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A REPRESENTAÇÃO DA REGIO GIGANTUM NA CARTOGRAFIA DOS SÉCULOS XVI E XVII Adriano Rodrigues de Oliveira Doutorando em História na UNESP/Assis [email protected] Resumo: No presente estudo, analisamos quatro mapas que representaram o mítico espaço territorial denominado Regio Gigantum no transcorrer dos séculos XVI e XVII. Interessa-nos perceber, como uma certa “cartografia imaginária”, europeia e renascentista, representou não apenas o meio físico, mas sobretudo os povos que habitavam o extremo sul da América. Assim, partirmos da problemática, que os gigantes imaginados nessas terras, estabeleciam uma simetria com a própria natureza física do Novo Mundo desmesurado, inóspito e monstruoso, conforme o imaginário europeu o concebia. Teoricamente, nos orientamos a partir das discussões de Brian Harley, para quem os mapas são fontes históricas importantes e indispensáveis na compreensão do processo histórico. Palavras-chave: mito; imaginário; cartografia; representação. Introdução Em diversos mapas e cartas náuticas que datam dos séculos XVI e XVII, o espaço territorial hoje denominado “Patagônia”, seria primeiramente conhecido como Regio Gigantum (Região dos Gigantes), ou ainda “Terra de Patagões”. Essas e outras definições semelhantes, indicavam que o extremo sul da América, precisamente a área localizada entre o estuário do Rio da Prata e o Estreito de Magalhães, seria habitada por populações de homens e mulheres selvagens, de estatura desmesurada, extremamente velozes e comedores de carne crua: os fabulosos patagões.

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A REPRESENTAÇÃO DA REGIO GIGANTUM NA CARTOGRAFIA DOS

SÉCULOS XVI E XVII

Adriano Rodrigues de Oliveira

Doutorando em História na UNESP/Assis

[email protected]

Resumo: No presente estudo, analisamos quatro mapas que representaram o mítico

espaço territorial denominado Regio Gigantum no transcorrer dos séculos XVI e XVII.

Interessa-nos perceber, como uma certa “cartografia imaginária”, europeia e

renascentista, representou não apenas o meio físico, mas sobretudo os povos que

habitavam o extremo sul da América. Assim, partirmos da problemática, que os gigantes

imaginados nessas terras, estabeleciam uma simetria com a própria natureza física do

Novo Mundo – desmesurado, inóspito e monstruoso, conforme o imaginário europeu o

concebia. Teoricamente, nos orientamos a partir das discussões de Brian Harley, para

quem os mapas são fontes históricas importantes e indispensáveis na compreensão do

processo histórico.

Palavras-chave: mito; imaginário; cartografia; representação.

Introdução

Em diversos mapas e cartas náuticas que datam dos séculos XVI e XVII, o

espaço territorial hoje denominado “Patagônia”, seria primeiramente conhecido como

Regio Gigantum (Região dos Gigantes), ou ainda “Terra de Patagões”. Essas e outras

definições semelhantes, indicavam que o extremo sul da América, precisamente a área

localizada entre o estuário do Rio da Prata e o Estreito de Magalhães, seria habitada por

populações de homens e mulheres selvagens, de estatura desmesurada, extremamente

velozes e comedores de carne crua: os fabulosos patagões.

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Na presente comunicação, nosso estudo se concentrou na análise de quatro

mapas do referido período: a carta de 1540, intitulada Novae Insulae, de autoria do

cosmógrafo e matemático alemão Sebastian Münster (1488-1552); o Mapa-Múndi de

1544, do navegador e cartógrafo veneziano Sebastião Caboto (1484-1557); o mapa da

América de 1562, do cartógrafo espanhol Diego Gutiérrez e, por fim, a carta denominada

Nova e Exacta Delineando Americae Partis Avstralis, publicada em 1602 pelo impressor

e editor belga Levinus Hulsius (1546-1606).

Para a compressão das fontes cartográficas, nos orientamos a partir dos estudos

de Brian Harley (2005), um dos principais expoentes da nova História da Cartografia.

Harley adverte que todo mapa é uma imagem, possuidora de signos, representações e

imaginários, portanto, um documento social e cultural, cujo método de análise deve

considerar três pilares fundamentais: o contexto do cartógrafo, o contexto de outros mapas

e o contexto da sociedade (HARLEY, 2005, p. 59).

Dito isso, vale ressaltar que o período analisado nessa pesquisa, coincide

exatamente com a denominada Era de Ouro da moderna cartografia europeia,

possibilitada, sobretudo, pelo surgimento e expansão da imprensa nas mais variadas

atividades. De acordo com Jeremy Black (2005), desde que o primeiro mapa fora

impresso no ano de 1470, outros exemplares foram produzidos em um tempo cada vez

menor, pois não só essa técnica havia facilitado a troca de informações, como também o

processo de revisão cartográfica. Consequentemente, tais mapas, tornaram-se públicos,

além de um negócio relevante no lucrativo mercado editorial que vigorou nos séculos

XVI e XVII (BLACK, 2005, 23-24).

Embora não se possa descartar de antemão o apelo econômico e sua influência

na construção de uma “cartografia imaginária”, devemos ter em mente que, esta, obedece

primeiramente a outros princípios que serão brevemente discutidos nesse texto. De todo

modo, apesar dos notáveis avanços cartográficos no século XVI, havia ainda um profundo

desconhecimento das terras “recém-descobertas”. Assim, enquanto os litorais dos

continentes eram largamente representados, seus interiores permaneciam praticamente

desconhecidos e parcamente mapeados (Ibidem).

A análise das fontes cartográficas que representam o Novo Mundo no transcorrer

da era das Grandes Navegações, demonstra claramente que esses enormes espaços

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“vazios”, tornaram-se na maioria das vezes, terreno fértil para a proliferação de lugares

míticos e povos monstruosos no imaginário dos cartógrafos europeus. A esse respeito, o

historiador Frank Lestringrant (2009), em sua obra A Oficina do Cosmógrafo, observa

que: “Um mapa, nessa época, não pode comportar buracos (é verdade que tem bordas),

salvo para mascará-lo com uma moldura ou pela imagem de criaturas fabulosas”

(LESTRINGANT, 2009, p. 198).

As representações da Regio Gigantum na cartografia

Quem inaugurou a lenda da mítica “Região dos Gigantes”, localizada nos

confins do Novo Mundo, foi o marinheiro italiano Antonio de Pigafetta (1491-1531),

cronista responsável por redigir os acontecimentos da primeira viagem de circum-

navegação ao redor do globo, périplo comandado por Fernão de Magalhães/ Juan

Sebastián Elcano entre os anos de 1519 e 1521. Conforme consta no diário de bordo de

Pigafetta, os europeus teriam topado com verdadeiros gigantes na Baía de San Julián

(atual Patagônia Argentina). Em um episódio datado do dia 19 de maio de 1520, o cronista

nos legou o seguinte relato:

Transcorreram dois meses sem que víssemos nenhum habitante do país. Um

dia, quando menos esperávamos, um homem de figura gigantesca se

apresentou ante nós. Estava sobre a areia, quase nu, e cantava e dançava ao

mesmo tempo, jogando poeira sobre a cabeça. O capitão enviou à terra um de

nossos marinheiros, com ordem de fazer os mesmos gestos em sinal de paz e

amizade, o que foi muito bem compreendido pelo gigante, que se deixou

conduzir a uma pequena ilha, onde o capitão havia descido. Eu me encontrava

ali com muitos outros. Deu mostras de grande estranheza ao ver-nos e

levantando o dedo queria dizer que acreditava que nós havíamos descido do

céu. Este homem era tão grande que nossas cabeças chegavam apenas até à sua

cintura. De porte formoso, seu rosto era largo e pintado de vermelho, exceto

os olhos, que eram rodeados por um círculo amarelo e dois traços em forma de

coração nas bochechas. Seus cabelos, escassos, pareciam branqueados por

algum pó... (PIGAFETTA, 2019, p. 58-59).

Além da aparência curiosa e da estatura desmesurada, Pigafetta relatou outras

informações sobre esses gigantes americanos: se vestiam com a pele de animais e

caçavam utilizando um arco curto e maciço. As mulheres não eram tão grandes quanto os

homens, porém, mais encorpadas, andavam totalmente desnudas e tinham seios longos e

caídos (Ibidem, p. 59-60). Quando sentiam dores estomacais, os ameríncolas inseriam

uma seta pela boca que ia até as profundidades do estômago e, assim, expeliam uma

matéria verde mesclada com sangue para o alívio da dor. Eram ainda, apreciadores de

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carne crua e verdadeiros glutões: “comiam, cada um, um cesto de biscoitos por dia;

devoravam os ratos crus, sem tirar a pele, e tomavam meio balde de água de um só

trago...” (Ibidem, p. 63-64).

Tanto a expedição de Magalhães/Elcano quanto outras que cruzaram as terras do

estreito ao longo do século XVI, tinham um objetivo muito bem definido: contornar a

imensa massa continental americana e navegar a oeste para chegar até as Ilhas dos

Condimentos (Ilhas Molucas). Assim, por sua posição estratégica, o estreito mais tarde

batizado com o nome de Magalhães, se tornou alvo das principais potências marítimas

europeias. Airola e De Beer destacam que: “Navios de diferentes nacionalidades

começaram a cruzar as suas águas, visando colocá-lo sob o domínio de suas respectivas

bandeiras” (MAGASICH-AIROLA; DE BEER, 2000, p. 269).

Assim, as notícias sobre os selvagens índios fueguinos, se espalharam

rapidamente na Europa quinhentista, atiçando a imaginação de viajantes, escritores,

exploradores e caçadores de fortuna.

Em 1535, o cronista espanhol Gonzalo Fernández de Oviedo (1478-1557)

descreve em sua Historia General, que esses indígenas se chamavam “patagões” em razão

de possuírem pés tão grandes que seguiam em tamanho a proporção dos seus corpos

desmedidos (OVIEDO, 1852, p. 42). Mediam 13 palmos de altura (mais de 2,80 m), de

modo que os cristãos em pé, “não chegavam com as cabeças a seus membros

vergonhosos” (Ibidem, p. 40).

No ano de 1557, o frei e cosmógrafo francês André Thevet, em Singularidades

da França Antártica, destaca que a Terra dos Gigantes, circunscrita entre o Rio da Prata

e o Estreito de Magalhães, era habitada por indivíduos que mediam 12 palmos de altura,

e faz as seguintes ressalvas: “Esta região é habitada por uns indígenas possantes, os

chamados patagões, verdadeiros gigantes por sua alta estatura e robusta compleição

física...” (THEVET, 1978, p. 183-184).

Não tardou para que os cartógrafos europeus, das mais diferentes nacionalidades,

escolas e estilos, incorporassem as “novas terras” em seus mapas e cartas náuticas. Desse

modo, vamos encontrar uma das primeiras referências cartográficas à essa lendária região

no mapa intitulado Novae Insulae, de autoria do cosmógrafo e matemático alemão

Sebastian Münster (1488-1552). Esse mapa da América foi publicado em 1540, para

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compor o livro Geographia universalis vetus et nova, uma reedição de Münster da

Geographia de Cláudio Ptolomeu (HORCH, 1988, p. 86).

O autor do referido mapa, Sebastian Münster, nasceu em Ingelheim, na

Alemanha, por volta do ano de 1488. Possuía uma sólida formação humanista, tendo

estudado, matemática, geografia, astrologia, teologia, hebraico e grego. Na cidade de

Tübingen, aprendera cartografia, e teve contado com os estudos geográficos de Ptolomeu.

Foi também professor de hebraico, matemática e geografia na Universidade de

Heidelberg. Em 1530, logo após se converter ao protestantismo, mudou-se para a cidade

de Basiléia, onde viveria os anos mais frutíferos de sua carreira, publicando inúmeros

trabalhos nos campos da filologia, matemática, astronomia e cosmografia (Ibidem, p. 87-

88).

Como podemos ver no quadro abaixo (fig. 1), Novae Insulae apresenta uma

Regio Gigantum isolada na área que engloba a América do Sul, uma vez que outros mitos

europeus, ainda não foram transportados para as terras do Novo Mundo no imaginário

dos cartógrafos europeus. Por sua vez, a localização dessa “Região dos Gigantes” – uma

enorme área situada entre o estuário do Rio da Prata e o Estreito de Magalhães (Fretum

Magaliani), obedece fielmente aos relatos dos cronistas e viajantes europeus.

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Fig. 1. Mapa da América intitulado Novae Insulae, XVII – Nova Tabula, de Sebastian Münster. Publicado

em Basiléia, no ano de 1540. Domínio Público: Disponível em: https://www.doria.fi/handle/10024/84483.

Acesso em: 04 de junho de 2020.

Contudo, vale destacar, a primeira representação cartográfica desses gigantes da

Terra do Fogo, encontra-se no Mapa-Múndi de 1544, produzido pelo cosmógrafo italiano

Sebastião Caboto (1476 – 1557). Supunha-se que Caboto tenha nascido em Veneza, entre

os anos de 1479 a 1484. Ao contrário de outros cartógrafos de seu tempo, realizou

diversas viagens exploratórias, incluindo uma expedição para à América do Sul no ano

de 1526 (GUEDES, 2012, p. 50).

No referido mapa, vemos um indivíduo que aparenta uma grande estatura e está

posicionado quase fora da porção continental, nas proximidades do Estreito de

Magalhães. O “gigante” traz em sua mão esquerda uma espécie de escudo e, na direita,

um longo porrete de madeira, tem pele escura e o corpo coberto por um vestido longo e

listrado. Como se vê, esse mapa localiza a Regio Gigantum nos limites territoriais da

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América do Sul (fig. 2). Um texto em latim e espanhol, gravado no relevo do gráfico, não

deixa dúvidas para o espectador, ao comentar o périplo de Magalhães e a natureza dos

habitantes do estreito:

Este estreito de todos os santos descobriu Fernão de Magalhães, capitão que

ordenou fazer a S. c. c. m. do Imperador Dom Carlos, o Rei e nosso senhor

para o descobrimento das ilhas Maluco. Há nesse estreito homens de tão grande

estatura que parecem gigantes, é terra muito deserta, e se vestem [os gigantes]

da pele de animais.1

Fig. 2. Um gigante patagão em pé nas proximidades do Estreito de Magalhães. Fragmento extraído do

Mapa-Múndi de Sebastião Caboto. Publicado em 1544. Cortesia da Biblioteca Nacional da França.

Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b55011003p/f1.item.zoom. Acesso em: 22 de agosto

de 2020.

Um dos mapas mais emblemáticos na representação da fabulosa “Região dos

Gigantes”, fora publicado na cidade de Antuérpia no ano de 1562, resultado de uma

parceria entre o cosmógrafo espanhol Diego de Gutiérrez e o gravador flamengo

Hieronymus Cock (1510-1570).

1 Tradução nossa. Em espanhol: “Este estrecho detodos santos descubrio Hernando de Magalhanes,

Capitan que mando hazar la S. c. c. m. del Imperator Dom Carlos y Rey nuestro sennor para el

descubrimiento delas islas Maluco. Ay eneste estrecho hombres de tan grande estatura que parecen

Gigantes, es tierra muy desierta, y visten se de pielos de animales” (CABOT, 1544, Tabvla Prima).

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São imprecisas as informações sobre a vida de Diego de Gutiérrez. Sabe-se,

contudo, que era cosmógrafo oficial da Casa de Contratação de Sevilha, fundada em 1503

pelos Reis Católicos – a Rainha Dona Isabel de Castela e o Rei Dom Fernando II de

Aragão. Antonio Sánchez Martínez (2010), em um estudo em que analisou essa

instituição burocrática, faz as seguintes observações:

A partir de 1508, com a criação do cargo de Piloto-Chefe, e a produção de um

mapa modelo chamado Padrão Real, a Casa converteu-se em uma dependência

administrativa da monarquia, habilitada a produzir representações

demográficas dos descobrimentos espanhóis, em um lugar reprodutor de

imagens, de modelos visuais que mostravam como era o mundo visto da

Península Ibérica, definitivamente, a imagem oficial do mundo...

(MARTÍNEZ, 2010, p. 724).

Hieronymus Cock, encarregado de inserir as gravuras no mapa de Gutiérrez,

nasceu em Antuérpia por volta de 1510. Entre os anos de 1546 e 1548 foi estudar em

Roma, onde recebera a influência de artistas renomados. De volta ao seu país de origem,

em 1548, fundou uma das principais editoras europeias do período. É importante

enfatizar, que no contexto em que Cock desenhava seus mapas, a cidade de Antuérpia

havia se convertido no principal polo comercial e cultural da Europa (CORTESÃO, 1965,

p. 96. Tais fatores, proporcionaram o desenvolvimento de uma pujante e moderna

cartografia, cujo apreço pela ornamentação, visava atender um público ávido por

novidades (Ibidem, 100-101).

O mapa de 1562, é antes de tudo, um documento de caráter oficial, que refletia

muito bem as pretensões territoriais da Coroa Espanhola na América. De acordo como

historiador estadunidense John R. Hébert:

O magnífico mapa da América de 1562, de Gutiérrez, não pretendia ser um

documento científico ou de navegação, embora fosse de grande escala e

permanecesse como o maior mapa da América por um século. Era, antes, um

mapa cerimonial, um mapa diplomático, identificado pelos brasões que

proclamavam posse. Através do mapa, a Espanha proclamou para as nações da

Europa Ocidental seu território americano, delineando claramente sua esfera

de controle, não em graus, mas com o surgimento de uma linha muito ampla

para o Trópico de Câncer claramente desenhada no mapa.2

2 Tradução nossa. Em inglês: “Gutiérrez 's magnificent 1562 map of America was not intended to be a

scientifically or navigationally exacting document, although it was of large scale and remained the largest

map of America for a century. It was, rather, a ceremonial map, a diplomatic map, as identified by the

coats of arms proclaiming possession. Through the map, Spain proclaimed to the nations of Western

Europe its American territory, clearly outlining its sphere of control, not by degrees, but with the

appearance of a very broad line for the Tropic of Cancer clearly drawn on the map” (HÉBERT, online).

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No excerto do mapa de Gutiérrez, na parte que representa a “Tierra de

Patagones” (fig. 3), vemos o encontro de um soldado espanhol com dois americanos de

tamanho desmesurado. O desenho apresenta elementos iconográficos muito bem

definidos, de acordo com os padrões da arte renascentista: Enquanto o estrangeiro carrega

indumentárias típicas – lança, armadura e espada, os gigantes têm o corpo parcamente

coberto por roupas feitas da pele de animais, e suas armas rudimentares são, o arco e a

flecha, aspectos que realça seu primitivismo e selvageria.

Nota-se ainda, que abaixo dos indivíduos encontra-se a inscrição “Gigantum

Regio”, termo que reforça as características dos habitantes dessa região. Um detalhe da

imagem que chama a atenção é a altura do patagões, representados em conformidade com

os relatos de Pigafetta, que ao descrever em seu diário o encontro com um gigante

solitário, afirmou: “Este homem era tão grande que nossas cabeças chegavam apenas até

à sua cintura” (PIGAFETTA, 2019, p. 58-59).

Fig. 3. Gigantum Regio. Fragmento do mapa da América de Diego Gutiérrez. Publicado em Antuérpia no

ano de 1562. Cortesia da Divisão de Geografia e Mapa da Biblioteca do Congresso Washington, DC.

Disponível em: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g3290.ct000342. Acesso em: 22 de agosto de 2020.

Do início do século XVII, encontramos um belíssimo mapa da América

Meridional de autoria do gravador e impressor belga, Levinus Hulsius (1546-1606). A

carta foi desenhada para compor a“Vierte Schiffart" (Quarta Viagem), relato da excursão

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do soldado bávaro Ulrich Schmidel, ao Brasil e ao Rio da Prata entre os anos de 1534-

1554. Levinus Hulsius ou Levin Hulsius, descendente de uma família abastada, nasceu

em 1546 no noroeste da Bélgica, precisamente na cidade portuária de Gante. No ano de

1590, após ter passado alguns anos em Frankfurt am Main, fixou residência em

Nuremberg, onde se tornou um importante editor, lexicógrafo, fabricante e comerciante

de instrumentos matemáticos e de astronomia (JIMÉNEZ, 2014, p. 56).

No mapa de Hulsius vemos que um soldado europeu observa atentamente um

patagão inserir uma seta na garganta, ato que denota primitivismo e selvageria (fig. 4).

Tal prática fora relatada por Pigafetta que afirmou:

Mesmo sendo selvagens, esses índios desenvolveram uma espécie de

medicina. Quando estão doentes do estômago, por exemplo, em vez de

tomarem um purgante, como nós, eles introduzem uma flecha na boca, o mais

que podem, para provocar o vômito, expelindo uma matéria verde mesclada

com sangue. A cor verde provém de um tipo de caldo de que se alimentam

(PIGAFETTA, 2019, p. 63).

Outro detalhe que chama a atenção nessa carta da América do Sul, é o topônimo

“Montaña de Gigantes”, demonstrando a incorporação definitiva do mito à toponímia.

Mikhail Bakhtin (1987) observa que toda lenda de gigantes estabelece uma relação direta

com o relevo dos lugares onde são originárias: “[...] a lenda encontra sempre um ponto

de apoio concreto no relevo regional, encontra na natureza o corpo desmembrado do

gigante, espalhado ou amassado” (BAKHTIN, 1987, p. 299-300).

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Fig. 4. Fragmento do mapa de Levinus Hulsius, 1602. Cortesia da Cortesia da Divisão de Geografia e Mapa

da Biblioteca do Congresso Washington, DC. Disponível em: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5200.rb000009.

Acesso em: 22 de agosto de 2020.

Conclusão

Conforme constatamos em nosso estudo, poucos temas oriundos do imaginário

europeu foram tão duradouros e persistentes em sua difusão na cartografia europeia, como

o mito da Regio Gigantum. Acreditamos que essa longevidade se deve à inflexibilidade

dos cartógrafos com as mudanças mais bruscas das linhas e dos traçados. Isso significa

dizer que, artífices provenientes das mais variadas escolas e estilos, reproduziam por

décadas a fio, exemplares muito semelhantes em forma e conteúdo. Acrescenta-se à essa

durabilidade do mito, a natureza peculiar da “Patagônia”, inóspita, de difícil acesso,

relevo montanhoso e entrecortado – terra fértil para propagação do mito dos gigantes. Por

fim, vale destacar que a reprodução da lenda “patagônica” nos mapas dos séculos XVI e

XVII, repercutia o embate europeu sobre o processo de colonização e exploração do Novo

Mundo.

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