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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
AÇÃO DE RESTITUIÇÃO DE DINHEIRO DOS CORRENTISTAS NA
FALÊNCIA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA
Nova Lima
2008
PATRÍCIA FARIA MORAES DE ARAÚJO GONÇALVES
AÇÃO DE RESTITUIÇÃO DE DINHEIRO DOS CORRENTISTAS NA
FALÊNCIA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Direito Milton Campos, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Direito Empresarial. Área de Concentração: Falência Orientador: Prof. Dr. Vinícius José Marques Gontijo
Nova Lima
2008
GONCALVES, Patrícia Faria Moraes de Araújo.
G635 a Ação de restituição de dinheiro dos correntistas na falência de instituição
financeira./ Patrícia Faria Moraes de Araújo Gonçalves – Nova Lima: Faculdade de
Direito Milton Campos / FDMC, 2008
104 f. enc.
Orientador: Prof. Dr. Vinícius José Marques Gontijo
Dissertação (Mestrado) – Dissertação para obtenção do título de Mestre, área de concentração Direito empresarial junto a Faculdade de Direito Milton Campos.
Bibliografia: f. 98 - 104
1. Falência. 2. Instituição Financeira. 3. Depósito Bancário. 4. Restituição. I.
Vinicius, José Marques Gontijo. II. Faculdade de Direito Milton Campos III. Título
CDU 347.736:336.7
Ficha catalográfica elaborada por Emilce Maria Diniz – CRB – 6 / 1206
Faculdade de Direito Milton Campos – Mestrado em Direito
Empresarial
Dissertação intitulada “Ação de restituição de dinheiro
dos correntistas na falência de instituição financeira ,
de autoria da Mestranda Patrícia Faria Moraes de
Araújo Gonçalves”, para exame da banca constituída
pelos seguintes professores:
Prof. Dr. Vinícius José Marques Gontijo Orientador
Prof. Dr.
Prof. Dr.
Nova Lima, novembro de 2008.
Alameda da Serra, 61 – Bairro Vila da Serra – Nova Lima – Cep 34000-000 – Minas Gerais – Brasil. Tel/fax (31) 3289-1900
À minha mãe.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Professor Doutor Vinícius José Marques Gontijo, pela paciência, seriedade e
incentivo na elaboração deste trabalho.
À professora Lúcia Massara, por ser meu modelo de ética, competência e dedicação, desde os tempos
da graduação na Universidade Federal de Minas Gerais, e por despertar em mim a inspiradora
curiosidade jurídica e o desejo de excelência.
Ao meu pai, pelo exemplo de força, garra, persistência e sucesso.
À Foy, pelo orgulho de ser advogada.
Ao Mauro e à Kiki, pelo carinho, sempre.
“Cheguem até a borda – ela disse.
Temos medo – eles responderam.
Cheguem até a borda – ela insistiu.
Eles chegaram. Ela os empurrou.
... E eles voaram”
(Autor desconhecido)
RESUMO
A ação de restituição na falência tem por objetivo destacar, do
montante arrecadado pelo síndico, os bens que não pertencem a ele. Este
instituto está fundado essencialmente no direito de propriedade e visa
lapidar o patrimônio arrecadado que será utilizado no pagamento dos
débitos do falido. A característica fundamental deste tipo de ação é a
possibilidade de identificar e individualizar o objeto a ser restituído, de forma
que a possibilidade de restituição de dinheiro na falência já mereceu amplo
debate em nosso sistema jurídico. Se, por um lado, é impossível
individualizar a cédula depositada e devolver esta mesma cédula, por outro,
admitir que o depósito bancário implica transferência de propriedade e que
portanto o dinheiro depositado passa a ser propriedade da instituição
financeira parece-nos constitui violação aos pilares de nosso direito. Devido
à relevância do tema para o sistema financeiro e para a economia de uma
nação, a diversidade de interpretações e as diversas perspectivas
levantadas sobre o tema são capazes de influenciar todo o país.
Palavras Chave: Falência. Instituição Financeira. Depósito Bancário.
Restituição.
ABSTRACT
The restitution lawsuit in bankruptcy aims to detach, from the amount of
assets colleted by the administrator, the ones that do not belong to the debtor.
Its foundation is essentially on the property law, and aims at polishing the
assets that are to be used on the payment of the debts. The most important
characteristic of this kind of lawsuit is for the object to be capable of
identification and individualization, so, it has been widely questioned by the
doctrine whether money may be this object. If, on one hand, it is impossible do
know which bill was deposited, in order to be returned to the owner, on the
other, it sounds incredibly awkward to admit that the money a person deposits
in a bank belongs to the bank. Due to its significant relevance to the economy
and finance of a country, the diversity of interpretation and the different
perspectives the theme brings are capable of influencing an entire generation of
a nation.
Key-words: bankruptcy; bank, financial institution; deposit; restitution.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 AÇÃO DE RESTITUIÇÃO...................... .................................................. 16
2.1 Evolução histórica..................................................................................... 16
2.2 Cabimento da restituição.......................................................................... 21
3 DO CONTRATO DE DEPÓSITO ................................................................26
4 DO DEPÓSITO IRREGULAR.................... .............................................. 27
4.1 Do depósito bancário................................................................................ 36
4.2 Da diferença e semelhança com o mútuo................................................ 44
5 DA CONFIABILIDADE DO SISTEMA FINANCEIRO.. ............................ 49
5.1 Da relação entre o banco e o correntista.................................................. 52
5.2 Da autonomia do banco na gestão de quantia depositada...................... 54
6 DA ORIGEM DA RESTITUIÇÃO EM DINHEIRO – SÚ MULA 417.......... 56
6.1 Da propriedade dos valores depositados em conta corrente................... 63
6.2 Da individuação de valores depositados em conta corrente.................... 69
6.3 Da transferência de propriedade.............................................................. 78
6.3.1 Penhora na boca do caixa........................................................................ 80
6.3.2 Fungibilidade ...............................................................................................81
7 DA POSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO DE DINHEIRO ARREC ADADO
EM PODER DO FALIDO ................................ ....................................................
84
8 CONCLUSÃO................................ ........................................................... 94
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 98
1 INTRODUÇÃO
O tema da presente dissertação insere-se nas mais recentes questões
que vêm permeando a evolução do Direito Comercial. Muitas vezes, as
limitações de análise favorecem, de forma inoportuna e contra legem, grupos
em detrimento de outros em situações relacionadas à restituição de dinheiro de
terceiros na falência.
Antes de definirmos o recorte específico da hipótese, pretendemos
estabelecer as questões gerais que devem balizar a discussão em termos
amplos, ainda que das respostas finais estejamos sempre a muitos passos de
distância.
Não pretendemos, e nem devemos, dentro do limite desta dissertação,
responder, de forma cabal, às questões enfrentadas. No decorrer de nosso
estudo, muitos foram os acórdãos estudados, em todas as instâncias.
Percebemos que as decisões dos tribunais muitas vezes envolvem questões
políticas, fundadas em ideologias que pretendem estabelecer o que é correto e
em que medida a realização dos resultados sociais dos julgados é mais
benéfica ou maléfica, especialmente em termos econômicos, à sociedade em
geral. Não seria adequado, embora pudesse ser interessante, lançar mão de
cálculos econômicos ou estatísticas, a fim de se verificar o maior ou o menor
efeito das decisões, especialmente tendo-se em vista que a jurisprudência
acerca do tema já se encontra, em grande parte, sedimentada.
Não obstante, alguns dos tópicos tratados extrapolam o âmbito do
Direito Comercial. Apesar disso, entendemos que o Direito, como o estudamos,
é um todo, não homogêneo, interpenetrado e relacionado. Não há como
explicar um órgão do corpo sem que se explique como ele funciona em
conexão com todo o organismo, ou dispositivos legais sem inseri-los no
empreendimento maior que o direito pretende.
A escolha do tema foi marcada pelo interesse em compreender melhor e
discernir tecnicamente a incongruência das interpretações que dão os tribunais
a questões relativas à possibilidade de restituição de dinheiro de terceiros no
processo falimentar. Esse interesse nasceu da indignação pela interpretação
dada pelos tribunais aos casos de restituição aforados quando da falência do
Banco do Progresso S/A, ocorrida em Belo Horizonte, no final da década de 90.
Aliados a essa situação, nutrimos o desejo de melhor compreensão do
instituto da propriedade privada, cuja garantia está expressa na nossa Magna
Carta e as limitações ao seu exercício, à luz da idéia de que a propriedade
privada é uma das cláusulas pétreas da nossa Constituição, o que faz dela pilar
do Estado Democrático de Direito.
GIORGIO DEL VECCHIO1 afirma, in verbis:
Não há interferência entre homens, não há controvérsia possível, por mais complicada e imprevista que seja, que não admita e exija uma solução jurídica. Dúvidas e incertezas podem persistir por longo tempo no campo teórico: todos os ramos do saber e a própria jurisprudência, como ciência teórica, oferecem exemplos de questões discutidas por séculos, e, não obstante, sem solução, ou talvez, insolúveis. Mas à pergunta ‘quid juris' é necessário, em qualquer caso concreto, dar-se resposta, certamente não infalível, mas praticamente definitiva.
Em se tratando de um tema tão complexo, controverso, longe de uma
pacificação doutrinária ou pretoriana, com valiosos argumentos e fundamentos
para os dois lados, buscaremos respostas para as nossas inquietações no
estudo dos institutos de Direito correlatos à questão, confiantes na idéia de que
o conhecimento nos traz maior certeza nas posições assumidas.
Entende-se, de um lado, que o depósito em conta bancária é
caracterizado como depósito irregular, equiparável ao mútuo, com transferência
da disponibilidade daquele capital para o banco. Nesse sentido, impossível
seria restituir valores depositados em conta corrente, pois, decretada a
falência, esses valores são arrecadados e compõem a massa falida, servindo
como garantia aos credores.
1 VECCHIO, Giorgio Del. Princípios gerais do direito. Traduzido por Fernando de Bragança. São Paulo: Ed. Líder, 2003. p.7
De outra banda, vê-se que, devido às características próprias do
depósito irregular, marcadas especificamente pela permanência da
propriedade/titularidade do depositante e, evidentemente, pela sua
disponibilidade, chega-se à conclusão de que diverge substancialmente do
mútuo, uma vez que a disponibilidade é característica inerente à propriedade.
Ao manter a propriedade dos valores depositados em conta corrente, conclui-
se que não há transferência ao banco, que atua como simples guardião de bem
de terceiro, tornando-se imperativa a lapidação da massa falida, através da
desintegração dos bens e valores que dela não fazem parte, antes de submeter
seus bens ao concurso de credores.
Finalmente, a presente dissertação foi marcada por uma constante
preocupação com a linguagem, não apenas no sentido da polidez e gramática,
mas também, e principalmente, no sentido da lingüística e comunicação, já que
as idéias se expressam pelas palavras, as quais são dotadas de diversos
sentidos e subsistem em inúmeras acepções, assim como nas diversas áreas
do conhecimento e da sociedade.
Por fim, a Filosofia do Direito, em sua constante preocupação em
determinar novas e possíveis soluções para antigas questões sobre a justiça
dos homens, sobre as conseqüências morais e fáticas de nossos atos, e como
a sociedade se relaciona com a linguagem jurídica e seus efeitos, não poderia
deixar de estar presente em algumas passagens, para iluminar os caminhos da
crítica e análise dos institutos estudados. Foi através da Filosofia do Direito que
buscamos compreender os institutos estudados de forma mais objetiva e
sintética, sem, entretanto, comprometer o sentido de nossas idéias.
Ao discorrer sobre o assunto, o jusfilósofo Gustav Radbruch2 adverte
que o Direito deve ser manobrado com segurança, que necessita ser atingida
pela regulamentação uniforme das coisas. O leitor perceberá, em todo o
trabalho, uma busca incessante por um padrão que ampare a obrigatoriedade
2 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 6. ed. Coimbra: Ed. Livraria Almedina, 1974. p. 74.
do Direito e seu princípio de eficácia. Tal filosofia de contradições, reinante em
nosso sistema legal, infirma as regras de validade e aumenta a probabilidade
de conflito, uma vez que, sem uma exegese substancial, não se consegue
erradicar a equivocidade legiferante.
Não são raras as vezes em que nos deparamos com uma miscelânea de
leis contraditórias aprovadas pelo Legislativo, que representam forças políticas
momentâneas e antagônicas. O Poder Judiciário, entretanto, possui
independência frente ao Legislativo e ao Executivo, o que fornece à
administração da justiça, maior isenção e garantia de entendimento. É que,
através da observância dos princípios contidos na Constituição, o Poder
Judiciário possui meios de impedir que forças políticas subvertam a toda hora
os direitos, como se estes pudessem ser medidos pelos interesses dos
vencedores do momento.
Assim é que a Constituição da República foi o instrumento desenvolvido
para dar e manter o equilíbrio das forças antagônicas em busca de um
entendimento, fornecendo, portanto, direções, caminhos para a busca da paz e
harmonia.
Cabe à Constituição fornecer norte de atuação, estabelecer limites, fixar
regras e princípios. E cabe ao Juiz pesar os dois lados, antes de chegar a um
veredito. Julgamentos ancorados em conceitos comerciais, contábeis ou
consuetudinários serão sempre parciais, e adotarão o ponto de vista de uma
das partes. No entanto, adotar-se sempre a defesa dos mais fracos seria uma
opção política muito partidária.
Não é preciso ir muito longe para perceber quanto é favorável a situação
do mais forte, e qual a função original da construção dos ideais de justiça em
torno da defesa dos mais fracos. Os fortes não precisam da justiça. Uma
pretensa neutralidade apenas acoberta o forte subjugando o fraco, já que não
se pode julgar igualmente situações desiguais. Como disse Aristóteles: “Os
fracos anseiam sempre por justiça e igualdade. Já os fortes não se importam
com nenhuma das duas”3.
Acerca da aplicação da filosofia ao estudo dos institutos do Direito,
Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, em seu Hermenêutica e aplicação do
direito, sustenta e explica o dispositivo amortecedor do rigor excepcional das
leis – a equidade – como "regra de suavização e humanização do direito", na
feliz imagem de Dilvanir José da Costa, em artigo sobre o hermeneuta.4
Pois bem: às páginas 79 e 80 daquela obra, que já comemora seu 80º
aniversário (18ª edição - Revista Forense - 1998) o jurista pondera, in verbis:
Todo Direito escrito encerra uma parcela de injustiça. Parece justa a regra somente quando as diferenças entre ela e o fato são insignificantes, insensíveis. Preceitua de um modo geral; é impossível adaptá-la, em absoluto, às mil circunstâncias várias dos casos particulares. Permitir abandoná-la então, sob o pretexto de buscar atingir o ideal de justiça, importaria em criar mal maior; porque a vantagem precípua das codificações consiste na certeza, na relativa estabilidade do Direito. A norma positiva não é um conjunto de preceitos rijos, cadavéricos, e criados pela vontade humana; é uma força viva, operante, suscetível de desenvolvimento; mas o progresso e a adaptação à realidade efetuam-se de acordo, aproximando, ou pelo menos aparente, com o texto; não em contraste com este.
E mais:
Não basta a elaboração lógica dos materiais jurídicos que se encontram num processo, para atingir o ideal de justiça baseada nos preceitos codificados. Força é compreender bem os fatos e ser inspirado pelo nobre interesse pelos destinos humanos; compenetrar-se do sofrimento e aspirações das partes, e lhes não oferecer "uma pedra de simples raciocínio, e, sim, o pão de amparadora simpatia". O juiz, embora se não deixe arrastar pelo sentimento, adapta o texto à vida real e faz do Direito o que ele deve ser, uma condição da coexistência humana, um auxiliar da idéia, hoje vitoriosa, da solidariedade social. Por isso, o magistrado ficará abaixo do seu ministério sublime, se lhe faltar algum dos requisitos seguintes: "inteligência suficiente por natureza, estudo e exercício; ânimo
3 ARISTÓTELES. Ética a Nicômano. São Paulo: Atena, [1950]. (Biblioteca Clássica, 33), Livro V, Cap.1, p.136. 4 Atualidade de Carlos Maximiliano, publicado no jornal Estado de Minas, p. 7, edição de 17.11.2003.
simples e imparcial por estar livre de preconceitos, paixões e interesses: intenção de conhecer a verdade; estudo diligente; minuciosa e contínua observação das mais insignificantes circunstâncias de fato”.
Foi à luz dessas premissas que iniciamos nosso estudo. E é com tal
norte que pretendemos desenvolver as idéias que nos surgiram, que,
certamente, trouxeram mais perguntas do que respostas.
2 DO PEDIDO DE RESTITUIÇÃO
2.1 Evolução histórica do instituto
A ação de restituição de valores possui grandes ligações com a ação de
reivindicação.
A restituição pressupõe a perda da posse injustamente ocorrida com a
arrecadação.
Carlos Henrique Abrão5, com apoio em Pontes de Miranda, pontifica que
a expressão “restituição” pode apresentar múltiplas interpretações, dentre as
quais se poderia destacar a entrega de bem que poderia ser alvo de pleito
reivindicatório, a entrega de bem gravado, conferido somente o uso e o
usufruto; a entrega do bem não mais sujeito à posse do falido e a entrega de
bem do qual o falido só tinha a posse.
Assim, as quatro acepções coadunam-se com a idéia de lapidação da
massa falida, para, após a exclusão dos bens que dela devam ser excluídos,
poder-se aferir o montante arrecadado e efetuar-se a divisão segundo os
critérios de igualdade definidos pelo princípio do par conditio creditorum.
Foi Pontes de Miranda, também, quem se propôs a classificar o direito
do terceiro em relação à arrecadação. Em sua obra Tratado de Direito
Privado6, este jurista elencou a ação de reivindicação, a vindicatória baseada
em direito real e as ações indicativas de posse. No entanto, a própria
classificação do direito real é de per si suficiente e fundamental para o
exercício da reclamação. É o direito real que move o agente no sentido de
requerer a decotação de um bem que esteja na massa arrecadada de forma
que tal bem não fique subordinado ao concurso de credores.
5 ABRÃO, Carlos Henrique. Pedido de restituição na concordata e na falência. São Paulo: Ed. Leud, 1991. p. 9. 6 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Borsoi, 1960. p. 78. Tomo XXIX.
As mais remotas referências à questão da quebra, em nosso
ordenamento, remontam à legislação de 1850. Tal lei declinou os credores da
massa da seguinte forma: credores de domínio, privilegiados, hipotecários e
quirografários. Especificamente, foi o artigo 874 da Lei 556, de 5 de junho de
1850, revogada em 1945 pela Lei 7661, que especificou os credores de
domínio, da seguinte forma:
“Art. 874 - Pertencem à classe de credores do domínio:
I - Os credores de bens que o falido possuir por título de depósito,
penhor, administração, arrendamento, aluguel, comodato, ou usufruto;
II - Os credores de mercadorias em comissão de compra ou venda,
trânsito ou entrega;
III - Os credores de letras de câmbio, ou outros quaisquer títulos
comerciais endossados sem transferência da propriedade (art. 361 n. 3);
IV - Os credores de remessas feitas ao falido para um fim determinado;
V - O filho famílias, pelos bens castrenses e adventícios, o herdeiro e o
legatário pelos bens da herança ou legado, e o tutelado pelos bens da tutoria
ou curadoria;
VI - A mulher casada: I. pelos bens dotais, e pelos parafernais que
possuísse antes do consórcio, se os respectivos títulos se acharem lançados
no Registro do Comércio dentro de quinze dias subseqüentes à celebração do
matrimônio (art. 31): II. pelos bens adquiridos na constância do consórcio por
título de doação, herança ou legado com a cláusula de não entrarem na
comunhão, uma vez que se prove por documento competente que tais bens
entrarão efetivamente no poder do marido, e os respectivos títulos e
documentos tenham sido inscritos no Registro do Comércio dentro de quinze
dias subseqüentes ao do recebimento (art. 31);
VII - O dono da coisa furtada existente em espécie;
VIII - O vendedor antes da entrega da coisa vendida, se a venda não for
a crédito (art. 198)”.
A posição do terceiro interessado assume, a partir de então, enorme
leque de possibilidades, tendo o legislador se superado nas diversas
conjugações, fazendo com que o instituto da reivindicação tivesse sua
compreensão significativamente dificultada.
Em 1890, foi o Decreto 917, de 24 de outubro de 1890 que veio tratar da
figura do credor reivindicante, dispondo sobre as várias hipóteses de restituição
fundadas no direito de propriedade. E foi a partir de então que se viu surgirem
sintonias entre os créditos de domínio e as ações de reivindicação, no âmbito
da falência.
A Lei 859, de 1902, estruturou as classes de credores reivindicantes.
Seu artigo 76 estatuiu a ação real reipersecutória, vislumbrando a propriedade
plena jus in re.7
A Lei 2024, de 1908, trouxe, em seu artigo 138, a positivação de casos
de reivindicação em falência, suprimindo, porém, a figura do credor de terceiro,
que passa a ser tratado como reivindicante.
O mesmo diploma legal contemplava a reclamação reivindicatória e o
remédio dos embargos de terceiro senhor e possuidor. Se porventura o terceiro
não conseguisse demonstrar sua qualidade de possuidor da coisa e,
conseqüentemente, tivesse inviabializados os embargos, ainda assim poderia
reivindicar o bem, nos casos em que a decisão judicial fosse omissa acerca do
domínio do bem perseguido. Assim, o reivindicante poderia ser, tanto o
comerciante, como qualquer terceiro que tivesse fundamento para uma simples
reclamação.
Em 1929, com o advento do Decreto 5746, a reivindicação passou a
estender seus efeitos à concordata preventiva.
7 Jus in re: direito de propriedade. “in re” ou “in rem”. Re ou rem, de res, rei (coisa material, coisa corpórea), são palavras latinas que, sob a regência das preposições “ad” e “in”, formam várias locuções de uso freqüente na terminologia jurídica, para exprimir fatos ou ações, que se referem às coisas ou que se fundam no direito de propriedade (jus in re), em distinção ao que se possa referir às pessoas ou se mostre questões de caráter pessoal. (In: DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 435.
Tal visão era baseada no fato de que o comerciante, embora
impossibilitado de exercer suas atividades, poderia não estar totalmente
impossibilitado de cumprir com obrigações que lhe coubessem. Waldemar
Ferreira8 (1966) foi um dos grandes defensores desta questão, ao ensinar:
Nada obsta, todavia, antes de tudo aconselha que também se permita a reivindicação no processo da concordata preventiva, principalmente das coisas vendidas a crédito na véspera do requerimento desta, e ainda em poder do devedor. Inúmeros são os casos de comerciantes que, dias antes do requerimento da convocação dos credores, para lhes propor concordata preventiva, compram mercadorias, só com o intuito de não pagar.
Com a depressão econômica de 1929, que culminou no crash da bolsa
de valores dos Estados Unidos, as relações jurídicas foram profundamente
modificadas, em virtude da insegurança jurídica que permeava a economia da
época. Vários foram os comerciantes que sucumbiram, tendo o número de
pedidos de concordatas e falências crescido, paulatinamente, na época.
Assim, a intervenção do legislador no domínio econômico foi se tornando
cada vez mais presente e imperativa, dada a imprescindibilidade de
interferência no curso dos negócios e respaldar os comerciantes que agiam
impelidos pelo desenvolvimento econômico.
Assim, fez-se terreno fértil para a ampliação da utilização do Decreto
5746, que previa e balizava a forma através da qual o terceiro poderia reclamar
o bem de sua propriedade. Muitos comerciantes, ao ensejo do pedido de
concordata preventiva, aumentaram adredemente seus acervos patrimoniais,
constituindo um estoque considerável e dissimulando a verdadeira situação de
seu negócio.
A disciplina normativa específica sobreveio, portanto, no intuito de
minimizar esse expediente e limitar os efeitos maléficos que surgiam no cenário
8 FERREIRA, Valdemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1960. v. 15, p. 91.
econômico. É bem verdade que o legislador da época pretendia resguardar os
contratos de compra e venda mercantil. Não obstante, foi a premente
necessidade de se acautelarem os interesses dos que, conduzidos pelas leis
do mercado, se viram compelidos a entregar mercadorias a compradores que
não iriam cumprir com seus compromissos que representou um fértil campo ao
desenvolvimento do instituto.
O pedido de reivindicação distinguia-se da simples restituição,
especialmente em virtude do fato de que, na reivindicação, a coisa móvel
deveria estar com o agente, enquanto o pedido de restituição encontrava-se
amparado em contrato.
Os atributos legais disciplinados nos diplomas normativos permitiam a
visão do conjunto e, por corolário, o estabelecimento de fonte de referência
entre passado e presente.
Nesse cenário é que o legislador de 1945 desenvolveu o procedimento
do pedido de restituição e dos embargos de terceiro (arts. 76 a 78). Por essa
lei, definiu-se o pedido de restituição como o exercício de um direito real, quer
decorrente de domínio, quer decorrente de qualquer dos vínculos a ele
inerentes, ou de um direito obrigacional anterior à quebra ou dela decorrente. É
a evolução de um instituto no decorrer dos tempos, em face das condicionantes
sociais.
No art. 76 do Decreto-Lei 7661/45, encontravam-se as hipóteses de
intervenção de terceiros na esfera dos bens constantes da massa arrecadados
pelo síndico. Paralelamente, o parágrafo 2º do artigo 76 tratou da restituição
nos contratos de compra e venda e o parágrafo 1º autorizou a restituição em
casos nos quais a coisa tivesse sido alienada pela massa, e o art. 79 garantiu o
manejo dos embargos de terceiro nas situações não abrangidas pelo pedido de
restituição, referenciando expressamente à situação de terceiro que se vê
esbulhado ou turbado na sua posse, o que quer dizer, qualquer
constrangimento sofrido e que demanda reparação do ato.
A Lei 11.101, promulgada em 9 de fevereiro de 2005, após tramitar no
Congresso Nacional por onze anos, inseriu relevantes e profundas alterações
na sistemática do Direito Falimentar Brasileiro, sendo a primeira delas a
substituição do instituto da concordata pelo da recuperação da empresa.
Não obstante as profundas alterações trazidas por essa lei, o instituto da
restituição permaneceu praticamente intocado. A única alteração foi a inserção
de uma hipótese entre os casos de restituição, concernente ao contrato de
câmbio.
Entretanto, cabe-nos destacar que o pagamento de restituições em
dinheiro foi postergado para depois do pagamento dos saldos salariais a que
alude o art. 1519 da Nova Lei de Falências, o que não lhe retira a natureza
extraconcursal, pois os referidos saldos, limitados a cinco salários mínimos,
têm caráter de mera antecipação, já que o respectivo valor atualizado será
deduzido do pagamento final do crédito a que tem direito o empregado.10
2.2 Cabimento do pedido de restituição
Determina o art. 108 da Lei 11.101/2005 que a decretação da falência
será seguida in continenti pela nomeação do síndico e pela arrecadação.
9 “Art. 151: Os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador serão pagos tão logo haja disponibilidade em caixa.” 10 A Confederação Nacional das Profissões liberais ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de suspensão cautelar da eficácia das normas impugnadas, ADI 3424, impugnando os arts. 83,inciso I e inciso VI, alínea C, que se insere os créditos trabalhistas em primeiro ligar na ordem de classificação dos créditos, porem limitados a 150 salários mínimos; art. 83 paragrafo 4º. Que transforma o crédito trabalhista objeto de cessão em crédito quirografário, art. 86, inciso II, que consagra a restituição em dinheiro da importância entregue ao devedor decorrente de adiantamento a contrato de cambio para exportação ; art. 84 inciso V, que considera extraconcursais os créditos correspondentes a obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, ou após a decretação da falência. A referida ação tinha como relator o Ministro Carlos Velloso. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 10 de outubro de 2008.
No dizer de Fábio Ulhôa Coelho11, “a arrecadação é um ato e a
restituição um procedimento. A restituição visa a definir o ativo da falida,
decotando-se dele aqueles bens ou coisas que não o integram ou seja,
destacar os bens cuja propriedade não devem compor a massa falida”.
Pode ocorrer, no entanto, que, no momento da arrecadação, alguns
bens ou coisas que estavam na posse do falido não lhe pertencessem.
Assim, é cabível a restituição dos bens que se encontravam em posse
da massa, dos quais a massa fosse comodatária, depositária ou locatária, por
exemplo.
Esses bens de terceiros em poder do falido podem aí estar:
a) em virtude de direito real
b) em virtude de contrato.
Entende Bezerra Filho12 (2008) que a restituição só é possível para o
proprietário, ou seja, apenas com fundamento em direito real de propriedade,
limitando a disposição constante no art. 76 da lei anterior, que previa também a
restituição para bem devido em virtude de contrato. É que no sistema da lei
atual, embora seja prevista a restituição de outros bens, além daqueles devidos
em razão do direito de propriedade, essas outras restituições estão previstas
em outros artigos da legislação, como, por exemplo, no art. 86 e no art. 136, ou
em lei especial, como é o caso da alienação fiduciária. (Decreto-Lei 911/69).
Assim é que o pedido de restituição só pode referir-se a coisas sobre as
quais o falido não tenha direito real ou direito a posse. Não se pode pleitear a
restituição de bens que devam integrar a massa falida.
11 COELHO, Fabio Ulhôa. Curso de direito comercial – de acordo com a nova lei de falências.
5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. vol. 3. p. 311. 12 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falências comentada. 5. ed. São Paulo: Ed. RT., 2008. p. 230-231.
Assim, a lei prevê a ação de restituição ou pedido de restituição como
um meio de se decotar da massa aqueles bens ou coisas que não pertencem
ao falido, ou seja, sempre que algum bem tenha sido incorporado no patrimônio
do falido de forma ilegítima. Daí a terminologia, utilizada por Waldemar
Ferreira13, de chamar a arrecadação de integração da massa e a restituição de
desintegração.
Havia, na vigência da Lei 7.661 de 1945 uma controvérsia acerca da
palavra “coisa”. VALVERDE (1948, p.455)14 só admitia a restituição de coisa
corpórea, já que a lei falava em coisa e não em bens, sendo que coisa é uma
espécie do gênero bens.
Rubens Requião15, de maneira diversa, já entendia que a palavra coisa
era mais adequada à definição do instituto, uma vez que um bem pode ser
incorpóreo e os bens incorpóreos não podem, em seu entender, ser objeto de
restituição.
Destaca-se do enunciado do art. 7616 a expressão “cousa”. Pode ser
pedida a restituição de “cousa arrecadada em poder do falido, enuncia
textualmente a norma indicada. Vê-se que o legislador um momento sequer, no
decorrer do Título V, da Lei de Falências, usou da expressão bens.17
Entretanto, a doutrina moderna superou essa questão ao reconhecer
que também bens incorpóreos podem ser encontrados na massa falida, como,
por exemplo, a licença do uso de uma marca. Encontrados tais bens em poder
13 FERREIRA, W. op. cit., 1966. v. 15. 14 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à lei de falências. Rio de Janeiro: Forense, 1948. V.II, n.502, p.455: “Objeto do pedido de restituição, quer fundado em direito real, quer em contrato, há de ser coisa corpórea, móvel ou imóvel, (corpus certum), arrecadada em poder do falido, a qual deverá ser designada por seus sinais característicos, se é móvel, pela situação e confrontações se é imóvel”. 15 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 12ª. Ed. São Paulo: Ed. Saraiva,1998. p.244-245. vol.1 16 Referência ao artigo da lei 7661/45. 17 REQUIÃO, R. op. cit., 1998. p. 242. vol.1.
da falida, é inquestionável o cabimento do pedido de restituição, nos termos do
art. 85 da Lei 11.101, de 2005.
Diante de tais considerações, tornou-se cada vez mais disseminada a
idéia de que uma expressão poderá ser utilizada por outra, sem maiores
distinções.
No entanto, tal discussão acaba por transpor, para o Direito Falimentar,
uma antiga antinomia existente entre os civilistas, acerca da propriedade de
uma ou outra expressão.
Parte da doutrina entende que “bens” constituem-se o gênero, nele
compreendendo tanto os bens materiais como os bens imateriais; e “cousa”
destina-se a designar, apenas, a espécie que corresponde aos bens materiais.
Assim, cousa seria sinônimo de bens materiais.
Outra corrente considera irrelevante a distinção, permitindo o uso
indistinto das duas expressões que seriam sinônimas.
A questão toma corpo à luz da noção de que, no Direito pátrio, existem
duas correntes que restringem ou não a reivindicatória, por assim dizer
subjacente ao pedido restituitório, à coisa corpórea.
Silva Pacheco18 analisa esse aspecto da questão formulando uma
opinião liberal que merece ser posta em destaque: expostas as duas
orientações, em campo doutrinário, cabe-nos concluir que: a) o legislador, ao
redigir o art. 76, usou, propositadamente, a palavra “cousa” para significar o
bem material quantificado e medível, o bem corpóreo, em consonância com a
doutrina consubstanciada na primeira orientação, por nós esboçada; b)
contudo, existindo bens incorpóreos, apreendidos pela arrecadação e sobre
eles tenha alguém qualquer vínculo real ou obrigacional, capaz de justificar o
pedido de restituição, não se pode deixar de ter este como viável e procedente. 18 PACHECO, José da Silva. Processo de falência e concordata: comentários à lei de falências: doutrina, prática e jurisprudência. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. vol. II, pág. 660.
Assim, havendo bens arrecadados – materiais ou imateriais, corpóreos
ou incorpóreos – sobre os quais o falido ou a massa não tenha titularidade ou
direito, sendo tal titularidade demonstrada por terceiros, a ele deverá ser
deferido o pedido de restituição.
A esse respeito, manifesta-se José da Silva Pacheco (1999)19:
Existindo bens incorpóreos, apreendidos pela arrecadação e sobre eles tenha alguém vínculo real ou obrigacional, capaz de justificar o pedido de restituição, não se pode deixar de ter este como viável e procedente. Desde que haja bens arrecadados – corpóreos ou incorpóreos, materiais ou imateriais – sobre os quais não tenha o falido ou a massa qualquer direito ou titularidade, e esta seja demonstrada por terceiro, cabível o pedido de restituição.
E de tal forma nos parece mais adequado. Difícil seria a um tribunal
negar ao titular de uma patente de invenção, por exemplo, arrecadada pelo
síndico em poder do falido, devido a um contrato de licença, que não se lhe
reconhecesse o direito de reclamar a restituição da mesma. A patente, sabe-
se, constitui-se apenas o certificado da concessão de privilégio, isto é, de um
direito imaterial ou incorpóreo.
O art. 85 da Lei 11.101/2005, ao tratar do tema, parece-nos que
pretendeu fugir desta celeuma. Não se percebe, pela leitura do texto legal,
intenção de se fazer tal distinção.
Isto porque ora o legislador se refere a bem, e diz coisa, e vice-versa. E
como a lei nova não distingue entre coisa e bem, não há sentido em proibir a
restituição de um e autorizar a do outro.
A questão está em definir se, no depósito bancário, há ou não a
transferência de propriedade do dinheiro dos correntistas à instituição bancária
e, em virtude disto, se tem ou não o direito à restituição dos valores
19 PACHECO, J. da S., op. cit., 1999, p. 660.
depositados, com preferência, em relação aos demais credores habilitados, em
caso de decretação da falência.
3 DO CONTRATO DE DEPÓSITO
O contrato de depósito é regulado pelo artigo 627 do Código Civil, que
estabelece que “pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto
móvel, para guardar, até que o depositante o reclame”.
Assim, trata-se de um contrato tradicional, pelo qual uma pessoa recebe,
para guardar, um objeto móvel alheio. Divide-se em duas modalidades:
a) O depósito regular, atinente à coisa individuada, infungível e
inconsumível, que deve ser restituída in natura.
b) O depósito irregular, que recai sobre bem fungível ou consumível. Este é
o depósito bancário, envolvendo dinheiro.
No depósito bancário, o depositário pode dispor da coisa depositada,
consumindo-a e restituindo ao depositante, oportunamente, outra da mesma
espécie, quantidade e qualidade.
Maria Helena Diniz20 acrescenta à definição legal as noções de que o
contratado (depositário) recebe do contratante (depositante) um bem móvel,
corpóreo, obrigando-se a guardá-lo, temporária e gratuitamente, para restituí-lo
quando lhe for exigido.
A doutrina tem, no entanto, elastecido a noção de bem corpóreo,
admitindo que se possa transferir por depósito um bem incorpóreo, como, por
exemplo, o direito de uso de uma marca ou patente. Tal idéia, no entanto, é de
plano rechaçada por Venosa (2007)21, que defende que a definição legal
reporta-se a, exclusivamente, coisa móvel. Para esse autor, as coisas
incorpóreas não podem ser objeto de restituição, porquanto não são passíveis
de individuação.
20 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002. 21 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil – contratos em espécie. 7. ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2007. p 232
O termo depósito, além de designar a espécie de contrato, refere-se,
também ao objeto do depósito. Pelo contrato de depósito, impõe-se ao
depositário a responsabilidade de cuidar para que a coisa não se perca ou
deteriore, e ele responde se culposamente concorreu para com tal situação.
A responsabilidade do depositário estende-se, até mesmo, quando às
condições físicas da coisa entregue, dispondo a lei, especificamente, que ele
deverá respeitar o segredo do bem sob sua guarda, o invólucro, o selo,
constituindo infração contratual, até mesmo a devassa da embalagem.
É contrato primordialmente unilateral e gratuito, contendo obrigações
assumidas somente pelo depositário da coisa. Nos termos do art. 629 do
Código Civil, incumbe ao depositário a obrigação de guardar a coisa sob seu
poder, que fica sob sua responsabilidade. Ele deve cuidar da coisa como se
fosse sua, tendo para com ela o máximo de diligência e cuidado possíveis, de
modo a, ao restituí-la, fazê-lo com o acréscimo dos frutos e acessórios. Quanto
à gratuidade, embora seja de sua essência, pode haver cláusula que preveja a
onerosidade, estipulando uma gratificação ao depositário, seja pela sua
atividade profissional ou por um serviço prestado.
Ensina Pontes de Miranda22: “O contrato de depósito irregular é, em
regra, contrato unilateral”.
Nesses casos, ou ainda em casos nos quais o depositante vier a se
tornar credor do depositário, a característica de bilateralidade se faz presente.
Essa idéia é bastante difundida, tendo sido defendida por Osmar Brina
Corrêa Lima23 às fls. 42 dos autos 024.00.033.958-0. Segundo esse jurista,
22 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Parte Especial. Rio de Janeiro: Borsoi, 1964. p.374. Tomo 42. 23 CORRÊA LIMA, Osmar Brina. Autos 024.00.033.958-0, p. 42.
quanto à sua formação, todo contrato é bilateral. Quanto aos seus efeitos, os contratos podem ser bilaterais ou unilaterais. O contrato bilateral gera efeitos para ambos os contratantes. O unilateral, apenas para um deles. No contrato bilateral, ambas as partes são simultânea e reciprocamente, credora e devedora. No unilateral, há um credor e um devedor. São exemplos de contrato unilateral o comodato, o mútuo, a fiança, a doação e o depósito bancário.
Assim, é de se considerar o caráter unilateral desse contrato, uma vez
que gera obrigações apenas para o falido.
O artigo 643 do Código Civil, que regula essa hipótese, traz a noção de
que o depositante fica obrigado a pagar ao depositário as despesas com a
coisa e o prejuízo decorrente de seu depósito; tal dispositivo agrega a esse
contrato, características de sinalagmático imperfeito.
Como se disse acima, embora o contrato seja de natureza gratuita, as
partes podem estabelecer que o depositário receba gratificação, como os
depósitos de natureza bancária, que é, por hora, o que nos interessa.
O parágrafo único do artigo 628 estabelece que “Se o depósito for
oneroso e a retribuição do depositário não constar da lei, nem resultar de
ajuste, será determinada pelos usos e, na falta destes, por arbitramento”.
O ônus do depositário é, portanto, zelar por uma coisa que, em verdade,
não lhe pertence, até a sua devolução. Recebe a contrapartida do depositante,
para cumprir o seu dever de guarda.
Não sendo de sua propriedade, a coisa não pode ser por ele utilizada, a
não ser mediante expressa anuência do depositante.
4 O DEPÓSITO IRREGULAR
Por depósito irregular de coisas fungíveis entende-se aquele em que o
depositário recebe a coisa para guarda e conservação, obrigando-se a restituir
outra equivalente, do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Contudo, o
depósito bancário não se enquadra, de forma simplista e literal, em tais regras
e conceito.
A respeito, manifestou-se Orlando Gomes24:
Para alguns, não passa de forma irregular do depósito comum; para outros, tem a configuração do mútuo feneratício; predomina, entretanto, a opinião de que constitui contrato típico, misto, formado pela conjunção de prestações característica de outros contratos. O cliente do banco tem fundamental interesse na guarda, por estabelecimento de sua confiança, do capital depositado, para o ter à sua disposição. Esse interesse influi na causa do contrato que assim não coincide com a do mútuo, embora, do ponto de vista do banco, o interesse de obter recursos para a realização de operações ativas empreste ao contrato função análoga ao utendum dare daquele. Será um misto de depósito e mútuo, mas, com tais particularidades que se torna impraticável aplicar-se-lhe as disposições concernentes aos dois contratos. Rege-se, realmente, por normas próprias.
Depreende-se de suas lições que a divergência acerca das definições
aplicáveis é reconhecida e amplamente debatida em nosso ordenamento. De
fato, há fundamental interesse do depositante na guarda do capital depositado,
sendo a liquidez do investimento um dos fatores que maior interesse desperta
no correntista.
Não obstante, é majoritário o entendimento de que as particularidades
desse instituto, ao mesmo tempo aproximam-no e afastam-no do mútuo.
Este é também o entendimento de Sílvio Rodrigues25:
24 GOMES, Orlando. Contratos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 365-366. 25 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. São Paulo: Ed. Saraiva, 1977. Vol. III.
A doutrina chama de irregular o depósito de coisas fungíveis, no qual o depositário não precisa devolver exatamente a coisa que lhe foi confiada, podendo restituir coisas da mesma espécie, quantidade e qualidade. A lei equipara esse contrato, cujo objeto na prática é o dinheiro, ao mútuo (Cód. Civil art. 1280); de modo que através dele o depositário se torna proprietário da coisa depositada. Este negócio tem seu habitat predileto no comercio bancário, pois para os bancos converge, em forma de depósito irregular, a maior parte do dinheiro em circulação no mundo inteiro.
Não obstante, Caio Mário da Silva Pereira26 acrescenta, em sua
definição do instituto, requisitos extras, como a fungibilidade, ao ensinar:
Diz-se que o depósito é regular quando tem por objeto coisas não fungíveis, obrigando-se o depositário a restituir especificamente a própria coisa depositada, que se identifica pelos seus caracteres individuais. Chama-se irregular, quando incide sobre coisas fungíveis, obrigando-se o depositário a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade – tantumdem eiusdem generis et qualitatis. Há, neste caso, transferência de domínio da coisa depositada, regulando-se o contrato pelas disposições relativas ao mútuo (Código Civil, art. 627), cuja dogmática atrai, embora as duas espécies contratuais continuem passíveis de distinção.
Neste diapasão, seria possível até mesmo a responsabilização civil
daquele que, por qualquer motivo, deixa de restituir os valores que recebeu em
depósito.
Como se sabe, os requisitos da responsabilidade civil são: ato ilícito,
dano e nexo causal. Ora, ao deixar de entregar ao proprietário bem que lhe
pertence, o depositário comete, portanto, ato ilícito passível de reparação.
A instituição que presta ou fornece serviço público tem responsabilidade
objetiva pela segurança e qualidade do serviço que presta. No caso de
falência, a massa falida tem responsabilidade objetiva pela segurança dos
valores que se encontram em seu poder.
26 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. Vol. III, p. 249-250.
Arnoldo Wald27 levantou a seguinte questão:
Enquanto para os civilistas tradicionais o depósito bancário se equipara ao mútuo, para os comercialistas enseja uma dupla disponibilidade dos recursos que passam a poder ser usados simultaneamente pelo depositante e pelo banqueiro, caracterizando um depósito sui generis, com regras e responsabilidades próprias.
Muito embora por remissão (art. 645 do Código Civil)28, tenha-se que o
depósito transfere ao mutuário o domínio da coisa emprestada (art. 587 do
Código Civil), na verdade a situação que se configura no depósito bancário é
outra. Embora depósito voluntário, vê-se que, no caso, por se tratar de coisa
fungível, o depositário pode ter eventual disponibilidade da coisa (dinheiro),
mas não terá sua propriedade, pois que, em qualquer tempo, está na obrigação
de lho devolver ao depositante.
Grande parte da celeuma que envolve a questão da propriedade dos
valores depositados em conta bancária deve-se ao disposto no art. 645 do
Código Civil, como se afirmou acima.
Como já se disse, alguns doutrinadores defendem que o depósito
bancário equipara-se ao mútuo, por lhe serem aplicadas as regras relativas a
tal instituto. Não obstante, ao depósito se aplicam as regras do penhor, à
permuta se aplicam as regras da compra e venda. O fato de serem aplicadas
regras de um instituto a outro não significa que os institutos se confundam.
Assim, o fato de o depositante facultar ao depositário o uso do objeto de
depósito não o transforma em mútuo.
27 WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro - obrigações e contratos. 11. ed. São Paulo: Ed. RT, 1998. p. 449. 28 “Art. 645: O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo”.
Carvalho dos Santos29, depois de salientar que o depósito irregular não
se confunde com o mútuo, escreve:
Os elementos me melhor distinguem o depósito irregular do mútuo são os fins econômicos que lhes servem de base, o que vale dizer, em última análise, que a intenção das partes é que determina quando seja um e quando seja outro o contrato. De fato, assim acontece. No depósito irregular, o fim principal do contrato é a guarda da coisa, constituindo o uso apenas um fim acidental acessório; ao passo que no mútuo o uso é o fim principal e direto da convenção. É o que ensinam PAUL PONT, WINDISCHEID (Pandette, 3, 379) Scheinder e Frick (Com. Du Code Federal des Obligations, 1, art. 481, com.1) e entre nós Carvalho de Mendonça, que estuda a fundo a distinção entre os dois contratos.
Assim é que a remissão legal não autoriza a modificação da natureza do
instituto. A remissão legal visa a determinar que as regras já dispostas em lei
acerca do mútuo deverão ser aplicadas ao depósito bancário. Em nenhum
momento promove a alteração da natureza do instituto.
Ademais, ainda que assim não fosse, no mútuo a propriedade continua
sendo daquele que realizou a transferência. É que, mesmo nesse instituto, a
transferência é de domínio e não de propriedade. O domínio é um dos
requisitos que implicam em propriedade, porém, dela apresenta substanciais
diferenças.
Nem mesmo presumidamente seria possível admitir que o depósito
irregular transfere a propriedade do bem ao depositário, seja em face do que se
contém na Lei 6.024, de 1974, seja em razão do disposto na Lei de Proteção
ao Consumidor (Lei 8.078/90). Tal entendimento poderia enquadrar o depósito
bancário como até mesmo uma doação.
Considerar o depósito bancário um depósito irregular parece ser a
tendência majoritária e inescusável da maior parte da doutrina.30 Ainda assim,
29 CARVALHO DOS SANTOS. Código civil interpretado. Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1937. v. XVIII, p.61-62. 30 Como dito anteriormente, esse é o entendimento de Caio Mário da Silva Pereira.
com relação à transferência de propriedade, até mesmo a doutrina
suprarreferida entende que há limitações a ela.
É que, no dizer de Pontes de Miranda31, a transferência de propriedade
é questão que muito inquieta os juristas brasileiros. Assim se manifesta aquele
jurista:
Depósito Bancário – O depósito bancário é a mais relevante das operações dos bancos. Por ele, põe-se à disposição do depositante a provisão, o fundo disponível a que se refere a lei sobre cheques. [...] O depósito bancário é depósito irregular, que é subespécie do contrato e não do mútuo. No depósito bancário, como em todo depósito irregular, o depositário tem o dever de restituir o tandundem, quando o exija o depositante, ainda que o contrato seja a prazo. [...] Ninguém pode deixar de ver a diferença entre o empréstimo de x feito ao banco e o depósito de x no mesmo banco. [...] No mútuo, a disponibilidade da coisa pelo depositário é essencial; no depósito irregular, inclusive no depósito bancário, a disponibilidade pelo depositário há de ser tal que não exclua a disponibilidade pelo depositante: o depositário pode dispor, desde que assegure a disponibilidade pelo depositante. Ora, esse elemento é de guarda, de custódia, se bem que a organização e as operações bancárias permitam custodiar a despeito da fungibilidade do bem depositado e da sua disponibilidade técnica. [...] O depósito bancário, que permite a emissão de cheques, é o depósito irregular, pelo qual alguém dá ao banco ou o banco considera como entregue, quantia sobre a qual o depositante tem o poder de dispor, portanto – de atribuir a outrem o direito à provisão, ou parte dela. A disponibilidade pelo depositante coexiste com a disponibilidade pelo banco, mas passa-lhe à frente quando o depositante o entenda. Se o depositário tem a propriedade, é propriedade limitada pelo poder de dispor, que tem o depositante. Situação semelhante à do marido, que pode dispor dos bens móveis comuns, sem que se possa dizer que a mulher perdeu a propriedade. É bem exígua a propriedade que se transfere, retendo-se a disponibilidade (depositum regulare); porém, não no é menos a da mulher casada quanto aos bens móveis de que o marido pode dispor. De nenhum modo se poderia pensar em espécie de mútuo. O depositante pode dispor e dispõe, a despeito da entrega, sem ser em depósito simples; o depositário pode dispor e dispõe, a despeito de estar exposto ao ato de disposição por parte do depositante. Em relação a outros depósitos irregulares, o depósito bancário tem a característica – subjetiva – de ser feito com depositário profissional, que se dedica a tais operações em massa, o que lhe facilita a solução prática do problema técnico-econômico dos dois poderes de disposição. O banco tem o poder de disposição de x, x`e x”; cada depositante sobre x ou sobre x` ou sobre x”; de modo que, se só dispõe de fração de x + x`+ x”, pois que nem todos os depositantes dispõem simultaneamente. Nos momentos de alarma, as corridas dos clientes mostram que, nos tempos normais, tudo se passa tranquilamente, permitindo estatísticas de depósitos e de retiradas e o trabalho técnico com as médias de disponibilidade provável, inclusive atendidas as datas e considerados os meses: os deveres e
31 PONTES DE MIRANDA, op. cit., 1963. p. 372-374. Tomo 42.
obrigações são do depositário; por isso mesmo, não tem ele a ação de resolução por inadimplemento (Código Civil, art. 1092, parágrafo único), nem a exceção non adimpleti contractus (art. 1092). É, normalmente, contrato real: só se conclui como encaixe do banco, ou a outra pessoa que seja depositaria. Às vezes, é oneroso, porque produz interesses. Na dimensão econômica, o depositário-banqueiro, pois que tem consigo o depósito, dele dispõe, com preterição eventual do depositante; na dimensão jurídica, o poder de dispor, que tem o depositário, passa à frente.
Inicialmente, observe-se a correlação apresentada por Pontes de
Miranda: “[...] O depósito bancário é depósito irregular, que é subespécie do
contrato e não do mútuo [...]”. Significa dizer portanto, que as disposições
gerais aplicáveis ao depósito bancário são aquelas atinentes aos contratos, e
não aquelas referentes ao mútuo. De se reconhecer assim, a maior
proximidade do depósito bancário com o depósito – mantendo-se a
propriedade da coisa – do que com o mútuo.
Sustenta esse doutrinador ainda que a irregularidade do depósito
bancário encontra-se na disponibilidade simultânea do bem para o depositante
e para o depositário, e não na transferência de propriedade. A idéia de que a
propriedade dos valores depositados continua com o depositante é ainda
reafirmada pelo argumento de que a disponibilidade do depositário fica
condicionada ao não exercício do poder de dispor que tem o depositante, que
continua com a propriedade.
Assim, depreende-se de suas lições que a propriedade dos valores
depositados é concomitantemente exercida pela instituição bancária e pelo
depositante; porém, a disponibilidade do depositante prevalece sobre a do
banco sempre que o depositante assim o desejar.
É bem clara, na lição de Pontes de Miranda que a propriedade dos
valores depositados permanece com o depositante. O próprio doutrinador
assim afirma, ao apresentar, como característica marcante do depósito
bancário, o fato de ser concomitante a disponibilidade do depósito pelo
depositante e pelo banco.
Conclui-se, ainda, que esse doutrinador considera o contrato de depósito
bancário uma mistura de depósito e mútuo, mas, com particularidades tais, que
se torna impraticável aplicar-se-lhe integralmente, nos termos dispostos em lei,
as disposições concernentes a qualquer um dos dois contratos. Assim, infere-
se que o depósito bancário rege-se, realmente, por normas próprias, não sendo
possível a aplicação dos arts. 627 a 652, do Código Civil.
Assim, no depósito bancário, que é uma espécie de depósito irregular, a
disponibilidade do dinheiro pelo banco não pode excluir a do correntista, pelo
que ambas coexistem, com preferência desta sobre aquela, e o banco vincula-
se a restituir a quantia depositada. Assim, se o banco falido não tinha plena
disponibilidade sobre o dinheiro dos seus depositantes, e pelo contrato de
depósito obrigava-se a restituí-lo, mostra-se cabível a restituição dos depósitos
na falência, conforme expressa o art. 85 da Lei de Falências e Recuperação
Judicial.
Assim se manifestou a nossa jurisprudência:
No contrato de depósito bancário, o banco não tem plena disponibilidade sobre o dinheiro dos seus depositantes, pois obriga-se a devolvê-lo tão logo lhe seja solicitado pelo depositante, o que torna possível a sua restituição na falência, conforme expressa o artigo 76 do Decreto-lei nº 7,661/45." (TJMG, 1ª Câm. Cív., Emb. Inf. Nº 204950-0/01, rel. Des. Antônio Hélio, julg. 11.12.01).
O caráter irregular do depósito bancário é também oriundo do fato de
que suas operações se submetem às estritas normas que regem as instituições
financeiras, emanadas inclusive do BANCO CENTRAL DO BRASIL, como, por
exemplo a RES. 2.211, de 16.11.95 que "aprova o estatuto e o regulamento do
Fundo de Garantido de Crédito - F.G.C. -" que inclusive prevê no Art. 2º,
parágrafo 2º:
"O total de créditos de cada pessoa contra a mesma instituição ou contra
todas as instituições do mesmo conglomerado financeiro será garantido até o
valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais)”.
Assim, parte da doutrina sustenta que o deferimento de pedidos de
restituição, em casos de falência decretada, representaria verdadeira
ampliação desse limite, agora com prejuízo aos demais credores da massa
falida, vindo, assim, a ferir o principio da par conditio creditorum.
Não obstante os reflexos que serão detidamente analisados nos
próximos capítulos, para o professor Nelson Abrão32 a discussão jurídica do
depósito bancário
nada apresenta de interesse prático: é puramente acadêmica... Pode-se frisar que a análise do contrato em um depósito se aproxima da psicologia das partes e do espírito do serviço de caixa: o cliente se desonera da guarda dos fundos e o banco sustenta a caixa do cliente.
32 ABRÃO, Nelson. Direito bancário. 4. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1985. p.88.
4.1 Do contrato de depósito bancário
As operações bancárias realizam-se mediante contratos. No dizer de
Fran Martins33,
Entende-se por depósito pecuniário, ou simplesmente depósito, a operação bancária segundo a qual uma pessoa entrega ao banco determinada importância em dinheiro, ficando o mesmo com a obrigação de devolvê-la no prazo e condições determinadas.
Especificamente no depósito bancário percebem-se certas
peculiaridades, como, por exemplo, a obrigação do banco em restituir, ad
nutum34, o valor depositado. Em conseqüência, a instituição depositária adquire
apenas o gozo da quantia depositada, podendo, inclusive, efetuar empréstimo
a terceiros, mas com disponibilidade, portanto, limitada sobre a mesma, vez
que deve restituí-la ad nutum, assim que requisitada pelo depositante.
Permanece, pois, a propriedade/titularidade do depositante e prevalece a sua
disponibilidade sobre a do depositário (instituição bancária/financeira).
Acerca da origem de tão difundido instituto, ensina Paula Camanho35:
O contrato de depósito de disponibilidades monetárias (ou depósito de numerário), doravante designado por contrato de depósito bancário, surgiu na Babilônia, no século VI a. C. O papel dos bancos era o de colocar em segurança os fundos que os seus proprietários não utilizavam e não queriam levar consigo, com receio de furtos e outros perigos e, ao receber esses fundos dos depositantes com a possibilidade de os utilizar, os bancos começam apagar juros aos clientes. E, conseqüentemente, com a obrigação de restituir, não exatamente as moedas depositadas, mas o equivalente.
33 MARTINS, Fran. Contratos de obrigações comerciais. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1993. p. 516. 34 Ad nutum: expressão usada para indicar que o ato pode ser revogado pela vontade da pessoa que o praticou, independentemente de qualquer outra formalidade ou condição. Desse modo, qualquer ato ou contrato que possa ser desfeito pelo simples arbítrio da outra parte, diz-se resolvido ad nutum. Mostra, pois, o ato que possa ser revogado pela vontade de uma só pessoa. (DE PLÁCIDO E SILVA, op. cit., 2000, p. 41. 35 CAMANHO, Paula Ponces. Do contrato de depósito bancário. Coimbra: Ed. Livraria Almedina, 1998. p. 98
Segundo a doutrina, essa espécie de contrato (de depósito
bancário/abertura de conta corrente/abertura de conta poupança) possui
características limitadas, peculiares e particulares, sui generis, que impedem
sejam aplicadas, de modo simplista, literal e amplamente, as disposições
concernentes aos contratos convencionais de depósito irregular e/ou de mútuo
(arts. 627 a 652 do Código Civil). A instituição bancária é, portanto, guardiã do
dinheiro que é do depositante, do correntista.
Tratando especificamente de contrato de depósito bancário, Caio Mário
da Silva Pereira36 ensina:
Já estudamos o contrato de depósito e, evidentemente, uma remissão a este é necessária, porque o depósito bancário é uma subespécie sua, misto de depósito irregular e de mútuo, e pode ser definido como aquele pelo qual uma pessoa entrega uma quantia de dinheiro a um banco, o qual adquire a sua propriedade, o brigando-se a restituir-lhe na mesma quantidade e na mesma espécie monetária, quando lhe for exigida. [...] As obrigações fundamentais do banco são a restituição do depósito e o pagamento dos juros, quando devidos. O depósito deve ser devolvido na mesma espécie monetária e na mesma quantidade (tantundem), e, em princípio, ao arbítrio do depositante, o que o caracteriza e diferencia do mútuo [...]. Havendo litígio, ou sendo penhorado o depósito, o banco suspenderá a restituição, até decisão judicial.
Da leitura de seus ensinamentos, depreende-se que:
1) O direito depositado é dinheiro transferido à guarda de outrem,
ficando retido com o depositante o poder de dispor.
2) A qualquer tempo, poderá o depositante requerer a devolução dos
valores, ad nutum.
3) O banco pode dispor do dinheiro que recebe em depósito a
despeito da disposição por parte do depositante. E a disposição pelo banco há
de ser tal que não exclua a disponibilidade pelo depositante. Assim, se o banco
36 SILVA PEREIRA, C.M., op. cit., 1996, p. 340-341.
tem a propriedade, esta propriedade é limitada pelo poder de dispor, porque ele
deve estar, a qualquer momento, em situação de restituir o recebido, mantendo
à disposição do depositante coisas do mesmo gênero, qualidade e quantidade.
Na celebração do contrato de depósito bancário típico, como é o caso do
contrato de abertura de conta-corrente ou conta-poupança, o depositante já
anui, expressamente, com o uso, por parte do depositário (banqueiro) do
dinheiro que lhe foi confiado.
Por se tratar de bem fungível, o depositário-banqueiro fica autorizado a
substituir o montante depositado, pelo mesmo valor, tão logo o depositante lhe
solicite.
Não obstante o fato de o depositante anuir para com a utilização de seu
dinheiro não conduz à conclusão de que teria havido transferência de
propriedade. A prevalecer tal premissa, a maioria das instituições financeiras
seria levada à bancarrota, porque não se pode aceitar, no meio social, que um
cidadão transfira seus valores a outrem, sem a exigência de qualquer garantia.
A abertura de conta numa instituição bancária é realizada mediante a
celebração de um contrato (de abertura de conta), de acordo com o tipo de
conta que se pretende, no qual uma ou mais pessoas entregam algo seu
(valores) à instituição bancária, em função da confiança e solvabilidade
presumidas que essa lhes transmite, para que o guarde ou movimente, mas
lhes restitua em valor, nos termos, prazos e remunerações resultantes do
contrato, denominado Contrato de Depósito Bancário ou Depósito de
Disponibilidades Monetárias.
Neste sentido ensina Fran Martins37:
[...] os bancos, nas operações e nos contratos que realizam, agem sempre em seu próprio nome. Ao receberem depósitos pecuniários,
37 MARTINS, F., op. cit., 1991, p. 485.
constituem-se devedores dos depositantes; assumindo a propriedade desses depósitos, empregando-os em seguida em empréstimos aos que necessitam de capital, dão esses empréstimos não em nome dos depositantes mas em seu nome próprio, tornando-se, desse modo, credores dos prestamistas.
Os depósitos realizados em bancos são regidos pelos respectivos
estatutos, em todos os seus aspectos, salvo o que se convencionar entre as
partes, ou estiver prevenido por lei.
A abertura de conta demonstra a existência de uma convenção sobre o
conjunto de regras que norteiam créditos e débitos que possam nascer entre
ambos os contraentes.
Por via do contrato de depósito – escrito (como requisito formal – ao
abrir a conta corrente, presume-se anuir com um contrato de depósito, ainda
que, no ato de abertura, não sejam efetivamente depositados valores) – a
instituição bancária solicita ao cliente que assine um documento de abertura de
conta, de acordo com a modalidade que se pretende, tendo em conta o seu
funcionamento e movimentação.
Deve-se, contudo, salientar que esses contratos que a instituição
bancária apresenta ao cliente constituem-se contratos de adesão, definidos
como tal em função da vedação da alteração ou mesmo negociação de
conteúdo, objetivando a salvaguarda da posição contratual do banco.
Não obstante, não estão dispensados os bancos da observância das leis
civis contratuais e, especificamente, das leis consumeristas quando da
formação e negociação de tais contratos.
Esses contratos de depósito, típicos contratos de adesão, revelam-se,
em sua maioria, pactos leoninos, nos quais a hipossuficiência do depositante
frente ao depositário é verificada em grau máximo, pelo que o legislador
procurou estabelecer um conjunto de regras respeitantes à interpretação de
suas condições gerais.
De fato, a abertura de conta em banco é precedida pela apresentação
de um conjunto de cláusulas previamente elaboradas, restando ao
destinatário/cliente a aceitação e assinatura, vedada qualquer possibilidade de
negociação ou alteração de seu conteúdo.
Ora, certo é que, diante de tal situação e premido pela necessidade
imperiosa de se ajustar ao mercado financeiro, raramente, para não dizer
nunca, o cliente se propõe a analisar o conteúdo, limites e obrigações do
contrato que está celebrando, não se inteirando, portanto, das condições
que estão ali sendo contratadas.
É, contudo, importante relembrar que, à entidade bancária cabe um
conjunto de deveres pelos quais se deve reger. Dentre eles, e com
significativa relevância frente aos demais, apontamos o dever de informação
e o dever de comunicação, que devem pautar a conduta da instituição
bancária quando propõe a celebração do contrato aqui referido.
A existência de exigências extras direcionadas aos bancos,
especialmente através da vasta legislação específica e do estrito controle
realizado pelo Banco Central do Brasil, fornece indícios de que a
propriedade dos valores depositados continua com o depositante. É que, no
tocante à informação, além de obedecer às regras insertas na Lei 8.078/90,
a legislação correlata estabelece outras de caráter específico e cunho
especialmente direcionado àquele que se utiliza dos serviços bancários.
O dever de comunicação, conforme dispositivo expresso constante do
Código de Defesa do Consumidor, é a comunicação, de modo adequado e com
a antecedência necessária, de todas as obrigações constantes do contrato,
ressaltando-se que as cláusulas restritivas de Direito do Consumidor devem ser
destacadas do texto, de forma a permitir sua imediata compreensão.
Da mesma forma, cabe à instituição financeira, nos termos da legislação
pertinente, informar, mensalmente ao correntista acerca dos valores
depositados em conta, periodicamente.
No que respeita ao dever de informação, deve o contratante informar o
destinatário dos aspectos nela compreendidos, cuja aclaração se justifique,
devendo ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.
Desse modo, e no tocante às cláusulas de um contrato de depósito
bancário, é possível a presença de cláusula na qual a instituição bancária se
reserve o direito de compensar contra-créditos sobre o saldo positivo da conta,
ou seja, conforme prescreve o regulamento interno do Banco (compensação
convencional), este deve, no momento da celebração do contrato, advertir,
clara e expressamente, os futuros titulares da conta. Em outras palavras, o
funcionamento das “cestas” de serviços oferecidas pelo banco, deve,
claramente, ser informado aos potenciais contratantes em detalhes. Significa
dizer que todos os valores, prazos, alcance, vencimentos, devem constar
expressamente do contrato, de forma que não haja nenhuma dúvida acerca
dos serviços oferecidos.
Assim, a qualificação jurídica dada a esse tipo de contrato, enquanto
contrato de adesão, tal como já oportunamente referido, deve respeitar a
segurança e a confiança das partes inerentes à sua celebração, de acordo a
lei, bem como o princípio da boa fé, garantia fundamental nesses contratos.
Os depósitos bancários podem revestir-se das seguintes modalidades:
depósitos a ordem, a prazo, depósitos com prévio aviso, a prazo não
mobilizáveis antecipadamente e, por último, os depósitos constituídos em
regime especial.
Podem ser diversos os contratos que servem de base à constituição de
depósitos bancários. Dentre os mais usuais, podemos destacar o simples e
corriqueiro contrato de depósito bancário ou os contratos mistos que permitem
a realização de saques a descoberto, ou seja, contratos de abertura de crédito,
contratos de conta corrente ou outros de natureza atípica.
Fran Martins38 define o contrato de depósito bancário: “Contrato pelo
qual alguém entrega em propriedade valores monetários ao banco para que
este restitua a importância equivalente no prazo e nas condições avençadas.”
O fato de ser o depósito a prazo fixo não altera a natureza do depósito,
pois, com prazo ou sem prazo, ele continua a ser um depósito irregular.
No “depósito irregular”, o depositário tem a vantagem do uso da coisa,
com os direitos de proprietário; e tanto assim é, que o dinheiro depositado sem
individuação nos bancos a título de guarda, passam a sua livre disposição,
para que possam ser aplicados no desenvolvimento de seus negócios e
créditos.
Limitaremos o nosso estudo aos contratos simples de depósito bancário,
nas modalidades acima referidas, e, em particular, à ordem e a prazo,
atendendo ao regime de exigibilidade, porquanto constituem as modalidades
mais adotadas pelos clientes dos bancos.
Um depósito a prazo é aquele no qual estipula-se um termo para o
reembolso, só podendo ser levantados os valores ao final do prazo avençado,
devendo constar do título nominativo, representativo desse depósito, os
elementos essenciais da operação.
O fato de ser o depósito a prazo fixo não altera a sua natureza, pois,
com prazo ou sem prazo, ele continua a ser um depósito irregular.
38 MARTINS, F., op. cit., 1990, p. 527.
Cabe-nos questionar, ainda, acerca da irregularidade do depósito no
contrato de abertura de conta-corrente. Todos os autores consultados afirmam
que se trata de um depósito irregular.
A questão é: em que residiria a irregularidade dessa espécie contratual?
Na transferência da disponibilidade? Ou se diz que o contrato é irregular
porque, embora se tenha operado a tradição do bem móvel, a propriedade
continua sendo do depositante?
Ensina Caio Mário da Silva Pereira39 que:
[...] não é sempre que a fungibilidade do objeto cria o depósito irregular. Se ficar caracterizada a obrigação de devolver a mesma coisa, embora fungível, o depósito é regular. Para que se tenha como irregular, é mister ocorram dois fatores, que se apuram em razão da destinação econômica do contrato: o primeiro, material, é a faculdade concedida ao depositário de consumir a coisa; o segundo, anímico, é o propósito de beneficiar o depositário. Sem perder de vista que o depósito se presume regular, deve o interessado dar prova que o ilida, podendo demonstrar o seu caráter irregular por vários meios, como sejam a profissão do depositário, o modo de sua realização, etc. Não obstante sua proximidade com o mútuo, deste difere pelo poder reconhecido ao depositante de recobrar a coisa ad nutum (Código Civil, art. 1.265), uma vez que o depositário há de estar, a todo momento, em situação de restituir o recebido, mantendo à disposição daquele coisas do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Tipo apontado como o mais comum desse contrato é o depósito bancário, mediante a entrega de uma soma em dinheiro, de que o banco se utiliza em suas operações, com a obrigação de restituir, total ou parceladamente, a todo instante em que lhe for reclamada.
Como se depreende do trecho citado, no entender desse doutrinador, a
irregularidade do tipo de contrato em comento reside, precipuamente, no fato
de que, embora o objeto envolvido seja fungível, e, em relação aos bens
fungíveis, prevaleça o princípio de que a tradição implica transferência de
propriedade, o depósito bancário constitui uma exceção, na medida em que a
39 SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de direito civil. 7ª. Ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1998. Vol. III, p.227-228.
propriedade do objeto do depósito é, ao mesmo tempo, do depositante e do
depositário.
Pode-se apontar, ainda, um outro fundamento que justifica a ausência
de transferência de propriedade no depósito bancário. É que, pelo princípio
geral do não confisco, a anuência da parte que está transferindo a propriedade
é requisito essencial para a caracterização da transferência de propriedade.
Noutro giro, nem sempre que se transfere a disponibilidade do bem está
se transferindo a propriedade. No contrato de locação, não é necessário que o
locatário tenha ingerência sobre o bem locado. Ele transmite o direito de usar o
bem ao locador e não transfere a propriedade daquele bem.
Num depósito à ordem, em função de não estarem as partes sujeitas a
qualquer termo, pode o titular movimentar a conta, levantando o montante
depositado, a todo o tempo, sem necessidade de aviso prévio.
Ainda no tocante às modalidades de depósitos bancários, e tendo em
conta o número de titulares, podemos encontrar os depósitos singulares e os
depósitos plurais ou coletivos, caracterizados, respectivamente, pela presença
de um ou mais de um titular.
Os depósitos plurais podem subdividir-se em duas modalidades:
depósito conjunto e depósito solidário.
O depósito solidário caracteriza-se por ser um depósito realizado por
duas ou mais pessoas, podendo, contudo, qualquer um dos seus titulares
movimentar ou proceder aos levantamentos dos montantes depositados,
sempre que o entenda. Este contrato é vulgarmente denominado conta-
conjunta.
4.2 Da diferença e semelhança com o mútuo
No depósito bancário, permitindo-se o uso da coisa, estabelece-se a
restituição em coisa da mesma equivalência. E, por princípio, é o depositário
quem paga ao depositante certa vantagem pela entrega da coisa.
Nesse particular, o depósito bancário possui caráter de mútuo, pois que
resulta numa modalidade de empréstimo, feito pelo depositante ao depositário,
a título oneroso.
E, na verdade, traz consigo vários requisitos exigidos pelo mútuo:
a) entrega da coisa pelo depositante-mutuante ao depositário- mutuário;
b) transferência do domínio da coisa depositada, uma vez que ao
depositário se confere seu uso;
c) a partir da tradição, os riscos sobre a coisa depositada correm por
conta do depositário;
d) restituição da coisa quando exigida, em coisa do mesmo gênero e na
mesma equivalência, acrescida dos juros, se estipulados.
Outro não era o entendimento de Orlando Gomes40 sobre a natureza
jurídica do depósito bancário:
Quando um recebe certa soma em dinheiro, obrigando-se a restituí-la em determinado prazo, ou 'ad nutum' de quem a entrega, realiza o contrato de depósito bancário. Adquire, nesse caso, pleno gozo da quantia depositada. Não a recebe para guardá-la. Aceitando-a, não está a prestar serviço ao depositante, como ocorre no depósito regular. Depositando, o cliente empresta ao banco, em última análise, a soma depositada. O depósito bancário não se confunde com a custódia, que é depósito regular. Nesta, o depositante não perde a propriedade da coisa depositada. Naquela, torna-se credor do banco [...].”
40 GOMES, O. op. cit., 2005, n. 261, p. 394.
Com efeito,
o depósito de valores mobiliários identificáveis por números e outras características ser regular, se não for estipulado que o depositário pode consumi-los, obrigando-se apenas a restituir a mesma quantidade. Pactuada essa cláusula, ser irregular.
Ocorre que, embora o dinheiro seja bem extremamente fungível, ele
pode ser objeto de mútuo ou entregue ao depósito de terceiro. No caso de
mútuo, o mutuário adquire a propriedade sobre o numerário, até mesmo porque
não faria sentido o contrário. Entretanto, se não há contrato de mútuo, a
entrega de dinheiro à entidade bancária configura o contrato de depósito.
Não obstante sua proximidade com o mútuo, desse difere o depósito
bancário pelo poder reconhecido ao depositante de recobrar a coisa ad nutum
(Código Civil, art. 627), uma vez que o depositário há de estar, a todo
momento, em situação de restituir o recebido, mantendo à disposição daquele
coisas do mesmo gênero, qualidade e quantidade.
Logo, o depositário não é mutuário dado à transitoriedade da guarda do
dinheiro. No mútuo, o mutuário ajusta o prazo para efetuar o pagamento, o que,
insista-se, não ocorre com o depósito. Tanto assim é que o correntista pode,
em qualquer momento, exigir a restituição, o que acontece não só mediante a
apresentação de um cheque ou, na atualidade, por comando em terminal
eletrônico.
Já se foi o tempo em que o depósito bancário era equiparado ao mútuo.
Wald41 faz estudo sobre o tema e ressalta:
1. No passado, a doutrina e a jurisprudência, influenciadas pelas lições dos autores clássicos, cujos estudos datam de uma fase anterior à autonomia e ao desenvolvimento do direito bancário,
41 WALD, A., op. cit., 1990, p. 5-12.
equipararam o depósito irregular (inclusive o depósito bancário) ao mútuo. Essa foi a lição de Marcel Planiol (Marcel Planiol, Traité Élémentaire de Droit Civil, revisto por Ripert e Boulanger, 3ª ed., v. 2, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1949, nºs. 2.868 a 2.870, pp. 876 e 877) que foi adotada, em linhas gerais, por alguns dos nossos autores, como Washington de Barros Monteiro42.
Arnoldo Wald demonstra que hoje o pensamento dominante é de que se
trata de um terceiro gênero, especial, que requer assim tratamento especial:
2. Ocorre todavia que a doutrina e a jurisprudência mais modernas têm salientado as peculiaridades do depósito bancário. Este tem merecido tratamento legislativo próprio nas codificações mais recentes, como o Codice Civile Italiano, que estabeleceu o seu regime legal, nos seus arts. 1.834-1.838, e os projetos brasileiros (anteprojeto de Código das Obrigações de 1963, arts. 840 - 846, Projeto de Código Civil Brasileiro - Mensagem 634/75 - arts. 866-868), assim como a legislação bancária de vários outros países (art. 4º da Lei Francesa de 13.06.41), distinguindo-se, pois, pela sua natureza e finalidade, o depósito bancário tanto do mútuo, como dos demais depósitos irregulares. Do Regime Jurídico dos Depósitos Bancários e o "Plano Collor".
E adiante:
3. Na própria legislação civil brasileira, não há equiparação do depósito irregular ao mútuo, como pretenderam alguns autores, mas, tão-somente, aplicação, por analogia legalmente determinada, das normas do mútuo ao depósito irregular (art. 1.280), que pressupõe a incidência das mesmas, tão-somente, no que couber, sem que haja identificação dos dois institutos, mas simples similaridade. Acresce que o art. 1.280 do CC é norma geral aplicável ao depósito comum de direito civil e que não se aplica sempre e necessariamente ao depósito bancário, que tem características próprias e natureza específica, sendo regido pelo Direito Comercial.
Todas as legislações modernas guardam hoje esse entendimento,
embora reconhecendo o caráter especial desse tipo de depósito, o que não
42 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Obrigações. 2ª parte. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1975. p.224-225.
exclui, porém, o direito do correntista à devolução dos valores que deposita em
sua conta-corrente.
Por sua vez, levando em consideração os mesmos princípios, Lauro
Muniz Barreto43 distingue o depósito bancário do mútuo e do depósito comum
regido pelo Código Civil, para, em seguida, salientar que, embora transferida a
propriedade da soma depositada para o banco, a mesma fica à disposição do
cliente, "que pode retirá-la, no todo ou em parte, diretamente ou por
pagamentos a terceiros, por meio de ordens ou cheques".
Esclarece ainda esse jurista: “Eis aí o caso típico do depósito bancário
chamado irregular e que tem por objetivo o uso da coisa, pelo depositário e a
restituição do equivalente. O depositário adquire assim a propriedade da coisa
de que pode, pois, dispor jure domine, com a obrigação apenas de restituir o
equivalente”44.
Gilberto Nóbrega45 faz a adequada distinção entre o depósito bancário e
as demais formas de depósito previstas pelo Código Civil e lembra a tradição
do nosso direito de não confundir o depósito irregular com o mútuo, tratando-se
de institutos distintos, embora com aplicação comum de algumas das regras
que sobre ambos podem incidir. E lembra a lição do Prof. Noé Azevedo, que
salientava que, se o depósito irregular se confundisse com o mútuo, não teria o
legislador consagrado a sua existência e, se o fez, é por ter entendido que se
justificava a existência do depósito irregular e especialmente a do depósito
bancário.
Outros estudiosos de direito bancário reconhecem a natureza sui generis
do depósito bancário e salientam que um dos seus resultados é "a
disponibilidade (por parte do depositante) pela criação da moeda escritural ou
bancária".46
43 BARRETO, Lauro Muniz. Depósito bancário. 2.ed. São Paulo: Ed. Leud, 1975.p. 165 44 BARRETO, L.M. op.cit., 1975. p. 171-176. 45 NÓBREGA, Gilberto. Depósito bancário. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 1966. p. 23. 46 COVELLO, Sérgio Carlos. Contratos bancários. São Paulo: Ed. Saraiva, 1981. p. 71; ABRÃO, Nelson. Curso de direito bancário. São Paulo: Ed. RT, 1982. p 24-44.
Finalmente, não se verifica no depósito bancário, stricto sensu, a figura
jurídica do mútuo. Não bastasse o exposto pelos juristas citados, é ainda de se
reconhecer que, no depósito bancário não há, como regra, a data do
vencimento. O correntista pode, quando bem lhe aprouver, “sacar” os valores
depositados, sendo que, tratando-se de importância investida, receberá os
valores sem correção.
Nesse muito bem chamado "depósito irregular", o depositante sabe que
o depósito feito será, aí sim, convertido em mútuo pelo banco, que repassará
esse valor a terceiro mutuário.
5 DA CONFIABILIDADE DO SISTEMA FINANCEIRO
A atividade das instituições de crédito ou bancárias consiste na recepção
de fundos reembolsáveis do público, com vistas a serem utilizados por conta
própria, bem como concessão de crédito.
Os bancos exercem uma atividade de relevância social na vida nacional,
penetrando e dominando a vida de pobres, de ricos, ora concedendo
empréstimos, ora financiando empreendimentos, incentivando a poupança,
gerindo capitais destinados ao bem-estar social, razão pela qual estão sujeitos
a uma vasta legislação.
Outrossim, a atividade financeira envolve interesses públicos, e estes,
segundo Celso Antônio Bandeira de Mello47, “correspondem à dimensão
pública dos interesses individuais”.
Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello48:
Princípio, já averbamos de outra feita, "é por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico”. Neste diapasão, pode-se concluir que o art. 192 da Constituição Federal49 indicou e definiu o princípio que rege o Sistema Financeiro Nacional, como aquele "estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade...
47 BANDEIRA DE MELO, Celso A. Ato administrativo e direitos dos administrados. São Paulo: Ed. RT, 1980. p. 87 48 BANDEIRA DE MELO, Celso A. op. cit.,1980. p.88 49 “Art. 192: O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade , será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: [...] I – a autorização para o funcionamento das instituições financeiras, assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas instituições a participação em atividades não previstas na autorização de que trata este inciso; [...]”.
Isso significa que a atividade bancária, parte do sistema financeiro,
submete-se essencialmente ao enunciado nesse princípio. Tal fato não
importa, porém, na inobservância de outros princípios fundamentais do Estado
Democrático de Direito.
Estamos nos referindo aos princípios da propriedade privada, da defesa
do consumidor, da isonomia, do não confisco e da segurança jurídica.
A propriedade é um direito garantido na Magna Carta, que tem como um
de seus requisitos primordiais o poder de disposição sobre o bem. Nesse
sentido é que a intervenção na propriedade importa em intervir no direito do
particular, o que só se sustenta em casos em que haja relevante interesse
público envolvido.
A jurisprudência acerca do tema insiste que o Princípio da Propriedade
Privada não pode ser suscitado a fim de justificar o cabimento da restituição em
contratos de depósito bancário. É que esse princípio justifica também a
possibilidade de qualquer outro credor da massa se valer do pedido de
restituição, o que viria a desconfigurar o concurso de credores.
Assim, ao se assegurar a propriedade privada, é essencial que se
assegure também a igualdade de tratamento, expresso pelo princípio do par
conditio creditorum.
Ainda se referindo ao sistema financeiro e à influência direta deste na
vida das pessoas e empresas, com propriedade, comenta Nelson Abrão50:
"Nada pior do que a derrocada do banco e sua situação falimentar, que gera
efeito cascata, atinge outras instituições e leva riscos e insegurança para todo
o mercado..."
A instituição financeira negocia com recursos que pertencem a toda a
coletividade de seus clientes. Há uma pluralidade de interesses envolvidos, e é
50 ABRÃO, Nelson. Direito bancário. 7. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1998. p. 292.
exatamente visando à proteção dessa pluralidade de credores que a
fiscalização da atividade é realizada por um ente estatal.
A Lei 6.024/74 teve como objetivo maior exercer um controle sobre a
atividade das instituições financeiras que atuam no País, captando a poupança
popular, de forma que se pudesse conferir aos depositantes e investidores
maior credibilidade e maior garantia.
Nesse diapasão, ao utilizar-se dos serviços prestados por uma
instituição financeira, o depositante ou investidor com esta entabula um
negócio jurídico que encerra uma relação de consumo. Tal relação nasce não
apenas da habilidade dos bancos em captar seus clientes, bem como da
imperatividade do cidadão de manter seu dinheiro em um banco.
Nos dias atuais, não se pode conceber que uma pessoa, esteja ela em
plena atividade profissional ou não, possa sobreviver ao arrepio do sistema
financeiro. Ninguém guarda dinheiro embaixo do colchão. Todo ser humano
deposita suas economias em um banco, que irá gerenciar aqueles valores e
restituir ao depositante sempre que instado a tanto.
Assim, é inegável que a atividade financeira envolve interesse público,
ao atingir, indiscriminadamente, todos os cidadãos nos mais distantes rincões
do país.
A obtenção de lucros com os investimentos em dinheiro não é vedada,
ao contrário: é amplamente estimulada no país. Um país que tem uma
poupança popular forte é um país no qual há maior circulação de dinheiro,
maior consumo gerando incentivos à produção e, portanto, apresenta maior e
mais ampla circulação de bens e capital.
Diante desse argumento, a proteção da poupança popular é do interesse
de todos, sendo lícita e até mesmo aconselhável a intervenção do Estado no
âmbito das relações privadas estabelecidas entre o cidadão depositante e o
banco depositário de valores.
5.1 Da relação entre o banco e o correntista
Como foi dito no capítulo anterior, o depositante e o investidor, ao
utilizarem os serviços prestados por instituição financeira, entabulam um
negócio jurídico que encerra relação de consumo, que nasce principalmente da
necessidade de o cidadão manter seu dinheiro em banco.
Em conseqüência disso, os contratos bancários sujeitam-se às normas
do Código de Defesa do Consumidor. Essa questão também já mereceu muito
debate entre os juristas brasileiros.
A celeuma foi tão grande que culminou na edição da súmula 297 do STJ
que dispõe: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às Instituições
Financeiras”.
Atualmente, a questão relativa à aplicação do Código de Defesa do
Consumidor aos contratos bancários encontra-se sedimentada na
jurisprudência brasileira.
Afinal, dispõe o parágrafo 2º do art. 3º. da Lei 8.078/90 que: “Serviço é
qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,
inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as
decorrentes das relações de caráter trabalhista”.
O depositante, ao fazer um depósito bancário, acredita que possui duas
opções: a primeira é manter, indefinidamente, o depósito de seus recursos,
enquanto deles não necessitar. A segunda é sacar, a qualquer momento, os
recursos depositados, quando assim o desejar.
Em ambos os casos, a devolução ao depositante deve ser feita ad
nutum, não cabendo nem mesmo questionar as aplicações de prazo certo, pois
nesses casos, a imediata devolução do capital aplicado é feita, ainda que com
perda dos rendimentos.
Assim não pode prevalecer o entendimento de que o depositante
transfere a propriedade de seus recursos para o banco, isso porque a vontade
do cliente de transferir a titularidade de seus recursos, não pode ser presumida,
diante dos princípios constitucionais do não confisco e da plena propriedade.
Uma eventual transferência de propriedade no depósito bancário
consistiria em verdadeira afronta ao princípio constitucional da proteção ao
consumidor, pois, possibilitaria enriquecimento sem causa, onerando de forma
absoluta o depositante consumidor do serviço bancário, e retirando a
segurança do depositante ou investidor, que o legislador buscou proteger não
só com a Lei 6.024/74, mas também com a Lei 8.078/90.
Afinal, não se pode admitir que um cidadão que tenha acumulado algum
valor oriundo da venda de seus bens ou do próprio suor de seu rosto deposite
seu dinheiro em um banco, sabendo que a propriedade está sendo transferida
ao banco, sem a exigência de qualquer garantia.
Dessa forma, se o depositante não desejou nem sabia da transferência
da titularidade do dinheiro, porque não era razoável nem racional que assim
entendesse, deveria ser previamente cientificado, em cláusula bem destacada,
quer em comunicado escrito do banco, quer no contrato de abertura de conta,
desta condição grave, que, sem dúvida, interfere e compromete a vontade de
contratar, conforme determina o art. 6º, III e IV, do Código de Defesa do
Consumidor51.
51 “Art. 6. : São direitos básicos do consumidor: […] III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
Um argumento final: o art. 54, § 4º, do referido Código estabelece que,
nos contratos de adesão, as cláusulas que implicarem limitação de direito do
consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e
fácil compreensão, o que não se verifica nos contratos bancários.
5.2 Da autonomia do banco na gestão de quantia depo sitada
Uma questão que surge para sustentar a tese da transferência de
propriedade dos valores objeto de depósito bancário é que o correntista não
possui qualquer ingerência sobre os valores que deposita no banco. Não
interessa a ele conhecer o destino que o banco dará ao seu dinheiro. De outro
norte, não lhe cabe definir se o dinheiro que entregou ao banco será utilizado
para a realização de operações financeiras, empréstimos ou aplicações; estas
decisões são tomadas independentemente da vontade ou concordância do
depositante.
Assim, nesse sentido é que uma parte da doutrina sustenta que, caso
não houvesse transferência ao banco da propriedade do dinheiro, seria
impossível à instituição financeira a utilização dos valores depositados para o
exercício de sua atividade fim, que é a circulação de recursos.
Nesse sentido é a lição de Aramy Dorneles da Luz52, apud Arnaldo
Rizzardo:
Se há um contrato de conta corrente vinculado ao depósito, o lançamento, na coluna haver, do valor depositado apaga sua identidade, entra no jogo de compensação com outros créditos e débitos e não subsiste mais que uma só massa patrimonial que tem a representá-la o saldo disponível. Perde, por esta forma, sua característica de coisa autônoma, individuada, para se transformar
IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; [...]”. 52 RIZZARDO, Arnaldo. Negócios jurídicos bancários. São Paulo: Ed. RT, 1996. p. 76.
numa entidade abstrata chamada crédito. Nessa desfiguração ou configuração nova é que se pode considerar que o valor depositado passa à propriedade do depositário e, isso mesmo, é preciso aprofundar a compreensão de como se dá esta aquisição.
Como o banco tem plena disponibilidade sobre os valores depositados,
ao depositante cabe apenas o direito de crédito desse valor, crédito esse que
se equipara ao dos demais credores quirografários, razão pela qual se submete
a par condicio creditorum.
A falência está sujeita ao princípio da igualdade entre os credores no
rateio do ativo. E, assim sendo, a desintegração da massa é medida
amplamente combatida no direito falimentar.
Assim é que as restituições antecipadas somente deveriam ser
admitidas nas hipóteses taxativamente previstas em lei. Como já explanado,
durante muito tempo combateu-se a possibilidade de restituição de dinheiro, ao
fundamento de que, ao se permitir a restituição, estar-se-ia violando a
igualdade dos credores e, assim, o princípio maior do direito falimentar estaria
sendo ferido.
Esta questão tomou corpo e culminou na edição da súmula 417 do STF:
“Pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido
recebido em nome de outrem, ou do qual por lei ou contrato, não tivesse ele a
disponibilidade”, que será analisada no próximo capítulo.
6 DA ORIGEM DA RESTITUIÇÃO EM DINHEIRO – SÚMULA 417
A questão que bateu às portas dos tribunais, e que, após anos de
debates, culminou com a edição da Súmula 417 do STF, é oriunda dos pedidos
de restituição aforados pelos Institutos de Previdência, referindo-se ao repasse
das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados e ainda em
poder da falida, quando da sentença declaratória de falência.
Sustentava-se que a retenção dos valores devidos à Previdência Social,
descontados dos empregados e não repassados, seria objeto de crime de
apropriação indébita perpetrada pelo empresário. Esse crime, atualmente
definido no art. 168-A do Código Penal, encontra-se tipificado da seguinte
forma:
“Art. 168 A: Deixar de repassar à Previdência Social as contribuições
recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional [...]”53.
Assim, o sujeito ativo é o empresário e o passivo o erário público. Isso
porque considera-se que os valores descontados do empregado pertencem ao
Instituto de Previdência, que pode reivindicá-los, em defesa de sua
propriedade.
A respeito, veja-se o disposto no art. 33 parágrafo 5º da Lei 8.212/91:
“Art. 33 (...)
Parágrafo 5º: O desconto da contribuição e de consignação legalmente
autorizadas sempre se presume feito oportuna e legalmente pela empresa a
isso obrigada, não lhe sendo lícito alegar omissão para se eximir do
recolhimento, ficando diretamente responsável pela importância que deixou de
receber ou arrecadou em desacordo com o disposto nessa lei”.
53 Artigo inserido no Código Penal pela Lei 9.983, de 2000.
Há, portanto, a presunção iuris tantum de que os valores foram
descontados pelo empregador de seus empregados e internados na empresa
falida, incumbindo pois, à falida, a desconstituição da presunção legal,
utilizando-se, para tanto, dos meios de prova conhecidos e admitidos em nosso
ordenamento.
Não obstante, aponte-se ainda que a previsão da contribuição dos
trabalhadores devidas para o fundo de custeio de seus benefícios
previdenciários54 é de relevante interesse social e está em consonância com o
disposto no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.55
Não é possível, portanto, sujeitar as contribuições previdenciárias
descontadas dos salários e retidas pelo empregador ao concurso de credores,
sequer em relação aos créditos acidentários ou trabalhistas, porque tais valores
não pertencem à massa falida, como o são, “v.g”, os créditos quirografários.
Cada objeto deve caber dentro de seu próprio instituto, portanto, devem ser
entregues à Previdência Social, com prioridade absoluta, efetivando-se antes
de qualquer crédito.
Ainda que o art. 151 da Lei n. 11.101/2005 determine que os créditos
trabalhistas de natureza estritamente salarial, vencidos nos 3 (três) últimos
meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários
mínimos por trabalhador, serão pagos tão logo haja disponibilidade de caixa,
não possui, este dispositivo, o condão de alterar a natureza extraconcursal do
crédito da Previdência Social, posto que tais pagamentos são considerados
mera antecipação, já que o valor atualizado será deduzido no pagamento final
do crédito a que faz jus o trabalhador.
54 “Art. 195: A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, e das seguintes contribuições sociais: [...] Parágrafo 5º.: Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”. 55 “Art. 5º LICC: Na aplicação da Lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
Esta natureza extraconcursal do crédito previdenciário está amparada no
instituto da propriedade, uma vez que os valores descontados dos
trabalhadores pertencem, efetivamente, ao Instituto de Previdência, sendo o
empregador mero depositário dos referidos valores.
Esta conclusão originou-se dos recursos apresentados por intermédio do
Tribunal do Distrito Federal, RE 24.015, de 11.12.1953, de relatoria do Ministro
Orosimbo Nonato; RE 24.471, de 04.01.1954, de relatoria do Ministro Barros
Monteiro e do ERE 24.471, de 17.10.1958, de relatoria do Ministro Vilas Boas.
Consta da ementa do RE 24.015, de 11.12.1953, a idéia de que os
institutos de previdência agem como mandatários legais. Discutiu-se se o art.
102, parágrafo 2º, do Decreto 7.661/4556 teria ou não revogado o art. 9º do
Decreto 65/3757.
Concluiu-se que o preceito do art. 9 do Decreto-Lei 65/37 constitui regra
especial que pode, nos melhores ramos do direito – da doutrina e da lei positiva
– subsistir com a regra geral posterior que não aludia à hipótese discutida.
O acórdão referiu-se a um pedido de restituição de valores devidos pela
massa falida da Casa Freitas Tecidos e Confecções ao Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Industriários. O Instituto sustentou que seu
crédito junto ao falido era especial, na medida em que era constituído por
valores oriundos de descontos dos empregados. Nesse sentido, o empregador
ficaria encarregado de tal arrecadação em virtude de um mandato legal e,
portanto, agiria como mandatário. As quantias assim descontadas teriam
caráter de depósito, e jamais se incorporariam ao patrimônio da massa.
56 “Art. 102, par. 2º. Decreto-Lei 7.661/45: Têm privilégio especial: [...]”. Art. 102, par. 3º. Decreto-Lei 7.661/45: Têm privilégio geral: [...] II – Os créditos dos Institutos ou Caixas de Aposentadorias e Pensões, pelas contribuições que o falido dever. 57 “Art. 9 Decreto 65/37: São reputados privilégios nos processos de falência, concordata o concurso de credores, os créditos de Institutos e Caixas de Aposentadorias e Pensões, incluídos, porém, como reivindicantes em relação às quantias recebidas pelos empregadores de seus empregados”.
Os empregadores, nesse caso, seriam como que verdadeiros
depositários, cabendo, pois, o pedido de restituição, sendo que, cabendo o
pedido de restituição, esse crédito não se confunde com o crédito reconhecido
na Justiça do Trabalho.
Assim, das importâncias descontadas dos salários pelo empregador
para o Instituto, é ele simples depositário, o que atende à realidade jurídica.
Nesse caso, o acórdão só não reconheceu ao Instituto o direito à
restituição porque não houve nenhuma quantia arrecadada; porque considerou
que a arrecadação seria requisito essencial da restituição. Assim, o pleito era
de que, reconhecida a propriedade do Instituto de Previdência sobre o dinheiro,
a massa entregasse ao Instituto um bem destacado, cujo valor correspondesse
ao valor devido ao referido Instituto, por ter se operado a sub-rogação.
O Ministro Orozimbo Nonato, em seu voto, integralmente acompanhado
pelos demais, inicialmente destaca que o dinheiro é fungível e irreivindicável,
porém, reconhece a possibilidade de individuação e, por conseguinte, da
reivindicação, ao citar Trajano de Miranda Valverde58:
Objeto do pedido de restituição, quer fundado em direito real, quer em contrato, há que ser coisa corpórea móvel ou imóvel, (corpus certum) arrecadada em poder do falido, a qual deverá ser designada por seus sinais característicos, se é móvel, pela sua situação e confrontações se é imóvel... As coisas fungíveis, não tendo individualidade própria (espécie), não podem, em regra, ser reivindicadas. Abre-se exceção se se tornam identificáveis, ainda na lição aludida, verbis: Mas, desde que se não tenham confundido com as coisas do mesmo gênero e sejam identificáveis, já podem ser objeto de restituição. O próprio dinheiro corrente, se passa de gênero a espécie, o é, assim, identificável, pode, como é sabido, ser objeto de reivindicação: se quidem peoun extat, vindicare e cun potest.
58 VALVERDE, T. de M., op. cit., 1948, vol. I, p. 455.
Depreende-se de suas citações, como já dito alhures, que o Ministro
admite a possibilidade de reivindicação, por exemplo, quando se trata de coisa
consignada a título de mandato.
A amparar tal tese, pontua Nelson Abrão59:
Entretanto, fica a observação fulcral no sentido da compreensão do espírito que norteia o instituto, dando como regra da conditio sine qua son, o pressuposto da arrecadação para o ensejo da restituição, contrariamente a isso estaria havendo distorção da instrumentalidade, uma vez que o interessado não concorreria ao concurso e obteria, de forma antecipada, aquilo pretendido, retirando da massa algo que poderia ter espaço e conceito na representação de seu ativo.
No ano seguinte, a questão foi novamente submetida à apreciação da
Suprema Corte através do RE 24.471 de 04.01.1954.
Nesta ocasião, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários
sustentou que a restituição é não apenas possível, mas também representa um
direito do credor.
Apesar disso, foi negado o pedido de restituição, ao fundamento de que
tais quantias não haviam sido arrecadadas pelo síndico. A idéia de que o
cabimento da restituição é condicionado à arrecadação foi, novamente,
levantada pelo Relator.
Nesse caso, também o parecer do Procurador Geral da República foi
pelo acolhimento do recurso, entendendo que a quantia descontada dos
empregados teria ficado sub-rogada em outros bens da massa, não importando
que não se tivesse arrecadado nenhum valor em espécie.
No voto, porém, o relator considerou irretorquível o direito do Instituto de
Previdência à restituição, apesar de não ter sido encontrado dinheiro em poder 59 ABRÃO, Nelson. Curso de direito falimentar – revista e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 225.
da massa. Ressaltou que, “inexistindo em poder do falido a coisa a restituir,
deve-se reduzir a dinheiro outros bens da massa, aos quais, por certo, foram
sub-rogadas as quantias descontadas e não recolhidas aos cofres do Instituto
de Aposentadoria e Pensões.”
O Ministro Afrânio Antônio da Costa acompanhou o voto, porém o
Ministro Nelson Hungria divergiu, sustentando que “há um depósito em
dinheiro, que a lei civil expressamente considera mútuo. [...]. E tanto a
obrigação de restituir, no caso, é idêntica à que ocorre no caso de mútuo, que a
lei prevê o pagamento de juros moratórios.
Em seu voto-vista, o Ministro Mário Guimarães distingue os dois tipos de
contribuições devidas aos Institutos de Previdência: aquelas de
responsabilidade do empregador e aquelas de responsabilidade do
empregado. Quanto às contribuições devidas pelo empregador, tratam-se de
valores com privilégio geral, nos termos do parágrafo 2º, já citado. No entanto,
com relação aos valores descontados dos empregados, admite a restituição
quando tenham sido encontrados e arrecadados valores em poder do falido.
Não obstante, conclui que, se não foi arrecadado dinheiro algum, a restituição
não é possível, de forma que os créditos ficariam transformados em dívidas,
certamente privilegiadas, porém, não passíveis de restituição.
O Ministro Nelson Hungria retificou seu voto, vindo a acompanhar o
Ministro Mário Guimarães. E o Ministro Ribeiro da Costa acompanhou Nelson
Hungria, com o adendo do Ministro Mário Guimarães.
O fato é que, portanto, ficou definido, a partir desse julgamento, que,
embora a restituição em dinheiro seja possível, para o deferimento da
restituição é imprescindível que quantias em dinheiro tenham sido arrecadadas
pelo síndico, exatamente como havia sido decidido no RE 24.015,
anteriormente comentado.
Da decisão, o Instituto de Previdência interpôs Embargos Declaratórios.
E foi por ocasião do julgamento desses embargos que o Instituto de
Previdência teve reconhecido o seu direito à restituição das parcelas
descontadas dos empregados pelo empregador. Assim, o Supremo Tribunal
Federal reconheceu, em sede de Embargos Declaratórios em Recurso
Extraordinário, que os créditos dos Institutos de Aposentadorias e Pensões,
pelos valores descontados dos empregados, tem privilégio geral e devem ser
restituídos porque o falido as retinha como depositário, não importando que a
res não mais existisse em poder do falido, e aplicando a regra segundo a qual
a inexistência da res autoriza a conversão em dinheiro.
O acórdão estabeleceu ainda que, não havendo dinheiro na massa,
dever-se-ia fazer pronta conversão de bens da massa em dinheiro, para que a
entrega fosse de pronto efetuada.
A partir de então, passou-se a reconhecer a possibilidade de restituição
em dinheiro, nos casos de falência, ainda que nenhum dinheiro tenha sido
arrecadado em poder do falido, o que levou à edição da súmula 417, já
referida.60
Assim, o falido recebe dinheiro em nome de outrem – que é o
depositante. Esse dinheiro pode, sim, ser objeto de restituição.
Pode-se ainda entender essa súmula da seguinte forma: é possível
restituir dinheiro do qual, por lei ou contrato, não tem o falido a disponibilidade.
De qualquer forma, entendemos que a decisão acerca da destinação do
dinheiro depositado no banco é característica da transferência da
disponibilidade e não da transferência da propriedade.
Ao depositante compete a boa escolha do estabelecimento bancário,
uma vez que entrega o dinheiro em depósito a prazo ou sem prazo, já sabendo
do uso que o banco fará e do risco de sua restituição.
60 Súmula 417 STF: “Pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a disponibilidade”.
Grande parte da doutrina sustenta61, não sem algum fundamento, que o
depositante ou aplicador quando busca o estabelecimento bancário para
depositar ou aplicar seu dinheiro, assume o risco dessa sua escolha. Se não
fosse assim, todo mundo aplicaria suas economias no banco, que pagasse as
melhores taxas, confiando em que na hipótese de falência dele, como se deu
aqui, poderia pedir a restituição do seu numerário. Aliás, diga-se, porque
pertinente, que não há regime capitalista sem risco. Se o depositante passa às
mãos do banco seu dinheiro, sequer lhe interessando saber o que dele será
feito, assume, integralmente, os riscos dessa operação e, no caso da falência
do Banco, é desse credor, devendo concorrer com o seu crédito nos termos da
lei de falências.
61 Cf. especialmente, Nelson Abrão e Aramy Dornelles da Luz.
6.1 Da propriedade do dinheiro depositado em conta- corrente
O dinheiro entregue à Instituição bancária pelo cliente não é doação e a
possibilidade de o banco aplicá-lo ou geri-lo, como melhor lhe aprouver, não
lhe transfere a titularidade, que permanece com quem o depositou. É que,
embora o banco tenha a disponibilidade física da moeda ou disponibilidade de
fato, não detém a disponibilidade jurídica, ou seja, não pode dispor daquela
quantia que alguém lhe confiou.
Assim, o depositante sempre continuará titular do poder de troca
representado pelo valor depositado.
Trata-se de um direito “de fácil verificação a sua existência e de cômoda
apuração o vínculo real” e, portanto, perfeitamente cabível a restituição.
Entende Silva Pacheco62 que é injurídica, imoral e insana defender uma
teoria segundo a qual o perecimento do direito de propriedade ocorre
simplesmente porque o dinheiro é bem fungível e não pode ser individuado.
A questão acerca da ausência de transferência de propriedade aos
bancos no depósito bancário encontra amparo legal no art. 17 da Lei 4.595 de
31 de dezembro de 1964, que dispõe:
“Art. 17 – Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da
legislação em vigor, as pessoas jurídicas, públicas ou privadas, que tenham
como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de
recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou
estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei e da legislação em vigor,
equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam
62 PACHECO, J. da S., op. cit., 1997.
qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou
eventual”.
Assim, na própria definição legal de instituição financeira encontra-se
fundamento à conclusão de que os valores custodiados são de propriedade de
terceiros. Como se depreende da simples leitura do dispositivo supra, em
nenhum momento a lei reconhece que os valores depositados tenham sido
transferidos ao banco. Ao contrário: verifica-se, na legislação específica, que o
banco é aquela empresa que custodia valores de terceiros.
Nem mesmo a questão dos juros e correção monetária poderiam levar a
conclusão diversa. É que os recursos são atualizados monetariamente, como
forma de se evitar a desvalorização do dinheiro. A atualização monetária não
representa acréscimo de capital e, sim, a manutenção do status da coisa (no
caso dinheiro) depositada.
Da mesma forma, os juros representam a remuneração pela utilização
do capital do terceiro-depositante. É a contraprestação paga pelo banco pela
utilização de um bem que lhe foi entregue e do qual o banco está se utilizando
para o exercício de suas atividades econômicas. Uma forma de se
recompensar o depositante por ele ter cedido a disponibilidade de seu dinheiro
a um banco e não importa em assunção de qualquer risco.
A assunção de risco ocorreria caso houvesse a possibilidade de ganhos
e perdas reais, situação inexistente no caso.
Os recursos captados pelos bancos são repassados a terceiros, pessoas
físicas e jurídicas, utilizando-se operações de crédito, como, por exemplo, os
contratos de mútuo, as cédulas de crédito e os contratos de abertura de crédito
em conta-corrente.
Os juros pagos pelos devedores ao banco são superiores àqueles pagos
pela instituição bancária aos seus clientes. É que a diferença deve fazer frente
aos custos do banco, folha de pagamento, encargos sociais, impostos, lucro da
instituição bancária, etc. Além disso, a atividade bancária visa exatamente a
promover a circulação de valores monetários e a intermediação desses valores
junto à sociedade em geral.
José Afonso da Silva63 salienta que "da rigidez constitucional emana,
como primordial conseqüência, o princípio da supremacia da constituição, que
no dizer de Pinto Ferreira, é reputado como uma pedra angular, em que
assenta o edifício do moderno direito político".
Para a boa interpretação constitucional, segundo Michel Temer64, "é
preciso verificar, no interior do sistema, quais as normas que foram
prestigiadas pelo legislador constituinte ao ponto de convertê-las em princípios
regentes desse sistema de valoração".
O ponto nuclear, no caso, é questionar o entendimento de que, no
contrato de depósito, o depositante transfere a coisa ao depositário, logo, o
crédito dos depositantes equipara-se aos dos credores quirografários, ficando,
então, vedadas as restituições antecipadas.
A origem desse entendimento distorcido, segundo escreveu Aramy
Dornelles da Luz65, "encontra-se no artigo 1280 do Código Civil, atrelador do
depósito irregular à disciplina do mútuo, o qual tem no preceito do artigo 1257,
que é específico, a definição do efeito transferência de domínio".
São essas as suas palavras:
A rigor, quem deposita dinheiro no Banco pensa em colocá-lo em lugar seguro, por isso não o deixa embaixo do colchão... Logo, o depositante, ao efetuar o depósito, tem em mente a custódia, que resulta apenas na transferência da posse direta. Nada autoriza admitir-se que em um contrato de depósito bancário haja manifestação de concordância sobre a transferência de domínio do
63 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: Ed.RT, 1992. p. 45 64 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Ed. RT, 1995. p. 25 65 Referências ao Decreto 7.661/45.
dinheiro. Tampouco pode-se pensar constar de seu conteúdo implícito acordo.66
Arnaldo Rizzardo67 assinala que
Opera-se a transferência da posse direta, mas não a transferência do domínio direto. Sendo inerente ao depósito a obrigação de restituir, é porque não se adquire o domínio sobre o bem depositado... Não há proibição do uso e do consumo, mas sem resultar forçosamente uma transferência de propriedade.
A questão está em se definir sobre se, ao fazer o depósito, a prazo fixo
ou não, o depositante transferiu a propriedade do seu dinheiro para o banco. A
resposta é não.
Nem mesmo presumidamente seria possível admitir que o depósito
irregular transfere a propriedade do bem ao depositário, seja em face do que se
contém na Lei 6.024, de 1974, seja em razão do disposto na Lei de Proteção
ao Consumidor (Lei 8.078/90). Tal entendimento poderia enquadrar o depósito
bancário como até mesmo uma doação.
Nem mesmo se pode dizer que não é possível restituir a própria coisa.
Pode, em razão mesmo de sua fungibilidade.
A Constituição da República assegura ao cidadão o respeito à
propriedade de seus bens, materiais ou imateriais, e o respeito ao consumidor
naturalmente hipossuficiente frente às grandes organizações existentes no
mercado atual globalizado.
No Sistema Financeiro Nacional vige a Lei n. 6.024/74, cujo propósito
maior é o controle das instituições financeiras que atuam no País, captando a
66 LUZ, Aramys Dorneles da. Negócios jurídicos bancários. 2. ed. reformulada São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 1999. p.92-95. 67 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos de créditos bancários. 5. ed. São Paulo: RT, 1999. p. 33.
poupança popular, sendo seu objetivo o de dar maior credibilidade ao sistema
financeiro e maior garantia aos depositantes e investidores.
Ainda que se possa considerar o depósito bancário um depósito
irregular, em que há transferência da propriedade, como já levantado neste
estudo, as limitações a essa transferência desautorizam tal conclusão.
É que, como vimos, a disponibilidade do depositante prevalece sobre a
do banco. Sobre as características essenciais do depósito bancário, elucida
Nelson Abrão68:
O contrato de depósito bancário tem como características essenciais ser real e unilateral. Real, porque só se aperfeiçoa com a efetiva entrega do dinheiro ou seu equivalente ao banco. Tal entrega é o elemento constitutivo do negócio, iniciando-se com ela os efeitos próprios do contrato, a transferência da propriedade do dinheiro do depositante ao banco e a obrigação deste último à restituição.
Tais lições coadunam-se com os ensinamentos de Pontes de Miranda69
que afirma:
"Objeto e Natureza de depósito bancário - [...] O banco vincula-se a
restituir a quantia, no mesmo gênero e qualidade, e não a restituir com as
mesmas cédulas ou, sequer, do mesmo valor (e.g., em cédulas de mil
cruzeiros) [...]".
O contrato de depósito bancário é uma mistura de depósito e mútuo,
mas, com tais particularidades, que se torna impraticável a aplicação das
disposições concernentes aos dois contratos. Rege-se, realmente, por normas
próprias, não sendo possível a aplicação dos arts. 1.257 e 1.280, do Código
Civil.
68 ABRÃO, Nelson, op. cit., 1993, p. 215. 69 PONTES DE MIRANDA, op. cit., 1960, p. 216.
Na hipótese, pois, a instituição bancária equipara-se à guardiã do
dinheiro do correntista, não havendo que se falar em transferência de
propriedade da coisa depositada, vez que a depositária teria apenas o gozo
desse bem.
Não havendo transferência da propriedade do dinheiro em contrato de
depósito, o depositante não é credor do banco, logo, na falência deste, o
dinheiro tem que ser devolvido aos correntistas, sob pena de configurar-se
ofensa ao princípio constitucional que regula o Sistema Financeiro Nacional,
indicado no caput do art. 192 da Constituição da República.
Na realidade, não há como adotar-se outro entendimento, que
equivaleria a um indevido apossamento do dinheiro alheio e tiraria toda a
garantia que deve existir no sistema bancário, sob pena de retroagirmos àquela
época em que o cidadão guardava o seu dinheiro debaixo do colchão, em face
dessa insegurança.
Também a respeito já vem se manifestando a nossa jurisprudência:
"EMENTA: FALÊNCIA - RESTITUIÇÃO DE DINHEIRO - DEPÓSITO
BANCÁRIO.
O depósito bancário, embora irregular, não transfere o valor à
propriedade do Banco, que tem a obrigação de devolvê-lo ao titular assim que
solicitado, nos termos do contrato. À cooperativa de crédito aplica-se a mesma
conclusão.
Eventual quebra ou intervenção não exime a Cooperativa de devolver os
depósitos aos correntistas ou aplicadores, não sendo cabível a suspensão das
ações para esse fim ajuizadas, por não se sujeitarem à mesma.
"A regra do art. 1.266 do Código Civil aplica-se também ao depositário
judicial, que se obriga 'a ter na guarda e conservação da coisa depositada o
cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence'". (Relator:
MINISTRO BARROS MONTEIRO. Acórdão: AGA 59460/RS. RSTJ, v. 91, p.
331).
Efetivamente, a regra contida no artigo 1.266 do Código Civil aplica-se
também ao banco depositário, que se obriga "a ter na guarda e conservação da
coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence".
Sendo o depósito em dinheiro, o banco há de diligenciar para devolver o
valor ao depositante quando lhe for solicitado. Como vimos, a disponibilidade
do banco e a do correntista são simultâneas, de modo que, em caso de quebra
do banco, os valores de terceiros em depósito não devem ser atingidos pela
quebra.
Isto porque uma decisão assemblear não pode prejudicar o direito de
propriedade constitucionalmente protegido, e não exclui o direito líquido e certo
da minoria.
6.2 Da individuação dos valores depositados em cont a-corrente
De um lado, sustenta-se que o cabimento do pedido de restituição na
falência de Instituições Financeiras fica comprometido em razão da
fungibilidade do dinheiro, característica que o torna impossível de ser
destacado da massa falida, requisito essencial do cabimento da restituição.
A atividade bancária, objeto social de empresas regularmente
constituídas, deve ser autorizada pelo Banco Central do Brasil, nos termos do
disposto no art. 10 da Lei 4595/64, in verbis:
“Art. 10: Compete privativamente ao Banco Central do Brasil:
[...]
X – Conceder autorização às instituições financeiras, a fim de que
possam:
a) funcionar no País;
[...]”.
É a partir dessa autorização que a empresa fica habilitada a atuar no
mercado e a captar a poupança popular.
Tendo em vista a relevância e a abrangência da atividade, conforme
análise constante do capítulo 4, item 4.1.1, além de manter rigorosa
fiscalização sobre os bancos, a lei exige, para o funcionamento da instituição, a
disponibilização de um capital mínimo, destinado não apenas à compra de
móveis e imóveis para instalação de agências, mas também à concessão de
empréstimos de recursos próprios.
A captação de recursos de terceiros encontra-se prevista no art. 17 da
Lei 4.595/64, in verbis transcrita:
“Art. 17: Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da
legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham
como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de
recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou
estrangeiram e a custódia de valor de propriedade de terceiros ”. (sem grifos
no original)
Ademais, os recursos captados junto a correntistas-depositantes devem
ser contabilizados, de forma discriminada e individualizada, nos termos da
legislação pertinente.
A título de esclarecimento, trazemos à colação trechos do COSIF -
PLANO CONTÁBIL DAS INSTITUIÇÕES DO SISTEMA FINANCEIRO
NACIONAL N. 39, de 05 de abril de 1999, editado pelo Banco Central do
Brasil70, que demonstra como deve ser feita a escrituração e o registro dos
valores depositados em instituição financeira:
“Título: Plano Contábil das Instituições do Sistema Financeiro Nacional –
Cosif
70 Disponível em www4.bcb.gov.br. Acesso em: 08 out. 2008.
Capítulo: Normas Básicas – I
Seção: Recursos de Depósitos, Aceites Cambiais, Letras Imobiliárias e
Hipotecárias, Debêntures, Empréstimos e Repasses – 12
1 – Depósitos a vista:
1 – Conceituam-se como de livre movimentação os depósitos à vista
mantidos por pessoas físicas e jurídicas de direito público e privado. Para fins
deste Plano, consideram-se também como depósitos à vista os saldos das
contas DEPÓSITOS VINCULADOS, CHEQUES MARCADOS, CHEQUES
SALÁRIO, CHEQUES DE VIAGEM, DEPÓSITOS JUDICIAIS, DEPÓSITOS
OBRIGATÓRIOS, DEPÓSITOS PARA INVESTIMENTOS, DEPÓSITOS
ESPECIAIS DO TESOURO NACIONAL, SALDOS CREDORES EM CONTAS
DE EMPRÉSTIMOS E FINANCIAMENTOS, bem como depósitos à prazo não
liquidados no vencimento.
[...]
8 – Os saldos devedores em contas de depósito devem ser inscritos
diariamente pelo valor global em ADIANTAMENTO A DEPOSITANTES, do
subgrupo Operações de Crédito, devendo ser novamente levantados a
Depósitos no dia útil imediato.
2 – Depósitos a prazo
1 – Os depósitos a prazo, com ou sem a emissão de certificado, quando
não liquidados no vencimento, devem ser transferidos imediatamente para
DEPÓSITOS VINCULADOS.
2 – Os controles contábeis e extracontábeis devem permitir a apuração
da exata posição dos depósitos captados, valores, depositantes, vencimento e
despesas apropriadas em cada período mensal.
3 – Depósitos de Poupança
1 – Por ocasião dos balancetes/balanços a instituição deve proceder ao
registro dos encargos “pro rata temporis” relativos ao período compreendido
entre a data do depósito ou o “dia do aniversário” de cada conta e a data do
balancete/balanço.
2 – As despesas de depósitos de poupança a incorporar devem ser
registradas nas adequadas contas de depósitos de poupança, mediante o
controle em subtítulos de uso interno.
3 – Os controles contábeis destinam-se a permitir a verificação da exata
posição dos depósitos da instituição a cada movimentação, com a identificação
dos depositantes, valores captados, encargos apropriados em cada período de
competência e retiradas efetuadas. [...]”.
Consta ainda das normas referentes ao assunto que a instituição
bancária deve emitir demonstrativos e extratos dos recursos depositados,
enviando-os aos seus titulares, mensalmente:
“Manual de normas e Instruções do Banco Central do Brasil n. 1.527, de
25 de setembro de 2000.
1 – é vedada às instituições financeiras e demais instituições autorizadas
a funcionar pelo Banco Central do Brasil a cobrança de remuneração peça
prestação dos seguintes serviços: [...]
a) fornecimento de um extrato mensal contendo toda a
movimentação do mês (Res. 2303, art. 1º a VI; Res. 2747, art. 2º)”
Acrescente-se ainda que, anualmente, a instituição deve emitir
demonstrativo especial dos recursos financeiros depositados para que os
correntistas-depositantes possam incluir na declaração de seus rendimentos os
recursos de sua propriedade custodiados pelo banco:
“Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal no. 121, de 28 de
dezembro de 2000
“Estabelece normas para a emissão de comprovantes de rendimentos
pagos ou creditados a pessoas físicas e jurídicas, no ano-calendário,
decorrentes de aplicações financeiras, aprova modelo de Informe de
Rendimentos Financeiros e dá outras providências.
Art. 1º. As instituições financeiras, as sociedades corretoras de títulos e
valores mobiliários, as sociedades seguradoras, as entidades de previdência
privada e as demais fontes pagadoras deverão fornecer a seus clientes,
pessoas físicas e jurídicas, informe de rendimentos financeiros, conforme
disposto nesta Instrução Normativa”.
Assim é que, registre-se, os recursos depositados pelos correntistas em
um banco são passíveis de individuação a qualquer tempo, bastando, para
tanto, que se proceda à mais superficial análise dos livros contábeis.
Além disso, é importante destacar que os correntistas-depositantes,
mesmo após a liquidação extrajudicial e a declaração da falência, continuam
apontando, em suas declarações de renda, os recursos de sua propriedade,
que permanecem depositados no banco, nos termos da legislação bancária:
Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal n. 123, de 28 de
dezembro de 2000.
“Dispõe sobre a apresentação, pelas pessoas físicas, da declaração de
Ajuste Anual, ano-calendário 2000, exercício 2001.”
Declaração de Bens e Direitos
Art. 13: A pessoa física sujeita à apresentação da Declaração de Ajuste
Anual deverá apresentar relação descritiva dos bens e direitos que, no País ou
no exterior, constituam, em 31 de dezembro de 2000, seu patrimônio e o de
seus dependentes.
Parágrafo único: Fica dispensada a inclusão, na declaração de bens e
direitos:
a) de saldos de contas correntes bancárias, cadernetas de poupança
e demais aplicações financeiras, cujo valor unitário não exceda a R$ 140,00”.
Também a jurisprudência reconhece a plausibilidade da tese, como se
depreende dos seguintes julgados:
“O cidadão que efetua depósitos em dinheiro em instituição
intensamente fiscalizada pelo Estado, o faz na segurança e certeza de reaver
tais valores ao tempo e modo que lhe aprouver, justamente porque recebeu do
próprio Estado garantias quanto ao direito de propriedade, não apenas como
seca previsão literalmente inserta na Carta Maior. Porém, mais do que isso, há
toda uma estrutura legal pormenorizada disposta na lei 4595/64ª dar eficácia
ao direito, conhecido como um dos fundamentais à manutenção da dignidade
humana: o de propriedade”.
(Acórdão proferido pelo TRF 3ª Região na apelação 95.03.062.744-3, in
SADDI, Jairo; “Intervenção e Liquidação Extrajudicial no Sistema Financeiro
Nacional 25 anos da lei 6.024/74” Texto novo, 1. ed., São Paulo, 1999, p. 204).
“O dinheiro existente em conta corrente não é do Banco mas constitui-se
propriedade do correntista, e o Banco somente pode movimentá-lo para outros
fins quando devidamente autorizado por escrito, não valendo para isso
autorizações de caráter permanente, adesivas e abusivas tomadas do cliente
por ocasião da elaboração de fichas cadastrais ou abertura de conta, bem
como em outras oportunidades”.
(TA/RS, Mandado de Segurança n. 19409283, julgados do TA/RS n. 93,
p. 72/73 in MARINS, James, “Proteção Contratual do CDC a contratos
Interempresariais, Inclusive Bancários”. Revista do Consumidor, v. 18, p. 94-
104).
A garantia à propriedade, pois, é ampla e largamente fundamentada em
nosso ordenamento. Os bens das pessoas – assim como sua liberdade – só
podem ser retirados como conseqüência de um processo na forma legal, onde
se respeitem o contraditório e a ampla defesa, com todos os meios e recursos
a tanto necessários.
Ora, importa lembrar que a contra corrente é a expressão do bolso do
cidadão, que a caderneta de poupança é o sucedâneo do colchão, do pé-de-
meia, do porquinho de barro. A apropriação ou o bloqueio de qualquer delas
atenta contra a propriedade das pessoas, significa tomar-lhes os cordões da
própria bolsa...
Ou alguém haverá que negue o direito líquido e certo que todos têm de
dispor daquilo que possuem no bolso ou debaixo do colchão, que licitamente
foi adquirido? Ou alguém negará que o ato de tomar esses valores, mesmo sob
motivos justificados, necessariamente deve ser precedido de um processo, no
qual se garantisse a ampla defesa, o contraditório, enfim, o due process of law?
Augusto Aras71, jurista baiano, assim se manifesta sobre o tema:
“[...] excepcionalmente, se o caso for de falência da instituição financeira, em tese, haveria a possibilidade de aplicação do Decreto-lei 7.661/45, consoante prevê a Lei 6.024/74, ressalvados os direitos dos correntistas, seus clientes, qualificados pelo CDC como consumidores, que, no nosso entendimento, tem direito ao saque imediato dos seus saldos. A seu turno, o art. 1º. da lei 7492/86 conceitua a instituição financeira como [...] à pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros de (vetado) de terceiros, [...].”
Dos ensinamentos desse jurista ressai que o conceito de instituição
financeira, ao menos em sentido penal, é mais restrito que a lei disciplinadora
do mercado financeiro, uma vez que, naquela, somente será assim
considerada a instituição que operar com recursos de terceiros.
A restrição é aplaudida por alguns e criticada por outros. Mas certa ou
errada é inegável que existe, revelando que a lei em comento pretende
proteger, essencialmente, os recursos de terceiros geridos pela instituição
financeira, devido ao seu caráter relevante para a economia do país.
De tal conceituação não diverge Eduardo Luiz Lundberg72, ao afirmar:
Instituições Financeiras tem características distintas das demais empresas. A primeira e mais óbvia diferença é que trabalham com uma mercadoria singular: dinheiro, ou seja, a moeda e a poupança dos indivíduos e das empresas. [...] no caso das instituições financeiras, esse atributo é essencial. Ninguém confia seu dinheiro a um banco se não houver a segurança de que ele será devolvido nas condições pactuadas.
71 ARAS, Augusto. A responsabilidade da União pelos depósitos bancários. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, v. XXXVI, ano 1996, p.173-180. 72 LUNDBERG, Eduardo Luiz, in SADDI, Jairo. Intervenção e liquidação extrajudicial no Sistema Financeiro Nacional – 25 anos da Lei 6.024/74. 1. ed. Texto Novo, São Paulo, 1999.
Apesar disso, ainda há autores, como Walter Álvares73 que sustentam
de forma diversa:
Deve-se ainda indicar que na esfera de relações contratuais muitas hipóteses podem ocorrer como, por exemplo, o caso de conta corrente bancária, cujo saldo não se restitui, na hipótese de falência do banco, pois se constitui crédito quirografário do depositante correntista.
Silva Pacheco74 ensina:
Pode-se pedir a restituição só de coisas no sentido estrito ou de coisas no sentido lato, equivalentes a bens? Antes da resposta, insta fixar se haveria possibilidade de, na prática, ocorrer pedido de restituição de bens que não fossem coisas materiais. Haveria possibilidade de, entre os bens arrecadados, existir dinheiro, papéis, documentos, créditos, direitos de ação, patentes, marcas, dividendos, ações, títulos de crédito, direito autoral, nomes, produtos, frutos, benfeitorias, direito de lavra, de exploração etc. Tudo que, tendo valor, faça parte do patrimônio do falido e não seja inarrecadável o síndico arrecada, quer esteja em seu poder ou em poder de terceiro. São bens incorpóreos os direitos reais sobre objetos e ações correspondentes, os direitos de obrigações ou pessoais e as ações respectivas, os direitos do autor, todos eles arrecadáveis. A palavra bens abrange coisas, direitos reais, pessoais ou obrigacionais, hereditários e autorais de reprodução e exploração, de patentes de invenção, dos desenhos, modelos industrias e projetos. Logo, se a lei quisesse abranger todos os bens e não somente os bens corpóreos, teria usado o termo bens, como o fez em todos os artigos. Se, ao contrário, usou a palavra "coisa", foi para significar que só de objeto material pode ser pedida a restituição, por ser de fácil verificação a sua existência e de cômoda apuração o vínculo real ou contratual, baseado no qual se faz o pedido.
De Plácido e Silva75, em seu Vocabulário jurídico, assim se manifesta
sobre a distinção entre depósito regular e depósito irregular, ressaltando que
essa última qualificação aplica-se ao depósito bancário:
73 ÁLVARES, Walter T. Direito falimentar. São Paulo: Sugestões Literárias, 1966. p. 439. 74 SILVA PACHECO. Processo de falência e concordata. 12. ed. São Paulo: Forense, 1997. p. 415-416 75 DE PLÁCIDO E SILVA, op. cit., 1996.
O depósito bancário, que se tem também denominado de depósito irregular, não participa, assim, dos mesmos requisitos do depósito comum. Neste, como é de sua substância, a coisa depositada (custodiae causa) deve ser restituída in natura (a mesma coisa). No depósito bancário, permitindo-se o uso da coisa, estabelece-se a restituição em coisa da mesma equivalência. E, por princípio, é o depositário quem paga ao depositante certa vantagem pela entrega da coisa.
Segundo o magistério de Fran Martins76, ao contrário "do que acontece
com o depósito regular, em que a propriedade do objeto depositado permanece
com o depositante, no irregular essa se transfere ao depositário, ficando este
apenas com a obrigação de restituir a coisa", vale dizer, "não a própria coisa
recebida, mas outra do mesmo gênero, qualidade e quantidade", nos termos do
art. 1.280 do Código Civil.
Também o Superior Tribunal de Justiça tem sustentado, reiteradamente,
que "não é dos clientes o depósito que se acha no banco", uma vez que, sendo
irregular, a ele se aplicam as regras do mútuo. "Assim, transfere-se a
propriedade para o depositário, contra quem o depositante passa a ter um
crédito (RESP 98.623 e RMS 7.230)..." (REsp 212.886-MA, Relator o Ministro
Eduardo Ribeiro, julg. em 29/06/2000).
Na mesma esteira dessa orientação pretoriana, por diversas vezes o
Tribunal de Alçada de Minas Gerais reconheceu a viabilidade jurídica, em
execuções promovidas contra instituições bancárias, da penhora incidente
sobre valores que, uma vez depositados pelos respectivos correntistas, caem
na vala comum dos recursos apropriados pelos bancos depositários com a
finalidade de convertê-los em objeto de suas movimentações financeiras, na
mesma medida em que os transformam em créditos dos depositantes.
76 MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 464.
Em se tratando de depósito irregular, na medida em que a instituição
bancária, ao receber determinada quantia em depósito, assume o compromisso
de atender às ordens de pagamento emitidas pelo depositante, a doutrina é
quase unânime em reconhecer que esse depósito opera a transferência da
propriedade do dinheiro para o depositário.
O ato de depositar e transferir ao banco a disponibilidade do dinheiro
depositado, circunstância inerente à própria natureza do ajuste celebrado entre
as partes, tem só o efeito de viabilizar a eventual utilização pelo depositante, no
todo ou em parte, do saldo da conta-corrente de que é titular, de sorte que, se
o banco assume o compromisso de devolver o dinheiro do depositante, nas
condições pactuadas, o que esse adquire, pelo depósito, é apenas um crédito
junto ao depositário, crédito que seria desarrazoado equiparar à simples
mercadoria arrecadada e passível de restituição ao falido, nos termos do art. 76
da Lei n. 7.661/45, pois uma coisa nada tem a ver com a outra.
6.2 Da transferência de propriedade do valor deposi tado em conta
corrente
Sustenta parte da doutrina77 que a cláusula de transferência existe,
ainda que implicitamente considerada. Nessa hipótese, não há dúvida de que a
referida cláusula consiste em vício oculto no serviço prestado, pois induz a erro
aquele que realiza o depósito, já que o depositante não teria nenhuma razão
para imaginar que estivesse, ao realizar um depósito bancário, transferindo a
titularidade do seu dinheiro à uma instituição financeira.
Deve-se esclarecer ainda que, no esteio deste entendimento, o
depositante não poderia alegar o não conhecimento da transferência da
propriedade, pois, esta é prevista nos arts. 627 a 652 do Código Civil, e o art.
3º da Lei de Introdução dispõe que ninguém se escusa de cumprir a lei,
alegando que não a conhece.
Assim é que, para Sérgio Carlos Covello78, "esse contrato, oriundo da
prática bancária, obedece a normas próprias, usos e costumes bancários,
possuindo sem dúvida uma natureza creditícia; torna-se, assim, impossível
enquadrá-lo dentro das figuras clássicas do direito privado. É contrato
autônomo".
Ao lado da tese apresentada acima, grande parte da doutrina79 sustenta
que, com a transferência de propriedade operada pela tradição do dinheiro no
contrato bancário, configura-se a impossibilidade de aplicação do pedido de
restituição na falência.
É que, em sendo o depósito bancário um “depósito irregular”, o
depositário tem a vantagem do uso da coisa, com os direitos de proprietário; e
tanto assim é, que o dinheiro depositado sem individuação nos bancos a título
77 Especialmente Nelson Abrão e Orlando Gomes. 78 COVELLO, Sérgio Carlos. Contratos bancários. 4. ed. São Paulo: Leud, 1983. p. 78 79 Novamente capitaneada por Nelson Abrão, Aramy Dorneles e Orlando Gomes.
de guarda, passa à sua livre disposição, para que possa ser aplicado no
desenvolvimento de negócios e atividades da instituição.
A fim de ilustrar tal entendimento, trazemos à colação os seguintes
julgados:
EMENTA: FALÊNCIA – RESTITUIÇÃO – Somente versa coisa que
possa ser individuada e identificada (art. 76, par. 1º. E 2º. Da Lei 7661/45). A
restituição do dinheiro estará assim subordinada a individuação das notas ou
do metal que o represente. (Recurso Extraordinário no. 28415 – Arq.
Jud.118/72)
“O Dec. 7.661 de 21 de junho de 1945, exatamente para por um
paradeiro a faculdade com que a massa falida era desfalcada para atender as
reivindicações, delas não mais cuidou, mandando fazer restituição de coisas
arrecadadas em poder do falido, quando fossem devidas em virtude de direito
real ou contrato.
É de ver, porém, a cautela usada pelo legislador em tais restituições,
para por logo de manifesto que a restituição somente compreende as coisas
devidamente individuadas. (art. 76 par 1º e 2º).
A restituição do dinheiro estará assim subordinada à individuação das
notas ou do metal que o represente.”
EMENTA: FALÊNCIA – DEPÓSITO BANCÁRIO – PENHORA –
DEPÓSITO JUDICIAL – Decretada a falência do Banco, os depósitos em conta
corrente bancária incorporam-se à massa falida, devendo os credores reclamar
os direitos deles decorrentes, sujeitos à classificação que lhes couber.
A penhora que recai sobre tais depósitos não lhes altera a natureza nem
os efeitos jurídicos.
Não cabe a ação de restituição para reivindicar depósito irregular
bancário (Agr. No. 461 – Tribunal de Justiça do Distrito Federal – Revista
Forense 136/149).
Não obstante os entendimentos acima esposados, é de se melhor
pontuar a questão da individuação dos valores depositados pelos correntistas
nas instituições financeiras, à luz da legislação contábil.
6.2.1 Da penhora na boca do caixa
Outro ponto bastante controvertido acerca da natureza do depósito
bancário relaciona-se à penhora denominada na “boca do caixa”.
Assim, ao deferir-se este tipo de penhora, está-se reconhecendo que os
valores que os depositantes entregaram ao caixa passaram para a propriedade
do banco. Como se sabe, a transferência de propriedade de bens móveis se dá
pela tradição e, portanto, os valores entregues em depósito bancário não são
passíveis de restituição nos termos do disposto no art. 85 da Lei 11.101, de
2005.
Este é o entendimento dominante na nossa jurisprudência, que
prevaleceu na maioria dos casos envolvendo correntistas na falência do Banco
do Progresso. Milhares de pessoas sofreram incontáveis perdas e foram
prejudicadas por decisões judiciais, nesse sentido.
Ilustra o ponto sob comento o julgado a seguir:
EMENTA: (...) PENHORA. BANCO COMO DEVEDOR. DINHEIRO EM
CAIXA. Possibilidade. Inocorrência de ofensa ao art. 620, CPC. Precedente.
Recurso acolhido. (...) Não há ilegalidade na penhora de dinheiro em caixa,
desde que não recaia sobre as reservas técnicas existentes junto ao Banco
Central."
(Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, acórdão: RESP. nº
98623/MG, decisão em 02/09/1997, in JUIZ Jurisprudência Informatizada
Saraiva, CD- Rom nº 24, 4o trimestre de 2001, Saraiva Data, São Paulo).
Pois bem.
A prevalecer a tese de que o Banco não tem disponibilidade dos
depósitos, obviamente essa penhora não poderia ser deferida.
6.2.3 Da fungibilidade
Acerca de nosso tema, releva abordar ainda a questão da fungibilidade.
Como já explanado, parte da doutrina80 sustenta que a atipicidade do contrato
de conta-corrente reside na responsabilidade do banco de acatar as ordens de
pagamento emitidas pelo depositante.
Nesse sentido, ao realizar um depósito bancário, o depositante transfere
a propriedade do bem ao banco depositário, e passa a ter, com esse, um
direito de crédito.
O dinheiro é o maior dos bens fungíveis, uma vez que sua restituição
dar-se-á sempre por outro da mesma espécie, qualidade e quantidade. Não é
possível que, tendo depositado valores em um banco, passados alguns anos
ou meses, quando o correntista pretender receber de volta o que depositou, o
banco venha a lhe restituir o mesmo dinheiro depositado.
O ponto controvertido assenta-se, portanto, na impossibilidade de
restituição do mesmo bem e na imperiosidade de restituição de outro da
80 Cf. SILVA PEREIRA, C.M. op.cit.,1996 p.340-341.
mesma qualidade, quantidade e espécie, o que implicaria na transferência da
propriedade.
A mesma situação aplica-se a todos os bens infungíveis. Por exemplo:
um cidadão deixou uma caneta Mont Blanc com seu nome gravado em uma
loja da Clássico Jóias para ser consertada. Decretada a falência da Clássico
Jóias, a caneta foi restituída ao seu proprietário antes de se computar o ativo
da empresa, arrecadado pelo síndico.
Nesse sentido é que Waldemar Ferreira fala em “integração” e
“desintegração” da massa falida. É que, antes de se verificar o montante que
integra a massa, é imperativo que dela sejam excluídos os bens de terceiros, a
fim de que se tenha uma idéia exata dos valores a sofrerem o rateio.
No exemplo dado, o bem jamais pertenceu à massa, que, porém,
durante certo tempo teve a sua posse. Não obstante a loja Clássico Jóias
tivesse a posse da caneta, a propriedade sempre permaneceu com o dono.
Neste sentido esclarece Darcy Bessone81:
Em relação às coisas fungíveis, ainda que haja uma relação do tipo das indicadas, elas se incorporam ao patrimônio do falido, que terá a seu cargo apenas a obrigação de restituir outras do mesmo gênero. Neste caso, não caberá pedido de restituição das coisas recebidas. O interessado terá crédito quirografário. É imprescindível no pedido de restituição a individuação da coisa para que, perfeitamente identificada, se saiba o que deve ser restituído.
Os ensinamentos de Bessone não conflituam com os de Valverde82: “As
coisas fungíveis, não tendo individualidade própria não podem, em regra, ser
reivindicadas”.
Essa lição tem ainda mais pertinência, quando o dinheiro arrecadado é,
como no caso presente, absolutamente não identificável. 81 BESSONE, Darcy. Instituições de direito falimentar. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 120. 82 VALVERDE, T. de M., op. cit., 1948, p.455.
Não há como se saber se o dinheiro arrecadado pertenceria a "a" ou a
"b", porque foi ele disponibilizado pelo banco falido em empréstimo a
aplicações várias.
Ademais, quando o banco assume a obrigação de restituir ao correntista
um bem da mesma espécie, qualidade e quantidade, o depositante adquire um
crédito junto ao banco. E, tendo crédito, seu crédito será desprovido de
qualquer privilégio, ficando, em eventual falência, relegado ao plano dos
créditos quirografários.
Não se poderia falar, portanto, em ação de restituição de dinheiro em
falência de instituição financeira, uma vez que um dos pressupostos da ação
de restituição é exatamente a propriedade.
Nesse sentido, a lição de Nelson Abrão83:
Não vemos como caber restituição de dinheiro, coisa fungível, não individuada, confundida no patrimônio do falido. A exata interpretação da súmula 417 do Supremo Tribunal há de se amoldar a lição de Miranda Valverde, a ela anterior: o dinheiro, só quando identificável e não confundido no patrimônio da massa, é suscetível de devolução; é o caso, p.ex. de alguém que tenha importâncias em dinheiro nos cofres de aluguel de um banco, de que esse, a teor da aludida súmula, não tivesse a disponibilidade. Não seria o caso de depósito em conta corrente no banco.
83 ABRÃO, N., op. cit., 1997, p. 227.
7 DA POSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO DE DINHEIRO ARREC ADADO EM
PODER DO FALIDO
“Por vários motivos pode a falência encontrar dinheiro de terceiro em
mãos do falido, seja proveniente de contrato de depósito, de mandato, de
comissão mercantil, seja de operação confiada ao falido, que a tendo realizado,
não fez a respectiva prestação de contas”84.
E a via processual adequada para o depositante requerer a restituição é
a prevista no art. 85 da Lei de Falências.
Como já estudado no capítulo 2, como regra geral temos que o pedido
de restituição será cabível quando se pretender a restituição de coisa certa,
identificável e infungível, indevidamente arrecadada por ocasião da
arrecadação.
De fato, tendo-se em vista que um dos requisitos essenciais para tornar
possível a restituição é exatamente a possibilidade de individuação da coisa
arrecadada, levanta-se a questão da possibilidade da restituição de dinheiro.
O dinheiro é um bem fungível, isto é, um bem que poderá sempre ser
substituído por outro da mesma espécie, qualidade e quantidade, conforme
prescrição constante do art. 85 do Código Civil.
Dispõe aquele artigo:
“Art. 85: São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da
mesma espécie, qualidade e quantidade.”
Assim é que muito já se sustentou a impossibilidade de restituição em
dinheiro, em decorrência de sua fungibilidade.
84 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 248.
A jurisprudência já se debruçou sobre a questão da fungibilidade, tendo
ficado consolidado o seguinte entendimento:
“Fungíveis são as coisas que se contam, se medem ou se pesam, e, não
se consideram objetivamente como individualidades. Infungíveis são as coisas
que, em determinada relação jurídica, são consideradas tendo em vista sua
específica individualidade (STF – RT 806/116).
Nesse sentido, a discussão que se encontra na doutrina reside na
dificuldade de se individuar o bem. Assim, durante muito tempo, discutiu-se a
possibilidade de se admitir a restituição de dinheiro arrecadado em poder do
falido, ao fundamento de que, sendo o dinheiro bem fungível, não admitiria tal
individuação.
A questão só encontrou maior pacificação a partir da edição da Súmula
417 do STF, que dispõe: “Pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro
em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou
contrato, não tivesse ele a disponibilidade”.
A edição dessa súmula importa em reconhecer a possibilidade de
restituição de dinheiro na falência, dinheiro este que não tenha sido
incorporado ao patrimônio do falido. São os casos em que, apesar de este ter a
disponibilidade física da moeda, ou a disponibilidade de fato, não tem a sua
disponibilidade jurídica, ou seja, dele não poderia dispor.
Neste diapasão, a restituição do dinheiro é assegurada ao depositante
em virtude de não haver, no depósito bancário, transferência de titularidade do
dinheiro depositado. Ademais, o requisito exigido para o cabimento da ação de
restituição é a demonstração de que a pretensão tem apoio na lei. E esta se
encontra expressa no artigo 85 da Lei de Falências:
“Pode ser pedida a restituição de coisa arrecadada em poder do falido
quando seja devida em virtude de direito real ou do contrato”.
Assim, como se disse acima, a par do conteúdo do disposto no art. 85,
analisado em conjunto com o disposto na Súmula 417 do STF, encontra-se
cabalmente demonstrado o cabimento da restituição de valores depositados
em conta-corrente a aplicações.
Ademais, consoante Pontes de Miranda, ao qual se reporta Amador
Paes de Almeida85:
As coisas fungíveis não tendo individualidade própria (espécie), não podem, em regra, ser reivindicadas. Mas, desde que se não tenham confundido com coisas do mesmo gênero e sejam identificáveis, já podem ser objeto de pedido de restituição. O próprio dinheiro corrente pode, como é sabido, ser objeto de reivindicação: "Se quidem pecuniam extat, vindicare eam potest.
Irrelevante a afirmação de que a ausência de disponibilidade de dinheiro
deva ensejar a recusa da devolução ad nutum ao depositante.
Nelson Nery Júnior86 lembra que, no Congresso Internacional de Direito
do Consumidor (Brasília, abril de 1994), o plenário aprovou conclusão unânime
no sentido de que os "bancos e as atividades bancárias se encontram sob o
regime jurídico do Código de Defesa do Consumidor" (em Código de Processo
Civil Comentado, RT, 3. ed., p. 1.372).
Os depositantes do banco não se situam na categoria de credores do
mesmo, em razão de não ter ocorrido transferência de propriedade do dinheiro.
Aqueles celebraram um contrato com o Banco que lhes garante a devolução do
dinheiro depositado, no momento em que o pedido é feito, embora, no caso de
aplicação a prazo, possam perder rendimentos.
85 ALMEIDA, Amador Paes. Curso de falência e concordata. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 262. 86 NERY JR., Nelson. Código de processo civil comentado. 3. ed. São Paulo; Ed. RT., 1994. p. 1372.
Sustentar tese diversa configuraria violar tanto o princípio constitucional
estampado no artigo 192 da Constituição da República, quanto o da segurança
jurídica. Essa, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello87,
[...]é a insopitável necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estável, ou relativamente estável, o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o futuro; é ela, pois, que enseja projetar e iniciar, conseqüentemente - e não aleatoriamente, ao mero sabor do acaso - comportamentos cujos frutos são esperáveis a médio prazo. Dita previsibilidade é, portanto, o que condiciona a ação humana. Esta é a normalidade das coisas.
A bem dizer, afirma Aramy Dornelles da Luz88,
Toda doutrina, nacional e estrangeira, inclusive Pontes, é unânime em reconhecer que a obrigação do banqueiro é restituir o que recebeu em depósito. Restituir significa devolver e só se devolve o que se possui e é alieno iuris. Aqui se trata de restituição de dinheiro. Se se falar em restituição de crédito, estar-se-á falando em conta corrente. A restituição é própria como obrigação de depositário que não tenha adquirido o domínio sobre o bem depositado.
O direito não pode permitir que efeitos jurídicos mal interpretados
justifiquem uma violência à intenção da parte que, ao fazer um depósito
bancário, tem a certeza de aquele bem é somente seu, uma vez que não deu,
não doou, nem o transferiu ao banco.
Esse entendimento importa, sem sombra de dúvida, na maior
credibilidade ao setor bancário, de vez que, em todas as liquidações de banco
processadas no Brasil, – sempre – o grande prejudicado acaba sendo o
correntista.
87 BANDEIRA DE MELO, Celso. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Ed. RT, 1987. p. 94. 88 LUZ, A.D., op. cit., 1999.p.56.
É bem verdade que a referida súmula foi expedida a partir de
precedentes relativos à contribuição previdenciária descontada e não recolhida,
como já detidamente explanado no presente trabalho, no capítulo 4.
Entretanto, o cerne da questão é saber se dinheiro depositado em conta
corrente, tal como o numerário descontado dos empregados pelo falido, a título
de contribuição previdenciária e não recolhido aos cofres do credor, é passível
de restituição. Como vimos anteriormente, atualmente, a resposta é positiva.
Ocorre que, embora o dinheiro seja bem extremamente fungível, ele
pode ser objeto de mútuo ou entregue ao depósito de terceiro. No caso de
mútuo, o mutuário adquire a propriedade sobre o numerário até mesmo porque
não faria sentido o contrário. Entretanto, não havendo contrato de mútuo,
configurado está o contrato de depósito.
Dispõe o art. 85 da Lei de Falências: "O proprietário de bem arrecadado
no processo de falência ou que se encontre em poder do devedor na
decretação da falência poderá pedir a sua restituição.”
A primeira questão que se coloca é se "dinheiro", em poder do falido,
pode ser objeto de restituição.
Nesse sentido, diverge a doutrina, considerando que, por se tratar de
"dinheiro", não pode haver pedido de restituição. Já vimos que o depósito
bancário não deve ser considerado mútuo apenas pelo fato de o dinheiro ser
um bem fungível.
A questão que se coloca é que, ao receber uma quantia em depósito, a
instituição bancária assume o compromisso de atender às ordens de
pagamento emitidas pelo depositante, o que demonstra, como nos ensina
Pontes de Miranda, que ambas as partes tem, simultaneamente, a
disponibilidade dos valores depositados.
Essa disponibilidade concomitante oferece intransponível óbice ao
argumento de que a operação caracterizaria uma doação do depositante para o
depositário.
Afinal, o ato de depositar e transferir ao banco a disponibilidade do
dinheiro depositado, circunstância inerente à própria natureza do ajuste
celebrado entre as partes, tem o único efeito de viabilizar a eventual utilização
pelo depositante, no todo ou em parte, do saldo da conta corrente de que é
titular, de sorte que o banco assume o compromisso de devolver o dinheiro do
depositante, nas condições pactuadas.
O Des. Brandão Teixeira, quando juiz do T.A.M.G., já asseverava, no
A.I., n. 203.370-3: "O depósito bancário oferece peculiaridades que o
distinguem do típico contrato de depósito disciplinado pela legislação civil, em
que a coisa depositada é entregue a outrem para ser restituída, sem
transmissão de propriedade".
Diverge aqui, da figura jurídica do mútuo, até porque não há no depósito
bancário sempre a data do vencimento do "mútuo", podendo o correntista,
quando lhe aprouver, "sacar" o principal, inclusive quando se tratar de
importância "aplicada", neste caso sem qualquer correção. Nesse muito bem
chamado "depósito irregular", o depositante sabe que o depósito feito será, aí
sim, convertido em mútuo pelo banco que repassará esse valor a terceiro
mutuário. Como então dizer-se que o banco não tem a disponibilidade dos
depósitos?
Também o Superior Tribunal de Justiça tem assentado entendimento no
sentido de que "não é dos clientes o depósito que se acha no banco", uma vez
que, sendo irregular, a ele se aplicam as regras do mútuo. "Assim, transfere-se
a propriedade para o depositário, contra quem o depositante passa a ter um
crédito (RESP 98.623 e RMS 7.230)..." (REsp 212.886-MA, Relator o Ministro
Eduardo Ribeiro, julg. em 29/06/2.000).
A Lei 6.024, de 13.03.74, que "dispõe sobre a intervenção e a liquidação
extrajudicial de instituições financeiras e dá outras providências", prevê no seu
art. 7º, "c", a possibilidade de falência de instituição financeira. Decretada a
falência, passa-se a aplicar as disposições da Lei Falencial (Decreto-Lei 7.661,
de 21.06.1945), como não poderia deixar de ser.
Essa lição tem ainda mais pertinência, quando o dinheiro arrecadado é
absolutamente não identificável.
Não há como se saber se o dinheiro arrecadado pertenceria a "a" ou a
"b", porque foi ele disponibilizado pelo banco falido em empréstimo a
aplicações várias.
Como vimos, a jurisprudência tem entendido que o pedido de restituição
feito pela Previdência Social é possível, mas, até nessa exceção, entende,
como lembra Rubens Requião89, que: "Entretanto, se os salários não chegarem
a ser pagos, só após esse pagamento tem lugar a restituição à instituição
previdenciária, se a massa tiver recursos. (RJT, 40/491)".
Nesse sentido, é possível sustentar que o depósito bancário, por
funcionar como uma espécie de mútuo, tem o condão de transferir a
propriedade do dinheiro para a instituição bancária, que do numerário
depositado pode usar para, inclusive, emprestá-lo a outros clientes.
Nesse sentido, decidiu o egrégio STJ:
"Agravos contra decisão monocrática proferida em recurso especial.
Restituição de depósitos bancários. Indevida. Honorários advocatícios.
Reduzidos. Art. 20, § 4º, do CPC. Os depósitos bancários não se enquadram
na hipótese do art. 76 da Lei de Falências, pois neles, em particular, ocorre a
transferência da titularidade dos valores à instituição bancária, ficando o
correntista apenas com o direito ao crédito correspondente. A verba honorária
89 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 244-245.
fixada "consoante apreciação eqüitativa do juiz" (art. 20, § 4º/CPC), por
decorrer de ato discricionário do magistrado, deve traduzir-se num valor que
não fira a chamada lógica do razoável, pois em nome da eqüidade não se pode
baratear a sucumbência, nem elevá-la a patamares pinaculares. Improvido o
agravo da Massa Falida do Banco do Progresso S/A e provido o agravo do
correntista, para reduzir a verba honorária." (AgRg no REsp 660762/MG, Rel.
Min. César Asfor Rocha, julgado em 17.03.2005)
"Agravo regimental no recurso especial - Banco Progresso - Falência -
Depósito bancário - Restituição - Impossibilidade - Fato superveniente - Não
configuração - Tema já pacificado na segunda seção - Matéria constitucional -
Exame pelo STJ - Inadmissibilidade. 1 - A eg. Segunda Seção desta Corte,
quando do julgamento do REsp 501.401/MG, firmou o entendimento de que o
contrato de depósito bancário contém elementos tanto do depósito irregular
como do mútuo, não se adequando, contudo, especificamente em nenhum
deles. Assentou-se, ainda, que, nesta espécie de contrato, o depositante
transfere à instituição bancária a titularidade do valor depositado, possuindo o
banco a sua total disponibilidade. Assim, decretada a falência ou a liqüidação
extrajudicial da instituição financeira, o depósito passa a integrar a massa falida
gerando, apenas, o direito de crédito para o depositante. 2 - No que se refere
ao alegado fato superveniente, ensejador da ilegitimidade processual do Banco
Central do Brasil, verifico que a Ação Revocatória, na qual se discute a
ineficácia do pagamento pelo Banco Central da dívida do Banco Progresso
junto à Caixa Econômica Federal - tendo o BACEN se sub-rogado, dessa
forma, na condição de credor da instituição financeira falida -, apesar de ter
sido julgada procedente em 1º Grau, não alcançou a definitividade. A par disso,
cuida-se de tema alheio à controvérsia dos presentes autos. 3 - No que tange à
nova composição da Segunda Seção deste Tribunal de Uniformização, cabe
ressaltar que, conquanto a tese acolhida tenha sido por maioria, os integrantes
de ambas as Turmas da Seção de Direito Privado, posteriormente, vêm
ratificando seu entendimento a respeito da questão jurídica ora debatida,
mesmo aqueles Ministros que não participaram do julgamento, no sentido
prevalecente no leading case (REsp 501.401/MG). 4 - Em sede de recurso
especial, a competência desta Corte Superior de Justiça se limita à interpretar
e uniformizar o Direito Infraconstitucional federal, a teor do disposto no art. 105,
III, da Carta Magna. Assim sendo, resta prejudicada a pretensão da agravante
de ver discutida a controvérsia sob o enfoque constitucional, sob pena de
usurpação da competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal, via recurso
extraordinário. Os apelantes sustentam, síntese que, o contrato de depósito
bancário não se enquadra na disciplina do artigo 76 do Decreto Lei nº 7.661/45
- Lei de Falências e, por isso, incabível a restituição do dinheiro, exceto quando
identificável e não confundido no patrimônio da massa, tendo o depositante,
tão-só, direito de crédito contra a instituição financeira. Cabe ressaltar que o
egrégio STJ, em decisões recentes, tem se posicionado no sentido de que "no
contrato de depósito bancário o depositante não tem a cobertura do art. 76 da
Lei de Falências". Peço vênia para transcrever arestos abaixo:
"COMERCIAL. FALÊNCIA. DEPÓSITO BANCÁRIO. RESTITUIÇÃO. No
contrato depósito bancário o depositante não tem a cobertura do art. 76 da Lei
de Falências. (REsp nº 501.401, MG, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes
Direito, DJ de 03.11.2004)." Processo: AgRG no REsp 511120/MG
2003/0006905-0- Min. Ari Pargendler - 3ª Turma - DJ 22.04.2007 - p. 253.
"AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESTITUIÇÃO DE DEPÓSITOS
BANCÁRIOS. AGRAVO IMPROVIDO. Os depósitos bancários não se
enquadram na hipótese do art. 76 da Lei de Falências, pois neles, em
particular, ocorre a transferência da titularidade dos valores à instituição
bancária, ficando o correntista apenas com o direito ao crédito correspondente.
Subsistente o fundamento do decisório agravado, nega-se provimento ao
agravo." Processo: AgRG no Resp 658613/MG - 2004/0069573-3- Min. César
Asfor Rocha - 4ª Turma - DJ 29.11.2004, p. 348)
"AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESTITUIÇÃO.
FALÊNCIA. DEPÓSITO BANCÁRIO. RESTITUIÇÃO. I - A impugnação da
parte é viabilizada pelas razões de decidir da decisão agravada, não havendo
qualquer prejuízo na ausência de publicação do leasing case adotado.
Precedentes do egrégio Supremo Tribunal Federal. II - Não há falar, in casu,
em ausência de interesse recursal do Banco Central do Brasil, pois o agravante
não logrou demonstrar a definitividade da sentença que julgou a ação
revocatória noticiada, sendo impossível verificar seus efeitos. III - Ao Superior
Tribunal de Justiça compete, exclusivamente, unificar o direito
infraconstitucional, não havendo lugar para se discutir, com carga decisória,
preceitos constitucionais. IV - O contrato de depósito bancário não é depósito
comum, pois nele a instituição financeira detém a disponibilidade do dinheiro
depositado, ficando afastada, a incidência do artigo 76 da Lei de Falências.
Precedente. Agravo improvido." Processo: AgRg no REso 586522/MG - Min.
Castro Filho - 3ª Turma - DJ 13.11.2006 - p. 245)
De outro norte, a operação bancária celebrada entre uma instituição
bancária e um correntista, com este último recebendo, como depósito, certa
soma em dinheiro, certamente obriga a instituição a restituir os valores
recebidos ao correntista em determinado prazo ou a ordem de quem a entrega.
Nessa ótica, consoante entendimento jurisprudencial firmado pelo
excelso Superior Tribunal de Justiça, entre outros julgamentos, na condução de
tais operações, tem-se deliberado que:
“...representando o contrato de depósito bancário um depósito comum -
que guarda elementos tanto do depósito irregular quanto do mútuo, tendo, por
outro lado, o banco a disponibilidade do dinheiro depositado - não está sujeito à
cobertura do art. 76 da Lei de Falências. (AGRESP 577378/MG - Min.
Fernando Gonçalves)”.
Aquele mesmo excelso pretório também decidiu que:
“O depósito bancário é espécie irregular. Funciona como mútuo. Assim,
o dinheiro nominalmente depositado transfere-se a propriedade do depositário.
- Em caso de falência do banco, os valores nele depositados serão
arrecadados pela massa, como patrimônio do falido (Arts. 1.280, 1.256 e 1.257
do CC). Aos depositantes não cabe o pedido de restituição (Art. 76 da LF).
Devem habilitar o respectivo crédito, para que se integrem no quadro geral de
credores. (AGRESP 508051/MG - Rel. Min. Humberto Gomes de Barros).
À luz do sobredito entendimento, trata-se, portanto, de crédito de
natureza quirografária e, como tal, sujeito a habilitação no processo de falência
da instituição bancária.
8 CONCLUSÕES
A discussão sobre a classificação do dinheiro depositado em conta-
corrente entre direito de crédito ou direito de propriedade, constitui um dos
aspectos da supremacia do direito do terceiro nas conseqüências do rateio
falimentar. A situação do correntista é, sem sombra de dúvida, bastante
semelhante à situação de terceiros de outras classes, aos quais é deferida a
restituição de bens, entre eles o dinheiro, ao fundamento de que estes bens
não integram a massa falida.
O direito de propriedade sujeita-se aos parâmetros fixados pela
legislação ordinária, ao poder de conformação do legislador. Em que pesem as
limitações impostas pela necessidade de preservar o núcleo essencial da
garantia fundamental, é forçoso acentuar a inexistência de um conceito
absoluto, preestabelecido e imutável de propriedade, em relação ao qual
eventuais alterações exijam observância do Princípio da Proporcionalidade.
Ao mesmo tempo, a Constituição da República contém garantias e
conceitos que devem ser buscados e preservados, a todo tempo, em qualquer
ocasião.
Especialmente quando a vítima é mais fraca, deve-se privilegiar a
aparência à forma e, no caso do correntista, não é possível crer ou fazer crer a
todos os cidadãos que os valores que eles depositam, mensalmente, em suas
poupanças, são transferidos ao banco depositário, contra o qual ele –
depositante – adquire direito de crédito.
Para os correntistas, a garantia de propriedade está nos demonstrativos
mensais – obrigatórios aos bancos, nos termos legais – documentos notórios e
de evidente circulação, oponíveis a qualquer um, e, portanto, capazes de
constituir prova de seu conteúdo.
Tratar, portanto, do correntista como proprietário dos valores
depositados, garantindo-lhe seus créditos mesmo – ou especialmente – em
casos de falência, certamente se nos afigura primar pela isonomia – tratando
os desiguais na medida de sua desigualdade.
Quando a tese em si não é pacificada; quando a posição do hermeneuta
ancora em mais de um porto com a mesma segurança, as peculiaridades do
caso em julgamento revestem-se de redobrada importância.
Del Vecchio, apud Vicente Ráo90 (1999) afirma, in verbis:
E Del Vecchio aqui acrescenta esse magistral conselho, tantas e tantas vezes esquecido pelos intérpretes e aplicadores da lei: A harmonia das diversas partes componentes do sistema deve ser experimentada e confirmada a cada instante, aproximando-se as regras particulares entre si e relacionando-as com os princípios gerais a que se prendem. Só assim poderá o jurista compreender o espírito do sistema e observá-lo em suas aplicações particulares, evitando os erros que se produziriam se ele se contentasse em considerar, por um modo geral, apenas esta ou aquela regra em si mesma. O jurista e, especialmente, o juiz, devem tanto quanto possível, dominar e, por assim dizer, reviver o inteiro sistema, compenetrando-se de sua unidade espiritual, desde os princípios remotos e subentendidos, até as mínimas disposições de detalhe, como se fossem autores do todo.
Com efeito, a lógica do sistema jurídico não fica alheia às investidas dos
interesses de classe, sendo que a defesa da economia nacional, regional ou
global não se resume à defesa de empresas pelo sistema de leis comerciais,
mas também do consumidor e do papel desse indivíduo-cidadão na produção
90 RÁO, Vicente O direito e a vida dos direitos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 276.
de riqueza e na sua circulação. Essa defesa está presente nos dispositivos da
Constituição da República que se busca positivar através de uma visão mais
abrangente dos princípios e normas constitucionais.
Não obstante, a má vontade de alguns, aliada ao desconhecimento de
outros, por vezes faz cegar os aplicadores induzindo-lhes a erro.
Damásio de Jesus, em “Os olhos abertos da justiça”, assim se manifesta
a respeito:
Hoje, mantida ainda a venda, pretende-se conferir à estátua Themis a imagem de uma justiça que, cega, concede a cada um o que é seu sem conhecer o litigante. Imparcial, não distingue o sábio do analfabeto; o detentor do poder do desamparado; o forte do fraco; o maltrapilho do abastado. A todos, aplica o reto Direito. Mas não é essa a Justiça que eu vejo. Vivo perante uma Justiça que ouve falar de injustiças, mas, por ser cega, não as vê; que sufocada pelo excesso de demanda, demora para resolver coisas grandes e pequenas; condenando-se pela sua própria limitação. Uma Justiça que, pobre e debilitada pela falta de recursos, não tem condições materiais de atualizar-se. Uma Justiça que quer julgar, mas não pode. Essa não é a Minha Justiça. Minha Justiça não é cega. É uma Lady de olhos abertos, ágil, acessível, altiva, democrática e efetiva. Tirando-lhe a venda, eu a liberto, para que possa ver. Por não ser necessário ser cego para fazer justiça, minha justiça enxerga e, com olhos bons e despertos, é justa, prudente e imparcial. Ela vê a impunidade, a pobreza, o choro, o sofrimento, a tortura, os gritos de dor e a desesperança dos necessitados que lhe batem à porta. E conhece, com seus olhos espertos, de onde partem os gritos e as lamúrias, o lugar das injustiças, onde mora o desespero. Mas não só vê e conhece. Age. A minha é uma Justiça que reclama, chora, grita e sofre. Uma Justiça que se emociona. E de seus olhos vertem lágrimas. Não por ser cega, mas pela angústia de não poder ser mais justa.
Pertinente o registro de que somente uma concepção excessivamente
rígida e estreita do direito poderia negar-se a reconhecer a amplitude e
presença da expansão dos conceitos, sempre inerente à lei, porquanto a lei é a
expressão do pensamento e o pensamento é dialético por natureza.
Via de conseqüência, a atividade judiciária não pode se reduzir ao
trabalho de subsunção dos fatos à norma de direito, na medida em que
confinar em tais limites a função do juiz é concepção falsa e estreita, até
porque aquele operador do Direito não é um autômato de decisões.
A norma positiva, muitas vezes, parece justa quando se aproxima do
fato. No entanto, pretender adaptá-la às mil circunstâncias particulares é tarefa
impossível. Noutro giro, permitir-se relegá-la aos porões do esquecimento
conduz a mal maior, quando se crê que a vantagem precípua das codificações
consiste na certeza e na relativa estabilidade do Direito.
As normas positivas não são estáticas, rígidas ou imutáveis. São produto
de viva pesquisa, desenvolvimento, progresso. E, para se atingir o ideal de
justiça, é preciso buscar inspiração no interesse pelo ser humano, seus
destinos, anseios, sofrimentos e aspirações. O juiz, nesse sentido, adapta o
texto à vida real e faz do Direito uma condição da coexistência humana. Assim,
a justiça não pode andar divorciada da intenção de conhecer a verdade, estudo
e exercício de paixões e desapego ao preconceito, e, acima de tudo,
observação contínua da sociedade e das mais insignificantes circunstâncias
fáticas.
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