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A REPRESENTAÇÃO DA REGIO GIGANTUM NA CARTOGRAFIA DOS
SÉCULOS XVI E XVII
Adriano Rodrigues de Oliveira
Doutorando em História na UNESP/Assis
Resumo: No presente estudo, analisamos quatro mapas que representaram o mítico
espaço territorial denominado Regio Gigantum no transcorrer dos séculos XVI e XVII.
Interessa-nos perceber, como uma certa “cartografia imaginária”, europeia e
renascentista, representou não apenas o meio físico, mas sobretudo os povos que
habitavam o extremo sul da América. Assim, partirmos da problemática, que os gigantes
imaginados nessas terras, estabeleciam uma simetria com a própria natureza física do
Novo Mundo – desmesurado, inóspito e monstruoso, conforme o imaginário europeu o
concebia. Teoricamente, nos orientamos a partir das discussões de Brian Harley, para
quem os mapas são fontes históricas importantes e indispensáveis na compreensão do
processo histórico.
Palavras-chave: mito; imaginário; cartografia; representação.
Introdução
Em diversos mapas e cartas náuticas que datam dos séculos XVI e XVII, o
espaço territorial hoje denominado “Patagônia”, seria primeiramente conhecido como
Regio Gigantum (Região dos Gigantes), ou ainda “Terra de Patagões”. Essas e outras
definições semelhantes, indicavam que o extremo sul da América, precisamente a área
localizada entre o estuário do Rio da Prata e o Estreito de Magalhães, seria habitada por
populações de homens e mulheres selvagens, de estatura desmesurada, extremamente
velozes e comedores de carne crua: os fabulosos patagões.
Na presente comunicação, nosso estudo se concentrou na análise de quatro
mapas do referido período: a carta de 1540, intitulada Novae Insulae, de autoria do
cosmógrafo e matemático alemão Sebastian Münster (1488-1552); o Mapa-Múndi de
1544, do navegador e cartógrafo veneziano Sebastião Caboto (1484-1557); o mapa da
América de 1562, do cartógrafo espanhol Diego Gutiérrez e, por fim, a carta denominada
Nova e Exacta Delineando Americae Partis Avstralis, publicada em 1602 pelo impressor
e editor belga Levinus Hulsius (1546-1606).
Para a compressão das fontes cartográficas, nos orientamos a partir dos estudos
de Brian Harley (2005), um dos principais expoentes da nova História da Cartografia.
Harley adverte que todo mapa é uma imagem, possuidora de signos, representações e
imaginários, portanto, um documento social e cultural, cujo método de análise deve
considerar três pilares fundamentais: o contexto do cartógrafo, o contexto de outros mapas
e o contexto da sociedade (HARLEY, 2005, p. 59).
Dito isso, vale ressaltar que o período analisado nessa pesquisa, coincide
exatamente com a denominada Era de Ouro da moderna cartografia europeia,
possibilitada, sobretudo, pelo surgimento e expansão da imprensa nas mais variadas
atividades. De acordo com Jeremy Black (2005), desde que o primeiro mapa fora
impresso no ano de 1470, outros exemplares foram produzidos em um tempo cada vez
menor, pois não só essa técnica havia facilitado a troca de informações, como também o
processo de revisão cartográfica. Consequentemente, tais mapas, tornaram-se públicos,
além de um negócio relevante no lucrativo mercado editorial que vigorou nos séculos
XVI e XVII (BLACK, 2005, 23-24).
Embora não se possa descartar de antemão o apelo econômico e sua influência
na construção de uma “cartografia imaginária”, devemos ter em mente que, esta, obedece
primeiramente a outros princípios que serão brevemente discutidos nesse texto. De todo
modo, apesar dos notáveis avanços cartográficos no século XVI, havia ainda um profundo
desconhecimento das terras “recém-descobertas”. Assim, enquanto os litorais dos
continentes eram largamente representados, seus interiores permaneciam praticamente
desconhecidos e parcamente mapeados (Ibidem).
A análise das fontes cartográficas que representam o Novo Mundo no transcorrer
da era das Grandes Navegações, demonstra claramente que esses enormes espaços
“vazios”, tornaram-se na maioria das vezes, terreno fértil para a proliferação de lugares
míticos e povos monstruosos no imaginário dos cartógrafos europeus. A esse respeito, o
historiador Frank Lestringrant (2009), em sua obra A Oficina do Cosmógrafo, observa
que: “Um mapa, nessa época, não pode comportar buracos (é verdade que tem bordas),
salvo para mascará-lo com uma moldura ou pela imagem de criaturas fabulosas”
(LESTRINGANT, 2009, p. 198).
As representações da Regio Gigantum na cartografia
Quem inaugurou a lenda da mítica “Região dos Gigantes”, localizada nos
confins do Novo Mundo, foi o marinheiro italiano Antonio de Pigafetta (1491-1531),
cronista responsável por redigir os acontecimentos da primeira viagem de circum-
navegação ao redor do globo, périplo comandado por Fernão de Magalhães/ Juan
Sebastián Elcano entre os anos de 1519 e 1521. Conforme consta no diário de bordo de
Pigafetta, os europeus teriam topado com verdadeiros gigantes na Baía de San Julián
(atual Patagônia Argentina). Em um episódio datado do dia 19 de maio de 1520, o cronista
nos legou o seguinte relato:
Transcorreram dois meses sem que víssemos nenhum habitante do país. Um
dia, quando menos esperávamos, um homem de figura gigantesca se
apresentou ante nós. Estava sobre a areia, quase nu, e cantava e dançava ao
mesmo tempo, jogando poeira sobre a cabeça. O capitão enviou à terra um de
nossos marinheiros, com ordem de fazer os mesmos gestos em sinal de paz e
amizade, o que foi muito bem compreendido pelo gigante, que se deixou
conduzir a uma pequena ilha, onde o capitão havia descido. Eu me encontrava
ali com muitos outros. Deu mostras de grande estranheza ao ver-nos e
levantando o dedo queria dizer que acreditava que nós havíamos descido do
céu. Este homem era tão grande que nossas cabeças chegavam apenas até à sua
cintura. De porte formoso, seu rosto era largo e pintado de vermelho, exceto
os olhos, que eram rodeados por um círculo amarelo e dois traços em forma de
coração nas bochechas. Seus cabelos, escassos, pareciam branqueados por
algum pó... (PIGAFETTA, 2019, p. 58-59).
Além da aparência curiosa e da estatura desmesurada, Pigafetta relatou outras
informações sobre esses gigantes americanos: se vestiam com a pele de animais e
caçavam utilizando um arco curto e maciço. As mulheres não eram tão grandes quanto os
homens, porém, mais encorpadas, andavam totalmente desnudas e tinham seios longos e
caídos (Ibidem, p. 59-60). Quando sentiam dores estomacais, os ameríncolas inseriam
uma seta pela boca que ia até as profundidades do estômago e, assim, expeliam uma
matéria verde mesclada com sangue para o alívio da dor. Eram ainda, apreciadores de
carne crua e verdadeiros glutões: “comiam, cada um, um cesto de biscoitos por dia;
devoravam os ratos crus, sem tirar a pele, e tomavam meio balde de água de um só
trago...” (Ibidem, p. 63-64).
Tanto a expedição de Magalhães/Elcano quanto outras que cruzaram as terras do
estreito ao longo do século XVI, tinham um objetivo muito bem definido: contornar a
imensa massa continental americana e navegar a oeste para chegar até as Ilhas dos
Condimentos (Ilhas Molucas). Assim, por sua posição estratégica, o estreito mais tarde
batizado com o nome de Magalhães, se tornou alvo das principais potências marítimas
europeias. Airola e De Beer destacam que: “Navios de diferentes nacionalidades
começaram a cruzar as suas águas, visando colocá-lo sob o domínio de suas respectivas
bandeiras” (MAGASICH-AIROLA; DE BEER, 2000, p. 269).
Assim, as notícias sobre os selvagens índios fueguinos, se espalharam
rapidamente na Europa quinhentista, atiçando a imaginação de viajantes, escritores,
exploradores e caçadores de fortuna.
Em 1535, o cronista espanhol Gonzalo Fernández de Oviedo (1478-1557)
descreve em sua Historia General, que esses indígenas se chamavam “patagões” em razão
de possuírem pés tão grandes que seguiam em tamanho a proporção dos seus corpos
desmedidos (OVIEDO, 1852, p. 42). Mediam 13 palmos de altura (mais de 2,80 m), de
modo que os cristãos em pé, “não chegavam com as cabeças a seus membros
vergonhosos” (Ibidem, p. 40).
No ano de 1557, o frei e cosmógrafo francês André Thevet, em Singularidades
da França Antártica, destaca que a Terra dos Gigantes, circunscrita entre o Rio da Prata
e o Estreito de Magalhães, era habitada por indivíduos que mediam 12 palmos de altura,
e faz as seguintes ressalvas: “Esta região é habitada por uns indígenas possantes, os
chamados patagões, verdadeiros gigantes por sua alta estatura e robusta compleição
física...” (THEVET, 1978, p. 183-184).
Não tardou para que os cartógrafos europeus, das mais diferentes nacionalidades,
escolas e estilos, incorporassem as “novas terras” em seus mapas e cartas náuticas. Desse
modo, vamos encontrar uma das primeiras referências cartográficas à essa lendária região
no mapa intitulado Novae Insulae, de autoria do cosmógrafo e matemático alemão
Sebastian Münster (1488-1552). Esse mapa da América foi publicado em 1540, para
compor o livro Geographia universalis vetus et nova, uma reedição de Münster da
Geographia de Cláudio Ptolomeu (HORCH, 1988, p. 86).
O autor do referido mapa, Sebastian Münster, nasceu em Ingelheim, na
Alemanha, por volta do ano de 1488. Possuía uma sólida formação humanista, tendo
estudado, matemática, geografia, astrologia, teologia, hebraico e grego. Na cidade de
Tübingen, aprendera cartografia, e teve contado com os estudos geográficos de Ptolomeu.
Foi também professor de hebraico, matemática e geografia na Universidade de
Heidelberg. Em 1530, logo após se converter ao protestantismo, mudou-se para a cidade
de Basiléia, onde viveria os anos mais frutíferos de sua carreira, publicando inúmeros
trabalhos nos campos da filologia, matemática, astronomia e cosmografia (Ibidem, p. 87-
88).
Como podemos ver no quadro abaixo (fig. 1), Novae Insulae apresenta uma
Regio Gigantum isolada na área que engloba a América do Sul, uma vez que outros mitos
europeus, ainda não foram transportados para as terras do Novo Mundo no imaginário
dos cartógrafos europeus. Por sua vez, a localização dessa “Região dos Gigantes” – uma
enorme área situada entre o estuário do Rio da Prata e o Estreito de Magalhães (Fretum
Magaliani), obedece fielmente aos relatos dos cronistas e viajantes europeus.
Fig. 1. Mapa da América intitulado Novae Insulae, XVII – Nova Tabula, de Sebastian Münster. Publicado
em Basiléia, no ano de 1540. Domínio Público: Disponível em: https://www.doria.fi/handle/10024/84483.
Acesso em: 04 de junho de 2020.
Contudo, vale destacar, a primeira representação cartográfica desses gigantes da
Terra do Fogo, encontra-se no Mapa-Múndi de 1544, produzido pelo cosmógrafo italiano
Sebastião Caboto (1476 – 1557). Supunha-se que Caboto tenha nascido em Veneza, entre
os anos de 1479 a 1484. Ao contrário de outros cartógrafos de seu tempo, realizou
diversas viagens exploratórias, incluindo uma expedição para à América do Sul no ano
de 1526 (GUEDES, 2012, p. 50).
No referido mapa, vemos um indivíduo que aparenta uma grande estatura e está
posicionado quase fora da porção continental, nas proximidades do Estreito de
Magalhães. O “gigante” traz em sua mão esquerda uma espécie de escudo e, na direita,
um longo porrete de madeira, tem pele escura e o corpo coberto por um vestido longo e
listrado. Como se vê, esse mapa localiza a Regio Gigantum nos limites territoriais da
América do Sul (fig. 2). Um texto em latim e espanhol, gravado no relevo do gráfico, não
deixa dúvidas para o espectador, ao comentar o périplo de Magalhães e a natureza dos
habitantes do estreito:
Este estreito de todos os santos descobriu Fernão de Magalhães, capitão que
ordenou fazer a S. c. c. m. do Imperador Dom Carlos, o Rei e nosso senhor
para o descobrimento das ilhas Maluco. Há nesse estreito homens de tão grande
estatura que parecem gigantes, é terra muito deserta, e se vestem [os gigantes]
da pele de animais.1
Fig. 2. Um gigante patagão em pé nas proximidades do Estreito de Magalhães. Fragmento extraído do
Mapa-Múndi de Sebastião Caboto. Publicado em 1544. Cortesia da Biblioteca Nacional da França.
Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b55011003p/f1.item.zoom. Acesso em: 22 de agosto
de 2020.
Um dos mapas mais emblemáticos na representação da fabulosa “Região dos
Gigantes”, fora publicado na cidade de Antuérpia no ano de 1562, resultado de uma
parceria entre o cosmógrafo espanhol Diego de Gutiérrez e o gravador flamengo
Hieronymus Cock (1510-1570).
1 Tradução nossa. Em espanhol: “Este estrecho detodos santos descubrio Hernando de Magalhanes,
Capitan que mando hazar la S. c. c. m. del Imperator Dom Carlos y Rey nuestro sennor para el
descubrimiento delas islas Maluco. Ay eneste estrecho hombres de tan grande estatura que parecen
Gigantes, es tierra muy desierta, y visten se de pielos de animales” (CABOT, 1544, Tabvla Prima).
São imprecisas as informações sobre a vida de Diego de Gutiérrez. Sabe-se,
contudo, que era cosmógrafo oficial da Casa de Contratação de Sevilha, fundada em 1503
pelos Reis Católicos – a Rainha Dona Isabel de Castela e o Rei Dom Fernando II de
Aragão. Antonio Sánchez Martínez (2010), em um estudo em que analisou essa
instituição burocrática, faz as seguintes observações:
A partir de 1508, com a criação do cargo de Piloto-Chefe, e a produção de um
mapa modelo chamado Padrão Real, a Casa converteu-se em uma dependência
administrativa da monarquia, habilitada a produzir representações
demográficas dos descobrimentos espanhóis, em um lugar reprodutor de
imagens, de modelos visuais que mostravam como era o mundo visto da
Península Ibérica, definitivamente, a imagem oficial do mundo...
(MARTÍNEZ, 2010, p. 724).
Hieronymus Cock, encarregado de inserir as gravuras no mapa de Gutiérrez,
nasceu em Antuérpia por volta de 1510. Entre os anos de 1546 e 1548 foi estudar em
Roma, onde recebera a influência de artistas renomados. De volta ao seu país de origem,
em 1548, fundou uma das principais editoras europeias do período. É importante
enfatizar, que no contexto em que Cock desenhava seus mapas, a cidade de Antuérpia
havia se convertido no principal polo comercial e cultural da Europa (CORTESÃO, 1965,
p. 96. Tais fatores, proporcionaram o desenvolvimento de uma pujante e moderna
cartografia, cujo apreço pela ornamentação, visava atender um público ávido por
novidades (Ibidem, 100-101).
O mapa de 1562, é antes de tudo, um documento de caráter oficial, que refletia
muito bem as pretensões territoriais da Coroa Espanhola na América. De acordo como
historiador estadunidense John R. Hébert:
O magnífico mapa da América de 1562, de Gutiérrez, não pretendia ser um
documento científico ou de navegação, embora fosse de grande escala e
permanecesse como o maior mapa da América por um século. Era, antes, um
mapa cerimonial, um mapa diplomático, identificado pelos brasões que
proclamavam posse. Através do mapa, a Espanha proclamou para as nações da
Europa Ocidental seu território americano, delineando claramente sua esfera
de controle, não em graus, mas com o surgimento de uma linha muito ampla
para o Trópico de Câncer claramente desenhada no mapa.2
2 Tradução nossa. Em inglês: “Gutiérrez 's magnificent 1562 map of America was not intended to be a
scientifically or navigationally exacting document, although it was of large scale and remained the largest
map of America for a century. It was, rather, a ceremonial map, a diplomatic map, as identified by the
coats of arms proclaiming possession. Through the map, Spain proclaimed to the nations of Western
Europe its American territory, clearly outlining its sphere of control, not by degrees, but with the
appearance of a very broad line for the Tropic of Cancer clearly drawn on the map” (HÉBERT, online).
No excerto do mapa de Gutiérrez, na parte que representa a “Tierra de
Patagones” (fig. 3), vemos o encontro de um soldado espanhol com dois americanos de
tamanho desmesurado. O desenho apresenta elementos iconográficos muito bem
definidos, de acordo com os padrões da arte renascentista: Enquanto o estrangeiro carrega
indumentárias típicas – lança, armadura e espada, os gigantes têm o corpo parcamente
coberto por roupas feitas da pele de animais, e suas armas rudimentares são, o arco e a
flecha, aspectos que realça seu primitivismo e selvageria.
Nota-se ainda, que abaixo dos indivíduos encontra-se a inscrição “Gigantum
Regio”, termo que reforça as características dos habitantes dessa região. Um detalhe da
imagem que chama a atenção é a altura do patagões, representados em conformidade com
os relatos de Pigafetta, que ao descrever em seu diário o encontro com um gigante
solitário, afirmou: “Este homem era tão grande que nossas cabeças chegavam apenas até
à sua cintura” (PIGAFETTA, 2019, p. 58-59).
Fig. 3. Gigantum Regio. Fragmento do mapa da América de Diego Gutiérrez. Publicado em Antuérpia no
ano de 1562. Cortesia da Divisão de Geografia e Mapa da Biblioteca do Congresso Washington, DC.
Disponível em: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g3290.ct000342. Acesso em: 22 de agosto de 2020.
Do início do século XVII, encontramos um belíssimo mapa da América
Meridional de autoria do gravador e impressor belga, Levinus Hulsius (1546-1606). A
carta foi desenhada para compor a“Vierte Schiffart" (Quarta Viagem), relato da excursão
do soldado bávaro Ulrich Schmidel, ao Brasil e ao Rio da Prata entre os anos de 1534-
1554. Levinus Hulsius ou Levin Hulsius, descendente de uma família abastada, nasceu
em 1546 no noroeste da Bélgica, precisamente na cidade portuária de Gante. No ano de
1590, após ter passado alguns anos em Frankfurt am Main, fixou residência em
Nuremberg, onde se tornou um importante editor, lexicógrafo, fabricante e comerciante
de instrumentos matemáticos e de astronomia (JIMÉNEZ, 2014, p. 56).
No mapa de Hulsius vemos que um soldado europeu observa atentamente um
patagão inserir uma seta na garganta, ato que denota primitivismo e selvageria (fig. 4).
Tal prática fora relatada por Pigafetta que afirmou:
Mesmo sendo selvagens, esses índios desenvolveram uma espécie de
medicina. Quando estão doentes do estômago, por exemplo, em vez de
tomarem um purgante, como nós, eles introduzem uma flecha na boca, o mais
que podem, para provocar o vômito, expelindo uma matéria verde mesclada
com sangue. A cor verde provém de um tipo de caldo de que se alimentam
(PIGAFETTA, 2019, p. 63).
Outro detalhe que chama a atenção nessa carta da América do Sul, é o topônimo
“Montaña de Gigantes”, demonstrando a incorporação definitiva do mito à toponímia.
Mikhail Bakhtin (1987) observa que toda lenda de gigantes estabelece uma relação direta
com o relevo dos lugares onde são originárias: “[...] a lenda encontra sempre um ponto
de apoio concreto no relevo regional, encontra na natureza o corpo desmembrado do
gigante, espalhado ou amassado” (BAKHTIN, 1987, p. 299-300).
Fig. 4. Fragmento do mapa de Levinus Hulsius, 1602. Cortesia da Cortesia da Divisão de Geografia e Mapa
da Biblioteca do Congresso Washington, DC. Disponível em: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5200.rb000009.
Acesso em: 22 de agosto de 2020.
Conclusão
Conforme constatamos em nosso estudo, poucos temas oriundos do imaginário
europeu foram tão duradouros e persistentes em sua difusão na cartografia europeia, como
o mito da Regio Gigantum. Acreditamos que essa longevidade se deve à inflexibilidade
dos cartógrafos com as mudanças mais bruscas das linhas e dos traçados. Isso significa
dizer que, artífices provenientes das mais variadas escolas e estilos, reproduziam por
décadas a fio, exemplares muito semelhantes em forma e conteúdo. Acrescenta-se à essa
durabilidade do mito, a natureza peculiar da “Patagônia”, inóspita, de difícil acesso,
relevo montanhoso e entrecortado – terra fértil para propagação do mito dos gigantes. Por
fim, vale destacar que a reprodução da lenda “patagônica” nos mapas dos séculos XVI e
XVII, repercutia o embate europeu sobre o processo de colonização e exploração do Novo
Mundo.
Referências/fontes
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Renascimento: o contexto de François Rabelais; Tradução de Yara Frateschi Viera. São
Paulo: Hucitec, 1987.
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BUENO JIMÉNEZ, Alfredo. Hispanoamérica en el imaginario gráfico de los
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CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Ministério
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HARLEY, B. La Nueva Naturaleza de los mapas: ensayos sobre la historia de la
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MAGASICH-AIROLA, Jorge; DE BEER, Jean-Marc. América mágica: quando a
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MARTÍNEZ, Antonio Sánchez. La institucionalización de la cosmografía americana: la
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PIGAFETTA, Antonio. A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da expedição
de Fernão de Magalhães. Tradução de Jurandir Soares dos Santos. 2ª ed. – Porto Alegre:
L&PM, 2019.
THEVET, André. As Singularidades da França Antártica. Tradução de Eugênio
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