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214 Rev. TST, Brasília, vol. 79, n o 4, out/dez 2013 A TERCEIRIZAÇÃO COMO REGRA? Ricardo Antunes * Graça Druck ** INTRODUÇÃO O capitalismo, em suas décadas mais recentes, vem apresentando um movimento tendencial em que terceirização, informalidade, precariza- ção, materialidade e imaterialidade são mecanismos vitais, tanto para a preservação quanto para a ampliação da sua lógica. Em plena eclosão da mais recente crise global, a partir de 2007/2008, esse quadro se intensificou ainda mais e nos faz presenciar uma corrosão ainda maior do trabalho contratado e regulamentado, que foi dominante ao longo do século XX, de matriz tayloriano/fordista, e que vem sendo substituído pelos mais distintos e diversificados modos de terceirização, informalidade e pre- carização, ampliando os mecanismos de extração do sobretrabalho em tempo cada vez menor. Como o tempo e o espaço estão em frequente mutação, nessa fase de mundialização do capital, estamos presenciando uma explosão de novas mo- dalidades de trabalho, tanto na indústria quanto na agricultura e nos serviços. Assim, a informalidade deixa de ser a exceção para tendencialmente tornar-se a regra e a precarização passa a ser o centro da dinâmica do capita- lismo flexível, se não houver contraposição forte a este movimento tendencial de escala global. * Professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/UNICAMP; autor, dentre outros livros, de “Os Sentidos do Trabalho” (12ª edição, revista e ampliada, Boitempo, publicado também nos EUA, Ingla- terra/Holanda, Itália e Argentina), “Adeus ao Trabalho?” (15ª edição, revista e ampliada, Ed. Cortez, publicado também na Itália, Espanha, Argentina, Venezuela e Colômbia); e “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil”, Vol. I e II, (organização, Boitempo); coordena as coleções “Mundo do Trabalho” (Boitempo) e “Trabalho e Emancipação” (Ed. Expressão Popular); colabora em revistas acadêmicas no país e exterior. ** Professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Univer- sidade Federal da Bahia; pesquisadora do CRH/UFBA e do CNPq; estudiosa na área de sociologia do trabalho, autora do livro “Terceirização: Desfordizando a Fábrica” (Ed. Boitempo e Edufba) e coorganizadora do livro “A Perda da Razão Social do Trabalho: Terceirização e Precarização” (Ed. Boitempo).

A Terceirização Como Regra

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Terceirização

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  • 214 Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 4, out/dez 2013

    A TERCEIRIZAO COMO REGRA?

    Ricardo Antunes*Graa Druck**

    INTRODUO

    Ocapitalismo, em suas dcadas mais recentes, vem apresentando um movimento tendencial em que terceirizao, informalidade, precariza-o, materialidade e imaterialidade so mecanismos vitais, tanto para a preservao quanto para a ampliao da sua lgica.

    Em plena ecloso da mais recente crise global, a partir de 2007/2008, esse quadro se intensificou ainda mais e nos faz presenciar uma corroso ainda maior do trabalho contratado e regulamentado, que foi dominante ao longo do sculo XX, de matriz tayloriano/fordista, e que vem sendo substitudo pelos mais distintos e diversificados modos de terceirizao, informalidade e pre-carizao, ampliando os mecanismos de extrao do sobretrabalho em tempo cada vez menor.

    Como o tempo e o espao esto em frequente mutao, nessa fase de mundializao do capital, estamos presenciando uma exploso de novas mo-dalidades de trabalho, tanto na indstria quanto na agricultura e nos servios.

    Assim, a informalidade deixa de ser a exceo para tendencialmente tornar-se a regra e a precarizao passa a ser o centro da dinmica do capita-lismo flexvel, se no houver contraposio forte a este movimento tendencial de escala global.

    * Professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/UNICAMP; autor, dentre outros livros, de Os Sentidos do Trabalho (12 edio, revista e ampliada, Boitempo, publicado tambm nos EUA, Ingla-terra/Holanda, Itlia e Argentina), Adeus ao Trabalho? (15 edio, revista e ampliada, Ed. Cortez, publicado tambm na Itlia, Espanha, Argentina, Venezuela e Colmbia); e Riqueza e Misria do Trabalho no Brasil, Vol. I e II, (organizao, Boitempo); coordena as colees Mundo do Trabalho (Boitempo) e Trabalho e Emancipao (Ed. Expresso Popular); colabora em revistas acadmicas no pas e exterior.

    ** Professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Univer-sidade Federal da Bahia; pesquisadora do CRH/UFBA e do CNPq; estudiosa na rea de sociologia do trabalho, autora do livro Terceirizao: Desfordizando a Fbrica (Ed. Boitempo e Edufba) e coorganizadora do livro A Perda da Razo Social do Trabalho: Terceirizao e Precarizao (Ed. Boitempo).

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    O texto que segue , portanto, uma contribuio da sociologia crtica do trabalho visando uma compreenso mais profunda dos significados deste movimento, em especial procurando uma melhor compreenso da chamada terceirizao.

    Comecemos por sua expanso recente. Qual foi a contextualidade his-trica que permitiu sua expanso?

    A REESTRUTURAO PRODUTIVA GLOBAL E A ACUMULAO FLEXVEL

    A crise do padro de acumulao taylorista/fordista, que aflorou no fim dos anos 1960 e incio dos anos 1970, fez com que o capital desencadeasse um amplo processo de reestruturao produtiva, visando recuperao do seu ciclo reprodutivo e, ao mesmo tempo, repor seu projeto de hegemonia, que fora ento confrontado pelas foras sociais do trabalho que, especialmente em 1968, questionaram alguns dos pilares da sociedade do capital e de seus mecanismos de controle social (ANTUNES, 2010).

    O capital deflagrou, ento, vrias transformaes no prprio processo produtivo, atravs da constituio das formas de acumulao flexvel, do downsizing, das formas de gesto organizacional, do avano tecnolgico, dos modelos alternativos ao binmio taylorismo/fordismo, nos quais se destaca especialmente o toyotismo ou o modelo japons.

    Opondo-se contra-hegemonia que florescia nas lutas sociais oriundas do trabalho, buscando recuperar seu projeto de dominao societal, o capital deslanchou os processos de acumulao flexvel (HARVEY, 1992), com base nos exemplos da Califrnia, Norte da Itlia, Sucia, Alemanha, dentre tantos outros, com destaque para o chamado toyotismo ou o modelo japons, que se expandiu e se ocidentalizou, a partir dos anos 1980, em escala global, tendo enormes consequncias no mundo do trabalho, atravs da chamada liofilizao organizativa da empresa enxuta.

    Em seus traos mais gerais, possvel dizer que o padro de acumulao flexvel articula um conjunto de elementos de continuidade e de descontinui-dade, que acabam por conformar algo relativamente novo e bastante distinto do padro taylorista/fordista de acumulao.

    Ele se fundamenta num padro produtivo organizacional inspirado na experincia japonesa no ps-guerra e associado ao avano tecnolgico, re-sultado da introduo de tcnicas de gesto da fora de trabalho prprias da fase informacional, bem como da introduo ampliada dos computadores no

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    processo produtivo e de servios. Desenvolve-se em uma estrutura produtiva mais flexvel, atravs da desconcentrao produtiva, das redes de subcontra-tao (empresas terceirizadas), do trabalho em equipe, do salrio flexvel, das clulas de produo, dos times de trabalho, dos grupos semiautnomos, alm de exercitar, ao menos no plano discursivo, o envolvimento participa-tivo dos trabalhadores. O trabalho polivalente, multifuncional, qualifi-cado, combinado com uma estrutura mais horizontalizada e integrada entre diversas empresas, inclusive nas empresas terceirizadas, tem como finalidade a reduo do tempo de trabalho. Mais recentemente, as prticas das metas, das competncias, realizadas pelos colaboradores, tornou-se a regra no iderio empresarial.

    Reengenharia, lean production, team work, eliminao de postos de tra-balho, aumento da produtividade, qualidade total, envolvimento, terceirizao ampliada, tudo isso passa a integrar a pragmtica da empresa flexvel. Como paralelo, vale a referncia: se no apogeu do taylorismo/fordismo a pujana de uma empresa mensurava-se pelo nmero de operrios que nela exerciam sua atividade laborativa a era do operrio-massa , pode-se dizer que na era da acumulao flexvel e da empresa enxuta so merecedoras de destaque as empresas que mantm menor contingente de trabalhadores e, apesar disso, aumentam seus ndices de produtividade.

    Os resultados so alarmantes em relao ao mundo do trabalho: desre-gulamentao dos direitos do trabalho em escala global; terceirizao da fora de trabalho nos mais diversos setores e ramos produtivos e de servios; derrota do sindicalismo autnomo e sua converso num sindicalismo de parceria, mais negocial e menos conflitivo.

    De modo sinttico, podemos dizer que o toyotismo e a empresa flexvel se diferenciam do fordismo basicamente nos seguintes traos1:

    1) uma produo diretamente vinculada demanda, diferenciando-se da produo em srie e de massa do taylorismo/fordismo;

    2) depende do trabalho em equipe, com multivariedade de funes, rompendo com o carter parcelar tpico do fordismo;

    3) ela se estrutura num processo produtivo flexvel, que possibilita ao operrio operar simultaneamente vrias mquinas, diferentemente da relao homem/mquina em que se baseava o taylorismo/fordismo;

    1 Ver, sobre o toyotismo: ANTUNES, 2010 e 2013; DRUCK, 1999; GOUNET, 1999; SHIMIZU, 1994; ICHIYO, 1995; CORIAT, 1991; SAYER, 1986; KAMATA, 1985.

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    4) tem como princpio o just in time, isto , a produo deve ser efetivada no menor tempo possvel;

    5) desenvolve-se o sistema de kanban, senhas de comando para reposio de peas e de estoque, uma vez que no toyotismo os estoques so os menores possveis, em comparao ao fordismo;

    6) as empresas do complexo produtivo toyotista tm uma estrutura horizontalizada, ao contrrio da verticalidade fordista. Enquanto na fbrica fordista aproximadamente 75% da produo era realizada no seu interior, a f-brica toyotista responsvel por somente 25% e a terceirizao/subcontratao passa a ser central na estratgia patronal. Essa horizontalizao estende-se s subcontratadas, s firmas terceirizadas, acarretando a expanso dos mtodos e procedimentos para toda a rede de subcontratao. E essa tendncia vem se intensificando ainda mais e nos dias atuais, nos quais a empresa flexvel defende e implementa a terceirizao no s das atividades-meio, mas tambm das atividades-fim;

    7) desenvolve a criao de crculos de controle de qualidade (CCQs), visando a melhoraria da produtividade das empresas e permitindo s empresas apropriar-se do savoir faire intelectual e cognitivo do trabalho, que o fordismo desprezava.

    Desse modo, flexibilizao, terceirizao, subcontratao, crculo de controle de qualidade total, kanban, just in time, kaizen, team work, eliminao do desperdcio, gerncia participativa, sindicalismo de empresa, entre tantos outros pontos, tornaram-se dominante no universo empresarial.

    Inspirando-se inicialmente na experincia do ramo txtil, no qual o tra-balhador operava simultaneamente vrias mquinas e tambm na experincia dos supermercados dos EUA, que originaram o kanban, o toyotismo e mais amplamente a empresa flexvel aumentaram significativamente a produtivida-de do trabalho, uma vez que os trabalhadores operam simultaneamente com vrias mquinas diversificadas, com maior ritmo e velocidade da cadeia pro-dutiva, alm da decisiva apropriao das atividades intelectuais do trabalho, interagindo com um maquinrio automatizado, informatizado e digitalizado, que possibilitou a retomada do ciclo de valorizao do capital em detrimento dos direitos do trabalho, que passaram a sofrer um significativo processo de eroso e corroso. E esse processo foi responsvel pela acentuao das formas de precarizao do trabalho (ICHIYO, 1995, p. 45-46; GOUNET, 1991, p. 41; CORIAT, 1992, p. 60; ANTUNES, 2013, p. 27-28). O entendimento cuidadoso

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    dessa tendncia informalidade nos leva a buscar uma melhor compreenso da chamada terceirizao.

    Uma fenomenologia preliminar dos modos de ser da precarizao de-monstra a ampliao acentuada de trabalhos submetidos a sucessivos contratos temporrios, sem estabilidade, sem registro em carteira, trabalhando dentro ou fora do espao produtivo das empresas, quer em atividades mais instveis ou temporrias, quando no na condio de desempregado2. Crescentemente, a busca da racionalidade instrumental do capital vem impulsionando as empresas flexibilizao das relaes de trabalho, da jornada, da remunera-o, reintroduzindo novas relaes e formas de trabalho que frequentemente assumem feio informal.

    A substituio do trabalho contratado e regulamentado, dominante no sculo XX e sua substituio pelas modalidades atpicas de trabalho, como o empreendedorismo, cooperativismo, trabalho voluntrio, etc., cada vez mais parecem se configurar como formas ocultas de trabalho que permitem aumentar ainda mais as distintas formas de flexibilizao salarial, de horrio, funcional ou organizativa (ANTUNES, 2013a).

    nesse quadro, marcado por um processo tendencial de precarizao estrutural do trabalho, em amplitude global, que a Europa e os EUA so exem-plares que os capitais transnacionais esto exigindo tambm o desmonte da legislao social protetora do trabalho nos mais distintos pases. Flexibilizar a legislao social do trabalho significa, imperioso dizer, quando se toma a sociologia do trabalho realizada com rigor, que esto se ampliando as formas de precarizao e destruio dos direitos sociais que foram arduamente con-quistados pela classe trabalhadora, desde o incio da Revoluo Industrial, na Inglaterra, e especialmente ps-1930, quando se toma o exemplo brasileiro (idem).

    Estamos, portanto, frente a uma nova fase de desconstruo do trabalho sem precedentes em toda a era moderna, ampliando os diversos modos de ser da informalidade e da precarizao do trabalho, que revelam um processo de metamorfose da velha e histrica precariedade. A informalidade no sinnimo de precariedade, mas a sua vigncia expressa formas de trabalho desprovido de direitos e, por isso, encontra clara sintonia com a precarizao. Apontar suas conexes, suas inter-relaes e suas vinculaes torna-se, entretanto, impres-cindvel. Se no sculo XX presenciamos a vigncia da era da degradao do

    2 Em Riqueza e Misria do Trabalho no Brasil (v. I e II) h um desenho amplo das caractersticas prin-cipais da informalidade, bem como das diferentes dimenses do processo de precarizao no Brasil (ANTUNES, 2006 e 2013).

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    trabalho, nas ltimas dcadas do sculo XX e incio do XXI estamos defronte a novas modalidades e modos de ser da precarizao, da qual a terceirizao tem sido um de seus elementos mais decisivos.

    A PRECARIZAO DO TRABALHO E A TERCEIRIZAO NO BRASIL

    No quadro mais geral da dinmica da acumulao flexvel, a precarizao social contempornea do trabalho se torna o centro das transformaes produ-tivas do capitalismo em suas vrias dimenses. Nesta ltima dcada no Brasil, o crescimento e a difuso da terceirizao a reafirma como uma modalidade de gesto, organizao e controle do trabalho num ambiente comandado pela lgica da acumulao financeira, que, no mbito do processo de trabalho, das condies de trabalho e do mercado de trabalho, exige total flexibilidade em todos os nveis, instituindo um novo tipo de precarizao que passa a dirigir a relao capital-trabalho em todas as suas dimenses. E, num quadro em que a economia est comandada pela lgica financeira sustentada no curtssimo prazo, as empresas do setor industrial buscam garantir seus altos lucros, exi-gindo e transferindo aos trabalhadores a presso pela maximizao do tempo, pelas altas taxas de produtividade, pela reduo dos custos com o trabalho e pela volatilidade nas formas de insero e de contratos. o que sintetiza a terceirizao, que, como nenhuma outra modalidade de gesto, garante e efetiva essa urgncia produtiva determinada pelo processo de financeirizao ao qual esto subordinados todos os setores de atividade, j que so tambm agentes e scios acionistas do capital financeiro (DRUCK, 2011).

    No plano do mercado de trabalho, no qual se estabelecem as relaes de compra e venda da fora de trabalho, as formas de insero, os tipos de contrato, os nveis salariais, as jornadas de trabalho, definidos por legislao ou por negociao, expressam um recrudescimento da mercantilizao, no qual o capital reafirma a fora de trabalho como mercadoria, subordinando os trabalhadores a uma lgica em que a flexibilidade, o descarte e a superfluida-de so fatores determinantes para um grau de instabilidade e insegurana no trabalho, como nunca antes alcanado. Assim, a terceirizao assume centra-lidade na estratgia patronal, j que as suas diversas modalidades (tais como cooperativas, pejotizao, organizaes no governamentais, alm das redes de subcontratao) concretizam contratos ou formas de compra e venda da fora de trabalho, nos quais as relaes sociais a estabelecidas entre capital e trabalho so disfaradas ou travestidas em relaes interempresas/instituies, alm do estabelecimento de contratos por tempo determinado, flexveis, de acordo com os ritmos produtivos das empresas contratantes e as quase sempre

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    imprevisveis oscilaes de mercado que desestruturam o trabalho, seu tempo e at mesmo a sua sobrevivncia.

    No mbito do processo e organizao do trabalho, as mudanas nas po-lticas de gesto, inspiradas no toyotismo e na acumulao flexvel, conforme j referido, tem como uma das principais prticas o uso da terceirizao.

    No caso brasileiro, constata-se uma verdadeira epidemia nas ltimas duas dcadas, que contaminou a indstria, os servios, a agricultura, o servio pblico, generalizando-se tambm no s para as chamadas atividades-meio, mas tambm para as atividades-fim. Nesse campo da organizao do traba-lho , se evidencia, atravs da terceirizao, condies de trabalho e salariais que definem trabalhadores de primeira e segunda categorias, como porta para o trabalho anlogo ao de escravo, e em que a discriminao se d no apenas por parte da empresa contratante, mas tambm entre os prprios trabalhado-res contratados diretamente e os chamados terceiros, cuja denominao j revela a distino ou a condio aparte, de fora, externa. As diferenas entre uns e outros se explicitam no tipo de treinamento, que, em geral, menor para os terceirizados, no acesso limitado s instalaes da empresa (a exemplo de refeitrios e vestirios), nas revistas na entrada e sada da empresa, nas jornadas mais extensas, na intensificao do trabalho, na maior rotatividade, nos salrios menores, nas mais arriscadas condies de (in)segurana, dentre outras.

    Essas condies mais precrias de trabalho determinam uma outra di-menso, que tambm expressa a discriminao e a inferioridade dos trabalha-dores subcontratados, que o campo da sade e segurana no trabalho, pois todas as diferenas referidas anteriormente tm graves implicaes sobre as situaes de riscos a que so submetidos esses trabalhadores. O adoecimento ocupacional padece de um acompanhamento regular, dada a instabilidade e ro-tatividade dos terceirizados que saltam de uma para outra empresa ou mesmo setor de atividade, impedindo de se identificar o tipo de ambiente de trabalho que gerou o adoecimento e dificultando, desta forma, o nexo causal entre a doenas e o trabalho. Ao lado do adoecimento, os acidentes de trabalho so, invariavelmente, em maior nmero entre os trabalhadores terceirizados, assim como as estatsticas sobre vtimas fatais indicam um ndice maior entre eles (SELIGMANN-SILVA, 1994; FRANCO, 2003; DRUCK, 2011; SAMPAIO, 2000; DIEESE-CUT, 2011).

    No que se refere ao coletivo de trabalhadores, a terceirizao fragmenta, divide, aparta, desmembra as identidades coletivas, individualiza e cria con-corrncia entre os que trabalham muitas vezes no mesmo local, nas mesmas funes, mas esto separados de fato e simbolicamente pelo crach diferente

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    e pelos diferentes uniformes, que identificam os de primeira e de segunda categoria3.

    Um apartheid que tem implicao direta sobre a potencialidade da ao coletiva e sindical, como um outro campo do trabalho, medida que a tercei-rizao impe uma pulverizao dos sindicatos, ocorrendo muitas vezes que numa mesma empresa os diferentes setores terceirizados, a exemplo da limpeza, vigilncia, alimentao, manuteno, etc., congregam trabalhadores que esto enquadrados e representados por diferentes sindicatos.

    Por fim, uma sexta dimenso da precarizao do trabalho revelada pela terceirizao: trata-se de como ela encobre e oculta as relaes de trabalho entre a empresa contratante e os trabalhadores subcontratados, intermediadas por uma terceira, seja na forma de empresa, cooperativa, PJ (empresa do eu sozinho), ONG, se eximindo da responsabilidade formal pelos trabalhadores e, desta forma, burlando a legislao trabalhista, seja no claro descumprimento ao Enunciado n 331 ou na transferncia dos custos do trabalho (dos direitos sociais e trabalhistas regidos pela CLT) para a terceira que frequentemente est ali intermediando a contratao dos trabalhadores, pois a empresa contratante que de fato gere, organiza e controla o processo de trabalho dos terceirizados.

    Nesse ltimo campo ou dimenso, trata-se da regulao dos direitos trabalhistas, na qual o Estado e as instituies que operam o direito do trabalho no Brasil (Auditores fiscais do trabalho, Promotores do Ministrio Pblico do Trabalho e Juzes da Justia do Trabalho) cumprem um papel essencial para assegurar o respeito CLT e outros instrumentos de regulao, ou seja, tem a funo de manter vivo o direito do trabalho, que tem por objetivo colocar limites ao processo de explorao capitalista do trabalho diante da relao assimtrica e desigual entre empresrios e empregados. E isso que est sendo colocado em xeque hoje em nosso pas, atravs do Projeto de Lei n 4.330, que prope a total liberalizao da terceirizao, proposto e defendido pelo empresariado, bem como as 101 propostas para modernizao trabalhista da Confederao Nacional da Indstria, que, em sntese, defende o fim da CLT.

    3 Em pesquisa nas empresas petroqumicas e qumicas na Bahia, onde foram entrevistados 358 traba-lhadores diretamente contratados por 52 empresas do setor, em 2000, revela-se como a terceirizao vista pelos trabalhadores desse segmento industrial. Perguntados se gostariam de ser terceirizados, 93% responderam que no. Dentre esses, as principais justificativas para no ser terceirizado foram: para 47%, a perda de direitos, de benefcios, de recompensa e de salrios. Para 11%, instabilidade e insegurana; e, para 7%, faltam condies de trabalho. Os demais entrevistados indicaram motivos diversos, que podem ser sintetizados em: discriminao, desvalorizao e humilhao. Relatrio da Pesquisa Campanha Salarial 2000, Sindicato dos Qumicos e Petroleiros e Centro de Recursos Humanos/UFBA.

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    UMA BREVE RADIOGRAFIA DA TERCEIRIZAO NO BRASIL

    As pesquisas mais recentes sobre terceirizao, em vrias regies do Brasil, tm chegado, invariavelmente, aos mesmos resultados, confirmando uma epidemia sem controle4.

    Conforme observado por Druck e Franco (2007), nos anos 2000, a terceirizao cresceu em todas as direes, destacadamente no setor pblico e nas empresas estatais. No caso do setor privado, atingiu as reas nucleares das empresas e passou a usar novas modalidades, a exemplo das cooperativas, das empresas pejotizadas e do trabalho em domiclio, tambm chamado de teletrabalho. Os diversos setores pesquisados nestes anos, como bancrios, telemarketing, petroqumico, petroleiro, alm das empresas estatais e priva-tizadas de energia eltrica, comunicaes, assim como nos servios pblicos de sade, revelam, alm do crescimento da terceirizao, as mltiplas formas de precarizao dos trabalhadores terceirizados em todas estas atividades: nos tipos de contrato, na remunerao, nas condies de trabalho e de sade e na representao sindical.

    sabido que no h estatsticas precisas sobre a terceirizao no Brasil, dada a dificuldade de capt-las junto s empresas, mas o Dieese, atravs da PED Pesquisa de Emprego e Desemprego, estimou, para as principais regies metropolitanas, que, em 2009, 11,6% dos empregados urbanos eram subcon-tratados em servios terceirizados e autnomos que trabalhavam para empre-sas. Em estudo mais recente (DIEESE-CUT, 2011), registrava que em 2010 os setores tipicamente terceirizados correspondiam a 25,5% dos empregos formais no Brasil. Nesse mesmo estudo, um conjunto de indicadores revela as desigualdades entre trabalhadores terceirizados e os demais, pois a remunerao dos empregados em setores tipicamente terceirizados 27,1% menor do que a dos demais empregados; a jornada de trabalho de trs horas a mais para os terceirizados; o tempo de permanncia no emprego 55,5% menor do que o dos demais empregados; e a taxa de rotatividade nas empresas tipicamente terceirizadas de 44,9%, enquanto nas demais empresas de 22,0%.

    Para o Estado de So Paulo, Pochmann (2012) mostra a evoluo do nmero de trabalhadores formais em atividades tipicamente terceirizveis, que salta de 110 mil em 1995 para mais de 700 mil em 2010. No perodo 1996-2010 o crescimento mdio anual do emprego formal terceirizado foi de 13,1% ao ano e de 12,4% o aumento mdio anual do nmero de empresas.

    4 Ver o amplo leque de pesquisas sobre diversos ramos de atividade em: ANTUNES, 2006 e 2013. Ver tambm: POCHMANN, 2012; DIEESE-CUT, 2011; FILGUEIRAS, 2012; SOUZA, 2012.

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    Em pesquisa realizada no Polo Petroqumico de Camaari, na Bahia5, em 2004, essas tendncias tambm se confirmaram, pois houve a difuso e generalizao da terceirizao para todas as reas de atividade das empresas; cresceu a proporo de trabalhador terceirizado/subcontratado por trabalhador contratado diretamente: para 10 empresas que forneceram essas informaes, se constatou a relao de 63,7% de trabalhadores terceirizados contra apenas 36,3% de trabalhadores contratados diretamente; houve a diversificao e im-plementao de novas modalidades, encontrando-se: empresas prestadoras de servios especializados no industrial, locadoras de mo de obra, cooperativas, prestador de servios/firma individual (empresa filhote) e ONG/Entidades sem Fins Lucrativos; e para um subconjunto de seis empresas que forneceram informaes sobre remunerao de trabalhadores contratados e terceirizados, o custo do trabalhador subcontratado varia de 1,4 a 5 vezes menor do que o do trabalhador contratado.

    No que concerne s condies de sade e segurana no trabalho, as informaes de estudos de casos revelam o quanto os terceirizados esto mais vulnerveis, dadas as condies mais precrias de trabalho, nas quais o grau de riscos e de acidentes tm sido maiores. o caso de setores estratgicos e tambm considerados como perigosos, como o de energia eltrica, extrao e refino de petrleo e siderurgia. Um estudo da subseo do Dieese do Sindiele-tro Minas Gerais realizado em 2010, com base em dados da Fundao Coge, revelou que entre 2006 e 2008 morreram 239 trabalhadores por acidente de trabalho, dentre os quais 193, ou 80,7%, eram trabalhadores terceirizados. A taxa de mortalidade mdia entre os trabalhadores diretos no mesmo perodo foi de 15,06%, enquanto que entre trabalhadores terceirizados foi de 55,53% (DIEESE, 2011).

    Para o caso da Petrobras, dados da FUP Federao nica dos Petrolei-ros da CUT mostram que de 1995 at 2010 foram registradas 283 mortes por acidentes de trabalho, das quais 228 ocorreram com trabalhadores terceirizados. Nmeros que, se por um lado, expressam a proporo entre trabalhadores con-tratados diretamente pela empresa e o nmero de terceirizados, em 2012 era de quatro terceirizados para cada funcionrio efetivo6, por outro, revelam tambm que h diferenas nos tipos de treinamento, nas polticas de segurana e sade e nas jornadas de trabalho, que variam de acordo com o crach da empresa7.

    5 Ver anlise apresentada em: DRUCK, Graa; FRANCO, Tnia (2007).6 De acordo com o Relatrio de Sustentabilidade (PETROBRAS, 2012, p. 160), a estatal contava com

    85.065 empregados e 360.372 terceirizados.7 Conforme depoimentos de dirigentes sindicais: bem conhecida pelo conjunto dos trabalhadores a

    desigualdade das condies de segurana nas empresas da categoria (...). Frequentemente os tercei-

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    O crescimento da terceirizao na Eletrobras tambm alarmante, em 2011 haviam 8.248 terceirizados e em 2012 subiram para 12.815, 55% em um ano, enquanto o nmero de empregados cresceu apenas 13%8.

    Em contraposio ao discurso empresarial que justifica a terceirizao como parte da modernizao das empresas na era da globalizao, como expresso da especializao e focalizao dos negcios, as investigaes de instituies acadmicas e sindicais, assim como os registros de experincias e estudos de operadores do direito do trabalho no Brasil, atestam que as empresas terceirizam porque realizam a transferncia de riscos para os trabalhadores, se desobrigando em relao aos direitos trabalhistas, em nome da reduo de custos. Assim, transfere para uma terceira a responsabilidade pelo comprimento da legislao do trabalho, enquanto a gesto do processo do trabalho feita, em geral, pela prpria tomadora; ou seja, esta repassa a responsabilidade legal, mas no a gesto. Isso explica o nmero de processos na Justia do Trabalho e no Tribunal Superior do Trabalho contra as empresas tomadoras, conforme justificativa do edital de convocao da Audincia Pblica sobre Terceirizao convocada pelo TST, em 2011.

    Em sntese, a terceirizao o fio condutor da precarizao do trabalho no Brasil, e se constitui num fenmeno omnipresente em todos os campos e dimenses do trabalho, pois uma prtica de gesto/organizao/controle que discrimina, ao mesmo tempo em que uma forma de contrato flexvel e sem proteo trabalhista, tambm sinnimo de risco de sade e de vida, respon-svel pela fragmentao das identidades coletivas dos trabalhadores, com a intensificao da alienao e da desvalorizao humana do trabalhador, assim como um instrumento de pulverizao da organizao sindical, que incentiva a concorrncia entre os trabalhadores e seus sindicatos, e ainda a terceirizao pe um manto de invisibilidade dos trabalhadores na sua condio social, como facilitadora do descumprimento da legislao trabalhista, como forma ideal para o empresariado no ter limites (regulados pelo Estado) no uso da fora de trabalho e da sua explorao como mercadoria.

    rizados, embora em uma mesma planta industrial, por vezes desenvolvendo as atividades com maior exposio ao risco, esto completamente desprotegidos coletiva e individualmente. Quando da ocor-rncia de acidentes, tem sido habitual a omisso das empresas principais contratantes, alegando que no tm nada a ver com o trabalhador e que o contrato de servio e no de pessoal. (...) O nmero de vtimas crescente entre os trabalhadores terceirizados (SINDIQUMICA, 2001, p. 7 apud DRUCK; FRANCO, 2007).

    8 Segundo Relatrio Anual e de Sustentabilidade (Eletrobras, 2012, p. 184).

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    O PROJETO DE LEI N 4.330: A TERCEIRIZAO COMO REGRA?

    Mais recentemente, a inexistncia de uma legislao especfica que limite ou proba a terceirizao tem sido debatida numa perspectiva de sua total liberalizao. Est para ser votado no Congresso Nacional o Projeto de Lei n 4.330, de 2004, que dispe sobre o contrato de prestao de servios a terceiros e as relaes de trabalho dele decorrentes, de autoria do deputado Sandro Mabel, empresrio do setor de alimentao.

    O Enunciado n 331, de 1993, do Tribunal Superior do Trabalho, apesar de colocar alguns limites, ainda impotente para balizar os julgamentos das diversas modalidades de terceirizao e no tem impedido o seu brutal cres-cimento nestes ltimos 17 anos, mesmo que, em algumas situaes pontuais, tenha propiciado a condenao de empresas pblicas, privadas e a administrao direta do Estado.

    No que se refere atuao do poder pblico, especialmente o Ministrio Pblico do Trabalho (MPT) e o Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE), atra-vs da fiscalizao dos auditores do trabalho, inmeras so as notcias sobre os processos, as condenaes e sanes em curso nessas instituies que envolvem a terceirizao, quando considerada ilcita (de acordo com o Enunciado n 331).

    No caso do MPT, h uma definio de setores/empresas prioritrias a serem investigadas, que toma por base as denncias de trabalhadores e de suas entidades de representao. Nos ltimos anos so os centros industriais mais importantes em cada regio do pas que tm sido objeto de denncia e investi-gao, como o caso das siderrgicas e da terceirizao do processo produtivo de carvo e reflorestamento em Minas Gerais. Nos ltimos oito anos, o rgo ajuizou 23 aes civis pblicas contra cerca de 40 empresas da rea. No interior de So Paulo, que abrange 599 municpios, o MPT da 15 Regio props 24 aes civis pblicas e firmou 104 Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) nos ltimos dois anos. Os municpios de Campinas, So Jos dos Campos e So Carlos, que abrigam diversas multinacionais, foram alvo das principais aes.

    Na Bahia, o Polo Petroqumico de Camaari tem sido objeto de investiga-o e, desde 2008 at o incio de 2010, o MPT firmou 23 TACs com empresas e ajuizou seis aes (RAMIRES, 2010). Em 2008, o rgo ajuizou ao civil pblica contra a Empresa Baiana de guas e Saneamento S/A (Embasa) por terceirizar mo de obra para a prestao de servios ligados sua atividade-fim. A Justia do Trabalho julgou procedente a ao e determinou a realizao de concurso pblico para a contratao de mo de obra no prazo mximo de 15 dias, indenizao por dano moral coletivo no valor de R$ 400 mil e, em caso

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    de descumprimento das obrigaes, multa diria de R$ 5 mil, por trabalhador encontrado em situao irregular (TRT5.jus.br).

    No mbito das fiscalizaes do Ministrio do Trabalho, so encontradas as mesmas tendncias, isto , a terceirizao ilcita: via intermediao de mo de obra, contratao de empresas fantasmas e atividades nucleares desenvolvidas por trabalhadores terceirizados sob a gerncia da contratante.

    Quando se analisam as decises do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-BA), encontram-se, para a regio da Bahia, 61 processos com sentenas definidas somente em 2010, contra 53 em 2009, 48 em 2008 e 44 em 20079.

    Mais recentemente, em agosto de 2010, o Tribunal de Contas da Unio (TCU) recomendou o fim da contratao de terceirizados nas empresas esta-tais, sugerindo um prazo de cinco anos para substituio desses empregados por concursados. Isso porque foram identificadas vrias irregularidades, com um grande nmero de terceirizados exercendo funes previstas em planos de carreiras, conforme afirmou o ministro-relator.

    Assim, possvel afirmar que, apesar da limitada legislao em vigor em relao terceirizao, algumas iniciativas do poder pblico em suas diversas instituies manifestam tentativas de contornar ou limitar a epidemia da ter-ceirizao no pas. As notificaes, recomendaes, ajustamentos de conduta e as condenaes, mesmo que expressando tipos de penalidade diversos, mais ou menos graves, indicam o reconhecimento de que a terceirizao no s cresce, mas cria um ambiente favorvel precarizao do trabalho e burla dos direitos dos trabalhadores.

    Entretanto, essas iniciativas esto sendo fortemente questionadas e devero perder sua fora se o Projeto de Lei n 4.330 for aprovado. As jus-tificativas para as principais proposies do Projeto de Lei esto em perfeita sintonia com as 101 propostas para modernizao trabalhista, apresentadas pela Confederao Nacional da Indstria (CNI) em 2012, pois o esprito que as ilumina retirar qualquer limite e regulao do Estado no que se refere s formas de uso da fora de trabalho, isto , a liberalizao para o capital para a terceirizao sem limites. No plano mais geral, a CNI formula 101 proposies de modificao na legislao trabalhista, cuja sntese estabelecer o negociado sobre o legislado, isto , a negao e anulao da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT).

    9 Conforme informaes disponveis no site do Tribunal Regional do Trabalho 5 Regio.

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    O PL n 4.330 libera a terceirizao para qualquer tipo de atividade, ou seja, nenhuma diferenciao entre atividade-meio e atividade-fim, como hoje estabelecido pelo Enunciado n 331. o que diz o relatrio: j) estabelece que o contrato de prestao de servios pode versar sobre o desenvolvimento de atividades inerentes, acessrias ou complementares atividade econmica da contratante (CCDJ, PL n 4.330, 2013, p. 2). Isto , qualquer atividade, inclu-sive aquela que prpria ou especialidade da contratante, caindo por terra o (falso) argumento do patronato de que uma das principais justificativas para a terceirizao a especializao ou focalizao.

    Tambm libera e legaliza a cascata de subcontratao, o que tem sido objeto de denncia e de fiscalizao do Grupo Mvel de Erradicao do Tra-balho Escravo, criado pelo Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE), formado por auditores fiscais, procuradores do Ministrio Pblico do Trabalho (MPT) e da Polcia Federal (PF), pois exatamente atravs da ilimitada cadeia de subcontratao que se encontra o uso do trabalho anlogo ao de escravo, con-forme divulgado na imprensa e pelo MTE, para o setor txtil, construo civil, agronegcios, dentre outros. Conforme consta no relatrio: O Substitutivo prev, ademais, que a empresa prestadora de servios a responsvel pelo planejamento e pela execuo dos servios, nos termos previstos no contrato entre as partes, e que ela contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outra empresa ou profissionais para reali-zao desses servios (CCDJ, PL n 4.330, 2013, p. 21). Isso implica a total liberalizao da terceirizao, to desejada pelo empresariado brasileiro, e agora com a segurana jurdica to reivindicada pelo patronato e seus legisladores.

    Uma das principais propostas que visa limitar terceirizao, defendida pela maioria dos sindicatos e agentes do direito do trabalho a responsabilidade solidria , negada pelo PL, para as empresas contratantes, mas defende para o caso das terceiras que subcontratarem outras empresas; ou seja, vlida para as empresas menores e subordinadas s contratantes que, teoricamente, esta-belecem uma relao contratual entre empresas, mas no aceita que a mesma relao contratual realizada entre a contratante e a contratada, isto , tambm entre empresas, estabelea a responsabilidade solidria. o que diz a letra q do relatrio: q) dispe que, no caso de subcontratao de outra empresa para a execuo do servio, a empresa prestadora de servios a terceiros solida-riamente responsvel pelas obrigaes trabalhistas assumidas pela empresa subcontratada (CCDJ, PL n 4.330, 2013, p. 3). Para as contratantes, define a responsabilidade subsidiria (hoje j existente), acrescentando o direito de ao regressiva contra a devedora.

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    Em resposta a essa iniciativa, desencadeou-se uma ampla mobilizao nacional contrria ao Projeto. Atravs de cartas, manifestos e abaixo-assinados, as principais instituies que congregam os operadores do direito do trabalho no Brasil condenaram a proposta, considerando-a uma das principais formas de precarizao e de desrespeito aos direitos dos trabalhadores. Manifestaram-se pela rejeio do PL n 4.330, a Anamatra (Associao Nacional dos Magistrados do Trabalho), ANPT (Associao Nacional dos Procuradores do Trabalho), o Conselho Superior do Ministrio Pblico do Trabalho, o Conselho Federal da OAB, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho Sinait, o Frum Permanente em Defesa dos Trabalhadores Ameaados pela Terceirizao, que congrega pesquisadores, estudiosos do tema, entidades representativas que atu-am no mundo do trabalho, a ALAL (Asociacin Latinoamericana de Abogados Laboralistas), dentre outros e uma carta assinada por 19 ministros do total de 26 que compem o Tribunal Superior do Trabalho TST, instituio mxima do poder da Justia do Trabalho, que tem uma viso nacional do que ocorre com a terceirizao no pas, julgando processos nas mais diferentes reas.

    Diversas centrais sindicais, ainda que contemplando significativas dife-renas, se posicionaram contra o PL n 4.330 em que afirmam que o Projeto de Lei rene proposies que incrementam o processo de terceirizao ao instituir a rotatividade da fora de trabalho, acentuando ainda mais a precarizao das condies de trabalho; sublinham a discriminao sofrida pelos trabalhadores subcontratados, institucionalizados como profissionais de segunda categoria; desmistificam que a terceirizao, ao contrrio do que veiculado, no gera emprego e, muito menos, implica alocao de fora de trabalho especializada; ressaltam que libera a terceirizao em todos os setores de uma empresa, sem limites para sua adoo e defendem que um projeto de lei que garanta segu-rana jurdica s empresas deve tambm garantir segurana social aos traba-lhadores e estar assentado na isonomia de direitos, de salrio e de tratamento dos terceirizados (ver, por exemplo, a Carta Aberta das Centrais, s/d, p. 2). A Conlutas e o movimento Intersindical, que esto mais esquerda do movimento sindical, tm se definido claramente contra o processo de terceirizao.

    Entretanto, s vsperas da votao do Projeto de Lei no Congresso Nacional, foi criada uma Comisso Tripartite, constituda por representantes do governo, dos empresrios, dos trabalhadores e do parlamento, para tentar chegar a um consenso em torno do PL n 4.330; ou seja, a estratgia das prin-cipais centrais sindicais passou a tomar este Projeto de Lei como passvel de negociao. Resta saber o que era possvel negociar nos termos das proposies ali contidas, conforme j comentado anteriormente, j que as suas principais proposies confluem para a liberalizao total da terceirizao, aumentando

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    ainda mais a precarizao do trabalho. E como se poderia prever, no houve consenso na comisso, levando-a sua dissoluo.

    Diante desse quadro, houve mobilizaes (dia nacional de paralisao) chamadas pela maioria das centrais sindicais brasileiras, de um acampamento em frente ao Congresso Nacional e a tentativa de participar da reunio da Comisso de Constituio e Justia e de Cidadania da Cmara de Deputados, organizados pela Central nica dos Trabalhadores, cujos dirigentes foram vio-lentamente reprimidos pela polcia.

    A campanha desenvolvida pelas principais instituies representantes dos operadores do direito do trabalho, coordenados atravs do Frum Permanente em Defesa dos Trabalhadores Ameaados pela Terceirizao, associada s ini-ciativas de mobilizao das centrais sindicais e inmeros sindicatos, teve uma importante repercusso social e poltica, conseguindo adiar sistematicamente a votao do PL n 4.330, apesar da enorme presso dos empresrios junto ao congresso nacional.

    UMA NOTA DE CONCLUSO

    No momento em que finalizamos este artigo, a questo ainda est em aberto, em disputa intensa e em fase decisiva. Resta saber se prevalecer a terceirizao como regra, que ser legalizada com a aprovao do PL n 4.330, como deseja o patronato, ou se a classe trabalhadora e seus aliados conseguiro impedir o alastramento da epidemia da terceirizao, atravs de uma luta mais profunda contra a liberalizao do capital no uso predatrio e sem limites da fora de trabalho.

    Suas conhecidas falcias, tais como a terceirizao cria empregos, os terceirizados percebem salrios e so providos de direitos, a terceirizao positiva, pois permite a especializao e qualificao das empresas, esconde o fundamental, ou seja, que a terceirizao tem como objetivos centrais a reduo dos salrios, a retrao crescente dos direitos do trabalho e, o que tambm de enorme relevncia, aumentar a fragmentao, procurando desorganizar ainda mais a classe trabalhadora, tanto na esfera sindical como nas distintas formas de solidariedade coletiva que florescem no espao produtivo.

    Percebendo salrios menores, enfrentando jornadas de trabalho bem maiores do que o conjunto dos assalariados contratados sem tempo determinado, sofrendo cotidianamente as vicissitudes que decorrem da burla da legislao social protetora do trabalho e das altas taxas de rotatividade, a terceirizao vem se assumindo como a modalidade dominante no processo de corroso do

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    trabalho que se expande em escala universal, mas que, exatamente por isso, est no centro dos levantes e rebelies que tambm j so parte presente em todos os quadrantes do mundo.

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