Anacés -e-o-Complexo-Industrial-e-Portuário-do-Pecém

Embed Size (px)

Citation preview

O POVO INDGENA ANAC E O COMPLEXO INDUSTRIAL E PORTURIO DO PECM: TESSITURAS SOCIOAMBIENTAIS DE UM ADMIRVEL MUNDO NOVO1 Luciana Nogueira Nbrega2 Martha Priscylla Monteiro Joca Martins3 RESUMONos ltimos anos, as comunidades que vivem em So Gonalo do Amarante e Caucaia, municpios da regio metropolitana de Fortaleza, Cear, vem sendo impactadas pela construo do uma srie de empreendimentos na rea de infraestrutura e indstrias primrias, como siderrgicas, termeltricas e refinaria, integrantes de um projeto denominado Complexo Industrial e Porturio do Pecm (CIPP). Dentre as comunidades afetadas, um grupo, em especial, tem resistido ao processo de implantao do CIPP, reivindicando a identidade tnica Anac e relaes diferenciadas com o territrio, o que pressupe outros modelos de uso e gesto dos recursos naturais. Nesse contexto, a presente pesquisa se insere, visando conhecer a histria (ainda no contada) que envolve a construo do Complexo Industrial e Porturio do Pecm, uma histria sobre propriedade, territrio e modelos de desenvolvimento socioambientalmente (in)sustentveis. Ao contarmos essa histria, pretendemos identificar e caracterizar os conflitos vivenciados pelo povo Anac, ao tempo em que buscamos chegar a uma moral da histria: as contribuies que esse caso podem nos oferecer na compreenso da temtica sobre projetos de desenvolvimento e meio ambiente, entendido em sua perspectiva natural e cultural. Com base em pesquisas bibliogrficas, documentais e de campo,1

Admirvel Mundo Novo (Brave New World na verso original em lngua inglesa) um livro escrito por Aldous Huxley e publicado em 1932 que narra um hipottico futuro onde as pessoas so pr-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas. [...]. O personagem Bernard Marx sente-se insatisfeito com o mundo onde vive, em parte porque fisicamente diferente dos integrantes da sua casta. Num reduto onde vivem pessoas dentro dos moldes do passado uma espcie de "reserva histrica" - semelhante s atuais reservas indgenas - onde se preservam os costumes "selvagens" do passado (que corresponde poca em que o livro foi escrito), Bernard encontra uma mulher oriunda da civilizao, Linda, e o filho dela, John. Bernard v uma possibilidade de conquista de respeito social pela apresentao de John como um exemplar dos selvagens sociedade civilizada. Para a sociedade civilizada, ter um filho era um ato obsceno e impensvel, ter uma crena religiosa era um ato de ignorncia e de desrespeito sociedade. Linda, quando chegada civilizao foi rejeitada pela sociedade. O livro desenvolve-se a partir do contraponto entre esta hipottica civilizao ultra-estruturada (com o fim de obter a felicidade de todos os seus membros, qualquer que seja a sua posio social) e as impresses humanas e sensveis do "selvagem" John que, visto como algo aberrante cria um fascnio estranho entre os habitantes do "Admirvel Mundo Novo". Aldous Huxley escreveu, mais tarde, outro livro, chamado Retorno ao Admirvel Mundo Novo, sobre o assunto: um ensaio onde demonstrava que muitas das "profecias" do seu romance estavam a ser realizadas graas ao "progresso" cientfico, no que diz respeito manipulao da vontade de seres humanos. (Informao disponvel em ; acesso em 16 Set 2010). Na obra de Huxley os selvagens so vistos como o outro, exticos mantidos em reservas para o deleite de turistas de castas consideradas como superiores, em uma sociedade em que o progresso da cincia, ou o projeto de desenvolvimento apontado pelas teorias e prticas consideradas como cientficas, o que determina o modo de vida social. A analogia aqui esboada expressa, de modo exagerado e caricatural, as construes da sociedade contempornea de modelos de desenvolvimento que, ainda que se declarem auto-sustentveis ambientalmente, inviabilizam modos de vida tradicionais e empobrecem populaes, em nome de pressupostos tcnico-cientficos aliados a grupos de interesses econmicos e sociais, que se impem como hegemnicos. 2 Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do Cear - UFC. Bolsista da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES). Atualmente, pesquisa sobre direitos territoriais dos povos indgenas, interculturalidade e pluralismo jurdico. E-mail: [email protected]. 3 Mestranda da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Cear - UFC. Bolsista da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES). Atualmente pesquisa a atuao de advogados(as) populares na concretizao do direito a terra e ao territrio. E-mail: [email protected].

pudemos perceber que os conflitos que envolvem a construo do CIPP e os Anac no so apenas sobre a posse ou propriedade de um dado territrio, mas situam-se, principalmente, no campo do simblico, da definio de modelos de desenvolvimento e de projetos de futuro, nas formas de produzir e gerir os recursos naturais. Na luta para permanecer no territrio tradicionalmente ocupado, os Anac nos indicam a importncia de voltar o nosso olhar para o local, para as contribuies que os saberes gestados a partir da vivncia concreta podem oferecer, inclusive, para pensarmos em projetos coletivos de futuro. PALAVRAS-CHAVE Territrio desenvolvimento justia ambiental RESUMEN En los ltimos aos, las comunidades que viven en So Gonalo do Amarante y Caucaia, la regin metropolitana de Fortaleza, Cear, se ha visto afectada por la construccin de una serie de empresas en el mbito de las infraestructuras y las industrias primarias, tales como fbricas de acero, centrales elctricas y refineras miembros de un proyecto denominado Complejo Industrial y el Puerto (CIPP). Entre las comunidades afectadas, un grupo, en particular, ha resistido el proceso de implementacin CIPP, afirmando la identidad tnica Anaco y diferentes relaciones con el territorio, lo que requiere otro tipo de uso y manejo de los recursos naturales. En este contexto, la presente investigacin se inscribe en el objetivo de conocer la historia (an no cuentan), que consiste en la construccin del Complejo Industrial y el Puerto, una historia acerca de la propiedad, los patrones de desarrollo territorial y socio-ambiental (in) sostenible. Al contar esta historia, tenemos la intencin de identificar y caracterizar los conflictos vividos por el pueblo Anaco, el momento en que tratamos de llegar a una "conclusin": las contribuciones que este caso nos puede ofrecer en la comprensin de los proyectos de desarrollo temtico y el medio ambiente, entendida en su punto de vista natural y cultural. Basado en la literatura de investigacin, documental y la investigacin de campo, nos dimos cuenta de que los conflictos que involucran la construccin de la CIPP y Anaco no son slo acerca de la posesin o propiedad de un territorio determinado, pero se encuentran principalmente en el campo de lo simblico la definicin de modelos y proyectos de desarrollo para el futuro, las formas de produccin y gestin de los recursos naturales. En la lucha por permanecer en los territorios tradicionalmente ocupados, el Anaco nos muestran la importancia de volver la mirada a la escena a las aportaciones que el conocimiento gestado a partir de la experiencia concreta puede ofrecer, incluso a pensar en proyectos colectivos para el futuro. PALABRAS_CLAVE Planificacin desarrollo la justicia ambiental

Introduo Nos ltimos anos, as comunidades que vivem em So Gonalo do Amarante e Caucaia, municpios da regio metropolitana de Fortaleza, Cear, vem sendo impactadas pela construo do uma srie de empreendimentos na rea de infraestrutura e indstrias primrias, como siderrgicas, termeltricas e refinaria, integrantes de um projeto denominado Complexo Industrial e Porturio do Pecm (CIPP). Dentre as comunidades afetadas, um grupo, em especial, tem resistido ao processo de implantao do CIPP, reivindicando a identidade tnica Anac e relaes diferenciadas com o territrio, o que pressupe outros modelos de uso e gesto dos recursos naturais. Ao se contrapor s desapropriaes e expulses de famlias do territrio, o povo Anac se vale de estratgias diversas e engloba outros sujeitos na luta pela demarcao do seu territrio, no resgate e na reelaborao de sua memria e histria, e na proposio de um saber prprio, que local.

Nesse contexto, a presente pesquisa se insere, visando conhecer a histria (ainda no contada) que envolve a construo do Complexo Industrial e Porturio do Pecm, uma histria sobre propriedade, territrio e modelos de desenvolvimento socioambientalmente

(in)sustentveis. Ao contarmos essa histria, pretendemos identificar e caracterizar os conflitos vivenciados pelo povo Anac, ao tempo em que buscamos chegar a uma moral da histria: as contribuies que esse caso podem nos oferecer na compreenso da temtica sobre projetos de desenvolvimento e meio ambiente, entendido em sua perspectiva natural e cultural.4 Para tanto, combinamos a pesquisa bibliogrfica e documental, a partir de autores de diversos ramos do conhecimento, com a pesquisa de campo, procurando focar nossos estudos nas temticas relativas ao socioambientalismo5 e aos direitos territoriais e culturais.

Uma histria a ser contada: os Anac e o Complexo Industrial e Porturio do Pecm A criao do Complexo Industrial e Porturio do Pecm (CIPP) no um projeto recente na agenda poltica do Estado do Cear. Ainda em 1985, a Petrobrs 6 anunciou o intuito de

4

Essa noo ampla de meio ambiente foi consignada pela Constituio de 1988. De acordo com a Carta Magna, meio ambiente constitui no s os aspectos naturais, intocveis pelo homem, como a serra, o rio, a lagoa, mas tambm os bens culturais, como o patrimnio histrico, paisagstico, artstico, os modos de ser e fazer das populaes e outros. Carlos Frederico Mars refora e aprofunda essa compreenso, estabelecendo que: o meio ambiente, entendido em toda a sua plenitude e de um ponto de vista humanista, compreende a natureza e as modificaes que nela vem introduzindo o ser humano. Assim, o meio ambiente composto pela terra, a gua, o ar, a flora e a fauna, as edificaes, as obras de arte e os elementos subjetivos e evocativos, como a beleza da paisagem ou a lembrana do passado, inscries, marcos ou sinais de fatos naturais ou da passagem de seres humanos. Desta forma, para compreender o meio ambiente to importante a montanha, como a evocao mstica que dela faa o povo. (MARS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. Bens culturais e proteo jurdica. Porto Alegre: Unidade Editorial da Prefeitura, 1997, p. 9). 5 Nas palavras de Juliana Santilli, o socioambientalismo foi construdo com base na idia de que as politicas pblicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais, detentoras de conhecimentos e de prticas de manejo ambiental. Mais do que isso, desenvolveu-se com base na concepo de que, em um pas pobre e com tantas desigualdades sociais, um novo paradigma de desenvolvimento deve promover no s a sustentabilidade estritamente ambiental ou seja, a sustentabilidade de espcies, ecossistemas e processos ecolgicos como tambm a sustentabilidade social ou seja, deve contribuir tambm para a reduo da pobreza e das desigualdades sociais e promover valores como justia social e equidade. (SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. So Paulo: Peirpolis, 2005, p. 34). 6 A Petrobras - Petrleo Brasileiro S/A uma empresa de capital aberto (sociedade annima), cujo acionista majoritrio o Governo do Brasil (Unio). , portanto, uma empresa estatal de economia mista. Fundada em 3 de outubro de 1953 e sediada no Rio de Janeiro, opera hoje em 27 pases, no segmento de energia, prioritariamente nas reas de explorao, produo, refino, comercializao e transporte de petrleo e seus derivados, no Brasil e no exterior. [...]. Em janeiro de 2010, passou a ser a quarta maior empresa de energia do mundo, [...] em termos de valor de mercado, segundo dados da consultora PFC Energy. (Informao disponvel em ; acesso em 2 set. 2010). Apresenta-se em seu site oficial como: Somos uma empresa de energia que alia a expanso dos negcios ao compromisso com o desenvolvimento sustentvel. (Informao disponvel em ; acesso em 2 set. 2010).

construir uma nova refinaria no Nordeste7 do Brasil, iniciando uma disputa entre os estados nordestinos pelo empreendimento. De acordo com Jakson Alves de Aquino, em 1987, estudos conduzidos pela Petrobrs indicavam o Cear, seguido pelo Maranho, como os estados mais adequados para instalao da refinaria.8 No entanto, tendo em vista razes econmico-financeiras, o projeto de construo de outra refinaria no Nordeste foi adiado para a segunda metade da dcada de 1990. Dos estados em disputa, Pernambuco detinha as maiores chances de aquinhoar o empreendimento por j contar com o Complexo Industrial e Porturio de Suape, enquanto o Estado do Cear demandaria gastos adicionais com a ampliao do Porto do Mucuripe, em Fortaleza, para a instalao da refinaria.9 Devido a mobilizaes de polticos cearenses, a Petrobrs indicou, em maio de 1995, que o local mais vivel para a instalao da refinaria era o municpio de Paracuru 10, no Cear, municpio vizinho de So Gonalo do Amarante. Na mesma poca, comeou a se cogitar a implantao de uma infra-estrutura porturia no Pecm, distrito de Caucaia, na Regio Metropolitana de Fortaleza. Conforme pronunciamento do Secretrio Estadual de Transporte, Energia, Comunicaes e Obras (SETECO), as confirmaes e perspectivas de descobertas de novos poos de petrleo no litoral de Paracuru e a infraestrutura porturia do Pecm a se implantar, criam condies para a Petrobrs tomar uma deciso favorvel com relao instalao da Refinaria no Estado.11 As promessas de construo da refinaria, no entanto, no foram concretizadas. Os impasses polticos e a crise fiscal pelas quais o Estado brasileiro passou na dcada de 1990 foram apontados como os motivos pelos quais o projeto de uma refinaria financiada pela Petrobrs no sasse do papel. No obstante, o Estado do Cear visando criar condies para sua instalao e obter vantagens comparativas significativas com relao aos demais Estados do Nordeste, investiu pesadamente na construo de um Complexo Industrial e Porturio no Pecm. Nesse sentido, Jakson Aquino escreve:A desistncia da Petrobrs no significou o fim da disputa poltica entre os estados por uma refinaria. Apesar de no ser mais o Estado quem construiria a refinaria, ele ainda7 8

Essa regio j contava com um complexo petroqumico em Camaari, na Bahia. AQUINO, Jakson Alves. Processo decisrio no Governo do Estado do Cear (1995-1998): o porto e a refinaria. 2000. 131f. Dissertao (Mestrado em Sociologia), Departamento de Cincias Sociais e Filosofia, Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2000, p. 102. 9 Conforme Aquino, poca, a construo de outro porto no Cear ainda no era cogitada (AQUINO, Jakson Alves. op. cit., 2000). 10 Jornal Dirio do Nordeste, de 28/05/1995. 11 MAIA JNIOR, Francisco Queiroz apud AQUINO, Jakson Alves. op. cit., 2000, p. 104.

tinha um papel a desempenhar no estabelecimento da infraestrutura que torna uma unidade da federao mais atraente do que as demais para o capital privado. A disputa poltica deixou de ser por uma refinaria e pela infraestrutura necessria sua implantao e concentrou-se na oferta de incentivos fiscais e na busca de financiamento estatal para a melhoria da infra-estrutura (no caso do Cear, construo de um complexo industrial e porturio).12

Paralelo refinaria, o Complexo Industrial e Porturio do Pecm j ganhava forma com o projeto de construo de um porto e a instalao de uma siderrgica, atrativos, conforme as expectativas do governo estadual, para acomodar um plo metal-mecnico e um petroqumico. Em 1996, foi assinada a ordem de servio para a construo do Porto do Pecm. A rea destinada a sua implantao e de outros empreendimentos que compunham o CIPP, no entanto, era ocupada por inmeras famlias, as quais comearam a ser desapropriadas a partir daquele ano. Devido a esse fato, foi realizada uma audincia pblica, no Pecm, promovida pela Comisso de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Semi-rido e de Direitos Humanos e Cidadania, da Assemblia Legislativa do Cear. Jakson Aquino relata que:Participaram representantes de vrios rgos do Governo Estadual, de ONGs [organizaes no governamentais] e lderes comunitrios de localidades impactadas pelas obras de construo do Porto. A reunio iniciou-se com a apresentao do futuro CIPP por representantes do Governo. Foi ressaltado que o projeto no se limita a uma obra de engenharia civil; trata-se de um projeto de desenvolvimento regional, envolvendo o trabalho de vrias Secretarias de Governo. No entanto, logo que se iniciaram as intervenes de pessoas das comunidades atingidas, as discusses se concentraram nas questes fundirias: desapropriaes e reassentamentos de famlias. Os moradores presentes, alguns exaltados, reclamavam da forma como eram feitas as desapropriaes: ... [os moradores foram expulsos] de seus stios com falsas promessas de indenizao. Porque a nica coisa que toda essa gente quer e tem para o seu sustento, de suas famlias, so os coqueiros, cajueiros, e seus canteiros. Ali nasceram, aprenderam a plantar e s o que sabem fazer. Se os tirarem de cima das suas propriedades, eles morrero. Portanto, peo a todos: no acreditem neles, porque eles no querem bem a vocs; eles querem os bens de vocs!.13

A fala acima acerca do modo como as desapropriaes foram realizadas para a implantao do Complexo Industrial e Porturio do Pecm corroborada com a anlise de Arajo:Com o CIPP, vrias comunidades, entre Caucaia e So Gonalo do Amarante (Pecm), residentes no espao, futuro territrio industrial, foram retiradas compulsoriamente e mediante ao violenta do Estado, que se fez valer de decreto governamental de desapropriao, de fora policial e judicial para retirar cerca de 400 famlias somente 14 em Pecm.

12 13

AQUINO, Jakson Alves. op. cit., 2000, p. 106. Idem, p. 113. 14 ARAJO, Ana Maria Matos. Urbanizao litornea nordestina: os casos de Pecm e do Arpoador Cear. Artigo apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Caxambu, 2008, p. 4.

Diante da forma como ocorreram, as primeiras desapropriaes para a construo do CIPP passou a ocupar pginas e pginas da memria coletiva da populao impactada com as obras. Muitos(as) moradores(as) lembram que a postura das entidades governamentais era no sentido de apresentar a proposta como consumada, sem muita margem para negociao. Falavase com as comunidades utilizando-se de termos15 e linguagem que inviabilizava a compreenso do significado da proposta16. Assim, as vistorias nos imveis para fins de desapropriao eram feitas sem que as famlias tivessem conhecimento do que se tratava. Lideranas afirmam que, nessa poca, muitos(as) moradores(as), por s saberem desenhar o nome, assinaram laudos de vistoria e avaliao do imvel acreditando que se tratava de cadastro para percepo de benefcios governamentais. A falta de dilogo e de informaes caracterizou esse processo17. Tais afirmaes so reiteradas por Arajo: o cadastramento das propriedades a serem desapropriadas surpreendeu os primeiros moradores contatados, desavisados das intenes

15 16

Certos termos tcnicos, por exemplo, restritos a compreenso de determinados grupos sociais e/ou profissionais. Os Anac falam a lngua portuguesa, bem como os representantes das entidades. O que nos referimos aqui sobre as expresses e as construes lingsticas que no se atentaram, na ocasio, para a cultura do e as prcompreenses em que est inserido o povo Anac. O inverso tambm pode ocorrer. Em nossas incurses de campo em Curral Velho (comunidade tradicional de pescadores(as) e marisqueiras(os) localizada em Acara-Cear), os(as) moradores(as) falavam-nos sobre o espao e os seus modos de produo utilizando-se de expresses e construes que no se conectavam com nossas experincias e vivncias, sendo-nos, portanto quase incompreensveis. Ainda que todos falassem a lngua portuguesa, tivemos que lhes pedir para nos explicar o que queriam dizer a fim de que houvesse uma comunicao inteligvel entre ns. Ver relatos sobre estas incurses em JOCA, Priscylla; NBREGA, Luciana. Direito Terra, ao Territrio e ao Meio-Ambiente do Povo do Mangue: vivemos em Curral Velho mas no queremos viver encurralados. Apresentado no III Simpsio Internacional sobre Propriedade e Meio Ambiente e III Encontro Temtico do Projeto Casadinho realizado em abril de 2010 em Fortaleza, Cear, Brasil, no prelo. JOCA, Priscylla; NBREGA, Luciana. Populaes tradicionais, territrio e meio ambiente: um estudo sobre a carcinicultura e a comunidade de Curral Velho Acara/Cear. Apresentado no XIX Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Ps Graduao em Direito-CONPEDI (GT Sociologia e Antropologia Jurdicas), realizado em junho de 2010 na Universidade Federal do Cear (UFC), em Fortaleza, Cear, no prelo. 17 Os espaos de dilogo criados pelo Governo do Estado do Cear, como o Grupo de Trabalho do Pecm, institudo pelo Decreto N 24.496, de junho de 1997, cumpriam muito mais um papel formal, no constituindo efetivamente um espao de disponibilizao de informaes, avaliao dos projetos e mediao entre o Governo e as comunidades impactadas pelo CIPP. Durante todo o processo de instalao do Complexo, as comunidades no tiveram acesso nem discutiram os projetos relacionados ao Complexo nem tampouco lhes foi colocado disposio a opo de no-construo dos empreendimentos ou a busca de outras localidades e/ou tecnologias que mitigassem o impacto ambiental (natural e social). Essa postura governamental no deferiu de outros casos de implementao de projetos que potencialmente causam danos ambientais de elevada magnitude. De acordo com Severino Soares Agra Filho, raros so os casos em que o governo, acompanhando a percepo da sociedade civil, recomenda e garante a reviso do projeto em termos estruturais ou de localizao. A ocorrncia desses casos somente se viabiliza quando h uma convergncia dos questionamentos dos movimentos ecolgicos com as demais representaes sociais, e os conflitos representam desgastes polticos eleitoreiros na regio sob interveno. (AGRA FILHO, Severino Soares. Os conflitos ambientais e os instrumentos da poltica nacional de meio ambiente. In: ZHOURI, Andra; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 354).

governamentais. Os anos seguintes foram vividos em um clima tenso, carregado de medo, incertezas e revoltas da populao atingida.18 A primeira onda das desapropriaes, nos anos de 1995 a 1999, teve como saldo centenas de famlias expulsas da terra, sendo algumas alojadas nos assentamentos de Novo Torm, Forquilha e Monguba, que se situam em outros municpios cearenses, tais como Paracuru (Cear). Nesse perodo, diversas organizaes civis e religiosas de Fortaleza foram solicitadas a prestar apoio s famlias atingidas. Assim, inicialmente a Pastoral do Migrante e a Pastoral da Terra, e, posteriormente, tambm o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), passaram a atuar na rea, apoiando as iniciativas dos(as) moradores(as) atingidos(as) pelo Complexo Industrial e Porturio do Pecm.18

ARAJO, Ana Maria Matos, 2008, p. 6. Um fato, entretanto, chamou a ateno inclusive do rgo responsvel pelas desapropriaes, o Instituto de Desenvolvimento Agrrio do Cear (IDACE). Entre as famlias deslocadas compulsoriamente havia um expressivo nmero de posseiros e moradores, sendo o nmero de proprietrios (conforme a legislao em vigor) bastante reduzido. Dos 437 imveis cadastrados em So Gonalo do Amarante e em Caucaia, havia, no geral, uma alta expresso de posseiros (30%) e de moradores (53%), contra poucos proprietrios (17%). Isso sugeriu, primeira vista, uma relao de produo tradicional na agricultura, acompanhada de um processo generalizado de no legalidade da posse da terra (IDACE. Plano de reassentamento de Pecm. Fortaleza, 1997, p. 10). A situao fundiria em So Gonalo do Amarante e Caucaia, conforme descrito no documento oficial, no diferia, entretanto, da realidade de populaes tradicionais, indgenas e quilombolas, as quais, salvo rarssimas excees, no detm a titularidade do territrio que ocupam tradicionalmente. A relao que esses grupos possuem com o territrio no de propriedade, no sentido exclusivista, titularizado; sua relao se expressa no dia-a-dia, nos modos de ser, fazer e produzir, no conhecimento acerca dos ciclos naturais do lugar e no sentimento de pertena assentado na plena convico de uma continuidade histria com o territrio que foi dos antepassados. Nesse sentido, no h uma preocupao dessas comunidades em titularizar o seu domnio sobre os territrios que ocupam. Essa preocupao s passa a surgir com a chegada de projetos de desenvolvimento, do turismo de massa, de indstrias e outros empreendimentos que passam a ameaar a permanncia dessas populaes do territrio que ocupam. Paralelo a isso, importa tambm ressaltar o modo como se constituiu a propriedade privada no Brasil. Desde o perodo da colonizao brasileira, passando pelas Sesmarias, pela lei de Terras no Brasil (1850), pelo Estatuto da Terra (1964), pelo Processo Constituinte de construo da funo social da propriedade da Constituio Federal de 1988 e pela prpria Constituio Brasileira atual, percebe-se que houve uma expropriao de ndios, negros e brancos pobres da terra em um processo que, por outro lado, implicou na concentrao de terras em poucas mos. Sem nos ater a um passado distante, a Lei de Terras de 1850, exemplificativamente, imps um modelo de modelo de acesso terra, no Brasil, dispondo que ficariam doravante "proibidas as aquisies de terras devolutas por outro ttulo que no seja o de compra", representando o no reconhecimento de ndios, quilombolas e populaes tradicionais ao territrio, a indicar que as terras ocupadas por esses grupos passaram a serem negociadas em balces cartorrios. Desenvolvemos melhor essa idia em: JOCA, Priscylla; NBREGA, Luciana. JOCA, Priscylla; NBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade de movimentos sociais. In: Marcos Wachowicz; Joo Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e meio ambiente: novos desafios para sculo XXI. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2010. JOCA, Priscylla; NBREGA, Luciana. A Prxis de Advogados(as) Populares na Luta pela Terra e pelo Territrio. Artigo aprovado no XIX Congresso Nacional do CONPEDI a ser apresentada em outubro de 2010, em Florianpolis, Santa Catarina. Para aprofundar-se sobre o assunto vide em: MARS, Carlos Frederico. A Funo Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. GOMES, Flvio dos Santos; REIS, Joo Jos. Roceiros, camponeses e garimpeiros quilombolas na escravido e na ps-emancipao. In: STARLING, Heloisa Maria Gurgel; RODRIGUES, Henrique Estrada; TELLES, Marcela (orgs.). Utopias Agrrias. Belo Horizonte: UFMG, 2008. GUIMARES, Alberto Passos. Quatro Sculos de Latifndio. 6 Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. MORISSAWA, Mitsue. A Histria da Luta pela Terra e o MST. So Paulo: Expresso Popular, 2001.

A organizao comunitria para permanecer no territrio de seus antepassados, impactado pelo Complexo Industrial e Porturio do Pecm, obteve diferentes resultados: algumas comunidades no resistiram diante de um processo violento, mediante presses de muitas ordens e dimenses; outras permaneceram lutando e rompendo com a passividade. O movimento de resistncia diante das desapropriaes e remoes de famlias possibilitou que, no processo de luta, muitas famlias comeassem a recontar algumas histrias. Histrias que os pais e avs haviam lhes contado, mas que, pelo medo, foram sendo enterradas na memria. Histrias dos encantados, das danas, dos rituais, das curas, dos massacres, das resistncias foram sendo escavadas 19 e percebidas como comuns ao grupo: o pai de um havia contado a mesma histria que a av de outro.20 Nesse processo de escavao, a identidade Anac foi sendo percebida, reconstruda e ressignificada. A viagem da volta do grupo tnico, a que se refere Joo Pacheco de Oliveira21, propiciava uma tessitura de histrias, memrias e reelaboraes que afirmavam uma identidade e uma origem comuns, re-ligando os antepassados (os troncos velhos) s geraes atuais (as19

Utilizamos a imagem de uma escavao para falar do processo de emergncia tnica no Nordeste, inspirados na vivncia dos ndios Trememb de Almofala, no municpio de Itarema, Cear. Umas das histrias contadas pelos Trememb para explicar o seu processo de retomada da identidade tnica tem a ver com a Igreja Nossa Senhora da Conceio de Almofala. Os Trememb contam que, durante muitos anos, a igreja ficou soterrada por uma grande duna, que deixara descoberta apenas uma parte da torre principal. Com o tempo, as areias da duna comearam a se movimentar, tornando visveis outras partes da igreja. Nesse momento, os moradores de Almofala se reuniram e comearam a desenterr-la, cavando com as prprias mos. O processo que levou a desenterrar a igreja tambm levou ao encontro dos atuais Trememb com os antigos, com os antepassados. Embora a igreja estivesse ali, foi preciso cavar para que ela emergisse. Nesse sentido, foi preciso que os Trememb escavassem sua memria, encontrando semelhanas entre as histrias comuns, para que iniciasse a emergncia tnica. 20 Nas entrevistas realizadas com os membros da etnia Anac, observamos um relato recorrente: a narrativa do massacre da Lagoa do Banana. Em entrevista realizada por Srgio Brissac, Jonas Alves Gomes, o Cacique Jonas Anac, narrou o que ouvia de seu pai acerca do massacre: O governo mandou seus soldados pra matar todos os ndios. E a lagoa se tingiu de sangue. Os sobreviventes fugiram pra estes lados de c: Japuara, Salgada, Bolso, Mates. Outro relato coletado, do Sr. Pedro Pereira da Silva, de 65 anos de idade, pescador, morador de Mates, aponta que na era dos trs oito (1888) o governo mandou dizimar os ndios. A lagoa ficou vermelha da cor de sangue. Quem me contou foi meu amigo Manuel Grosso, j falecido, que morava na Japuara, e ouviu a histria do seu pai. Por fim, Francisco Ferreira de Moraes Jnior, o Jnior Anac, conta que ouvi da minha tia Maria Freire, que o seu pai contava que na era dos trs oito foi uma poca de grande seca. Chegou uma tropa de cavalos e detonou vrias bombas l e a matou muita gente, muitos ndios Anac, junto Lagoa do Banana. Seus corpos foram jogados dentro da lagoa, que virou um mar de sangue da noite pro dia. Os que escaparam, apavorados com tanta violncia fugiram para as matas da regio: Japuara, na linha da Serra dos Cabors; Santa Rosa, no p da Serra dos Gatos; Mato, hoje Mates, Coqueiros e Bolso. Tambm o meu av, um dia, ns amarrando cebola debaixo de um cajueiro, falou pro meu pai, ele disse: 'tome muito cuidado com isso, no pode contar pra ningum, tem que guardar segredo: ns somos desse povo, dos ndios'. Depois fiquei sabendo que o municpio de So Gonalo at 1940 era chamado Anacetaba, a Taba dos Anac. (BRISSAC, Srgio. A etnia Anac e o Complexo Industrial e Porturio do Pecm. Parecer Tcnico n 01/08. Ministrio Pblico Federal, Fortaleza, 2008, p. 4-5). 21 OLIVEIRA, Joo Pacheco de. Uma etnologia dos ndios misturados? Situao colonial, territorializao e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, Joo Pacheco de (org.). A viagem da volta: etnicidade, poltica e reelaborao cultural no Nordeste indgena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004

pontas de rama). Desnaturalizando a condio de mistura, os Anac passaram a propor no um exerccio nostlgico de retorno ao passado, desconectado do presente, mas uma atualizao histrica que no anula o sentimento de referncia origem, mas antes refora a resoluo simblica e coletiva de se redescobrir pontas de rama.22 Mas por que os Anac s se apresentaram como povo indgena aps o incio da implantao do Complexo do Pecm?23 Buscando responder a esse questionamento, Srgio Brissac24 aponta que:[...] no de se estranhar que a emergncia da afirmao tnica dos Anac tenha se dado a partir do risco de serem removidos de suas terras. Na verdade, no haveria porque essa afirmao tnica ter se dado antes, quando eles estavam tranqilos em suas terras e a carga semntica relacionada ao designativo ndio era propulsora somente de estigma e preconceito.25 [...] At recentemente, a estratgia de sobrevivncia para os Anac era ocultar sua identidade indgena, assim como hoje aps a virada histrica produzida pelo reconhecimento pela Carta Constitucional de 1988 do direito dos povos indgenas diversidade cultural e sua terra tradicionalmente ocupada a afirmao da sua identidade.

Nesse sentido, valendo-se do direito auto-definio, exposto na Conveno n. 169 da Organizao Internacional do Trabalho26, os Anac se afirmam enquanto grupo diferenciado ao tempo em que se articulam com o movimento indgena no Estado do Cear. A conscincia de que constituem um povo indgena parte das relaes peculiares que os Anac tecem com o territrio que habitam; de uma memria coletiva que os interliga a uma populao de origem prcolombiana; das danas, ritos e tradies reconhecidas por eles como indgenas; e de uma matriz simblica peculiar: a corrente dos encantados.

22 23

OLIVEIRA, Joo Pacheco de. op. cit., 2004. A data de apresentao da demanda por regularizao da terra indgena Anac, conforme consta nos arquivos da Fundao Nacional do ndio, de 22 de setembro de 2003. 24 BRISSAC, Srgio. 2008, p. 13. 25 Os processos de negao da identidade tnica no Cear foram bastante marcantes. As polticas adotadas pelos aldeamentos e pelo Diretrio Pombalino buscavam desarticular e desqualificar as formas culturais de sobrevivncia e organizao dos povos indgenas, impedindo-os de exercitar suas prticas tradicionais. Como objetivo de integrlos ao mundo dos no-ndios, a estratgia da mestiagem visava encaminhar os ndios ao desaparecimento. Assim, diversos documentos oficiais da provncia passaram a afirmar a extino dos ndios, vez que podiam ser confundidos com a populao em geral. Ao atestar a extino dos ndios, estava aberta a possibilidade de o poder local apropriar-se dos seus territrios. Essa negao manifestada na fala das lideranas indgenas que mencionam um tempo em que a auto-afirmao tnica poderia conduzir, inclusive, morte. Nesse sentido, a estratgia dos povos indgenas para sobreviver foi negar essa identidade, embora as histrias e os modos de produzir e viver fossem repassados s geraes seguintes por meio da tradio oral. Com a Constituio de 1988, a histria comea a ser recontada. A fala do paj Lus Caboclo, ndio Trememb de Almofala, Itarema/CE, retrata bem isso: Houve um tempo que para ns viver, ns precisava calar. Hoje, para ns viver, a gente precisa falar. 26 O direito auto-identificao est consignado no pargrafo 2 do art. 1 da Conveno n. 169 da OIT: a conscincia de sua identidade indgena ou tribal dever ser considerada como critrio fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposies da presente Conveno.

A corrente de ndios ou corrente dos encantados um dos elementos reiteradamente presentes nas narrativas entre os Anac. Segundo Antonio Freire de Andrade, Anac de Mates, em entrevista ao jornal Porantim, os ndios que morreram na luta se encantaram e assim surgiu a corrente dos encantados que vai do Gregrio ao Morro do Sirica. Passa por cima do Jirau, Baixa das Carnabas, Baixa da Almeixa e a brenha na mata. Quem tiver fora e poder de receber, s passar por baixo. Eles do fora, ajuda.27 Alguns dos encantados, portanto, seriam os antepassados dos atuais Anac que, ao morrer, se encantaram, passando a povoar as matas de seu territrio tradicional. Como se constata, a relao dos Anac com os seus ancestrais entretecida com a relao que eles mantm com o territrio que ocupam: uma relao permeada pelo sagrado. A corrente dos encantados tem uma materialidade geogrfica, fsica. No se trata de uma construo apenas metafrica, mas essas linhas, esses encantados esto, para os Anac, fisicamente encravados no territrio por eles reivindicado. Durante esse perodo de articulao e mobilizao dos(as) moradores(as) de So Gonalo do Amarante e Caucaia que passaram a se reconhecer como povo indgena Anac 28, houve uma suspenso na onda de desapropriaes nessa regio. Logo aps a instalao dos primeiros empreendimentos, impasses polticos e presses de outros estados para receber as indstrias acabaram atrasando a concluso do CIPP. Mas a luta dos Anac no se encerrou com as desapropriaes no final dos anos 1990. Em janeiro de 2007, o Governo Federal instituiu, por meio do Decreto n 6.025, de 22 de janeiro de 2007, o Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), o qual, segundo o art. 1 do Decreto, constitua-se de medidas de estmulo ao investimento privado, ampliao dos investimentos pblicos em infra-estrutura e voltadas melhoria da qualidade do gasto pblico e ao controle da expanso dos gastos correntes no mbito da Administrao Pblica Federal. 29

27

PICANO, Marcy. A luta do povo Anac em meio ao complexo industrial do CE. Jornal Porantim, dezembro de 2006, p. 6. 28 Interessante destacar que, nesse mesmo perodo, moradores(as) de outras comunidades que no eram diretamente impactadas com os projetos do Complexo Industrial e Porturio do Pecm passaram a se reivindicar tambm como indgenas da etnia Anac. Essas comunidades, em articulao com a populao Anac impactada pelo CIPP, passaram a lutar pelo reconhecimento de um territrio contnuo que integra as aldeias de Japura, Santa Rosa, Mates, Bolso e outras. 29 Conforme consta no endereo eletrnico oficial do Programa de Acelerao do Crescimento: est em curso no Brasil um modelo de desenvolvimento econmico e social, que combina crescimento da economia com distribuio de renda e proporciona a diminuio da pobreza e a incluso de milhes de brasileiros e brasileiras no mercado formal de trabalho. A economia nacional rene indicadores macroeconmicos e sociais positivos que apontam -

Com o apoio intensivo do Governo Federal, por meio dos recursos do PAC, o projeto do Complexo Industrial e Porturio do Pecm foi retomado. Em 19 de setembro de 2007, o governador do Estado do Cear publicou, no Dirio Oficial, o Decreto n 28.883/2007, o qual declarara de utilidade pblica para fins de desapropriao e implantao das obras e servios do Parque Industrial do Pecm uma poligonal equivalente a 335 km2, entre os municpios de So Gonalo do Amarante e Caucaia, rea superior ao projeto inicial do Complexo Industrial e Porturio. As razes da ampliao na rea destinada ao CIPP so descritas no texto do Decreto:Considerando que a instalao do complexo Industrial-Porturio do Pecm, em fase de implantao, tem por finalidade criar novas perspectivas de desenvolvimento para o Estado, independentemente das suas condies climticas; Considerando que a implantao de um parque industrial, baseado em novas e modernas instalaes porturias, dotar o Estado de um importante plo irradiador de desenvolvimento sustentvel; Considerando ainda que o empreendimento gera a necessidade de reas de terra disponveis para aquela finalidade, com repercusso significativa no meio scioeconmico do Estado do Cear.

O Programa de Acelerao do Crescimento retomou proposta de instalao de uma refinaria de petrleo na regio do Pecm. Aliado refinaria, outros empreendimentos vieram a se somar no contexto do CIPP, tais como: retroporto (edificaes situadas em terra firme), Ferrovia Transnordestina, gasoduto, ampliao de vias rodovirias, em especial, BRs, termeltricas a carvo mineral e Transposio do rio So Francisco.30 Diante disso, iniciou-se uma nova fase de desapropriaes na regio de So Gonalo do Amarante e Caucaia31. Embora essa fase tenha sido levada a cabo pelos rgos estaduais decomo poucas vezes em sua histria - para a possibilidade de acelerao do crescimento econmico, mantendo a inflao em nveis baixos. A poltica econmica do governo federal conseguiu estabilizar a economia, criar um ambiente favorvel para investimentos, manter o princpio da responsabilidade fiscal, reduzir a dependncia de financiamento externo, ampliar substancialmente a participao do Brasil no comrcio internacional e obter supervits recordes na balana comercial. Agora possvel caminhar em direo a um crescimento mais acelerado e de forma sustentvel, uma vez que a economia brasileira tem grande potencial de expanso. E tal desenvolvimento econmico deve beneficiar a todos os brasileiros e brasileiras e respeitar o meio ambiente. O desafio da poltica econmica do governo federal aproveitar o momento histrico favorvel do pas e estimular o crescimento do PIB e do emprego, intensificando ainda mais a incluso social e a melhora na distribuio de renda. Para tanto, o governo federal criou o Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), que tem como um dos pilares, a desonerao de tributos para incentivar mais investimentos no Brasil. Disponvel em http://www.brasil.gov.br/pac/medidas-institucionais-e-economicas/. Acesso em 12 de ago. 2010. 30 Informaes disponveis em http://www.brasil.gov.br/pac/relatorios/estaduais/ceara-1/ceara-10o-balanco-janeiroa-abril-de-2010. Acesso em 13 de ago. 2010. 31 Sobre essa nova fase de desapropriaes no Pecm, Srgio Brissac menciona que a partir do ms de setembro de 2008, depois da inaugurao do gasoduto do Pecm, o IDACE iniciou um trabalho de cadastro dos moradores de Bolso e Mates. Visitaram vrias casas, cadastrando famlias, medindo terrenos e inclusive fazendo avaliaes e informando aos moradores o preo avaliado dos imveis e benfeitorias. Tudo isso tem motivado uma mobilizao crescente dos Anac [...]. (BRISSAC, Srgio. op. cit., 2008, p. 15).

forma semelhante ocorrida nos anos de 1996 a 1999, ou seja, sem garantir o direito informao s populaes impactadas, diferenciou-se dessa pela resistncia dos moradores, principalmente, daqueles que j se identificavam como povo indgena Anac. Nesse sentido, diversas estratgias passaram a ser usadas pelo grupo tnico, tais como: a) articulao com o movimento indgena estadual e nacional32; b) articulao com outros grupos e movimentos sociais impactados por projetos de desenvolvimento33; c) pedidos de realizao de audincia pblica perante a Assemblia Legislativa do Estado do Cear34; d) articulao com a Rede Nacional de Advogados Populares, que passou a acompanhar as demandas do povo Anac35; e) articulaes com grupos de pesquisa e extenso das Universidades Estadual e Federal do Cear (Grupo Gros UECE; Ncleo Trabalho, Meio Ambiente e Sade para a Sustentabilidade TRAMAS e o Projeto de Extenso Centro de Assessoria Jurdica Universitria CAJU ambos da UFC); f) formulao de representaes junto ao Ministrio Pblico Federal (MPF) no Cear, que passou a acompanhar, por meio do analista pericial em

32

Nesse sentido, em 22 de setembro de 2007 ocorreu a I Assemblia do Povo Indgena Anac, a qual reuniu os povos Tapeba, Pitaguary, Potiguara, Tabajara, Trememb, Xucuru Kariri, Anac para discutir o tema Terra e impacto ambiental, oportunidade em que foram analisados os inmeros empreendimentos que esto instalados em terras indgenas, em especial, construo de estradas, usinas siderrgicas, transposio do Rio So Francisco, entre outras. 33 Mencionamos, exemplificativamente, o II Seminrio Brasileiro contra o Racismo Ambiental, realizado em 23 a 25 de maro de 2009, em Fortaleza/CE. Na oportunidade, os(as) pesquisadores(as) e movimentos sociais articulados em torno da Rede Brasileira de Justia Ambiental se dirigiram a So Gonalo do Amarante e Caucaia para conhecer a dimenso dos impactos socioambientais do CIPP e se solidarizarem com a luta Anac. O caso do Povo Anac aqui retratado est mapeado no Mapa da Injustia Ambiental e Sade No Brasil, em ; acesso em 15 Set 2010. Este Mapa de conflitos envolvendo injustia ambiental e Sade no Brasil resultado de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz e pela Fase, com o apoio do Departamento de Sade Ambiental e Sade do Trabalhador do Ministrio da Sade. Seu objetivo maior , a partir de um mapeamento inicial, apoiar a luta de inmeras populaes e grupos atingidos/as em seus territrios por projetos e polticas baseadas numa viso de desenvolvimento considerada insustentvel e prejudicial sade por tais populaes, bem como movimentos sociais e ambientalistas parceiros. Informao disponvel em < http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php>; acesso em 15 Set 2010. 34 Cita-se, nesse sentido, a audincia pblica realizada na Assemblia Legislativa, em 9 de maro de 2009, que contou com a presena dos ndios Anac, do chefe do Ncleo de Apoio Local da FUNAI, do Presidente da Comisso de Direitos Humanos da Assemblia Legislativa e de Procuradores da Repblica no Cear. 35 Por meio da Rede Nacional de Advogados(as) Populares (RENAP), Luciana Nbrega, que compunha a Rede, passou a acompanhar as demandas do povo indgena Anac, a partir de setembro de 2008, quando ocorreu a II Assemblia do Povo Indgena Anac. O trabalho desempenhado em conjunto com o grupo tnico consistia em uma assessoria ao movimento indgena, englobando a solicitao de audincias pblicas, o acompanhamento de processos administrativos perante o Ministrio Pblico Federal no Cear, participao de reunies, assemblias e outros momentos de articulao do movimento. Esse contato anterior de uma das pesquisadoras com os Anac, permintiu-nos ter acesso s informaes necessrias para compreender a dimenso do conflito envolvendo o povo indgena e o Complexo Industrial e Porturio.

Antropologia, os conflitos e as demandas do povo Anac, com mais proximidade36; g) ouvir os mais velhos e reescrever sua prpria histria, retomando prticas e memrias que haviam sido encobertas pelo medo da discriminao e do massacre colonizador37, h) incorporao das reflexes socioambientais, passando a demonstrar outras formas de desenvolvimento possveis, levadas a cabo pela produo de hortalias, pelo manejo sustentvel de folhas, razes e sementes para a produo de remdios caseiros; i) pela construo da Escola Diferenciada Direito de Aprender do Povo Anac, entre outros. Dentre as representaes protocoladas perante o MPF no Cear, uma merece destaque pelos seus desdobramentos. Trata-se de denncia sobre possvel desapropriao das terras da comunidade indgena Anac de So Gonalo do Amarante e Caucaia, por conta da ampliao do empreendimento Porturio do Pecm, plo petroqumico e metalmecnico, plo siderrgico e refinaria, na qual se solicita o envio de um Grupo de Trabalho para identificao e delimitao da Terra Indgena Anac. A referida denncia foi proposta em 18 de julho de 2008, recebendo o n Procedimento Administrativo (PA) 1.15.000.001301/2008-38.38

36

Ilustrando a afirmao, dos anos de 2003 a 2009, foram apresentadas pelos ndios Anac 13 representaes, denncias e solicitaes perante o Ministrio Pblico Federal no Cear, originando 13 processos administrativos que tramitam perante o Parquet federal. Dados obtidos em http://www2.prce.mpf.gov.br/prce/pr/pesquisaprocessual/pesquisa-processual/, utilizando a palavra-chave anac. Acesso em 20 de agosto de 2010. Destaque-se que, mesmo antes das representaes propostas, o Complexo Industrial e Porturio do Pecm j era alvo de questionamentos pelo MPF. A legalidade das obras do CIPP comeou a ser questionadas judicialmente em novembro de 1999, quando o Ministrio Pblico Federal ajuizou a ao civil pblica n. 1999.81.00.022638-8, com um pedido de suspenso das obras do Complexo Industrial e Porturio do Pecm. A principal alegao era da nulidade dos licenciamentos da obra, j que a Semace (Superintendncia Estadual do Meio Ambiente), usurpando a competncia do Ibama (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis) concedeu licenas para a construo de empreendimentos antes que estivesse sido elaborado o Estudo e o Relatrio de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para o conjunto do Complexo. Destaque-se, a fim de se compreender o impacto ambiental, em suas dimenses natural, social e cultural, incluindo-se a participao de populaes atingidas, a Rede Brasileira de Justia Ambiental estabeleceu como um de seus objetivos principais o desenvolvimento de metodologias de avaliao de equidade ambiental como alternativas aos mtodos tradicionais, como os EIAS/RIMAS [...]. Considera-se que estes ltimos tm sido incapazes de retratar a injustia ambiental contida em determinados projetos, servindo, implicitamente, legitimao de aes e impactos inaceitveis, se considerados apropriadamente as dimenses socioculturais (ACSELRAD, Henri; AMARAL MELLO, Cecilia Campello do; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que Justia Ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 3435). 37 Dentre essas prticas que foram retomadas, uma em especial merece ateno. Trata-se da retomada da dana de So Gonalo, que havia ficado 19 anos sem ser feita. Em 2007, o grupo de dana Anac recebeu o prmio Culturas Indgenas, edio Xico Xucuru, outorgado pelo Ministrio da Cultura, atravs da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. 38 Anteriormente a essa denncia, uma srie de outras haviam sido protocoladas. Na primeira, em 28 de julho de 2003, os Anac redigiram um documento, entregue 6 Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal, em Braslia, no qual afirmam: h muitas dcadas passadas, nossas regies, pegando de Gregrio a Olho dgua e de Mates a Acende Candeia; tudo era mata e essas matas eram habitadas por uma grande tribo. A tribo dos Anac. [...] Na plena certeza de que somos ndios, queremos pedir a demarcao do nosso territrio tradicional.

No mbito do aludido PA, foi elaborado, em 7 de novembro de 2008, o Parecer Tcnico n 01/08, intitulado A etnia Anac e o Complexo Industrial e Porturio do Pecm, pelo analista pericial em Antropologia do Ministrio Pblico Federal. Nele constam: a) relatos acerca do massacre na Lagoa do Banana; b) as relaes de parentesco e apadrinhamento entre as famlias Anac; c) a ameaa de destruio de referncias simblicas para os ndios Anac em virtude da construo do CIPP, a exemplo do Cemitrio do Cambeba. 39; d) a descoberta de peas arqueolgicas no local reivindicado pelos ndios Anac e a postura deles como guardies do patrimnio arqueolgico; e) a II Assemblia do Povo Anac, realizada em 18 de outubro de 2008, na qual os ndios presentes afirmaram unanimemente que lutaro pela demarcao de sua terra40; f) As atividades produtivas a que se dedicam os Anac em seu territrio tradicional. De acordo com o Parecer, o que corroborado com a nossa vivncia de campo,h um nmero significativo de pequenos agricultores, que se dedicam sobretudo ao cultivo de hortalias segundo eles so os maiores produtores de cheiro-verde e alface da regio metropolitana de Fortaleza. Tambm trabalham na lavoura de subsistncia, cultivando mandioca, feijo, milho, macaxeira, batata-doce e jerimum. Alguns trabalham na criao de gado bovino e caprino, outros so pescadores artesanais. H tambm funcionrios pblicos: professores, agentes de sade e auxiliares de servios gerais, alm dos aposentados e pensionistas. H os assalariados que trabalham nas indstrias da regio como mecnicos, pedreiros, carpinteiros e serventes. Vrios deles tem atuado como mo de obra no especializada nas obras do CIPP, principalmente em servios de terraplanagem e na instalao da tubulao do gasoduto. A progressiva insero deles na economia regional, com a realizao de atividades comuns populao de baixa renda da regio, no modifica, entretanto, o vnculo peculiar que tm com o seu territrio, tal como podemos observar na articulao do sentido de seu territrio a partir de suas narrativas, sua vivncia ritual e interaes sociais. 41

O Parecer conclui pela auto-compreenso dos Anac como grupo social distinto da sociedade envolvente e que se identifica como povo indgena; e indica a necessidade de oEsse documento, encaminhado ao MPF no Cear, gerou o PA n 0.15.000.001257/2003-15. Em virtude desse PA e de outro a ele apensado, o PA 0.15.000.001394/2003-41, o MPF recomendou FUNAI, em 11 de setembro de 2003, que fosse constitudo um Grupo de Trabalho (GT) para proceder a identificao e delimitao da terra indgena Anac. At o final do ano de 2009, no entanto, a Fundao Nacional do ndio no havia publicado portaria instituindo o GT. 39 Para os Anac, o cemitrio um local sagrado, pois o local em que uma importante liderana, o ndio Cambeba, faleceu. Depois dele, passou a ser costume entre o grupo tnico que outras pessoas fossem enterradas prximas pitombeira, rvore que marca o lugar em que o ndio Cambeba faleceu. O Jornal O Povo tambm noticiou, em 26 de junho de 2008, matria intitulada ndios temem destruio de cemitrio, na qual relata o temor dos ndios de ver seus locais sagrados destrudos. 40 Na relao dos Anac com o seu territrio, importante destacar que, dentre as reas reivindicadas, encontram-se reas de preservao ambiental, tais como as Estaes Ecolgicas I e II do Pecm e a APA do Lagamar dos Caupe, que se sobrepem ao territrio reivindicado por eles. Mesmo cientes de que a insero dessas reas pode implicar em uma demora maior no processo de demarcao, j que ampliam a rea a ser demarcada, os Anac esto dispostos a lutar por essas reas j que consideram que a sua existncia na contemporaneidade se deve ao modo como eles se relacionaram com as Estaes Ecolgicas e com o Lagamar, por eles denominado de Pai Lagamar. 41 BRISSAC, Srgio. op. cit., 2008, p. 19-20.

Governo do Estado se abster de realizar qualquer procedimento de desapropriao, at que sejam feitos estudos de identificao e delimitao da terra indgena Anac por Grupo de Trabalho nomeado pela FUNAI. Em 12 de novembro de 2008, diante da demora da Fundao Nacional do ndio em iniciar os trabalhos de demarcao da terra indgena Anac e da iminncia de desapropriao do povo que habita tradicionalmente rea declarada de utilidade pblica para fins de desapropriao para a construo do CIPP, o Ministrio Pblico Federal resolveu recomendar (Recomendao n 59/08) ao Governador do Estado do Cear a suspenso de qualquer atividade visando a desapropriao de terrenos na rea identificada at que se realizassem os estudos de identificao e delimitao da terra indgena pela FUNAI. A recomendao, entretanto, no surtiu o efeito esperado. O Governo do Estado questionou a metodologia aplicada para no Parecer Tcnico n 01/08, no reconhecendo a presena indgena na rea. Nesse sentido, foi elaborado um novo estudo, o Parecer Tcnico n 01/09, assinado pelo Prof. Dr. Jeovah Meireles, da UFC, pelo analista pericial do MPF no Cear, Srgio Brissac e pelo analista pericial da 6 Cmara de Coordenao e Reviso do MPF, Marco Paulo Schettino. O Parecer, com pouco mais de 130 pginas, incorporou a discusso socioambiental, buscando compreender as relaes estabelecidas entre o clima, os elementos ambientais disponveis na rea ocupada tradicionalmente pelos Anac e os modos de ser, fazer e produzir desse povo indgena. De acordo com caracterizaes do Parecer, a rea reivindicada pelos Anac uma rea de tabuleiro pr-litorneo, que se caracteriza pela presena de sedimentos areno-argilosos, sujeitos a chuvas espordicas e violentas, formando amplas faixas de leques aluviais, o que lhe confere parmetros hidrogeolgicos diferenciados:Esta unidade de paisagem, quando analisada com seus componentes intimamente integrados com os demais ecossistemas rios Anil e Caupe, seus afluentes aos sistemas lacustres, diversidade de solos, cobertura vegetal, condies climticas locais, relevo plano e s atividades produtivas das comunidades tradicionais, evidenciou recursos ambientais fundamentais para a continuidade das prticas produtivas. Por outro lado, esses componentes ecolgicos mostraram-se de elevada fragilidade quando analisados de modo a serem apropriados para instalao e operao das indstrias projetadas para o CIPP.42

42

MEIRELES, Antonio Jeovah de Andrade Meireles; BRISSAC, Srgio; SCHETTINO, Marco Paulo Fres. O povo indgena Anac e sua terra tradicionalmente ocupada. Parecer Tcnico n 01/09. Ministrio Pblico Federal, Fortaleza, 2009, p. 49-50.

O parecer segue mencionando que:Aliadas s propriedades geolgicas, geomorfolgicas e pedolgicas que definem com preciso a geofcies de tabuleiro arenoso, esto representadas as melhores condies ecodinmicas naturais da TI [terra indgena], favorecendo a conservao de um excelente conjunto de indicadores de elevada qualidade ambiental solos com satisfatrio contedo de matria orgnica, cobertura vegetal arbrea, excelente zona de carga para o aqfero, recursos hdricos subterrneos disponveis, arranjo paisagstico diversificado, setores com mata de tabuleiro exuberante e potencial de uso sustentado pela comunidade indgena Anac. [...] A implantao dos equipamentos relacionados com o CIPP promoveu danos socioambientais ao geossistema ambiental caracterizado pelo Tabuleiro Pr-litorneo. Estas intervenes foram realizadas na rea tradicionalmente ocupada pelos Anac que, em grande parte, no levaram em conta a permanncia da comunidade indgena e a qualidade ambiental dos sistemas de usufruto ancestral. As aes relacionadas com a implantao e operao das industrias promoveram a degradao da mata de tabuleiro (utilizada para a caa e coleta de sementes) e das lagoas e riachos e de reas antes utilizadas para atividades de subsistncia (vazantes utilizando as levadas e as lagoas). Foram implantadas sobre reas de Preservao Permanente (APPs). Para a terraplanagem e soterramento das lagoas e riachos, vrias famlias foram retiradas e extintos os sistemas ambientais de usufruto indgena.43 (grifos nossos)

Mesmo diante de tantos impactos socioambientais, no foram verificadas medidas mitigadoras para minimizar ou corrigir os danos provocados pelas indstrias em processo de implantao e em operao. Inexistem reas de replantio de vegetao nativa, de recomposio das matas ciliares e das lagoas e riachos soterrados.44 Conforme narrado pelo estudo, os danos ambientais e s atividades de usufruto da etnia Anac sero agravados com a continuidade das aes previstas no Plano Diretor do CIPP, principalmente porque a quase totalidade dos empreendimentos, tais como rodovias, ferrovias, sistema de correias para transporte, termoeltricas, siderrgicas, e outras, encontra-se inserida no territrio com maior diversidade de ecossistemas e que tradicionalmente utilizado pelos ndios Anac. Dentre esses impactos cumulativos foram mencionados: a) incremento da impermeabilizao do solo; b) extino e fragmentao dos sistemas hdricos superficiais representados pelas lagoas e riachos; c) desmatamento de extensas reas de vegetao de tabuleiro; d) danos pedolgicos; e) comprometimento da biodiversidade; f) danos socioambientais s comunidades tradicionais e tnicas.45 Desse modo, conclui:

43

MEIRELES, Antonio Jeovah de Andrade Meireles; BRISSAC, Srgio; SCHETTINO, Marco Paulo Fres. op. cit., 2009, p. 51-52. 44 Idem, p. 62. 45 Idem, p. 55-59. Caracterizando os danos socioambientais ao povo Anac, o Parecer ressalta as atividades de subsistncia relacionadas ao plantio de roados, hortalias e mandioca, realizadas atravs de prticas agrcolas

Pela complexidade dos ecossistemas ambientais definida no Tabuleiro Pr-litorneo e a diversidade dos usos tradicionais evidenciada durante as atividades de campo e relatada pelos Anac, a rea destinada ao CIPP no compatvel com a fragilidade e vulnerabilidade dos ecossistemas e com o modo de vida tradicional das populaes. As reas de preservao permanente (APP) foram degradadas pelas indstrias e, de acordo com o Plano Diretor, projees de continuidade do processo de ocupao dos ecossistemas sobre os setores de vrzea, lagoas, riachos, e mata arbrea do tabuleiro e das reas utilizadas pelos ndios, iro certamente agravar os danos ambientais definidos, Observou-se que, durante a instalao das primeiras indstrias, as comunidades foram tratadas pelos empreendedores como passivo ambiental, evidente pela necessidade de realocao de suas reas tradicionais, para a continuidade do processo de industrializao.46

Assim, considerando os danos socioambientais de elevada magnitude com a instalao do Complexo Industrial e Porturio do Pecm, o Parecer indica possibilidades de alternativas locacionais no distantes do Porto do Pecm, mas fora da zona de Tabuleiro Pr-litorneo, local de ocupao tradicional dos ndios Anac. Diante da presso para a continuidade das obras do CIPP e da iminncia de novas desapropriaes, o Ministrio Pblico Federal no Cear, com base no parecer supra-citado, ajuizou, em 10 de dezembro de 2009, a Ao Civil Pblica n 0016918-38.2009.4.05.8100, perante a 10 Vara Federal no Cear, questionando as irregularidades na implantao do CIPP, requerendo tutela jurisdicional no sentido de determinar ao Estado do Cear que: a) se abstenha de realizar qualquer ato desapropriatrio na rea reivindicada pelos Anac, b) se abstenha de proceder remoo de indivduos, c) no se executem quaisquer obras na rea decorrentes de licenas prvias ou de licenas de instalao, como medida de reguardo do territrio Anac frente implementao dos projetos do CIPP; d) que seja assegurada a continuidade dos trabalhos de identificao, delimitao e demarcao da Terra Indgena Anac.

relacionadas com o manejo e conservao do solo. Exemplifica: Sistemas pedolgicos com baixa fertilidade (terreno denominado de arisco pelos Anac) so adubados por produtos organicos, utilizando a bagana da carnaba (derivado do extrativismo vegetal, aps o beneficiamento da palha). Nas reas midas o controle da gua (perodo mais chuvoso e com maior vazo nos crregos) realizado por prticas de plantio em terraos com cavas que drenam o excesso para o leito dos riachos. Foram evidenciados roados de milho e feijo e nos canteiros de hortalias. Nas reas de vrzea a boa fertilidade do solo, associada disponibilidade de gua, favorece o desenvolvimento de atividades de agricultura de subsistncia durante todo o ano. (pg. 62). Alm desses usos, a gua utilizada para o lazer e para usos domsticos, j que as casas possuem poos artesianos e cacimbas. Nesse sentido, devido ao fato de os lenis freticos serem bastante rasos e o solo muito permevel, a contaminao desses mananciais pelas indstrias do CIPP (que afetar a qualidade da gua) ou a impermeabilizao do solo e a drenagem da gua (que afetaro a quantidade) certamente conduziro essas reas utilizadas para cultivo entre os Anac a degradao ambiental, com reflexos diretos na qualidade e na possibilidade de vida das comunidades tradicionais na regio. 46 Idem, p. 59-60

A relao dos Anac com o territrio habitado tradicionalmente se contrape ao CIPP, como territrio porturio regional e industrial metropolitano, atendendo a lgica de reproduo ampliada do capital mundial. O que est em jogo nesse conflito no s o domnio sobre o territrio, seja ele identificado como propriedade ou como posse, mas principalmente um projeto de definio do uso sobre o territrio e os seus elementos socioambientais.

Um caso de racismo ambiental? O conflito em torno do territrio reivindicado pelos ndios Anac e sobre o qual se pretende construir um Complexo Industrial e Porturio faz-nos refletir sobre a possibilidade de caracteriz-lo como um caso de racismo ambiental. A temtica do racismo ambiental, presente atualmente na fala de diversos movimentos sociais, remonta a luta do movimento negro norte-americano, a partir da dcada de 1980. Nessa poca, diversos grupos passaram a denunciar que depsitos de lixo ou indstrias poluentes costumavam se concentrar em reas habitadas pela populao negra, fazendo com o que os impactos socioambientais onerassem essa populao de forma desproporcional e desigual se comparados com os suportados pelos demais membros da sociedade. Isso significava que a populao mais afetada pelas desigualdades sociais era tambm a mais impactada pelos resultados ambientalmente degradantes do processo produtivo.47 Ao articular injustia social com degradao ambiental, o movimento negro deu visibilidade a uma relao nem sempre to visvel, apontando a impossibilidade de separar os problemas ambientais da distribuio desigual de poder nas sociedades capitalistas, o que implica tambm em uma distribuio desigual dos recursos naturais. Nesse sentido, a grande contribuio dessa nova concepo foi desnaturalizar a lgica que impe s populaes mais vulnerveis socialmente os nus ambientais do modelo de desenvolvimento implementado nos pases. Ou seja, demonstrou que o fato desses grupos serem mais impactados ambientalmente

47

De forma mais especfica, Selene Herculano e Tnia Pacheco narram que em torno de 1978, a populao negra de Warren County, Carolina do Norte, iniciou um movimento contra um aterro de resduos txicos de bifenil policlorado. Pouco a pouco, o protesto foi crescendo, at que, em 1982, uma grande manifestao levou a centenas de prises e ampliou para alm das fronteiras do estado o debate sobre a questo. Mais: a disseminao da denncia e dos debates culminou com a descoberta de que trs quartos dos aterros de resduos txicos da regio sudeste dos Estados Unidos estavam localizados em bairros habitados por negros. (HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. Introduo: racismo ambiental, o que isso? In: HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania (Orgs.). Racismo ambiental. I Seminrio Brasileiro sobre racismo ambiental. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentvel e Democrtico: FASE, 2006, p. 26-27).

decorre de uma lgica poltica que orienta a distribuio desigual dos impactos ambientais e o acesso aos recursos naturais, levada a cabo por um modelo de desenvolvimento excludente e predatrio. Nesse sentido, Juliana Malerba aponta:No difcil constatarmos a partir da prpria experincia de luta dos movimentos sociais, que so os grupos vulnerabilizados e de menor renda os que vivem em reas de risco, prximos a indstrias poluentes e que, em geral, so os primeiros que se vem privados do acesso aos recursos de que dependem para viver graas instalao de grandes projetos de explorao mineral, de gerao de energia, de plantio de 48 monocultivos etc.

A partir das denncias formuladas pelo movimento negro, outras populaes tnicas e comunidades ao redor do mundo comearam a se perceber tambm como vtimas desse processo excludente e desigual de distribuio dos impactos ambientais, passando a denunciar casos de concentrao das injustias sociais e ambientais que recaiam de forma implacvel sobre esses grupos. Contrapondo-se ao que chamaram de racismo ambiental, essas comunidades, discriminadas por sua origem ou cor, passaram a reivindicar justia socioambiental49. Juliana Malerba, esclarecendo o conceito de justia ambiental, afirma:Esse conceito estabelece que todos os grupos sociais, independentemente de sua origem, renda, classe social, sexo, raa ou etnia, devem participar integralmente do processo de deciso sobre o acesso e uso dado aos recursos naturais, de forma a garantir a proteo equnime em relao aos potenciais danos ambientais e sade que as atividades propostas para serem implementadas em seus territrios possam causar. 50

Lutando por justia ambiental, as comunidades e grupos tnicos passaram a propor uma mudana na distribuio do poder sobre os recursos naturais, demonstrando outras formas de se relacionar com o territrio, pautadas em diferentes modos de viver, de organizar e de produzir. Esses diferentes olhares e compreenses acerca da natureza so completamente desconsiderados nos projetos de desenvolvimento pensados para um territrio que representa a casa, a morada e a expresso de uma existncia diferenciada de povos indgenas, quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos, agricultores/as familiares. Esses projetos de desenvolvimento, que48

MALERBA, Juliana. A luta por justia socioambiental na agenda feminista: visibilizando alternativas e fortalecendo resistncias. In: ARANTES, Rivane; GUEDES, Vera (Orgs.). Mulheres, trabalho e justia socioambiental. Recife: SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 14. 49 Grande parte desses grupos e comunidades, no Brasil, esto articulados em torno da Rede Brasileira de Justia Ambiental, criada em 2002 e que agrega, alm de movimentos sociais, setores acadmicos e organizaes da sociedade civil. Em 2005, foi criado no mbito da Rede, um Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo Ambiental. Dentre os objetivos do grupo esto o de dar visibilidade relao entre racismo e desigualdades ambientais, desenvolvendo aes que buscam fortalecer as lutas, lideradas, sobretudo, por populaes tradicionais, indgenas e quilombolas, contra o racismo e as injustias ambientais no Brasil. Para saber mais, ver www.justicaambiental.org.br. 50 MALERBA, Juliana. op. cit., 2010, p. 16-17.

incluem barragens, mineradoras, siderrgicas, monocultivos, a pretexto de gerar emprego e renda, so acompanhados por alteraes na forma de ocupao e uso do territrio, desestruturando atividades tradicionais, promovendo a expulso de agricultores familiares, desmatamento explorao da mo de obra.51 Diante disso, afirma Malerba, so ignoradas e invisibilizadas as alternativas sustentveis de gesto dos recursos que so feitas por esses grupos e que poderiam representar, inclusive, respostas reais crise ambiental constantemente expressa pela mdia e to presente no discurso hegemnico.52 Assim, para alm de visibilizar os impactos desiguais resultantes do processo produtivo, os movimentos tecem crticas ao modelo de desenvolvimento vigente, um modelo que tratado como um programa de governo e no como um direito humano; um modelo restrito ao campo da economia, limitado ao crescimento econmico sem distribuio de riqueza; um modelo ditado por grandes corporaes e subtrado da deciso da sociedade. Um modelo que enunciado como se fosse o nico possvel e pensvel. Nesse contexto, se situa o conflito entre os ndios Anac e o Complexo Industrial e Porturio do Pecm. Sob o argumento da gerao de emprego e renda e a alavancada do Estado do Cear do seu sono eterno de subdesenvolvimento, busca-se implementar um projeto pautado na construo de indstrias de grande impacto ambiental, como siderrgicas, refinarias e termeltricas a carvo mineral, viabilizadas pela construo de uma infraestrutura que inclui porto, rodovias e gua em abundncia para matar a sede das indstrias, vinda da transposio do Rio So Francisco. No entanto, como se no bastassem os impactos naturais, a rea da construo do CIPP representa a mesma rea em que vive um grupo que se auto-identifica como Anac, que tem relaes diferenciadas com esse territrio. Essas relaes so pautadas no manejo sustentvel dos recursos, no conhecimento profundo dos ciclos naturais, na compreenso do lugar como morada dos antepassados, na produo de hortalias, nas farinhadas, nas danas e outras atividades. A fome, a misria no era algo que eles conheciam. Isso que os Anac fazem51

Os diversos exemplos, no Brasil, de implementao desses projetos de desenvolvimento levaram estudiosos como Rivane Arantes a concluir que os projetos de desenvolvimento implementados pelos governos, orientados e custeados pelas instituies financeiras multilaterais (BID Banco Interamericano de Desenvolvimento, FMI Fundo Monetrio Internacional, Banco Mundial, etc.), sob o pretexto de combater a pobreza, e pelo interesse e metodologia apenas baseados no econmico, no fizeram mais do que ampliar as condies de explorao das pessoas e das fontes naturais, precarizando ainda mais a vida dessas, e ampliando o fosso da misria. (ARANTES, Rivane Fabiana de Melo. Movimento de Mulheres e lutas socioambientais: experincias e desafios para o feminismo. In: ARANTES, Rivane; GUEDES, Vera (Orgs.). Mulheres, trabalho e justia socioambiental. Recife: SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 89). 52 MALERBA, Juliana. op. cit., 2010, p. 16.

de seu cotidiano, ressignificando suas tradies, criando e recriando projetos coletivos de futuro, sem perder a referncia do/no territrio, o que eles chamam de desenvolvimento. O caso Anac complexo, pois exemplifica um conflito ambiental territorial, cujo conceito, de acordo com Andra Zhouri e Klemens Laschefki, envolve:a sobreposio de reivindicaes de diversos segmentos sociais, portadores de identidades e lgicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial por exemplo, rea para a implementao de uma hidreltrica versus territorialidades da populao afetada. A diferena em relao aos conflitos sobre a terra que os grupos envolvidos apresentam modos distintos de produo dos seus territrios, o que se reflete nas variadas formas daquilo que chamamos de natureza naqueles recortes espaciais. 53

Para os Anac, a comunidade e o territrio, com suas caractersticas fsicas, representam uma unidade que garante a produo, a reproduo e a ressignificao do seu modo de vida, algo que resulta numa forte identidade com o espao onde se vive. O territrio por eles habitado no uma abstrao fora da experincia vivida, mas o lugar da casa, a fonte de sustento, a morada dos encantados, o lugar onde eles/elas produzem sua existncia diferenciada. Esses distintos modos de perceber o territrio implicam em uma incompatibilidade em se sobrepor, sobre o mesmo lugar, os projetos do CIPP e a rea reivindicada pelos Anac. por esse motivo que o governo do Estado declarou de utilidade pblica parte da rea tradicionalmente ocupada pelos Anac. No entanto, preciso destacar que, devido forte relao com esse territrio, o deslocamento ou a remoo do grupo, como pretendido para a implantao do CIPP, no implicaria em uma simples perda da terra, mas em uma perda da base material e simblica sobre a qual se erigem os modos de socializao do povo Anac.54 Como aponta Andra Zhouri e Klemens Laschefski, muitas vezes a nova localizao, com condies fsicas

53

ZHOURI, Andra; LASCHEFSKI, Klemens. Desenvolvimento e conflitos ambientais; um novo campo de investigao. In: ZHOURI, Andra; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 23. 54 Nesse sentido, est presente em muitas narrativas de lideranas Anac relatos sobre a perda da referncia material e simblica provocada com as primeiras desapropriaes (1996 a 1999). Muitos(as) moradores(as), principalmente os(as) mais idosos(as), morreram no deslocamento para os reassentamentos de Novo Torm, Monguba e Forquilha. Outros(as), mesmo tendo sido desapropriados(as), no conseguiram permanecer nas suas novas casas e voltaram para o territrio reivindicado como tradicionalmente ocupado. O desejo e o direito de permanecer nesse local so reivindicados em face da desterritorializao e da retirada do territrio conduzida por outrem. Refletindo sobre esses processos, Andra Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que a resistncia centrada nos lugares [...] demonstra que esses grupos empreendem em suas lutas o esforo para deixarem a condio passiva que os transforma em objetos dos movimentos de outrem (do capital), passveis de deslocalizao e relocalizao, segundo a migrao das vantagens comparativas. (ZHOURI, Andra; OLIVEIRA, Raquel. Quando o lugar resiste ao espao: colonialidade, modernidade e processos de territorializao. In: ZHOURI, Andra; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 443).

diferentes, no permite a retomada dos modos de vida nos locais de origem, sem contar o desmoronamento da memria e da identidade centradas nos lugares.55 As diferentes compreenses sobre o territrio e o modo como os custos da implantao de um projeto de desenvolvimento esto recaindo de forma desigual e desproporcional sobre uma populao j discriminada pela sociedade por sua origem tnica o que nos faz crer que o caso Anac se trata de um exemplo de racismo ambiental, na medida em que, de acordo com Selene Herculano e Tania Pacheco, o racismo ambiental no se configura apenas atravs de aes que tenham uma inteno racista, mas igualmente atravs de aes que tenham um impacto racial, no obstante a inteno que lhes tenha dado origem.56

guiza de uma concluso: o que os Anac podem nos ensinar... A realidade apontada no presente artigo e vivenciada pelo povo Anac, em So Gonalo do Amarante e Caucaia, impactado pela instalao do Complexo Industrial e Porturio do Pecm, faz-nos refletir sobre o modo como os grandes projetos de desenvolvimento tem sido implementados no Brasil. O caso Anac no o nico exemplo nesse sentido, mas ele emblemtico para demonstrar que esses projetos chegam de maneira estranha dinmica que orienta os desejos, as expectativas e os interesses dos grupos locais, desconsideram outras formas de desenvolvimento e de alternativas gestadas nos territrios, negligenciam impactos e transformam as comunidades apenas em receptculos dos passivos ambientais. Para alm de exemplificar um extenso rol de casos de racismo ambiental, preciso perceber o que podemos aprender com os Anac. Como buscamos visibilizar, h diversas lgicas de compreenso sobre os territrios. Muitas delas, focadas nas comunidades ribeirinhas, de pescadores artesanais, indgenas e quilombolas, diferem do pensamento hegemnico que se impe sobre esses grupos, modificando os seus modos de ser e fazer e estabelecendo novas ordens a pretexto de trazer desenvolvimento. Essas comunidades, contudo, tem seus prprios processos de desenvolvimento. Elas no ficam estanques nas paredes de museus, atrasadas em um tempo histrico longquo pelo qual a sociedade ocidental j passou. Elas trazem outras

55 56

HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. op. cit., 2006, p. 25. ZHOURI, Andra; LASCHEFSKI, Klemens. op. cit., 2010, p. 25.

relaes com o territrio, com o meio ambiente e com os demais, indicando para ns uma necessidade de se aprender com o saber local.57 semelhana do que ocorreu com os Anac, Andra Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que:Muitos processos de territorializao hoje em curso so processo de luta pelo significado e pela apropriao do meio ambiente (quilombolas, indgenas, vazanteiros, geraizeiros etc.) contra a apropriao global pelo capital, que transforma territrios sociais em espaos abstratos, ou seja, lugares em espaos que contm recursos naturais para a explorao capitalista. Entretanto, os grupos sociais sujeitados desterritorializao no so vitimas passivas e expressam outras formas de existncia nos lugares. Reivindicam direito memria e a sua reproduo social. E so eles que dizem que nem tudo fadado a virar espao de apropriao abstrata pelo capital [...] (p. 445) A defesa do lugar, do enraizamento e da memria destaca a procura por autodeterminao, a fuga da sujeio dos movimentos hegemnicos do capital e a reapropriao da capacidade de definir seu prprio destino. A direo desses movimentos [...] insiste em nomear os lugares, em definir-lhes seus usos legtimos, vinculando a sua existncia trajetria desses grupos. No uma luta pela fixidez dos lugares, mas sim pelo poder de definir a direo da sua mudana. (p. 445)

Nesse sentido, a grande contribuio que os Anac podem nos dar fazer-nos refletir sobre a diversidade de modos de pensar o mundo e nele projetar o futuro. A discusso que se apresenta est no campo da prpria definio dos projetos de desenvolvimento. preciso pensar o desenvolvimento, no tomando como base reflexes coloniais58 de um s desenvolvimento possvel, o ocidental capitalista. preciso pensar desenvolvimento, pensar meio ambiente, pensar propriedade e territorialidades a partir do local.5957 58

GEERTZ, Clifford. O saber local. Trad. Vera Mello Joscelyne. 11. ed. Petrpolis: Vozes, 2009, p. 249-356. Anbal Quijano diferencia colonialismo de colonialidade. Para o autor. colonialidade um dos elementos constitutivos e especficos do padro mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposio de uma classificao racial/tnica da populao do mundo como pedra angular do referido do padro de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimenses, materiais e subjetivos, da existncia social quotidiana e da escala societal. J o colonialismo refere-se estritamente a uma estrutura de dominao/explorao onde o controle da autoridade poltica, dos recursos de produo e do trabalho de uma populao determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais esto, alm disso, localizadas noutra jurisdio territorial. (QUIJANO, Anbal. Colonialidade do poder e classificao social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. So Paulo: Cortez, 2010). No obstante colonialidade e colonialismo no se confundirem, inegvel que a ideologia que sustentou o colonialismo enquanto relao poltica, foi a relao desigual de saberes e poderes, fundada na classificao social e na excluso do Outro. 59 Sobre esse tema, ler MIGNOLO, Walter. Histrias locais / projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. Acerca das relaes entre local e global, Andra Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que a crtica ao global como fora que oprime e explora s pode ser efetuada a partir do local, onde o conhecimento possvel e as trincheiras da resistncia esto em curso (ZHOURI, Andra; OLIVEIRA, Raquel. op. cit., 2010, p. 443). No mesmo sentido, acrescentam que diante do exposto, entendemos a necessidade de se colocar o desafio, a um s tempo intelectual e poltico, de resgatar os processos locais, incorporando novos marcos e categorias de anlise aos processos globais. Assim, da perspectiva que orienta esta reflexo, o global no impediria o sentimento de enraizamento, o desejo de permanecer no lugar, com a salvaguarda

Compreender o conflito que envolve os Anac exige-nos um esforo no sentido de estranhar os conceitos hegemnicos de meio ambiente como recurso natural a ser explorado, de territrio como cenrio da interveno a ser promovida pelos projetos de desenvolvimento e de um desenvolvimento como caminho nico na direo capitalista de acumulao e pilhagem de recursos sem distribuio. A resistncia Anac, centrada no territrio, este considerado como uma construo ao mesmo tempo simblica, social e material, suporte do seu ser coletivo no mundo, tambm uma proposio por novas formas de compreender a realidade. Nesse sentido, os Anac coadunam-se com o expressado por alguns autores, para quem preciso romper com as formas globocntricas de ver o mundo e propor novos parmetros de reflexo do pensar, pautados em um conhecimento baseado no lugar e fundamentado na experincia. Algo semelhante ao que Boaventura de Sousa Santos chama de dupla ruptura paradigmtica. Nesse novo paradigma, escreve Andra Zhouri e Raquel Oliveira:as categorias de lugar e territorialidade ganham novos contornos e tonalidades ao se colocarem como contraponto no provinciano e emancipador s categorias colonizantes/colonizadoras forjadas a partir de pretensas posies globais (por exemplo, desenvolvimento sustentvel e governana ambiental). [...] Esse novo conjunto de reflexes denuncia as categorias do pensamento que aprisionam o olhar a partir de um referencial da modernidade que seria eurocntrico, global e masculino, centrado nos processos do capital, do espao, da abstrao.60

O significado de territrio proposto pelos Anac acentua um carter histrico e simblico. Mais do que o cenrio, o lugar onde se vive, se produz e se reconstri o territrio onde ocorrem as dinmicas sociais que conectam o passado ao presente, esferas de pertencimento que tornam possveis a construo de identidades no tempo contemporneo nesse territrio que se d a retomada de controle sobre o prprio destino, sendo o suporte do presente e a referncia que orienta projetos coletivos de futuro.

Referncias bibliogrficas ACSELRAD, Henri; AMARAL MELLO, Cecilia Campello do; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que Justia Ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

da memria, da identidade e da vontade de se fixar, de criar razes. Esses sentimentos [...] tambm apontam para a resistncia ao avano do espao quer dizer, do capital nos lugares locus da vivencia e da histria [...] (ZHOURI, Andra; OLIVEIRA, Raquel. op. cit., 2010, p. 444). 60 ZHOURI, Andra; OLIVEIRA, Raquel. op. cit., 2010, p. 442.

AGRA FILHO, Severino Soares. Os conflitos ambientais e os instrumentos da poltica nacional de meio ambiente. In: ZHOURI, Andra; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ARANTES, Rivane Fabiana de Melo. Movimento de Mulheres e lutas socioambientais: experincias e desafios para o feminismo. In: ARANTES, Rivane; GUEDES, Vera (Orgs.). Mulheres, trabalho e justia socioambiental. Recife: SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, 2010. ARAJO, Ana Maria Matos. Urbanizao litornea nordestina: os casos de Pecm e do Arpoador Cear. Artigo apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Caxambu, 2008. BRISSAC, Srgio. A etnia Anac e o Complexo Industrial e Porturio do Pecm. Parecer Tcnico n 01/08. Ministrio Pblico Federal, Fortaleza, 2008. GEERTZ, Clifford. O saber local. Trad. Vera Mello Joscelyne. 11. ed. Petrpolis: Vozes, 2009. GOMES, Flvio dos Santos; REIS, Joo Jos. Roceiros, camponeses e garimpeiros quilombolas na escravido e na ps-emancipao. In: STARLING, Heloisa Maria Gurgel; RODRIGUES, Henrique Estrada; TELLES, Marcela (orgs.). Utopias Agrrias. Belo Horizonte: UFMG, 2008. GUIMARES, Alberto Passos. Quatro Sculos de Latifndio. 6 Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. Introduo: racismo ambiental, o que isso? In: HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania (Orgs.). Racismo ambiental. I Seminrio Brasileiro sobre racismo ambiental. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentvel e Democrtico: FASE, 2006. Instituto de Desenvolvimento Agrrio do Cear (IDACE). Plano de reassentamento de Pecm. Fortaleza, 1997. JOCA, Priscylla; NBREGA, Luciana. Direito Terra, ao Territrio e ao Meio-Ambiente do Povo do Mangue: vivemos em Curral Velho mas no queremos viver encurralados. Apresentado no III Simpsio Internacional sobre Propriedade e Meio Ambiente e III Encontro Temtico do Projeto Casadinho realizado em abril de 2010 em Fortaleza, Cear, Brasil, no prelo.

__________. Populaes tradicionais, territrio e meio ambiente: um estudo sobre a carcinicultura e a comunidade de Curral Velho Acara/Cear. Apresentado no XIX Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Ps Graduao em Direito-CONPEDI (GT Sociologia e Antropologia Jurdicas), realizado em junho de 2010 na Universidade Federal do Cear (UFC), em Fortaleza, Cear, no prelo. __________. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade de movimentos sociais. In: Marcos Wachowicz; Joo Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e meio ambiente: novos desafios para sculo XXI. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2010. __________. A Prxis de Advogados(as) Populares na Luta pela Terra e pelo Territrio. Artigo aprovado no XIX Congresso Nacional do CONPEDI a ser apresentada em outubro de 2010, em Florianpolis, Santa Catarina. MALERBA, Juliana. A luta por justia socioambiental na agenda feminista: visibilizando alternativas e fortalecendo resistncias. In: ARANTES, Rivane; GUEDES, Vera (Orgs.). Mulheres, trabalho e justia socioambiental. Recife: SOS Corpo Istituto Feminista para a Democracia, 2010. MARS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. A Funo Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. ___________. Bens culturais e proteo jurdica. Porto Alegre: Unidade Editorial da Prefeitura, 1997. MEIRELES, Antonio Jeovah de Andrade Meireles; BRISSAC, Srgio; SCHETTINO, Marco Paulo Fres. O povo indgena Anac e sua terra tradicionalmente ocupada. Parecer Tcnico n 01/09. Ministrio Pblico Federal, Fortaleza, 2009. MIGNOLO, Walter. Histrias locais / projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. MORISSAWA, Mitsue. A Histria da Luta pela Terra e o MST. So Paulo: Expresso Popular, 2001. OLIVEIRA, Joo Pacheco de. Uma etnologia dos ndios misturados? Situao colonial, territorializao e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, Joo Pacheco de (org.). A viagem da volta:

etnicidade, poltica e reelaborao cultural no Nordeste indgena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004, p. 13-42. PICANO, Marcy. A luta do povo Anac em meio ao complexo industrial do CE. Jornal Porantim, dezembro de 2006. QUIJANO, Anbal. Colonialidade do poder e classificao social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. So Paulo: Cortez, 2010. SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. So Paulo: Peirpolis, 2005. ZHOURI, Andra; LASCHEFSKI, Klemens. Desenvolvimento e conflitos ambientais; um novo campo de investigao. In: ZHOURI, Andra; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.).

Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ZHOURI, Andra; OLIVEIRA, Raquel. Quando o lugar resiste ao espao: colonialidade, modernidade e processos de territorializao. In: ZHOURI, Andra; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.