e os momentos de sociabilidade para além do ginásio. Sobre a primeira questão,
demorei algum tempo para perceber que as brincadeiras também estavam presentes nos
treinos. Nos primeiros meses de observações, eu tinha a impressão de que as meninas eram
extremamente disciplinadas e nada faziam além de treinar naquele espaço e tempo. Porém, ao
longo dos meses, fui presenciando diversos momentos de brincadeiras, ocorridos antes e
durante os treinos. Minutos antes do início do treino, as ginastas costumavam se apropriar dos
espaços e desenvolver diversas maneiras ‘diferentes’ de se movimentar, como exemplifico a
seguir:
Logo as meninas da pré-equipe chegaram, muito agitadas, tirando os seus calçados rapidamente e entrando no ginásio correndo. As treinadoras estavam resolvendo sobre a cor da malha que elas usariam na próxima competição. Enquanto as treinadoras debatiam o assunto na recepção, as meninas entraram no ginásio e foram todas para a cama elástica (track). Lá, elas davam saltos, pulavam de um colchão muito alto e caiam nas espumas, riam muito, ensinavam umas para as outras maneiras diferentes e divertidas de saltar. Ao ver aquela bagunça, não contive o sorriso. Maria, Raquel e Antônia brincavam de treinadora e atleta (nomes dado por mim): uma segurava a outra enquanto saltava, imitavam os gestos e falas das treinadoras, como: rápido, vamos, aperta, segura. Patrícia olhava para o local onde as treinadoras estavam e dizia para as colegas saltarem rápido para chegar logo a sua vez, pois as treinadoras já estavam chegando. Elisa mostrava-me alguns saltos também. Ângela, a mais nova no grupo (em termos de tempo de Ginástica), era ensinada pela Ariel e a Antônia (as ‘veteranas’) a fazer alguns movimentos. Quando a treinadora Jussara se
27 Uma atividade de integração entre os(as) ginastas. Nesse dia, as crianças e alguns treinadores dormem no ginásio de GA e são também organizados jogos, brincadeiras, gincanas etc.
101
aproximou, as meninas continuaram saltando e mostrando para a treinadora o que estavam inventando. Jussara deu alguma atenção e elas, e, sem precisar solicitar, as meninas foram se organizando na tradicional fileira por tamanho para iniciar o treino. Estavam ofegantes e suadas, e eu cheguei a comentar que as atletas já estavam aquecidas para o treino. Jussara deu o comando e uma das meninas puxou o aquecimento (DIÁRIO DE CAMPO, 10/09/2014).
Esses momentos eram recorrentes antes dos treinos, e geralmente as treinadoras
advertiam as ginastas para pararem “com a bagunça”. Buss-Simão (2012) aponta que existe
uma dificuldade por parte dos adultos – e, no caso da sua pesquisa, dos professores – em
entender que no “caos” das crianças existe uma construção de relações, uma forma de
expressar e vivenciar o mundo. A autora problematiza a busca pelo controle das ações
espontâneas das crianças na prática docente, afirmando que “educar tem como objetivo frear a
imaginação, a fantasia, controlar o movimento, regular as múltiplas manifestações infantis,
uniformizar suas temporalidades, desejos e sonhos” (BUSS-SIMÃO, 2012, p. 273).
Acredito, porém, que afirmar que a educação possua esses objetivos apontados pela
autora caracteriza uma forma extremista e um tanto pessimista de pensar a atuação docente.
Considerando os limites e as especificidades da presente pesquisa, não aprofundarei esse
debate; no entanto, gostaria de destacar que, mesmo havendo uma tentativa de controle das
treinadoras em ‘frear’ e ‘dominar’ os movimentos das atletas, visando os objetivos do treino,
as meninas, como já mencionei anteriormente, encontravam maneiras de criar e explorar seus
movimentos, mesmo durante o tempo e o espaço do treino.
Sobre as brincadeiras, olhando para elas de uma maneira superficial, poderíamos dizer
que, na brincadeira de ‘treinadora e atleta’, as meninas estavam reproduzindo as ações das
treinadoras. Porém, é possível perceber que as meninas estabeleciam e reforçavam relações de
amizade e cumplicidade. Assim, mais do que reproduzir falas e gestos das treinadoras, elas
ajudavam umas às outras nos seus movimentos e exerciam um comando de voz ativo. Em
alguns momentos, as ‘veteranas’ passavam as suas experiências para as ‘novatas’, porém isso
não era regra. Era também comum presenciar, nas brincadeiras, as meninas mais novas
exercendo o papel de treinadora. Dessa forma, a brincadeira era um espaço de socialização,
experimentação e sociabilidade entre pares.
Segundo Cohn (2005, p. 28), de acordo com a margem de manobra que é dada às
crianças, essas constroem as relações sociais que farão parte das suas vidas. A autora destaca
que a “margem de manobra” não significa uma subversão ou manipulação do sistema, mas,
sim, algo que faz parte dele. Desse modo, a criança atua para o “estabelecimento e a
102
efetivação de algumas relações sociais dentre aquelas que o sistema lhe abre e possibilita”
(COHN, 2005, p. 28). Essas atuações e construções acontecem de diferentes formas, e uma
delas é por meio das brincadeiras.
Para Sarmento (2003, p. 16), o brincar constitui um dos elementos fundamentais das
culturas da infância. Cultura essa que é ‘relativamente’ autônoma, pois se relaciona com as
trocas estabelecidas entre crianças e adultos, assim como entre as culturas construídas em
outras esferas das vidas das crianças: escola, família, grupo de amigos etc. O autor afirma que
“o brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da aprendizagem da sociabilidade”,
assim como “o brinquedo e o brincar são também um fator fundamental na recriação do
mundo e na produção das fantasias infantis”.
Uma das brincadeiras recorrentes entre as ginastas consistia nas simulações de
apresentações de solo e a criação de coreografias. Nessas, as meninas criavam coreografias e
as apresentavam para as próprias colegas. Outra brincadeira frequente era a já referida ‘atleta
e treinadora’. Por fim, as ginastas gostavam muito de exibir para mim as apresentações
chamadas por elas de “lindas”, mas que eram, na verdade, ‘sátiras’ (embora eu não considere
essa a melhor palavra para definir a brincadeira, como justificarei mais adiante) das
apresentações que deveriam ser bem feitas segundo os padrões exigidos. A seguir, apresento
excertos de diários de campo em que descrevo cada uma dessas brincadeiras.
A Elisa e a Míriam brincavam comigo hoje, mostrando-me movimentos bem feitos da Ginástica, como a parada de mãos, e diziam que era o pior movimento delas. Em seguida, diziam que iriam me mostrar o mais bonito, o movimento mais lindérrimo, mas era o contrário do que se esperava de um movimento bem feito. Brincavam de fazer tudo errado e feio e se divertiam muito com isso (DIÁRIO DE CAMPO, 29/09/2014). No Campeonato Brasileiro em Guarulhos, após o treino, as meninas foram lanchar. Eu e a treinadora Jussara estávamos distraídas conversando, quando percebemos que as meninas não estavam mais sentadas ao nosso lado, mas, sim, na parte alta da arquibancada. Fui lá tirar algumas fotos e ver o que estavam fazendo. As meninas brincavam com os movimentos da GA. Havia um grupo de atletas ainda treinando no ginásio e algumas estavam no solo, local onde são desenvolvidas coreografias. Era possível ouvir lá de cima a música de cada coreografia que era apresentada no solo. Dessa forma, a brincadeira era: quando iniciasse a música no solo, as meninas deveriam criar coreografias. Porém, havia duas ‘professoras’, Patrícia e Maria. As duas repetiam frases que as treinadoras falavam durante os treinos: sorriso, Elisa; durinha; barriga para dentro; agora é hora do descanso; vem já para cá, Elisa. Raquel, em resposta ao modo autoritário com que uma das ginastas havia incorporado o papel de treinadora na brincadeira, falou: Para, Míriam, deixa a Elisa! Isso é só uma brincadeira, não é de verdade! (DIÁRIO DE CAMPO, 30/10/2014).
103
Sobre o ‘faz de conta’, Sarmento (2003) afirma que esse mundo imaginário tão
presente nas brincadeiras das crianças faz parte das suas construções de mundo e das
atribuições de significados às coisas. Com isso, é difícil separar o ‘real’ da ‘fantasia’, uma vez
que, para as crianças, esses universos estão imbricados. Além de uma maneira de se apropriar
da realidade, o autor vê nas brincadeiras das crianças uma possibilidade de criar um mundo
que ultrapassa “todos os determinismos” e as “pretensões de subordinação a um controle
total” (SARMENTO, 2003, p. 16). O ‘faz de conta’, prossegue o autor, é também “um
elemento central da capacidade de resistência que as crianças possuem face às situações mais
dolorosas ou ignominiosas da existência”.
Pensando as brincadeiras das ginastas a partir dessas referências, tenho dúvidas sobre
alguns aspectos levantados por Sarmento. O primeiro deles é a dificuldade de separar o ‘real’
da ‘fantasia’. Quando Raquel afirma que “isso é só uma brincadeira, não é de verdade”, fica
evidente que as ginastas criaram uma ‘realidade’ na brincadeira, que se relaciona com as
situações vivenciadas nos seus cotidianos de atletas, mas não se confunde com tais situações.
As meninas sabiam bem o que era ‘brincadeira’ e o que era ‘realidade’. O que percebi foi uma
tensão na combinação das regras da brincadeira, pois, enquanto uma menina queria assumir
um papel autoritário e exercer controle sobre a brincadeira, a outra queria mais liberdade para
fazer o que quisesse.
O outro aspecto é a ‘função’ de resistência que a brincadeira pode ocupar. No campo
de pesquisa, não percebi as brincadeiras como uma ‘resistência’, pois não acredito que aquele
espaço represente para as meninas algo que deva ser o tempo todo ‘suportado’. Existem
situações que, na brincadeira, adquirem outra forma, como a relativização da autoridade das
treinadoras pela Raquel. Porém, isso não quer dizer que, nos treinos, as meninas não gostem
também ser “exigidas” e “puxadas”, como narro no caso da Antônia.
Com isso, acredito que as brincadeiras possibilitavam a criação de outras realidades e
outras regras, as quais eram negociadas entre as crianças e permitiam que as meninas
experimentassem o poder e a autoridade exercidos pelas treinadoras, além de que, nas
brincadeiras, as meninas podiam agir com mais liberdade. Essa outra realidade da brincadeira
se relacionava com as situações vivenciadas nos treinos, porém podia adquirir sentidos
diferentes, como no caso das ‘sátiras’ das apresentações consideradas “bonitas”. Seria essa
atitude uma forma de resistir/suportar à maneira com que as treinadoras exigiam a postura
“bonita”? A partir do que Sarmento apontou, essa poderia ser uma maneira de olhar para
aquela brincadeira. No entanto, percebendo brincadeiras em que as meninas também
104
preocupavam-se em serem “bonitas”, como na criação de coreografias, eu diria que essa era
outra forma criativa de significar e representar o corpo e de ‘brincar’ – agora, com o erro.
As brincadeiras aconteciam com maior frequência nos momentos de sociabilidade fora
dos limites do ginásio28, mas também faziam parte do contexto esportivo. Presenciei muitos
momentos como esses na viagem para Guarulhos. Acompanhei essa viagem desde os
preparativos, pois as ginastas, semanas antes de viajarem, conversavam sobre o que levariam
nas suas malas. As atletas ‘veteranas’ compartilhavam com as ‘novatas’ algumas
experiências, como andar de avião – algo que, para uma parte das meninas, aconteceria pela
primeira vez. Míriam estava muito animada com o fato de ter que acordar de madrugada, às
5h, para embarcar no avião, pois, segundo a menina: “Nunca acordei de madrugada!”. E Elisa
iria com o seu avô para o Centro da cidade comprar roupas e acessórios para levar consigo
para o evento.
Nessa viagem, iriam apenas algumas meninas: Raquel, Patrícia, Maria, Elisa e Míriam.
Ariel e Antônia, as meninas mais velhas da pré-equipe, que já haviam disputado esse
campeonato em Porto Alegre, pois eram da categoria Infantil, não acompanharam a pré-
equipe na viagem. Giovana não participou porque ainda não possuía idade mínima para
competir e Camila ainda não estava no nível técnico exigido para a disputa. Esse campeonato,
conforme mencionado em outro momento nesse trabalho, é um dos mais importantes para as
ginastas, pois as atletas possuem maior visibilidade e concorrem com clubes de diversos
estados do país, e é onde a exigência da avaliação dos jurados é maior. “O primeiro
Brasileiro” era um momento importante para as meninas – como um tipo de ‘batizado’ na
GA, uma vez que, geralmente, essa é a primeira competição mais difícil “fora de casa”.
As meninas viajaram no dia 29/10/14, uma quarta-feira, e retornaram no dia 02/11/14,
um domingo. No primeiro dia em Guarulhos, após a acomodação no hotel, uma ida ao
mercado e o almoço, as meninas foram para o ginásio para treinar. Era importante a adaptação
nos aparelhos e no ambiente em que iriam competir. O ginásio era amplo e estava repleto de
meninas e meninos de diferentes clubes do Brasil. A pré-equipe encontrou ‘um canto’ no
ginásio e iniciou o seu treino habitual. No final desse treino, três meninas, uma de cada vez,
vieram até mim perguntar que horas eram. Na terceira vez, perguntei por que estavam tão
preocupadas com o horário, e Raquel explicou: como faltava apenas um aparelho para elas
terminarem o treino e ainda era cedo, elas achavam que haveria tempo para irem à piscina do
hotel. Além da competição, tomar banho na piscina do hotel era um momento bastante
28 É importante destacar que as meninas também brincavam durante os treinos, como inventando personagens e assumindo esses papéis enquanto executavam os exercícios.
105
esperado pelas meninas. Porém, o treino terminou tarde e não foi nesse dia que as meninas
‘estrearam’ a piscina.
No dia seguinte, como o treino seria à tarde, a primeira atividade do dia foi o banho de
piscina tão esperado. Acordei cedo nesse dia, tomei o café da manhã e dirigi-me à piscina
para aguardar as meninas. Após uma hora aguardando, escuto as conversas e as risadas delas
no corredor. As ginastas entraram animadas, correndo e trocando rápido suas roupas. Patrícia
nem me deu ‘oi’: foi logo perguntando onde ficava o banheiro para trocar de roupa. O grupo
estava sendo acompanhado pela professora de Balé, que supervisionava as brincadeiras das
meninas.
As ginastas finalmente pularam na piscina, respingando água para todos os lados. As
brincadeiras foram as mais diversas, como competição de mergulho, deslocamentos de uma
ponta à outra da piscina com os movimentos da Ginástica e corridas. As meninas inventaram
diferentes maneiras de se alongarem na borda da piscina, e como eu estava com uma máquina
fotográfica em mãos, posavam para as fotos.
Na sexta-feira, após o treino, chamamos um táxi para retornarmos ao hotel. As
meninas estavam agitadas, brincando bastante. Míriam veio até mim perguntar se naquele dia
ela poderia ir ao meu quarto, pois desde o primeiro dia ela queria conhecer onde eu estava
hospedada. Eu consenti, e a menina, eufórica, contou para as colegas e convidou-as para irem
ao meu quarto também. Míriam narrou as brincadeiras que pretendia fazer no meu quarto:
seriam animais, bebês e eu a mamãe. Concordei com tudo e ficou acordado que à noite iria
recebê-las no meu quarto.
Passou algum tempo e achei que elas não viriam mais, pois já estava tarde, mas a
treinadora Lívia fez contato e avisou que as meninas estavam se preparando para a ‘visita’.
Concordei e liberei a vinda das ginastas. As meninas entraram no meu quarto gritando e
pulando na cama, fazendo muita bagunça. Antes de eu dizer que poderiam trocar de canal,
pois eu estava assistindo algumas notícias, as meninas foram mais rápidas e já haviam
sintonizado em um canal de desenhos animados.
Raquel, agora um “cachorrinho”, latia bastante; Elisa era um bebê que pedia colo;
Maria ora era mãe, ora era um cachorro também; Patrícia era um gato; Míriam era a irmã mais
velha, depois se transformou em uma empregada “mais ou menos criança”. As brincadeiras
aconteciam em meio a muitos conflitos – as meninas discutiam os personagens que seriam.
Em um determinado momento, as meninas pararam com as imitações e assistiram um pouco
aos desenhos que estavam passando na televisão. Maria e Patrícia resolveram fazer
“pulseirinhas” (borrachas coloridas que são entrelaçadas).
106
Iniciaram algumas discussões sobre a próxima brincadeira que fariam, pois algumas
meninas não queriam mais brincar, outras queriam fazer pulseiras. Diante de alguns conflitos,
achei melhor sugerir uma brincadeira e dei a ideia de escondermos objetos no quarto. As
meninas concordaram com gritos de empolgação e a brincadeira iniciou. Uma menina foi
escolhida para esconder algum objeto enquanto as outras ficavam de olhos vendados. Ao sinal
da colega, as meninas iniciavam a busca. Eu assumi o papel de “árbitra”, pois cuidava para
ninguém “espiar” e definia, caso necessário, quem havia encontrado o objeto primeiro.
A brincadeira aconteceu em meio a um alvoroço. Fui mediando os conflitos e criando
regras para que os conflitos diminuíssem e para que a brincadeira continuasse ‘emocionante’,
como estabelecer que o objeto não poderia ser escondido duas vezes no mesmo lugar. Assumi
essa postura porque percebi que as meninas esperavam isso de mim, pois me olhavam quando
sentiam dificuldade de resolver alguma situação e perguntavam quem estava com a razão.
Durante a brincadeira, deparei-me com as meninas fazendo espacate, parada de mãos, entre
outras acrobacias. Assim como eu já havia percebido nos treinos, seus deslocamentos no
quarto eram acrobáticos. Depois de mais ou menos uma hora de muita bagunça, Lívia veio
buscá-las para o jantar.
Nesse momento, no quarto do hotel, pude ver as meninas agindo da maneira e no
tempo que queriam: ao desistirem de uma atividade, rapidamente iam para outra; combinavam
as regras das brincadeiras; disputavam posições; queriam ser protagonistas. Enfim, exerciam
diferentes posições, ora “bebês” e “cachorrinhos”, ora “mães” e “empregadas”.
Corsaro (2002) discorre sobre brincadeiras das crianças em que são desenvolvidas
atividades de ‘faz de conta’ relacionadas com as experiências das suas vidas. Para o autor,
essas brincadeiras sociodramáticas são “reproduções interpretativas” nas quais “as crianças
não se limitam individualmente a interiorizar a cultura adulta que lhe é externada”
(CORSARO, 2002, p. 113). Nesse processo de “reprodução interpretativa”, as crianças
apropriam-se daquilo que lhes é transmitido e reproduzem, interpretam, modificam de forma
criativa e acrescentam elementos das suas culturas na brincadeira.
Refletindo a partir dessa perspectiva, talvez muitas das situações vivenciadas nas
brincadeiras das ginastas pudessem merecer uma análise mais aprofundada, pois expressavam
formas como as crianças interpretavam as suas realidades. Mesmo não tendo dúvidas de que,
nas brincadeiras, as crianças posicionam a si próprias e os outros na realidade social, e que
aqui há uma dimensão reprodutiva do processo de socialização, não é difícil supor que,
brincando, as crianças também expressam críticas sobre o mundo em que vivem – aspecto não
observado por mim no contexto estudado. Por esse motivo, acredito que um estudo denso e
107
minucioso das brincadeiras dessas crianças permitiria uma maior compreensão do universo
infantil da qual fazem parte.
Em função dos limites desse trabalho, não pude fazer uma análise especial (com mais
tempo de observação e maior profundidade nas interpretações) acerca das brincadeiras das
crianças. Para a presente pesquisa, interessa destacar que, no contexto do esporte de alto
rendimento, o qual não se limita às fronteiras do ginásio, existem tempos e espaços de
brincadeiras, de criação, apropriação e interpretações de culturas.
Além das brincadeiras, nessa viagem também foi realizado um passeio. Ao final do dia
da competição, a treinadora combinou com as meninas que iriam ao shopping para comer o
que quisessem (porque as restrições de alguns alimentos até o momento da competição era
bastante severa) e para andar nos brinquedos do parque. No shopping, andamos na montanha
russa, comemos pizza e tomamos sorvete. As meninas estavam animadas, falavam todas
juntas e ficava difícil de entendê-las.
Esses foram momentos importantes de interações, estreitamento de relações e também
de ‘diversão’. No primeiro treino que acompanhei após a viagem, ficou evidente a
aproximação que aconteceu entre mim e as ginastas, principalmente após a ida delas ao meu
quarto no hotel. Assim que cheguei ao treino, as ginastas vieram correndo me cumprimentar
com beijos e abraços, contavam histórias dos seus cachorros, aniversários no final de semana,
passeios, entre muitos outros assuntos. As entrevistas também aconteceram de forma mais
espontânea e eu sentia as meninas mais à vontade com a minha presença.
Assim como as ginastas se aproximaram mais de mim depois dos momentos intensos
vivenciados na viagem, percebi que as meninas se aproximaram mais entre si, como no caso
da Elisa, a ‘novata’ da equipe, que, durante a viagem, trocava alguns afetos com as suas
colegas. Elisa sentava no colo da Maria, umas das ‘veteranas’, a qual defendia a menina em
alguns momentos de conflitos com as demais colegas. Essa situação causou-me surpresa, pois
lembrei-me que, nos primeiros meses de observações, diante das diferenças e dificuldades da
Elisa em se adaptar aos treinos, as suas colegas mantinham distância e evitavam formar
duplas com ela.
Nas entrevistas, as atletas relataram que os momentos de lazer durante a semana são
bastante restritos; dificilmente as meninas conseguem sair com amigas ou até mesmo se
reunirem com colegas da escola para fazerem trabalhos. Por esse motivo, as ginastas se
relacionam muito com as colegas da pré-equipe, sendo o clube, as viagens e as competições
os principais locais e momentos de sociabilidade. Segundo as ginastas, as suas “melhores
amigas” estão na Ginástica.
108
Esses aspectos narrados me fazem pensar que o contexto de treinamento esportivo
pode significar mais do que um lugar onde corpos são formados para o alto rendimento e onde
as meninas buscam ser boas ginastas. Dessa forma, podemos colocar em dúvida muitas das
críticas homogeneizadoras que são feitas ao esporte de alto rendimento para crianças. Com
base nessa constatação, no próximo capítulo busco estabelecer um diálogo entre um tema de
interesse da Educação Física, o esporte, e uma linha de estudos da Antropologia e da
Sociologia, a Antropologia da Criança e a Sociologia da Infância.
109
6 ESPORTE E INFÂNCIA: ALGUMAS APROXIMAÇÕES
Foi na década de 1980 que a temática ‘esporte’ passou a entrar na pauta dos debates da
Educação Física brasileira. Nesse período, surgiram estudos que se basearam em uma
perspectiva crítica, sustentados por autores das Ciências Sociais. Para essa vertente de
pesquisadores, o esporte praticado na escola e nos momentos de lazer era um produto da
sociedade capitalista, o qual possuía uma lógica demasiadamente competitiva, reprodutora de
normas e valores dominantes, alienantes e excludentes (STIGGER, 2009).
Ao desenvolver uma análise sobre alguns desses trabalhos, Stigger (2009) identifica
quatro pontos em comum: o primeiro deles diz respeito a uma visão homogênea do esporte, o
qual estaria impregnado por valores do alto rendimento; o segundo é uma forte crítica feita a
esse modelo, principalmente por ser uma manifestação que reproduziria a lógica dominante e,
dessa forma, limitaria as possibilidades educacionais no âmbito escolar; o terceiro é um
esforço em adequar o esporte aos objetivos educacionais da escola; o quarto, diante das
diversas críticas, é uma dúvida quanto a essa possibilidade educacional do esporte. Em suma,
o autor identifica uma ambiguidade nesses estudos, pois, ao mesmo tempo em que existe um
desejo de transformação do esporte, há um pessimismo em relação à concretização desse
desejo.
Embora eu reconheça que o tema não esteja mais sendo debatido com a mesma força
atualmente, e que houve avanços no sentido de relativizar a ideia do esporte enquanto uma
manifestação homogênea29, quando o assunto é esporte de alto rendimento, muitos autores
desenvolvem as suas análises a partir de uma perspectiva crítica. Nas linhas seguintes,
apresento quatro pesquisas que desenvolvem os seus estudos a partir de observações e
entrevistas em grupos que visam o alto rendimento. Nessas pesquisas, as preocupações dos
pesquisadores estão em torno das pedagogias do corpo e em como essas pedagogias
contribuem para o processo de educação do corpo e de subjetivação dos sujeitos.
Gonçalves (2007) desenvolve um estudo sobre duas práticas corporais: o Balé e o
Atletismo. Partindo do pressuposto de que essas são práticas que educam o corpo, no sentido
de redimensioná-lo, defini-lo e potencializá-lo, a autora busca compreender como atletas e
bailarinas formam-se subjetivamente a partir de uma pedagogia corporal. Orientada por esse
objetivo, a autora identifica alguns elementos que fazem parte da formação de atletas e
bailarinas, dentre os quais destaco o aspecto masoquista e a falta de ludicidade. Sobre o
29 Sobre esse debate, Stigger (2011) apresenta algumas manifestações esportivas no âmbito do lazer que expressam a heterogeneidade do esporte.
110
primeiro, a autora aponta um sentido masoquista presente nas práticas investigadas, em que os
excessos são tolerados e há o predomínio de um discurso e uma prática disciplinadores. Com
base nessa análise, bailarinas e atletas são identificadas como pessoas obedientes e submissas
a uma educação rígida, o que guarda relações com a violência, o sofrimento e a agressão
sobre o corpo – aspectos que podem desencadear uma compulsão à crueldade. Sobre a falta
do componente lúdico, em especial no caso do Atletismo, isso é apontado pelo fato de esse
esporte não se materializar na forma de jogo e por não haver a presença da bola, aspectos que,
segundo a autora, tendem a aumentar o sentido de sofrimento dos atletas, uma vez que o
trabalho é repetitivo, técnico e solitário.
Em uma perspectiva que apresenta semelhanças com a anterior, Torri, Albino e Vaz
(2007), a partir de um estudo que busca investigar aspectos da educação do corpo em um
programa de Esporte Escolar, discorrem a respeito do discurso sobre o sacrifício e a dor,
considerando que ele é incorporado pelos atletas como algo necessário e bom. É nesse sentido
que os autores destacam o que consideram ser ‘a celebração da dor’ no esporte de rendimento,
o que, para os autores, “parece ser um elemento importante na constituição da lógica da
pedagogia esportiva, sempre vinculada ao fascínio pela maximização e pelos exemplos de
superação dos limites e da dor” (TORRI; ALBINO; VAZ, 2007, p. 509).
Gonçalves e Vaz (2012, p. 1) também apontam o esporte como uma prática que, por
meio das técnicas, visa o “disciplinamento, domínio e potencialização do corpo”. Nesse
estudo, o esporte é comparado a um rito sacrifical. Com base nessa comparação, os autores
desenvolvem toda uma análise da prática esportiva a partir do ritual de sacrifício. Segundo
eles:
o próprio treinamento representa um sacrifício, na medida em que o atleta é o sacrificante que ofereceu seu próprio corpo ao sacrifício (o que vai gerar uma postura ascética), dilacerando-o em nome dos benefícios futuros, ou seja, a vitória e um bom rendimento; o técnico é o sacrificador, aquele que guia o sacrificante até o resultado esperado, pois detém o conhecimento das técnicas necessárias para tal fim, evitando que o atleta faça algo errado durante o treinamento (sacrifício), o que resultaria na não concretização do objeto pretendido, o bom desempenho (GONÇALVES; VAZ, 2012, p. 4).
Quando o assunto são crianças no esporte de alto rendimento, parece que o caráter
disciplinador dos treinamentos torna-se ainda mais enfático. Isso fica evidente na pesquisa
etnográfica desenvolvida por Boaventura (2011) com atletas da Ginástica Rítmica:
Como crianças, também não compreendem a seriedade do mundo em que estão inseridas. As atletas constantemente levam na brincadeira exigências
111
altamente severas e estipuladas pelas treinadoras [...] percebe-se que a educação do corpo deve ser incorporada desde pequena e a seriedade faz parte da dinâmica de treinamento. Não há espaço para brincadeiras ou qualquer gesto espontâneo que não faça parte daquele processo. Por elas serem ainda muito jovens e não saberem o que deve ser feito, é comum que não entendam a importância daquilo, mas vão sendo educadas para isso (BOAVENTURA, 2011, p. 129-130).
Além de perceber as crianças como sujeitos que não compreendem a seriedade
daquele contexto, a autora considera-as reprodutores de normas, quando afirma: “ao serem
educadas, as crianças conformam certo padrão externo relacionado aos seus sentimentos e
condutas. As atletas submetem-se às normas e ordens estabelecidas pelas treinadoras, sem
questionarem a posição delas” (BOAVENTURA, 2011, p. 138).
Os estudos comentados acima analisam o esporte a partir de referências que
problematizam alguns aspectos presentes no esporte de alto rendimento, como a dor, as
lesões, a técnica, a disciplina e a busca desenfreada pela vitória. Esses olhares estão
direcionados para as práticas pedagógicas que são desenvolvidas no esporte, aspectos que
compõem a formação dos atletas. Alguns deles ganham centralidade e estão apontados no
capítulo 4 dessa dissertação.
Mesmo que se deva destacar a importância desses estudos, na medida em que
identificam todos esses elementos que fazem parte da formação dos atletas, algumas ressalvas
merecem ser feitas. Ao ler essas pesquisas, analisar os dados por mim obtidos no trabalho de
campo e refletir a partir da literatura vinculada aos estudos sobre a infância, sou levada a
questionar se os atletas não possuem voz e ação no desenvolvimento das suas práticas
esportivas. Comparar o corpo a uma máquina ou a um objeto sem vida é uma interpretação
que parece retirar a capacidade de atuação, apropriação e ressignificação dos sujeitos atletas
acerca daquilo que praticam.
Quando realizei uma revisão de literatura para a construção dessa pesquisa,
identifiquei inúmeros estudos sobre a infância e o esporte de alto rendimento, os quais
enfatizam a posição passiva e, de certa forma, ‘vitimizada’ da criança. A maioria dos estudos
encontrados abordava o tema a partir de uma perspectiva biológica e psicológica, como
mostro no segundo capítulo. Com isso, é possível perceber uma visão universal de infância
que pauta grande parte dos estudos presentes no campo da Educação Física. Sobre esse
assunto, Filho (2011, p. 84) afirma:
Temos verificado que, por muito tempo, o campo educacional se fixou em concepções de crianças e infância advindas do domínio psicológico do desenvolvimento. Essa área anunciou a concepção de infância e crianças
112
pela herança biológica fundamentada em um paradigma biopsicológico, o que conformava essa categoria e seus sujeitos em um modelo universal, abstrato, a-histórico e predeterminado.
Na mesma direção, Sarmento (2011) aponta quatro eixos estruturantes desenvolvidos
na modernidade que configuram a ideia de infância contemporânea como algo universal, são
eles: 1) a escola pública, a qual passou a ser um lugar institucional de pertença das crianças;
2) a família nuclear, sendo o lugar de vinculação afetiva das crianças; 3) saberes
institucionalizados sobre a criança considerada ‘normal’, os quais estão apoiados em um
conjunto de prescrições, “de natureza médica, psicológica, pedagógica e comportamental,
tendo sido especialmente relevante a Psicologia do Desenvolvimento, e a ideia que transporta
da criança como ser biopsicológico em processo de maturação e crescimento” (SARMENTO,
2011, p. 586); e, por fim, 4) a administração simbólica, desenvolvida pelas declarações dos
direitos das crianças. A partir disso, o autor afirma:
O conjunto de injunções decorrentes destes quatro pilares associados contribuíram, desde há cerca de dois séculos e meio, para consignar à criança um lugar social próprio, cujo desempenho e topografia corresponde à representação social dominante da infância. É neste processo que se estabelece o ofício da criança – isto é um conjunto de comportamentos e ações que se espera que a criança desempenhe (SARMENTO, 2011, p. 586, destaques do autor).
Dessa forma, identifico que existe uma ideia de infância universal que predomina nos
estudos que abordam o esporte de alto rendimento na infância. A partir dessa perspectiva,
percebo uma semelhança, em diferentes áreas, entre o debate sobre o esporte na Educação
Física e a Infância. Da mesma forma que o esporte é visto por alguns autores como uma
manifestação homogênea, e, por outros, como uma prática heterogênea, a infância foi
historicamente construída a partir de ideias generalistas e universais. Porém, estudos do
campo da Sociologia e da Antropologia esforçam-se em relativizar alguns desses eixos
estruturantes destacados por Sarmento (2011), como os saberes institucionalizados que
determinam uma ideia de criança.
Se o esporte de alto rendimento é visto por alguns estudos como uma prática que
disciplina os sujeitos, não permitindo-lhes espaços para ações criativas, na mesma direção, a
criança é vista como um ser que reproduz e aprende sem questionar aquilo que lhe é
transmitido. Ademais, enquanto o esporte pode ser interpretado como uma forma de
reprodução da sociedade capitalista, a criança pode ser vista como reprodutora de valores
transmitidos por essa sociedade.
113
Diante dessas relações que estabeleci entre esporte e infância, questiono: em que
medida a Antropologia da Criança e a Sociologia da Infância podem contribuir para os
estudos sobre a criança no esporte de alto rendimento? Para responder a essa pergunta,
estabelecerei um diálogo com a pesquisa desenvolvida por Boaventura (2011), descrita acima,
com o olhar de autores da Antropologia e da Sociologia e com os dados dessa pesquisa.
6. 1 A CRIANÇA NO ESPORTE DE ALTO RENDIMENTO
Para o desenvolvimento desse texto, diante das semelhanças metodológicas e do olhar
sociológico e antropológico, visitarei mais assiduamente o estudo de Boaventura (2011).
Antes de iniciar essa reflexão, gostaria de enfatizar que os avanços dos trabalhos acadêmicos
se dão a partir dos diálogos estabelecidos entre os pares. Olhar para o mesmo fenômeno com
perspectivas diferentes contribui para a ampliação dos debates. Portanto, a partir de alguns
contrapontos, buscarei trazer outra maneira de pensar a participação das crianças no esporte
de alto rendimento; porém, jamais deixando de reconhecer a relevância e particularidade do
estudo com o qual pretendo dialogar.
A primeira afirmação da autora que destaco é a seguinte: “Como crianças, não
compreendem a seriedade do mundo em que estão inseridas. As atletas constantemente levam
na brincadeira exigências altamente severas e estipuladas pelas treinadoras”
(BOAVENTURA, 2011, p. 129, destaques da autora). Nessa afirmação, penso que duas
questões merecem ser motivo de debate: 1) crianças não compreendem a seriedade do
contexto em que vivem; 2) a oposição entre brincadeira e seriedade.
Autores do campo da Antropologia e da Sociologia vêm desenvolvendo pesquisas que
evidenciam uma maneira particular com que as crianças vivenciam e representam o mundo, o
que não quer dizer que as crianças não compreendam a cultura em que estão inseridas. Toren
(apud COHN, 2005, p. 34) afirma que “os significados elaborados pelas crianças são
qualitativamente diferentes dos adultos, sem por isso serem menos elaborados ou errôneos e
parciais”. Para Toren, portanto, as crianças não entendem menos; elas apenas expressam
aspectos que os adultos não apontam.
Tal aspecto fica bastante evidente em uma conversa que eu estabeleci com uma das
ginastas, a Giovana, de 8 anos de idade. Elaborei uma pergunta para a menina para entender o
que ela pensava sobre os elementos que fazem parte da formação de uma ginasta. A menina
respondeu algo inesperado, que para mim não possuía relação alguma com a minha pergunta.
Porém, ao considerar a ideia de que as crianças possuem uma maneira de pensar o seu
114
contexto que pode ser diferente da forma como um adulto pensa, passei a dar maior atenção à
resposta da menina, que é transcrita a seguir.
Pesquisadora: Há alguma coisa que te incomoda no teu corpo? Porque quando uma menina faz Ginástica ela tem algumas características: é forte, tem uns calinhos na mão, tem que cortar o cabelo, não pode ter unha comprida, não pode pintar as unhas... Há alguma dessas coisas que te incomoda, que tu querias fazer e não pode? Giovana: É que as vezes um mosquito me pica e eu quero coçar e as professoras não deixam coçar. Mas dá muita vontade assim e eu fico toda durinha. Pesquisadora: Tá certo! Tem mais alguma coisa que te incomoda? Giovana: Ah sim, eu sempre perco os meus brincos. Pesquisadora: Perde treinando? Giovana: Aham (GIOVANA, 02/03/2015).
Eu poderia dizer que a menina não entendeu a minha pergunta, e, de uma maneira
mais extrema, afirmar que ela é muito jovem para entender os aspectos que fazem parte da sua
formação de ginasta, como as restrições e o controle. No entanto, a partir das referências
teóricas que tenho, percebo nessa resposta uma forma diferente de ver as tentativas de
controle das treinadoras. Para a menina, incomoda mais ter uma ‘picada de mosquito’ e não
poder coçar do que ter que cortar o cabelo, por exemplo, ou ter calos nas mãos. Esse é ‘outro’
aspecto apontado pela ginasta que expressa as tentativas de controle do corpo por parte das
treinadoras. Portanto, Giovana não deixa de reconhecer que existem controle e restrições,
porém ela aponta aspectos que eu não havia percebido.
Além de não poder ‘coçar a picada de mosquito’, a menina identifica alguns prejuízos
nos treinos, como perder os seus brincos. A utilização de acessórios como esses é considerada
perigosa pelas treinadoras, pois podem causar escoriações nas meninas enquanto elas realizam
algum movimento. Sobre esse aspecto, a ginasta refere-se à sua atitude no treino quando
resolve não tirar os brincos, mesmo sendo algo recomendado pelas treinadoras, e também
mostra a sua insatisfação ao perder os brincos. Portanto, percebo, nesse exemplo, uma
possibilidade de interpretação da realidade dos treinos elaborada pela atleta que dialoga com
essa minha interpretação dessa mesma realidade, uma vez que, no relato da menina,
evidencia-se uma forma de controle e restrição que permeia os treinos.
Sobre a outra questão – a oposição entre brincadeira e seriedade –, alguns autores
afirmam que a brincadeira é o que há de mais sério nas culturas infantis. Segundo Sarmento
(2003, p. 15), “as crianças brincam, contínua e abnegadamente. Contrariamente aos adultos,
entre brincar e fazer coisas sérias não há distinção, sendo o brincar muito do que as crianças
fazem de mais sério”. Segundo esse ponto de vista, o fato de as crianças brincarem em meio
115
ao treino esportivo não quer dizer que não estejam levando aquela prática a sério. Como já
mencionei no capítulo anterior, a brincadeira é uma maneira de as crianças representarem,
criarem e ressignificarem o seu contexto. Um exemplo recorrente de brincadeiras nos treinos
são aquelas que acontecem minutos antes de iniciarem os treinamentos. As meninas se
apropriam do ginásio e inventam diversas maneiras de saltar, experimentando diferentes
possibilidades de movimentarem os seus corpos. Nessas brincadeiras, é possível perceber a
GA nos saltos e nas acrobacias, porém realizados com o acréscimo de uma dose de
criatividade das meninas.
Ainda sobre o brincar, outra afirmação feita por Boaventura (2011) se dá no sentido de
não haver espaço para brincadeiras e manifestações espontâneas nos treinos de Ginástica
Rítmica que acompanhou na sua pesquisa. Diferentemente disso, no trabalho de campo por
mim realizado, foi possível identificar momentos de brincadeiras antes e ‘durante’ os treinos
da pré-equipe. De fato, durante os treinos, as brincadeiras eram mais discretas e incorporadas
nas atividades, como fingir que eram algum personagem de desenho animado enquanto
realizavam o aquecimento. Antes dos treinos, as brincadeiras eram externalizadas mais
livremente, gerando uma ‘bagunça’, como descrevi anteriormente. Mas o fato de as
brincadeiras acontecerem de forma mais expressiva em outros momentos que não nos treinos
não significa que essas manifestações não estejam presentes no contexto esportivo das
ginastas.
Não considero o contexto esportivo da GA apenas o tempo e o espaço dos treinos,
mas, igualmente, os momentos que o antecedem, no qual as ginastas conversam e brincam.
Também fazem parte do contexto esportivo das atletas as competições, momentos em que as
meninas costumavam brincar e serem mais espontâneas enquanto descansavam entre um
aparelho e outro, ou, ainda, antes das competições, quando as meninas se reuniam na casa de
alguma treinadora para dormirem juntas. Dessa forma, muitos são os momentos antes, durante
e após os treinos e as competições em que as ginastas falam e agem com espontaneidade.
Por fim, penso ser importante debater a seguinte afirmação: “ao serem educadas, as
crianças conformam certo padrão externo relacionado aos seus sentimentos e condutas”
(BOAVENTURA, 2011, p. 138, grifo meu). Indo em outra direção, muitos são os autores da
Antropologia da Criança que desconstroem a ideia de crianças passivas e submissas no
processo de socialização. Sobre a educação e a aprendizagem, Cohn (2005, p. 37) aponta que,
em tal processo, é importante olhar para “as ênfases culturais e os processos específicos que
elas engendram” para entender a forma como as crianças se apropriam e reapropriam o que
lhes é transmitido. No entanto, algumas tipologias são frequentes e acabam embaçando o
116
olhar do pesquisador, como partir do pressuposto de que, em sociedades complexas, as
crianças possuem uma apropriação mais criativa do que aquelas crianças que se desenvolvem
em sociedades simples. Para a autora:
Em diversas esferas, essas tipologias já se provaram menos produtivas e definidoras do que se esperava que fosse, quando de sua formulação. Aqui também, no que diz respeito à produção de sentidos sobre o que se aprende, são mais enganadoras do que úteis, já que nos fazem pressupor que umas sociedades estariam fadadas a transmitir um corpo de conhecimento fechado, sobre o qual o aprendiz não tem papel ativo, enquanto outras, ao contrário, produziriam sujeitos críticos e inventivos. Análises de sociedades consideradas tradicionais revelam que as crianças e os jovens podem ser mais que meros receptores de conhecimentos, sendo ativos na construção de sentidos e de conhecimentos no processo de aprendizagem (COHN, 2005, p. 38, destaques da autora).
Pensando o contexto esportivo que visa o alto rendimento, é possível afirmar que se
trata de um espaço e tempo de controle, o qual é organizado por regras e muita disciplina.
Foram necessários meses de observações e algumas entrevistas para que eu conseguisse
perceber que as atletas possuíam um olhar crítico sobre os treinos, assim como uma atuação
não passiva diante das exigências das treinadoras.
A partir dos diálogos que estabeleci com as meninas nas entrevistas, pude entender
como as ginastas viam alguns aspectos dos treinos, o que mostro no excerto abaixo, no qual
Camila, com 11 anos de idade, expressa a sua opinião sobre os ‘xingamentos’ das treinadoras:
Camila: É, qualquer coisa que a gente fizesse errado, ela [treinadora] já brigava com a gente. Daí a coordenadora conversou com ela e ela parou de gritar, porque ela gritava e a gente não tinha vontade de fazer as coisas. Por que ela ficava gritando? A Maria não faz mais Ginástica porque a treinadora gritava com ela e ela disse: eu não vou fazer se tu continuar gritando comigo. E ela estava certa de não fazer! Ela não é obrigada a fazer uma coisa se a pessoa fica o tempo todo brigando com ela (CAMILA, 19/11/2014).
Maria, com 9 anos de idade, é uma menina que saiu da pré-equipe antes mesmo de eu
iniciar a pesquisa. Essa menina não se adaptou aos treinos e desistiu da Ginástica por um
período. Após algum tempo afastada, Maria retornou para tentar adaptar-se novamente, pois,
segundo o seu depoimento: “Eu senti muita saudade da Ginástica”. Algumas semanas depois
de tentar retomar as atividades na pré-equipe, a menina saiu novamente e foi para outro clube
treinar. Essa menina contestava as treinadoras e escolheu não permanecer naquele ambiente.
Porém, mesmo as ginastas que escolhem permanecer também contestam e expressam
aquilo que não as agradava. Um exemplo desse tipo é o caso de Míriam. Em diversos
117
momentos, enquanto as treinadoras estavam envolvidas com as outras meninas, Míriam
descansava, conversava e brincava. A atleta não parecia sentir-se coagida em verbalizar que
tinha fome, que não estava com vontade de fazer algum exercício, que estava cansada e que
queria ir para casa. Enquanto algumas colegas se preocupavam em não ficarem paradas entre
um exercício e outro, com receio de serem repreendidas pelas treinadoras, Míriam – sem
muito constrangimento – deitava-se no ginásio para descansar.
No Campeonato Brasileiro em Guarulhos, após a competição, as meninas deveriam
permanecer no ginásio até o fim das apresentações, pois, segundo as treinadoras, faz parte da
formação das atletas da pré-equipe assistir a outras crianças competirem. Enquanto suas
colegas assistiam ao campeonato, Míriam estava sentada ao meu lado conversando sobre
diversos assuntos. Após falar bastante, deitou a cabeça no meu colo, como que pedindo
carinho. Nesse momento, uma das meninas da pré-equipe perguntou se Míriam havia visto a
queda de uma das atletas. Ao responder que não, Míriam foi repreendida pela colega, pois,
segundo essa, Míriam deveria estar prestando atenção na competição ao invés de estar
conversando. Assim que a colega voltou sua atenção novamente para a competição, Míriam
exclamou: “Eu não quero ver competição alguma, estou cansada e não aguento mais”. A
menina estava ansiosa para ir ao shopping para fazer o passeio após a competição que foi
prometido pela treinadora.
Além desses aspectos, a menina também destacava-se em função da sua preocupação
com a estética, pois gostava de pintar as unhas e passar creme nas mãos. No entanto, como já
foi apontado, as ginastas possuem algumas restrições acerca de tais hábitos. Em um dia de
treino, vimos as meninas em torno da treinadora mostrando os calos das mãos. Uma delas, em
tom de denúncia, disse que Míriam não possuía calos porque passava creme nas mãos. A
treinadora, percebendo que as mãos da menina realmente estavam lisas, orientou-a a não mais
passar cremes, pois as mãos teriam que ter calos para aguentar os exercícios; caso contrário,
ela estaria sempre com as mãos sangrando. Assim, ao passo que ter calos nas mãos era, para
algumas meninas, motivo de orgulho, isso não parecia ocorrer da mesma forma para Míriam;
enquanto suas colegas de equipe mostravam, orgulhosas, os calos novos que haviam surgido,
Míriam escondia e evitava os seus.
Além das restrições estéticas, as meninas também possuíam uma série de restrições
alimentares. Sobre esse aspecto, Míriam também era alvo da atenção das treinadoras, pois a
menina se alimentava mais do que as treinadoras consideravam apropriado para uma ginasta.
Na viagem para Guarulhos, o controle da alimentação das meninas era intenso por parte das
treinadoras. No dia em que partimos para a competição, marcamos o encontro no aeroporto de
118
Porto Alegre às 5h30min. Logo que cheguei, avistei Míriam comendo um pão e tomando
leite, porém ela fazia isso tentando esconder-se da treinadora. Sua mãe, percebendo que ela
estava se escondendo, disse que não precisava agir daquela maneira. No entanto, ao ver a
cena, a treinadora a repreendeu: “Tu já estás comendo?”.
Chegando ao aeroporto de Guarulhos, as meninas tomaram café da manhã. Cada atleta
pediu um pão de queijo e um suco de laranja, com exceção de Míriam e de Elisa, que pediram
dois pães de queijo cada. A treinadora advertiu as duas meninas, expondo para o grupo que
Míriam já havia lanchado antes de sair de Porto Alegre e nem deveria estar comendo
novamente. Um dos argumentos da treinadora era o de que as meninas deveriam se alimentar
“como ginastas”.
Com isso, embora o contexto esportivo em que Míriam treinava fosse em diversas
situações intimidador e não possibilitasse muitos diálogos, mesmo lá ela era capaz de agir –
dentro de limites – conforme as suas vontades, dizendo o que não lhe agradava e ‘driblando’
algumas situações, como “matar” um exercício quando não o considerava agradável ou
importante, ou comendo mais do que o estabelecido. É possível, então, olhar para essa menina
(e para outras) como alguém que faz escolhas dentro das possibilidades que lhe são dadas e
que não ocupa meramente uma posição passiva diante das imposições que lhe são colocadas.
Míriam foi apenas um caso escolhido para exemplificar essa questão; no entanto, ao
longo desse trabalho, busquei mostrar inúmeros exemplos de maneiras diferentes e criativas
de apropriações das jovens ginastas diante das suas rotinas de treinos e competições. O que
diferenciava Míriam de suas colegas era apenas a sua forma de expressar aquilo que não lhe
agradava. Além de Míriam, é importante destacar que, mesmo aquelas ginastas que evitavam
de ficar paradas durante os treinos também “matavam” os exercícios de força, ou que aquela
ginasta que repreendeu Míriam por não estar assistindo à competição também brincava após a
competição, enquanto ‘deveria’ estar observando a apresentação dos demais atletas. Portanto,
ora as ginastas aceitavam as normas e regras dos treinos, ora resistiam, questionavam e
‘driblavam’ as mesmas. Esse aspecto mostra a ‘não linearidade’ das atuações dessas meninas
na GA. As meninas não são, portanto, completamente passivas aos treinos, mas tampouco
participam de uma forma totalmente autônoma e ativa. Foi justamente essa complexidade das
ações que busquei mostrar nessa pesquisa.
Entender os significados que as crianças atribuem ao treinamento esportivo permite
ver a prática da GA não meramente como um sacrifício, um sofrimento e/ou uma violência
sobre o corpo. Simplesmente transpor esses significados para os treinos é ignorar que as
119
ginastas gostavam da própria prática, construíam laços de amizades naquele contexto e que
encontravam formas de ‘manobrar’ algumas imposições.
Sobre as maneiras com que os sujeitos se apropriam daquilo que é transmitido e
produzido por estruturas dominantes, Michel de Certeau (2007) afirma:
A presença e a circulação de uma representação (ensinada como o código da promoção sócio econômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indicam de modo algum o que ela é para os seus usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes que não a fabricam. Só então é que se pode apreciar a diferença ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização (CERTEAU, 2007, p. 40, destaques meus).
Conforme a ideia desenvolvida por esse autor, torna-se imprescindível para a presente
pesquisa olhar para além dos aspectos que formam as práticas das atletas. Portanto, mais do
que saber que existe uma ‘normalização’ da dor, que as meninas passam horas do seu dia
treinando, que possuem uma rotina repleta de compromissos, que devem cuidar da
alimentação, entre muitas outras questões que fazem parte da formação de ginastas, interessa
aqui entender ‘como’ essas crianças vivenciam e ‘lidam’ com isso. Para desenvolver um
trabalho nessa perspectiva, é fundamental que a criança seja vista como um ator na sociedade
e que algumas ideias de infância sejam desconstruídas.
No contexto em que desenvolvi essa pesquisa, encontrei outra maneira de ver e viver a
infância, e foi a partir desse entendimento que consegui compreender alguns significados que
aquelas ginastas davam para o esporte que praticavam. Como afirma Cohn (2005, p. 50,
destaques da autora):
já se sugeriu também que só podemos entender os códigos legais relativos à infância se referirmos à concepção de infância que a baseia. É essa concepção, decorrente do advento do sentimento da infância, que leva a ideia difundida nas leis e no senso comum de que cabe à criança brincar e se divertir, em oposição direta ao trabalho. Obviamente, não se trata de afirmar que as crianças devem ser inseridas no mercado de trabalho desde cedo, ou desconhecer a importância das conquistas legais relativas a elas. Cabe apenas, como uma provocação, mostrar que algo já naturalizado, ou seja, tomado sem maiores reflexões como um dado da natureza – essa ideia de que cabe à criança brincar, se divertir e aprender – é na realidade construído social e historicamente, e assim deve ser tomado pelo pesquisador.
A partir dessa visão de infância destacada pela autora, eu poderia apenas afirmar que
as ginastas estavam perdendo suas infâncias enquanto treinavam. Porém, a partir da
provocação reflexiva feita por Cohn, foi possível perceber que as ginastas estavam
120
vivenciando outra infância, na qual a brincadeira, a diversão, o aprendizado, o compromisso,
as exigências, as frustrações, os medos, as restrições e a dor estavam presentes. No contexto
esportivo da pré-equipe, a criança pode/deve ser forte, ser resistente e, como afirmou uma das
treinadoras, saber fazer escolhas.
Assim como a autora destaca, não estou ignorando todos os aspectos que podem se
tornar problema na vida das atletas, como a frustração de um planejamento de carreira, as
lesões que são levadas para a vida toda, assim como a rotina repleta de compromissos que
impede que as meninas possam ter mais vivências de lazer e sociabilidade, como simples
passeios com colegas da escola. Também não ignoro que algumas meninas não aguentaram os
treinos e por isso desistiram de fazer parte da pré-equipe. Porém, diante dos limites de tempo
e objetivo dessa pesquisa, não pude seguir essas ex-ginastas e aprofundar algumas reflexões
nesse sentido.
121
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o início da minha formação na pesquisa, aprendi que o conhecimento se
desenvolve a partir de uma dúvida, de uma curiosidade e/ou de uma desconfiança. Por esse
motivo, tenho uma formação pautada pelo questionamento. Dessa forma, os estudos
desenvolvidos no campo da Antropologia da Criança e da Sociologia da Infância me fizeram
‘desconfiar’ de algumas abordagens sobre o esporte de alto rendimento na infância que
circulam no âmbito acadêmico da Educação Física brasileira. Essa ‘desconfiança’ não
significa duvidar das constatações feitas por essas abordagens, mas, sim, questionar se não há
outras maneiras de olhar para o fenômeno em questão.
Ao desenvolver uma revisão de literatura no campo da Educação Física sobre essa
temática, identifiquei três assuntos recorrentes: 1) a busca por talentos esportivos; 2) a
importância dos pais e dos treinadores na carreira dos jovens atletas; e, por fim, 3) uma crítica
à especialização precoce no esporte de alto rendimento. Levando em consideração as
especificidades de cada perspectiva teórica, identifiquei, nesses estudos, preocupações com o
desenvolvimento físico, emocional e social das crianças. Sendo a Educação Física uma área
de intervenção, buscam-se as melhores formas de iniciar, manter e desenvolver com sucesso
as crianças no esporte de alto rendimento.
Lendo esses trabalhos, a pergunta que me acompanhava era: e as crianças, o que elas
pensam sobre o esporte de alto rendimento, ou como vivenciam esse contexto? Diante desse
questionamento, busquei, na presente pesquisa, inverter o olhar sobre o esporte de alto
rendimento na infância, dando evidência às crianças inseridas nesse universo. A partir disso,
pretendi, por meio do método etnográfico, compreender como crianças se constituíam atletas
e como significavam o esporte de alto rendimento.
Para tal objetivo, acompanhei durante 9 meses uma pré-equipe feminina de GA
composta por aproximadamente 10 crianças com idades entre 8 e 12 anos. Produzi, durante
esse período, 49 diários de campo e 12 entrevistas semiestruturadas, sendo 11 com crianças e
1 com uma treinadora. A partir da produção desses dados, tratei primeiramente do processo de
formação das ginastas. Sobre esse assunto, identifiquei que, além das competências físicas, as
meninas aprendiam a se comportar como ginastas, sendo-lhes exigida uma “postura de
ginasta”. A “postura de ginasta” compreendia uma maneira de agir dentro do ginásio, na qual
as meninas deveriam falar corretamente e ter alguns cuidados com a aparência, como em
relação à higiene pessoal e até mesmo ao modo de prender os cabelos. Além disso, as meninas
deveriam ser concentradas, “exibidas” e disciplinadas com os treinos e a alimentação. A
122
“postura de ginasta” também compreendia saber se comportar em uma competição, o que
significava que a ginasta deveria ‘dar o seu melhor’ e manter-se calma.
Ser “corajosa” também fazia parte das exigências durante os treinos e as competições.
As meninas deveriam enfrentar seus medos e traumas diante dos movimentos complexos da
GA. A coragem também representava a resistência à dor, uma vez que a dor estava presente
naquele contexto. Porém, isso não significava que as ginastas ‘conformavam-se’ com a dor,
pois os dados construídos a partir das observações e das entrevistas mostraram que as meninas
buscavam diferentes maneiras de ‘amenizar’ as dores.
Diante do medo e da dor, as ginastas costumavam chorar nos treinos. Essas
características dos treinos fizeram com que eu questionasse a minha própria noção de
infância, fortemente pautada por uma ideia de fragilidade. Foi a partir desse contraste entre a
minha forma de ver as crianças e a maneira como as treinadoras as tratavam que entendi que,
nos treinos da pré-equipe, as crianças eram consideradas fortes e capazes de superar o medo e
a dor.
Com base nos aspectos que constituem o processo de formação das ginastas e da ideia
de infância presente naquele contexto, busquei compreender como as crianças lidavam com o
medo, a dor, as restrições e os compromissos. Diante desses apontamentos, questionei: por
que as meninas continuavam na GA?
Entendi que a GA, além de envolver os ‘desencantos’ citados anteriormente, também
possuía os seus ‘encantos’. O primeiro ‘encanto’ percebido nos treinos foi o apreço das
ginastas pelo movimento. O movimento representava uma maneira de as meninas se
comunicarem e construírem conhecimento e relações. As ginastas, através dos seus corpos,
experimentavam, de um modo criativo, diferentes possibilidades de se movimentarem a partir
da prática da GA.
Outro ‘encanto’ identificado foi o ‘desafio’, pois as meninas pareciam entusiasmadas
com a possibilidade de realizarem movimentos novos e complexos. Além disso o ‘desafio’
poderia tornar atrativos também os exercícios rotineiros. Bastava ser acrescentada alguma
meta ou dificuldade a esses movimentos para que as meninas se esforçassem mais para
realizá-los.
A superação individual representava igualmente um ‘desafio’, mas não era
compartilhada por todas em todos os momentos. Para que as meninas buscassem a superação,
era necessária haver um estímulo, como competir. Mas a competição adquiria outros
significados para além do ganhar o primeiro lugar, pois as ginastas também viam na
123
competição uma possibilidade de mostrarem para muitos ‘espectadores’ aquilo que sabiam
fazer.
Além dos aspectos que envolvem a própria prática, a ‘diversão’ mencionada pelas
ginastas também fazia parte dos atrativos da GA. Mas, afinal, o que era ‘divertido’ naquela
rotina de treinos tão intensos? No contexto da GA, existiam muitos momentos de
sociabilidade que ultrapassavam as fronteiras do ginásio, como as viagens e os passeios. Por
possuírem pouco tempo para realizarem outras atividades fora do treino, as ginastas
estabeleciam fortes vínculos de amizades, sendo os treinos, as competições e os eventos em
torno da GA os principais espaços de estabelecimento de relações sociais. Sobre as viagens, é
importante ressaltar que muitas meninas vivenciaram pela primeira vez experiências como
andar de avião, conhecer outra cidade, estar em um hotel com piscina, entre outras tantas
situações.
Além disso, as meninas apontaram as brincadeiras como momentos de ‘diversão’ na
Ginástica, as quais aconteciam com maior expressividade antes dos treinos. No entanto, isso
não quer dizer que a espontaneidade e as brincadeiras não estivessem presentes nos tempos e
espaços do treino. O que acontecia com frequência durante os treinos era uma incorporação
das atividades propostas pelas treinadoras nas brincadeiras das crianças.
Sobre as brincadeiras desenvolvidas antes e durante os treinos, foi possível perceber
que as meninas representavam situações vivenciadas nas suas rotinas de atletas, porém essas
situações, em alguns momentos, adquiriam significados diferentes. As regras das brincadeiras
eram constantemente negociadas e constituíam situações em que as ginastas experimentavam
o exercício do poder e podiam agir com maior liberdade. Portanto, as brincadeiras também
eram ocasiões em que as ginastas ‘manobravam’ a realidade dos treinos.
Diante dessas considerações, afirmo que o contexto da GA não é composto apenas
pelos treinos e competições, pois existem outros momentos e espaços que circundam essa
prática esportiva. Com isso, percebi aprendizados e experiências que vão muito além da
formação de corpos que estão sendo preparados para o alto rendimento.
No capítulo que finaliza essa dissertação, estabeleço uma relação entre o debate sobre
o esporte na Educação Física e a Infância em diferentes áreas. Do mesmo modo que o esporte
é muitas vezes tratado como uma prática homogênea, disciplinadora e reprodutora da lógica
capitalista, a infância é entendida de um modo generalista, assim como a criança é vista como
reprodutora da cultura que lhe é transmitida e um produto da sociedade capitalista.
A partir dessa constatação, tentei mostrar como perspectivas advindas da Antropologia
da Criança e da Sociologia da Infância ajudam no avanço desse debate. Para isso, a partir de
124
diálogos estabelecidos com estudos desenvolvidos no campo da Educação Física e dos dados
construídos nessa pesquisa, busquei mostrar que as crianças, mesmo estando em um contexto
extremamente controlado e regrado, brincavam e se apropriavam das atividades e dos
espaços. Além disso, as ginastas frequentemente mostraram uma postura crítica diante de
algumas imposições das treinadoras, não agindo passivamente em todos as situações. Sustento
que essas evidências colocam em debate algumas ideias homogeneizadoras e generalistas
sobre o esporte e a infância.
Meu objetivo com essa dissertação foi olhar para além das normas e das estruturas que
compõem o contexto esportivo do alto rendimento. Reconheço que a compreensão das
estruturas e dos discursos dominantes é fundamental para evitar um olhar ingênuo sobre as
práticas construídas pela sociedade. No entanto, penso que acreditar que os sujeitos do
‘cotidiano’ apenas reproduzem os discursos é uma forma restrita de compreender as
dinâmicas sociais da vida das crianças.
Para finalizar esse estudo, gostaria de trazer algumas reflexões que surgiram a partir de
outros aspectos que vivenciei durante a construção dessa dissertação. Aqui, propus-me a olhar
paras as ginastas que não haviam desistido da GA – meninas que, apesar dos inúmeros treinos
“ruins”, voltavam todos os dias para o ginásio. Olhei para aquelas meninas que afirmavam
gostar muito da GA e tentei compreender o porquê desse gostar. Porém, paralelamente a isso,
não pude deixar de perceber as ginastas que desistiram no meio do percurso de realização do
presente trabalho.
Durante o desenvolvimento da pesquisa, logo no início das observações, uma menina
deixou de frequentar os treinos. Segundo as treinadoras, essa menina tinha uma vida bastante
complicada e havia, por isso, desistido. Após alguns meses, surpreendi-me com a saída de
outra menina. Nesse segundo caso, ouvi muitos discursos diferentes, das treinadoras e das
ginastas, sobre a saída dessa menina, como a dificuldade de acompanhar os treinos pela sua
falta de flexibilidade ou a insatisfação com o seu corpo, pois se considerava “baixinha e forte”
e estava sendo apelidada de anã pelos colegas da escola. Essa menina foi encaminhada para o
Judô e as treinadoras afirmam que ela já se destacou nesse esporte, sendo premiada em alguns
campeonatos. Vale salientar que eu soube de outras situações semelhantes, em que ex-
ginastas ‘migraram’ para o Judô.
Outro caso bastante mencionado no campo de pesquisa foi o da Mariana, que resolveu
treinar em outro local, pois também não se adaptou aos treinos da pré-equipe. Não tive a
oportunidade de aprofundar-me nessas situações e buscar entender, a partir das meninas, os
motivos que as levaram a desistir dos treinos. Porém, acredito que essas situações
125
evidenciaram outras formas de agências das crianças, pois são ações que foram ‘contra’ a
lógica daquele contexto. Dessa forma, é possível considerar que a menina que saiu da GA e
foi para o Judô, assim como a menina que escolheu sair de um clube e ir para outro,
diferentemente das ginastas que continuaram treinando, não ‘manobraram’ as lógicas dos
treinos, mas ‘romperam’ com elas.
Essas ações abrem outro campo de estudos na medida em que levantam o seguinte
questionamento: por que algumas crianças abandonam o esporte? Sobre esse tema, as leituras
que desenvolvi no campo da Educação Física para a construção da problematização desse
estudo apontam diferentes aspectos que levam as crianças a desistirem da GA. Alguns deles
são: iniciação esportiva especializada antes da maturação biológica adequada, alto nível de
exigência dos pais e treinadores e a supervalorização da vitória.
Desse modo, assim como olhei para as crianças que permanecem no esporte de alto
rendimento e busquei compreender como se apropriam desse contexto, entendo que seria
igualmente relevante compreender, a partir da visão das próprias crianças, por que elas
abandonam ou decidem trocar o esporte de alto rendimento.
Acredito que acompanhar o percurso de crianças que desistiram de um esporte e foram
para outro, ou compreender por que uma criança abandonou definitivamente o esporte de alto
rendimento, poderia trazer outras reflexões sobre essa temática altamente relevante para o
campo da Educação Física, uma vez que visa compreender os interesses e as perspectivas dos
sujeitos que são alvos das práticas pedagógicas dos professores e dos treinadores.
Outra temática que surgiu a partir dos dados produzidos para essa pesquisa, a qual
acredito ser relevante para o campo da Educação Física, é a da ‘brincadeira’ na infância. Ao
longo do desenvolvimento desse estudo, percebi que as brincadeiras eram mais do que
momentos de ‘descontração’ e ‘diversão’. Por meio das brincadeiras, as ginastas falavam, de
forma criativa, sobre si, sobre os sujeitos que as cercavam e sobre os contextos em que
circulavam. Nas brincadeiras, as meninas também aprendiam, ensinavam e criavam
movimentos. A partir dessas trocas, a ginastas também estabeleciam e fortaleciam vínculos
afetivos. Diante disso, suponho que a compreensão das brincadeiras das crianças permite um
‘mergulho’ no processo de socialização desses indivíduos e o entendimento das suas maneiras
particulares de representarem o mundo.
Apontadas essas possibilidades de continuação desse trabalho, finalizo esse texto
citando Geertz (1989), que, ao referir-se à Antropologia e à etnografia, afirma:
126
A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência estranha, cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a base mais trêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros (GEERTZ, 1989, p. 20, grifos meus).
Não é por acaso que muitos pesquisadores que desenvolvem estudos dessa natureza
afirmam que as pesquisas não são concluídas, mas sim, ‘abandonadas’. Nessa direção, no
esforço de encerrar o estudo, deparei-me com diversas reflexões que possibilitam novas
investigações. É com a sensação de que muitas janelas foram abertas e que esse tema merece
maior investimento que concluo essas linhas.
127
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133
APÊNDICES
APÊNDICE I TERMO DE CIÊNCIA E AUTORIZAÇÃO DA GERÊNCIA ESPORTIVA DO CLUBE
GRÊMIO NÁUTICO UNIÃO
Eu, ____________________________________________________, Gerente de Esportes do Clube Grêmio Náutico União, tenho conhecimento acerca da pesquisa que será realizada nas dependências do clube, intitulada “O esporte de alto rendimento para crianças: para além do ‘como deve ser’”. A pesquisa será desenvolvida pela mestranda Maitê Venuto de Freitas, do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação do professor Dr. Marco Paulo Stigger.
Recebi esclarecimentos sobre os objetivos e sobre a metodologia que será desenvolvida no estudo, estando ciente de que as observações e entrevistas poderão suscitar constrangimentos aos participantes, mas que isso será minimizado por constantes esclarecimentos que serão dados pelos pesquisadores, esses que estarão sempre disponíveis para tal. Também tenho ciência de que as informações obtidas pelas observações e entrevistas a serem realizadas serão utilizadas somente para objetivos acadêmicos e que, a qualquer momento, poderei desobrigar-me das autorizações constantes nesse documento.
Tenho conhecimento de que a pesquisa não trará benefícios diretos ao clube e aos participantes, porém ela poderá oferecer ganhos indiretos, relativos ao avanço do conhecimento sobre o tema pesquisado. A participação na pesquisa não acarretará ônus financeiro ao clube e não irá interferir no fluxo normal das atividades do Grêmio Náutico União.
Em caso de necessidade de maiores esclarecimentos, fui informado de que poderei contatar:
• o Professor Marco Paulo Stigger, responsável pela pesquisa (e-mail [email protected]; fone: 51-96923641);
• o Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS (fone 51-33083738); • a Escola de Educação Física da UFRGS (51-33085817).
Assim, autorizo o acesso dos pesquisadores aos treinos da/s equipe/s definida/s e
concordo que sejam realizadas observações e entrevistas com treinadores e atletas, com a garantia da confidencialidade das informações que serão obtidas, as quais serão utilizadas para fins exclusivos da pesquisa acima nominada.
__________________________________________ Nome/cargo
Porto Alegre, ___ de _________ de 2014.
134
APÊNDICE II
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO DA COORDENADORA DE GINÁSTICA ARTÍSTICA DO CLUBE GRÊMIO NÁUTICO UNIÃO
Eu, Maitê Venuto de Freitas, mestranda do curso de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, convido-a a participar como voluntária do estudo intitulado “O esporte de alto rendimento para crianças: para além do ‘como deve ser’”. A pesquisa será por mim desenvolvida, sob a responsabilidade do Professor Doutor Marco Paulo Stigger.
Essa pesquisa tem por objetivo “compreender de que forma as crianças são constituídas atletas em uma equipe esportiva de alto rendimento e quais os significados que as mesmas dão ao contexto do treino esportivo”.
Para o desenvolvimento da investigação, serão realizadas observações sistemáticas nos treinos e nos campeonatos da equipe, assim como serão desenvolvidas entrevistas com as atletas, um de seus responsáveis e suas treinadoras. Isso será feito a partir do momento que você autorizar que eu desenvolva a pesquisa de acordo com essa metodologia. Todos esses procedimentos metodológicos não irão alterar a rotina de treinos da equipe em nenhum momento. As informações que eu obterei com as observações e entrevistas serão utilizadas apenas para fins acadêmicos. Caso você faça questão, seu nome será divulgado na pesquisa.
É importante que você tenha o conhecimento de que a pesquisa não trará benefícios diretos para a equipe de Ginástica Artística desse clube e nem para você, porém esperamos que o estudo ofereça ganhos indiretos, relativos ao avanço do conhecimento sobre o tema pesquisado.
Antes de concordar em permitir o acesso dos pesquisadores aos treinos da equipe infantil de Ginástica Artística, é muito importante que você compreenda as informações e instruções contidas nesse documento. Os pesquisadores deverão esclarecer todas as suas dúvidas antes de iniciar a pesquisa. Você tem o direito de vetar o acesso dos pesquisadores no estabelecimento a qualquer momento.
Vale ressaltar que sua participação nessa pesquisa é gratuita e não acarretará nenhum ônus para você. Caso os seus diretos sejam violados em algum momento, ou você sinta que isso aconteceu, favor, remeter-se:
• ao Professor Marco Paulo Stigger, responsável pela pesquisa (e-mail [email protected]; fone: 51-96923641);
• ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS (fone 51-33083738);
• à Escola de Educação Física da UFRGS (51-33085817). Ciente e de acordo com o que foi exposto anteriormente, eu
_______________________________________, estou de acordo em participar dessa pesquisa, assinando esse termo de consentimento em duas vias, ficando com a posse de uma delas.
Data: ___/___/___ Assinatura: ____________________________
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APÊNDICE III
TERMO DE ASSENTIMENTO DA CRIANÇA PARTICIPANTE
Eu, Maitê Venuto de Freitas, estou fazendo uma pesquisa para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS. O meu objetivo é compreender o que significa, para você, fazer parte de uma equipe esportiva de alto rendimento. Para fazer esse trabalho, escolhi a equipe de Ginástica Artística da qual você faz parte, em que pretendo realizar observações dos treinos e das competições, assim como fazer uma entrevista com cada atleta da equipe, incluindo você.
Essa folha representa um documento importante dessa pesquisa, pois aqui fica registrado se você quer ou não participar desse estudo. Com a sua autorização, poderei utilizar algumas coisas que você falou na entrevista e algumas anotações feitas por mim para escrever o texto da pesquisa. Além da sua autorização, uma pessoa responsável por você terá conhecimento desse trabalho e deverá autorizar a sua participação. Caso você faça questão, seu nome será divulgado na pesquisa.
A pesquisa não trará nenhum benefício direto para você, porém, a partir desse estudo, mais pessoas irão saber o porquê de você e as suas colegas de treino praticarem a Ginástica Artística. Esse conhecimento irá contribuir para que outras pessoas entendam mais sobre o esporte de alto rendimento para crianças. Você não vai precisar pagar para participar desse estudo, assim como a sua rotina nos treinos não irá mudar.
É importante que você se sinta esclarecida sobre a pesquisa, e, desde já, eu me coloco à disposição para tirar todas as suas dúvidas. Se, em algum momento, você se sentir incomodada e/ou constrangida com a minha presença, poderá solicitar a minha saída do local; e se, a qualquer momento, você quiser desautorizar o uso das informações que eu já tiver obtido, terá todo o direito de agir dessa forma.
Se, ainda assim, houver a necessidade de maiores esclarecimentos, você poderá solicitar que o seu responsável entre em contato com:
• o Professor Marco Paulo Stigger, responsável pela pesquisa (e-mail [email protected]; fone: 51-96923641);
• o Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS (fone 51-33083738);
• a Escola de Educação Física da UFRGS (51-33085817). Sendo assim, eu ____________________________________________, atleta da equipe esportiva de Ginástica Artística do clube esportivo Grêmio Náutico União, aceito participar dessa pesquisa. Porto Alegre, ____de_________ de 2014.
Obrigada, Maitê Venuto de Freitas
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APÊNDICE IV
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA AS CRIANÇAS
Eu, Maitê Venuto de Freitas, mestranda do curso de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, convido sua filha a participar de uma pesquisa intitulada “O esporte de alto rendimento para crianças: para além do ‘como deve ser’”. A pesquisa será por mim desenvolvida, sob a responsabilidade do Professor Doutor Marco Paulo Stigger.
Essa pesquisa tem por objetivo “compreender de que forma as crianças são constituídas atletas em uma equipe esportiva de alto rendimento e quais os significados que as mesmas dão ao contexto do treino esportivo”.
Para o desenvolvimento da investigação, serão realizadas observações sistemáticas nos treinos e nos campeonatos da equipe, assim como serão desenvolvidas entrevistas com as atletas, com um dos seus responsáveis e com as suas treinadoras. Todos esses procedimentos metodológicos não irão alterar a rotina dos treinos da sua filha em nenhum momento. As informações que eu obterei serão utilizadas apenas para fins acadêmicos. Caso você faça questão, o nome da sua filha será divulgado na pesquisa.
Antes de permitir a participação da sua filha nessa pesquisa, é muito importante que você compreenda as informações e instruções contidas nesse documento. Os pesquisadores deverão esclarecer todas as suas dúvidas antes de iniciar pesquisa. Você tem o direito de desistir que sua filha participe do estudo a qualquer momento.
É importante que você tenha o conhecimento de que a pesquisa não trará benefícios diretos para a sua filha, porém esperamos que o estudo ofereça ganhos indiretos, relativos ao avanço do conhecimento sobre o tema pesquisado.
Vale ressaltar que a participação nessa pesquisa é gratuita e não acarretará nenhum ônus para você. Caso os direitos da sua filha sejam violados em algum momento, ou você sinta que isso está acontecendo, favor, remeter-se:
• ao Professor Marco Paulo Stigger, responsável pela pesquisa (e-mail [email protected]; fone: 51-96923641);
• ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS (fone 51-33083738);
• à Escola de Educação Física da UFRGS (51-33085817).
Ciente e de acordo com o que foi exposto anteriormente, eu ______________________ _________________________________________________, estou de acordo que ______________________________________________ [nome completo da criança] participe dessa pesquisa, assinando esse termo de consentimento em duas vias, ficando com a posse de uma delas. Data: ___/___/___ Assinatura: ____________________________
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APÊNDICE V
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO DOS RESPONSÁVEIS
PELAS CRIANÇAS
Eu, Maitê Venuto de Freitas, mestranda do curso de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o/a convido a participar como voluntário/a do estudo intitulado “O esporte de alto rendimento para crianças: para além do ‘como deve ser’”. A pesquisa será por mim desenvolvida, sob a responsabilidade do Professor Doutor Marco Paulo Stigger. Sua participação se constituirá em fornecer uma entrevista aos pesquisadores.
Essa pesquisa tem por objetivo “compreender de que forma as crianças são constituídas atletas em uma equipe esportiva de alto rendimento e quais os significados que as mesmas dão ao contexto do treino esportivo”.
Para o desenvolvimento da investigação, serão realizadas observações sistemáticas nos treinos e nos campeonatos da equipe, assim como serão desenvolvidas entrevistas com as atletas, com um dos seus responsáveis e com as suas treinadoras. Todos esses procedimentos metodológicos não irão alterar a rotina dos treinos da equipe em nenhum momento. As informações obtidas serão utilizadas apenas para fins acadêmicos. Caso você faça questão, seu nome será divulgado na pesquisa.
É importante que você tenha o conhecimento de que a pesquisa não trará benefícios diretos para você, porém esperamos que o estudo ofereça ganhos indiretos, relativos ao avanço do conhecimento sobre o tema pesquisado.
Antes de concordar em participar da pesquisa, é muito importante que você compreenda as informações e instruções contidas nesse documento. Os pesquisadores deverão esclarecer todas as suas dúvidas antes de iniciar a pesquisa. Mesmo que já tenha dado a sua autorização, você tem o direito de desistir de participar do estudo a qualquer momento. Dessa forma, caso a entrevista já tenha sido realizada e você desistir de participar do estudo, você terá o direito de solicitar a retirada das informações até então obtidas através da sua entrevista.
Vale ressaltar que sua participação nessa pesquisa é gratuita e não acarretará nenhum ônus para você. Caso os seus direitos sejam violados em algum momento, ou você sinta que isso está acontecendo, favor, remeter-se:
• ao Professor Marco Paulo Stigger, responsável pela pesquisa (e-mail [email protected]; fone: 51-96923641);
• ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS (fone 51-33083738);
• à Escola de Educação Física da UFRGS (51-33085817).
Ciente e de acordo com o que foi exposto anteriormente, eu ______________________ __________________________________, estou de acordo em participar dessa pesquisa, assinando esse termo de consentimento em duas vias, ficando com a posse de uma delas. Data: ___/___/___ Assinatura: ____________________________
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APÊNDICE VI
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO DAS TREINADORAS
Eu, Maitê Venuto de Freitas, mestranda do curso de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o/a convido a participar como voluntária do estudo intitulado “O esporte de alto rendimento para crianças: para além do ‘como deve ser’”. A pesquisa será por mim desenvolvida, sob a responsabilidade do Professor Doutor Marco Paulo Stigger.
Essa pesquisa tem por objetivo “compreender de que forma as crianças são constituídas atletas em uma equipe esportiva de alto rendimento e quais os significados que as mesmas dão ao contexto do treino esportivo”.
Para o desenvolvimento da investigação, serão realizadas observações sistemáticas nos treinos e nos campeonatos da equipe, assim como serão desenvolvidas entrevistas com as atletas, com um dos seus responsáveis e com as suas treinadoras, incluindo você. Todos esses procedimentos metodológicos não irão alterar a rotina de treinos da equipe em nenhum momento. As informações obtidas serão utilizadas apenas para fins acadêmicos. Caso você faça questão, seu nome será divulgado na pesquisa.
É importante que você tenha o conhecimento de que a pesquisa não trará benefícios diretos para a equipe de Ginástica Artística e nem para você, porém esperamos que o estudo ofereça ganhos indiretos, relativos ao avanço do conhecimento sobre o tema pesquisado.
Antes de concordar em participar da pesquisa, é muito importante que você compreenda as informações e instruções contidas nesse documento. Os pesquisadores deverão esclarecer todas as suas dúvidas antes de iniciar a pesquisa. Mesmo que já tenha dado a sua autorização, você tem o direito de desistir de participar do estudo a qualquer momento. Dessa forma, você poderá solicitar a retirada da pesquisadora dos treinos e a não utilização das informações até então obtidas através da sua entrevista e/ou das observações.
Vale ressaltar que sua participação nessa pesquisa é gratuita e não acarretará nenhum ônus para você. Caso os seus direitos sejam violados em algum momento, ou você sinta que isso está acontecendo, favor, remeter-se:
• ao Professor Marco Paulo Stigger, responsável pela pesquisa (e-mail [email protected]; fone: 51-96923641);
• ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS (fone 51-33083738); • à Escola de Educação Física da UFRGS (51-33085817).
Ciente e de acordo com o que foi exposto anteriormente, eu ______________________ __________________________________, estou de acordo em participar dessa pesquisa, assinando esse termo de consentimento em duas vias, ficando com a posse de uma delas. Data: ___/___/___ Assinatura: ____________________________
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APÊNDICE VII
ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA PARA AS CRIANÇAS
1. Qual o teu nome? 2. Qual a tua idade? 3. Tu estudas? Qual a série que tu estás cursando hoje? 4. Desde quando te envolveste com esportes? Onde? 5. Hoje, praticas outros esportes? Quais? 6. Por que tu praticas Ginástica Artística? 7. Quando tu iniciaste na Ginástica Artística? 8. O que te levou a praticar Ginástica Artística? 9. O que te faz continuar nesse esporte? 10. Como é a tua rotina durante a semana? Como o treino se insere na tua vida no que diz
respeito à escola, aos estudos, aos amigos, a divertimentos fora do treino? 11. Do que tu mais gostas no treino? Por quê? 12. Do que tu menos gostas no treino? Por quê? 13. O que tu achas das competições? Como te sentes competindo? 14. E no final de semana, o que tu gostas de fazer? 15. Para ti, o que é ser uma boa ginasta? 16. Podes me dar o nome de uma ginasta que tu consideras um exemplo? 17. Antes de finalizarmos a nossa conversa, tu gostarias de me dizer mais alguma coisa?
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APÊNDICE IX
ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA PARA AS TREINADORAS
1. Qual o teu nome? 2. Tu já foste atleta? Se sim, quando iniciaste? Quanto tempo foste atleta? Por que tu
escolheste a Ginástica Artística e não outro esporte? 3. Há quanto tempo tu atuas como treinadora? O que te levou a ser treinadora? 4. O que é necessário para uma menina ser convidada para fazer parte da equipe? E o que
é necessário para ela se manter na equipe? 5. Como funcionam os testes para entrar na equipe? 6. Como é estruturada a rotina dos treinos? Como tu achas que as crianças administram o
seus tempos em relação aos treinos, às competições, à escola, aos amigos, a outros espaços de divertimentos, à família?
7. A equipe participa de muitas competições? Quais? Como são divididas as competições?
8. Quais os motivos que levam as meninas a desistirem da Ginástica Artística e saírem da equipe?
9. Quais motivos levam as meninas a quererem continuar na equipe? 10. Para ti, o que é ser uma ginasta exemplar? 11. Antes de finalizarmos a nossa conversa, tu gostarias de me dizer mais alguma coisa?