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surrealismo no Brasil e sua acepção

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  • 53ALEA VOLUME 6 NMERO 1 JANEIRO JUNHO 2004 p. 53-65

    Notas sobre a recepo epresena do surrealismo no Brasilnos anos 1920-19501

    Robert Ponge

    O surrealismo comeou a vir luz em 1919, em Paris, com olanamento da revista Littrature, por Andr Breton, PhilippeSoupault e Louis Aragon, e com a descoberta da escriturasurrealista (isto , automtica) pelos dois primeiros. Cincoanos depois, em 1924, o surrealismo foi fundado, proclama-do movimento explicitamente surrealista, atravs de vriasiniciativas tomadas por um grupo de jovens poetas france-ses (o Manifesto de Breton lista 19 nomes) que tambm reagru-pava pintores, fotgrafos e outros artistas e intelectuais, dediversas nacionalidades (Max Ernst era alemo, Man Rayestadunidense, Picasso espanhol etc.).

    Pode-se definir brevemente o objetivo do surrealismocomo o de lanar e alcanar uma revoluo cultural questio-nadora dos modos vigentes de se expressar, sentir, pensar em primeiro lugar a lgica estreita, fechada, positivista impe-rante. Cabe assinalar que, desde os primeiros instantes, osurrealismo se destacou como um dos mais vigorosos e ins-tigantes movimentos da modernidade o que lhe angarioureservas e mesmo reaes adversas por parte de diversossetores da intelectualidade francesa (digamos que o leque iadesde alguns colaboradores da modernista Nouvelle Revuefranaise at a monarquista e fascistizante Action franaise)*.A recepo do surrealismo, portanto, no foi pacfica na pr-pria Frana, havendo embates a respeito entre, de um lado,partidrios da tradio ou de uma modernidade moderada

    1 Este texto uma verso, levemente modificada (atravs de alguns cortes eacrscimos), da comunicao intitulada Notas sobre o embate Tradio/Modernidade em torno do surrealismo no Brasil, nas dcadas de 1920 e 1930,apresentada no simpsio PEN-4: El discurso de la tradicionalidad; para unacrtica de la modernidad en Amrica Latina en los siglos XIX y XX, no mbitodo 51 Congresso Internacional de Americanistas, realizado de 14 a 18 de julho de2003, na Universidade do Chile, em Santiago do Chile.

    * (Sobre o assunto, consul-tar, por exemplo: Breton,Andr. Entretiens (1952). Pa-ris: Gallimard, 1969 princi-palmente os captulos ini-ciais ; e Bridel, Yves.Miroirsdu surralisme: essai sur larception du surralisme enFrance et en Suisse franaise(1916-1939). Lausanne: Lgedhomme, 1988.)

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    e, do outro, os surrealistas e seus apoiadores. Vejamos agoraquando, e como, o pblico letrado da Amrica Latina tomouconhecimento desse movimento.

    Do Velho Mundo ao NovoPor surpreendente que possa parecer, as informaes sobre osurrealismo chegaram na Amrica Latina com extrema ra-pidez; tampouco tardaram os debates. Por exemplo, na Ar-gentina, foi em 1925 (provavelmente no fim do primeiro se-mestre) que um grupo de estudantes da Universidade deBuenos Aires iniciou uma discusso sobre o novo movimen-to, a qual desembocou na formao do primeiro grupo sur-realista da Amrica Latina e no lanamento da revista Qu(dois nmeros: 1928 e 1930)*. No Peru, foi tambm em 1925que a imprensa de Lima comeou a debater o surrealismo.No Brasil, no foi diferente, como veremos.

    Como explicar essa extrema rapidez? Porque j havia bas-tante tempo que, em conseqncia dos desenvolvimentos datipografia, dos transportes e das viagens, os debates e a re-flexo sobre os rumos da arte vinham se desenvolvendo in-ternacional e, a seguir, intercontinentalmente. E existia umdebate internacional porque a arte no possua mais um ca-rter local, e sim supranacional. Em outras palavras, o im-pressionismo, o cubismo, o surrealismo para citar apenastrs exemplos nasceram em Paris, mas no foram movi-mentos franceses, foram movimentos internacionais. Nasce-ram em Paris devido ao lugar especial que, por razes hist-ricas, essa cidade assumiu na vida intelectual e artstica daEuropa e do planeta a partir do sculo XVIII, chegando aconstituir-se na capital cultural do sculo XIX e do incio dosculo XX (para parafrasear a conhecida expresso de WalterBenjamin). Outrossim, cabe constatar que, no curso do scu-lo XIX e no incio do sculo XX, o fluxo de informaes e oritmo dos contatos internacionais tinham conhecido vrias esucessivas aceleraes em decorrncia dos imensos progres-sos dos meios de comunicao (viagens, livros, revistas, im-prensa, telegrafia, etc.). O que permite entender como, nobojo do debate internacional sobre a arte moderna e seusrumos, as informaes sobre a revista Littrature, AndrBreton, seus companheiros e seu iderio comearam a che-gar Amrica Latina antes de 1924, no mnimo por volta de

    *(Sobre o surrealismo na Ar-gentina, devo minhas infor-maes tese de doutora-do, bem documentada e pre-cisa, do prof. Mndez Cas-tiglioni, bem como biblio-grafia qual remete. Cf. Mn-dez Castiglioni, Ruben Da-niel. Aldo Pellegrini, surrea-lista argentino. Porto Alegre:PUC-RS, 2000.)

  • 55Robert Ponge NOTAS SOBRE A RECEPO E PRESENA DO SURREALISMO...

    1922 ou 19232. Qual foi a recepo inicial ao surrealismona Amrica Latina? Diversa e contraditria, como no pode-ria deixar de ser e como comprovam alguns exemplos. NaArgentina da segunda metade dos anos 1920 e do incio dosanos 1930, poucos repararam a existncia do jovem agru-pamento surrealista e da revista Qu, pois, conforme o prpriotestemunho de seu principal animador, Aldo Pellegrini, o gru-po estava totalmente desvinculado das correntes literrias*

    que agitavam o cenrio literrio argentino, dominado pelogrupo da revista Martn Fierro e pela diferenciao (a seguir,polarizao) entre os de Florida e os de Boedo (cujos plospodem esquematicamente ser definidos como o da literaturadita gratuita ou estetizante e o da literatura dita social). Pa-rece, portanto, no ter havido embates abertos, explcitos, maso desprezo; ou, mais simplesmente, a ausncia de interesse ea poltica do silncio no deixam de ser formas de recepo!

    Mas talvez seja o Peru que fornea o melhor exemplo docarter contraditrio da conjuntura intelectual em relaoao surrealismo: em 1925, respectivamente em julho e setem-bro, nos jornais em que escreviam, Jos Carlos Maritegui(intelectual vivo e sensvel, marxista aberto s vanguardas)e Csar Vallejo (poeta, correspondente jornalstico em Paris)deram notcias a respeito da existncia do movimento surrea-lista e das turbulncias que, s vezes, provocava em Paris.Ambos voltaram a escrever mais ou menos regularmentesobre o surrealismo entre 1926 e 1930 a partir de pontosde vistas opostos j que divergiam totalmente na avaliaodesse movimento: Maritegui oferecia um balano positivodo surrealismo, enquanto Vallejo decretava a morte do mes-mo e redigia o laudo de sua autpsia*.

    Aps esses apontamentos iniciais (que mereceriam ser es-miuados) sobre as transferncias culturais entre a Europa eas Amricas e sobre alguns aspectos da recepo do surrea-lismo na Amrica Latina, podemos nos debruar sobre a che-gada do surrealismo no Brasil.

    2 Neste pargrafo, retomei idias e formulaes apresentadas em Osurrealismo na Amrica Hispnica e no Brasil (Alea: Estudos Neolatinos, vol. 4, n1. julho-dezembro 2001. p. 119-132). Para uma anlise mais desenvolvida edetalhada dessas questes, ver os itens Gestao internacional do surrealismo eParis, capital das vanguardas, em: O surrealismo como via de mo dupla. Em:Bernd, Zil (org.). Americanidade e transferncias culturais. Porto Alegre: EditoraMovimento, 2003. p. 90-93 e 96-100.

    *(Pellegrini, Aldo. Carta aGraciela de Sola. Em: Sola,Graciela de. Proyeccionesdel surrealismo en la literatu-ra argentina. Buenos Aires:Ediciones Culturales Argen-tinas, 1967: 11.)

    * (A esse respeito, ver: Lefort,Daniel. Surrealismo noPeru. Em: Ponge, Robert(org.). Surrealismo e NovoMundo. Porto Alegre: Edito-ra da UFRGS, 1999: 253, eminha comunicao O sur-realismo na Amrica Latina:o caso do Peru, nos anais do2 Congresso da AssociaoBrasileira de Hispanistas,realizado em outubro de2002, na USP, no prelo.)

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    Anos 1920, primeirssimos contatosdo Brasil com o surrealismoTudo indica que, no Brasil, no primeiro semestre de 1925ou, quem sabe, at antes, o surrealismo encontrou ressonn-cia entre a dupla de editores da revista Esttica. Liam a Nou-velle Revue franaise, a revista Commerce (que publicara o en-saio Uma vaga de sonhos, de Aragon) e tudo mais que podiamencontrar. Srgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes,neto3 estavam ansiosos para conhecer, discutir, experimen-tar novas propostas poticas e literrias, de onde quer queviessem. De acordo com o testemunho do primeiro, amboscomea[ram] a escrever cartas surrealistas, conforme a re-ceita de Breton*.

    Quais eram exatamente esses textos automticos? Nose sabe. Mas no chegaram s pginas da Esttica, que, noentanto, publicou, no segundo nmero (datado de janeiro-marode 1925), um artigo em que Prudente comenta as consi-deraes do crtico francs Benjamin Crmieux sobre o surrea-lismo, divulgadas pela Nouvelle Revue franaise, e, no terceironmero (datado de abril-junho de 1925), um ensaio em queSrgio afirma que s noite enxergamos claro, e reivindicauma declarao dos direitos do sonho*.

    A atitude de Srgio Buarque de Holanda curiosa e me-rece reter nossa ateno: ao falar numa declarao dos direitosdo sonho, o autor joga com o prefcio e com o lema da capa doprimeiro nmero de La Rvolution Surraliste, fazendo umacolagem de ambos, mas sem diz-lo e sem formular uma nicavez a palavra surrealista (ou supra-realista, como se usavaento). Por que essa postura? Seria cautela? Estariam os doisdiretores da revista sondando o terreno dos meios literriosbrasileiros? Se era essa a sua inteno, ficaram sabendo de vri-as reaes pouco favorveis, entre as quais as de Mrio de An-drade (assaz reticente para com o surrealismo), Graa Ara-nha, Ronald de Carvalho e Tristo de Athayde (francamentecontrrios). Apesar disso, Prudente de Moraes, neto no seacanhou e enviou um texto de escritura automtica ao jor-nal A Noite (publicado em 28 de dezembro de 1925) e outro revista Verde (publicado em novembro de 1927).

    3 assim mesmo que ele grafava seu nome, com a vrgula e a minscula.

    * (Holanda, Srgio Buarquede. Entrevista a Maria Cliade Moraes Leonel, em julhode 1975. Em: Leonel, MariaClia de Moraes. Estticae modernismo. So Paulo/Braslia: Hucitec/INL, Fun-dao Nacional Pr-Mem-ria, 1984: 178.)

    *(Holanda citado por Leonel,Maria Clia de Moraes. Es-ttica e modernismo. Ob. cit.:75.)

  • 57Robert Ponge NOTAS SOBRE A RECEPO E PRESENA DO SURREALISMO...

    Como se percebe, com a dupla Prudente e Srgio, a rvo-re modernista brasileira poderia ter produzido um ramo fran-ca e explicitamente surrealista. Mas este no cresceu. Seriainteressante pesquisar o porqu. Salvo engano, esse estudoest ainda por ser feito.

    Nos anos seguintes, cabe, entre outros dados, assinalarque, em 1927, durante uma viagem Europa, Ismael Neryentrou em contato (breve?) com Breton e fez amizade comChagall (que no pertencia ao grupo surrealista e tampoucose considerava surrealista). No Brasil, em 1928, ao fazer acrtica da exposio apresentada por Ccero Dias no salo daPoliclnica Geral do Rio de Janeiro, Graa Aranha caracteri-zou como pintura surrealista a obra do artista pernambu-cano, que, pouco informado sobre esse movimento, estaria,portanto, fazendo espontnea e ingenuamente telas sur-realistas*. Mas 1928 deve ser relembrado sobretudo como oano do lanamento da Antropofagia, com revista e manifes-to. Neste, Oswald de Andrade no esqueceu de situar maisainda, caracterizar a Antropofagia em relao ao surrea-lismo (J tnhamos o comunismo. J tnhamos a lnguasurrealista*).

    Dessa forma, deixava claro que o surrealismo integravade alguma forma o cabedal antropfago. O que no transfor-mava automaticamente os antropfagos em surrealistas. Porvrias razes; entre outras, porque, como veremos, os de-mais membros do grupo no concordavam necessariamentecom Oswald e porque a prtica deste no era forosamenteconseqente com suas palavras.

    Independentemente da dose de retrica ou de firme pro-psito que motivaram esse j tnhamos a lngua surrealista,resta que vrias telas de Tarsila do Amaral flertaram namo-raram? ento com o surrealismo. E tambm que, ao chegarao Brasil, em fevereiro de 1929, com sua esposa brasileira (acantora lrica Elsie Houston), o poeta surrealista francs Ben-jamin Pret foi imediatamente saudado pela Revista de An-tropofagia com um artigo especfico, assinado por Cunham-bebinho (ou seja, o prprio Oswald), e aceito como um antro-pfago que merece cauins de cacique e... precisa ficar entrens. Por que precisaria Pret ficar entre os antropfagos?Para que pudesse aprender e crescer com eles? Certamente,mas, sem dvida, para que os antropfagos pudessem, igual

    * (Ver: Aguilar, Nelson. Cce-ro Dias e o surrealismo. Em:Ponge Robert (org.). O Bra-sil e o surrealismo. Porto Ale-gre: Editora da UFRGS, noprelo.)

    * (Andrade, Oswald de. Ma-nifesto antropfago. Revis-ta de Antropofagia, ano 1, n1. So Paulo: maio 1928: 3.)

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    e reciprocamente, conhecer melhor o surrealismo, aprender ecrescer com Pret e com esse movimento (elogiado peloCunhambebinho porque vinha oferecendo um dos maisempolgantes espetculos para qualquer corao de antrop-fago). Alis, a Revista acrescentou taxativamente: Depoisdo surrealismo, s a antropofagia*.

    O que afirmava a preeminncia do movimento brasileiropor sua capacidade de ingurgitar, mastigar e digerir, assimi-lando-convertendo-superando as teses e propostas europias.Mas, como o surrealismo era um projeto com um grau dedefinio muito mais alto e preciso que o movimento brasi-leiro (o que os antropfagos no ignoravam), essa pequenafrase era tambm um programa e tanto! De fato, tivesseCunhambebinho-Oswald conscincia disso ou no, consti-tua um verdadeiro desafio, chamando superao da An-tropofagia, para que, em relao ao surrealismo, aquela dei-xasse de ser uma prima ainda distante ou reservada (porquecultuava uma certa indefinio e heterogeneidade), e se trans-formasse em uma interlocutora privilegiada, uma amiga dopeito, uma autntica irm ou, se preferir o leitor, um alter ego.O que, obviamente, s poderia ocorrer por meio de uma com-plexa alquimia em que a Antropofagia se transformaria, avan-aria, mantendo o surrealismo original (J tnhamos a lnguasurrealista), preservando o canibalismo impiedoso, integran-do as conquistas do surrealismo moderno (1919-1929, edepois) e superando (Aufhebung) todos esses componentespara alcanar uma nova e superior sntese que poderia ouno assumir uma denominao diferente.

    Sabe-se que isto no ocorreu. Porque Pret no era bemacolhido por todos os antropfagos (Carlos Drummond deAndrade rompeu com a Revista de Antropofagia pois, entreoutros motivos e sem esquecer a possvel pitada de provoca-o, esta ainda no jant[ara] Pret, elemento inaceitvelno grupo brasileiro por ser supra-realista e francs)*. Por-que, aos olhos de certos antropfagos, pesavam contra os sur-realistas tanto a qualidade de seu engajamento poltico-re-volucionrio (declaravam-se marxistas e simpatizantes docomunismo) quanto o fato de sua revolta, sua contestao seestenderem a todos os domnios da vida e do pensamento,incluindo a religio e a prpria instituio artstico-literriae seus valores. E, se isso no bastasse, porque a Antropofagia

    * (Cunhambebinho. Pret.Revista de Antropofagia, 2dentio, n 1. Dirio de SoPaulo, 17 de maro de 1929.)

    *(Cartas na mesa: os Andra-des se dividem (Carta deCarlos Drummond de Andra-de a Oswald de Andrade).Revista de Antropofagia. 2dentio, n 11. Dirio de SoPaulo. 19 de junho de 1929.)

  • 59Robert Ponge NOTAS SOBRE A RECEPO E PRESENA DO SURREALISMO...

    se desagregou, explodiu, vtima de sua prpria hetero-geneidade e da impossibilidade de conciliar suas contradi-es, sendo o ltimo nmero da 2 dentio da Revista o n 15,de 1 de agosto de 1929. Enfim, porque Oswald, em vez deprocurar avanar, partindo das conquistas da Antropofagia(seja com uma 3 dentio ou sob nova forma e denominao,na base do menos, mas melhor), resolveu dar as costas a ela,reneg-la e buscar caminho e luz na poltica cultural da In-ternacional Comunista, j estalinizada! Ou seja, como se odesaparecimento da Revista de Antropofagia tivesse tido porconseqncia o esgotamento, por alguns decnios, da possi-bilidade de efetivo funcionamento de um grupo surrealista antropofagicamente surrealista! no Brasil.

    Anos 1930 e 1940Para nos debruarmos sobre os anos 1930, parece instrutivoiniciar com um paralelo entre Brasil e Argentina no que serefere ao destino do surrealismo em ambos pases. Na Argen-tina, o segundo nmero da revista Qu saiu datado de de-zembro de 1930. Pouco depois, o grupo se dissolveu, segun-do Aldo Pellegrini, devido s intrigas e canalhices de algunsdos componentes*.

    Certamente, mas ser preciso esperar o fim dos anos 1940 quase duas dcadas para que torne a surgir um grupo sur-realista em Buenos Aires. Ser, ento, que basta a explicaoreferente s intrigas e canalhices? No Brasil, a Revista de An-tropofagia desapareceu em 1929; ser que tambm por intri-gas e canalhices de membros do grupo? Neste caso, sabe-seque havia numerosas divergncias, de ordem terica e sobreos rumos a tomar; novamente, isso basta para explicar?

    Parece haver mais que puro acaso nas duas dissoluesquase perfeitamente concomitantes: algo como um sinal dostempos, sintomtico de uma mudana nos ventos pr-van-guardas. No seria o caso de levar em conta tambm a conjun-tura cultural internacional e a conjuntura poltica no continenteou, pelo menos, nos dois pases aqui citados? No tocante conjuntura cultural, Pierre Rivas a caracteriza da seguinteforma:

    [...] 1930 marca, como sabido, em toda parte, o tempo do reflu-xo, o retorno ao tema, ao realismo, a passagem da vanguarda modernidade. sobretudo o tempo do confronto entre vanguarda

    * (Pellegrini. Vida, pasin ymuerte del surrealismo ar-gentino. Entrevista a StefanBaciu. Em: Baciu, Stefan.Surrealismo latinoamericano:preguntas y respuestas. Valpa-raso (Chile): Ediciones Uni-versitarias de Valparaso,1979: 17.)

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    e realismo: populismo socialista, neo-realismo, literatura prolet-ria. [...]. A especificidade histrico-poltica dos pases perifri-cos se traduz por uma colocao entre parnteses do avanosurrealista. As ditaduras existentes [...] e as urgncias sociaiscondenam o artista a uma m conscincia ou a uma renncia.*

    Em apoio caracterizao de Pierre Rivas, cabe lembrar, depassagem, que, nos mais diversos pases, a linha cultural dospartidos comunistas comeou, no incio dos anos 1930, sob abandeira da literatura proletria, passou para o realismo so-cialista e desembocou na exaltao do realismo nacional, massempre mantendo uma firme oposio arte moderna e svanguardas. Quanto aos governos ditos nacionalistas oupopulistas (quando no se tratou pura e simplesmente de dita-duras) da Amrica Latina, todos ou quase todos encorajaramuma arte empenhada em caracterizar-se como nacional.

    E a conjuntura poltica? Na Argentina, expresso de umareao extremamente conservadora, o golpe de Estado lide-rado pelo general Uriburu abriu as comportas para uma su-cesso de governos antidemocrticos, cuja atuao no terre-no da cultura no poderia ser ilustrada (Aldo Pellegrini foipreso em 1933, por motivos polticos). No Brasil, a chamadaRevoluo de 1930 e os sucessivos governos Vargas restrin-giram cada vez mais as j reduzidas liberdades democrti-cas (Benjamin Pret foi expulso do Brasil em 1931, acusadode ser um agitador comunista; Flvio de Carvalho sofreu se-guidas vezes a represso etc.), alm de convidar os intelectuaisa marchar culturalmente sob a bandeira do nacionalismo.

    Com efeito, nessa poca de franco retorno ordem polticae cultural, o espao para as vanguardas e, no caso, para osurrealismo s podia ser limitado. Vejamos o que isso sig-nificou concretamente.

    Na Argentina, as pesquisas desenvolvidas at agora nopermitiram encontrar vestgios de vida surrealista coletivanos anos 1930. At ignoram-se quais foram as atividades dePellegrini, alm de defender sua tese de doutoramento, fazera traduo dos Manifestos do surrealismo (para cuja publica-o no encontrou editor pode-se entender por qu) e redi-gir poemas (que publicou posteriormente, a partir de 1949).Apenas aps o fim da Segunda Guerra se registra um rein-cio das atividades coletivas.

    * (Rivas, Pierre. Priphrieet marginalit dans les sur-ralismes dexpression ro-mane: Portugal, Amriquelatine. Em: Surralisme p-riphrique. Actes du colloquePortugal, Qubec. Amriquelatine: un surralisme priph-rique?. Prsents et ditspar Lus de Moura Sobral.Universit de Montral, 1984:14-5.)

  • 61Robert Ponge NOTAS SOBRE A RECEPO E PRESENA DO SURREALISMO...

    No Brasil, o surpreendente que, apesar das condiespoucos favorveis, o mesmo perodo apresentou vrios no-mes cuja categorizao como surrealista continua diversa-mente avaliada reconhecida, discutida, questionada ou ne-gada , mas cuja obra potica e/ou plstica mantinha rela-es ou afinidades com as obras dos surrealistas. Assim, quan-do se fala em surrealismo no Brasil, nos anos 1930, impos-svel no fazer, no mnimo, referncias a, entre outros, IsmaelNery, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Flvio de Carvalho.Tambm, a partir do incio da dcada de 1940, a WalterLewy. E, obviamente, sempre esquecida Maria Martins,cuja obra foi descoberta e reconhecida como surrealista em...Nova Iorque, em 1943, por Breton e seus amigos.

    Anos 1950 e 1960O que salientar em termos de surrealismo no Brasil dos anos1950? Diante da impossibilidade de entrar aqui em questesapontadas anteriormente, limitar-me-ei a destacar trs dados.Em primeiro lugar, o retorno de Benjamin Pret ao pas, emjunho de 1955, com os fins de descansar (estava com sriosproblemas de sade), rever seu filho, reencontrar amigos etc.Durante essa segunda estada brasileira, Pret deu vrias en-trevistas, redigiu um original e inovador ensaio sobre o qui-lombo de Palmares*, circulou pelo Norte e o Nordeste, reali-zou duas viagens para reservas indgenas, adquiriu objetosde arte indgena e popular, bateu muitas fotos e tomou anota-es que lhe permitiram escrever vrios artigos assaz infor-mativos, alm de poticos sobre os ndios brasileiros. O que,para os surrealistas, no secundrio, em funo de seu apai-xonado interesse pelas culturas e artes ditas primitivas.

    Em abril de 1956, Pret embarcou de volta para a Frana.O que, infelizmente, lhe fez perder por um ms! algo mar-cante para o surrealismo: a bela e excepcionalmente ampla(42 esculturas, alm de litografias, desenhos, gravuras e al-guns objetos de ouro) exposio de Maria Martins apresenta-da no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, cujo catlo-go continha trs textos: um de Breton, um de Murilo Mendese um do prprio Pret: [...] as esculturas de Maria anunciamum mundo que ainda no existe, a menos que ele proliferealhures, fora da nossa vista; mas debaixo de que cus?.

    * (Pret, Benjamin. O quilom-bo dos Palmares. Organiza-o, ensaios complementa-res e comentrios por M-rio Maestri e Robert Ponge.Porto Alegre: Editora daUFRGS, 2002.)

  • 62 ALEA VOLUME 6 NMERO 1 JANEIRO JUNHO 2004

    Enfim, deve-se assinalar que, na segunda metade da dca-da, Sergio Lima iniciou sua atividade plstica segundo umaperspectiva surrealista. Viaja Frana, encontrando Bretonem 1961 e participando das reunies do grupo parisiense. Apssua volta ao Brasil, impulsionou a formao do grupo surrea-lista de So Paulo/Rio, o qual, com o apoio do grupo francs,bem como de Maria Martins e de Flvio de Carvalho, organi-zou a Exposio Internacional do Surrealismo intitulada Amo mgica e o andrgino primordial, realizada em So Paulo,em 1967.

    guisa de conclusoTendo finalizado este breve percurso acerca do surrealismono Brasil dos anos 1930, 1940 e 1950, o que concluir?

    Da mesma forma que na Argentina e no Peru, a recepoao surrealismo variou bastante. As figuras e correntes maistradicionais e conservadoras reagiram com antipatia, prati-cando a poltica do silncio e recorrendo vez por outra ao ata-que explcito. No campo modernista, registram-se oscilaesentre a curiosidade interessada e as reservas (por exemplo,Carlos Drummond e Mrio de Andrade), mas tambm sim-patia e mesmo reaes entusisticas, duradouras ou no (Pru-dente, Srgio Buarque, Ismael Nery, Oswald, Tarsila, Murilo,Jorge de Lima, Flvio de Carvalho, Lewy, Maria Martins etc.).

    O que levanta, no mnimo, duas questes. Uma, que jcomeou (e apenas comeou) a ser discutida e respondida:por que a tese dominante e inconteste, no Brasil, foi durantemuito tempo a de que no houve surrealismo no pas at osanos 1960, em que bases foi fundamentada tal concepo e emque medida correta ou no?4 A outra questo ainda est por

    4 A esse respeito, ver os instigantes ensaios de Flvio Kothe, Sergio Lima eValentim Facioli na Organon, n 22, intitulada Aspectos do surrealismo, que contmuma seo de cinco artigos dedicados questo do surrealismo no Brasil (PortoAlegre: Instituto de Letras da UFRGS, 1994, p. 145-206). Como o referidonmero est esgotado, os trs ensaios esto sendo novamente publicados em:Ponge, R. (org.). A recepo das vanguardas literrias e artsticas no Brasil e na AmricaHispnica. So Paulo: Nankin, no prelo.

  • 63Robert Ponge NOTAS SOBRE A RECEPO E PRESENA DO SURREALISMO...

    ser investigada: por que, a partir das atividades individuais,contemporneas entre si, desenvolvidas nos anos 1930 e 1940 que foram ou so caracterizadas como surrealistas e/ou seautocaracterizaram como tal (mesmo que moda brasilei-ra*) , no surgiu nenhuma atividade surrealista coletiva?Ou ter existido, sem ser at hoje reconhecida?

    * (Mendes, Murilo. AndrBreton. Em: Poesia comple-ta e prosa. Organizao, pre-parao do texto e notas porLuciana Stegagno Picchio.Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1994: 1238.)

  • 64 ALEA VOLUME 6 NMERO 1 JANEIRO JUNHO 2004

    Robert PongeDoutor em Letras (USP). Professor titular do Instituto de Letras daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadordas vanguardas literrias e artsticas, bem como das relaes Litera-tura/Histria. Organizou o volume Surrealismo e Novo Mundo (PortoAlegre: Editora da UFRGS, 1999), entre outros ttulos. Coordena ogrupo de pesquisa interinstitucionalO surrealismo e seus dilogos com amodernidade: aproximaes interdisciplinares (SURRDIAL/CNPq).

    ResumoAps brevemente situar o surgimento do surrealismo nos anos 1919-1924 e apontar alguns elementos dos processos de transferncias cul-turais entre a Europa e as Amricas, bem como alguns aspectos darecepo do surrealismo na Amrica Latina, o artigo se debrua sobrea chegada do surrealismo no Brasil, na segunda metade dos anos1920 e sua expresso na revista Esttica e na Antropofagia. A seguir,procura localizar a presena do surrealismo no Brasil dos anos 1930 e1940, relacionando-a com a conjuntura cultural vigente no perodoVargas. Enfim, destaca, nos anos 1950 e 1960, a segunda presena deBenjamin Pret no Brasil, a exposio Maria Martins no MAM-RJ, aatuao de Srgio Lima e o incio do Grupo Surrealista de So Paulo-Rio de Janeiro.

    Abstract*

    After briefly situating the emer-gence of Surrealism in the years1919-1924 and pointing outsome elements of the culturaltransference processes betweenEurope and the Americas, as wellas some elements of the receptionof Surrealism in Latin America,this paper explores the arrivalof Surrealism in Brazil, after themid-1920s, and its expression inthe journal Esttica and in thecultural movement of Anthro-pophagy. Next, it attempts tosituate Surrealism in Brazil inthe 1930s and 1940s, establish-ing its relation to the culturalcontext of the Getulio Vargasperiod. Finally, this work stud-ies the 1950s and 1960s, high-

    Rsum*

    Aprs une brve description delapparition du surralisme dansles annes 1919-1924, suivie dequelques considrations sur lesprocessus de transferts culturelsentre lEurope et les Amriques,et sur la rception du surralismeen Amrique latine, lauteur decet article se penche sur larri-ve du surralisme au Brsil,dans la seconde moiti des an-nes 1920, sur son expressiondans la revue Esttica, ainsi quedans le mouvement culturel delAnthropophagie. Il sinterrogeensuite sur la prsence du sur-ralisme au Brsil dans les an-nes 1930 et 1940, en la situantdans le contexte culturel de lapriode des gouvernements Var-

    Palavras-chavesurrealismorecepodilogos culturaisBrasilanos 1920-1950

    Key wordsSurrealismreceptioncultural dialoguesBrazilthe 1920-1950s

    Mots-clsSurralismerceptiondialogues culturelsBrsilannes 1920-1950

    * O resumo foi traduzido parao ingls por Laura Bocco epara o francs por VincentLeclercq.

    Recebido em15/09/2003

    Aprovado em30/11/2003

  • 65Robert Ponge NOTAS SOBRE A RECEPO E PRESENA DO SURREALISMO...

    lighting the second stay of Ben-jamin Pret in Brazil, the MariaMartins exposition at the Mu-seum of Modern Art of Rio deJaneiro (MAM-RJ), the activitiesof Sergio Lima and the begin-ning of the Surrealist Group ofSo Paulo-Rio de Janeiro.

    gas. Enfin, lauteur voque quel-ques aspects du surralisme auBrsil dans les annes 1950 et1960, tels que le deuxime sjourde Benjamin Pret au Brsil, lex-position Maria Martins au Mu-se dArt Moderne de Rio de Ja-neiro, les activits de Srgio Limaet les dbuts du Groupe surra-liste de So Paulo-Rio de Janeiro.