3
Admirável Gado Novo Zé Ramalho Vocês que fazem parte dessa massa Que passa nos projetos do futuro, É duro tanto ter que caminhar E dar muito mais do que receber, E ter que demonstrar sua coragem À margem do que possa parecer, E ver que toda essa engrenagem Já sente a ferrugem lhe comer. Ê, vida de gado... Povo marcado, Povo feliz... Lá fora faz um tempo confortável, A vigilância cuida do normal; Os automóveis ouvem a notícia, Os homens a publicam no jornal, E correm através da madrugada, A única velhice que chegou; Demoram-se na beira da estrada E passam a contar o que sobrou. Ê, vida de gado... Povo marcado, Povo feliz... O povo foge da ignorância, Apesar de viver tão perto dela, E sonham com melhores tempos idos, Contemplam essa vida numa cela, E esperam nova possibilidade De verem esse mundo se acabar; A Arca de Noé, o dirigível Não voam nem se podem flutuar. Ê, vida de gado... Povo marcado, Povo feliz... Assim temos em “Admirável Gado Novo” uma forte crítica social, tendo em vista que o Brasil passava por um dos períodos mais negros da sua história. Vemos expressados

Admirvel Gado Novo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Zé Ramalho

Citation preview

Page 1: Admirvel Gado Novo

Admirável Gado NovoZé Ramalho

Vocês que fazem parte dessa massaQue passa nos projetos do futuro,É duro tanto ter que caminharE dar muito mais do que receber,E ter que demonstrar sua coragemÀ margem do que possa parecer,E ver que toda essa engrenagemJá sente a ferrugem lhe comer.

Ê, vida de gado...Povo marcado,Povo feliz...

Lá fora faz um tempo confortável,A vigilância cuida do normal;Os automóveis ouvem a notícia,Os homens a publicam no jornal,E correm através da madrugada,A única velhice que chegou;Demoram-se na beira da estradaE passam a contar o que sobrou.

Ê, vida de gado...Povo marcado,Povo feliz...

O povo foge da ignorância,Apesar de viver tão perto dela,E sonham com melhores tempos idos,Contemplam essa vida numa cela,E esperam nova possibilidadeDe verem esse mundo se acabar;A Arca de Noé, o dirigívelNão voam nem se podem flutuar.

Ê, vida de gado...Povo marcado,Povo feliz...

Assim temos em “Admirável Gado Novo” uma forte crítica social, tendo em vista que o Brasil passava por um dos períodos mais negros da sua história. Vemos expressados nela a luta de classes, tão discutida por Marx, e um aspecto imprescindível nesse contexto que é a manutenção desse modelo social através da alienação das massas, metaforizada na figura do gado.

Outrossim, Zé Ramalho compôs “Admirável Gado Novo” numa clara referência ao romance de ficção científica de Aldous Huxley “Admirável Mundo Novo”. Escrito em 1932, este romance descreve uma sociedade hipotética do futuro, onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e ordens sociais, sem possibilidade de contestação e senso crítico. No entanto, nesse “futuro” criado por Aldous Huxley não há as regras sociais, éticas ou

Page 2: Admirvel Gado Novo

religiosas de hoje. Qualquer dúvida de algum habitante é dissipada com o uso de uma droga, sem efeitos colaterais chamada “soma”.

Vemos assim uma sociedade controlada, condicionada a viver em uma ordem estabelecida através do conformismo. Outro aspecto importante é que nesse “Mundo Novo” não há princípios morais e éticos. O controle se dá somente através da droga “soma” que surge como a representação dos instrumentos alienatórios da nossa sociedade, entre eles os meios de comunicação de massa como a televisão. Não há espaço para o questionamento, pois a “droga” elimina todas as dúvidas e continua a direcionar, é claro, de acordo a ordem dominante. É um mundo “admirável”, pois se apresenta como modelo exemplar de perfeição e ordem, contudo esconde as desigualdades e mazelas sociais.

A exploração do homem pelo homem é um dos pontos fortes sobre o qual se fundamenta a análise marxista da sociedade. E nesse sentido a expressão “massa” aparece como um forte indicador do anonimato, do tratamento não individual, essencialmente coletivo que o Capitalismo impõe aos indivíduos. Representa a necessidade da produtividade, bem como aquilo de pouco apuro, reflexão e qualidade, dada a falta de acesso da “massa” à educação e ao conhecimento de uma forma geral.

A exploração do homem pelo homem é um dos pontos fortes sobre o qual se fundamenta a análise marxista da sociedade. E nesse sentido a expressão “massa” aparece como um forte indicador do anonimato, do tratamento não individual, essencialmente coletivo que o Capitalismo impõe aos indivíduos. Representa a necessidade da produtividade, bem como aquilo de pouco apuro, reflexão e qualidade, dada a falta de acesso da “massa” à educação e ao conhecimento de uma forma geral.

Essa condição massificada gera o problema de “dar muito mais do que receber”, característico do modo de produção capitalista que faz com que o trabalhador produza muito e receba pouco. No caso brasileiro, essa exploração se caracteriza desde o campo, com o trabalho semi-escravo, à cidade, com as altas cargas de trabalho e a constante supressão dos direitos trabalhistas. Assim, temos o quadro lamentável da nossa estrutura de classes. Apesar disso o autor enfatiza a coragem da “massa”, demonstrada “à margem do que possa parecer”, na manifestação de um povo que sofre com o sistema, mas não perde sua alegria.

Outra consideração importante a fazer é a referência a “engrenagem” que “sente a ferrugem lhe comer”. Tal expressão faz uso da metáfora e refere-se tanto à autodestruição do Capitalismo, pregada por Marx, quanto à derrocada do regime militar que vigorava no Brasil naquele período. Segundo o pensamento marxista, o Capitalismo carrega os germes de sua própria destruição, e seria suplantado pelo Socialismo onde os trabalhadores formariam uma sociedade baseada na propriedade coletiva dos meios de produção, pois, propõe a visão marxista, que todo sistema econômico traz no seu embrião as contradições que irão destruí-lo por meio da luta de classes