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DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO: PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PROCESSOS SOCIOEDUCATIVOS E PRÁTICAS ESCOLARES – MESTRADO EM EDUCAÇÃO. O USO DO MÉTODO DE ALFABETIZAÇÃO “SIM, EU POSSO” PELO MST NO CEARÁ: O PAPEL DO MONITOR DA TURMA AGEU QUINTINO MAZILÃO FILHO SÃO JOÃO DEL-REI Abril de 2011

Alfabetização - Sim, Eu Posso

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  • DEPARTAMENTO DE EDUCAO: PROGRAMA DE PS-GRADUAO PROCESSOS SOCIOEDUCATIVOS E

    PRTICAS ESCOLARES MESTRADO EM EDUCAO.

    O USO DO MTODO DE ALFABETIZAO SIM, EU POSSO PELO MST NO CEAR: O PAPEL DO MONITOR DA TURMA

    AGEU QUINTINO MAZILO FILHO

    SO JOO DEL-REI Abril de 2011

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    O USO DO MTODO DE ALFABETIZAO SIM, EU POSSO PELO MST NO CEAR: O PAPEL DO MONITOR DA TURMA

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao: Processos Socioeducativos e Prticas Escolares, como requisito parcial para

    obteno do ttulo de Mestre em Educao.

    Mestrando: Ageu Quintino Mazilo Filho Orientadora: Professora Dr. Maria do Socorro A. Nunes Macedo

    So Joo del-Rei Abril de 2011

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    AGEU QUINTINO MAZILO FILHO

    O USO DO MTODO DE ALFABETIZAO SIM, EU POSSO PELO MST NO CEAR: O PAPEL DO MONITOR DA TURMA

    BANCA EXAMINADORA:

    Prof. Dr. Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo - Orientadora Universidade Federal de So Joo del-Rei - UFSJ

    Prof. Dr. Claudia Lemos Vvio - Titular Universidade Federal de So Paulo - UNIFESP

    Prof. Dr. Vnia Aparecida Costa Titular Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG

    Prof. Dr. Wlamir Silva Titular Universidade Federal de So Joo del-Rei - UFSJ

    Prof. Dr. Carlos Henrique de Souza Gerken - Suplente Universidade Federal de So Joo del-Rei UFSJ

    So Joo del-Rei Abril de 2011

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    Agradecimentos

    A minha me Maria Lcia dos Santos Mazilo, meu pai Aggeo Quintino Mazilo e meus irmos Keilon e Marconi, toda famlia e amigos pelo apoio irrestrito.

    A Professora Dr. Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo pela orientao sempre precisa, paciente e confiante, meus mais sinceros agradecimentos pelo grande aprendizado.

    Ao Professor Dr. Wlamir Silva, Professora Dr. Vnia Aparecida Costa, Professora Dr. Cludia Lemos Vvio e Professor Dr. Carlos Henrique de Souza Gerken que colaboraram e participaram das bancas de qualificao e defesa, pelas pertinentes contribuies.

    Ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), especialmente nas pessoas de Cristina Vargas, Vera Mariano, Nonata Souza, Maria de Jesus e Tiago Manggini, por toda colaborao e apoio.

    A famlia do Sr. Raimundo Miguel de Souza e Dona Maria Auri Estevam de Souza e seus filhos, especialmente Fernanda e Rodrigo, pela hospedagem e ajuda imprescindvel durante o perodo de pesquisa de campo no assentamento.

    Aos moradores e amigos do Assentamento Unidos de Santa Brbara, especialmente Nelson, Sr. Antnio e Dona Geraldina, Adacir e Chagas, Ernesto e Rosa, Sr. Itamar e Sr. Gerardo pela colaborao e pacincia.

    Aos amigos de Cuba, especialmente a Professora Leonela Ins Relys Daz e os metodlogos do IPLAC, Jlio Csar e Jos Luiz, pelo apoio e colaborao.

    A Aline dos Santos, pela colaborao e precisa reviso de texto da dissertao.

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    Aos professores do Ensino Pblico, responsveis por toda minha escolarizao e formao acadmica, especialmente os do Curso de Histria e do Mestrado em Educao da Universidade Federal de So Joo del-Rei.

    Aos colegas do Mestrado em Educao e s funcionrias, especialmente Simone e Roberta, meus mais sinceros agradecimentos.

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    Lista de figuras e quadros:

    Quadro 1: reflexes dos prprios assentados sobre sua realidade ........................ 86

    Quadro 2: carta de dona Francisca Almeida da Silva .......................................... 137

    Quadro 3: carta de dona Geraldina da Silva Nascimento...................................... 137

    Quadro 4: carta do Sr. Antonio Pinto Batista do Nascimento............................... 138

    Ilustrao 1: Sr. Gerardo Lopes de Arajo, morador do assentamento, autor do cordel "Sem Terra: a caminhada no encerra"...................................................... 70

    Ilustrao 2: faixa em frente escola do assentamento ......................................... 71

    Ilustrao 3: Exemplo de disponibilidade de cultura escrita em ponto de comrcio do assentamento ......................................................................................................... 71

    Ilustrao 4: Balnerio Santa Brbara, ponto de lazer para os moradores ......... 76

    Ilustrao 5: "grafite" na escola do assentamento, onde se l "MST" .............. 77

    Ilustrao 6: Vista parcial da vila principal do assentamento, onde se v uma capela catlica, e um telefone pblico tipo "orelho" ............................................ 80

    Ilustrao 7: Templo da Igreja Evanglica Assemblia de Deus .......................... 80

    Ilustrao 8: Cdula de 100 pesos convertveis cubanos, onde se v a gravura de uma aula com o Yo, s puedo ................................................................................. 93

    Ilustrao 9: Materiais didticos do Sim, eu posso .......................................... 95

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    Ilustrao 10: O monitor e seus educandos em aula com o "Sim, eu posso" ..... 108

    Ilustrao 11: Nelson, o monitor em aula com o "Sim, eu posso ...................... 109

    Ilustrao 12: Exemplo de pgina da cartilha do "Sim, eu posso"...................... 118

    Ilustrao 13: Cartolina utilizada como substituta ao quadro negro ............... 120

    Ilustrao 14: Pgina da cartilha com a associao de nmeros e letras ......... 125

    Ilustrao 15: Exemplo de "p de galinha" para formao de slabas ............ 131

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    SUMRIO

    Resumo ................................................................................................. 10

    Abstract ................................................................................................ 11

    Introduo ............................................................................................ 12

    Captulo 1 Arcabouo Terico e Metodolgico ............................. 17 1.1 Avaliao da alfabetizao e do letramento: breves consideraes ... 17 1.2. As contribuies de Kalman, Street e Bakhtin ............................... 19 1.3. O processo de coleta de dados .............................................................. 21

    Captulo 2 Breves consideraes sobre a histria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ......................................... 29

    2.1 MST Nacional ..................................................................................... 29 2.2 - Bases ideolgicas do MST: breves consideraes ............................. 36 2.3 - Histria da EJA no MST .................................................................... 42 2.4 - MST Nordeste ...................................................................................... 55 2.5 - MST Cear ........................................................................................... 59

    Captulo 3 O Assentamento Unidos de Santa Brbara, Cear, como contexto para ler e escrever ................................................................ 67

    3.1 Breve caracterizao da Regio ........................................................ 67 3.2 Histria e infraestrutura do assentamento ....................................... 68 3.3 Aspectos culturais do assentamento .................................................. 75 3.4 Religiosidade ....................................................................................... 79 3.5 Organizao do assentamento ........................................................... 84

    Captulo 4 Caractersticas do mtodo Sim, eu posso ................ 89 4.1 Vises da autora do mtodo ............................................................... 90

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    4.2 - Apresentao do mtodo nas reunies entre metodlogos cubanos, MST e representantes da prefeitura de Fortaleza ................................................ 99

    Captulo 5 - O papel do monitor-alfabetizador na implementao do programa Sim, eu posso ................................................................ 108

    5.1 As aulas do assentamento na Vila Luiz Gonzaga: aspectos contextuais .................................................................................................................................... 108

    5.2 Primeiro dia de aula: explicitao das condies de trabalho,

    apresentao do programa e motivao dos alunos ........................................... 111 5.3 Negociando o horrio das aulas ....................................................... 114 5.4 Checando as experincias prvias dos alunos com a escrita ......... 116 5.5 - A importncia da escrita do nome ................................................... 117 5.6 Treinando a coordenao motora: outro requisito do mtodo .... 121 5.7 Estudando os nmeros: a base de organizao do Mtodo Sim, eu

    posso ...................................................................................................................... 124

    5.8 Outras situaes exemplares da mediao de Nelson durante o processo de alfabetizao ...................................................................................... 128

    5.9 - A escrita da carta como produto do processo de alfabetizao ... 136

    Consideraes finais .......................................................................... 141

    Referncias Bibliogrficas ................................................................ 148

    Anexo 1 ............................................................................................... 152

    Anexo 2 ............................................................................................... 157

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    Resumo

    Este trabalho, inserido na perspectiva analtica dos Novos Estudos sobre Letramentos, vislumbrou analisar o papel do monitor-alfabetizador de uma turma de alfabetizao de adultos balizada pelo mtodo cubano Sim, eu posso (Yo, s puedo), em um assentamento nordestino de trabalhadores rurais sem terra, onde se foi realizada pesquisa de campo de cunho etnogrfico buscando compreender tambm o local como contexto para ler e escrever. Propomos aqui considerar o fenmeno localizado que foco de nossas anlises sempre relacionado ao contexto histrico que o engloba, apontando aspectos da totalidade que o determina, entre os quais concentramo-nos principalmente em elementos que colaboram com o entendimento do processo que determinou o principal agente indutor do Sim, eu posso no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com ateno especial suas inclinaes ideolgicas e as relaes destas com a adoo do mtodo cubano, relao internacional que faz parte da histria da Educao de Jovens e Adultos dentro do Movimento, que buscamos tambm apurar no estudo aqui reproduzido. Tratamos tambm aqui, de caracterizar e analisar brevemente o prprio mtodo de alfabetizao Sim, eu posso, que faz intensivo uso de aparelhos de televiso e reprodutores de DVD para a transmisso de uma espcie de tele-novela passada em uma sala de aula, onde um apresentador discorre sobre temas variados, sempre associados aos temas de estudo de cada aula, geralmente uma letra e, com ela a composio de palavras e frases, exerccios estes reproduzidos na sala de aula real sob a mediao do monitor-alfabetizador da turma. O mtodo um dos mais propalados da atualidade, aplicado principalmente em pases latino-americanos onde, de acordo com parmetros da UNESCO, vm apresentando resultados que permitem declarao de territrio livre de analfabetismo, como no caso da Venezuela. Contudo, a escassez de pesquisas que trate da utilizao do mtodo no Brasil no nos permite uma melhor compreenso do fenmeno, esforo aqui proposto com ateno especial para a considerao de letramento como uso social da cultura escrita.

    Palavras-chave: Letramento, alfabetizao, EJA, mtodo Sim, eu posso (Yo, si puedo).

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    Abstract

    This paper, inserted into the perspective analytical of the New Literacy Studies (NLS), envisioned to analyze the role of a literacy teaching assistante in a class of adult literacy marked out by the Cuban method, Yes I can (Yo, s puedo), located in a settlement of landless working class in north-east of Brazil, where the ethnographic field research was conducted, which seek to comprehend the place as a context of reading and writing. We proposed to consider the local phenomenon which is the focus of our analysis always related to the historical context which involves within it, pointing out the whole aspects which determines it, among we focus mainly on factors which contribute the understanding of the process which determined the main inducing agent of the Yes, I can in Brazil, the Movement of Rural Working Class (MST), with special attention to its ideological learnings and its relationship with the adopted Cuban method, International relation which is part of the Youth and Adult Education history within the Moviment, which we seek to investigate in this realized studies. We treated to characterize and briefly analyze the literacy method itself, Yes, I can which makes intentive use of Television sets and DVD players to transmit a kind of Tele-novela shown in a classroom, where one presenter discusses various topics, always related to the study topics of each class Gerally a letter and with it, a composition of words and frases, exercises produced in a real classroom under the supervision of a literacy teaching assistant in the class. The mothod is one of the most publicized currently and mainly applied in Latin American countries which according to the UNESCO parameters have presented results that permits the declaration of Free iliteracy territory as in the case of Venezuela. However, the lack of research which addresses the use of this method in Brazil, does not permit us to have a better understanding of the phenomenon, we proposed a special attention to consider literacy as social use of written culture.

    Keyword: Literacy, Youth and Adult Education, Yes, I can Method (Yo, si Puedo)

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    Introduo

    A presente pesquisa teve por objetivo geral a anlise e reflexo acerca do papel do monitor-alfabetizador em prticas de letramentos balizados pelo mtodo Sim, eu posso de alfabetizao de jovens e adultos, em um assentamento nordestino de trabalhadores rurais sem terra. Como objetivos especficos, conhecer o processo histrico que possibilitou a aplicao do mtodo Sim, eu posso pelo MST; conhecer o mtodo Sim, eu posso, sua histria e especificidades; conhecer atravs de dados colhidos em pesquisa de campo os elementos que permitem a configurao de um contexto para ler e escrever; traar o perfil do educador e dos educandos da turma analisada; conhecer a atuao prtica do monitor-alfabetizador atravs da anlise de aulas por ele mediadas e o modelo de letramento nelas efetivado.

    O mtodo Sim, eu posso (Yo, s puedo) um dos mais propalados da atualidade, por ter apresentado resultados positivos, de acordo com parmetros da UNESCO, em mais de 15 pases, com destaque para a Venezuela, que foi declarada territrio livre do analfabetismo. Consideramos que o protocolo internacional de cooperao com Cuba, realizado pelo Governo Federal, em 2005, pode ter sido um fator que contribuiu para a busca pelo MST da utilizao do Sim, eu posso. Foram, desde ento, instaladas experincias-piloto em assentamentos e acampamentos no Paran, Piau, Maranho, entre outros Estados. Cabe lembrar, ainda, que so atribudas ao mtodo caractersticas como um custo baixo, alm da alegao de que j foi experimentado e obteve xito em vrios pases, sendo que o recurso audiovisual utilizado (vdeos reproduzidos por aparelhos de televiso e DVD) seria muito sedutor e um aliado, em potencial, alfabetizao de jovens e adultos.

    A ausncia de estudo dos resultados das experincias em curso, no Brasil, a exemplo de alguns assentamentos do MST, no permite, contudo, que se tenha uma viso dos efeitos do mtodo na alfabetizao de jovens e adultos. Chama a ateno, ainda, o fato de que os processos de alfabetizao de massa tenham focado suas metas numa compreenso estatstica de alfabetizao. Concretamente, muitos dos jovens e adultos considerados alfabetizados no sabem ler nem escrever, apenas decifrar as palavras e as letras, sem um uso social da cultura escrita; nesses termos, a discusso sobre o assunto se torna empobrecida.

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    Para Paulo Freire (1981), o ensino da leitura e da escrita no pode ser a repetio mecnica das famlias silbicas, nem a memorizao de uma palavra alienada, mas sim a difcil aprendizagem de nomear o mundo (p. 39). Neste sentido, uma alfabetizao que no potencializa a apropriao crtica da escrita e o seu uso social concreto no tem sentido cultural, pessoal e profissional para os jovens e adultos. A presente pesquisa justifica-se, assim, pela crescente necessidade de reflexo acerca do letramento e da alfabetizao de jovens e adultos, bem como sobre as diversas correntes tericas, nesse campo, fundamental para se garantir uma compreenso mais aprofundada do processo de ensino-aprendizagem para esse pblico.

    Galvo & Di Pierro (2007), analisando o preconceito contra o analfabeto, apontam que incomum que pessoas analfabetas abordem a questo como problema coletivo ou expressem conscincia da violao de seus direitos educativos. O analfabetismo no percebido como expresso de processos de excluso social ou como violao de direitos coletivos, e sim como uma experincia individual de desvio ou fracasso, que provoca repetidas situaes de discriminao e humilhao, vividas com grande sofrimento e, por vezes, acompanhadas por sentimentos de culpa e vergonha. No Brasil,

    a ampla maioria dos analfabetos constituda por pessoas oriundas do campo, de municpios de pequeno porte, nascidos em famlias numerosas e muito pobres,

    cuja subsistncia necessitou da mo-de-obra de todos os membros desde cedo. [...] Alguns foram escola por perodos curtos e descontnuos, onde realizaram

    aprendizagens pouco significativas, e vivenciaram experincias de fracasso, castigo e humilhao. A interrupo dos estudos e o reduzido uso social das

    habilidades adquiridas na escola levaram posteriormente regresso a condio de

    analfabetos (GALVO & DI PIERRO, 2007, p. 16).

    Na tradio pedaggica brasileira da educao de jovens e adultos, conta-se com um importante acmulo epistemolgico, principalmente pela influncia do paradigma da educao popular e da obra de Paulo Freire.

    As orientaes pedaggicas mais recentes so tambm bastante concordes com

    a perspectiva freiriana de educao dialgica que visa provocar no educando o reconhecimento de si mesmo como sujeito e a viso crtica sobre as estruturas sociais, alm do engajamento ativo como uma prtica emancipatria (RIBEIRO, 1999, p. 9).

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    Apesar disso, o MEC (Ministrio da Educao) no impe de cima para baixo o mtodo Paulo Freire ou qualquer outro como modelo padro a ser utilizado na alfabetizao de jovens e adultos, deixando aos Estados e municpios uma relativa liberdade de escolha da metodologia a ser empregada, o que permite importantes experimentaes de modelos novos ou adaptados. Como nos aponta Jane Paiva,

    a efemeridade dos programas, mesmo concertados pelo governo federal, com

    intenes e concepes evidenciando o compromisso com o direito, esbarra nas

    disputas internas e no conta com o povo na rua, nem com a presso de jovens e adultos, exigindo esse direito (PAIVA, 2006, p. 15).

    Vemos, portanto, que, apesar de forte embasamento terico-pedaggico dos programas de alfabetizao do governo federal, o Brasil est, ainda, longe de diminuir significativamente sua alta taxa de analfabetismo (cerca de 10% da populao adulta), e sequer de se aproximar da taxa de nossos vizinhos. Vale lembrar ainda que,

    desde que a Revoluo Industrial fez do urbano o modo de vida dominante,

    disseminando pelo globo o ideal da escolarizao elementar das massas, taxas de

    analfabetismo so tomadas como indicadores importantes da condio de

    desenvolvimento socioeconmico das naes. Organismos internacionais tomam

    esses ndices como referncia para comparar o desempenho de pases com distintas tradies culturais, estabelecendo, com base nele, metas para a

    promoo do desenvolvimento e a cooperao entre naes (RIBEIRO, VVIO & MOURA, 2002, p. 50).

    Nossa pesquisa est organizada em cinco captulos. No primeiro captulo, realizamos apontamentos acerca do arcabouo terico-metodolgico utilizado, com destaque s consideraes realizadas sobre o campo educacional da alfabetizao e letramento, na perspectiva dos Novos Estudos sobre Letramentos, entre os quais destacamos Street e Kalman, alm da fundamental colaborao do pensamento de Bakhtin, para a compreenso do letramento ideolgico e dos usos sociais da cultura escrita. Ainda nesse captulo, esclarecemos a metodologia adotada para a pesquisa de campo, caracterizada como de cunho etnogrfico, e baseada nas propostas de autores dos Novos Estudos sobre Letramentos, alm das contribuies de Rockwell e sua proposta de integrar a perspectiva de Gramsci, principalmente no que condiz relao da Histria com o contexto e a importncia daquela para a compreenso deste.

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    O captulo seguinte apresenta breves apontamentos sobre a histria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), principal indutor do mtodo Sim, eu posso, no Brasil, bem como o percurso da Educao de Jovens e Adultos dentro do Movimento, sempre com o cuidado de levantamento das influncias ideolgicas que o permeiam. Buscamos relacionar os fenmenos analisados ao seu processo de construo histrica e social, num trajeto que, partindo de uma viso mais global, da totalidade do tema s relaes localizadas, indo dos apontamentos acerca da constituio nacional do MST e tambm suas relaes internacionais aos contextos regionalizados da regio nordeste, dentro da qual o Estado do Cear, e l o assentamento especfico, onde foi realizada a pesquisa de campo. O contexto local, onde acompanhamos os eventos que foram nossos objetos de anlises, pela natureza de cunho etnogrfico da pesquisa por ns adotada, mereceu um captulo exclusivo para sua caracterizao. No captulo 3, buscamos evidenciar a especificidade da realidade local, sempre a relacionando ao global, como parte de uma totalidade social historicamente construda, um assentamento de trabalhadores rurais (ex) sem terras, dotado de infraestrutura relativamente boa para a regio, cuja vida social da comunidade buscamos apontar, principalmente no que concerne s evidncias e indcios de disponibilidade e acesso cultura escrita, em tal contexto, de forma que o horizonte social (BAKHTIN,1995) dos sujeitos participantes das aulas por ns analisadas fosse mais bem apreendido por nossos interlocutores. Em tal empreitada, realizamos uma breve caracterizao da regio onde foi estabelecido o Assentamento Unidos de Santa Brbara, bem como um retrato do local, como contexto para ler e escrever, em que tratamos brevemente de sua histria, infraestrutura, seus aspectos culturais, sua religiosidade, a organizao da comunidade, entre outros aspectos que julgamos relevantes para um melhor entendimento do contexto. Aps essa breve contextualizao, realizamos, no captulo 4, uma caracterizao do mtodo Sim, eu posso, de alfabetizao de jovens e adultos, balizador principal da experincia aqui analisada. Mencionamos as histricas experincias de alfabetizao em massa que precederam gnesis, de fato, do Sim, eu posso, principalmente a campanha de alfabetizao cubana de 1961, da qual participou a autora do mtodo, professora Leonela Daz, sendo tal campanha sua inspirao primeira, conforme entrevista pela autora a ns concedida. Chegamos histria do mtodo em si, desde sua gestao, no Haiti, sua implementao, em seu formato melhor concebido na Venezuela, cujo modelo em idioma espanhol viu sua primeira traduo para lngua

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    estrangeira, no processo de adaptao ao contexto do Brasil, o material semitico utilizado pelo monitor, cujo papel foco da anlise aqui proposta.

    Pelo relativo desconhecimento do funcionamento desse mtodo, dada a escassez de pesquisas brasileiras que dele trate, realizamos tambm um esforo de apontar seus princpios de funcionamento, bem como suas propostas de alfabetizar o adulto, em cerca de trs meses de aulas mediadas por um monitor, que faz uso constante do material didtico bsico oferecido pelo Sim, eu posso: aparelhos de televiso e DVD, que reproduzem vdeos nos quais, em uma espcie de tele-novela, so reproduzidos na classe real, com o processo bsico de pausa do vdeo e repetio imediata dos exerccios vistos pelos educandos na televiso, apoiados por uma cartilha que acompanha toda a programao.

    Finalmente, apontaremos, no captulo 5, a anlise em que nos detivemos, de fato, num esforo de compreenso do papel mediador do monitor-alfabetizador de uma turma do programa Sim, eu posso, disponibilizado pelo MST, em um assentamento cearense de trabalhadores rurais sem terras. Em tal estudo, lanamos mo de intensiva coleta de dados, entre os quais foram selecionados, como exemplos, trechos das aulas em que a mediao do monitor nos chamou ateno, pela forma com que amplia e recria as situaes apontadas pelo programa. Por ltimo, apresentamos nossas consideraes finais, com o objetivo de indicar possveis contribuies da pesquisa para o Campo de investigaes da Educao de Jovens e Adultos, com foco na alfabetizao e letramento.

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    Captulo 1 Arcabouo Terico e Metodolgico

    Neste captulo, indicamos alguns dos principais conceitos que foram importantes na compreenso do objeto de estudo, bem como fazemos uma descrio do processo de pesquisa no que se refere coleta de dados, organizao e anlise dos mesmos.

    1.1 Avaliao da alfabetizao e do letramento: breves consideraes

    No Brasil, as estatsticas oficiais que apontam ndices de analfabetismo datam do fim do sculo XIX, quando o censo de 1890 mostrava que mais de 80% da populao brasileira era analfabeta. Ainda no imprio, o artigo 8, inciso II do decreto n. 3029, de 9 de janeiro de 1881, que reformulou a legislao eleitoral, definiu que s seriam alistados como eleitores aqueles que soubessem ler e escrever e, em 1891, a primeira Constituio da Repblica probe o voto do analfabeto e acaba com a seleo de eleitores por renda (GALVO & SOARES, In: ALBUQUERQUE & LEAL Org., 2004). A proposta do direito de voto para os analfabetos retorna com a Reforma Eleitoral prevista no Plano Trienal elaborado por Celso Furtado para as reformas de base do governo Joo Goulart que previa tambm a erradicao do analfabetismo entre adolescentes e adultos de 14 a 20 anos at 1965 proposta esta que, inviabilizada pelo golpe militar de 1964, s se efetiva no perodo de redemocratizao com a Constituio de 1988. O mtodo utilizado para classificar o recenseado de analfabeto ou no era o da auto-avaliao sobre sua capacidade de ler e escrever, sendo apontado por tais dados um paulatino decrscimo na taxa de analfabetismo.

    A definio de analfabetismo, entretanto, vem sofrendo revises significativas ao

    longo das ltimas dcadas, [...]. Em 1958, a UNESCO definia como alfabetizada uma pessoa capaz de ler ou escrever um enunciado simples, relacionando-o a sua

    vida diria. Vinte anos depois, a UNESCO sugeriu a adoo do conceito de alfabetismo funcional (RIBEIRO, VVIO & MOURA, 2002, p. 51).

    Chegamos ao fim da primeira dcada do III milnio com uma taxa de 9,7% de analfabetismo entre pessoas de 15 anos de idade ou mais (92,6% destes tinham 25 anos ou mais), de acordo com a PNAD 2009 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios), divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica), o que representa 14,1 milhes de brasileiros. Se considerarmos o gnero, entre os homens desta faixa

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    etria, a taxa de 9,8% de analfabetos, enquanto para mulheres de 9,6%. Entre as regies, a taxa de analfabetismo entre adultos mais elevada no Nordeste, com 18,7%, seguido do Norte com 10,6%, Centro Oeste com 8%, Sudeste com 5,7% e Sul com 5,5%. Considerado apenas o meio rural brasileiro, as estimativas chegam a 24%. O Instituto tambm estimou a taxa de analfabetismo funcional (divulgada desde 1990) pessoas com 15 anos ou mais, que tenham menos de quatro anos de estudo completos (na Europa e EUA so considerados oito ou nove anos de estudos) que seria de 20,3%, em 2009.

    Magda Soares (1996) alerta para certos cuidados conceituais e metodolgicos que os estudos avaliativos sobre analfabetismo devem observar, tendo em vista a complexidade do fenmeno. No Brasil, o novo enfoque terico que privilegia as prticas sociais de uso da leitura e da escrita, em contraposio ao enfoque tradicional dos estudos sobre a aprendizagem de habilidades supostamente neutras, vem sendo marcado pelo uso do termo letramento. Soares (2002) discute a busca de uma definio sobre letramento. Assim, parte para duas anlises em seu texto: a dimenso individual e a dimenso social do letramento. Aponta que, para ambos os casos, a definio de letramento complexa e no suficiente para a sua completa elucidao, pois preciso ainda considerar a complexidade e a natureza heterognea de cada dimenso (p. 67). A autora apresenta vrias definies sobre letramento, porm mantm uma linha de raciocnio, em que letramento pode ser entendido como uma habilidade tanto individual como social em torno de prticas de leitura e escrita, em seus aspectos lingusticos, psicolgicos, motores e de decodificao de smbolos escritos, alm de aplicar essa grande variedade de habilidades de leitura a diferentes tipos de materiais de leitura.

    Nessa mesma linha, Lankshear (apud Soares, 1998) afirma ser impossvel distinguir letramento do contedo utilizado para adquiri-lo e transmiti-lo e de quaisquer vantagens ou desvantagens advindas dos usos que so feitos dele, ou das formas que assume. O que o letramento depende essencialmente de como a leitura e a escrita so concebidas e praticadas em determinado contexto social; letramento um conjunto de prticas de leitura e escrita que resultam de uma concepo de qu, como, quando e por qu ler e escrever (SOARES, 1998, p. 75).

    Propondo uma busca de solues acerca da medio e avaliao sobre letramento, reconhece a dificuldade de elaborar um conceito padro sobre letramento, entretanto defende que o letramento antes uma varivel dependente que independente (Graff), ele se associa, sem dvida alguma, a muitos dos indicadores de desenvolvimento

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    social e econmico (p. 113). Os dados obtidos com os estudos (medio e avaliao) sobre letramento devem levar em considerao as caractersticas do contexto, para que sejam adequadamente interpretados (SOARES, 2002, p.119).

    1.2. As contribuies de Kalman, Street e Bakhtin

    Brian Street (1984) conceitua o letramento a partir de um modelo ideolgico, sendo um termo-sntese para resumir as prticas sociais e concepes de leitura e escrita. Para Street (2003), no possvel se observar as prticas, mas sim os eventos de letramento - eventos parecidos podem ter prticas diferentes. Por exemplo, uma aula um evento de letramento que pertence a uma prtica de letramento acadmico. Pode-se fotografar um evento, pois um fato, mas no uma prtica, que faz parte de experincias dos indivduos envolvidos, e s pode ser compreendida articulando-se o evento com contextos mais amplos. Os conceitos de modelo autnomo e modelo ideolgico de letramento propostos por Street (1984) so importantes para que possamos perceber as tenses presentes nos processos de alfabetizao (MACEDO, 2011) da turma, mediados pelo programa Sim, eu posso. O pressuposto o de que qualquer prtica de letramento ideologicamente marcada, j que ocorre mediada por relaes de poder. O modelo autnomo ideolgico justamente pela pretenso de ser autnomo e neutro em relao ao contexto os modelos no so dicotmicos. Nesse sentido, concordamos que a realidade ideolgica uma superestrutura situada imediatamente acima da base econmica. [...] A palavra o fenmeno ideolgico por excelncia (BAKHTIN / VOLOCHINOV, 1995, p. 36).

    Toda prtica de letramento ideologicamente marcada, pois no se trata de puro pensamento individual restrito esfera psquica. Pelo contrrio, quando o educando se apropria dos signos exteriores todo signo social por natureza, tanto o exterior quanto o interior (BAKHTIN / VOLOCHINOV, 1995, p. 58) as letras, por exemplo, na formao de palavras (que significam ideias), demonstra que assimilou os signos ideolgicos sociais, j que inscreve o pensamento de maneira objetiva no sistema do conhecimento, sendo que o prprio pensamento desde a origem, pertence ao sistema ideolgico e subordinado s suas leis (BAKHTIN / VOLOCHINOV, 1995, p. 59). Como nos explica Bakhtin,

    quanto mais estreitamente ligado unicidade do sistema psquico o signo

    interior estiver e quanto mais fortemente determinado pelo componente

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    biolgico e biogrfico, mais ele se distanciar de uma expresso ideolgica bem

    definida. Em compensao, na medida em que realizado e formalizado

    ideologicamente, ele liberta-se, por assim dizer, do contexto psquico que o

    paralisa (BAKHTIN / VOLOCHINOV, 1995, pp. 59/60).

    justamente essa libertao do signo interior do contexto psquico que o paralisa que realizada num evento de letramento, onde o signo expresso de forma ideolgica bem definida, atravs da significao historicamente, socialmente e ideologicamente construda: a escrita, que a exteriorizao do elemento ideolgico sob a forma de material ideolgico. nesse processo de expresso ideolgica (a escrita das ideias) que o elemento ideolgico pode aperfeioar-se, diferenciar-se e afirmar-se, j que a inteno vale sempre menos do que a realizao (mesmo falha) (BAKHTIN / VOLOCHINOV, 1995, pp. 57/58).

    Cabe ainda apontar a grande contribuio e inspirao fornecida pelo trabalho de Judith Kalman (2004), especialmente sua obra Saber lo que es la letra: una experiencia de lectoescritura con mujeres de Mixquic. A autora nos fornece relevantes instrumentos metodolgicos, principalmente a distino entre os conceitos de disponibilidade e acesso cultura escrita, para a melhor compreenso das modalidades de apropriao da lngua escrita e os espaos geradores no contexto local.

    Disponibilidad denota la presencia fija de los materiales impresos, la infraestructura para su distribuicin (biblioteca, puntos de venta de libros, revistas, diarios, servicios de correo, etctera) mientras que acceso refiere las oportunidades para participar en eventos de lengua escrita, situaciones en las

    cuales el sujeto se posiciona vis--vis con otros lectores y escritores, y a las oportunidades y modalidades para aprender a leer y escribir (KALMAN, 2004).

    Tentamos apontar, como Kalman, os contextos locais para letramentos, os

    diferentes espaos sociais, onde sua populao encara diariamente eventos que envolvem a leitura e escrita, em que participam diretamente ou como espectadores. Nossa investigao busca delinear um retrato dos mltiplos usos da lngua escrita, relacionados s prticas comunicativas da comunidade, e dos espaos onde ocorrem tais eventos e situaes de interao social, a dinmica entre os participantes de uma situao comunicativa contextualizando esses usos. En esta perspectiva, los investigadores se preguntan cul es la organizacin social de la lectura y la escritura y cmo se vincula

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    con las relaciones de poder (y con las diferentes realidades sociales, polticas, econmicas y religiosas) (KALMAN, 2004, p. 27). O trabalho de Kalman forneceu importantes elementos que orientaram nossa pesquisa de campo, principalmente quanto construo de um modelo analtico baseado na anlise histrica, realizando um esforo de contextualizao de acordo com condies histricas em esferas diferentes, com o cuidado de apontar suas relaes. A partir da descrio e anlise de determinado contexto, buscamos apontar relaes com polticas econmicas e sociais, que influem tal realidade histrica. De acordo com a autora:

    Tambin hay estudios histricos que se preocupam por la nocin de contexto.

    En ellos se asume como um escenario social, econmico y poltico donde se Lee y

    escribe, y en el que ocurren los procesos que dan lugar a la diseminacin y al

    arraigo de la lengua escrita. En ellos se seala qu prcticas y espacios (religiosos, polticos y comerciales) han contribuido a la diseminacin y diversificacin de las prcticas de lengua escrita (KALMAN, 2004, p. 29).

    Nesse sentido, a contextualizao histrica da comunidade aponta os processos e as condies que do lugar, que favorecem ou que obstaculizam a distribuio da cultura escrita e o arraigo de suas prticas (KALMAN, 2004). Assim, as anlises podem ser focadas nas relaes dinmicas entre as prticas coletivas e individuais de lngua escrita, nas relaes entre prticas e as mudanas sociais, econmicas e histricas, e nas trajetrias individuais em mbitos locais.

    1.3. O processo de coleta de dados

    A perspectiva etnogrfica com a qual trabalhamos na coleta e anlise dos dados teve como preocupao compreender as relaes global-local via imerso no campo, em dilogo com os conceitos que fomos construindo ao longo da pesquisa. Nesta perspectiva, realizamos um esforo em situar o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) principal agente aplicador do mtodo Sim, eu posso no Brasil no contexto do Estado do Cear onde se realizou a pesquisa de campo bem como a histria da EJA no Movimento, com destaque para a adoo do mtodo cubano e as relaes de tal escolha com uma perspectiva global (apontamentos sobre o contexto regional, nacional e internacional). Juntamente, fizemos a apresentao do contexto onde foi realizada a pesquisa de campo e o trato mais pormenorizadamente do objeto de pesquisa: o uso do mtodo Sim, eu posso em contexto de assentamento de

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    trabalhadores rurais sem terra, com foco na mediao exercida pelo monitor-alfabetizador. Tenta-se, assim, a criao do conhecimento de baixo para cima, atravs de Imerso dilogo escuta e colaborao.

    Conforme veremos no 4 captulo, o mtodo, trazido pelos cubanos, parte da premissa de que os adultos, pela sua histria e vivncia, podem aprender mais facilmente do que as crianas. A partir da associao entre sua realidade e o aprendizado, que se efetiva por meio de vdeos, os educandos acompanham com cartilhas os exerccios idnticos aos dos vdeos, contando com a presena de facilitadores, chamados no Brasil de monitores ou alfabetizadores, com formao mnima do Ensino Fundamental concluda. Com a utilizao de um televisor, um aparelho de DVD e uma cartilha de alfabetizao, os educandos - no mximo dez por turma - assistem s aulas, que duram cerca 2 h (30 min. de vdeo + 01h30min. de exerccios), com a mediao do monitor. Os vdeos que esto sendo usados no Brasil foram gravados em Cuba por brasileiros l residentes ou artistas brasileiros que quiseram colaborar, como o ator Chico Diaz, que o principal apresentador. O cenrio uma sala de aula onde os atores-alunos fazem perguntas estimulantes atriz-professora. O objetivo desta pesquisa foi compreender como o mtodo foi implementado num dos assentamentos do MST, focalizando, principalmente, no papel do monitor da turma.

    A escolha do local a ser estudado deveu-se a uma srie de dilogos com a organizao aplicadora do mtodo Sim, eu posso, no Brasil: o Movimento dos trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). A princpio, conforme a poca da feitura do projeto de pesquisa (meados de 2008), a expectativa era de se realizar a pesquisa de campo na regio sul do Brasil, pelas informaes que foram rastreadas sobre a aplicao do mtodo. Contudo, iniciadas as negociaes com o MST condicionou-se a escolha do local ao melhor aproveitamento do tempo destinado pesquisa de campo, ficando, desta forma, definida a regio onde estava prevista a prxima implantao do Sim, eu posso, no caso, o Estado do Cear, na regio nordeste do Brasil.

    Durante todo o processo de definio do contexto local a ser observado, o MST ofereceu todo apoio necessrio pesquisa, desde a determinao do local, juntamente com o MST-CE, ao atendimento logstico, hospedagem em Fortaleza e contato com a famlia hospedeira do pesquisador, durante a estada no assentamento Unidos de Santa Brbara, na zona rural do municpio de Caucaia, regio metropolitana da capital cearense. Nessa famlia, surgem os principais informantes, bem como tambm o prprio monitor e pessoas do crculo social imediato de ambos. O MST esteve tambm sempre

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    disponvel, tanto com o acesso a militantes tambm informantes - quanto ao fornecimento de materiais, informaes, acesso aos cursos de formao e qualquer dado que nos servisse de fonte.

    As aulas no assentamento determinado estavam, a princpio, previstas para serem iniciadas dia 27 de dezembro de 2009, o que motivou a chegada do pesquisador capital cearense no dia 24 de dezembro. Contudo, devido a imprevistos e festas de fim de ano, o incio das aulas ficou adiado para meados de janeiro de 2010. Neste nterim, deram-se os primeiros contatos com o contexto local, bem como o a definio da hospedagem.

    O curso estava previsto para uma durao de aproximadamente trs meses (65 aulas com o Sim, eu posso, uma aula por dia til), contudo, devido a imprevistos e feriados prolongados como os do Carnaval e Semana Santa, o perodo estendeu-se para pouco mais de quatro meses, alongando a estada no Cear at o dia 11 de maio de 2010.

    Desde o incio, foi feito uso de ferramentas de cunho etnogrfico como observaes, anotaes e descries densas, em cadernos de campo, entrevistas, fotografias e filmagens com recurso de cmera digital, longas conversas e inquiries com os informantes habitantes locais sobre temas os mais diversos possveis, entre outras ferramentas de cunho etnogrfico, cuja utilizao ser mais bem percebida quando da anlise dos dados colhidos. Para tal estudo, foi dedicado um perodo de cerca de cinco meses, de total insero no meio e na vida da comunidade. A presente anlise, que objetiva conhecer a proposta Sim, eu posso para alfabetizao de jovens e adultos, tanto em sua esfera terica quanto prtica, focalizando o papel desempenhado pelo monitor-alfabetizador (ou facilitador), considera fundamental a apreenso do contexto em que tal prtica construda, no caso, visando a apurar uma possvel influncia de aspectos da cultura local no processo de ensino/aprendizado da comunidade, especialmente de seus membros jovens e adultos atendidos pelo programa Sim, eu posso.

    Segundo Green (2005), embora a etnografia tenha sido usada como abordagem de pesquisa por um conjunto significante de disciplinas, a abordagem antropolgica tem se revelado mais dominante em pesquisas educacionais. Tal abordagem vem sendo denominada como antropoetnografia, contudo crticas e preocupaes permanecem:

    Rist (1980) argumentou que muitos trabalhos que se denominavam etnogrficos eram na verdade, pesquisas de observao e no etnografia (Etnografia de Araque). Heath (1982) problematizou o fato de pesquisas no compreenderem ou

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    no honrarem as tradies antropolgicas que sustentavam o trabalho etnogrfico.

    Todos estes autores citados argumentam o fato dos educadores terem adotado e s

    vezes cooptado os mtodos etnogrficos sem o devido entendimento de suas bases

    tericas, bem como dos propsitos e das metas que a antropologia (e outras disciplinas) assume ao se engajar na etnografia (GREEN, et al, 2005, p. 15).

    Dois fatores levam a essa crtica: primeiro a questo da pesquisa de observao rotular-se etnografia da a nossa preferncia em utilizar o termo pesquisa de cunho etnogrfico e no etnografia. O segundo origina-se de uma variedade de mtodos qualitativos e pontos de vista tericos envolvendo a observao participante. Everton & Green argumentam que vrias abordagens na pesquisa de observao adotam maneiras diferentes de registrar seus fenmenos de interesse, a maioria das quais no necessariamente envolve a etnografia: sistemas de categorias, sistemas descritivos, sistemas narrativos e registros tecnolgicos (GREEN, et al, 2005, p.16).

    Sistemas narrativos e registros tecnolgicos podem ser ferramentas etnogrficas, quando usadas como parte da observao participante. Todavia, o mero uso de tais abordagens de observao no constitui, por si s, mtodo etnogrfico. Desde 1980, vrias pesquisas rotuladas como qualitativas comungam mtodos parecidos, mas no aderem necessariamente ao postulado da pesquisa de base etnogrfica nem compartilham dos objetivos dela. O que a histria nos mostra que a resposta questo sobre o que a etnografia continua em aberto, medida que novas disciplinas progridem dentro e fora do campo de conhecimento da educao e questes levantadas acerca do que considerado ou no etnografia e quem visto como etngrafo.

    A perspectiva de cunho etnogrfico por ns adotada uma das contribuies dos Novos Estudos sobre Letramentos (NLS) enfatiza a importncia de uma anlise que leve em conta elementos do contexto global na compreenso dos dados locais. (Street, 1995; Heath, 1983). Como complemento, Rockwell (1989) nos apresenta tambm uma importante alternativa terico-metodolgica a ser adotada: a integrao da teoria gramsciana. Nesse sentido, vale ainda lembrar que

    a referncia a Gramsci permanece forte na cultura acadmica e poltica

    brasileira. A ampliao do papel poltico dos movimentos sociais no Brasil e no mundo mantm extremamente atual a teoria poltica gramsciana, centrada nas

    relaes hegemnicas no interior da sociedade civil organizada. No plano

    propriamente cientfico, a ampliao do conceito de pesquisa vem propiciando

    ao projeto intelectual gramsciano refletido nas citaes de Goethe, de pensar a relao entre conhecimento e interveno social espao e fundamentao

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    terica em reas como a Cincia Social, o Servio Social e a Educao. Parte

    significativa da produo nessas reas busca, a partir de Gramsci ou de outras

    referncias tericas, essa convergncia entre teoria cientfica e prtica social

    (VIEIRA, 2008, p. 83).

    Entre os aspectos fundamentais da reflexo de Gramsci, encontram-se a importncia da histria e a integrao de conceitos e relaes desenvolvidas (senso comum, folclore, concepo do mundo, bom senso, ideologia, etc.) para abordar fenmenos culturais que tm sido o objeto do estudo tradicional da etnografia. A perspectiva gramsciana define tambm relaes especficas para fundamentar o estudo dos fenmenos culturais ou superestruturais nas relaes sociais e no movimento poltico da formao social que os inclui (ROCKWELL, 1989, p. 46). Lembramos ainda que uma perspectiva dita gramsciana, alm da preocupao terica na demonstrao do processo histrico inerente aos movimentos e produtos culturais, relacionando a realidade ao seu processo de criao e desenvolvimento, nos obriga a adotar uma postura que relacione sempre teoria e prtica poltica, combinando a reflexo crtica da realidade com a ao poltica A cincia no , ela mesma, atividade poltica e pensamento poltico, na medida em que transforma os homens, tornando-os diferentes do que eram antes? (GRAMSCI, 2005, p. 92). Neste sentido, concordamos com Paulo Freire, ao afirmar ser

    urgente que a questo da leitura e da escrita seja vista enfaticamente sob o ngulo da luta poltica a que a compreenso cientfica do problema traz sua

    colaborao. [...] Entendemos ento, facilmente, no ser possvel pensar, sequer, a educao, sem que se esteja atento questo do poder (FREIRE, 2009, pp. 9, 24).

    Segundo Rockwell, algumas das consequncias metodolgicas que traria o desenvolvimento desta perspectiva terica (gramsciana), como pano de fundo para realizar estudos etnogrficos, contrastam com as caractersticas das correntes tradicionais. Dessa forma, num estudo de cunho etnogrfico, abordamos o fenmeno particular como parte de uma totalidade maior que o determina e com a qual ele se relaciona, sem a pretenso de ser um estudo macro que abranja toda a totalidade social.

    Metodologicamente, isto implica, por um lado, complementar a informao de

    campo com informao relativa a outras ordens sociais (por exemplo, a estrutura e poltica educacionais do pas) e, por outro lado, buscar interpretaes e explicaes

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    a partir de elementos externos situao particular. Deste modo, no se realizam

    estudos de casos, mas estudos sobre casos (ROCKWELL, 1989, pp. 47-48).

    Em um estudo sobre caso, fundamental interpretar o fenmeno a partir de suas relaes com o contexto social mais amplo, no apenas suas relaes internas.

    Entendemos que qualquer objeto, fato ou fenmeno que o homem possa perceber ou criar faz parte de um todo; a atividade humana, em geral, um processo de totalizao e o conhecimento totalizante, no atingindo, contudo, uma etapa definitiva e acabada. Em toda situao, defrontamo-nos com problemas interligados, da a necessidade de uma viso de conjunto que sempre provisria e nunca pode pretender esgotar a realidade a que se refere de tais problemas na busca de suas resolues. Neste sentido, temos conscincia de que

    a realidade sempre mais rica do que o conhecimento que a gente tem dela. H sempre algo que escapa s nossas snteses; isso, porm, no nos dispensa do

    esforo de elaborar snteses, se quisermos entender melhor a nossa realidade. A

    sntese a viso de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situao dada. E essa estrutura significativa que a viso de conjunto proporciona que chamada de totalidade. (KONDER, 1985, pp. 36-37).

    Outra considerao acerca do estudo de cunho etnogrfico, a partir de uma perspectiva terica dita gramsciana, a de se ter sempre presente a dimenso histrica, integrando-se a anlise de cunho etnogrfico s informaes histricas locais e gerais.

    Constri-se, assim, um presente histrico, em vez de um presente sistmico.

    Um presente em que se reconheam os vestgios e as contradies de mltiplos

    processos de construo histrica e no um presente que suponha a coerncia de um sistema social ou cultural acabado (ROCKWELL, 1989, pp. 47-48).

    Quanto definio de educao formal, numa perspectiva gramsciana, ela vista como uma instituio, questionando-se tanto sua articulao com o Estado quanto com a sociedade civil. Segundo Gramsci,

    podem-se fixar dois grandes planos superestruturais: o que pode ser chamado de

    sociedade civil (isto , o conjunto de organismos designados vulgarmente como privados) e o da sociedade poltica ou Estado, planos que correspondem, respectivamente, funo de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda

    sociedade e quela de domnio direto ou de comando, que se expressa no Estado

    e no governo jurdico (GRAMSCI, 2000, pp. 20-21).

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    Nesse sentido, entendemos que a sociedade civil onde se desenvolve o conjunto das relaes econmicas, civis, polticas, religiosas, etc. Entre os homens, o lugar da organizao dos conflitos, segundo os fins dos grupos sociais, a forma histrica dessa regulao, o lugar que compreende o momento econmico e ideolgico e onde se desenvolve a luta de classes (MAESTRI & CANDREVA, 2007), e tal esfera no pode ser desconsiderada na anlise do que ocorre dentro da sala de aula.

    Metodologicamente, esta concepo define novos espaos e eventos nos quais

    buscar os elementos e as relaes significativas para estudar os processos

    educacionais. Afinal, convm evitar a dicotomia escola-comunidade caracterstica de outras perspectivas etnogrficas e construir categorias que revelem tanto a

    interao como a distncia entre a escola e sua ambincia social (ROCKWELL, 1989, pp. 47-48).

    Outro elemento desta perspectiva gramsciana a considerao de que as categorias, conhecimentos e aes dos sujeitos no tm necessariamente o grau de coerncia e eficcia a eles atribuda pela teoria cultural. Sabemos que a realidade contraditria e, em funo da necessidade de reconhecermos a constante emergncia do novo na realidade humana, elaboramos uma maneira dialtica de pensar que, na acepo moderna, o modo de pensarmos as contradies da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditria e em permanente transformao (KONDER, 1985, p. 8).

    Esta perspectiva permite substituir a concepo antropolgica de categorias

    culturais, explcitas ou implcitas, cujo sentido s pode ser estabelecido quando se constroem os processos e as relaes sociais que os sustentam (ROCKWELL, 1989, pp. 47-48).

    Finalmente, em uma perspectiva de cunho etnogrfico dita gramsciana, os processos de socializao processos sociais identificados pela pesquisa no podem ser reduzidos aos processos de comunicao ou significao, mesmo quando acontecem com direta relao a formas e mecanismos culturais peculiares. Atravs da reconstruo destes processos o que importa conhecer seu contedo histrico e social e no somente sua configurao formal ou estrutural (ROCKWELL, 1989, pp. 47-48).

    Portanto, a teoria gramsciana se apresenta como referencial terico sugerido para o estudo de cunho etnogrfico de processos educacionais, principalmente, se considerada a peculiaridade da realidade latinoamericana e brasileira preciso supor as diferenas

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    estruturais e culturais entre o mundo desenvolvido e a Amrica Latina, onde as heranas pr-colombianas e coloniais se articulam com a modernidade de maneiras especficas e complexas. Nessa perspectiva, realizamos um esforo em situar o MST no

    contexto do Estado do Cear bem como a histria da EJA (Educao de Jovens e Adultos) no Movimento.

    Conforme o desenvolvimento da pesquisa de campo de cunho etnogrfico, foi realizada a coleta de dados diversos com a utilizao de ferramentas variadas, como fotografias, filmagens e descries densas relativas vida da comunidade e a vida dentro da sala de aula onde foi acompanhada grande parte dos eventos de letramentos ali realizados, com especial ateno atuao do monitor da turma. Foram realizadas ainda, a fim de compor nosso banco de dados, a coleta de exemplares dos materiais didticos fornecidos pelo Sim, eu posso cartilhas, manuais, e conjunto de vdeos -, a fotocpia do material escrito produzido pelos educandos (cadernos e folhas de exerccios, e carta de avaliao final), alm de entrevistas com o monitor, com todos os cinco educandos que participaram efetivamente do curso, com um produtor local de cultura escrita (um assentado autor de literatura de cordel), com uma secretria de educao do MST cearense, com um dos metodlogos cubanos que prestaram assessoria ao MST-CE a prefeitura de Fortaleza, e, finalmente, uma entrevista com a prpria autora do mtodo Sim, eu posso, a professora Leonela Daz. Contudo, dada a escassez de tempo para a anlise de todo o volume de dados coletados, e a necessidade de focalizao em determinado tema para a pesquisa, muitos destes dados no foram aqui utilizados, sendo relegados como esplio para futuras investigaes.

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    Captulo 2 Breves consideraes sobre a histria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

    A proposta do presente captulo apontar, brevemente, os aspectos da histria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), j que esse o principal agente que faz uso do mtodo Sim, eu posso de alfabetizao de pessoas jovens e adultas no Brasil. Buscamos aqui consideraes que iro desde uma esfera mais abrangente nacional do Movimento, passando por sua histria, suas inclinaes ideolgicas, sua experincia com a EJA, at a chegada aos contextos mais localizados, sua esfera nordestina e cearense. O tipo de informao apresentada aqui oriundo de uma variedade de fontes, que vo desde textos acadmicos, acerca do tema, passando por materiais produzidos pelo prprio MST, com uma recorrncia constante aos dados colhidos por mim, via anotaes de campo, de informaes conseguidas, atravs de observaes e informantes, muitos dos quais, militantes do Movimento.

    2.1 MST Nacional

    Entre os fatores polticos no plano nacional, o final da dcada de 1970 via o processo de abertura poltica da ditadura militar brasileira (1964-1985) consolidando-se, entre 1978 e 1979 Como lhe era caracterstico, o presidente Figueiredo, de forma rude, repele qualquer possibilidade de retrocesso declarando: Juro fazer deste pas uma democracia [...] para abrir mesmo, e quem quiser que no abra, eu prendo e arrebento. (DEL PRIORE & VENANCIO, 2010, p. 287). Houve, na dcada de 1980, a necessidade de redemocratizao, movimentos pelas eleies diretas j, retomadas dos movimentos sociais rurais, camponeses e urbanos. Outros movimentos foram o MASTER (Movimento dos Agricultores Sem Terra), UTAB (Unio dos Trabalhadores Brasileiros), CONTAG (Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), UNE (Unio Nacional dos Estudantes), Frentes Sindicais, Sindicato dos Trabalhadores Rurais (movimento social, porm antagnico aos movimentos mais aguerridos como o MST) e Sindicatos Rurais (surgidos em 1964, so os sindicatos dos fazendeiros. Cooptados pelo regime militar, eram contrrios s lutas dos sem terras e aplicavam a cartilha da poltica neoliberal estadunidense). No contexto da chamada Revoluo Verde, na qual o militarismo (1964-1984) incentivou a explorao de monoculturas

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    como as de cana-de-acar, cacau (PB a BA), algodo (PE, PA, CE), tabaco (AL, SE), tudo entra em crise com a substituio da fora de trabalho pelas mquinas, expulsando o campons que, at ento, trabalhava como arrendatrio ou meeiro para os latifundirios.

    Em fins de 1977, explode o movimento de enfrentamento liderado pela CPT (Comisso Pastoral da Terra); em 1978-79, greves no ABC paulista; em 1981, surge o Partido dos Trabalhadores PT (da confluncia entre o novo sindicalismo e alguns grupos de esquerda, dissidentes do PCB e do movimento trotskista), a CUT (Central nica dos Trabalhadores) e lderes, como Lus Incio Lula da Silva. Nos anos 1980, acontecem tambm ocupaes de terras, nas regies sul e sudeste, culminando, em 1984, com o 1 encontro nacional dos trabalhadores rurais em Cascavel, no Paran, com a participao da CPT e de sindicatos combativos, surgindo a o MST. Reforma agrria na lei ou na marra e s h democracia se h reforma agrria foram os lemas que fundaram o movimento. Nesse contexto, a justificativa da necessidade de uma reforma agrria passava tambm pela crtica ao modelo de modernizao implantado no perodo de ditadura militar. A partir de 1985, o MST inicia sua expanso do Sul para as outras regies do Brasil, com unidade, organizao, programas e objetivos (reforma agrria concepo mnima de conquista de terras pelos trabalhadores) e com um inimigo principal a ser combatido: o latifndio. Nessa poca, muitos militantes do Sul foram enviados para as demais regies, para com sua experincia ajudar na organizao dos sem terras da, realizando ocupaes nas regies nordeste, sudeste e sul.

    O MST se v como herdeiro das lutas dos trabalhadores, anteriores formao do movimento; dos ndios, negros, revoltas religiosas, etc. De fato, em 1985, o MST retoma a ancestral luta pela reforma agrria brasileira. [...] essa luta no nova, sendo defendida por abolicionistas do sculo XIX e pelas Ligas Camponesas nos anos 1950-60 (DEL PRIORE & VENANCIO, 2010, p. 290).

    A estrutura bsica do MST, resumidamente, segue a seguinte conformao: Direo nacional / Coordenao estadual (representativa de todos os assentados e militantes) / Direo de Brigada ou Regio (25 regies no Cear); so realidades bem diversas nas quais o movimento busca se organizar. O MST organizado por regies, geralmente seguindo as divises oficiais, exceto no caso do Maranho, que no considerado regio nordeste, mas regio amaznica. O movimento ainda no chegou aos estados do Amazonas, Amap e Acre.

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    Segundo os informantes do Movimento, h uma grande preocupao com a qualidade da formao dos dirigentes e militantes, sendo deles requerido um estudo constante; muitos deles j possuem cursos superiores, como em Pedagogia. Grande quantidade de cursos tambm oferecida pelo prprio movimento, sendo que a maior concorrncia para estes de jovens, com menos de 35 anos. Um importante veculo de informao o Jornal Brasil de Fato contra-hegemnico, mas ainda longe das massas, resultado da articulao de movimentos sociais do Brasil inteiro. Para os militantes do MST, o que move o movimento acreditar que o homem e a mulher so sujeitos da Histria; lutar contra preconceitos de gnero, como o machismo busca-se fazer o cadastro das terras no apenas no nome do homem da casa, mas deste juntamente com o da mulher, dando a ela os mesmos direitos (os cargos dirigentes do movimento so compostos, geralmente, por um homem e uma mulher, sendo que, no nordeste, a maioria dos dirigentes so mulheres). Vem-se debatendo tambm a questo do preconceito quanto opo sexual, praticado principalmente pelos mais religiosos.

    Uma questo dificlima de ser resolvida a do consumo de drogas nos assentamentos. Um dos principais valores que so levados em conta a vida acima de tudo, no o bem material. Deve-se resistir e combater, portanto, qualquer atentado vida e sua degenerao. Luta-se contra o consumismo e o fetichismo material. Recorre-se ao materialismo histrico, baseado na teoria, na cincia social, no marxismo e sua materializao na prxis. O materialismo dialtico muda de acordo com a realidade; a questo como fazer esta compreenso chegar s bases. Defendem tambm que no possvel fazer militncia sem a f. As msticas so tambm muito fortes no MST, expressadas pela arte e pela reza, associada aos mitos e religio. Os smbolos so importantes bandeiras, bons, lona preta, etc. Contudo, ao que parece, o MST cearense no to simbolista quanto os de outros Estados.

    Ainda de acordo com informaes colhidas no campo, dentro do MST busca-se a construo do coletivismo, combatendo-se o individualismo. A solidariedade incentivada entre pessoas, movimentos, governos, Estados, pases (Cuba, Haiti), intercmbios, etc. A militncia vista como o maior patrimnio do MST. H um debate sobre o que militante; em suma, aquele que, em seu espao, capaz de transformar a realidade e que se antagonize ao status quo. A ideia de luta constante no h trgua ao inimigo, bom que todo dia haja conflito, repetem muitos militantes. O que redime segundo tal viso a luta, independentemente de quem

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    esteja no governo. O motor do movimento seriam as lutas, que o fortalecem e unem segundo a viso de muitos militantes.

    O ms de abril possui um grande significado para o MST. Nesse ms, todas as atenes so voltadas para ocupaes de terras, enfrentamentos, marchas e manifestaes diversas em todo pas, que geralmente tm incio no ms anterior, no dia internacional da mulher (8 de maro). O perodo chamado de Abril Vermelho, lembrando o massacre de Eldorado dos Carajs (assassinato de 19 trabalhadores rurais sem terras pela Polcia Militar Paraense, em 17 de abril de 1996), que marca o dia internacional da luta pela terra no mundo. Todavia, de acordo com muitos militantes, as lutas so amenizadas, em determinados anos, pelo desvio da ateno da sociedade para a Copa do Mundo de Futebol da FIFA (Fdration Internationale de Football Association) e para as eleies para presidente, governador, senadores e deputados federais, em outubro, como no caso do ano de 2010.

    As instncias nacionais do MST comeam a debater na coordenao nacional a posio poltica do Movimento ante as eleies. O que h decidido de acordo com os informantes que todo o militante que se candidatar deixa, automaticamente, sua funo, conservando-se, assim, acima de tudo, a autonomia do Movimento e preservando sua estrutura do uso poltico-eleitoreiro. Tambm no so disponibilizados militantes para a feitura de campanhas eleitorais. A tendncia que no haja apoio aos candidatos e partidos de direita. De acordo com observaes e conversas com militantes do MST, ocorre, na base do movimento, certo endeusamento do presidente Lula, com quase 90 % de aprovao, segundo estimativas dos prprios militantes. A eleio do presidente Lula no a ascenso de um indivduo isolado, a ascenso da gerao revolucionria da dcada de 1960 (DEL PRIORE & VENANCIO, 2010, p. 292).

    As contradies so diversas, no Cear, sendo tomada a posio de no fazer campanha poltica, conscientes, porm, de que a neutralidade impossvel. Pela popularidade do presidente Lula, e diante do risco do PSDB (partido do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, rejeitado pelo MST) chegar presidncia, com Jos Serra, houve relativo consenso em apoiar a candidata do PT (Partido dos Trabalhadores), Dilma Rousseff (Eleies 2010), no havendo, todavia, muita esperana numa revoluo pela via democrtica. Segundo muitos militantes, no MST no se acredita mais na vanguarda do PT, dada suas aproximaes com as direitas capitalistas. Contudo, nas bases do movimento, ainda h a defesa do presidente Lula e do PT, sendo, at ento, este o partido de referncia.

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    Por outro lado, o PT paga o preo poltico por nem sempre cumprir promessas

    polticas anteriores eleio de 2002. Em fins de 2009, uma das coordenadoras nacionais do MST, na revista eletrnica Adital, assim avaliou o governo: No houve muitos avanos concretos. O ritmo da criao de assentamentos est quase parado e no foram implantadas novas polticas para industrializao de alimentos e gerao de renda nas reas da Reforma Agrria. (DEL PRIORE & VENANCIO, 2010, p. 297).

    De acordo com militantes, vrias propostas j surgiram de transformar o MST em um partido poltico, o que nunca foi aceito, dadas as deliberaes em favor de apresentar sociedade sua natureza como de movimento de massas.

    O MST busca a criatividade de tticas, segurana e alternativas de enfrentamento, tendo segundo informaes dos prprios militantes trs grandes frentes de ao: relao com a sociedade, acampamento, assentamento. Entre as formas de lutas do MST, destacam-se a ocupao de terras, acampamentos permanentes, como os de seis meses realizados em capitais como So Lus e Curitiba; marchas nacionais, nos eixos Rio de Janeiro So Paulo Braslia; embora haja silncio da grande mdia. Ocupao de prdios pblicos ou do grande capital (bancos, empresas, etc.), viglias, em casos de prises, julgamentos ou condenaes polticas, em delegacias, tribunais e fruns. Msticas com velas, faixas, encenaes, etc. Aes permanentes, como cursos

    mdios, tcnicos e superiores, via convnios com universidades pblicas, bem como formaes, em Cuba, cujas revalidaes dos diplomas sofrem resistncia no Brasil. Pichaes de protestos junto com os movimentos urbanos e atividades culturais como teatros crticos.

    No entanto, a ttica principal do MST continua sendo a ocupao de terras improdutivas, o que ilegal por se tratar de propriedade privada a ocupao desobedincia civil ante a lei que garante o direito propriedade privada. No caso brasileiro, pela lei vigente, o proprietrio das terras, mesmo improdutivas, est, de certa forma, blindado e tem o Estado a seu servio. Antes da derrubada das cercas e porteiras e da ocupao da terra pelo MST, este faz uma anlise inicial da propriedade, baseada no Estatuto da Terra e na Constituio. Alguns proprietrios no opem resistncia, por j intencionarem vender suas terras ao INCRA. A maioria, porm, no aceita a ocupao e recorre ao poder judicirio, muitas vezes culminando com a ao policial (tropa de choque da Polcia Militar) de reintegrao de posse, cuja violncia varia de acordo com a conivncia dos governadores. O Movimento tem conscincia de que essa

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    uma ordem que tem que ser desobedecida, tendo como tticas para isso a resistncia, o dilogo, a sensibilizao da sociedade civil e da mdia. Todavia, em grande parte dos casos, a represso violentssima, tentando-se, sempre que possvel, negociar uma ao que evite o confronto direto. Quando chega a ordem de despejo dos acampamentos, ocorre de acordo com seus militantes o desencadeamento de um medo e terror coletivo nas pessoas, principalmente medo da represso policial, geralmente muito violenta, no sendo raros os assassinatos de sem-terras. Alm da ao estatal da Polcia Militar, frequente tambm a atuao de milcias de jagunos, pistoleiros ou matadores de aluguel. Nesses casos, as milcias assumem o poder de fora que deveria ser monoplio do Estado, principalmente em regies distanciadas da opinio pblica nacional, pela omisso dos grandes meios de comunicao que so os meios de comunicao dos grandes, como bem disse Dom Pedro Casaldliga1. So essas as regies de maior avano de monoculturas, como a soja e o eucalipto, onde vista, tanto nas zonas rurais quanto urbanas, a atuao do para-militarismo sendo frequentes os envolvimentos mesmo de policiais militares.

    A transio de acampamento para assentamento uma fase muito complicada, pois se discute tudo, desde as leis internas, o tamanho dos quintais, o tipo de produo, que animais criar, entre outros, de acordo com militantes informantes. Todos tm o direito de fazer o que quiserem, desde que no atrapalhem o prximo. difcil transformar em comunidade um grupo de pessoas estranhas umas para outras, com origens e histrias de vida diferentes. No incio do assentamento, muitas coisas tm que ser encaminhadas. H muitos oportunistas, o que faz da organizao inicial um processo fundamental. Nas reunies dos assentamentos, h poucas mulheres, os homens tomam as decises, principalmente quando se discute a produo. A incluso da participao das mulheres e dos jovens nas assembleias outro desafio. Os assentamentos no esto do jeito ideal para o MST, que vem sofrendo segundo seus militantes uma crise de perseguio pela Direita (notas de campo) CPI da Terra, CPI das ONGs, CPI do MST que visaria criminalizao dos movimentos sociais. Tal perseguio gera a necessidade de autossustentao financeira e poltica dos assentamentos uma das acusaes mais recorrentes de que o MST financiado por verbas pblicas, via ONGs e convnios. O MST tem claro ainda que o nvel das bases (assentados) insatisfatrio em termos de instruo, adeso, apoio, politizao e ideologia.

    1 Bispo jubilado da Prelazia de So Flix do Araguaia (MT), em entrevista Revista Sem Terra (N 53,

    2009, p. 7).

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    Mesmo o assentamento sendo um territrio conquistado pelo MST, ele no possui necessariamente a hegemonia do MST. um campo de foras, de disputas e relaes de poder, um espao marcado pelas vrias experincias trazidas de fora pelos assentados, um territrio disputado por polticos, tcnicos, lderes, organizaes, sindicatos, prefeituras, etc. Os assentamentos nem sempre pertencem ao MST, contudo, todo espao definido e delimitado por e a partir das relaes de poder um territrio, pois o exerccio de poder no concebvel sem o territrio. (...) um campo de foras com relaes de poder espacialmente delimitadas (DINIZ, In: ELIAS, 2002, p. 51). Enquanto a conscincia ideolgica dos assentados no avana, de acordo com muitos militantes, no avana o prprio assentamento, sendo comuns inclusive reveses e retrocessos reveses intrnsecos s contradies internas. Ainda h fome em assentamentos, que no produzem o suficiente ou no diversificam a produo. H falta de gerao de renda, principalmente os jovens no tm renda e o sistema ainda de famlia patriarcal.

    No h, no Brasil, uma poltica efetiva de reforma agrria, sendo as existentes destinadas conteno de conflitos agrrios. Os assentamentos existentes so resultados de lutas e de desobedincia da ordem. Na Constituio de 1988, o artigo 5 diz que todos tm direito a casa, comida, sade e educao. Em outro artigo, afirma-se que terras de mais de 15 mdulos fiscais (cada mdulo fiscal seria suficiente para a sobrevivncia de uma famlia) podem ser desapropriadas, se improdutivas ou sem cumprir funo social ndice de 80 % de produtividade (dcada de 1960) , garantias de direitos trabalhistas e respeito ao meio ambiente. As emisses de ttulos de posse so dadas pelo poder judicirio e pelo INCRA, que paga todas as benfeitorias e os TDA (Ttulos da Dvida Agrria). A maioria dos assentamentos possui famlias oriundas de regies diversas, que j trazem inculcados um tipo de modo de produo geralmente o de fazenda. O MST, desde o incio da primeira dcada do sculo XXI, vem se aproximando dos movimentos urbanos das grandes cidades, como as Comunas da Terra, em So Paulo. Nas cidades, pergunta-se quem quer ir para o campo, sendo os interessados encaminhados para regies intermedirias entre as grandes cidades e o interior, segundo informaes dos prprios militantes.

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    2.2 - Bases ideolgicas do MST: breves consideraes

    As aproximaes ideolgicas entre o MST e o governo cubano so notrias e histricas. No Brasil, mesmo antes da fundao do MST, e principalmente durante a ditadura militar, iniciada em 1964, a Revoluo Cubana, principiada em 1958, exerceu forte seduo em reas de esquerda.

    Naquele perodo, o fascnio exercido sobre os brasileiros pelo exemplo de Che

    Guevara e Fidel Castro chegou ao seu ponto mais alto [...]. Alm de Guevara e Fidel Castro, outra influncia notvel era a de Mao Tse-tung (1893-1977), lder da Revoluo Chinesa. Com o ento chamado maosmo [...] vinha a concepo de que a revoluo no sculo XX seria a revoluo da periferia contra o

    centro, quer dizer, do campo contra a cidade. Ou melhor: do Terceiro

    Mundo contra a metrpole (KONDER, 2003, p. 82).

    Nessa perspectiva, so patentes as influncias principalmente de Fidel e Mao em toda Amrica Latina, como no caso do presidente venezuelano Hugo Chvez (hoje, principal parceiro internacional de Fidel Castro) que, com seu Socialismo do sculo XXI, explicita sua inspirao, pregando uma maosta revoluo do Terceiro Mundo contra a metrpole Constitui tarefa dos povos de todo o mundo pr fim agresso e opresso perpetradas pelo imperialismo, sobretudo pelo imperialismo norte-americano (MAO, 2006, p. 65). O prprio Hugo Chvez confirma tal influncia: Mao Tse-tung me agradou muito e ento passei a estudar um pouco mais este autor. (...) De minhas leituras de Mao tirei vrias concluses que foram determinantes para mim (HARNECKER, 2004, p. 16).

    certo que, pelo menos desde a dcada de 1930 o PCB (Partido Comunista Brasileiro) defende mudanas da estrutura agrria do pas, sendo os debates mais intensos sobre a questo agrria no Brasil iniciados na Assembleia Constituinte de 1946 e nos anos posteriores, intensificando-se na dcada de 1960, principalmente nos anos que precederam o golpe militar de 64. As disputas no plano institucional eram impulsionadas pela ao dos movimentos sociais do campo, que pipocavam, contudo, sem articulao entre si, mas tornavam pblica a necessidade de reconhecimento de um ator social at ento negligenciado ou menosprezado pelos principais grupos polticos: o campesinato. A disputa em torno da representao das suas demandas, que foram em grande medida convertidas na luta pela reforma agrria e contra o latifndio,

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    mobilizou os setores do Partido Comunista Brasileiro PCB, da Igreja, do Estado e das ligas camponesas (DA ROS, In: MOREIRA, 2005, p. 129). Do mesmo modo, a Reforma Agrria bandeira principal que viria a ser defendida pelo MST na dcada de 1980 , por ocasio do golpe militar de 1964, era associada aos exemplos de Cuba e China, por onde andava o vice de Jnio Quadros, por ocasio de sua renncia, Joo Goulart.

    Entre as propostas de Reformas de Base de Joo Goulart, a Reforma Agrria era das mais importantes, e, inspiradas nas experincias de socialismo real, foram, de certa forma, associadas a tal viso de mundo, o que facilitaria uma adoo pelo futuro MST de uma ideologia de esquerda2 ou socialista, influenciada tambm pelos luteranos e catlicos progressistas das CPTs (Comisses Pastorais da Terra, de carter ecumnico), ligados tambm ao movimento de Teologia da Libertao.

    essa perspectiva incorporava ao pensamento religioso as metodologias

    analticas desenvolvidas no campo do marxismo, ou seja, enfatizava a situao objetiva vivenciada pelos trabalhadores, como ponto de partida nos trabalhos de conscientizao dos trabalhadores rurais (DA ROS, In: MOREIRA, 2005, p. 137).

    A forte presena de luteranos e catlicos progressistas na regio sul foi um fator determinante na formao de toda uma gerao de lderes rurais, que comporiam, posteriormente, os extratos organizacionais de diversos movimentos sociais do campo, como o MST. Nas primeiras ocupaes de terras, fincava-se uma cruz, smbolo da conquista, que passou a ser escorada, cada escora representava um apoio recebido; sobre ela, colocava-se a bandeira nacional, ou panos brancos, representando as crianas que morriam ali. A luta de movimentos sociais por Reforma Agrria foi associada, assim, durante a ditadura militar, subverso da ordem, e, consequentemente, teve sua idealizao atribuda aos comunistas3 (termo ento utilizado como sinnimo de socialista).

    O discurso anticomunista tambm ocorre nos meios agrrios, como foi o caso

    da Unio Democrtica Ruralista (UDR), nascida como resposta ao Movimento

    2 No governo Collor, o ministro da Agricultura, Antnio Cabrera, declarara: Vou roubar a bandeira da

    reforma agrria das mos da esquerda. 3 Exemplo disto foi o caso do Padre Josimo Tavares (negro e pobre) que, por defender via CPT os

    trabalhadores rurais de fazendeiros praticantes das grilagens de terras e expulso de posseiros, foi assassinado, em 1986, por um pistoleiro contratado por fazendeiros da regio do Bico do Papagaio (Tocantins), organizados pela UDR, que chamavam o padre de macaco comunista (MORISSAWA, 2001, pg. 142).

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    dos Sem-Terra (MST). Durante o governo militar, a represso abate-se violentamente sobre os que lutam pela terra (DEL PRIORE & VENANCIO, 2010, p. 290).

    A partir de 1981, a CPT iniciou a promoo de encontros e debates entre as diversas lideranas da luta pela terra no pas; entre tais eventos, foram importantes para a formao do MST o Encontro Regional do Sul e o Seminrio de Goinia bases da realizao do 1 Encontro Nacional dos Sem-Terra. Ademais, a partir do alastramento do movimento grevista do final dos anos 1970, e das mobilizaes de Abaixo a ditadura!, no incio da dcada de 1980, houve certa mobilizao da classe trabalhadora brasileira, resultando no surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT), na Central nica dos Trabalhadores (CUT), no Movimento Sem Terra (MST) e em vrios outros movimentos e organizaes populares (KONDER, 2003, p. 87). De certa forma, a luta pela Reforma Agrria e mudana social encampada pelo MST o pe na perspectiva de realizar uma maosta Revoluo da periferia para o centro, do campo para a cidade.

    Cabe aqui uma breve reflexo e esclarecimento acerca da associao de conceitos como Esquerda, Socialismo e Comunismo, por vezes realizada anteriormente, no presente texto e posteriormente tambm. De acordo com G. Eley:

    Os vocbulos ESQUERDA e DIREITA vm do ambiente radical democrtico da Revoluo Francesa. Quando, entre 1789 e 1791, a Assembleia Constituinte da Frana se dividiu com relao questo do veto real e dos

    poderes reservados ao rei, os radicais colocaram-se fisicamente esquerda da

    cmara, quando vistos a partir da cadeira do presidente, enfrentando os conservadores, que se colocaram direita. Como esse alinhamento deixava claro,

    a esquerda passou a ser identificada com uma atitude fortemente democrtica,

    (...). Assim, como esse pacote sobreviveu Revoluo Francesa e dominou grande parte da cena poltica do sculo XIX, do mesmo modo prevaleceu a disposio dos assentos. Generalizou na Europa o uso dos termos esquerda e

    direita (ELEY, 2005, p. 41).

    Entendido o surgimento do termo esquerda, no contexto da Revoluo Francesa, sua associao s ideias de comunismo e socialismo ser realizada desde ento e, principalmente, no sculo XIX, de onde data o marxismo inspirador dos governos de Socialismo Real do sculo XX e XXI. Nesse sentido, segundo Hobsbawm:

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    a histria sem continuidade do comunismo, enquanto movimento social

    moderno, tem incio com a corrente de esquerda da Revoluo Francesa. Uma

    direta linha descendente liga a conspirao dos iguais de Babeuf, atravs de Felipe Buonarotti, s associaes revolucionrias de Blanqui dos anos 30; e

    essas, por sua vez, se ligam atravs da Liga dos Justos, formada pelos exilados

    alemes inspirados por eles, - e que depois se tornar a Liga dos Comunistas, - a

    Marx e Engels, que redigiram sob encomenda da Liga o Manifesto do Partido Comunista (HOBSBAWM, 1983, p. 40).

    Ainda de acordo com Hobsbawm, ao contrrio do termo comunista, que sempre representou um programa, o termo socialista tinha originalmente um carter analtico e crtico (HOBSBAWM, 1983, pg. 42). Ademais,

    o socialismo marxiano esclareceu as modalidades da transio da velha para a

    nova sociedade: o proletariado seria o seu portador, atravs de um movimento

    empenhado numa luta de classe que teria alcanado seu objetivo to-somente por meio da revoluo, da expropriao dos expropriadores. O socialismo deixava

    de ser utpico e se tornava cientfico. (HOBSBAWM, 1983, p. 63).

    Finalmente, o socialismo de Marx inspirar, a partir de ento, a maioria do pensamento dito de esquerda, bem como as revolues socialistas do sculo XX, estendendo sua influncia ao sculo XXI. A vinculao do MST ao socialismo foi construda ao longo da histria da organizao do movimento, sendo que tal bandeira mais visivelmente encampada por militantes que passaram por cursos de formao poltica, dentro do movimento, tendo por base as famlias assentadas ou acampadas, pouco convencidos ideologicamente. De acordo com Navarro apud da Ros, a segunda etapa da histria do MST,

    compreendida pelos anos de 1986 a 1993, correspondeu ao momento em que o

    movimento opta gradualmente por aes de confronto, que se expressam no

    enfrentamento com a polcia, jagunos e grandes proprietrios. H uma recusa em se orientar pela direo dos mediadores religiosos, que aos poucos so

    convertidos em quadros auxiliares da organizao, permanecendo apenas os

    setores mais radicalizados do clero. Para o autor [Navarro], tais orientaes refletiam a rpida adeso ao receiturio leninista, decidindo organizar-se como um movimento de quadros e no mais como um movimento de massas, deixando de atuar como um movimento social e assumindo feies de uma organizao

    centralizada (DA ROS, In: MOREIRA, 2005, p. 144).

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    Ainda nesse segundo momento, percebendo que a reforma agrria ser fruto to somente da ao dos trabalhadores incorporando assim a perspectiva marxista da luta de classes como motor da histria na percepo de sua posio na sociedade o Movimento adota a orientao para formar seus prprios quadros, baseado em disposies adotadas no I Congresso do MST (DA ROS, In: MOREIRA, 2005).

    Fica claro aqui o movimento de radicalizao ideolgica esquerda, ao mesmo tempo em que o MST vai se tornando autnomo em relao aos mediadores religiosos que lhe forneceram primeiramente tais bases ideolgicas. Contudo, o MST surge num momento de declnio da esquerda no Brasil - o MST tem o papel que tem hoje por contraste quando o PT organiza o movimento operrio e enfraquece ainda mais o PCB, o MST organiza o movimento campons. Em 1988, reunida a Assembleia Nacional Constituinte, quando facultado, pela primeira vez na Constituio, o direito de voto aos analfabetos e maiores de 16 anos. Prev-se que, em 1989, pela primeira vez na histria brasileira, a maioria da populao escolheria seu dirigente mximo. No por acaso, essa crescente participao popular [...] fez renascer o discurso anticomunista (DEL PRIORE & VENANCIO, 2010, p. 289). Porm,

    As transformaes ocorridas nos anos 1990 esvaziam em boa medida o discurso

    anticomunista. A queda do muro de Berlim e o fim da Unio Sovitica so exemplos

    emblemticos desse processo. No Brasil, a trajetria do PCB, finalmente legalizado, concorrente nas eleies presidenciais de 1989, reveladora disto: alm de abandonar a bandeira comunista o partido aprova, em 1992, a autodissoluo, formando o

    Partido Popular Socialista (PPS), agremiao social-democrata (DEL PRIORE & VENANCIO, 2010, p. 292).

    J no 3 Congresso Nacional dos Sem-Terra, em Braslia, no ano de 1995 ocasio vista dentro de um terceiro momento do movimento, caracterizado pela insero do MST na luta por um projeto popular de desenvolvimento para o Brasil aparecem, em documentos do Movimento, aluses e associaes mais claras deste com o socialismo: entre os objetivos gerais do MST, o item n 5 prope difundir os valores humanistas e socialistas nas relaes sociais em 2001, ao mesmo texto adicionado: eliminando as prticas de discriminao racial, religiosa e de gnero. Ainda em 1995, o governo federal espalhou relatrios falsos e irresponsveis,

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    segundo os quais o MST estaria sendo treinado pelo Sendero Luminoso4, grupo guerrilheiro do Peru (MORISSAWA, 2001, p. 153). Nesse momento, h o reconhecimento, por parte de setores da sociedade igrejas, sindicatos, ONGs, artistas e partidos polticos de esquerda do MST como um movimento de oposio ao governo FHC e ao modelo neoliberal. A querela entre MST e FHC era to patente que se tornou assunto de interesse do Papa Joo Paulo II. Fernando Henrique Cardoso, relembrando uma conversa em Roma, deixa isso claro: o papa me perguntou muito sobre o MST (Movimento dos Sem Terra), sobre a Igreja e sobre a reforma agrria (MORAES NETO, 2005, p. 203).

    Em 2000, foi realizado em Braslia o 4 Congresso do MST, de onde saram decises polticas reafirmaes das anteriores contendo, inclusive, um discurso anti-imperialista, como pode ser visto no item n 8: Desenvolver aes contra o imperialismo, combatendo a poltica dos organismos internacionais a seu servio como: o FMI, a OMC, o Banco Mundial e a ALCA (Acordo de Livre Comrcio das Amricas). Lutar pelo no pagamento da dvida externa (MORISSAWA, 2001, p. 166). J em 2001, o MST apresenta sua proposta para a reforma agrria necessria. Entre os objetivos, o texto inicia explicando que

    esta proposta de reforma agrria implica, por si mesma, a realizao de parte dos anseios da classe trabalhadora brasileira, de construir uma nova sociedade:

    igualitria e socialista. As medidas necessrias aqui apresentadas compem um

    amplo processo de mudanas na sociedade e, fundamentalmente, de alterao da

    atual estrutura capitalista de organizao da produo (MORISSAWA, 2001, p. 168).

    No mesmo documento, na 8 proposta, que trata do desenvolvimento social, se prope que o Estado garanta a toda a populao do interior, entre outros direitos, a alfabetizao de todos, jovens e adultos. [Finalmente] a formao poltica adotada no perodo mais recente tem constitudo uma segunda gerao de militantes, mais radicalizados que defendem aes mais ousadas, gerando contrastes discursivos com os dirigentes da primeira gerao (DA ROS, In: MOREIRA, 2005, p. 145).

    Nesse contexto, o MST, que desde o incio foi associado esquerda, levado talvez por dirigentes intelectuais marxistas cada vez mais a abraar a bandeira do

    4 O Sendero Luminoso (dissidncia do PCdP Partido Comunista del Per) uma organizao

    guerrilheira, de inspirao maosta, fundada nos anos 1960. Seu nome baseia-se em uma mxima do marxista peruano Jos Carlos Maritegui: "El Marxismo-Leninismo abrir el sendero luminoso hacia la revolucin" ("O Marxismo-Leninismo abrir o caminho iluminado para a revoluo").

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    socialismo, num duplo caminho: o de abrigo e defesa contra os ataques do perodo de forte neoliberalismo e da adeso aos ascendentes governos latinoamericanos de esquerda, principalmente Cuba e Venezuela, caracterizados como parceiros internacionais de relevncia tamanha que justificaria um posicionamento socialista do MST, pelo menos no discurso oficial do movimento, o que vem possibilitando-lhe parcerias importantes, como a da concesso do mtodo Sim, eu posso, por Cuba, sem nenhum nus. Nesse sentido, ocorre importante fenmeno de internacionalizao do MST enquanto instituio:

    No mbito internacional, tambm possvel perceber a construo de

    articulaes polticas do MST, sendo a mais recente delas a formao da Via

    Campesina, organizao que procura congregar as diversidades dos movimentos sociais do campo num plano mundial. Tal fato evidencia uma preocupao

    crescente dos movimentos sociais e demais organizaes populares em

    ampliarem o seu raio de ao para arenas de disputas transnacionais, materializando-se em importantes iniciativas como foram os movimentos

    antiglobalizao e mais recentemente a realizao das edies do Frum Social Mundial em Porto Alegre (DA ROS, In: MOREIRA, 2005, p. 145).

    igualmente pblico o apoio ao movimento, tanto de governantes quanto de intelectuais ditos socialistas, o que pode, em certo sentido, caracterizar tambm uma motivao ideolgica para a adoo do mtodo cubano pelo MST. O prprio modelo de implantao desse mtodo evidencia tal tendncia: alm da aplicao do cubano Sim, eu posso, nos primeiros trs meses de curso de EJA, a continuidade realizada pela aplicao de cerca de cinco meses dos Crculos de Cultura de Paulo Freire