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A anatomia das emoções segundo a Psicologia Budista Segundo o budismo tibetano, a natureza da mente sutil do ser humano é potencialmente pura como a energia de um puro cristal. No entanto, está contaminada por três grandes venenos mentais: o apego, a raiva e a ignorância. Estes, por sua vez, são resultantes de um grande veneno mental: o fato de pensarmos que as coisas existem por si só e que são permanentes. Nada existe por si só, tudo está interligado. Apesar do seu aspecto permanente, tudo está em constante transformação. Podemos compreender estas verdades racionalmente, mas agimos instintivamente como se as coisas e as pessoas existissem em si e por si próprias, a partir delas mesmas. Nossa percepção da realidade está distorcida. Da mesma forma, sabemos que vamos morrer um dia, mas vivemos como se fôssemos imortais. Podemos até perceber nossa ignorância, mas enquanto a base de nosso ambiente interno for o medo e a dúvida, continuaremos presos a nossos hábitos mentais distorcidos. Enquanto pensarmos que somos pessoas carentes e inadequadas, não seremos capazes de reconhecer nossa base interna positiva! A anatomia das emoções conforme a psicologia budista é descrita no Abhidharma (que na língua pali dos tempos de Buddha significa “a doutrina final”), o texto original da epistemologia do budismo, onde são elaboradas as investigações originais de Buddha sobre a natureza humana. Segundo o Abhidharma, todos os seres são compostos de fatores mentais ou “Nama”, e fatores materiais ou “Rupa”. O indivíduo é um “Nama-rupa”. Nama denota tanto a consciência como os estados mentais. Assim, o Abhidharma enumera 51 tipos de estados mentais. Ainda de acordo com o Abhidharma, existem 89 tipos de consciência. Destas, 80 são características do ser comum, e as 9 restantes são próprias daqueles que atingiram um desenvolvimento espiritual superior.

Abhidharma - A anatomia das emoções segundo a Psicologia Budista

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Page 1: Abhidharma - A anatomia das emoções segundo a Psicologia Budista

A anatomia das emoções segundo a Psicologia

Budista

Segundo o budismo tibetano, a natureza da mente sutil do

ser humano é potencialmente pura como a energia de um puro

cristal. No entanto, está contaminada por três grandes

venenos mentais: o apego, a raiva e a ignorância. Estes,

por sua vez, são resultantes de um grande veneno mental: o

fato de pensarmos que as coisas existem por si só e que são

permanentes.

Nada existe por si só, tudo está interligado. Apesar do seu

aspecto permanente, tudo está em constante transformação.

Podemos compreender estas verdades racionalmente, mas

agimos instintivamente como se as coisas e as pessoas

existissem em si e por si próprias, a partir delas mesmas.

Nossa percepção da realidade está distorcida. Da mesma

forma, sabemos que vamos morrer um dia, mas vivemos como se

fôssemos imortais.

Podemos até perceber nossa ignorância, mas enquanto a base

de nosso ambiente interno for o medo e a dúvida,

continuaremos presos a nossos hábitos mentais distorcidos.

Enquanto pensarmos que somos pessoas carentes e

inadequadas, não seremos capazes de reconhecer nossa base

interna positiva!

A anatomia das emoções conforme a psicologia budista é

descrita no Abhidharma (que na língua pali dos tempos de

Buddha significa “a doutrina final”), o texto original da

epistemologia do budismo, onde são elaboradas as

investigações originais de Buddha sobre a natureza humana.

Segundo o Abhidharma, todos os seres são compostos de

fatores mentais ou “Nama”, e fatores materiais ou “Rupa”. O

indivíduo é um “Nama-rupa”. Nama denota tanto a consciência

como os estados mentais. Assim, o Abhidharma enumera 51

tipos de estados mentais.

Ainda de acordo com o Abhidharma, existem 89 tipos de

consciência. Destas, 80 são características do ser comum, e

as 9 restantes são próprias daqueles que atingiram um

desenvolvimento espiritual superior.

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A psicologia budista descreve nos “sankharas”, ou estados

mentais generalizados, Seis Emoções Básicas (Seis Venenos-

Raiz ou Aflições mentais); Vinte Emoções Secundárias; Onze

Fatores Mentais Virtuosos; Quatro Fatores Mentais que podem

ou não ser virtuosos.

As Seis Emoções Básicas são (em itálico, os termos em

tibetano):

1. Apego, isto é, desejo ou ansiedade por possuir –

Dö.Tchag

2. Raiva, hostilidade, ódio – Kong.tro

3. Ignorância, ilusão – Ma.rig.pa

4. Orgulho, arrogância – Nga.guiel

5. Dúvida ou suspeita – Te.tsom

6. Visões falsas ou errôneas – Ta.wa.nyon.mon.tchen

Destas, as três primeiras são as mais graves, por isso, são

chamadas de Os três Venenos Mentais.

As Vinte Emoções Secundárias, derivadas de algumas Emoções

básicas, conhecidas também como Os Vinte Fatores Afins da

Instabilidade, são:

Raiva

1.Irritação, agressividade ou indignação – Tro.wa

2.Ressentimento ou rancor – Kön.dzin

3.Hipocrisia ou dissimulação – Tchab.pa

4.Malevolência ou animosidade – Tseg.pa

5.Inveja ou ciúmes – Trag.dog

6. Crueldade ou malícia – Nam.Tse

Apego

7. Avareza – Ser.na

8. Excitação mental – Go.pa

9. Arrogância ou presunção – Guia.pa

Ignorância

10. Desatenção – She.Shin Min.pa

11. Melancolia ou Mente Pesada – Mug.pa

12. Falta de confiança ou Incredulidade – Ma.te.pa

13. Preguiça – Lê.lo

14. Falta de atenção introspectiva ou esquecimento –

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Dje.nhe

Ignorância + apego

15. Falsidade ou pretensão – Guiu

16. Desonestidade – Yo

Ignorância + apego + raiva

17. Impudência ou ausência de vergonha – NgoTsa Med.pa

18. Falta do senso de propriedade ou desconsideração –

Trel.Me.pa

19. Desinteresse – Bag.me

20. Distração – Nam.yen

Os Onze Fatores Mentais Virtuosos são:

1. Fé – De.pa

2. Sentido do que é correto – Ngo.Tsa.she.pa

3. Consideração pelos outros – Trel.yo.pa

4. Desapego – Ma.tchag.pa

5. Não-raiva ou imperturbabilidade – She.dang.me.pa

6. Não-confusão – Ti.mug.me.pa

7. Perseverança entusiástica – Tson.dru

8. Flexibilidade – Shintu.djang

9. Retidão mental – Bag.yo

10. Não-violência – Nam.par.mi.tse.ba

11. Equanimidade – Tang.nhön

Os Quatro Fatores Mentais que podem ou não ser virtuosos

são:

1. Dormir – nhi

2. Arrependimento – Guio.pa

3. Investigação geral – Tog.pa

4. Análise – Tcho.pa

O Abhidharma distingue entre os fatores mentais que são

puros, saudáveis e os que são impuros e prejudiciais. O

critério usado para fazer essa distinção foi a observação

dos fatores mentais que contribuem para a meditação e para

o desenvolvimento espiritual.

As emoções positivas encontram-se, na maioria das vezes,

encobertas por emoções negativas. A psique humana é formada

por camadas mentais: experiências que se sobrepõem e se

sustentam umas às outras. Por esta razão, o desenvolvimento

espiritual é comparado ao ato de descascar uma cebola: cada

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camada retirada expõe as qualidades da camada que está

abaixo, até desvendar seu núcleo, que é verdadeiramente

puro e positivo. Portanto, o budismo nos inspira a entender

que no exato momento em que sentimos raiva, temos também a

não-raiva como um realidade emocional subjacente à ela.

Ou seja, nossas emoções negativas não podem contaminar

nossa natureza essencial - o núcleo de nossa mente -, mas

podem encobri-la. Se elas fossem inerentes à mente, não

haveria sentido em nosso trabalho de removê-las! Para nos

desenvolvermos interiormente, é essencial perceber que é

possível nos libertarmos delas.

Chögyam Trungpa, um renomado mestre do budismo tibetano,

define o núcleo central e saudável de nossa mente como a

bondade fundamental dos seres humanos. Assim, diz ele: “O

primeiro passo para perceber a bondade fundamental é

valorizar o que temos. Em seguida, porém, deveríamos ver

mais longe e examinar o que somos, quem somos, onde

estamos, quando somos e como somos enquanto seres humanos,

para então sermos capazes de tomar posse da nossa bondade

fundamental. Não se trata de uma „posse‟, mas de todo modo

nós a merecermos”.

A mente pura como cristal está sempre presente; no entanto,

depende de nosso ambiente interior para se manifestar. Isto

é, necessita de constante abertura, confiança e coragem

para olhar o que quer que surja em nossa vida com compaixão

e entendimento.

Chögyam Trungpa esclarece ainda: “A bondade fundamental

está estreitamente vinculada à idéia de Bodhichitta na

tradição budista. Bodhi significa „desperto‟ ou „alerta‟ e

chitta quer dizer „coração‟; Bodhichitta, portanto, é o

„coração desperto‟. O coração desperto provém de estarmos

dispostos a enfrentar nosso estado anímico. Essa exigência

pode parecer excessiva, mas é necessária. Cada um de nós

deve examinar-se, perguntando quantas vezes tentou um

contato pleno e verdadeiro com seu coração”.

No caminho do autoconhecimento, temos que ficar atentos às

desculpas que usamos para não buscar nossa evolução. Não

podemos nos acomodar nem confundir estabilidade com

estagnação ou segurança com resistência à mudança.

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As emoções destrutivas nos deixam inquietos e inseguros.

Se, por exemplo, estamos preocupados em buscar formas de

garantir a continuidade de um prazer, perdemos a

espontaneidade e deixamos de apreciar o momento presente. O

problema é que estamos tão habituados a nosso ambiente

interno de tensão e expectativa que sequer nos damos conta

de que estamos sofrendo.

As emoções positivas, ao contrário, são sempre realistas e

construtivas. Com elas, nos aquietamos e sentimos

disponibilidade para nos abrirmos para os outros.

Jeremy Hayward, discípulo de Chögyam Trungpa, escreve em O

Mundo Sagrado: “Nossa bondade fundamental repousa na

capacidade de vivermos de uma maneira plena, apaixonada,

vívida e ativa; na capacidade de estarmos totalmente

conscientes de nossa vida e de vivê-la irrestritamente, não

importa as reviravoltas que possa dar; e na capacidade de

cuidar tanto dos outros quanto de nós mesmos”.

Portanto, o ponto de partida é aceitar que podemos

transformar nossa mente inquieta em uma mente de abertura e

confiança: voltar “para casa”, como dizem os mestres

budistas.