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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Faculdade de Serviço Social Mestrado em Serviço Social
Análise do REUNI: uma nova expressão da contra-reforma
universitária brasileira.
Autora: Juliana Fiuza Cislaghi
Orientadora: Prof. Dra. Elaine Rossetti Behring
Rio de Janeiro
Setembro/2010
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Faculdade de Serviço Social Mestrado em Serviço Social
Análise do REUNI: uma nova expressão da contra-reforma
universitária brasileira.
Autora: Juliana Fiuza Cislaghi
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro para obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Orientadora: Prof. Dra. Elaine Rossetti Behring
Rio de Janeiro
Setembro/2010
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CISLAGHI, Juliana Fiuza Análise do REUNI: uma nova expressão da contra-reforma universitária brasileira/ Juliana Fiuza Cislaghi, UERJ/ Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Rio de Janeiro, UERJ. 200fls. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) Universidade Do Estado do Rio de Janeiro, 2010. 1.Educação. 2. Ensino Superior. 3. Programa REUNI. I. Dissertação (Mestrado). II. Análise do REUNI: uma nova expressão da contra-reforma universitária brasileira
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Faculdade de Serviço Social Mestrado em Serviço Social
Análise do REUNI: uma nova expressão da contra-reforma universitária
brasileira.
Autora: Juliana Fiuza Cislaghi
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro para obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Orientadora: Prof. Dra. Elaine Rossetti Behring
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Elaine Rosseti Behring – orientadora
Profa. Dra. Marilda Vilela Iamamoto
Prof. Dr. Roberto Leher
Profa. Dra. Katia de Souza Lima
Rio de Janeiro
Setembro/2010
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Resumo:
Em abril de 2007 o governo instituiu o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI. O decreto caracteriza-se por um contrato de gestão que fixa rígidas metas de desempenho para recebimento de contrapartidas financeiras. Seu objetivo seria a criação de condições de ampliação de acesso e permanência no ensino superior. No entanto, o que o REUNI propõe, na prática é uma redução proporcional do número de docentes nas universidades federais bem como uma redução proporcional dos recursos de custeio, levando à redução da qualidade e da autonomia, conforme inscritas na Constituição brasileira.
6
Abstract: In April 2007 the government established the Program of Support for the Restructuring and Expansion of Federal Universities - REUNI. The decree is characterized by a management contract that sets stringent performance targets for receiving financial compensation. Its goal would be to create conditions for expanding access and retention in higher education. However, what REUNI is actually proposing is a proportionate reduction in the number of faculty in public universities as well as a proportional reduction of resource expenditure, leading to reduced quality and autonomy, as listed in the Brazilian Constitution.
8
Agradecimentos:
A minha mãe, uma daquelas que continua lutando por uma educação pública e de
qualidade, preciosa interlocutora nesse trabalho.
À minha querida mestra, professora Elaine Behring, mais uma vez excelente
companheira nessa viagem.
À professora e companheira Maria Inês Souza Bravo que constrói todo dia a
universidade que queremos para todos e por isso e por muitas outras coisas é um grande
exemplo a ser seguido.
A todos os professores e alunos do Mestrado na FSS/UERJ com quem convivi nos
últimos anos e que, entre tapas e beijos, tornaram muito mais incrível essa experiência.
Deixam a gente mais convencido que o ensino não pode ser à distância.
Aos professores Roberto Leher, Katia Lima e Marilda Iamamoto, membros da
banca pela generosidade e pelas importantíssimas contribuições.
Aos militantes do movimento docente e estudantil com quem tenho compartilhado
lutas e experiências já há tantos anos. Em particular, nesse momento, aos diretores e
funcionários da ADUFRJ sem os quais, certamente, essa dissertação não seria a mesma.
A todos os meus amigos que ajudaram (e atrapalharam) na elaboração dessa
dissertação. Não tenho como, porém, não destacar alguns que contribuíram diretamente:
Agnaldo e Elaine pela valiosa bibliografia; Graziela, Victor, e Matheus pelas muitas
conversas; Elisa, João, Sílvia, Flávia e Taty, pelo constante incentivo.
E ao Hilde, com todo meu carinho, companheiro da vida e meu primeiro e mais
entusiasmado leitor.
9
SUMÁRIO:
Lista de siglas 10
Lista de tabelas 13
INTRODUÇÃO 16
CAPÍTULO I. Mudanças no capitalismo contemporâneo 22
1.1. Financerização do capital e o papel do fundo público 30
1.2. Reestruturação produtiva. 34
1.3. Mundialização do capital: relações entre centro e periferia 37
1.4. O papel da inovação tecnológica 41
1.5. O papel da ideologia. 49
CAPÍTULO II. Formação social do Brasil e a trajetória da educação 55
2.1.A trajetória da educação no Brasil: surgimento e consolidação do 75
ensino superior.
2.2. A contra-reforma do Estado: o governo Cardoso 86
2.3. O governo Lula da Silva: continuidade ou ruptura? 99
CAPÍTULO III. A contra-reforma nas universidades 111
3.1. Novas expressões da contra-reforma: análise do REUNI 147
3.2. Reestruturação: as mudanças curriculares 152
3.3. Precarização e superexploração do trabalho docentes: a expansão 158
das matrículas e o aumento da relação professor/aluno
3.4. Redução da evasão e políticas de permanência para os estudantes 169
3.5.Um novo padrão de financiamento? 174
CONCLUSÃO. Balanço Parcial do REUNI: à guisa de conclusão 186
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 189
10
Lista de siglas
ABEPSS – Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
ABESC – Associação Brasileiras de Escolas Superiores Católicas
ABRUEM – Associação Brasileira de Reitores das Universidades Estaduais e Municipais
AI-5 – Ato Institucional nº 5
AID - Agency for Internacional Development
ADUFRJ – Associação de Docentes da UFRJ
ANDES – Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior
ANDIFES – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições do Ensino Superior
ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
ANUP – Associação Nacional das Universidades Particulares
BM – Banco Mundial
CAPES – Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEDES – Centro de Estudos Educação e Sociedade
CNPq – Conselho Nacional de Pesquisa
CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
COFINS – Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social
CONAES – Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior
CONTEE – Confederação Nacional de Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino
CSLL – Contribuição sobre o Lucro Líquido
CSN – Companhia Siderúrgica Nacional
C&T – Ciência e Tecnologia
DA – Diretório Acadêmico
DCE – Diretório Central dos Estudantes
DDE – Docente com Dedicação Exclusiva
EAD – Ensino à Distância
ENADE – Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
ENC – Exame Nacional de Cursos
FASUBRA – Federação dos Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras
11
FIES – Programa de Financiamento Estudantil
FINATEC – Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos
FMI – Fundo Monetário Internacional
FURGS – Fundação Universidade do Rio Grande do Sul
GERES – Grupo Executivo para a Reforma do Ensino Superior
GT – Grupo de trabalho
GTPE – Grupo de Trabalho em Políticas Educacionais
IES – Instituições de Ensino Superior
IFES – Instituições Federais de Ensino Superior
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano
IR – Imposto de Renda
ISSQN – Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MARE – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado
MEC – Ministério da Educação
MPOG – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
NASDAQ - National Association of Securities Dealers Automated Quotations
OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômicos
OMC – Organização Mundial do Comércio
OS – Organização Social
OSCIP - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
PAIUB – Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras
P&D – Pesquisa e Desenvolvimento
PND – Plano Nacional de Desenvolvimento
PNE – Plano Nacional de Educação
PROUNI – Programa Universidade para Todos
REUNI – Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais
SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
SINAES – Sistema de Avaliação do Ensino Superior
12
UBES – União Brasileira de Estudantes Secundaristas
UNB – Universidade de Brasília
UNDIME – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
UNE – União Nacional dos Estudantes
UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
UFF – Universidade Federal Fluminense
UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora
UFPR – Universidade Federal do Paraná
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
TCU – Tribunal de Contas da União
TIC – Tecnologias de Informação e Comunicação
13
Lista de tabelas e gráficos: Gráfico 1 – Recursos empenhados pelo conjunto das universidades brasileiras para
fundações de apoio - Movimento líquido – (2002/2007) 138
Gráfico 2 – Orçamento das IFES de 1989 à 2007 – todas as fontes 145
Gráfico 3– Recursos próprios aplicados em investimentos nas IFES de 1990 à 2002 146
Gráfico 4 - Relação entre o orçamento total das IFES e o PIB anual de 1989 à 2007 146
Tabela 1 – Ampliação do número de docentes e regime de trabalho – UFF e UFRJ 159
Tabela 2 – Comparação da relação professor/ aluno entre UFF e UFRJ pelos critérios
do TCU 160
Tabela 3 - Comparação da previsão de ampliação da relação professor/ aluno na UFF
e UFRJ pelos critérios do REUNI 160
Tabela 4 – Comparação do DPG da UFF e da UFRJ 162
Tabela 5 – Comparação da ampliação de matrículas entre UFF e UFRJ prevista
por ano, de acordo com as metas do REUNI 162
Tabela 6 – Comparação da previsão de ampliação de matrículas entre UFF e
UFRJ no total, de acordo com as metas do REUNI 162
Tabela 7 – Ampliação do banco de professores equivalentes prevista e executada
na UFF e na UFRJ 163
Tabela 8 – Ampliação do banco de professores equivalente prevista e executada
na UFF e na UFRJ: percentuais 163
Tabela 9. Ampliação das matrículas, total e noturna, prevista e executada
na UFF e na UFRJ 164
Tabela 10. Crescimento das matrículas na graduação presencial entre 2002 e 2008 167
Gráfico 5 – Vagas oferecidas nas Instituições de Ensino Superior em 2008 168
Tabela 11– Comparação das metas de conclusão do REUNI entre UFF e UFRJ 169
Gráfico 6 – Orçamento do programa Assistência ao estudante de graduação
no total das IFES 171
Tabela 12 – Previsão de verbas REUNI do MEC em valores nominais 178
Tabela 13 – Recursos totais de custeio das IFES que participam do REUNI 178
Tabela 14 – Impacto do REUNI no total do orçamento de custeio destinado
às IFES participantes do REUNI 178
14
Tabela 15 – Recursos totais de investimento das IFES que participam do REUNI 179
Tabela 16 – Impacto do REUNI no total do orçamento de investimento
destinado às universidades federais 179
Tabela 17- Repasse do REUNI para a UFRJ entre 2007 e 2010 180
Tabela 18 - Diferença entre o Acordo de Metas e o repasse anual pela LOA do
REUNI: total entre 2007 e 2010 na UFF 180
Tabela 19 – Dívida anual da UFRJ – Custeio e Investimento 182
Tabela 20 – Orçamento executado em 2009 e previsto para 2010 na UFRJ, por fonte 183
Tabela 21 – Comparação entre recursos previstos pelo REUNI e necessários
ao Plano Diretor na UFRJ 184
16
INTRODUÇÃO:
O trabalho ora apresentado tem como preocupação central a universidade, num
momento de profundos ataques contra-reformistas que afetam não só essa instituição como
a totalidade dos direitos e políticas sociais conquistados historicamente pela classe
trabalhadora, em acordo com as necessidades do capitalismo em sua fase madura.
A partir da década de 1970, o padrão keynesiano/fordista de organização do trabalho,
financiamento público e regulação estatal dá lugar a um processo mundial de liberalização
financeira, reestruturação produtiva e mundialização das economias financeirizadas, o que
significou um novo fluxo para os fundos públicos. A disputa entre capital e trabalho pelos
fundos públicos passa a ser francamente vencida pelo capital que, com o discurso da crise
fiscal do Estado, tem monopolizado a utilização de seus recursos através de mecanismos
como a dívida pública, isenções fiscais e até financiamento direto a investimentos de infra-
estrutura.
Se no período do fordismo os Estados capitalistas se constituíram em Estados de Bem
Estar, ainda que em diferentes graus quantitativos e qualitativos de acordo com a luta de
classes interna e com cada inserção na dinâmica mundial, o ataque da burguesia tem
significado um retorno ao Estado caritativo ou assistencialista. Ou caminhando para o pior
cenário imaginado por Oliveira (1988) nas suas teses sobre o anti-valor1
Dentro desse contexto, a educação como política pública tem características comuns a
outras políticas sociais. Assim como as políticas da Seguridade Social (assistência social,
saúde e previdência social), a educação responde contraditoriamente tanto às necessidades
de valorização do capital, ao preparar a força de trabalho para suas atividades, quanto aos
trabalhadores, ao socializar o conhecimento historicamente acumulado. A educação torna-
se uma política pública, portanto, como conquista dos trabalhadores e ao mesmo tempo
reivindicação do capital, para que a capacitação para o trabalho deixasse de ser um custo da
produção, tornando-se salário indireto. Mota (2008, 24) levanta como hipótese que essa
característica, comum às políticas de educação, torna as políticas de Seguridade Social
: “uma mescla
altamente perigosa de assistencialismo e repressão” (OLIVEIRA, 1988, 46).
1 Incorporamos as elaborações de Oliveira (1988) sobre o fundo público apresentadas nas suas teses sobre o anti-valor associadas as críticas de Behring (2008, 54) que refutam exatamente a idéia do capital como anti-valor, dado que o mesmo “participa de forma direta e indireta do ciclo de produção e reprodução ampliada do valor” negando, em conseqüência a tese de inaplicabilidade da lei do valor no capitalismo monopolista.
17
alvos prioritários de “reformas” em períodos de crise do capital, pois, em resposta a queda
das taxas de lucro, o capital se utiliza das políticas sociais para manter-se hegemônico.
Na nossa hipótese não só as políticas de Seguridade Social, mas o conjunto de políticas
sociais, onde a educação se destaca, são alvo de mudanças em momentos de crise. Seja para
darem maior suporte à valorização e à realização do capital através de uma maior
funcionalidade e uma menor abrangência das políticas públicas, racionalizando a utilização
do fundo público para esse fim, seja para redefinir as condições sócio-políticas de resposta
do capital, reestruturando seus mecanismos de reprodução social.
“A educação institucionalizada (...) serviu ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes. (...) O fato de a educação formal não poder ter êxito na criação de uma conformidade universal não altera o fato de, no seu todo, ela estar orientada para aquele fim” (MÉZSÁROS, 2005, 35-56).
Esse papel que cumpre na reprodução social não torna a educação formal, como política
implementada e/ou regulada pelo Estado, por si só nem capaz de sustentar o sistema do
capital nem de fornecer soluções emancipadoras radicais. Sua função é produzir a
conformidade e o consenso tanto quanto for possível dentro dos seus limites
institucionalizados. Dessa forma, as reformas dentro da educação, por mais progressivas
que sejam não desafiam a lógica do capitalismo enquanto uma mudança institucional
isolada. Elas podem eliminar os piores efeitos da ordem reprodutiva do capital, mas não
eliminar seus fundamentos causais. “É por isso que é necessário romper com a lógica do
capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional
significativamente diferente” (MÉZSÁROS, 2005, 27). Ou como diria Fernandes (1979,
15): “Se me colocasse diante dos nossos problemas educacionais e dos nossos dilemas culturais em termos de minhas convicções, só recomendaria uma saída, que é fornecida pelo socialismo.”
No entanto, a reivindicação da educação pública, numa conjuntura onde a privatização
das políticas sociais, antes realizadas pelo Estado, é fundamental para a valorização do
capital, torna-se uma bandeira de transição com potencial irruptivo. A disputa da
consciência dos trabalhadores e da construção de conhecimento crítico, referendado nas
necessidades da maioria, também passa pela garantia da educação, e particularmente das
18
universidades, como espaço público e autônomo. A progressiva privatização sobrepõe os
interesses privados aos públicos, passando a situá-la fora dos limites da democracia, mesmo
formal.
Por tudo isso, a disputa pela reforma educacional, ainda que não possa alterar a
estrutura do capitalismo, é importante, na medida em que pode fortalecer o capital ou o
trabalho tanto do ponto de vista ideológico quanto, de forma indireta, na organização da
produção e na produção e difusão do conhecimento.
Em outra medida, com o desenvolvimento histórico da tecnologia na produção a
necessidade de educação e capacitação para os trabalhadores cresceu e tornou-se elemento
de solicitação ao Estado, como mecanismo de ascensão social para o trabalho. Segundo
Romanelli (2009), o ensino superior em sociedades em fase de modernização tem como
função precípua a definição ou redefinição da situação dos indivíduos na estrutura social.
Por isso é no ensino superior que há maior “cooperação” internacional sendo por onde as
reformas educacionais se iniciam. Netto (2002) aponta ainda que é atribuído ao ensino
superior um papel irradiador e suas mudanças afetariam graus inferiores do sistema
educacional.
Os elementos apresentados demonstram a importância do estudo das “reformas”
educacionais, em particular no ensino superior, como mecanismos fundamentais nos ajustes
necessários ao capitalismo em momentos de crise e que são inevitavelmente atravessados
pela luta de interesses entre capital e trabalho.
Desde a década de 1990, momento de ascensão das políticas neoliberais no Brasil, as
universidades públicas têm sido ameaçadas com inúmeros projetos contra-reformistas, que
obtiveram vitórias apenas parciais, graças à resistência de setores organizados da
comunidade universitária.
Em abril de 2007, o Ministério da Educação do governo Lula da Silva instituiu o
decreto 6.096 que criava o REUNI, Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e
Expansão das Universidades Federais. Supostamente garantindo a autonomia universitária,
já que a adesão ao programa era voluntária, o REUNI atropelou os processos de debate e
embate entre reforma x contra-reforma, aparentando ser uma intervenção limitada e pontual.
De conteúdo, o Programa promete concursos públicos para pessoal e aportes de
custeio e investimento em troca do cumprimento de duas metas: a elevação das taxas de
19
conclusão da graduação para 90% e o aumento da relação entre docentes e estudantes, que
atualmente gira em torno de 1 para 14, para 1 para 18. Com isso, o objetivo seria dobrar as
vagas para estudantes nas universidades públicas em 5 anos, objetivo louvável em princípio.
O decreto, aparentemente restrito a 5 anos, no entanto, anuncia mudanças estruturais
nas universidades públicas brasileiras e, por conseguinte, alterações profundas na produção
de conhecimentos e na formação de força de trabalho intelectual no país.
O imbricamento de múltiplos fenômenos, inerente ao capitalismo, leva a necessidade de
buscar cada vez mais a totalidade que relaciona as contra-reformas universitárias, a captura
do fundo público, a ideologia pós-moderna, a desregulamentação do trabalho e mais tantas
variáveis típicas do capitalismo maduro. Por isso, o primeiro capítulo trata de reconstituir
essas variáveis, sobretudo aquelas que rebatem na organização da produção e da cultura e
afetam o papel das universidades.
Nossa opção é, inserindo na discussão do capitalismo na sua fase madura, buscar as
especificidades brasileiras, de sua inserção dependente e sua formação histórica, além das
questões particulares da luta de classes local. O segundo capítulo trata, então, do
desenvolvimento histórico do capitalismo no Brasil e de como esse desenvolvimento afetou
a educação como política pública, com um recorte específico para o governo Cardoso e
Lula da Silva, por se tratar do período fundamental estudado.
E por fim, o terceiro e último capítulo constitui-se de uma pesquisa documental,
bibliográfica e orçamentária para debater o papel cumprido pela política do REUNI no
contexto definido, a partir da hipótese de que o mesmo aprofunda e mantém a lógica de
“reforma” universitária do capitalismo monopolista, iniciada no Brasil durante o governo
militar, com inflexões que refuncionalizam as universidades para as necessidades do atual
modelo de acumulação. Hipótese apoiada por Leher (2005, 212) para quem “as atuais
formas de mercantilização e privatização do ensino superior não podem ser pensadas como
processos desvinculados da modernização conservadora [do regime militar] e de seu
modelo universitário”.
Partimos do princípio de que são três as funções básicas das universidades hoje: a
formação de força de trabalho intelectual, o desenvolvimento de ciência e tecnologia e da
ideologia. As universidades estão sendo, dentro dessas funções, modeladas pelas
necessidades do capital, e no caso brasileiro, pelas necessidades do capital num país
20
periférico. O ataque do capital às universidades é realizado com a mediação do Estado e
passa por três questões que nos parecem fundamentais: o desfinanciamento público, a
privatização da gestão por meio das fundações, com retrocesso na autonomia e na
democracia e políticas de ensino que interferem diretamente no mercado com a
massificação e remodelamento da força de trabalho intelectual. Trata-se de uma
universidade que só reforça a condição de heteronomia e dependência do país em relação
ao capitalismo central apesar do transformismo no discurso daqueles que elaboram e
implementam esse projeto. As agendas universitárias vêm se adequando, com a
cumplicidade de parte de seus trabalhadores, estudantes e dirigentes, às necessidades do
capital privado e do Estado como seu indutor.
Compactuaremos com a tese de Behring (2003) na afirmação de que as reformas
neoliberais, ao contrário de períodos anteriores do capitalismo, não são parte de uma
modernização conservadora que signifique, ainda que nos marcos burgueses, “saltos para
frente”. Ao invés disso tratam-se de contra-reformas que retrocedem o desenvolvimento
econômico e os direitos conquistados no país2
2 Por isso o uso de aspas no termo reforma quando nos referimos a, na verdade, a retrocessos, contra-reformas, apesar do governo se utilizar de forma transformista do termo. “Com as palavras todo o cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas” (SARAMAGO, 2005, 65).
. Acreditamos, no entanto, ser necessário
estudos mais aprofundados sobre o governo Lula da Silva que possam referendar tal tese
nesse período, já que originalmente foi formulada durante o governo Cardoso. Com isso
não queremos dizer que há um processo de ruptura entre os dois governos, mas certamente
existem inflexões que precisam ser medidas. Esperamos que esse trabalho contribua para
isso.
Colocando-nos claramente comprometidos com a causa da universidade pública,
autônoma e democrática, a intenção desse trabalho é produzir novos subsídios que
fortaleçam a disputa de hegemonia, a favor de um projeto societário vinculado aos
interesses dos trabalhadores. Se a universidade laica do século XIX é a ruptura com a Igreja,
a libertação dos mercados é a nova laicização necessária ao conhecimento socialmente
referenciado na maioria da população.
22
CAPÍTULO I
Mudanças no capitalismo contemporâneo:
O início do século XX traz para o capitalismo novos tempos. A livre concorrência
conduzida pela mão invisível reguladora do “mercado perfeito”, na explicação da economia
política clássica, distanciou-se definitivamente da realidade do sistema. A intensa
industrialização levou à concentração do capital em empresas cada vez maiores,
centralizadas cada vez em menos mãos. Essa concentração trouxe a necessidade de cada
vez maiores montantes de capital, dificultando o surgimento da concorrência. Dessa
concentração crescente do capital surgem os monopólios. Segundo Lênin (2008, 21) “o
aparecimento do monopólio devido à concentração da produção é uma lei geral e
fundamental da presente fase do desenvolvimento capitalista”.
Quando a concorrência transforma-se em monopólio a produção socializa-se entre
seus poucos donos. Esses passam a monopolizar a força de trabalho qualificada, as vias de
transporte e comunicação. Com isso monopoliza-se também os inventos, o progresso
técnico e as patentes.
A monopolização e a cartelização, controlando preços, organizando a produção e
distribuindo os lucros, passam a ser a base da vida econômica. O capitalismo transforma-se,
nessa fase, em imperialismo.
O imperialismo, chamado por Lênin a fase superior do capitalismo, modifica
também o papel dos bancos. De meros intermediários dos pagamentos, os bancos têm suas
operações ampliadas, dada a grande necessidade de crédito dos monopólios. Essas
operações também passam a se concentrar num reduzido número de instituições financeiras.
Poucos bancos passam a dispor de todo capital-dinheiro dos monopólios, pequenos patrões
e do salário dos trabalhadores. Passam a “(...) primeiro conhecer com exatidão a situação dos diferentes capitalistas, depois de controlá-los, exercer influência sobre eles mediante a ampliação ou a restrição de crédito, facilitando-o ou dificultando-o e, finalmente, de decidir inteiramente sobre seu destino, determinar sua rentabilidade, privá-los de capital ou permitir-lhes aumentá-lo rapidamente e em grandes proporções etc” (LENIN, 2008, 35).
O superdimensionamento da esfera financeira da economia com a fusão do capital
industrial com o capital bancário através da posse de ações, sendo o primeiro cada vez mais
23
dependente do segundo, também é característica central do período monopolista. Em uma
relação dialética os bancos também são responsáveis pela aceleração da concentração do
capital e da formação dos monopólios, e passam a interferir ativamente no desenvolvimento
da indústria, na inovação tecnológica.
Lênin (2008) afirma que além de bancos e indústrias o Estado também é parceiro
nas sociedades do monopólio. O Estado não é uma invenção do capital. Ele está
intrinsecamente relacionado aos interesses da propriedade privada e no capitalismo passa a
ter características específicas para garantir o interesse dos proprietários de capital e
mercadoria, assegurando parte das funções superestruturais que “podem ser genericamente
resumidas como a proteção e a reprodução da estrutura social (as relações de produção
fundamentais) à medida que não se consegue isso com processos automáticos da economia”
(MANDEL, 1982, 333). Mandel inclui entre as funções do Estado capitalista já estudadas
amplamente pelos autores marxistas - a função repressiva e a função integradora - uma
terceira: a de providenciar as condições gerais de produção.
“Esse domínio funcional do Estado inclui essencialmente: assegurar os pré-requisitos gerais e técnicos do processo de produção efetivo (...) providenciar os pré-requisitos gerais e sociais do mesmo processo de produção (...) e a reprodução continuada daquelas formas de trabalho intelectual que são indispensáveis à produção econômica, embora elas mesmas não façam parte do processo de trabalho imediato (...)” (MANDEL, 1982, 334).
Uma característica importante do Estado burguês que o distingue das outras formas
de Estado, e que é parte inerente do modo de produção capitalista, é seu papel na separação
entre as esferas pública e privada. A concorrência entre vários capitais coloca para o Estado
a função de mediador, imputando-o uma autonomia relativa. Essa mediação, porém, tem
conseqüências nos interesses particulares dos diversos grupos de capitalistas que precisam
assim ter um papel ativo na política para defendê-los (MANDEL, 1982, 334).
Quando o capitalismo passou da fase concorrencial para a fase monopolista essa
configuração do Estado sofreu inflexões. Primeiro porque a centralização do capital
coincidiu com o fortalecimento dos partidos da classe trabalhadora e a necessária concessão
de direitos políticos como o sufrágio universal. O Estado passou então a mediar conflitos de
classe no seu interior obrigando a uma maior centralização de poder dentro dos espaços
institucionais. Esse crescimento do poder político das organizações de trabalhadores levou
24
também o Estado a avançar numa legislação social com uma dupla função: reduzir a
pressão dos trabalhadores concedendo direitos, e garantir a reprodução ampliada do modo
de produção através da reprodução da força de trabalho por meio de salários indiretos
(MANDEL, 1982; OLIVEIRA,1988).
Portanto, o que Lênin não assistiu foi que, após a II Guerra Mundial, uma guerra
imperialista pela disputa de territórios, o capital teve que dar um passo atrás nos países
centrais através de uma partilha mais igualitária dos fundos públicos organizada pelos
Estados, não só para neutralizar a luta de classes, mas como estratégia para a ampliação dos
mercados. Mas o que Lênin previu e que encaixa-se perfeitamente no fordismo como
modelo de acumulação é que os grandes lucros monopolistas poderiam “subornar as classes
inferiores para conseguir sua aquiescência” (2008,104). Ou seja, exportando a
superexploração da força de trabalho para os países dependentes, através das políticas de
colonização e dominação típicas do imperialismo, e reconfiguradas no pós-guerra por uma
nova partilha do mundo entre os vencedores, foi possível num determinado momento
histórico elevar as condições de vida de parte do proletariado dos países centrais com
políticas de benefícios das empresas e políticas sociais do Estado que reduziram os custos
da reprodução.
Harvey (2003) divide o período monopolista/imperialista em três fases. A primeira
de 1870 a 1945, é precedido pela primeira crise de sobreacumulação capitalista3
“Suas características essenciais envolveram a divisão forçosa do globo em terrenos definidos de posse colonial ou de influência exclusivista (...), a pilhagem
entre 1846
e 1850 na Europa que teve como saída o investimento infra-estrutural de longo prazo e as
expansões geográficas. Em meados de 1860, esse meio de absorver excedentes se esgotou
pelas tensões internas na Europa e nos Estados Unidos (que iniciava uma guerra civil). Foi
necessária uma reordenação espacial para a exportação dos capitais europeus excedentes,
levados a força para o exterior para investimentos e comércio especulativos. Para resolver o
paradoxo entre a necessidade de expansão espacial e as bases de organização em Estados-
nação, o imperialismo da época mobilizou forças nacionalistas racistas, baseadas em
doutrinas de superioridade racial, que legitimaram o que Harvey chama de acumulação via
espoliação, num processo de colonização violento e opressivo.
3 O autor define a crise de sobreacumulação como “um excedente de capital para o qual não há meios lucrativos de emprego.” (2003, 43).
25
de boa parte dos recursos do mundo pelas potências imperiais e a instauração disseminada de virulentas doutrinas de superioridade racial – ações que se fizeram acompanhar de um fracasso total e previsível em resolver o problema do capital excedente (...)” (HARVEY,2003, 46).
A Grande Depressão de 1929 é o ápice desse fracasso que culmina na II Guerra
Mundial entre as potências imperialistas de 1939 a 1945, período de ascenso dos Estados
Unidos como grande potência imperialista mundial.
Após a II Guerra Mundial o imperialismo chega a sua segunda fase que irá de 1945
a 1970, marcado pela hegemonia norte-americana. Dominantes economicamente, lideravam
a tecnologia e a produção e possuíam um aparato militar apenas comparável ao da União
Soviética (que saía da guerra com bastante debilidade).
O imperialismo norte-americano é, segundo Harvey, marcado por uma dominação
que combina relações comerciais privilegiadas, patronato, clientelismo e coação encoberta,
respeitando a independência formal dos países criando um “sistema mais aberto de
colonialismo sem colônias” (HARVEY, 2005, 36). Internamente se utilizaram da ascensão
soviética – que se expandiu territorialmente após a guerra - para inaugurar um período
conhecido como Guerra Fria. A doutrina de McCarthy acabou com a liberdade de
expressão, perseguindo a tudo que pudesse ser comunista, uma política chamada por
Harvey de “paranóide”. A unidade do país contra a ameaça externa do comunismo foi o que
deu bases a um pacto social entre as classes, elemento central para a implementação do
chamado modelo fordista.
Ainda que o modelo de Ford tenha se iniciado em suas fábricas em 1914 foi apenas
após a II Guerra Mundial, com a vitória sobre o nacional-socialismo, que o fordismo se
consolidou como regime de acumulação imposto diretamente em países ocupados e
indiretamente por meio do Plano Marshall e do investimento direto norte-americano. Mais
do que apenas uma aplicação da divisão do trabalho taylorista e de inovações tecnológicas e
organizacionais o fordismo caracterizava-se por ser um novo modelo baseado na produção
e no consumo em massa, com “um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma
nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia,
em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista”
(HARVEY, 2006,121). Associado ao keynesianismo, que pregou a maior participação do
Estado na implementação de políticas anti-cíclicas, o fordismo foi hegemônico até a década
26
de 1970. No entanto, sua aplicação diferenciava-se em cada país. Mundialmente ele
significou a formação de um mercado de massa global permitindo a exportação da
capacidade produtiva excedente dos Estados Unidos e globalizando um mercado de
matérias primas baratas.
Nesse período, os Estados Unidos escondem seus ímpetos imperialistas por trás de
um pretenso universalismo, protegendo econômica e militarmente todas as elites do globo.
Assim, se envolvem em golpes militares por todo o mundo, incluindo o Brasil, e sustentam
regimes no Oriente Médio e no extremo Oriente. Sua dominação envolvia imperialismo
cultural, cultivando um pró-americanismo global onde “se descrevessem como o pináculo
da civilização e um bastião dos direitos individuais” (HARVEY, 2005, 53) apesar de
promotores de regimes sangrentos em todo o mundo.
Vários acordos, a exemplo de Bretton Woods4
Essa segunda etapa se encerra no início dos anos 70 com mais uma crise de
sobreacumulação. A capacidade interna de absorver excedentes nos Estados Unidos
começa a se estagnar no final dos anos 1960, acirrando a competição econômica, chegando
o Japão e a Alemanha a afetarem e até superarem os Estados Unidos em algumas áreas. Os
altos custos com a guerra do Vietnã, pressão de uma economia de guerra permanente do
complexo industrial-militar, e o consumo doméstico excessivo levaram a uma crise fiscal
foram realizados, a fim de estabilizar
o sistema financeiro internacional e várias instituições como o FMI, o Banco Mundial e a
OCDE, foram projetados para coordenar o desenvolvimento do capitalismo. Em todo
mundo há um forte crescimento com formação de novas tecnologias, capital fixo e amplas
melhorias infraestruturais. Um período de desenvolvimentismo keynesiano em países
centrais que formaram Estados de Bem-Estar Social expandindo o consumo a setores da
classe trabalhadora e provocando “efeitos secundários fora do núcleo, se bem que de modo
atenuado e desigual, por todo mundo não-comunista” (HARVEY, 2005,55). Assim:
“O problema da sobreacumulação do capital, embora sempre ameaçador, foi contido até o final dos anos 1960 por uma mistura de ajustes internos e de ordenações espaço-temporais tanto dentro como fora dos Estados Unidos” ” (HARVEY, 2005,55).
4 “O acordo de Bretton Woods, de 1944, transformou o dólar na moeda-reserva mundial e vinculou com firmeza o desenvolvimento econômico do mundo à política fiscal e monetária norte-americana” (HARVEY, 2006, 131).
27
do Estado intervencionista keynesiano. Para resolver, os Estados Unidos passam a imprimir
mais dólares o que resulta numa pressão inflacionária mundial, uma explosão da quantidade
de capital fictício e o colapso das estruturas internacionais fixas forjadas no período
anterior, acabando com toda a estrutura do sistema de Bretton Woods. Além disso, a
organização do trabalho, sob o regime fordista do período, levou à pressão por crescentes
gastos sociais do Estado e gastos com salários nos centros mais dinâmicos do capital, que
significaram uma redução dos lucros.
Sob todos esses efeitos, o capitalismo passa à estagflação, entrando em uma longa
onda de estagnação, com tendência a queda das taxas de lucro, que dura da década de 1960
até os dias de hoje. Aspectos fundamentais desse período, como apontam Duménil e Lévy
(2003,15), são a diminuição do crescimento e os baixos investimentos, o conseqüente
aumento do desemprego, a inflação, a redução do ritmo do progresso técnico, a lentidão da
progressão dos salários e a diminuição da rentabilidade do capital. Outra característica do
período é a queda da produtividade do capital, isto é, “obtém-se uma quantidade cada vez
menor de produto para o mesmo estoque de capital (capital fixo) ou, de maneira
equivalente, investe-se uma quantidade maior de capital para o mesmo produto.”
(DUMENIL E LEVY, 2003, 20) Segundo os mesmos autores, ainda que os salários tenham
se reduzido nesse período, essa redução não foi o suficiente para compensar “o declínio das
performances do progresso técnico” (DUMENIL E LEVY, 2003, 20).
Nesses marcos passamos à terceira fase do capitalismo monopolista/imperialista,
caracterizado pela hegemonia neoliberal. A resposta neoliberal articulada ocorre nos anos
1990 com o Consenso de Washington5 apesar das iniciativas que preparam essa hegemonia
virem desde o final dos anos 1970 inicialmente com o governo Thatcher na Inglaterra, o
governo Reagan nos EUA e com Pinochet na periferia do capital.6
5 “(...) o Consenso de Washington é um modelo de desenvolvimento de cunho neoclássico, elaborado pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional e pelos think tanks de Washington e que, agora, passa como sendo a única interpretação racional possível dos problemas de estabilização e crescimento” (NUN apud MOTA, 2008, 79). Compreende as seguintes medidas: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de mercado, abertura comercial, eliminação das restrições ao investimento estrangeiro direto, privatização das estatais, desregulamentação econômica e trabalhista, defesa do direito à propriedade intelectual (MARQUES, 2010,7). 6 Para Harvey o esmagamento da greve dos mineiros na Inglaterra e dos controladores de vôo nos EUA pelos governo de Thatcher e de Reagan, no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980, são o marco de uma nova relação da burguesia, através do Estado, com os trabalhadores que abre caminho para a retirada de direitos do neoliberalismo. Podemos fazer paralelo com a greve do petroleiros nos anos 1990 no Brasil, derrotada pelo governo Cardoso, nosso marco no avanço da neoliberalização.
28
Para Dumenil e Levy o “acontecimento emblemático da nova ordem social” é o que
chamam de “golpe de 79”: a decisão do Banco Central americano de aumentar as taxas de
juros para controlar a inflação, sem se importar com as conseqüências sociais para os
demais países o que consideram “uma violência política” (DUMENIL E LEVY, 2005, 85).
O “golpe de 79” foi especialmente contundente nos países periféricos, que desde 1976
vinham se aproveitando das aberturas de crédito derivadas dos “petrodoláres”, ou seja, de
dinheiro resultante da alta do petróleo. Os altos juros tornaram esse endividamento cada vez
maior, culminando nas crises da dívida na América Latina e tornando a década de 80 uma
“década perdida” para esses países do ponto de vista econômico (CHESNAIS, 2005). Além
disso, as dívidas reconfiguraram e aprofundaram a dominação dos países centrais sobre os
periféricos, tema que retomaremos mais a frente.
A teoria de Harvey (2005) também defendida por Chesnais (2005) e Dumenil e
Levy (2005) é que o sentido fundamental da virada neoliberal é a retomada da hegemonia
da burguesia. Durante o período do Estado de Bem-Estar no pós-guerra, a burguesia
permitiu, claro que também devido a uma correlação de forças de avanço dos trabalhadores
organizados, uma maior distribuição das riquezas7. Essa situação foi tolerada enquanto
havia crescimento econômico estável. Com a crise dos anos 1970, a queda das taxas de
lucro significou perdas importantes para a classe burguesa. As políticas neoliberais surgem
assim como “um projeto político de restabelecimento das condições de acumulação do
capital e de restauração do poder das elites econômicas” (HARVEY, 2005, 27). Apesar de
não ter sido muito eficaz no primeiro objetivo, no que tange a retomada de um crescimento
econômico estável, teve sucesso no segundo ampliando significativamente a desigualdade
social no mundo todo.8
Significa dizer que o neoliberalismo enquanto teoria econômica foi na prática
vencido pelo pragmatismo político da classe dominante. Se havia entre os teóricos
neoliberais alguma utopia de reorganização mundial do capitalismo essa foi vencida pelo
projeto burguês. Isso justifica porque a receita neoliberal foi aplicada de forma tão desigual
7 Segundo Harvey (2005) o 1% da população mais rica dos EUA concentrava 16% da renda nacional antes da Segunda Guerra passando a 8% no pós-guerra e sofrendo acentuada queda nos anos 1970. Com a neoliberalização os 1% mais ricos voltam a deter 15% da renda nacional no fim do século. 8 A relação da renda entre os 20% da população dos países mais ricos e os 20% da população dos países mais pobres do globo era de 30 para 1 em 1960 chegando a 74 para 1 em 1977 (HARVEY, 2005, 27).
29
entre os países e nas diversas conjunturas, chegando a perder todos os seus pressupostos
básicos se fosse de interesse da classe dominante.
Dumenil e Levy (2005, 87) colocam o neoliberalismo como o segundo período do
capitalismo hegemonizado pela finança, sendo o primeiro o período entre o fim do século
XIX e a crise de 29. Esse novo período de hegemonia das finanças iniciado na década de
1970 tira partido da crise estrutural do período. Para Dumenil e Levy:
“A forte desaceleração do crescimento, o aumento da instabilidade macroeconômica (...), o crescimento do desemprego e da inflação acumulativa não puderam ser vencidas pelas políticas keynesianas de reativação da economia, que foram provadas ao longo da década anterior. O problema era de outra natureza: a crise estrutural resultava de uma queda gradual da taxa de lucro nos principais países capitalistas desenvolvidos, mais ou menos desde os anos 60” (2005, 89).
Antunes (1999, 30) concorda que o deslocamento do capital para as finanças foi
conseqüência da redução das taxas de lucro geradas pela produção, por sua vez decorrentes
da crise do período, crise estrutural de superprodução do capital. Se o objetivo da
financeirização era a busca por lucros suas origens estruturais estão na acumulação
industrial obtida no período de expansão anterior, quando famílias com maiores rendas
começaram a aplicar suas poupanças em títulos de seguro de vida, bem como a obrigação
dos assalariados abrirem contas em bancos (CHESNAIS, 1999, 37).
Comungamos com a tese de que a financeirização é elemento básico do capitalismo
neoliberal, marcando um “novo imperialismo” nos termos de Harvey ou uma
“mundialização financeira” nos termos de Chesnais, de onde se originam as características
societárias contemporâneas, tentativa de resolver, ou postergar, a crise atual do capital,
sobretudo no que tange a retomada das taxas de lucro.
A crise do padrão de acumulação fordista é, portanto, apenas expressão
fenomênica da crise estrutural, fruto da sua incapacidade de responder a retração do
consumo, resposta ao início do desemprego estrutural. A reação burguesa iniciada no fim
dos anos 70 vai impor, então, uma nova forma de estruturação da produção com
conseqüências para a regulação do trabalho e da reprodução social, que recoloca o capital
em uma avassaladora ofensiva na busca por superlucros.
Outras marcas da ofensiva do capital na crise atual são a corrida tecnológica, uma
nova divisão do trabalho e da relação entre centro e periferia do capital e o ajuste neoliberal,
30
“especialmente com um novo perfil das políticas econômicas e industriais desenvolvidas
pelos Estados Nacionais, bem como um novo padrão de relação Estado/sociedade civil,
com fortes implicações para o desenvolvimento de políticas públicas, para a democracia e
para o ambiente intelectual e moral” (BEHRING, 2003, 34), elementos que
aprofundaremos agora.
1.1. Financerização do capital e o papel do fundo público
Iamamoto (2007) aponta a retomada da financeirização do capitalismo na
contemporaneidade, como o eixo estruturante da configuração atual das relações sociais.
Chesnais (2005) parte do mesmo pressuposto, de que na configuração atual específica do
capitalismo o capital financeiro encontra-se no centro das relações econômicas e sociais. A
reestruturação produtiva, com a marca da flexibilização nas relações entre trabalho e capital,
a captura do fundo público através dos mecanismos da dívida justificando a redução do
gasto público para os trabalhadores e as mudanças na esfera cultural, fundamentada no
ethos pós-moderno, são dimensões do fenômeno que tem por objetivo alimentar a
engenharia do mercado financeiro, reproduzindo de forma ampliada o capital.
A mundialização do capital tem na esfera financeira do capital sua ponta de lança. O
capital nascido no setor produtivo tem seus rendimentos, formados na troca, canalizados em
grande parcela para o mercado financeiro. Nessa esfera vários processos, em grande parte
fictícios, incham o montante nominal dos ativos financeiros. Apesar da financeirização
estar necessariamente vinculada ao processo produtivo, já que apenas na esfera da produção
cria-se valor, o mercado financeiro aparece personificado. Três dimensões da ascensão do
setor financeiro se relacionam a essa personificação: a sua relativa autonomização em
relação à produção e a intervenção das autoridades monetárias, o fetichismo das formas de
valorização do capital de natureza especificamente financeira e a determinação de seus
traços por seus próprios operadores (CHESNAIS, 1998).
Para Chesnais, o lugar que hoje ocupa o capital financeiro se afirmou a partir da
intervenção dos Estados imperialistas quando liberaram e desregulamentaram a
movimentação dos capitais, desbloqueando seus mercados financeiros, além de
implementar políticas que estimulassem e facilitassem a centralização das poupanças das
famílias e dos lucros não-reinvestidos do capital. Com isso expande-se a acumulação
31
financeira 9
9 Entende-se por acumulação financeira, segundo Chesnais (2005, 37) “a centralização em instituições especializadas de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não consumidas, que tem por encargo valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos financeiros – divisas, obrigações e ações- mantendo-os fora da produção de bens e serviços.”
através de novos organismos como fundos de pensão, fundos coletivos de
aplicação, sociedades de seguros e bancos que administram sociedades de investimento.
Para Dumenil e Levy (2005) a finança caracteriza-se por uma nova forma de
propriedade que evolui historicamente da propriedade familiar e individual das empresas,
gestadas por seus proprietários até a propriedade financeira, constituída através da posse de
títulos, e caracterizada pelo poder concentrado nas instituições financeiras. Cria-se uma
nova classe de administradores, o que explica a complexidade das estruturas de classe
contemporâneas.
Esses novos proprietários situam-se em exterioridade à produção, mesmo quando
estão no cerne dos grupos industriais. Chesnais (2005) não nega a interpenetração entre o
capital industrial e o capital portador de juros, porém coloca um elemento a mais. A
aparente exterioridade do capital portador de juros em relação à produção é, segundo o
autor, “um dos traços mais originais da contra-revolução social contemporânea”
(CHESNAIS, 2005, 54). O administrador-financeiro moldado pelos interesses das finanças
substitui o administrador-industrial e difere-se dele pelos seus objetivos, criando novas
normas de rentabilidade.
“A taxa de lucro necessária para a realização das normas do ‘valor por acionista’ conduz a rejeição de todos os projetos de investimento que não garantirão a taxa exigida” (CHESNAIS, 2005, 58).
As conseqüências que decorrem dessa nova racionalidade que prima pela retirada
dos lucros da esfera produtiva para alimentar a esfera financeira são a redução dos
investimentos produtivos e da participação dos salários nos custos da produção.
Segundo Chesnais (2005), a redução da parte dos lucros voltada para o setor
produtivo tem duas consequências: a redução da capacidade de consumo dos assalariados e
a reduzida propensão em investimentos. A lógica financeira é contraditória com
investimentos de longo prazo como as inovações tecnológicas, o que acaba tornando-a um
obstáculo ao aumento da produtividade. Daí o fracasso do neoliberalismo na reversão das
baixas taxas de crescimento.
32
Dumenil e Levy (2005) reforçam essa tese ao afirmar que a lógica do modelo
neoliberal é desfavorável à acumulação e ao crescimento, lógica que se caracteriza pela
primazia do pagamento de juros e dividendos a acionistas e credores, em prejuízo do
investimento produtivo.
Essa aparente exterioridade do capital portador de juros da produção “tende também
a modelar a sociedade contemporânea no conjunto de suas determinações” (DUMENIL E
LEVY, 2005, 61). Gera uma propensão a “demandar da economia mais do que ela pode
dar” o que é uma das forças motrizes da desregulamentação do trabalho e das privatizações.
O superdimensionamento da esfera financeira do capital também reproduz as
relações de dependência entre o capitalismo central e periférico. Isso porque as finanças de
mercado são mais excludentes e concentradas que em períodos anteriores, ou seja “a idéia
de uma irradiação planetária pelos capitais não corresponde a realidade do mundo
contemporâneo” (DUMENIL E LEVY, 2005, 13). Como o essencial das ações emitidas
pelas empresas são aplicadas em suas próprias bolsas, os países periféricos ficam em
desvantagem, pois não possuem nem mercados emergentes que possam ser integrados nem
empresas capazes de atuar nos mercados dos grandes países industrializados.
Os Estados nacionais, por sua vez, além de não deterem mais o controle e a
supervisão da esfera financeira, são os responsáveis pelo principal mecanismo de captação
dos mercados financeiros: os impostos diretos e indiretos pagos ao Estado e transferidos
para a esfera financeira a título de pagamento de juros ou da própria dívida pública. Está
aberto, assim, o canal que vai redirecionar o fundo público. Ao invés de investido, pelo
menos parcialmente, em políticas públicas universais, como no período do pós-guerra, ele
agora é aplicado diretamente no mercado financeiro. Desnecessário dizer que são os países
periféricos os maiores afetados por esse mecanismo, já que são os maiores portadores de
dívidas10
10 Segundo Harvey (2005, 175) “calcula-se que, a partir de 1980, mais de 50 Planos Marshall (...) foram remetidos pelos povos da periferia aos seus credores no centro. “Que mundo peculiar’, suspira Stiglitz,’em que os países pobres estão na prática subsidiando os mais ricos’”.
. Outros mecanismos transformam o Estado no neoliberalismo num “Robin Hood
às avessas” dentro dos territórios nacionais, como a revisão das leis tributárias, cada vez
mais regressivas, e o oferecimento de subsídios e isenções fiscais às pessoas jurídicas.
(HARVEY, 2005,177).
33
Além de alterar o fluxo do fundo público nacional em favor das finanças, a dívida
pública aprofunda a relação de dominação entre os países centrais e periféricos. Os países
periféricos foram chantageados 11
11 Os argumentos de chantagem têm sido bastante eficazes ideologicamente para obter consentimento da população sobre as contra-reformas e os cortes orçamentários o que não significa que não contam com a cumplicidade das burguesias locais.
para adequarem-se às políticas de ajuste estrutural
ditadas pelo FMI e pelos demais organismos internacionais, pela força de suas dívidas.
“Nos anos 80, a dívida pública permitiu a expansão dos mercados financeiros ou a sua ressurreição em outros países (...) Ela é o pilar das instituições que centralizam o capital portador de juros. Em seguida, a dívida pública gera pressões fiscais fortes sobre as rendas menores e com menor mobilidade, austeridade orçamentária e paralisia das despesas públicas. (...) foi ela que facilitou a implantação das políticas de privatização nos países chamados “em desenvolvimento”(CHESNAIS, 2005,42)
O Estado, portanto, se impõem enquanto agente ativo dos interesses das classes
dominantes na retomada das taxas de lucro. Segundo Dumenil e Levy (2005, 87) “não se
pode deduzir que o Estado tenha perdido toda a função. O neoliberalismo se impôs sob a
proteção do Estado”. É ideológica e falsa a idéia do Estado neoliberal como um Estado
mínimo. O Estado é mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital. Ou como
aponta Fontes (2010, 17) um “Estado pitbull”, forte para defender o capital das ameaças
dos trabalhadores, mas sem gorduras, ou seja, sem políticas sociais. É o Estado que vai
cumprir o papel de administrar as crises com política anticíclicas, “estimular” os negócios e
ao mesmo tempo controlar a classe trabalhadora, assolada pelo desemprego estrutural e
pela redução da proteção social, através do superdimensionamento da sua face penal
(WACQUANT, 2003).
Para Dumenil e Levy (2005, 88), o Estado num regime democrático caracteriza-se
por sintetizar compromissos da classe dominante com outras frações de classe para garantir
sua legitimidade e o poder, o que não muda a natureza do poder estatal mas “as
modalidades de seu exercício”. O neoliberalismo destrói, dentro dessa lógica, o
compromisso entre a classe dominante e os assalariados, do período do keynesianismo.
34
1.2. Reestruturação produtiva: A retomada das taxas de lucro passa necessariamente por uma maior exploração dos
trabalhadores, extraindo deles maior taxa de mais valia. Ainda que a financeirização do
período tenha inchado esse setor da economia, é no mundo da produção que o valor se cria
por meio do trabalho. Era necessário, portanto, na estratégia da burguesia reestruturar a
produção e o trabalho para responder a crise estrutural do capital que, como já apontamos,
tinha no esgotamento do modelo fordista/keynesiano uma expressão de aparência do
fenômeno.
A tese de Antunes (1999, 47) é de que a reestruturação produtiva decorre da
concorrência inter-capitalista, onde em momentos de crise intensificam-se as disputas entre
os grupos transnacionais e monopolistas, e da necessidade de responder à luta de classes,
controlando a resistência dos trabalhadores. Para o autor o ressurgimento de ações
ofensivas da classe trabalhadora, após o período mais consensuado do Estado de Bem-Estar
Social, é elemento central na crise do fordismo. O objetivo da reestruturação era o aumento
da produtividade e da extração da mais-valia relativa, pela intensificação do trabalho, sem
abdicar da ampliação da mais-valia absoluta, com o aumento das jornadas.12
Emerge, então, uma nova forma de produção, em muitas características importada
ou inspirada no modelo japonês
13
12 Segundo Antunes (1999, 33) “apesar do significativo avanço tecnológico encontrado (que poderia possibilitar, em escala mundial, uma real redução das jornadas ou do tempo de trabalho), pode-se presenciar em vários países, como a Inglaterra e o Japão, para citar países do centro do sistema, uma política de prolongamento da jornada de trabalho.” 13 Em relação à proporção em que as características do modelo japonês são incorporadas nas diferentes empresas e países: “claro que sua adaptabilidade em maior ou menor escala, estava necessariamente condicionada às singularidades e particularidades de cada país, no que diz respeito tanto às suas condições econômicas, sociais, políticas, ideológicas, quanto como à inserção desses países na divisão internacional do trabalho”(ANTUNES, 1999, 57). Aprofundaremos essas questões nos próximos capítulos.
que por isso passa a ser chamada de modelo toyotista,
inaugurando o período da acumulação flexível.
Vários teóricos interpretam distintamente esse fenômeno. Antunes (1999, 48)
expõem três interpretações diversas. A primeira tem uma visão positiva das mudanças, a
tese da especialização flexível. Autores como Sabel e Piore acreditam que a acumulação
flexível ao possibilitar o aproveitamento das qualidades criativas dos trabalhadores,
reduzem a alienação característica do período fordista, sendo mais favoráveis ao trabalho.
35
A segunda tese, de autores como Tomaney, defende que as mudanças não alteram
as configurações existentes no trabalho fordista, mas intensificam as tendências existentes.
Outros autores acreditam que o toyotismo traz elementos de ruptura e continuidade
com o modelo anterior, mantendo intactos, porém, o caráter e os pilares fundamentais do
modo de produção capitalista, tese a qual filia-se Antunes (1999) e que adotaremos nesse
trabalho. Em suma: “o padrão de acumulação flexível articula um conjunto de elementos de continuidade e descontinuidade que acabam por conformar algo relativamente distinto do padrão taylorista / fordista de acumulação” (ANTUNES, 1999, 52, grifos do autor).
Esse modelo fundamenta-se num padrão de produção, organização e tecnologia
avançado. Introduz novas técnicas de gestão da força de trabalho que baseiam-se no
trabalho em equipes que passa a “requerer, ao menos no plano discursivo, o ‘envolvimento
participativo’ dos trabalhadores, em verdade uma participação manipuladora e que preserva,
na essência, as condições do trabalho alienado e estranhado” (ANTUNES, 1999, 52). Ao
contrário do fordismo, onde o trabalho organizava-se apenas para explorar a capacidade
física dos trabalhadores, no toyotismo o capital passa a se apropriar também da capacidade
criativa, de cooperação, da organização dos trabalhadores. Entra em cena o trabalhador
polivalente, multifuncional. Segundo Bihr (1998):
“Um trabalhador que raciocina no ato de trabalho e conhece mais dos processos tecnológicos e econômicos do que os aspectos estritos do seu trabalho imediato é um trabalhador que pode ser tornado polivalente. (...) Cada trabalhador pode realizar um maior número de operações, substituir outras e coadjuvá-las.”
A polivalência combinada com a horizontalização da estrutura das empresas está a
serviço do capital, reduzindo o tempo de trabalho e intensificando a exploração num
modelo distinto do fordismo. Segundo Antunes (1999, 56):
A apropriação das atividades intelectuais do trabalho, que advém da introdução da maquinaria automatizada e informatizada, aliada a intensificação do ritmo do processo de trabalho, configuraram um quadro extremamente positivo para o capital, na retomada dos ciclos de acumulação e na recuperação de sua rentabilidade.
36
A isso associa-se um modelo de disciplinamento, que busca a adesão do trabalhador
numa relação de confiabilidade onde o trabalhador “veste a camisa” da empresa entregando
sua subjetividade ao capital. Ao mesmo tempo, uma característica central da reestruturação
é a desregulamentação e a retirada de direitos dos trabalhadores.
Enquanto os trabalhadores do centro da produção, mais qualificados, ainda
conseguem melhores remunerações, amplia-se o número de trabalhadores excluídos de
direitos e de estabilidade. O processo de liofilização organizacional 14
Tal divisão tem significado para os trabalhadores uma redução da sua consciência
de classe e, conseqüentemente, redução de seus instrumentos de organização. Esse tem sido
significou um
enxugamento das unidades produtivas através da terceirização de tudo que não é central em
sua especialidade. Os métodos e procedimentos da empresas centrais se expandem para
seus fornecedores e quanto mais o trabalho distancia-se das empresas centrais mais ele se
precariza.
Antunes divide os trabalhadores, analisando a reestruturação do mercado, entre
intelectualizados e subproletários. Para ele, ao mesmo tempo em que o capitalismo passa a
necessitar de mais trabalhadores altamente qualificados, que se desenvolvem junto com os
avanços tecnológicos, por outro lado empurra a maioria dos trabalhadores para a
subproletarização, vagas sem regulamentação, sem acesso a direitos, e sem necessidade de
qualificação especializada. Ainda que esses últimos estejam fora do centro do processo de
criação de valores de troca “é este conjunto de segmentos, que dependem da venda da sua
força de trabalho, que configura a totalidade do trabalho social, a classe trabalhadora e o
mundo do trabalho” (ANTUNES,1999, 52). Continuam, portanto, apesar da aparência
imensamente fragmentada, todos aqueles despossuídos dos meios de produção, fazendo
parte da mesma classe trabalhadora, contribuindo para a produção e reprodução do valor.
Harvey (2006) divide essa “nova” classe trabalhadora em centrais e periféricos.
Enquanto os trabalhadores centrais possuem ainda contratos estáveis com possibilidades de
promoção e bons salários, para os trabalhadores periféricos surgem duas categorias: os
empregados em tempo integral, sujeitos à alta rotatividade, baixa qualificação e salários
instáveis e os subcontratados, trabalhadores em tempo parcial, sem contrato ou com
contratos temporários e sem direitos trabalhistas.
14 Categoria batizada por Castillo (1996) e utilizada por Antunes (1999).
37
um fator objetivo fundamental para a construção de uma nova ideologia do capital,
adequada a este novo modelo de acumulação, que possibilita a construção de um novo
consenso e dominação sobre os explorados.
Associa-se a isso o desemprego chamado estrutural, conseqüência do pouco
investimento produtivo que gera baixas taxas de crescimento, o que amplia o exército
industrial de reserva dificultando ainda mais sua organização e a reivindicação por direitos
já que o trabalhador empregado torna-se um “privilegiado”, apenas por essa condição.
1.3. Mundialização do capital: relações entre centro e periferia:
É da natureza do capital, desde seu início uma permanente expansão globalizada
gerando o “desenvolvimento necessário de um sistema internacional de dominação e
subordinação” (MEZSAROS, 2002, 111), criando uma hierarquia entre Estados nacionais.
Mandel (1982) chama a atenção de que sob o modo de produção capitalista
convivem outros modos de produção mais atrasados além de estágios variados dele mesmo.
Essa combinação, já chamada por Trotsky de desenvolvimento desigual e combinado do
capital, compõe uma unidade orgânica, “um sistema articulado de relações de produção
capitalistas, semicapitalistas e pré-capitalistas, ligados entre si por relações capitalistas de
troca e dominados pelo mercado capitalista mundial” (MEZSAROS, 2002, 32). Relações de
produção não-capitalistas ou semi-capitalistas são auxiliares ao desenvolvimento do capital,
não escapam a sua órbita e não tendem, necessariamente, a tornarem-se capitalistas no
decorrer linear do tempo. Pelo contrário, Mézsaros (2002, 114) afirma que em qualquer
“modo de controle sociometabólico humanamente viável”, onde inclui-se o socialismo,
vigora a lei do desenvolvimento desigual. Porém na ordem do capital esse desenvolvimento
desigual é destrutivo, dada a constante centralização e concentração do capital que engole
unidades menores de produção e gera taxas diferenciadas de exploração no centro e na
periferia.
Oliveira (2003), discordando da idéia de “modo de produção subdesenvolvido”, diz
que a existência de uma relação dual entre “atrasado” e “moderno”, para explicar setores
mais e menos capitalistas da produção, só existe formalmente. Na realidade os chamados
“setores atrasados” alimentam o crescimento dos “setores modernos”. Dessa forma, o
38
subdesenvolvimento não pode ser entendido apenas como um traço histórico superável,
mas como parte da formação capitalista.
Isso explica, sobretudo, a relação entre os países centrais e periféricos, também
chamados de países desenvolvidos e “em desenvolvimento”. Países periféricos, geralmente
ex-colônias, tiveram suas riquezas utilizadas na acumulação primitiva de capital dos países
centrais. Mandel (1982, 40) coloca que a Revolução Industrial só foi possível no Ocidente
devido a trezentos anos de pilhagem sistemática de ouro, prata e capital monetário do resto
do mundo por meio da colonização. A proibição pelas metrópoles do desenvolvimento de
manufaturas locais gerou uma relação desigual de troca de mercadorias (mercadorias de
alta produtividade do centro por outras de baixa produtividade das periferias), o que fazia
escoar a riqueza das periferias para o centro. Associado a isso, a existência de grandes
reservas de trabalho a preços muito baixos levou a uma acumulação de capital com
composição orgânica baixa.
No primeiro período do imperialismo, chamado por Mandel de imperialismo
clássico, a progressiva mundialização do mercado levou a uma nova relação, ainda mais
dependente entre periferia e centro. Passou a ser a exportação de capitais do centro para a
periferia, e não os esforços das burguesias locais, o principal impulsionador do
desenvolvimento econômico. Com isso o desenvolvimento econômico dos países
periféricos foi sufocado, pois todo excedente passou a ser expropriado pelo capital
estrangeiro e as classes dominantes locais foram consolidadas no meio rural, impedindo a
acumulação local. Assim, Mandel (1982, 37) afirma que não foi a má vontade do
imperialismo nem a incapacidade social ou racial nas periferias o que impediu seu
desenvolvimento, mas o fato da acumulação de capital industrial ter, por motivos
econômicos, se tornado menos lucrativo, menos seguro que em campos como o comércio
exterior, especulação imobiliária e da terra, usura e empresas de serviços da lúmpen-
burguesia e da pequena burguesia como corrupção, loterias, jogo e etc.
A aliança entre as burguesias agrárias locais e o capital imperialista manteve no
campo relações pré-capitalistas de produção limitando a expansão do mercado interno,
tolhendo a industrialização e dirigindo para setores não industriais a acumulação primitiva
nacional. Os países periféricos tornaram-se complementares no desenvolvimento dos países
centrais.
39
Harvey (2005, 155) aponta a necessidade do capital se expandir geograficamente
para resolver sua necessidade de valorizar capital excedente. Para o autor a exportação
tanto de força de trabalho como de capital excedente para criar nova capacidade produtiva
em novas áreas é o que possibilita por maior tempo a capacidade de absorção de excedentes.
No entanto os países periféricos que recebem esses excedentes tendem a criar um “ajuste
espacial”, isto é, uma lógica interna própria passando a competir com os países
metropolitanos. Para evitar essa tendência as metrópoles criam formas de impor
dependência para que a periferia produza o que desejam na quantidade em que desejam.
Essa complementaridade significou a concentração da produção desses países em
matéria primas vegetais e minerais. A necessidade dos países centrais de uma produção em
larga escala e com baixos preços criou a necessidade de subsunção real da produção ao
capital. Isso em países marcados por uma baixa composição orgânica gerada por um preço
tão baixo da força de trabalho que o emprego de capital fixo não podia competir. O atraso
anterior tornou-se dependência, aumentando a defasagem industrial, a diferença de
produtividade com o centro, e para os trabalhadores o subemprego e o desemprego em
massa.
A exploração de força de trabalho barata, por algum tempo fonte de superlucros,
aumentou tanto a diferença de produtividade entre centro e periferia, ou seja, entre a
produção de manufaturados e matérias-primas, que levou a um aumento de preços das
últimas. Fato que tanto gerou a crise do capitalismo concorrencial como a do imperialismo
clássico. A resposta do capital foi o deslocamento da produção de matérias-primas para o
centro, industrializando esse setor da economia com novas tecnologias, nova organização
do trabalho e relações de produção.
Os resultados, no início do capitalismo tardio são o aumento ainda maior da
diferença entre centro e periferia do capital, com a redução dos mercados de matérias
primas gerando crises sócio-econômicas no “Terceiro Mundo” que levaram a rebeliões,
revoltas e libertações. O capital deixou de se transferir do centro para as periferias.
Nesse momento o capital monopolista passa a não somente produzir ele mesmo as
matérias primas como a produzir nos próprios países periféricos bens que poderiam ser
vendidos nos mercados locais a preço de monopólio. Os países centrais passam a vender
capital fixo para as periferias, exportando tecnologia obsoleta.
40
“(...) a industrialização em sendo tardia, se dá num momento em que a acumulação é potencializada pelo fato de se dispor, no nível do sistema mundial como um todo, de uma imensa reserva de “trabalho morto” que, sob a forma de tecnologia, é transferida aos países que iniciaram o processo de industrialização recentemente” (OLIVEIRA, 2003, 67).
Para Mandel (1982, 43) essa é a base da “ideologia do desenvolvimento”
promovida pela burguesia metropolitana nos países periféricos. Ideologia que é a base do
“desenvolvimentismo” que serviu no Brasil para desviar a atenção do problema da luta de
classes exatamente num momento onde ela se agudizava pela passagem da base agrária
para a base urbano-industrial (OLIVEIRA, 2003).
O aumento da produtividade não leva, na periferia, à incorporação de novas
necessidades sociais aos salários apesar da queda do custo da reprodução da força de
trabalho. Isso ocorre, segundo Mandel (1982), dada à existência histórica de um imenso
exército industrial de reserva, que cresce ainda mais com a industrialização, e que leva a
uma desfavorável correlação de forças, já que dificulta muito a organização dos
trabalhadores.
Com isso o mercado interno em países periféricos é sempre limitado, sendo uma
barreira à expansão do capital, apesar de elemento importante para a manutenção de taxas
médias de lucro altas mundialmente.
Essa industrialização da periferia não significou uma homogeinização mundial do
capitalismo, segundo Mandel (1982, 43), e sim, tão somente uma nova relação entre
desenvolvimento e subdesenvolvimento, novas diferenças entre acumulação de capital,
produtividade e extração de excedente.
No neoliberalismo as diferenças entre centro e periferia se agudizam. As taxas de
crescimento mundial não foram retomadas nesse período e, ao contrário do período de
crescimento anterior que tendeu a ser convergente no plano internacional, o parco
crescimento atual se concentrou em duas zonas apenas, na década de 90: os EUA, até a
crise da Nasdaq em 2001, e os chamados “tigres asiáticos”, até o começo da crise financeira
em 1997. Atualmente os investimentos só chegam aos países periféricos que ainda possuem
matérias-primas que o centro necessita e países como a China e a Índia, que possuem força
de trabalho qualificada, disciplinada e muito barata (CHESNAIS, 2005, 67).
41
1.4. O papel da inovação tecnológica
Na fase de intensificação da taxa de utilização decrescente do valor de uso das
mercadorias (MÉZSÁROS, 2002) todas as mercadorias devem ter um tempo de vida útil
cada vez mais reduzido. Com isso acelera-se o circuito produtivo ampliando a velocidade
da produção de valores de troca, fundamental para a reprodução ampliada do capital.
Mandel (1982), em O capitalismo tardio, reserva um capítulo para a discussão sobre
a aceleração da inovação tecnológica. A necessidade do capital de reduzir o tempo de
rotação do capital fixo faz com que cada vez mais se necessite da ciência, para que as
rápidas inovações tecnológicas tornem, cada vez mais rapidamente, obsoletas as
maquinarias.
Essa é a inovação tecnológica: colocar as invenções desenvolvidas pelos homens a
serviço da valorização do capital.
“O capital investido na esfera da pesquisa e desenvolvimento que segue ou precede a produção efetiva só consegue a valorização na medida em que o trabalho ali realizado seja produtivo” (MANDEL,1982, 178).
Isto é, que o conhecimento produza novas mercadorias. A atividade científica só é
força produtiva quando incorporada imediatamente a produção, senão se limita a uma força
potencial que tende a refluir por restrições ou dificuldades afetadas pela necessidade de
valorização do capital.
Ainda que Marx já tivesse apontado essa necessidade do capital, segundo Mandel a
organização plena e sistemática da pesquisa e do desenvolvimento como um negócio
específico sob bases capitalistas só se manifesta na sua plenitude no capitalismo tardio.
Para tanto é necessária a aceleração da própria invenção, desenvolvendo o trabalho
intelectual, e a rápida aplicação dessas invenções às mercadorias para que assim se tornem
inovações tecnológicas. Foi na segunda revolução científica, graças ao crescimento de
investimento em pesquisas demandado pela II Guerra Mundial, que se garantiram as
condições objetivas de superestrutura que possibilitaram esses avanços. Essa superestrutura
se manifestou no aumento dos setores de pesquisa das companhias bem como na expansão
de empresas especializadas que vendem suas pesquisas, como por exemplo alguns
laboratórios.
42
São essas rendas tecnológicas, segundo Mandel, uma das principais fontes de
superlucros, ou seja, lucros acima do lucro médio. Entretanto, os riscos desses
investimentos em pesquisa são altos, na medida que nem todas as invenções poderão ser
aplicadas. Outro risco do investimento é a possibilidade de que a empresa concorrente
desenvolva inovação simultânea.
Esses riscos só podem ser assumidos, portanto, por aqueles que dispõem de grande
capital. Considerando que os monopólios não estão livres da concorrência de produtos mais
desenvolvidos que os seus, se tornam eles hoje os grandes investidores em pesquisa e
desenvolvimento. A contradição, segundo Mandel, é que ao mesmo tempo os monopólios
tolhem o progresso técnico ao estreitar e diversificar o desenvolvimento das pesquisas, já
que é necessário para seus lucros acelerar a valorização.
Esse crescimento da demanda por pesquisa e desenvolvimento, com o ingresso do
trabalho intelectual na esfera da produção, significou um aumento significativo da demanda
por trabalhadores intelectuais altamente qualificados fazendo crescer e transformar o perfil
das universidades para que se adequassem as necessidades do capital.
A universidade clássica das duas fases anteriores do capitalismo servia, nas palavras
de Mandel, para “essencialmente dar aos filhos mais inteligentes (...) da classe dirigente a
educação clássica desejada e os meios de dirigir eficazmente a indústria, a nação, as
colônias e o exército” (1979, 41). A universidade era, portanto, um instrumento de
educação e meio para a coesão ideológica da classe dominante. O ensino profissionalizante
era secundário.
A “crise” da universidade tradicional humanista não se dá, segundo Mandel (1979),
por razões formais, isto é, excesso de estudantes, alto custo da formação, falta de
infraestrutura material, nem por razões sociais globais como o crescimento do desemprego
entre a intelectualidade ou a necessidade do uso ideológico da ciência. A verdadeira crise
da universidade tem razões diretamente econômicas: se dá pela necessidade de adequação
dos currículos, estrutura e escolha dos estudantes às necessidades de aceleração das
inovações tecnológicas. No capitalismo tardio, a universidade passa por transformações
dada “a necessidade de força de trabalho especializada no plano técnico na indústria e num
aparelho de Estado em crescimento (...)” (MANDEL, 1979, 42). A universidade desse
período se massifica e passa a ser espaço de especialização profissional para setores da
43
classe trabalhadora que procuram, através do ensino superior, ascensão social. A terceira
revolução industrial necessita da entrada de trabalhadores intelectuais na produção,
supervisionando as máquinas e mesmo organizando o processo de trabalho. Segundo
Mandel: “A aceleração da inovação tecnológica implica uma integração em larga escala do trabalho intelectual no processo de produção. Enquanto nas fases anteriores do capitalismo o trabalho intelectual estava em larga medida limitado à esfera da superestrutura social, revela-se hoje cada vez mais orientado para a infraestrutura da sociedade” (MANDEL, 1979, 43).
O autor chama esse processo de proletarização do trabalho intelectual. O capital
passa a necessitar de produtores com capacidades específicas mais qualificadas tanto para a
produção como para a circulação de mercadorias. A fragmentação e alienação do trabalho
penetram, assim, a esfera da ciência e da produção do conhecimento, nunca puro, mas
aplicado ao desenvolvimento de novos valores de troca, que maximizem os lucros. Mas não
é só na produção que o capital vai necessitar de um novo tipo de qualificação para o
trabalhador. Faz-se necessária, para adequar a reprodução da sociedade às necessidades da
produção, a incorporação de força de trabalho qualificada nas instituições superestruturais.
Por tudo isso aumenta significativamente o número de trabalhadores que ingressam
nas universidades, num processo de massificação da graduação de terceiro grau. Mas esse
processo não se dá de forma direta. Mandel demonstra como a ideologia do capitalismo
atual está a serviço de
“(...) orientar a juventude para as áreas que lhe são convenientes na ciência e na tecnologia ( a esse respeito, uma importante função é desempenhada pelos meios de comunicação de massa, desde as revistas em quadrinhos, os livros infantis e a televisão, até a ficção científica)” (1982,185).
Esse fascínio causado pelo desenvolvimento tecnológico, que para os trabalhadores
é a promessa de libertação do enfadonho trabalho manual, traz em si uma nova dimensão
para a contradição geral do capitalismo: o papel emancipador, em potencial, da ciência para
a humanidade e a apropriação privada pelo capital que faz desta o meio para alcançar seu
único objetivo, a obtenção de lucro (MANDEL, 1979,186).
Para dar conta dessa necessidade do capital a universidade precisa passar por
mudanças na sua estrutura curricular, material e administrativa. Essa passagem é chamada
por Mandel da universidade tradicional para a universidade tecnocrática.
44
“A ligação entre a terceira revolução tecnológica – muitas vezes designada técnico científica -, a crescente procura de mão-de-obra intelectual e a reforma universitária tecnocrática é uma ligação evidente” (1979,43).
A universidade é forçada, pela intermediação reguladora do Estado, a tornar-se
funcional ao capital, submetendo sua gestão, pesquisa e ensino às necessidades do próprio
Estado neoliberal e do capital privado. Nesses marcos as próprias universidades
transformam-se em espaços privilegiados de criação de inovações tecnológicas e
divulgadoras das ideologias do capital.
Entretanto essas inovações tecnológicas estão trancadas em patentes o que tem
conseqüências para os países “atrasados” no desenvolvimento científico. Oliveira
(2003,139) aponta duas importantes: os sistemas capitalistas periféricos só podem copiar o
descartável não tendo acesso a matriz da unidade técnico-científica, disso decorrendo a
segunda conseqüência que é a cópia do descartável entrar em obsolescência acelerada, nada
sobrando dela. O conhecimento científico passa a ser uma mercadoria e essa
mercantilização reforça as relações de dependência entre os países por meio da
monopolização de patentes. A desigualdade no desenvolvimento técnico e científico entre
as nações se potencializa e se perpetua (IANNI, 1976).
A relação imperialista entre países “avançados” e “atrasados”, ou seja, a
manutenção e ampliação de um “diferencial internacional de produtividade” (MANDEL,
1982, 243) é inerente a lógica do capital na busca por superlucros. Mandel (1982) defende
que no capitalismo tardio a troca desigual, fonte secundária de superlucros, passa a ser a
principal forma de exploração das periferias, substituindo a produção direta de superlucros
nas colônias, originada na diferença das taxas de lucro entre colônias e metrópoles. Essa
diferença nas taxas de lucro, por sua vez originava-se nos seguintes fatores: a.uma
composição orgânica menor do capital na produção colonial; b. uma taxa de mais-valia
absoluta significativamente maior e um valor menor da força de trabalho nas colônias; c.
um enorme exército industrial de reserva nas colônias que levava o preço da força de
trabalho a cair abaixo do seu valor; e d. a transferência dos custos indiretos da produção nas
colônias para o sobreproduto não capitalista pela mediação do Estado através da
arrecadação tributária, o que possibilitou uma elevação da taxa de lucro sobre o capital
investido produtivamente.
45
A troca desigual passa a ser a principal fonte de superlucros no capitalismo tardio
devido a mudanças estruturais da economia mundial que levaram a uma inversão do fluxo
de capitais, anteriormente do centro para a periferia, passando a ocorrer entre as nações
centrais, metropolitanas. Ao mesmo tempo os países periféricos com os processos de
independência nacional passaram a forçar uma maior participação das burguesias locais na
distribuição dos lucros da produção nacional. A troca desigual caracteriza-se por uma troca
de quantidades desiguais de trabalho, mesmo em mercadorias de valores internacionais
iguais. Segundo o exemplo dado por Mandel (1982,254):
“A troca desigual consiste na troca do produto de 300 milhões pelo produto de 1,2 bilhão de horas de trabalho, ou seja, o fato de que, no mercado mundial a hora de trabalho do país desenvolvido é considerada mais produtiva e intensiva que na nação atrasada”.
Como conseqüência, a troca desigual leva a uma transferência internacional de
valores, que perpetua e agudiza as diferenças entre centro e periferia do capital. O que
Mandel está dizendo é que independente do tipo específico da produção material ou do grau
de industrialização, as diferenças constituídas historicamente do grau de acumulação do
capital, de produtividade do trabalho e de mais-valia continuam sendo uma fonte de
superlucros. A homogeneização geral da produção capitalista em escala mundial secaria,
portanto, a fonte dos superlucros.
A acumulação de capital industrial visível nas periferias no período mais recente é,
então, seguindo o raciocínio de Mandel, uma transferência da acumulação da esfera das
matérias-primas e manufaturas para a indústria “mas permanecendo em média um ou dois
estágios atrás em termos de tecnologia ou do tipo de industrialização predominante nas
metrópoles” (MANDEL, 1982, 260) tendo por razão o pequeno mercado interno, o enorme
exército industrial de reserva e a utilização de maquinaria obsoleta. Mesmo quando se
utiliza tecnologia de ponta nos países periféricos, a capacidade empregada é muito pequena.
Os preços dos produtos industrializados da periferia não conseguem, por conseguinte,
competir no mercado mundial, mantendo esses países como exportadores de matérias-
primas.
A conclusão final a ser fixada é que: “O fator decisivo continua sendo a impossibilidade da plena industrialização dos países subdesenvolvidos no âmbito do mercado
46
mundial no período do capitalismo tardio e do neocolonialismo, que era tão grande quanto no período “clássico” do imperialismo. As diferenças regionais de desenvolvimento, industrialização e produtividade estão constantemente aumentando” (MANDEL, 1982, 264).
Por essa razão, que segundo o autor é “orgânica” do desenvolvimento do
capitalismo tardio, é que as universidades brasileiras, bem como as dos demais países
periféricos, perpetuam-se em condições de heteronomia (FERNANDES, 2006) no
desenvolvimento científico, propriedade inerente à inserção dependente do país no
mercado capitalista mundial. Assim, mantendo a produtividade desigual, mantêm-se as
fontes de superlucro do grande capital.
Atualmente apenas 8 países, com 15% da população mundial, detêm quase todas as
inovações tecnológicas. Outros 15 países, entre eles o Brasil, com 50% da população
mundial conseguem adaptar e incorporar essas inovações no seu sistema produtivo e no
consumo. Os demais países, com 35% da população ficam completamente excluídos do
desenvolvimento tecnológico (OLIVEIRA, 2004, 87).
Porém, mesmo entre os países centrais há descompassos no desenvolvimento da
produção científica e tecnológica com ampla vantagem para os EUA. Essa vantagem
possibilitou o país se tornar rentista sobre os lucros gerados pela tecnologia produzida lá, o
que foi garantido pelo acordo de propriedade intelectual defendido pela OMC15
15 Neves e Pronko (2008) destacam que o papel que os organismos internacionais (OMC, BM, OCDE entre outros) vêem tendo nesse debate caminha para uma mesma direção: a inserção subordinada dos países periféricos no capitalismo internacional seja pela importação e adaptação da tecnologia desenvolvida, pelo controle da propriedade intelectual ou pela definição de indicadores econômicos e sociais padronizados internacionalmente.
que consta
também no Consenso de Washington. Essa política constitui uma das bases do novo
imperialismo, se constituindo num bloqueio à inovação nos demais países (NEVES e
PRONKO, 2008, 145).
Ainda assim a necessidade de aumento da produtividade, via superexploração do
trabalho através de rápidas inovações tecnológicas, não é resolvida nem nos países centrais.
A falta de consumo, numa sociedade com massivo desemprego estrutural, coloca para o
capital não produzir como alternativa melhor do que produzir sem superlucros, optando
pela financeirização.
47
Duménil e Levy (2003, 26) traçam um paralelo interessante entre a crise vivida pelo
capitalismo nas últimas décadas do século XIX e a crise vivida em finais do século XX,
próprias da dinâmica do sistema. Nas duas situações, guardadas suas singularidades
históricas, o restabelecimento das taxas de rentabilidade, dependentes do aumento da
produtividade, encontraram resposta na revolução técnico-organizacional e na explosão de
mecanismos monetários e financeiros e das rendas financeiras com políticas
correspondentes. Essa análise é importante na medida em que relativiza as mudanças
ocorridas no capitalismo contemporâneo. Se pensarmos nas inovações tecnológicas como o
carro, a eletricidade, a televisão, revolucionárias na sua época, a mundialização em curso
desde as grandes navegações, podemos inserir o capitalismo tardio como mais uma fase
dentre muitas do sistema capitalista.
Harvey aponta que, no marco das enormes transformações ocorridas no pós 1970,
não podemos perder de vista “o fato de as regras básicas do modo capitalista de produção
continuarem a operar como forças plasmadoras invariantes do desenvolvimento histórico-
geográfico”(1992,117).
Quais seriam essas regras básicas? Para além de regras gerais trans-históricas o que
marca o capitalismo como modo de produção é seu modus operandi específico,
qualitativamente superior aos modos de produção que o antecederam. Wood (1995) aponta
os imperativos da competição e da maximização dos lucros, a subordinação da própria
produção à auto-expansão do capital, a necessidade sempre crescente de aumentar a
produtividade do trabalho por meios técnicos como a dinâmica particular que vai
determinar as leis do movimento capitalista. A autora, ao negar o determinismo tecnológico
de parte da tradição marxista, nega que a História seja movida pelo crescimento unilinear e
necessário das forças produtivas, ainda que estas tendam a ser cumulativas. A necessidade
de revolução constante através de inovações tecnológicas permanentes é, portanto,
característica específica do modo de produção capitalista. Citando Gray:
“Na economia de mercado capitalista, há um poderoso incentivo para as empresas inovarem tecnologicamente e para adotarem as inovações pioneiras dos outros, pois as firmas que insistem em usar tecnologias menos eficientes perdem mercado, têm lucros declinantes e finalmente são fechadas” (GRAY apud WOOD, 1995, 111).
48
Assim, a lógica de expansão permanente do capital, que submete toda a produção à
necessidade de maximizar os lucros, movida pela acirrada competição, é que torna a
inovação tecnológica componente condicionante para toda a lógica deste modo de produção.
Mas o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo não significa a busca
pela redução do tempo de trabalho para a produção de mercadorias para reduzir, dessa
forma, o tempo de trabalho coletivo. O desenvolvimento das forças produtivas objetiva
aumentar o tempo de trabalho excedente dos produtores, aumentando assim a extração de
mais-valia. Essa mais-valia, que representa a produção de um número maior de mercadorias
em um tempo de trabalho igual é o que Marx denomina mais-valia relativa. O tempo de
trabalho excedente dos trabalhadores, trabalho não pago, produtor de mais valia aumenta,
dessa forma, sem que se aumente o tempo absoluto de trabalho, isto é, o tamanho da
jornada.
Reside exatamente na forma de extrair mais valia, com a maior separação entre
produtores e meios de produção da História, o núcleo duro do capitalismo que se mantém
inalterado apesar de todas as mudanças interiores ao modo de produção. As mudanças
constantes não ocorrem para além do capitalismo mas, ao contrário, são inerentes a sua
própria dinâmica interna. Citando Marx:
“A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso todas as relações sociais. (...) Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes” (1998, 43).
Esse movimento de mudança, dentro do modo de produção, especialmente
contundente a partir da década de 70, não pode ser explicado apenas pelo progresso técnico
observado no período, mas pela forma como o progresso técnico alterou as relações de
produção e o modo de reprodução no interior do sistema, em especial a luta de classes.
“ (...) relações de classe são o princípio do movimento dentro do modo de produção. A história de um modo de produção é a história do desenvolvimento de suas relações de classe e, em particular, da transformação destas em relações de produção” (WOOD, 1995, 920).
Não é, portanto, a tecnologia que explica as mudanças recentes do capitalismo, mas
a necessidade de aumentar a extração de mais valia aumentando a produtividade e a troca
49
desigual e maximizando os lucros, fatores essenciais do capitalismo, que moverão o
crescente progresso técnico e a inovação tecnológica permanente.
1.5 O papel da ideologia:
Ianni (1976) chama cultura o conjunto de idéias, valores, princípios e doutrinas que
precisam ser reproduzidas para que as relações capitalistas em escala nacional e
internacional se reproduzam. A burguesia constrói sua ideologia a partir do trabalho
intelectual, seja ele material ou espiritual, base da cultura capitalista. O autor parte do
pressuposto de que assim como a ideologia burguesa influencia e predomina no
pensamento das outras classes sociais16
Conseqüentemente, também na esfera cultural/espiritual o capitalismo “estabelece
regras de obsolescência programada de idéias e concepções” (IANNI, 1976, 26),
obsolescência que se acelera no capitalismo tardio. Ianni dá alguns exemplos de como,
segundo os interesses, sobretudo imperialistas, passa-se rapidamente de uma doutrina a
outra como quando os Estados Unidos foram rapidamente da doutrina da guerra fria à da
, no plano das relações internacionais a indústria do
imperialismo influencia os países periféricos criando uma cultura do imperialismo e uma
cultura da dependência.
Ianni (1976, 23) parte da premissa marxista de que “toda forma de produção cria as
relações jurídicas e políticas sem as quais ela não pode funcionar.” Logo, mudanças nas
bases materiais de produção modificam a dinâmica de reprodução na sociedade capitalista,
gerando inflexões na sua cultura.
A base da cultura burguesa, intrínseca ao modo de produção capitalista, funda-se no
princípio da propriedade privada, da livre circulação de coisas e pessoas e na transformação
das relações capitalistas em naturais e imutáveis, em leis humanas universais (IANNI,1976,
24). Sem prejuízo a essa base, as mudanças no modo de produção capitalista tendem a
formar novos “modos de regulamentação” que em um modo de produção tão instável, vão
garantir alguma coerência e ordem, pelo menos por algum tempo (HARVEY, 1993).
16 Idéia que encontra-se desenvolvida no texto “A Ideologia Alemã” (2006) de Marx e Engels: “As idéias da classe dominante são também as idéias predominantes em cada época, ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é também a força espiritual dominante”.
50
coexistência pacífica, ou a idéia da defesa nacional deu lugar à da segurança nacional
interna, justificando os regimes militares ditatoriais na América Latina.
No capitalismo tardio, para a constituição de uma nova organização da produção
uma nova ideologia tem-se estruturado sob o signo de pós-modernidade. Jameson (1996)
inicia seu debate sobre o significado ideológico da pós-modernidade questionando
exatamente se existe de fato tal categoria ou se é, o próprio pós-modernismo, mera
mistificação. Para ele: “(...) dotar a cultura pós-moderna de qualquer originalidade histórica equivale a afirmar, implicitamente, que há uma diferença estrutural entre o que se chama, muitas vezes, de sociedade de consumo e momentos anteriores do capitalismo de que esta emergiu” (JAMESON,1996, 80).
Segundo o autor, pode-se dizer que existem quatro posições neste debate, todas elas
suscetíveis tanto a leitura progressista quanto reacionária do ponto de vista político.
Podemos dividir essas posições em dois blocos. O primeiro traz as concepções
antimoderna/pró-pós-moderna e pró-moderna/antipós-moderna. Em comum entre elas a
aceitação da idéia de ruptura entre o momento moderno e pós-moderno, sendo este
caracterizado por um novo modo de pensar e estar no mundo afinado com a tese política de
vivenciarmos uma sociedade pós-industrial. No outro bloco temos as hipóteses que negam
a idéia de ruptura questionando a utilidade da categoria pós-moderno. Pós-moderno torna-
se uma expressão da própria modernidade, “uma mera intensificação dialética do velho
impulso modernista de inovação” (JAMESON, 1996, 87). Dentro de cada bloco o que
diferencia as posições é um julgamento de valor que tenta classificar como positivo ou
negativo esse novo período. Concordamos com Jameson quando este coloca que:
“Ao invés de cair na tentação de denunciar a complacência do pós-modernismo como um sintoma final da decadência, ou de saudar as novas formas precursoras de uma nova utopia tecnológica e tecnocrática, parece mais apropriado avaliar a nova produção cultural a partir da hipótese de uma modificação geral da própria cultura, no bojo de uma reestruturação do capitalismo tardio como sistema” (JAMESON, 1996, 87).
Ainda para Jameson o traço ideológico fundamental da nossa época é o que chama
de ideologia do mercado, segundo a qual o mercado faria parte da própria natureza humana,
portanto impossível de ser superado. O triunfo da ideologia do mercado tem, para o autor,
como um de seus principais determinantes o fracasso das experiências socialistas do século
51
XX, o chamado socialismo real. Mas o estrondoso crescimento da mídia também é
elemento central para a apologia do mercado.
A reificação do período, transformação das relações sociais em coisas, tem como
característica fundamental o apagamento dos traços de produção e deslocamento do
conceito de produção para a esfera da distribuição e do consumo. Para Jameson isso é
fundamental para uma sociedade fundada no consumismo, que quer esquecer as classes
sociais; é preciso que o consumidor não pense em quem produz as mercadorias para que
não se sinta culpado. Diz Brecht no Romance dos três vinténs (1976): “Os seres humanos
naturalmente não podem ser levados a renunciar às empresas lucrativas, mas são fracos o
bastante para tentarem esconderem alguns resultados delas.”
É nessa mesma perspectiva, de apagamento dos traços da produção com o
argumento de que a sociedade atual seria pós-industrial, que tem se articulado uma teoria,
também no campo ideológico, de que estaríamos vivendo a sociedade do conhecimento.
Essa noção se consolida como referência acadêmica, política e econômica no fim dos anos
1960 como uma alternativa ao socialismo e ao capitalismo, sendo inicialmente adotada
pelos organismos internacionais. O conceito se apóia numa suposta democratização social
pela ampliação do acesso à informação e ao conhecimento, possibilidade aberta com o
avanço da tecnologia. Um de seus alicerces é a transformação em sinônimos dos termos
informação e conhecimento, negando a necessidade de reflexão necessária para que a
informação passe a conhecimento, e que esse conhecimento cada vez mais está atrelado à
produção para valorização do capital.
Com base nessa receita, a ideologia da sociedade da informação/conhecimento se firma na ocultação das relações sociais concretas nas quais esse conhecimento/informação se produz, se processa e se distribui, dissimulando a verdadeira natureza do modelo idealizado e proposto (NEVES E PRONKO, 2008, 148).
Mas a ideologia não é única nem absoluta. Seguindo o raciocínio de Lowy (1992), a
ideologia é fruto de seu momento histórico, da realidade em que está inscrita. Essa
realidade não produz uma visão de mundo única, mas uma série de ideologias e utopias17
17 Lowy utiliza a distinção de Mannheim entre os conceitos de ideologia e utopia. Ideologia como o conjunto de valores, idéias e concepções a serviço da manutenção, legitimação e reprodução da ordem e utopia, ao contrário, como os valores, idéias e concepções que visam uma outra realidade ainda inexistente.
52
que em última análise são produzidas pelas classes e segmentos de classes sociais que
compõem a sociedade e que se enfrentam, contradizem e não podem chegar a um consenso
pois se constituem nos lugares diferentes dentro da produção que as classes ocupam. Nessa
contradição é que torna-se possível forjar uma cultura que afirme um projeto contra-
hegemônico de ruptura com a ordem do capital.
As universidades apresentam-se, nesse sentido, como espaços fundamentais na
construção da cultura burguesa e na sua difusão, bem como de culturas contra hegemônicas,
com maior ou menor espaço e autonomia em cada momento histórico.
Menegat (2009), discutindo a produção de conhecimentos na universidade brasileira,
identifica três períodos distintos do pensamento contra-hegemônico nas universidades.
Primeiro a partir de 30 quando surgem as primeiras experiências de universidades “dignas
desse nome”, com destaque para a USP. Nesse período a autonomia garantida ao trabalho
docente fazia com que a produção de conhecimento estivesse voltada para a compreensão
crítica do desenvolvimento nacional, impulsionando, em conexão com as necessidades das
classes trabalhadoras, um projeto alternativo radicalmente democrático e popular. O golpe
de 1964 significou a primeira ruptura com esse processo, pois, o regime militar passa a
impor seu modelo de país, que consolidava o subdesenvolvimento e as grandes
desigualdades sociais, ao pensamento nas universidades. O cerceamento da autonomia do
pensamento crítico nesse período é, para o autor, o primeiro elo que se rompe entre a
intelectualidade crítica brasileira dos anos 1950 e 1960 e a intelectualidade que vai produzir
em 1970 e 198018
No entanto é nos anos de 1990 que Menegat (2009) vai apontar a maior ruptura com
a tradição do pensamento social crítico nas universidades, com avanço da terceira
revolução industrial (ou terceira revolução tecnológica) aprofundando mais ainda as
relações de dependência entre países centrais e periféricos. Nesse contexto, o conhecimento
produzido nas universidades vai, cada vez mais, se mercantilizando e se submetendo às
regras de produção e comercialização de mercadorias. Dois setores da economia passam a
dirigir o conhecimento: a indústria da tecnologia – onde o país se enquadra como mero
reprodutor das matrizes, e na indústria cultural. Nesse último setor cabe às ciências
.
18 Da primeira geração Menegat (2009) cita Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Nelson Werneck Sodré, Sérgio Buarque de Holanda e Antônio Cândido. Na segunda geração Renato Ortiz, Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Netto, Roberto Schwarz e Marilena Chauí, entre outros.
53
humanas não o papel de produção de conhecimentos profundos sobre a realidade, mas
“servindo antes como técnica de controle social e gestão da barbárie, ou tão somente como
uma tarefa obrigatória e formal para cada um que pretende ser um produtor de saber e
comercializar esse esforço” (MENEGAT, 2009, 166).
Os professores passam a ser os “produtores e comercializadores” do saber passando
a serem avaliados por sua produtividade como qualquer trabalhador manual do nosso tempo.
Alienado de seu valor de uso, o conhecimento passa a ser valorizado na medida em
que é vendável. “Opinião de medalhão (isto é, ‘especialista’) que integra o Clube dos Contentes, que venha ao seu modo dar a sua ‘modesta’ contribuição a esse processo de naturalização da barbárie, que é, aliás, a garantia da continuidade de uma sociedade que desmorona e que se mantém” (MENEGAT, 2009, 168).
55
CAPÍTULO II Formação social do Brasil e a trajetória da educação até a década de 80:
O Brasil caracteriza-se no capitalismo mundial pela sua inserção periférica e
dependente. Retomar o debate da formação social, econômica, política e cultural do país
significa articular os elementos que, originários dessa condição, são comuns aos demais
países dependentes e os traços absolutamente particulares do capitalismo nacional que só se
explicam na reconstituição e interpretação de sua trajetória histórica. Nessa trajetória a
educação escolarizada sofreu mudanças em suas características e objetivos, mudanças
associadas, sobretudo, ao mundo do trabalho.
A integração do país no mundo ocidental tem sua colonização como gênese e traz
desde aí suas marcas. Prado Jr. (1994) interpreta esse processo de colonização a partir da
sua totalidade. Rompendo com a naturalização dos acontecimentos históricos, o autor nega
a inexorabilidade na sucessão dos fatos que sucedem o descobrimento. Para Prado Jr.:
(...) a colonização portuguesa na América não é um fato isolado, a aventura sem precedente e sem seguimento de uma determinada nação empreendedora; ou mesmo uma ordem de acontecimentos paralela a outras semelhantes, mas independentes delas (1994, 20).
Com isso o autor passa a dar uma interpretação materialista à expansão marítima e à
colonização com suas características peculiares, pautada não em sentimentos ou traços
psicológicos abstratos, mas em interesses econômicos e comerciais, num processo que
relaciona o conjunto de nações européias, tendo como condição objetiva o avanço das
técnicas e tecnologias para navegação que possibilitaram a travessia do Atlântico. Quanto
ao pioneirismo português, a explicação materialista e objetiva do autor o imputa à
vantagem geográfica de Portugal, que está no extremo da Península Ibérica.
Para o autor, o que os primeiros navegadores buscavam eram novas rotas para o
comércio com as Índias. A descoberta da América foi um obstáculo para esse objetivo e a
idéia de povoamento não ocorria a nenhum país colonizador num primeiro momento.
Prado Jr. diferencia, na colonização propriamente dita, a trajetória e os objetivos nas
colônias do Norte e do Sul. As colônias do Norte, com clima semelhante à Europa, não
ofereciam produtos que não existissem na metrópole. Essas colônias tiveram, mais tarde já
56
no século XVII, função de povoamento. Isso porque iniciava-se na Inglaterra as
protoformas do capitalismo. A expropriação da terra, expulsando os camponeses, e as
guerras político-religiosas estimularam correntes migratórias para a América do Norte e o
clima, pouco interessante para o comércio, era de fácil adaptação para os colonos.
Já nas colônias do Sul, de clima tropical ou subtropical, os interesses da metrópole
são mais claramente comerciais. A exploração agrária visava à obtenção de produtos que
faziam falta na Europa. O europeu branco migrava para ocupar postos dirigentes e a falta
de força de trabalho exportável de Portugal levou à utilização de força de trabalho escrava
nas suas colônias.
Na estrutura de classe no Brasil, a presença dos escravos como a grande massa de
força de trabalho reduziu os espaços de trabalho para as camadas médias de trabalhadores
livres, muitos se tornando agregados das fazendas, dependentes das grandes classes
proprietárias, outros desocupados permanentes das cidades. Não era possível conseguir
força de trabalho livre a um preço compensador, pois os homens livres possuíam condições
autônomas de sobrevivência, enquanto, para gerar lucro, o trabalho nos latifúndios
precisava ser superexplorado (KOWARIK, 1994, 21).
Sem entrar nas razões políticas das colonizações distintas, Holanda (1995) também
percebe que a produção de gêneros agrários nas colônias americanas está vinculada às
necessidades da Europa, o que explica a monocultura de gêneros tipicamente tropicais.
Assim, desde a sua formação, a economia brasileira está voltada para fora do país,
produzindo commodities para o mercado externo.
É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem do interesse daquele comércio que se organizarão a sociedade e a economia brasileira. (PRADO JR.,1994, 32)
O sistema colonial, sobretudo nas colônias do sul tropical que produziam artigos
inexistentes na Europa para exportação, constituiu “uma das alavancas fundamentais para a
acumulação da burguesia metropolitana” (KOWARICK, 1994, 20). As colônias foram uma
expressão do mercantilismo, importante para a acumulação primitiva de capital na Europa.
Seus excedentes estavam voltados para esse fim.
57
A razão da formação capitalista no Brasil ter na dependência heteronômica uma
característica central desde sua origem, está para Fernandes (2006) na tardia passagem para
a “ordem social competitiva”, que distingue o capitalismo. A burguesia ascendente,
relacionada ao “setor novo” do comércio de importação e exportação e do setor de serviços,
crescentes com a urbanização, não se constituía consciente de um papel histórico
revolucionário, mas “pretendia uma evolução com a aristocracia agrária e não contra ela”
(FERNANDES, 2006, 221). Burguesia e aristocracia agrária estavam unidas por interesses
comuns. Os setores novos, mais dinâmicos no processo de modernização do país, ao
capitular a ordem escravocrata – senhorial, adaptando-se a ela, foram “compelido (s) a
fechar os olhos diante da relação dependente com o mercado externo e a ficar com os
proventos que lhe cabia(m) no rateio social” (FERNANDES, 2006, 218). Era o setor do
alto comércio, de importações e exportações, o elo com as influências externas que, sem
perceber criticamente as conseqüências, dobrava-se ao imediatismo da dependência.
Na explicação de Holanda (1995), se anuncia a “revolução passiva” usada
posteriormente por outros autores para explicar as sucessivas mudanças “por cima” que
marcam a História do Brasil. Os rearranjos entre aristocracia tradicional e burguesia
nascente que dispensaram revoluções e rupturas são, segundo Holanda, traços da formação
ibérica. A ausência de feudalismo reduziu as dificuldades para a burguesia mercantil, que
“não precisou adotar um modo de agir e pensar absolutamente novo, ou instituir uma nova
escala de valores, sobre os quais firmasse permanentemente seu domínio” (HOLANDA,
1995, 36). Foi na aliança entre a classe burguesa e a aristocracia rural, onde a burguesia
assimila princípios da antiga classe dirigente, que se reconfigura, no Brasil e em Portugal, a
classe dominante nas protoformas do capitalismo.
Fernandes (2006) aponta que a revolução burguesa não é no Brasil acontecimento
histórico, mas processo de desagregação do sistema escravocrata- senhorial e de formação
da sociedade de classes e de uma economia de bases monetárias e capitalistas. Esse
processo tem como marco primordial a Independência.
A mudança do estatuto colonial para o de Estado nacional independente significou,
porém, uma autonomização política que não teve correspondência na autonomização
econômica brasileira. As estruturas econômicas mantiveram-se hegemonizadas pela grande
lavoura, pela escravidão e pela monocultura com traços de heteronomia em relação ao
58
mercado externo que se perpetuaram sob novas bases. A independência possibilitou aos
senhores rurais uma relação com a exportação dos produtos sem a espoliação da metrópole,
com a internalização das fases econômicas. Concomitantemente internalizavam-se os
círculos de poder e a dominação, antes circunscrita às unidades produtivas fechadas e
isoladas, ampliava-se nacionalmente forjando solidariedade e, em certo sentido, unidade
entre os senhores rurais. O processo da Independência possuía dois elementos: um
revolucionário que almejava libertar a ordem social, herdada da sociedade colonial, de suas
características heteronômicas para adquirir a autonomia exigida por uma sociedade
nacional e outro contraditoriamente conservador, com o propósito de preservar e fortalecer
uma ordem social que não possuía condições materiais e morais suficientes para garantir a
autonomia necessária para construção de uma sociedade nacional (FERNANDES, 2006).
Forma-se nesse processo um Estado ao mesmo tempo, no seu aspecto jurídico-legal,
pautado pelas idéias liberais e, na prática, instrumento para a generalização do mandonismo
patrimonialista, o que Fernandes (2006) chama de burocratização do domínio
patrimonialista. Ainda que por caminhos diferentes19
A absorção do liberalismo aqui não preencheu os requisitos para a construção de
uma ordem nacional autônoma, mas para o desenvolvimento de uma ordem social
heterônoma, com inserção livre, porém, dependente no mercado externo, legitimando
inclusive uma visão passiva e complacente dessa condição. Apesar do conflito entre o velho,
marcado pelo patrimonialismo, e o novo trazido na ordem legal pelo pensamento liberal,
, já que atribui sempre a características
psicológicas e de caráter os padrões originariamente políticos, econômicos e ideológicos,
na interpretação marxista, Holanda concorda com os efeitos do patrimonialismo e da
centralidade da família na formação brasileira, confundindo-se com o Estado para a
formação de uma cultura e de uma superestrutura particular no Brasil.
19 Holanda supera as análises biológicas e positivistas de Gilberto Freyre, mas acaba por optar por um viés psicologicista e moral, que busca as causas de fenômenos de ordem social, econômica, política e cultural em traços de caráter a partir de tipos ideais de clara influência weberiana. Antonio Candido referenda essa análise no prefácio de Raízes do Brasil, escrito em 1967: “Num momento em que os intérpretes do nosso passado ainda se preocupavam sobretudo com os aspectos de natureza biológica, manifestando, mesmo sob aparência do contrário, a fascinação pela “raça”, herdada dos evolucionistas, Sérgio Buarque de Holanda puxou sua análise para o lado da psicologia e da história social (...)” (CANDIDO apud HOLANDA, 1995, 20). Mesmo negando a natureza biológica dos fenômenos, a opção pela psicologia exclui outras determinações sociais, abrindo mão das diferenças entre classes sociais, gênero e etc como explicação para ideologias que acabam sendo percebidas como traços de personalidade incorporados de forma homogênea na constituição da identidade do povo.
59
limitando o liberalismo aos estamentos dominantes, a existência da influência liberal
permitiu que pelo menos esse conflito existisse. Os interesses dos estamentos dominantes
eram convertidos em interesses gerais por meio do exercício do poder político. Para isso
precisavam do aparato militar, administrativo, policial, jurídico e político, e não privada e
localmente, mas na nação como um todo. A contradição é que positivamente o liberalismo
possibilitou a construção de um poder central independente que concorria com o poder
tradicional do modelo patrimonialista, ainda que esse na prática fosse por vezes
hegemônico. Criou-se uma aparente dualidade estrutural entre a ordem legal e a tradicional.
O Estado nacional tinha a função de manter o monopólio do poder nas mãos dos
estamentos dominantes e, ao mesmo tempo, garantir condições econômicas, sociais e
culturais para a formação de uma sociedade nacional, movida a princípio pela ânsia da
modernização, evoluindo para a tentativa de implantação de condições jurídicas, políticas e
econômicas para a construção de uma sociedade competitiva plena. Em nenhum momento
exigindo “a defesa implacável dos direitos do cidadão” (FERNANDES, 2006, 46).
Schwarz (2008) aponta que o liberalismo como ideologia burguesa fazia parte da
identidade nacional pós-independência no bojo do raciocínio econômico burguês, inevitável
já que a economia do país estava voltada para o comércio internacional. No entanto as
idéias, que o autor chama de “fora do lugar”, chocavam-se com a realidade do país que
tinha na escravidão seu principal regime de trabalho. “Por sua mera presença a escravidão
indicava a impropriedade das idéias liberais” (SCHAWARZ, 2008, 15). Na tese do autor, a
cultura tinha, porém, um lugar separado da vida econômica não guardando coerência com
ela, não sendo a escravidão “nexo efetivo da vida ideológica” (SCHAWARZ, 2008,, 15). O
liberalismo foi interpretado em nossas terras de forma sui generis, passando a ser
instrumentalizado para explicar uma realidade que nada tinha a ver consigo, ao contrário
era seu exato oposto. Foi assim que a universalidade foi substituída pelo favor nas relações
entre os homens livres, tornando-se “nossa mediação quase universal” (SCHAWARZ,
2008, 16), e escondendo a natureza violenta da produção escravista. Em resumo:
“(...) as idéias liberais não se podiam praticar, sendo, ao mesmo tempo, indescartáveis. (...) Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonhado diante delas (...) e rancoroso pois não serviam para nada. Mas eram adotadas também com orgulho, de forma ornamental, como prova de modernidade e distinção” (SCHAWARZ, 2008, 26).
60
Mazzeo (1989), pensando em que superestruturas foram constituídas no Brasil no
rastro de uma formação capitalista com traços particulares marcados pela herança
colonialista, inicia caracterizando a burguesia brasileira como uma classe reacionária e
atrelada aos interesses metropolitanos, fruto de uma estrutura de produção historicamente
agrária, rudimentar e estagnizante. Mesmo a independência político-formal do Brasil de
Portugal foi obra muito mais da crise mundial do sistema colonial do que de um ímpeto
liberalizante da burguesia local, que modificasse e desenvolvesse as forças produtivas e
relações de produção coloniais. Após a independência, portanto, quem conduz a formação
do Estado nacional é a burguesia latifundiária brasileira, de acordo com seus interesses anti-
democráticos e seus parâmetros ideológicos conservadores.
O autor atenta também para o traço fundamental da formação política brasileira que
são as permanentes “articulações pelo alto” que excluem a classe trabalhadora dos
processos políticos, substituída por “acordos de cavalheiros” entre frações da burguesia.
Nosso processo de formação capitalista, para Mazzeo, possui especificidades que não
permitem enquadrá-lo de imediato no conceito de “via prussiana” conforme desenvolvido
por Lênin. Apesar de semelhanças com o caso alemão, que dá origem ao conceito, como a
acumulação pela agricultura, a unidade nacional forjada de cima para baixo e a
industrialização tardia, o Brasil carrega a especificidade da colonização levando o autor a
chamar seu processo de “via prussiana-colonial”.20
Formou-se um Estado que sempre primou pela defesa da iniciativa privada, e ao
mesmo tempo contraditoriamente gestou as bases necessárias à construção de uma
sociedade nacional. Por iniciativa privada deve-se entender a perpetuação de uma sociedade
de privilégios, nascida na ordem escravista – senhorial. A natureza do capitalismo brasileiro
é marcada por essa característica. Fernandes (2006, 223) entende privilégio: “como a
Em síntese, o autor aponta que o Estado brasileiro é composto de dois aspectos
fundantes: traços de dependência e desenvolvimento tardio comuns a outras formações
nessas circunstâncias e particularidades oriundas do escravismo e do latifúndio, limitadores
para a formação de uma classe burguesa revolucionária no país.
20 Behring (2003, 111) aponta que Coutinho defende a associação do conceito leninista de via-prussiana, mais centrado nos aspectos infra-estruturais, à idéia gramsciana de revolução passiva caracterizada pelo “(...) fortalecimento do Estado em detrimento da sociedade civil (...) e a prática do transformismo”, incorporando demandas dos trabalhadores, para explicar a formação brasileira, destacando o momento político de forma mais consistente.
61
faculdade de influenciar ou de estabelecer as condições dentro das quais as relações e os
processos econômicos deveriam ser adaptados à situação de interesse do agente
econômico”. Ou seja, contraditório com a formação de uma esfera pública num Estado de
direito de base liberal, já que as regras se alteram de acordo com quem as aplica e sobre
quem são aplicadas. Esse modelo de iniciativa privada, chamado por Fernandes (2006, 224)
de rapinante, está no cerne da aliança entre setor agrário e setor mercantil.
A formação do capitalismo no Brasil se dá de forma latente, isto é, a formação do
Estado nacional cria condições e, mais de que isso, necessidades de dinamizar um setor
novo ligado aos serviços, ao crédito, ao comércio, porém, acomodado à velha aristocracia
rural e dominado por seus interesses. Ao mesmo tempo não era a grande lavoura em si o
obstáculo da estagnação econômica colonial, mas o contexto sócio-econômico que a
sufocava. Com a criação do Estado Nacional “as potencialidades capitalistas da grande
lavoura passaram a manifestar-se com plenitude crescente” (FERNANDES, 2006, 44) e
foram canalizadas para o crescimento econômico interno, favorecendo a urbanização e a
expansão de novas atividades econômicas.
Todo esse processo que se inicia com a independência vai consolidar o capitalismo
mercantil no país. Os excedentes econômicos da grande lavoura que se multiplicam graças
ao fim da espoliação da metrópole, passam a ser empregados no chamado “setor novo”,
capitalista, em ascensão auxiliando na construção de um novo padrão de desenvolvimento.
Na interpretação de Fernandes (2006, 127):
“(...) não foi nem a produção agrícola exportadora, nem a produção manufatureira ou industrial que galvanizou, historicamente, o primeiro surto integrado do capitalismo no Brasil. Essa função foi preenchida pelo complexo comercial, constituído sob as pressões econômicas concomitantes do neocolonialismo, da emancipação política e do desenvolvimento urbano”.
Enquanto para Prado Jr. a formação nacional é incompleta pois ainda em meados do
século XX a economia brasileira não tinha “evoluído” de colonial à nacional, para
Fernandes a interpretação traz outras nuances. Porque a Independência coloca a
dependência econômica brasileira sob novas bases, que o autor caracteriza como
neocoloniais, qualitativamente diferentes do período colonial, tese com a qual concordamos.
Em fins do século XIX as pressões do mercado mundial e o próprio
desenvolvimento dos setores capitalistas locais colocam em xeque a utilização da força de
62
trabalho escrava na grande lavoura dado seu alto custo e sua baixa produtividade. Dentro da
produção os custos do sistema escravista eram maiores, pois o pagamento das despesas do
trabalho era adiantado, a rotação do capital variável era mais rápida que a do fixo, a
eficiência do trabalho escravo era menor e a escravidão bloqueava uma maior divisão
sócio-técnica do trabalho bem como sua especialização. Os custos da reprodução e do
trabalho de coação e vigilância aos escravos estavam dentro da produção, encarecendo e
tornando inviável sua concorrência com a empresa capitalista. Além disso, o regime
escravista impedia a ampliação do mercado consumidor (MELLO, 1994,76). A situação da
escravidão, apesar da sua desvantagem do ponto de vista econômico, só se mantinha até
esse ponto graças a meios extra-econômicos, ou seja, o monopólio do poder político e o
controle do Estado exercido pelos senhores.
Começa a introduzir-se no Brasil, então, o que Fernandes chama de “plantação
comercial típica em regime de trabalho livre” (2006, 141) caracterizada pela mudança
técnica e política dos meios de dominação e organização patrimonialista da produção,
iniciada, sobretudo, nas fazendas paulistas de café. Esse processo, contudo, ocorre mais
uma vez excluindo os trabalhadores e evitando rupturas políticas e convulsões sociais. O
escravo é liberto e colocado a sua própria sorte sem preocupação com seu destino, ao
mesmo tempo em que eram garantidas condições favoráveis aos proprietários das grandes
lavouras nessa transição.
Com a escravidão tornando-se inviável econômica e politicamente, a empresa
cafeeira, hegemônica no período, necessita de nova fonte de abundante força de trabalho.
Mas ao invés de buscar força de trabalho no país, prefere importar trabalhadores europeus,
tão empobrecidos e expropriados que concordam em vender sua força de trabalho a preços
aviltantes21
21 Meszaros (2002, 102) afirma que para se tornar o mais dinâmico e competente extrator de trabalho excedente da História o capital precisa se livrar das possibilidades subjetivas e objetivas de auto-suficiência dos trabalhadores. Com essa liberação o ganho histórico na produtividade do trabalho é inegável. O trabalhador livre brasileiro ainda não encontrava-se nessa condição de total falta de condições de subsistência fora a venda de sua força de trabalho. Ainda.
. Submetidos a processos de coação que os obrigavam a manter os contratos de
trabalho que o imobilizavam nas fazendas, como as dívidas de viagem, os imigrantes se
submetiam nas grandes propriedades a condições de trabalho semelhantes a dos escravos,
condições que os trabalhadores livres locais recusavam-se a aceitar, num regime conhecido
63
como parceria. “Prevalecia um sistema que, na prática, nada mais era do que um regime de
escravidão disfarçada” (KOWARICK, 1994, 69).
Segundo o autor, outro marco importante na formação dessa nova força de trabalho
no Brasil foi a Lei de Terras de 1850, que impediu o acesso dos trabalhadores a terra.
Enquanto o trabalho era escravo as terras valiam pouco, pois os escravos eram a maior
fonte de riqueza. Martins (1979, 32 apud KOWARICK, 1994,76) afirma que “num regime
de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo: num regime de trabalho livre, a terra tinha
que ser cativa.” Assinada no mesmo ano da Lei que acabava com o tráfico de escravos para
o Brasil, essas medidas preparavam a generalização do trabalho livre, obrigando os
trabalhadores expropriados de condições mínimas para sua subsistência de trabalhar por
baixos salários para os proprietários.
Acontece no Brasil uma contradição apontada por Harvey (2005b) na formação do
capitalismo quando, ao mesmo tempo em que o sistema necessita da mobilidade dos
trabalhadores para seu desenvolvimento, os capitalistas individuais preferem uma força de
trabalho estável e confiável, coagida através de mecanismos extra-econômicos com o apoio
do Estado. É na transição do regime de escravidão para o trabalho livre que o Estado no
Brasil interfere pela primeira vez para a constituição de um mercado de trabalho.
Esse processo é, para Fernandes (2006, 264) a passagem da fase de eclosão do mercado
capitalista moderno, iniciado desde a Abertura dos Portos e do processo de Independência
para a fase de formação e consolidação do capitalismo competitivo, que caracteriza-se pela
consolidação da economia urbano-comercial associado a primeira transição industrial
importante, na perspectiva do autor, fase que vai até a década de 50 do século XX. O
desenvolvimento do capitalismo local necessitava da formação de um mercado livre de
trabalho para avançar e esse é o marco do capitalismo competitivo no país.
A transição do mercado capitalista neocolonial para o mercado capitalista competitivo
no Brasil se estende de fins do século XIX, com o fim da escravidão até a década de 30,
marcada pela crise capitalista de 29 e pela Revolução de 30. Nesse período, o capitalismo
mercantil chega a um ponto de concentração que o leva a tornar-se capitalismo industrial.
Em parte pela influência do capital dos países centrais que, caminhando para a
monopolização, necessitavam ampliar sua influência do intercâmbio comercial para a
totalidade dos processos de desenvolvimento econômico nos países periféricos. O
64
desenvolvimento econômico é, portanto, induzido de fora não permitindo que sejam
rompidos os laços de dependência com o exterior, pelo contrário aprofundando-os. O
desenvolvimento do setor “moderno”, urbano, capitalista da economia não significava a
superação da dualidade - aparente - entre o arcaico e o moderno, expresso na dicotomia,
sobretudo, entre as relações no campo e na cidade. Eram exatamente desses setores
“atrasados” que se originavam os excedentes que alimentavam as classes dominantes
locais e as economias centrais, “portanto, suprimir a articulação inerente à superposição da
economia urbano-comercial e da economia agrária seria o mesmo que matar a galinha dos
ovos de ouro” (FERNANDES, 2006, 278).
É no campo, na organização e nas relações de produção arcaicas que se opera a
acumulação primitiva no Brasil, baseada em um enorme contingente de força de trabalho,
na oferta elástica de terra e na construção de uma infraestrutrura de transporte pelo Estado.
Não se dava a expropriação de propriedades dos camponeses, como na Europa, mas a
expropriação dos excedentes produzidos na posse transitória da terra, sem necessidade de
nenhuma ou quase nenhuma capitalização prévia. Oliveira (2003, 43) defende ainda que em
certas condições, sobretudo no capitalismo das periferias, a acumulação primitiva não
ocorre apenas nos primórdios da sua formação, nas suas palavras “a acumulação primitiva é
estrutural e não apenas genética”. Isso torna o subdesenvolvimento “uma forma de exceção
permanente do sistema capitalista na sua periferia” (OLIVEIRA, 2003, 131).
Nesse sentido a dependência é inibidora do desenvolvimento capitalista local. Ela
induzia avanços econômicos nos limites estruturais de um capitalismo periférico sob a
égide da dominação do imperialismo em plena ascensão.
Oliveira (2003), concordando com a tese de Fernandes (2006), vai criticar os modelos
interpretativos que atribuem a superação do subdesenvolvimento à suplantação dos setores
atrasados pelos modernos da economia. Para Oliveira no processo real o “chamado
‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atrasado’” (2003, 32) numa unidade de
contrários. Em síntese: “A originalidade consistiria talvez em dizer que (...) a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera a força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo” (OLIVEIRA,2003, 60).
65
Assim, a situação de subdesenvolvimento em relação aos países centrais não é uma
circunstância histórica, mas parte da formação capitalista pautada na divisão internacional
do trabalho. Nesse sentido o que há não é uma oposição entre as nações, mas um arranjo
entre as classes dominantes do centro e da periferia para dividirem entre si os excedentes do
trabalho total. O subdesenvolvimento não está relacionado a uma “evolução truncada”, num
sentido etapista ou evolucionista, mas a um determinado lugar na divisão internacional do
trabalho indutor de dependência e um arranjo particular na articulação dos interesses
internos (OLIVEIRA, 2003, 127).
A industrialização que começa a caminhar, desenrolando-se nos anos 30 do século XX
tem como eixo o comércio com o mercado mundial nos limites de uma economia
neocolonial que se materializava na conjunção dos interesses da burguesia local, como
sócia minoritária, e da burguesia externa.
Tudo isso sob a dominação política burguesa, que mantinha os traços do mandonismo
patrimonialista, com novas roupagens, formando um Estado que só era democrático
formalmente 22
22 Segundo Holanda (2008,160) : “A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”.
, com procedimentos na prática denominados por Fernandes (2006) de
“autocráticos”. A fragilidade na participação dos segmentos trabalhadores na vida
econômica, social e política é herdada da ordem escravista-senhorial. Mesmo com o
estabelecimento de um mercado de trabalho livre o trabalho continuou a ser identificado
como a “mercantilização das pessoas”. Essa condição, que era incorporada também pela
força de trabalho, atrasou a formação da classe trabalhadora no Brasil e o despertar de sua
consciência, pois gerava uma negação da legitimidade do conflito e da competição nas
relações contratuais de trabalho. As vinculações do trabalho livre reproduziam a lógica do
trabalho escravo, ultrapassando as relações de mercado, “perpetuando o tradicionalismo e o
patrimonialismo através da secularização da cultura” (OLIVEIRA, 2003, 230) A presença
dos imigrantes, com tradição sindical nos seus países de origem, foi elemento importante na
reeducação da classe trabalhadora nacional para a constituição de mecanismos de
organização e solidariedade de classe que questionassem “o controle conservador e o poder
autocrático das elites das classes dominantes como fio condutor da história” (OLIVEIRA,
2003, 231).
66
A partir de 193023, vai chegando ao fim a hegemonia agrário-exportadora e iniciando a
predominância do modelo de base urbano-industrial exatamente por meio da indução de
fora, com a importação de capital fixo, modelo conhecido como industrialização por
substituição24
Esse novo tratamento dado à agricultura ao mesmo tempo discriminatório e
confiscatório, foi compensado em certa medida pela possibilidade que o crescimento
industrial deu para as atividades agropecuárias manterem um padrão atrasado de produção
baseado na alta taxa de exploração da força de trabalho, reforçando seu papel na
. Dentro da divisão internacional do trabalho, porém, o papel das periferias
continuava a ser a produção de matéria prima e produtos agrícolas para o centro, que, no
pós-guerra, dedicou-se a reconstruir as economias industrializadas perdedoras, contra a
ameaça do socialismo (OLIVEIRA, 2003).
No Brasil, a produção inicialmente se concentra em bens de consumo não-duráveis,
destinados ao consumo das classes populares, mas desemboca num “processo
concentracionista” de fabricação de bens de consumo duráveis o que:
“não se deve a nenhum fetiche ou natureza dos bens, (...), mas à redefinição das relações capital-trabalho, à enorme ampliação do ‘exército industrial de reserva’, ao aumento da taxa de exploração, às velocidades diferenciais de crescimento de salários e produtividade que reforçaram a acumulação. Assim, foram as necessidades da acumulação e não as do consumo que orientaram o processo de industrialização” (OLIVEIRA, 2003, 50, grifo do autor).
Além disso, o Estado brasileiro, para criar bases para a acumulação capitalista
industrial, estimula esse setor investindo em infraestrutura, dando subsídios cambiais para
baixar o preço das importações de capital fixo, ampliando o crédito, transferindo recursos
do fundo público, ao mesmo tempo em que impôs um confisco cambial ao café,
desestimulando a economia agrária. A agricultura cumpre um novo papel. Cabe a ela não
obstaculizar o desenvolvimento industrial fornecendo alimentação às massas urbanas a
baixo custo (OLIVEIRA, 2003).
23 No inicio da passagem ao capitalismo tardio de Mandel (1982) ou à fase monopolista de hegemonia norte-americana segundo a divisão de Harvey (2003). 24 “A crise cambial encarece os bens até então importados e, no limite, a não-disponibilidade de divisas e a Segunda Guerra Mundial impedem, até do ponto de vista físico, o acesso aos bens importados; isso dá lugar a uma demanda contida ou insatisfeita que será o horizonte de mercado estável e seguro para os empresários industriais que, sem ameaça de competição, podem produzir e vender produtos de qualidade mais baixa que os importados a preços mais elevados” (OLIVEIRA, 2003, 48). Para o autor esse fator é superestimado nas análises da industrialização no Brasil.
67
acumulação (OLIVEIRA, 2003, 45). A agricultura atrasada financiava a agricultura
moderna e a industrialização.
Outro importante papel exercido pelo Estado foi a construção de empresas públicas
ou semi-públicas como a Petrobrás e a CSN em Volta Redonda. Ao contrário da
infraestrutura necessária para um mercado capitalista de traços hegemonicamente mercantis,
as necessidades de infraestrutura para um sistema de produção industrial não poderiam ser
supridas pela iniciativa privada, seja estrangeira ou local, ficando essa função a cargo do
Estado25
Oliveira (2003) defende que no Brasil a estrutura de emprego, com participação
significativa do setor terciário, não é contraditória com acumulação capitalista. Os serviços
foram necessários no crescimento das cidades, como suporte à industrialização, realizados a
base de somente força de trabalho, remunerada com salários baixíssimos. Barbosa (2008,
288) também atenta para que esse suposto “terciário inchado” é na prática uma força de
trabalho a serviço do capital tanto para responder à lógica truncada de reprodução de força
de trabalho, bem como reserva permanente para as necessidades do capital em momentos
de expansão. Assim, esse setor informal, historicamente associado aos serviços “não
resultaria de uma deficiência do capitalismo nos trópicos, indicando, ao contrário, o caráter
(FERNANDES, 2006, 287).
Afirma-se com isso um novo modo de acumulação, onde o Estado brasileiro atua
como planificador, ampliando suas funções, induzindo e regulando um novo modelo
econômico (Oliveira, 2003, 40).
Nesse contexto, começam a se regulamentar os fatores da produção. Uma das mais
importantes regulamentações é a da relação capital/trabalho com a legislação trabalhista.
Assim, o Estado brasileiro institucionalizava o mercado de trabalho livre transformando a
população que imigrava dos campos em exército industrial de reserva, igualava por baixo o
preço da força de trabalho, rebaixando os salários de trabalhadores especializados e
expulsava, com isso, os custos de reprodução da força de trabalho de dentro das empresas
através da instituição do salário mínimo. A regulamentação do trabalho é estruturante na
industrialização brasileira, pois é das novas relações entre capital e trabalho pós-escravismo
que irão se recriar as fontes internas de acumulação.
25 Numa função de Estado classificada por Mandel (1982) como a de assegurar os requisitos para a produção, idéia já desenvolvida no primeiro capítulo desse trabalho.
68
segmentado e não-universalizante da sua expansão, comandado pelos interesses
econômicos e pelo Estado particularista” (ibidem, 289).
É a intensa exploração da força de trabalho e a presença dos serviços de
características não-capitalísticas, uma das bases de apoio à industrialização tardia brasileira.
Por ser tardia, essa industrialização queima etapas, “entre as quais a mais importante é não
precisar que o preço da força de trabalho se torne suficientemente alto para induzir
transformações tecnológicas que economizam trabalho” (ibidem, 67). Na combinação entre
a massificação da força de trabalho urbana, com baixos custos de reprodução gerados pelo
modelo agropecuário implementado e pelo aumento dos serviços, com o crescimento da
produtividade industrial, especialmente com o giro para a produção de bens de consumo
duráveis, é que surge tanto a enorme acumulação industrial ulterior como, ao mesmo tempo,
a tendência à concentração de renda.
Mello (1994,17) vai afirmar, como sua tese central, que “a industrialização latino-
americana é problemática porque periférica.” Esse período de industrialização da periferia
que o autor chama de “etapa do desenvolvimento para dentro” carrega os traços da
desigualdade do desenvolvimento mundial que refletem-se no descompasso entre as
técnicas produtivas avançadas do centro e na periferia, a falta de capacidade de poupança, a
relativa fragilidade da demanda e a falta de indústrias de bens de capital que possam
absorver a força de trabalho, evitando o desemprego estrutural.
Para Mello (1994, 18) a industrialização da periferia encontra na fragilidade da
demanda, isto é na falta de desenvolvimento do mercado interno, um de seus empecilhos.
Apesar da magnitude numérica da população das periferias, as debilidades de demanda,
conseqüências da baixa renda gerada pelas trocas historicamente desiguais com o centro,
fazem com que não haja vantagens, nem capital, para o emprego de novas técnicas que
gerem uma produção em massa.
Da década de 50 em diante, o Brasil passa do capitalismo competitivo ao
capitalismo monopolista. Para Fernandes (2006, 294) essa transição é muito mais complexa
do que a instauração do capitalismo competitivo em nações periféricas recém egressas de
situações neocoloniais. Isso porque a monopolização requisitava: altos índices
demográficos generalizados; alta renda per capita ao menos em setores médios e altos da
população para aumentar os padrões de consumo; um mercado interno diferenciado, denso
69
e integrado; capital excedente que pudesse imigrar para o mercado financeiro para fazer
crescer o crédito ao consumo e à produção; modernização tecnológica e estabilidade
política através do controle efetivo do Estado pela burguesia local, condições que apenas
algumas nações periféricas alcançavam. Para o resto da periferia, onde o Brasil incluía-se, a
estratégia do capital monopolista foi instalar-se através das grandes corporações assumindo
significativamente o controle da exploração e da comercialização internacional de matérias-
primas, das atividades financeiras e da produção industrial para consumo interno. As
estruturas herdadas do período neocolonial eram vantajosas para as corporações pela falta
de mecanismos defensivos à incorporação de suas economias. As corporações já estavam
antes no país, contudo sua influência diluía-se no padrão competitivo, ainda que
contribuíssem para a transição ao capitalismo monopolista nos países centrais, por meio de
excedentes drenados para essas economias.
Passa-se a observar “uma forma de incorporação devastadora da periferia às nações
hegemônicas e centrais, que não encontra paralelos nem na história colonial e neocolonial
do mundo moderno, nem na história do capitalismo competitivo” (FERNANDES, 2006,
296) A periferia torna-se um atrativo mercado para a expansão do capitalismo pós-II
Guerra Mundial e as corporações passam a disputar esse espaço “gerando o que se poderia
descrever, com propriedade, como a segunda partilha do mundo” (FERNANDES, 2006,
296).
Do ponto de vista político a ameaça do socialismo, levada a cabo em países como
Cuba e a Iugoslávia, tornava necessário um reforço no controle da periferia, fundamental
para a expansão do capital, seja como fonte de matérias-primas seja como espaço para a
expansão dos mercados.
Por isso mesmo, com a pressão das corporações, os governos dos países centrais
junto com organizações internacionais ligadas à comunidade de negócios passam a
desenvolver projetos econômicos, financeiros, tecnológicos, de assistência, e voltados para
educação, sindicatos, saúde, militares entre outros, com o objetivo de reforçar o poder de
decisão e controle das burguesias “associadas” ao capitalismo central.
O primeiro momento dessa fase no Brasil relaciona-se com o governo Kubitschek e
o segundo aos governos militares pós-64. No primeiro momento as corporações apenas
70
beneficiavam-se da falta de autodefesa, ou seja, de mecanismos de controle econômico e
político (OLIVEIRA, 2003).
No período Kubitschek, a conjuntura internacional pouco vantajosa reduziu as
movimentações financeiras entre governos fazendo crescer o endividamento externo
privado que se beneficiava de uma estrutura fiscal primitiva e regressiva (OLIVEIRA, 2003,
72). A corrida por industrialização do período fundamentou-se na compra de tecnologia ao
capital estrangeiro pelo Estado. Essa incorporação de capital fixo, ainda que obsoleto para
os padrões dos países centrais, foi decisiva no crescimento da economia, já que a pífia
acumulação primitiva interna não seria capaz de suprir essa necessidade. Essa tecnologia,
porém, não era transferida às empresas nacionais pela intermediação do Estado. “Inclusive
as políticas científica e tecnológica de instituições como as universidades eram
completamente desligadas da problemática mais imediata da acumulação de capital”
(OLIVEIRA, 2003,77). Ou seja, o empresariado nacional não enxergava no Estado essa
função, não exercendo pressão nesse sentido.
A política econômica foi elaborada deliberadamente a partir das possibilidades
internas para o crescimento. Um crescimento que não alterou, pelo contrário, a desigual
distribuição de renda e a concentração do poder político.
O aumento da exploração da força de trabalho foi o outro flanco que gerou os
excedentes para a acumulação, ao aumentar a relação da produtividade com os salários
reais, tendência que só se alterou nos momentos de ascenso da organização trabalhadora
como em 1961, no período do governo Goulart (OLIVEIRA, 2003,78). Outro elemento,
que rebaixava a capacidade de compra dos salários sem a necessidade de que essas
reduções fossem nominais, era o avanço da urbanização, da industrialização e da
mercantilização da sociedade, que aumentava as necessidades sociais e, portanto, os custos
da reprodução da força de trabalho e reduzia as possibilidades de subsistência por outros
meios, o que não era coberto pelos salários. Para Oliveira (2003) é dessa pauperização
concreta da classe trabalhadora urbana, que tinha seu potencial de consumo relativamente
reduzido quando comparado aos avanços da industrialização, que se originam os fatores de
conflito que desembocarão na crise de 64.
Fernandes (2006, 375) afirma que a situação não chegava a patamares pré-
revolucionários anti-burgueses, mas era potencialmente pré-revolucionária. Ainda que os
71
conflitos não colocassem em risco o domínio burguês, suas divisões internas e a situação
efervescente da luta de classes restringiam a eficácia da dominação burguesa, que não
encontrava solução rápida e superação definitiva.
O autor atribui o êxito da saída autocrática a: características demográficas,
econômicas e sociais que tornavam possível uma nova onda de industrialização com a
colaboração externa; a assistência econômica, técnica e política dos países capitalistas
centrais e dos organismos internacionais, chamados por ele de “comunidade internacional
de negócios”; a identificação das Forças Armadas com os objetivos e interesses burgueses e
sua atuação na rearticulação da dominação burguesa; e a ambigüidade e fraqueza dos
movimentos reformistas e socialistas revolucionários com pouca irradiação na classe
operária mais baixa. A partir daí a solidariedade de classe da burguesia deixa de ser
democrática ou autoritária passando abertamente a ser totalitária e contra-revolucionária,
forjando uma “ditadura de classe preventiva” (FERNANDES, 2006, 368).
Nesse segundo momento de consolidação do capitalismo monopolista no Brasil, a
política econômica unificava governo e empresários, abrindo o espaço necessário à
consolidação desse novo padrão de desenvolvimento. As transformações necessárias para
essa transição no mercado e na produção são profundas e nocivas a vários grupos e classes
sociais de forma que “ela se torna impraticável sem um apoio interno decidido e decisivo,
fundado na base de poder real das classes possuidoras, dos estratos empresariais mais
influentes e do Estado” (FERNANDES, 2006, 302).
A exclusão histórica da classe trabalhadora brasileira de todos os processos sociais,
culturais e políticos sempre tornou o Estado nacional instrumento monopolizado pela
burguesia. Na transição ao capitalismo monopolista essa monopolização tornava-se ainda
mais aguda e necessária. O padrão de desenvolvimento econômico, racional e
modernizador dissocia-se, então, do padrão de desenvolvimento político, que “atrelou o
Estado nacional não a clássica democracia burguesa, mas a uma versão tecnocrática da
democracia restrita, a qual se poderia qualificar (...) como uma autocracia burguesa”
(FERNANDES,2006, 313).
Esse modelo político altamente repressivo, que limitava os espaços de participação
legal às elites da classe dominante defensoras do regime, tinha um elemento econômico. Os
trabalhadores também foram vítimas de processos de expropriação, para gerar novas fontes
72
de acumulação primitiva, relacionados à depressão de salários e alta dos preços. O regime
autocrático atuava “transferindo para a esfera da segurança nacional os comportamentos
coletivos de autodefesa econômica das massas trabalhadoras” (FERNANDES, 2006, 322).
Esse novo padrão de capitalismo também não rompe, nem pode romper, com a
lógica de convívio de múltiplas formas econômicas extra-capitalistas e capitalistas arcaicas
herdadas de épocas anteriores. Isso porque, nas periferias, essas continuam sendo as fontes
principais da acumulação primitiva que sustentam a modernização econômica, tecnológica
e político-institucional.
Mas o legado deixado pelo regime militar é a construção de um novo país, que
mantém a heteronomia, a exclusão e as soluções pelo alto, mas concretiza a modernização
conservadora através de um Estado refuncionalizado, consolidando, nos termos de Gramsci,
um perfil ocidental ao menos no plano econômico (BEHRING, 2003).
Conseqüência dos novos arranjos entre Estado, capital privado nacional e capital
transnacional, onde as medidas ainda mais repressivas pós-68, notadamente o AI-5, tiveram
papel central na contenção dos movimentos contestatórios e no aprofundamento da
exploração do trabalho, a década de 70 no Brasil é o momento do “milagre econômico”. As
concessões do Estado ao capital privado nacional e estrangeiro promoveram concentração e
centralização, consolidaram um padrão de industrialização voltado para as elites nacionais e
para a demanda exterior, viabilizando o processo de modernização conservadora 26
Para Ianni (1976) o “milagre” brasileiro, financiado pelo capital norte-americano,
teve também um papel ideológico. Se o “milagre” japonês foi apresentado como alternativa
à China socialista na década de 1960 e o “milagre” alemão como resposta a Alemanha
.
Superando a crise de 1961-1967, a partir de 1968 o Brasil passa a uma fase de recuperação
e expansão da sua economia. O desenvolvimento se dava às custas da privatização dos
fundos públicos e do endividamento externo e representou mudanças significativas na
estrutura produtiva, na formação do mercado de trabalho e na infra-estrutura urbana.
Contudo seu saldo foi a ampliação da concentração de renda, a pauperização da maioria da
população e a precarização das suas condições de vida e trabalho (MOTA, 2008, 60).
26 Behring (2003, 107) baseada em Moore Jr., caracteriza a modernização conservadora como “uma aliança entre a classe comercial e industrial demasiado fraca e dependente para tomar o poder, com a aristocracia proprietária de terras e a burocracia estatal, configurando um governo conservador e autoritário(...). O Estado é um instrumento de reforma e motor da industrialização, além de manter os operários e camponeses no seu lugar, seja pela força, seja com políticas sociais.”
73
socialista pós-muro na década de 1950, o “milagre” brasileiro era a propaganda do bem
sucedido modelo de desenvolvimento capitalista associado como alternativa ao socialismo
cubano e chileno27
Essa política é a base geradora da crise dos anos 80, com a suspensão do crédito
internacional em 1983, que obrigou o país a exportar capital para pagar suas exorbitantes
dívidas
.
As crises do petróleo dos anos 70, catalisadores da crise do capital já analisada no
capítulo anterior, exigiram ajustes na política nacional. A tentativa do governo Geisel foi
desenvolver o II PND – Plano Nacional de Desenvolvimento, que dava ênfase no
desenvolvimento da indústria de base e de bens de capital. O Plano fracassou graças à
disputa de interesses dos grupos nacionais e multinacionais e aos elementos externos de
crise. A política nacional de então dependia do crédito internacional, obtido por meio de
renegociações da dívida. Esse endividamento externo, que se apresentava como ‘solução’
para os problemas econômicos do período, abriu as portas para a financeirização da
economia brasileira (Oliveira, 2003, 132).
28 . Passamos do “milagre econômico” de 1970 à “década perdida” 29
27 Não cabe aqui uma análise do governo Allende mas há de se ressaltar as diferenças entre Cuba, que passou por uma revolução em fins da década de 1950 e o processo chileno, uma vitória eleitoral da Frente Popular. Ainda que ambos fossem bastante incômodos aos EUA é questionável se, como afirmado por Ianni, o Chile chegou a viver um regime socialista. 28 Processo conhecido como crise da dívida que afetou não só o Brasil, mas o conjunto da América Latina. Fizemos referência a ele no primeiro capítulo desse trabalho. 29 Década perdida do ponto de vista econômico mas de grande ascenso dos movimentos sociais na luta por direitos e democracia.
de 1980,
caracterizada pelas baixas taxas de crescimento do PIB, compressão dos salários e mais
concentração de renda. Assim como os demais países latino-americanos o Brasil
transformou-se num “pobre provedor de capital para os centros hegemônicos” (OLIVEIRA,
2003, 69). Ao mesmo tempo, despontavam os movimentos políticos, sobretudo
relacionados ao novo sindicalismo do ABC, o que iria minar de vez os alicerces do regime
político dos militares (OLIVEIRA, 2003, 62).
O processo de transição do regime militar para a democracia burguesa, assim como
todas as transições anteriores no país desde a Independência, foi novamente controlado
pelas elites para evitar saídas populares radicais, uma transição chamada “conservadora
sem ousadias e turbulências” por Fernandes (apud BEHRING, 2003,130).
74
Para Mota (2008) as soluções para a crise que eclodiu da década de 80, que são as
raízes do Consenso de Washington, sofreram inflexões na segunda metade da década de
1980. Isso porque a lógica de ajuste automático fracassou, o que não foi diferente no caso
brasileiro. O discurso da crise como um fato que afetava indiferenciadamente o conjunto da
sociedade, abriu as possibilidades para construção de um pacto social entre trabalhadores,
empresários e Estado, baseado numa “cultura indiferenciada entre trabalhadores e
empresários acerca do enfrentamento da crise no Brasil” (MOTA, 2008, 83). As
reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de vida e trabalho foram
insuficientes para gerar uma cultura própria e uma frente de peso.
No entanto, o processo de ascenso dos movimentos sociais, repercutindo o novo
sindicalismo e as lutas pela reabertura democrática no país, forjaram uma Constituição em
1988, anacrônica para a reação burguesa no plano internacional em curso, mas “em alguns
aspectos embebida da estratégia social-democrata e do espírito ‘welfariano’”(BEHING,
2003,129). O texto refletia a disputa de projetos hegemônicos avançando em aspectos como
os direitos sociais, humanos e políticos mas mantendo, por outro lado traços conservadores,
somando o novo e o velho, tão ao gosto da lógica nacional. “Uma Constituição
programática e eclética, que em muitas ocasiões foi deixada ao sabor das legislações
complementares” (BEHRING, 2003, 143).
Na porta de entrada para os anos 1990, período de profundas contra-reformas e
ataques aos trabalhadores, como veremos nas próximas seções, ainda se vê uma nova
tentativa de resistência à dominação burguesa expressa nas eleições de 1989, quando uma
candidatura representante dos interesses dos “de baixo” chega perto da presidência da
república. Collor de Melo, apesar de vitorioso, “não representava a vontade política efetiva
da burguesia brasileira, como demonstram os fatos ulteriores que resultaram no seu
impeachment em 1992” (BEHRING, 2003, 113).
Em 1990 o Banco Mundial prescreve um “novo consenso” que afirma não ser
possível que o ajuste econômico dê certo sem “reformas” estruturais. Essas “reformas”
estruturais têm seu discurso baseado no tratamento e amenização da pobreza através de
políticas focalizadas associadas à desregulamentação do mercado, a privatização do setor
público e a redução do Estado, no que tange ao atendimento das demandas dos
trabalhadores.
75
Resolvida a crise política que gerou o impechment de 1992, a burguesia brasileira
pode retomar seu projeto de hegemonia, adaptado a posição dependente do país no
capitalismo internacional, preparando um novo período de ataques a classe trabalhadora
que vai se consolidar com o Plano Real e a eleição de Cardoso em 199430
No século XIX, com a chegada da corte portuguesa no Brasil, criam-se os primeiros
cursos superiores não-religiosos
.
2.1. A trajetória da educação no Brasil: surgimento e consolidação do ensino superior.
31
Com a independência política e a ascensão do “setor novo” urbano, cresce a
demanda por educação. A educação torna-se um importante fator de ascensão social; o
status do título de doutor concorria com os títulos de propriedade de terras. A educação,
contudo, permanecia hegemonicamente relacionada à ideologia das elites rurais, chocando-
se com o liberalismo, que emergia como a ideologia a qual se filiaria a burguesia
ascendente no Brasil
. Seu propósito central era a educação das camadas
dominantes, ficando os outros níveis de ensino abandonados. Contraditoriamente, o ensino
superior lança, ainda que lentamente, a base das mudanças de ideologia que se manifestarão
no período seguinte, introduzindo as idéias que vigoravam entre a burguesia européia de
então.
32
30 Daremos destaque ao governo Cardoso bem como ao governo Lula em seções posteriores desse trabalho. 31 Destaca-se a criação dos cursos médico-cirúrgicos no Rio de Janeiro e na Bahia, as Faculdades de Direito de São Paulo e de Recife , as Academias Militares, e a Academia de Desenho, Escultura, Pintura e Arquitetura, criada pela Missão Francesa, posteriormente Escola de Belas Artes. Todos datam das duas primeiras décadas do século XIX (ROMANELLI, 2009, 38). 32 Com todas as contradições já apontadas nesse trabalho.
. Os formados no ensino superior passam a assumir os cargos
administrativos e políticos relacionados à máquina estatal.
A divisão dual do ensino, existente desde a colônia, se perpetua: as escolas
secundárias e o ensino superior destinando-se às classes dominantes e o ensino básico e
profissional à classe trabalhadora. Porém, a urbanização e a industrialização que começam
a emergir com mais força a partir da década de 1930, colocam novas demandas para a
educação escolarizada. Até esse momento a educação disponível era suficiente para as
baixas exigências do modelo econômico existente. Cresce a necessidade de força de
trabalho para os setores secundários e terciários da economia.
76
O capitalismo industrial necessita massificar o conhecimento tanto pelas
necessidades da produção como pelas novas necessidades de consumo. No Brasil, essa
necessidade se faz sentir com enorme atraso frente aos países centrais e de forma desigual
no próprio território nacional, já que a urbanização e as conseqüentes demandas
educacionais só se manifestam em alguns centros urbanos.
A expansão educacional se dá, todavia, mais como resposta às pressões exercidas
pelo capital e pelos trabalhadores ao Estado por mais capacitação, do que como uma
política nacional planejada. Por essas razões a expansão do ensino foi insatisfatória tanto
quantitativa quanto qualitativamente. Mantém-se o mesmo modelo de escola de traços
aristocráticos e a divisão dual entre o ensino para a elite e os trabalhadores também não é
superada, conservando uma educação superior insuficiente (ROMANELLI, 2008, 61).
O ensino superior, apesar de existir no Brasil desde o início do século XIX, só passa
a ser organizado em universidades a partir de 1920, com a criação da Universidade do Rio
de Janeiro. Entretanto, apenas em 1931 cria-se o Estatuto das Universidades Brasileiras,
sendo a Universidade de São Paulo a primeira criada e organizada sob essas normas em
1934. As três universidades existentes até então, no Rio, no Paraná e em Minas Gerais,
eram apenas a agregação de cursos anteriormente autônomos (ROMANELLI, 2008, 132).
O Brasil torna-se o último país da América a criar ensino superior universitário. Nesta
altura no continente já havia mais de 100 instituições desse tipo, surgidas desde o século
XVI (ORSO, 2007, 44).
Segundo Orso (2007), o atraso na formação do ensino superior no Brasil não se deu
nem devido à inexistência de projetos, nem às dificuldades financeiras. Desde a Colônia e
com mais força no Império a idéia da criação de universidades estava presente. Chocavam-
se, porém, os modelos propostos: coimbrão e napoleônico pelo governo, mais
centralizadores, e germânico pelos liberais, apoiado na autonomia, liberdade de pensamento
e ensino livre. A formação da USP veio no bojo da Revolução de 30, regida pelos liberais
que “defendiam a educação superior como sendo a principal força inovadora da sociedade”
(ORSO, 2007,53).
O Estatuto das Universidades Brasileiras instituiu o regime universitário no Brasil.
Seus objetivos, na prática, são a investigação científica e o preparo para o exercício
profissional “mas, apesar de ambos constarem da declaração de princípio da legislação, a
77
Universidade brasileira vem perseguindo, desde sua criação, apenas os objetivos ligados à
formação profissional, salvo raríssimas exceções” (ROMANELLI, 2009, 133). A autora
atribui as causas do fracasso da pesquisa como objetivo das universidades à estratificação
social, à herança cultural mantendo a estrutura arcaica do ensino e a forma como evoluía a
economia e a industrialização.
O Estatuto também estabelecia a estrutura organizacional da universidade, as
categorias da carreira docente e os tipos de curso ministrados. Mantinha as características
aristocráticas do ensino, transplantando para o âmbito universitário “as relações sócio-
políticas características do coronelismo” (ROMANELLI, 2009,134) na dependência e
submissão de todos os docentes aos catedráticos. Coroava também uma relação
descentralizadora internamente e ao mesmo tempo centralizadora em relação ao governo
federal que determinava até nomeações. O ensino superior consagrava, ainda, a falta de
diversificação com a obrigatoriedade dos clássicos cursos de Direito, Medicina, Engenharia
e Educação, Ciências e Letras. Tudo isso contribuía para a universidade brasileira não viver
um regime verdadeiramente universitário.
A expansão das universidades, respondendo a pressão da demanda, não era
planejada nem refletia as necessidades de desenvolvimento do país. Determinados cursos
cresceram não a partir dos imperativos sociais, mas da facilidade para sua implementação e
os baixos preços para a iniciativa privada, da tradição relacionando-os ao status social,
continuando a formar uma elite “apenas por diletantismo” (ROMANELLI, 2009, 125).
“Dessa forma o velho sobreviveu ao novo, até na organização do ensino” (ROMANELLI,
2009, 134). Segundo Orso (2007, 60) a universidade brasileira tinha, então, os mesmos
objetivos da universidade clássica, conforme descrita por Mandel (1979):
“(...) por meio da criação da universidade, intentava-se criar uma espécie de aparelho ideológico para formar reciclar as elites, formar intelectuais de acordo com a concepção de mundo, de homem e de sociedade liberais e de acordo com os interesses burgueses, para, nas palavras de Mesquita Filho ‘ consolidar a democracia no Brasil’ ou, nas palavras de Antonio Carlos, ‘fazer a revolução antes que o povo a fizesse.”
Apesar de constituída e inspirada na utopia liberal, a universidade brasileira vai sendo
moldada pelas transformações sociais, políticas e culturais gestadas, sobretudo, a partir da
década de 1950. A partir já de 1938 o caráter profissionalizante vai se sobrepondo a idéias
78
de estudos desinteressados e integração de todas as áreas do saber. Além disso, as pressões
da classe trabalhadora por vagas nas universidades colocavam em xeque o projeto elitista e
aristocrático original (ORSO, 2007b).
Na década de 1950, com a monopolização do capital sob o projeto
desenvolvimentista amplia-se a matrícula em todos os níveis da educação, com um
acréscimo do investimento estatal em sua própria rede de ensino. As taxas crescentes de
urbanização e as novas formas de industrialização necessitavam de uma ampliação da
escolarização da classe trabalhadora. A expansão do ensino superior, nesse período,
caracterizou-se pela ampla participação do Estado e pela diversificação progressiva tanto
horizontal, com o aumento de cursos e especialidades, quanto vertical, com a
hierarquização em graus dos cursos superiores (NEVES E PRONKO, 2008, 43).
Foi também na década de 1950 que foram criadas as primeiras instituições de
fomento à pesquisa e apoio à formação de pessoal de nível superior: a Campanha de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, criada em 1951 com o intuito de
aprimorar o quadro docente do nível superior e o Conselho Nacional de Pesquisas – CNPq,
também criado em 1951 para coordenar e planejar o desenvolvimento das atividades de
ciência e tecnologia no país (NEVES E PRONKO, 2008, 43).
O período seguinte, do regime militar, é marcado pela “cooperação” com organismos
internacionais, os conhecidos acordos MEC-USAID 33
Netto (2002), que adota a mesma periodização apontando-a como consensual entre
os estudiosos desse período, afirma que a inflexão de 1968 não significa a existência de um
. Romanelli (2009) aponta dois
períodos para a educação durante o regime militar, coincidentes com a periodização de duas
fases para a economia e a política. Até 1968 se implementou o novo regime, traçando uma
política para a recuperação econômica. Nessa fase, o crescimento da demanda por educação
fez aumentar a crise do sistema, forjando os acordos supracitados com organismos dos
países centrais. Após 1968, a retomada do crescimento econômico e o aumento da
repressão às lutas sociais coincide com a implementação de medidas práticas de adequação
do sistema educacional ao modelo econômico vigente através das propostas trazidas pela
AID.
33 São convênios entre o MEC e a AID – Agency for Internacional Development, organização estadunidense, para assistência técnica e cooperação financeira ao sistema educacional brasileiro (ROMANELLI,2009, 196).
79
novo projeto educacional, mas da emergência de condições que permitiram levar a filosofia
à prática 34
É importante fazer um parêntese para retomar a centralidade do papel cumprido
pelas agências internacionais, em particular a AID, na educação no período. Para Romanelli
(2009, 198) os objetivos da “ajuda” na superação do subdesenvolvimento partiam de uma
concepção técnica dessa condição. O subdesenvolvimento era encarado como atraso sendo
. As pressões por reformas educacionais derivam-se segundo o autor, da
crescente demanda educacional surgida na década de 1950, sobretudo das classes médias
por ensino superior, por enxergarem aí sua possibilidade de ascensão social nos marcos de
um modelo econômico industrializante que criava, então, uma quantidade e variedade de
novos empregos, que necessitavam de diversos níveis de qualificação. E essas classes têm
papel fundamental na sustentação do regime militar tendo a reforma educacional um “efeito
político-social”, principalmente a partir do ascenso do movimento estudantil e seu
“potencial catalisador” da luta contra a ditadura, que acabam por colocar a questão
educacional como prioridade para o regime.
Essa demanda da classe média por vagas no ensino superior foi o mote da crise, já
que não era acompanhada do crescimento de vagas. Entre 1960 e 1964 o percentual de
inscritos no Vestibular cresceu em 50% e o número de vagas 64% gerando um saldo
positivo. No período seguinte o crescimento da demanda foi de 120% com um crescimento
de apenas 52% da oferta (ROMANELLI, 2009, 207). O problema colocado em pauta eram
os excedentes, alunos que passavam nas provas e não conseguiam vagas nas universidades.
A partir de 1968 inicia-se a implementação das propostas de “reforma” universitária
do regime militar. Essa refuncionaliação representou uma “modernização conservadora”
que ao mesmo tempo incorporava bandeiras históricas do movimento social na educação
como o fim da cátedra vitalícia e a adoção definitiva das universidades como modelos de
organização para o ensino superior em respostas às rebeliões estudantis, e mantinha antigas
práticas, não rompendo com o conservadorismo (GÓES E CUNHA, 1985, 83 apud NETTO,
2002, 59). As mudanças na educação iniciam-se exatamente pelo ensino superior, centro do
movimento estudantil contestador do regime e, segundo a AID, irradiador de mudanças nos
outros níveis (NETTO, 2002, 60).
34 “Nesse período [1964-1968] (...) o regime tem outras prioridades, quer de repressão às tendências democráticas e populares no plano político, quer de viabilização econômica do seu projeto modernizador” (NETTO, 1990, 56).
80
a mudança nos hábitos de consumo, ação e pensamento da população a chave para alcançar
os níveis de desenvolvimento centrais35
“Somente, pois, quando há necessidade de redefinição na expansão econômica que implique o aparecimento ou o incremento de demanda econômica de recursos humanos de vários níveis de qualificação e também quando o remanejamento das forças na estrutura do poder objetive utilizar-se da modernização como ideologia de justificação e necessite aumentar as oportunidades educacionais em determinada direção, é que as pressões da demanda social de educação começam a ser
. Nessa concepção a educação passa a ser setor
estratégico por criar e expandir mercados, seja pelo consumo ou pela formação de recursos
humanos adequados ao desenvolvimento. “Em se tratando de sociedades colonizadas ou recém saídas do colonialismo, a ajuda internacional tem sido instrumento eficiente de fornecimento e preparo de mão-de-obra ou de recursos humanos de vários níveis de qualificação, culturalmente adaptados aos objetivos da consolidação da dependência, mesmo após a emergência das sociedades nacionais” (ROMANELLI,2009, 200).
A reformulação das universidades proposta pela AID tem por objetivo constituir
uma dependência direta das instituições dos países dependentes em relação às instituições
norte-americanas por meio da “colaboração” entre elas.
A crise educacional gerada pelo desequilíbrio entre oferta de vagas e demanda foi
usada como justificativa para a “cooperação”. Seu objetivo, entretanto, era “assegurar ao
setor externo oportunidade para propor uma organização do ensino capaz de antecipar-se,
refletindo-a, à fase posterior do desenvolvimento econômico” (ROMANELLI, 2009, 209).
A fase era propícia graças às condições de dominação interna suscitadas pelo regime militar.
Percebe-se na reforma universitária do regime militar uma expansão de vagas,
respondendo às pressões da ampliação da demanda tanto pela classe média quanto pelo
sistema econômico que necessitava de recursos humanos. Essa expansão, embora grande,
não respondia a toda a necessidade de vagas, pois era limitada pela política econômica
adotada. Romanelli (2009, 203) aponta que a expansão depende de certas condições
internas, já que a seletividade fornecida pela restrição de vagas pode ser útil na manutenção
do status quo ou na permanência de uma força de trabalho de baixo nível. Até a década de
1950, antes da penetração maciça de multinacionais, as necessidades de treinamento de
força de trabalho podiam ser supridas por instituições como o SENAI e o SENAC.
35Concepção já criticada nesse trabalho, por desconsiderar o papel fundamental que os países “atrasados”, ao permanecer nessa condição, cumprem para a totalidade do desenvolvimento do modo de produção, que ocorre de forma desigual e combinada.
81
consideradas. Esse processo é sempre definido em termos de interesses, pelo aumento ou não da participação social no jogo político” (ROMANELLI, 2009, 203).
A autora vai apontar que as mudanças acentuadamente quantitativas e que a isolam
do conjunto da sociedade, na prática tiram da educação a função demandada pelas classes
que almejam ascensão. Isso porque os processos de massificação gerados pela
modernização geram “perda do poder aquisitivo que o trabalho qualificado pode oferecer
ao indivíduo, perda progressiva de status pelas profissões de nível superior” (ROMANELLI,
2009, 204). Essas considerações têm importância central no desenvolvimento desse
trabalho pois as expansões atuais na educação superior, objetos de nosso estudo, guardam
semelhança com as expansões implementadas no regime militar sobretudo na forma em que
afetam o mercado de trabalho.
Esse aumento de vagas não foi proporcional ao aumento de custos. A introdução da
lógica empresarial na gestão universitária, com medidas burocratizantes e racionalizadoras,
visava baratear o ensino superior para o Estado. Possibilitava, assim, atender a demanda da
classe média por vagas e ao mesmo tempo contingenciar os recursos públicos destinados às
universidades. Foi também nesse momento que o ensino superior privado se expandiu,
ampliando vagas de baixa qualidade, na sua maior parte ocupadas por trabalhadores mais
pobres. Entre 1968 e 1973 a oferta de vagas nas universidades aumentou 210% na rede
pública e 410% na rede privada (NETTO, 2002, 63).
As possibilidades críticas e criativas da universidade foram reprimidas pela força do
regime enquanto o Estado passava a comprar tecnologia dos países centrais, em particular
dos EUA. Nesse ambiente, praticamente livre dos elementos de contestação, o capital
conseguiu qualificar a força de trabalho, com a ajuda do Estado, de acordo com suas novas
necessidades. Destarte, os vários mecanismos que degradaram intelectualmente a universidade não afetaram o projeto autocrático burguês: antes constituíram um de seus feitos – a universidade neutralizada, esvaziada, reprodutiva e asséptica era funcional a ele (NETTO, 2002, 66)
Esse modelo também tem a AID como suporte. Segundo sua concepção “não cabe à
universidade nenhuma ação inovadora, revolucionária, mas tão-somente modernizadora,
acomodatícia, vale dizer conservadora. Essa é a sua missão” (ROMANELLI, 2009, 211)
82
Do ponto de vista de seu conteúdo, a “reforma” universitária do regime militar foi
moldada pelas propostas USAID, mas não explicitamente. O governo criou em 1967 a
Comissão Meira Matos36 e o Grupo de Trabalho da Reforma Universitária37
As propostas da comissão se assemelham muito com a agenda que vem sendo
discutida nas “reformas” universitárias pós-Constituição democrática. As principais,
segundo resumo de Romanelli (2009, 219) são a ampliação da capacidade de vagas pelo
melhor aproveitamento da infraestrutura com multiplicação de turnos, redução de férias e
etc e a instituição de anuidades para o ensino superior público para aqueles que podem
pagar. Por outro lado, também incorpora reivindicações ainda bastante atuais como a
melhoria do sistema de remuneração docente, a ampliação de vagas e maior rigor nos
critérios de reconhecimento das instituições particulares. Mais impactante ainda é observar
como coincidem as propostas específicas para o ensino superior e as propostas mais
recentes da “reforma” universitária do governo Lula
, todavia “o
que essa comissão veio propor coincidia exatamente com as propostas dos autores do
Acordo MEC-USAID” (ROMANELLI, 2009, 215).
38
36 Compunham essa comissão: o Coronel Carlos Meira Matos, da Escola Superior de Guerra, os professores Hélio de Souza Gomes e Jorge Boaventura de Souza e Silva, o promotor Affonso Carlos Agapito da Veiga e o Coronel- Aviador Waldir Vasconcelos, do Conselho de Segurança Nacional (ROMANELLI, 2009, 219). 37 O grupo de trabalho foi designado pessoalmente por Costa e Silva e era composto por: Tarso Dutra, então ministro da educação, Roque Spencer Maciel de Barros, catedrático da USP, Newton Sucupira da UFPA e membro do Conselho Federal de Educação, Valnir Chagas da UFC também membro do CFE, Pe. Fernando Ávila, vice-reitor da PUC RJ, João Lira Filho, reitor da UEG, João Paulo dos Reis Veloso do Ministério do Planejamento, Antônio Couceiro da UFRJ e presidente do Conselho de Pesquisas, Leon Peres, João Carlos Moreira Bessa, presidente do DCE da PUC RJ e Paulo Passos, estudante de Engenharia da UFRJ. Os dois últimos estudantes recusaram-se a participar do grupo (ORSO, 2007b, 74). 38 Referimo-nos ao REUNI, objeto desse trabalho, e ao documento “Universidade Nova”, inspirador dessa nova fase de reformas. Aprofundaremos o conteúdo dessas propostas e suas semelhanças com a “reforma” do regime militar, que não são fruto de mera coincidência.
, quais sejam: redução de currículos e
diminuição dos cursos de formação profissional, criando carreiras de curta duração,
instituição de vestibulares unificados possibilitando o aproveitamento de todas as vagas
pelos aprovados, criação de ciclo básico comum para cada área, criação de um primeiro
ciclo especializado para carreiras de curta duração como formação de professores, criação
de um segundo ciclo especializado para carreiras de longa duração como Medicina e
Engenharia. Ainda objetivava a eliminação dos “espaços ociosos e dos professores ociosos”
aumentando a produtividade com redução de custos objetivando a “plena utilização da
capacidade instalada”.
83
As propostas progressistas apresentadas incorporavam as reivindicações pró-
reforma universitária dos segmentos estudantil e docente que cresciam desde antes do
regime militar . “Essa bandeira foi incorporada pelo Estado, até que, após o golpe militar,
foi completamente arrebatada pelos militares em 1968” (ORSO, 2007b, 75), que “fizeram a
revolução antes que o povo a fizesse”. Por isso Fernandes (1975 apud ORSO, 2007b)
chama a reforma de “reforma universitária consentida”.
Em relação às representações estudantis o documento propunha a substituição das
entidades consideradas subversivas por lideranças democráticas 39
39 Provavelmente semelhantes às atuais lideranças da UNE, debate que também retomaremos mais a frente.
reforçando grupos já
existentes e promovendo cursos por órgãos do MEC.
O Grupo de Trabalho da Reforma Universitária, segundo Romanelli (2009, 222) não
fugia aos objetivos do Relatório Meira Matos sendo o central adequar e instrumentalizar o
ensino superior às necessidades do desenvolvimento econômico em curso. Era pautado
também pelos princípios de eficiência e produtividade.
Além disso, a reforma em curso também implementou a pós-graduação, para
criação de uma elite a serviço dos objetivos nacionais e reorganizou o ensino médio para
profissionalizar e qualificar a força de trabalho nesse nível, reduzindo a demanda por
ensino superior. Foi nesse período que se desenvolveram e se consolidaram os programas
de pós-graduação que receberam estímulo para uma ampla expansão com o Primeiro Plano
Nacional de Pós Graduação em 1975.
Outras definições importantes apontadas pelo GT foram a liberdade dada às
universidades para definirem seus regimes jurídicos entre autarquias, fundações e
associações, a centralização da já então nada democrática escolha de reitores e diretores que
passa a ser prerrogativa da Presidência da República e a definição de ciclos e de cursos de
curta e longa duração, conforme o Relatório Meira Matos, implementados em decretos
governamentais.
A expansão proposta pelo GT observava a necessidade de adequar a demanda às
necessidades do mercado de trabalho, orientando a abertura de vagas para as necessidades
da expansão econômica. Essa preocupação se materializou no Decreto nº 63.341 de 1º de
outubro de 1968 que orientava a expansão para áreas que não estivessem saturadas.
84
O primeiro Decreto Lei, nº 53 de 18 de novembro de 1966, determinava mudanças
na organização que resgatassem os princípios de economia e produtividade. A existência
das cátedras dava aos catedráticos poderes e recursos que eram manipulados segundo seus
desejos de prestígio e status, gerando feudos que sobrepunham bibliotecas, laboratórios e
infraestrutura para fins idênticos dentro da mesma escola ou universidade. A racionalização
modernizadora do regime militar visava o fim dessa duplicação para reduzir o desperdício
de recursos. O decreto criava também um órgão central de supervisão do ensino e da
pesquisa, acabando assim com a estrutura universitária limitada a uma aglutinação de
escolas independentes.
O Decreto Lei nº 252 de 18 de fevereiro de 1967 deu continuidade à reestruturação
com os mesmos fins de racionalização de recursos. Criou dentro das unidades universitárias
unidades menores chamadas departamentos, eliminando a possibilidades de duplicação de
disciplinas idênticas na mesma unidade.
Em relação ao financiamento, o governo concedeu auxílio para a expansão das
matrículas através do Decreto Lei 405 de 31 de dezembro de 1968, exigindo que sejam
asseguradas produtividade, eficiência e plena utilização da capacidade instalada.
Ao mesmo tempo o governo colocava a UNE na clandestinidade, permitindo apenas
a existência de representação estudantil local através de DAs e DCEs que, no entanto,
estavam impedidos de qualquer ação, manifestação ou propaganda político-partidária,
segundo o artigo 11 do Decreto Lei nº 252.
Associou-se a isso o Ato-Institucional nº 5 e o Decreto Lei 477 de 1968. Este último,
exclusivo para o corpo docente, discente e administrativo proibia qualquer manifestação
política e de protesto dentro das universidades. Essas medidas diminuíam, ou ao menos
adiavam, a pressão por mais vagas da demanda reprimida. Estavam também relacionadas
entre si, na medida que faziam parte da garantia de condições para retomada e consolidação
do poder da classe dominante.
A reforma universitária, como modernização conservadora no regime militar, estava
imbuída da mentalidade empresarial, porém de cunho ideológico, relacionando
intrinsecamente medidas repressivas e técnicas nas mudanças.
“Desenvolvimentismo, eficiência, produtividade de um lado; controle e repressão, do outro. Ambos, portanto, interdependentes: a mentalidade
85
empresarial dando conteúdo ao desenvolvimento, e a utilização da força garantindo a implantação do modelo” (ROMANELLI, 2009, 218).
Seu modelo organizacional era o norte-americano, racional e capitalista, voltado
para a produtividade; “alterava-se o velho lema positivista da ‘ordem e progresso’ para
‘segurança nacional e desenvolvimento’ alinhado incondicionalmente aos Estados Unidos”
(ORSO, 2007, 79).
Por outro lado essa foi a primeira vez que o Estado se propôs a organizar o sistema
educacional segundo seu modelo econômico, ainda que ambos questionáveis. A “reforma”,
entretanto, não tinha por objetivo resolver os problemas educacionais, mas sim
“modernizar” e eliminar obstáculos políticos de maneira que a crise do ensino superior não
foi resolvida, apenas aplacaram-se as pressões do movimento estudantil (ORSO, 2007, 83).
Na década de 1980, o Brasil vive a transição da autocracia burguesa, materializada
no regime militar, para a democracia liberal. Em 1988 é aprovada a nova Constituição. Na
seção I do capítulo III, que dispõem sobre a Ordem Social, a Constituição afirma que a
educação é direito de todos e dever do Estado e da família com o apoio da sociedade.
Afirma a gratuidade da educação em instituições públicas, a autonomia universitária e
possibilita a educação em instituições privadas desde que observadas a regulamentação
nacional do ensino e a aprovação e avaliação da qualidade pelo Estado.
No que tange ao ensino superior, durante o governo Sarney, foi formado o Grupo
Executivo para a Reformulação do Ensino Superior – GERES. O grupo foi desfeito por
sofrer grande oposição dos movimentos sociais organizados nas universidades. O centro do
debate que ali se iniciava era o questionamento do modelo único, isto é, da
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, como princípio para as universidades
do país (ANDES, 2007, 14).
Mas durante essa década pouco se conseguiu avançar seja nas reformas
governamentais, seja nas iniciativas dos trabalhadores e estudantes que conseguiram resistir,
ao menos, aos retrocessos propostos. O debate da reforma universitária voltará com força
na década de 1990, no bojo da Reforma do Estado durante o governo Cardoso. Esse é o
debate que retomaremos na próxima seção.
86
2.2. Contra-reformas do Estado: o governo Cardoso
Apesar da Constituição de 1988, na “contramão da história” (MARQUES, 2010,1)
tender à ampliação do Estado no campo social, já em 1989 a vitória de Collor para
presidente do país na primeira eleição direta pós-ditadura, marca o início da adoção do
pensamento neoliberal na política econômica brasileira. Até então, a força da organização e
as expectativas dos trabalhadores no processo de democratização, no plano político, e a
explosão da dívida externa e da inflação, no plano econômico, não permitiram a adoção das
políticas propostas pelo FMI e pelo Consenso de Washington (MARQUES, 2010, 7). Do
seu curto governo, encerrado pelo processo de impeachment motivado por inúmeras
denúncias de corrupção, ficaram como herança a abertura do comércio exterior e a
ideologia crescente de defesa da redução do setor público através das privatizações, não
tendo sido bem sucedido no combate à inflação.
Assume então a presidência seu vice, Itamar Franco. Durante seu governo, o Ministério
da Fazenda, capitaneado por Fernando Henrique Cardoso, implementa o Plano Real. O
Plano consistia numa conversão da moeda de cruzeiro para o real acompanhado pela âncora
cambial, o que impediu a retomada da inflação. O sucesso do Plano Real no combate à
inflação leva a vitória de Cardoso nas eleições, assumindo a presidência em 1995. Sua
vitória permite uma “rearticulação das forças do capital no Brasil”, promovendo uma virada
na correlação de forças entre as classes (BEHRING, 2003, 156).
Em todos os seus aspectos o governo Cardoso representou uma violenta adequação do
país aos princípios do Consenso de Washington. Não é coincidência ter sido Bresser Pereira,
representante brasileiro na reunião que determinou os passos para a implementação do
Consenso na América Latina40
40 Em 1993 especialistas se reuniram mais uma vez em Washington para definir um plano de ajuste para a América Latina. O plano ocorreria em três fases: a. dirigida ao superávit fiscal, redução do déficit na balança comercial e desmonte da previdência pública; b. dedicada a reformas estruturais, liberalização financeira e comercial, desregulamentação dos mercados e privatização das estatais; e c. retomada de investimentos e crescimento econômico (MONTAÑO, 2008, 30).
, o ministro responsável no governo Cardoso pela “Reforma
do Aparelho do Estado”. Bresser Pereira (1991), no entanto, criticava o que chama
“abordagem de Washington” no diagnóstico e nas receitas para a crise latino-americana.
Não é uma crítica frontal, porém, mas uma abordagem, segundo ele próprio, em parte
complementar em parte alternativa tanto na explicação quanto na proposta de reforma
87
decorrente41
É difícil hoje, passados os oito anos de gestão do governo Cardoso que contou com
Bresser Pereira como um de seus principais ideólogos, acreditar nessa fala de 1991,
questionando o pagamento da dívida pública e voltada ao desenvolvimento econômico
nacional. Ainda que seja um crítico do desenvolvimentismo, na sua retórica há muito de
transformismo e ressemantificação, como veremos mais a frente, num suposto combate ao
. Para o autor a “abordagem de Washington” vê nas razões da crise o excessivo
crescimento do Estado, gerado pelo modelo de substituição de importações e o populismo
econômico “definido pela incapacidade de controlar o déficit público e de manter sob
controle as demandas salariais tanto do setor privado quanto do setor público” (1991,6). A
“abordagem da crise fiscal”, adotada por Bresser Pereira considera essa explicação correta,
porém, insuficiente. Isso porque as duas características sempre existiram nos países latino-
americanos, que, apesar disso, tiveram momentos de crescimento econômico. Sua
perspectiva, segundo ele próprio, não é oposta à dominante, que ele considera como a
neoliberal, mas agrega a idéia de crise fiscal que, segundo ele, tem na América Latina cinco
características: o déficit público, a poupança pública negativa ou muito pequena, uma
dívida pública interna e externa enorme, falta de crédito do Estado e de credibilidade dos
governos. Deste modo, dois eixos centrais estariam de fora das propostas de ajuste de
Washington: o enfrentamento da dívida pública para recuperar a capacidade de
investimento do Estado e a mudança do modelo de substituição de importações.
Assim para a superação da crise, que para Bresser Pereira é uma crise do Estado,
não seria suficiente estabilizar e liberalizar a economia, combater o populismo econômico e
reduzir o Estado, que deixa de ser executor e passa a coordenar a economia, mas ir além:
“Através do cancelamento da dívida que não pode ser paga e de um ajuste fiscal que contemple a redução de despesas e aumento de impostos sobre aqueles que podem pagar, será possível recuperar a capacidade de poupança do Estado, para que esse possa, no curto prazo, executar uma política macroeconômica e, no médio prazo, definir uma política de retomada do desenvolvimento, da qual faça parte uma política industrial e tecnológica, uma política social e uma política para o ambiente” (BRESSER PEREIRA, 1991,16, grifos nossos).
41 Segundo o autor, a abordagem verdadeiramente alternativa é a “nacional-populista” que rejeita os ajuste fiscais e propõe déficit público e salários elevados para promover ampliação da demanda e desenvolvimento econômico. Afirma que não lhe dará atenção no texto de 1991, pois perdeu credibilidade e apoio nos últimos anos. Na primeira década do século XXI, porém, governos como Chávez, Morales e Correa respectivamente na Venezuela, na Bolívia e no Equador, tem ressuscitado essa perspectiva, que guardadas diferenças entre eles e limitações, tem se mostrado uma alternativa mais soberana e distribuidora de renda na região.
88
neoliberalismo. Porém, sua crítica à nova direita neoliberal “temperada por certo
pragmatismo” (BRESSER PEREIRA,1991, 5) parece não ter impregnado suas supostas
propostas “social-liberais de centro” (BEHRING, 2003, 174).
Bresser Pereira se reivindica um teórico social-liberal que defende um Estado
intermediário – nem liberal nem intervencionista cuja existência é condicionada à
privatização e à liberalização comercial (BEHRING, 2003,175). Montaño (2008) afirma,
porém, que no Brasil a década de 1990 não foi marcada por uma “terceira via” mais light
pós hegemonia neoliberal na década de 1980, como os países centrais, mas, ao inverso,
pela hegemonia neoliberal mais explícita substituindo o período mais social-democrata
anterior
Lima (2007,58) analisa essa “nova” perspectiva do neoliberalismo caracterizada por
ela como “um processo de ideologização maciça sobre a possibilidade de um capitalismo
humanizado ou reformado, um projeto político ora identificado como terceira via, ora como
nova social-democracia, nova esquerda, centro-esquerda, social-democracia modernizadora
ou governança progressista.” A autora identifica os pressupostos teóricos e a ação política
da terceira via sobretudo no governo Lula mas como podemos ver no discurso de Bresser
Pereira essa pseudo-crítica ao neoliberalismo está presente desde o governo Cardoso que
esteve, inclusive, nas três primeiras reuniões da Cúpula da Governança Progressista em
1999, 2000 e 200242
42 Para os autores do Coletivo de Estudos de Política Educacional, grupo de pesquisa CNPq/ Fiocruz, o “neoliberalismo de terceira via” se inicia com a vitória do governo Cardoso em 1994 (NEVES E PRONKO, 2008, 54).
. Essa perspectiva, baseada no pensamento de Giddens, objetiva a
formação de uma nova sociabilidade fundada na igualdade de oportunidades e na
solidariedade social, tendo, portanto, a educação grande destaque como meio para a coesão
social. Ainda segundo Lima (2007, 60), a Terceira Via realiza quatro movimentos bastante
adequados ao pensamento liberal: nega o homem como sujeito político, atomizando-o e
esvaziando seu conteúdo de classe; naturaliza o capitalismo colocando sua humanização
como único horizonte político possível; utiliza o fim do socialismo real como justificativa
para a inviabilidade do fim da divisão entre classes e da transição para outro projeto de
sociabilidade diferente do capitalismo; recupera os elementos centrais da crítica neoliberal
ao Estado de Bem-Estar como a tendência a burocratização, o excesso de gastos e a suposta
passivização dos indivíduos.
89
A “reforma” do Estado elaborada, e inicialmente implementada no governo Cardoso
acompanha esses pressupostos. Está sistematizada no documento “Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado”, elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da
Reforma do Estado, capitaneado por Bresser Pereira, e aprovado pela Câmara da Reforma
do Estado43
O quarto e último setor é a área de atuação das empresas que “ainda permanecem no
aparelho do Estado” como infraestrutura. Essas atividades só estão no âmbito estatal ou por
em 1995 e posteriormente pelo governo da República.
No documento, mantém-se o diagnóstico de que a crise da década de 1980 é uma
crise do Estado que no período anterior desviou-se de suas funções para atuar no setor
produtivo, razão da crise fiscal e da deterioração dos serviços públicos. O aparelho do
Estado seria composto, dentro da sua lógica, por quatro setores. O primeiro o núcleo
estratégico onde estão o poder executivo strictu sensu, o poder legislativo, judiciário e o
Ministério Público.
O segundo, o setor de atividades exclusivas onde o Estado exerce seu poder de
“regulamentar, fiscalizar e fomentar” tendo como exemplo: a cobrança de impostos, a
polícia, o serviço de trânsito, emissão de passaportes. Ao lado desses, três exemplos que
envolvem políticas sociais, tendo como característica a restrição ao básico e a limitação no
papel de execução, qual sejam: previdência social básica, compra de serviços de saúde
pelo Estado, subsídio à educação básica, seguro desemprego.
O terceiro setor é de serviços não-exclusivos. Estes se caracterizam por um setor
onde o Estado atua ao lado das “organizações públicas não-estatais e privadas”. Esse setor
seria idealmente ocupado por propriedades públicas não-estatais, que se tratariam de
organizações sem fins lucrativos que, segundo o documento, apesar de não exercerem o
poder de Estado estariam diretamente orientadas para o interesse público. A presença do
Estado só se justifica porque envolvem a garantia de direitos humanos fundamentais e
ganhos sociais que não podem ter retorno direto ao mercado, mas representam muito para a
sociedade. Nesse setor estão colocadas as universidades, os hospitais e os centros de
pesquisa.
43 A Câmara da Reforma do Estado era composta por: Clóvis Carvalho - Chefe da Casa Civil, Bresser Pereira, Paulo Paiva - Ministro do Trabalho, Pedro Malan – Ministro da Fazenda, General Benedito Onofre Bezerra Leonel – Ministro Chefe das Forças Armadas e José Serra – Ministro do Planejamento e posteriormente candidato do governo derrotado na sucessão de Cardoso em 2002.
90
falta de investimentos privados para supri-las ou por sua natureza monopolística. Nesse
caso o documento adverte que a privatização precisa ser acompanhada de regulamentação
rígida.
Enquanto para o setor de produção para o mercado o caminho traçado é o da
privatização, nos serviços não-exclusivos o documento propunha um processo de
“publicização”, o que transformaria as fundações e organizações públicas então existentes
em entidades de direito privado, passando a ter sua dotação orçamentária atrelada à
celebração de contratos de gestão com o Estado. Como conseqüência os serviços teriam
maior autonomia, o controle social seria exercido por conselhos de administração e a
sociedade participaria do seu financiamento por meios “da compra de serviços e doações”.
O objetivo seria o aumento da eficiência e da qualidade dos serviços a um custo menor.
A suposta publicização significa exatamente seu oposto. Na verdade um processo de
privatização que autonomizaria a gestão e prestação de serviços sociais do âmbito dos
mecanismos de controle democrático possibilitando contratação temporária, inexistência de
concursos públicos, inexistência de licitações públicas, de controle social democrático
sobre gastos e recursos e de garantia da continuidade dos serviços entre outras coisas. Uma
estratégia que orienta-se numa perspectiva “desuniversalizante, contributivista e não
constitutiva de direito das políticas sociais” (MONTAÑO, 2008, 46).
Em curto prazo, o objetivo traçado pelo documento era a elaboração e aprovação de
uma lei que transformasse as organizações executoras dos ditos “serviços não-exclusivos”
do Estado em organizações sociais44
44 “Entende-se por ‘organizações sociais’ as entidades de direito privado que, por iniciativa do Poder Executivo,obtêm autorização legislativa para celebrar contratos de gestão com esse poder, e assim ter direito à dotação orçamentária” (BRASIL,1995, 60)
. O objetivo é retirar desse setor o poder de Estado
partindo do pressuposto de que serão mais eficientes se financiados pelo Estado e geridos
de forma “pública não-estatal”. Seu financiamento é estatal, mas pode, e deve, ser
complementado através de prestação de serviços, doações e etc onde “se busca uma maior
parceria com a sociedade que deverá financiar uma parte menor, mas significativa, dos
custos dos serviços prestados” (1995, 60). Essa parceria, um dos conceitos chave da
“publicização” segundo Montaño (2008, 47), significa, na prática, uma
91
desresponsabilização do Estado das políticas sociais, transferindo-as para o setor privado
seja para fins privados, isto é, visando lucro, seja para fins públicos45
A sobrevalorização do câmbio e a excessiva abertura comercial, com a consequente
necessidade de altos juros para atrair capitais – especulativos, todavia - inauguraram uma
.
Os objetivos do país envolveriam, portanto, um novo modelo de desenvolvimento e
uma reforma administrativa do Estado pautada por “fortalecimento de sua ação reguladora”
voltada não para os meios e processos mas para a eficiência dos resultados, o que o
documento chama de administração gerencial. Para Behring (2003), no entanto, a reforma
administrativa é apenas um elemento desse processo. O Plano Diretor é muito mais amplo,
revê o conceito de Estado e refunda a relação Estado-sociedade.
Seus objetivos “inadiáveis” eram: o ajustamento fiscal, reformas econômicas
orientadas para o mercado garantindo concorrência interna e condições de competição
internacional, reforma da Previdência Social, inovação nas políticas sociais visando
aumentar sua abrangência e qualidade, reforma do aparelho do Estado com o objetivo de
aumentar sua eficiência na implementação de políticas públicas.
Foi cumprindo esses objetivos que durante os dois mandatos do governo Cardoso, no
decorrer de oito anos, a política econômica brasileira passou definitivamente a se
subordinar aos ditames neoliberais respondendo aos interesses dos credores internacionais e
do capital financeiro em geral (MARQUES, 2010,7). O governo efetivamente promoveu
estabilização monetária, aprofundou a abertura comercial e financeira, acelerou o processo
de privatização das estatais, avançou na desregulamentação do mercado de trabalho,
reformou a Previdência Social e desmontou o aparelho de Estado comprometido com o
desenvolvimento (NAKATANI E OLIVEIRA, 2010, 27).
45 Montaño (2008) critica os teóricos e defensores da perspectiva do “terceiro setor”, “um novo setor público porém privado” por dividirem a sociedade em três setores compartimentalizados, desmontando a relação dialética existente entre a sociedade civil, Estado e mercado. A própria noção de sociedade civil é emprestada por esses autores de Gramsci, porém numa leitura liberal que tira da sociedade civil um inerente caráter classista, permeado por conflitos e disputas de interesse. O próprio conceito de “terceiro setor” tem para o autor inúmeras debilidades teóricas, quais sejam: o terceiro setor seria na verdade o primeiro, pois é a sociedade civil é anterior ao Estado; não há definição sobre quais são as entidades que o compõem tornando-se um conceito que reúne em si múltiplas organizações de finalidades diferentes e até opostas. Em suma, “(...)Mais do que uma categoria ontologicamente constatável na realidade, representa um constructo ideal que, antes de esclarecer sobre um ‘setor’ da sociedade, mescla diversos sujeitos com aparentes igualdades nas atividades, porém, com interesses, espaços e significados sociais diversos, contrários e até contraditórios”(MONTAÑO, 57).
92
política econômica onde o crescimento da produção e da demanda ao invés de metas
passaram a ser encarados como obstáculos à estabilização (BEHRING, 2003, 158). Os
juros altos, por sua vez, associados a sucessivos déficits na balança comercial brasileira
ampliaram significativamente a dívida pública “o que transformou a economia brasileira
em uma economia de ‘endividamento’” (NAKATANI E OLIVEIRA, 2010, 30)
aprofundando a vulnerabilidade interna e externa do país. Também fez migrar os capitais
dos investimentos produtivos para o mercado financeiro ampliando o desemprego e
minando o crescimento econômico.
No segundo governo de Cardoso a política de sobrevalorização do câmbio se esgota, e a
crise de saída de capitais em 1998/9946
Em relação ao aumento da carga tributária, Salvador (2007) defende que durante o
governo Cardoso esteve em curso uma verdadeira contra-reforma tributária. No que tange
ao imposto de renda, o tributo mais potencialmente progressivo dentro da estrutura
tributária extremamente regressiva do país, o congelamento da tabela entre 1996 e 2001
associado à redução de treze para duas faixas de contribuição, significaram uma ampliação
enorme dos trabalhadores descontados na fonte além de perda de progressividade. Se em
1995 a isenção era para até 10,48 mínimos, em 2005 passou a ser para até 3,9 mínimos. A
alíquota mínima triplicou de 5% para 15% enquanto a máxima foi reduzida pela metade, de
60% para 27,5%. Além dessas medidas, em relação ao imposto de renda, houve mudanças
, que teve como estopim uma crise internacional do
capital, leva o governo a adotar uma taxa de câmbio flutuante. Essa mudança, entretanto
não diminuiu a vulnerabilidade externa nem interrompeu o agravamento do déficit público,
dada a manutenção de exorbitantes taxas de juros. Esse endividamento levou o governo a
busca de superávits primários, conforme a imposição do acordo com o FMI, redução de
investimentos e mais ataques às políticas sociais. Para garantir os superávits a política
econômica apoiou-se em dois instrumentos: a elevação da carga tributária e o corte de
despesas discricionárias, principalmente de investimento (NAKATANI E OLIVEIRA,
2010, 35).
46 O governo tentou estimular a entrada de capitais, no início da crise em agosto de 1999, aumentando a taxa básica de juros de 29,75% para 49,75% anunciando, ainda, um novo ajuste fiscal e aumento de receita tributária. No entanto o governo continuou a perder suas reservas e a acumular déficits. Em dezembro de 1998, após a vitória eleitoral de Cardoso que garantia seu segundo mandato, o governo faz um empréstimo de 41,5 bilhões de dólares ao FMI e outros organismos internacionais. Em troca promete a manutenção de superávits primários de 3,5% do PIB (NAKATANI E OLIVEIRA, 2010, 32).
93
na legislação da COFINS e do PIS e medidas de desoneração do capital como isenção de
imposto de renda para remessas ao exterior e redução a zero de alíquotas de imposto de
renda e CPMF para investidores estrangeiros no Brasil. Tudo isso aumentou a arrecadação
de impostos em 101,62% no país entre 1996 e 2005, mas com aumento da regressividade,
ou seja, fazendo recair ainda mais os impostos sobre os trabalhadores47
Do lado dos gastos, a partir do acordo com o FMI em 1999, as metas de superávit
fixadas levaram a contenção em todas as áreas, menos no pagamento dos serviços da dívida
e de pessoal. Em 2000 o superávit primário alcançado foi de 3,45% do PIB, mais que a
meta do FMI que era de 2,5%, penalizando os investimentos produtivos e a área social,
exatamente aqueles setores que deveriam ser beneficiados pelo ajuste e pela “reforma” do
Estado. Para tanto medidas como o Fundo Social de Emergências (1994), o Fundo de
Estabilização Fiscal (1997) e por fim a DRU – Desvinculação das Receitas da União
.
48
Além dos golpes dados ao seu financiamento público, para as políticas sociais o
ambiente ideológico individualista associado à fragmentação das organizações da classe
trabalhadora e as necessidades do capital de privatizar setores anteriormente públicos como
a saúde e a educação, que passam a ser espaços de valorização, levam a uma tendência
geral de perda de direitos, reduzindo sua amplitude e alterando o seu caráter. O trinômio do
ideário neoliberal para as políticas sociais é, segundo Behring (2003) privatização,
focalização e descentralização, sendo este último o mero repasse de responsabilidades para
outros entes da federação ou para o chamado setor público não-estatal, no melhor espírito
da publicização bresseriana. A privatização, por sua vez, abriu espaços para o capital,
sobretudo o capital nacional que havia perdido espaços com a liberalização comercial,
sendo a educação superior um dos principais exemplos disso no período. Já a focalização
foram fundamentais, pois retiraram recursos da área social de forma “indireta e
escamoteada” que deveriam constitucionalmente estar a elas vinculados (BEHRING,
2000).
47 A incidência de tributos indiretos sobre bens e serviços saiu de 17,2% do PIB em 1996 para 20,8% do PIB em 2005. O aumento da regressividade na estrutura tributária associado a desonerações ao capital através de isenções fiscais fez com que os trabalhadores pagassem entre 1999 e 2005 quase cinco vezes mais impostos que o setor financeiro da economia. (SALVADOR, 2007) 48 A DRU garante que 20% das receitas vinculadas a Seguridade Social e à educação passem a ficar a disposição do governo para outros gastos. A medida foi mantida durante do governo Lula e apenas em 2009 a educação deixou de ser penalizada por esse mecanismo que, entretanto, continua em curso nas políticas da Seguridade.
94
passa a reduzir a política social a programas para pobres e indigentes, perspectiva
recomendada pelos organismos internacionais.
Vianna (2001) evidencia três mitos ideológicos que têm justificado o desmonte das
políticas sociais no neoliberalismo. O primeiro é o mito tecnicista que despolitiza o debate
transformando-o em decisões meramente técnicas de tratamento burocrático, sem
participação da sociedade. Com isso as decisões do Estado tornam-se aparentemente
neutras. Ainda que exista um elemento técnico na discussão das políticas sociais “o
ambiente político não é uma variável interveniente, externa; está imbricado ao processo
decisório e o condiciona” (VIANNA, 2001, 180).
O segundo mito é o naturalista, no bojo da naturalização dos processos sociais. A
derrocada das políticas sociais passa a ser, portanto, parte das inevitáveis transformações
econômicas atuais. Essa visão também se nutre da redução do espaço da política em
benefício da técnica. Não há nada, porém, de natural nas medidas tomadas, o que se
comprova na comparação entre diversos países que interpretam de forma diferenciada as
razões da crise atual e atuam também de forma diferenciada, o que é característica da
política.
O terceiro mito é o maniqueísta que passa a transformar os modelos de política
social em mutuamente excludentes. Um exemplo disso é o sistema previdenciário por
capitalização ou repartição. A superioridade de um sistema sobre outro, interpretação que
tem raízes obviamente políticas passa a ser apresentada como natural e, deste modo,
inquestionável e, mais uma vez, técnico.
Todos esses mitos apresentados por Vianna (2001) convergem para uma
compreensão de caminho único, consonante com o princípio neoliberal da TINA (there’s
no alternative) 49
A política econômica aplicada, associada às reformas estruturais deste período
conformam o que Behring (2003) caracterizou como um contra-reforma, isto é, uma “opção
que implicou, por exemplo, uma forte destruição dos avanços, mesmo que limitados,
sobretudo se vistos da ótica do trabalho, dos processos de modernização conservadora que
marcaram a história do Brasil” (BEHRING, 198). Ou seja, ao contrário de outros períodos
, onde não existem opções políticas mas inevitabilidades técnicas, um
discurso de cunho ideológico mas largamente hegemônico atualmente.
49 Sobre isso ver Nakatani e Oliveira (2010) e Paulani (2008).
95
históricos onde, apesar da condução conservadora, a modernização deu saltos a frente, no
governo Cardoso o componente destrutivo e anti-nacional fez retroceder as parcas
conquistas e avanços anteriores.
A principal incongruência desse modelo, apontada pela autora, é a relação entre o
discurso da reforma e a política econômica. Ao mesmo tempo em que se afirma a
necessidade de refuncionalizar o Estado para aumentar sua eficiência e reduzir custos, a
política econômica adotada faz escoar monumentais somas de recursos para pagamento de
juros e amortizações da dívida pública.
Outra contradição foi a privatização das empresas públicas no Brasil. Anunciado como
meio para sanar as contas públicas e combater a crise fiscal, a privatização significou
entrega de patrimônio nacional para o capital estrangeiro, desemprego e desequilíbrio da
balança comercial (BEHRING, 2003, 201).
Essa aparente incongruência entre o discurso da reforma e a política econômica,
contudo, é apenas aparência: “a prática da ‘reforma’ é perfeitamente compatível com a
política econômica, o que reforça a idéia de que seu discurso é pura ideologia e mistificação,
no sentido de falsa consciência, num explícito cinismo intencional de classe” (BEHRING,
2003, 202). Assim como o projeto neoliberal no mundo desenvolvido, a burguesia
brasileira também se inseriu durante o governo Cardoso, sobretudo, na dinâmica mundial
marcada por um neoliberalismo pragmático a serviço da retomada dos lucros e do poder da
classe dominante que volta à ofensiva. O que fica claro, na prática, é que o chamado ajuste
fiscal não significou um redução de gastos do Estado mas uma reorientação desses gastos a
favor do capital financeiro.
Ferreira (2010), em interessante trabalho sobre a execução orçamentária da União50
50 Para Ferreira (2010, 53)“ (...) a execução do orçamento é uma representação acabada das prioridades existentes nas ações do Estado e como isso pode revelar as mudanças que afetaram a atuação de tal instituição ao longo das últimas décadas”, tese que coadunamos.
entre 1990 e 2007, aponta como traços do período a priorização dos compromissos
financeiros com os serviços e amortizações da dívida pública, levando à crescente
financeirização da economia e à redução do papel do Estado como fomentador do
crescimento econômico, com o forte marco da redução de gastos em investimento e da
política fiscal vinculada aos interesses financeiros e não em prol do crescimento.
96
Para referendar sua hipótese, Ferreira (2010) levanta dados51
51 A fonte dos dados é o banco da Secretaria do Tesouro Nacional e foram deflacionados pelo Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI) para valores de março de 2008. Os dados vão até 2007, já no segundo mandato de Lula da Silva e, apesar de estarmos tratando do governo Cardoso, já corroboram para a tese de continuidade entre ambos que trataremos mais a frente.
agrupados por grupo de
despesa e por função. Em relação aos grupos de despesa, os dados apontam para uma queda
em gastos de capital de 25,5% em 1994 para 11% em 2007, o que representa nominalmente
uma passagem de 185,6 bilhões para 104,4 bilhões. Dentro desse grupo, os responsáveis
fundamentais pela redução foram os gastos com investimentos que caíram de 1,56% de
participação em 1990 para 0,9% em 2007. Apenas em 1991, com a moratória do pagamento
da dívida implementada pelo governo Collor, houve um gasto maior com investimentos em
relação aos juros chegando a marca de 4,32% na participação total. Entretanto, desde 1990
incluindo 1991, como exceção, os gastos com investimentos são extremamente baixos
comparados aos padrões de décadas anteriores. Em 1982, por exemplo, Ferreira (2010, 64)
encontra 16,02% de gastos de investimento no orçamento total, o quádruplo de 1991,
considerado ano excepcional na década de 1990.
O grupo de “Pessoal e Encargos Sociais” apesar de passar por oscilações manteve-se ao
final em patamar similar na casa dos 10%. As transferências para Estados e municípios e os
benefícios previdenciários elevaram-se principalmente em função das mudanças
decorrentes da Constituição de 1988. As “Demais Despesas Correntes”, que representam
gastos de consumo no custeio do governo e pagamento de terceirizados tiveram uma queda
na sua participação no orçamento de 11% em 1990 para 7,4% em 2007.
Por outro lado, a maior parte da elevação da execução orçamentária ocorreu pelo
aumento da “Amortização da Dívida – Refinanciamento” que passou de 178 bilhões de
reais em 1994 para 576 bilhões de reais em 2005, uma elevação de 223%, resultando num
aumento dessa rubrica de 24,5% em 1994 para 45,16% em 2005 e 32,2% em 2007 na sua
participação no orçamento. Isto é “o comprometimento do Estado com a dívida manteve-se
elevado, sem que o pagamento de juros e amortizações permitisse reduzir o montante
destinado para o refinanciamento da dívida” (FERREIRA, 2010, 59). Mesmo com tudo isso,
o pagamento de juros também se elevou nesse período passando de uma participação de
4,14% no orçamento em 1990 para 12,02% em 2007.
97
No total, o peso dos encargos financeiros da União (soma de juros e encargos da
dívida mais amortização e refinanciamento) representou 50,2% do total de gastos em 1994,
chegando a ultrapassar 60% em 2000 e 2003, só apresentando uma redução para 52,5% em
2007, graças a uma queda nos gastos com refinanciamento.
Em relação às funções, o que a autora observou foi uma redução significativa na
função de “Administração” que se explica dada a separação dos “Encargos Especiais”
referentes à dívida que antes a compunham. Nas funções ligadas a administração –
executivo, legislativo, judiciário - há certa manutenção nos patamares de participação dos
gastos. Já as despesas referentes à Segurança Pública reduziram sua participação de 2,23%
em 1990 para 1,83% em 2007.
Na política de saúde observou-se um significativo aumento absoluto de gastos,
passando de 8,9 bilhões em 1990 para 49 bilhões em 1997, valores que têm permanecido
estáveis desde então. Sua participação no orçamento, no entanto, depois de ter aumentado
com a Constituição de 1988 e suas regulamentações de 0,78% em 1990 para 5,5% a 6%
entre 1991 e 1997, voltaram a se retrair chegando a 3,4% em 2007. Isso porque o aumento
da arrecadação não tem sido repassado para essa política. No campo, ainda, da Seguridade
Social, a Previdência e a Assistência elevaram sua participação após a Constituição de
11,5% em 1990 para 19% em 1991 chegando a 22,19% em 1996 caindo a partir de então,
só retomando este patamar em 200752
Na função educação, a mais importante na presente análise, observa-se também um
declínio. A autora o atribui, na relação com a década de 1980, sobretudo às mudanças
constitucionais que modificaram as competências dos entes federativos para cada nível de
ensino, passando a União a ser responsável obrigatória apenas pela educação superior.
Assim, a participação da função educação no orçamento total sai do patamar de 13,14% em
1987 chegando na década de 1990 ao máximo de 4,15% em 1991, que como já mencionado
foi um ano excepcional, mantendo-se abaixo de 2% a partir de 2000, uma participação
bastante baixa.
.
52 Ferreira (2010), porém, ao agrupar os dados das duas políticas deixa passar o crescimento da assistência dentro da Seguridade Social nos últimos anos, com a priorização de políticas de transferência de renda associadas a perda de direitos previdenciários e ampliação da informalização do trabalho, o que alguns autores têm chamado de assistencialização da política social. Para aprofundar esse debate consultar Mota (2008).
98
Nas funções que a autora chama de infraestruturais, já que propulsoras do
crescimento e do desenvolvimento nacional, como Habitação, Agricultura, Transporte,
Energia Elétrica, Comércio, Indústria e Desenvolvimento Regional nota-se uma redução da
participação no orçamento em todos os casos. Atenta, ainda, para a redução significativa
nos gastos com Transporte, Energia e Comunicações mesmo antes de serem privatizados, o
que teve o sucateamento de suas estruturas como conseqüência, induzindo a ineficiência e a
privatização.
Assim como no estudo pautado pelos grupos de despesa, é a função “Encargos
Especiais” relacionada ao pagamento da dívida pública a que mais tem crescido
proporcionalmente ao orçamento e a que tem maior participação passando de 21,7% em
2000 para 34,2% em 2006 e 31,94% em 2007.
A conclusão, destarte, trazida pelo estudo de Ferreira (2010) é que, a partir da
década de 1990, num padrão que segue posteriormente ao governo Cardoso, há, de fato,
uma mudança no padrão desenvolvimentista do Estado, que passa a sacrificar os gastos
com investimentos em benefício do mercado financeiro. Tudo isso, porém, sem reduzir o
ônus da dívida pública no orçamento, um dos elementos importantes apontados por Bresser
Pereira no diagnóstico da crise fiscal, que, apesar dos sucessivos superávits primários, tem
aumentado sua relação com o PIB. O que se tem, na realidade, é que o Estado retraiu sua função como propulsor do
crescimento econômico – o que realizava principalmente mediante investimentos – e manteve sua participação ativa como “garantidor” da preservação de interesses financeiros e rentistas. A forma como os pagamentos dos juros e encargos da dívida, assim como sua amortização, se sobressaem nos dispêndios do governo é evidência disso (FERREIRA, 2010, 72).
Todos esses elementos referendam a tese de que o ajuste fiscal proposto na década
de 1990, que se transformou na única alternativa “técnica” para o enfrentamento da crise da
década de 1980, foi uma falácia. A maior parte de sua argumentação é meramente
ideológica, a serviço da transferência do fundo público para o capital, revertendo um
padrão anterior de maior participação das políticas sociais e de investimentos produtivos no
orçamento público, situação que ocorreu mesmo em países como o Brasil onde um Estado
de Bem Estar nunca de fato se efetivou.
Não foi, porém, sem a resistência de setores organizados da classe trabalhadora
brasileira que as propostas neoliberais de Cardoso foram implementadas. Essa resistência,
99
que contava com a oposição do Partido dos Trabalhadores – PT ao governo, apesar de
insuficiente para, por exemplo, impedir as privatizações, impediu que algumas contra-
reformas estruturais, onde se inclui a contra-reforma universitária, fossem implementadas
na totalidade de sua proposta. Da mesma forma o governo não conseguiu transformar
hospitais, universidades e demais órgãos públicos em organizações sociais, apesar do
fortalecimento do papel ONGs, Fundações e demais organizações do terceiro setor na
execução de políticas sociais nesse período, como veremos adiante.
2.3. O governo Lula da Silva: continuidade ou ruptura?
Infelizmente, quando se avança às cegas pelos pantanosos terrenos da realpolitik, quando o pragmatismo toma conta da batuta e dirige o concerto sem atender ao que está escrito na pauta, o mais certo é que a lógica imperativa do aviltamento venha a demonstrar, afinal, que ainda havia uns quantos degraus para descer (SARAMAGO, 2005, 59).
Depois de três eleições perdidas (em 1989, 1994 e 1998), na eleição presidencial de
2002, Lula da Silva, ex-metalúrgico e símbolo do PT, sagrou-se Presidente da República.
Sua vitória pode ser atribuída em larga medida ao sentimento oposicionista de grande parte
da população às medidas regressivas, de retirada de direitos, implementadas pelo governo
de Cardoso no período anterior, associadas aos reflexos da crise econômica que atravessou
seu segundo mandato. Seria a expressão, no Brasil, de um avanço da esquerda na América
Latina, resposta a crise do neoliberalismo, que provocou aumento das desigualdades,
redução do crescimento e crises econômicas em toda região, sendo uma das mais agudas a
que ocorreu na Argentina em 2001. A partir desse momento “o posicionamento com
respeito às reformas neoliberais tornou-se obrigatório para qualquer perspectiva que se
proponha alternativa na região” tendo “a própria ortodoxia necessidade de reformular suas
idéias – sem alteração do conteúdo- em virtude do fracasso das reformas neoliberais”
(CARCANHOLO, 2010, 122).
Mesmo representando um sentimento anti-neoliberal, ainda na campanha eleitoral,
Lula da Silva fez questão de desmentir que seu governo fosse representar ruptura com a
política do governo anterior. O episódio mais importante foi a divulgação da “Carta ao
Povo Brasileiro”. O documento respondia à preocupação do capital com uma possível
100
mudança de rumo, que poderia ser implementada por Lula. Ainda que falasse muitas vezes
de mudança e justiça social, eram os credores, empresários e proprietários em geral seu
público alvo. No meio das promessas, comuns a qualquer candidato ou governo, de
crescimento econômico e melhoria na distribuição de renda, afirmava-se: “o respeito aos
contratos e obrigações do país”, a compreensão de que “a margem de manobra da política
econômica no curto prazo é pequena”, o compromisso de “preservar o superávit primário o
quanto for necessário”, realizar reformas tributária, previdenciária e trabalhista
“desonerando a produção”, além de “valorizar o agronegócio”. Ou seja, o documento
tranqüilizava o capital de que os principais alicerces do governo Cardoso seriam garantidos
e que qualquer defesa do socialismo ficaria para os dias de festa. Somou-se a isso a aliança
com partidos de centro-direita e a aproximação com setores das elites tradicionais como
José Sarney e Antônio Carlos Magalhães, caracterizando um governo policlassista desde
sua origem.
Mesmo assim, durante algum tempo setores do governo e do PT mais progressistas
atribuíam o continuísmo do governo a um período de transição necessário para a superação
da “herança maldita” deixada pelo governo Cardoso. Outra tese defendia a necessidade de
“disputar os rumos do governo” com os setores mais retrógrados que compunham sua
coalizão.
Paulani (2008), assim como tantos outros autores, sustenta que a política de Lula
desde o início do seu governo tem “uma inclinação inequivocamente liberal” e afirma
existirem dois elos argumentativos que sustentam a política neoliberal no governo Lula. O
primeiro é a idéia, já debatida neste trabalho, de que não existem alternativas na política
econômica e que as escolhas são fundamentadas em critérios técnicos e não políticos ou
ideológicos. O neoliberalismo, ainda que com outros nomes, nesses marcos, é inevitável e
não uma opção do governo.
O segundo elo argumentativo é a idéia da necessidade de retomar a “credibilidade”
do país. Esse argumento, segundo Paulani, sugere que recuperada a credibilidade abre-se
espaço para a alteração da política. Porém não é o que acontece já que “uma vez
conquistada, a ‘credibilidade’ cobra um preço alto pela fidelidade: a manutenção de todos
os mimos que permitiram sua conquista (...)”( PAULANI, 2008, 18).
101
Dessa forma a política neoliberal, semelhante a do governo Cardoso, implementada
pelo governo Lula estava longe de ser uma política de transição. Era, isso sim, o modelo
adotado, onde o crescimento econômico e a redução do desemprego seriam o permitido,
dentro desses limites. Em poucas palavras, se for possível obter também esses resultados, por pífios que sejam, ótimo. Se não...paciência. Mas, sendo assim, de que serve a tão buscada credibilidade? (Paulani, 2008, 18)
A resposta que a autora dá a sua própria pergunta é que a “credibilidade”, em nome
da qual são exigidos severos sacrifícios aos trabalhadores, na prática é necessária não para
manter a estabilidade e sustentabilidade do crescimento, mas sim a vulnerabilidade do país.
Vulnerabilidade necessária, por sua vez, para valorizar os capitais especulativos que
dominam o processo de acumulação.
Boito (2005) apresenta uma análise da política econômica do governo Lula com
algumas inflexões. Para o autor, o governo constrói uma “nova versão do modelo
capitalista neoliberal” que apresenta mudanças que não alteram a condição de dependência
do país e as condições de vida da classe trabalhadora, mas dão “um novo fôlego político a
esse modelo anti-nacional e anti-popular de capitalismo”, o que Lima (2004, 29) vai
chamar de “neoliberalismo requentado”.
Para Boito o modelo implementado por Lula aproxima-se do adotado no segundo
governo Cardoso, aprofundando-o. Trata-se de uma política de estímulo à exportação
mantendo uma balança comercial favorável, que teve que ser seguida por Cardoso após a
crise de 1999. Essa medida agradou a burguesia interna que reivindicava tais medidas desde
o governo anterior.
Boito atenta, entretanto, para dois fatos importantes: essa inflexão não rompe a
hegemonia do capital financeiro nem torna a política externa brasileira progressista, como
apontam alguns analistas do governo.
O primeiro fato ocorre, pois o estímulo à produção se dá na exata medida dos interesses
do capital financeiro. Ao estimular a exportação ao invés do crescimento do mercado
interno, o governo garante a captação de dólares que, por sua vez, são direcionados não
para investimentos nem para estimular mais ainda a produção, mas para o pagamento de
102
juros da dívida. Para se assegurar disso o governo mantém elevados superávits primários e
juros.
O segundo fato se dá, pois, apesar de uma política externa voltada para a ampliação dos
mercados para produtos brasileiros, o governo limita-se a reivindicar no plano internacional
o direito liberal ao livre comércio, lutando contra políticas protecionistas de países centrais.
Com isso abdica de lutar por regras comerciais que protejam os produtos de países
periféricos ou de lutar por uma melhoria na posição brasileira dentro da divisão
internacional do trabalho. Contenta-se em se manter exportador de matérias primas e
produtos industriais de baixa densidade tecnológica, perpetuando as trocas desiguais que
mantêm o país em condição de dependência e atraso em relação aos países centrais.
Outros autores vão caracterizar o governo Lula dentro do espectro teórico e político do
novo-desenvolvimentismo53
Para Prado e Meirelles (2010) essa volta ao passado do novo-desenvolvimentismo, ao
contrário do desenvolvimentismo original, limita-se à análise econômica tradicional, não
retomando grandes questões políticas e sociais colocadas por seus predecessores. Ficando
no meio caminho entre a crítica ao neoliberalismo e ao arcaísmo da esquerda socialista, o
novo-desenvolvimentismo é, sobretudo, uma corrente ideológica que não rompe com a
lógica central do neoliberalismo e retoma a “ilusão do desenvolvimento” (PRADO E
MEIRELLES, 2010, 186) dentro de uma realidade capitalista e heterônoma. Reacende, com
, ao lado dos Kirchner na Argentina, de Bachelet no Chile e
Vasquéz no Uruguai, que seria uma espécie de terceira via latino americana.
Katz (2010) afirma que a perspectiva novo-desenvolvimentista retoma a idéia de
oposição entre setores da burguesia financeira e da burguesia produtiva, devendo
estabelecer uma política que favoreça os últimos. Essa distinção entre “um capitalismo
benfazejo, do bem-estar” e um “capitalismo malfazejo e neoliberal”, como afirma Fontes
(2010), nega a relação de continuidade entre eles e a relação íntima entre capital industrial,
bancário, comercial e fictício, típico do período do imperialismo. Ainda assim, “Lula um
líder natural do pelotão novo-desenvolvimentista, mostrou (...) maior afinidade com o
capital financeiro do que com os setores industriais” (KATZ, 2010, 65).
53 Para aprofundar esse debate consultar os textos do livro organizado por Castelo (2010).
103
isso, as antigas perspectivas etapistas54
Na área econômica o governo pode contar com um cenário internacional favorável
desde 2004. Durante o primeiro mandato de Lula a economia mundial cresceu em média
5% ao ano, o que possibilitou ao país o crescimento de 3,4% do PIB ao ano em média nesse
período, chegando a 5,7% em 2004, maior alta desde 1994, primeiro ano do Plano Real. O
governo também manteve o saldo da balança comercial positivo, o que vinha ocorrendo
desde 2001 com as políticas de incentivo à exportação e se beneficiou ainda mais do
aumento do preço de commodities no mercado internacional observado entre 2003 e 2006.
Esse período favorável só pode ser aproveitado pelo governo, porém, a partir de 2005 na
recomposição de suas reservas internacionais, quando conseguiu saldar a maior parte de
sua dívida com o FMI. Esses ventos favoráveis internacionais só se modificam a partir de
2008. A crise econômica mundial que começa a ser sentida nos países centrais fez cair o
preço das commodities reduzindo os superávits na balança e tornando o saldo da conta
corrente deficitário em 2008 (NAKATANI E OLIVEIRA, 2010). Apesar do otimismo de
que a crise não aportará por aqui permanecer no país, Sampaio Jr. (2010, 48) defende que o
hiato de tempo entre o impacto da crise nos países centrais e periféricos se deve ao
diferente encadeamento da relação crédito-gasto-renda, onde na periferia “os efeitos
multiplicadores da renda das exportações, ao ampliar o mercado interno, dão uma sobrevida
ao crescimento econômico”. Para o autor, analisando a América Latina (SAMPAIO JR.,
de parte da esquerda latino-americana, que mais
uma vez vai defender a inevitabilidade de etapas anteriores à ruptura com o capitalismo
para o combate dois “inimigos principais”: a direita oligárquica e a especulação financeira
(KATZ, 2010, 64). Para Katz (2010, 75): A postulação de que o socialismo pode ser iniciado em um período contemporâneo conduz à defesa, sem dissimulações da identidade socialista. Por outro lado, o favorecimento de uma etapa novo-desenvolvimentista induz à hesitação na luta contra o capitalismo.
Mas, apesar da política continuísta neoliberal, os indicadores econômicos e sociais
demonstraram alguns avanços no governo Lula. A que se devem esses avanços?
54 A origem da tese da revolução por etapas encontra-se nas elaborações dos Partidos Comunistas no período estalinista, que defendiam que os países do terceiro mundo encontravam-se em estágios feudais ou semi-feudais necessitando, portanto, de uma etapa capitalista. Para isso seria necessário uma aliança dos trabalhadores com a burguesia industrial para implementar a fase da revolução burguesa, anterior a da revolução socialista.
104
2010, 52), a crise mundial do capitalismo tende a ampliar a dependência dos países,
retraindo o crescimento econômico:
Elo mais fraco do sistema capitalista mundial e zona de influência dos Estados Unidos a região será duramente pressionada a dar a sua contribuição no processo de socialização dos prejuízos do grande capital. Como a crise impõe a eliminação do parque produtivo redundante, é de se esperar uma aceleração e uma maior intensidade na tendência à desindustrialização e à especialização regressiva que têm caracterizado o ajuste estrutural das economias latino-americanas aos ditames da ordem global.
Mesmo com o cenário positivo na maior parte do período, o governo manteve as
medidas neoliberais de seu antecessor. Manteve a taxa Selic, mesmo com pequenas
alterações, a posição de taxa de juros real mais alta do mundo, um superávit primário
superior ao acordado com o FMI, uma relação desfavorável entre a dívida e o PIB que
continuava na casa dos 40% em 2006. Outro destaque foi a conversão da dívida externa em
dívida interna a partir de 2006, com os benefícios de isenção fiscal garantidos pela lei
11.312/06. A medida permitiu um aumento de reservas, mas ampliou a fragilidade fiscal do
país, pois os juros internos que passaram a incidir sobre a maior parte da dívida pública,
mantiveram-se bem maiores que os externos (NAKATANI E OLIVEIRA, 2010).
Além disso, o governo aprofundou a “reforma” bresseriana do Estado, diluindo as
fronteiras entre o público e o privado, com a privatização da gestão pública. Exemplo
central disso foi a Lei das Parcerias Público - Privadas de dezembro de 2004. Com essa lei
o governo regulamentou a licitação e contratação de parceria público privado por órgãos da
administração pública direta e indireta através de contrato administrativo de concessão.
No início de seu segundo mandato o governo anunciou o PAC – Programa de
Aceleração do Crescimento, que levou o governo a reivindicar mais claramente sua face
novo- desenvolvimentista55
55 Não por coincidência a sucessora de Lula nas próximas eleições presidenciais foi coordenadora do programa. Em reportagem do Estado de São Paulo de 26 de dezembro de 2009 afirma-se: “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer colar em Dilma o carimbo do "novo desenvolvimentismo” (...) Na prática, a volta da retórica à esquerda na seara do petismo é reflexo da vitória, dentro do governo, do grupo desenvolvimentista, que no primeiro mandato de Lula travou forte queda de braço com os monetaristas. "Nós interrompemos a visão neoliberal do Estado mínimo e recuperamos não só os bancos públicos, como estatais do porte da Petrobrás", argumentou o líder do PT no Senado, Aloizio Mercadante (SP), integrante da comissão escalada pelo partido para preparar o programa de Dilma. "Estamos, sim, construindo um novo desenvolvimentismo."”
.
105
Em trabalho elaborado pelo GOPSS – Grupo de Estudos e Pesquisas em Orçamento
Público e Seguridade Social (2007) demonstram-se as contradições colocadas pelo
programa desde sua elaboração.
Primeiro é apresentado no PAC um longo capítulo de desonerações tributárias, um
grande golpe no financiamento das políticas sociais, prevendo uma perda de arrecadação de
R$ 6,6 bilhões que deveria chegar a R$11,5 bilhões em 2008. Para isso foram
implementadas as seguintes medidas: “recuperação acelerada dos créditos de PIS e
COFINS em edificações (de 25 anos para 24 meses), deixando de arrecadar cerca de
R$ 3,45 bilhões em 2007/2008; desoneração de obras de infra-estrutura (suspensão da
cobrança de PIS/COFINS nas aquisições de insumos e serviços vinculados a novos
projetos); programa de incentivos ao setor da TV Digital que prevê redução a 0% de
PIS/COFINS; programa de incentivo ao setor de semi-condutores que prevê redução a 0%
de PIS/COFINS; ampliação do benefício tributário para micro-computadores, com alíquota
0% de PIS/COFINS para computadores até R$ 4.000,00; prorrogação por dois anos do
benefício que permite a contabilização fiscal da depreciação de novos investimentos na
metade do prazo normal, reduzindo a contribuição social sobre o lucro (CSLL) devido pelas
empresas; prorrogação do prazo de permanência da construção civil no regime de
cumulatividade do PIS e da COFINS até 31 de dezembro de 2008; criação da Receita
Federal do Brasil, diluindo os recursos da previdência social, agora sob gestão do Tesouro
Nacional” (BEHRING et alli, 2008).
Essas isenções promoveram fortes perdas nas fontes de financiamento da
Seguridade Social, com isenções parciais e em alguns casos totais, de tributos que
compõem a estrutura central de realização das políticas de previdência, saúde e assistência
social, aprofundando a transferência do fundo público para o capital privado.
Tudo isso porque grande parte do capital necessário para a viabilização do PAC
deve sair da iniciativa privada – cerca de R$ 390,1 bilhões do setor privado e R$ 113,8
bilhões do setor público – levando o governo a criar uma legislação que estimulasse esses
investimentos. Ainda assim ele não consegue criar condições para que estes se concretizem.
Isso porque o investimento público permanece muito baixo e o privado deve fazer
investimentos longos e de baixa rentabilidade, não necessariamente atrativos, o que coloca
em questão a efetividade do programa. Isso porque o setor público tende a não cumprir sua
106
meta de investimentos devido ao ajuste fiscal voltado para o pagamento da dívida pública, e
a iniciativa privada, por sua vez, tende a seguir a lógica contemporânea do capital que
pressiona um maior investimento no mercado financeiro do que no setor produtivo, por ter
maiores vantagens no primeiro.
Na área social o governo também manteve e aprofundou a lógica neoliberal do
governo Cardoso, dando continuidade às contra-reformas estruturais, em acordo com o
recomendado pelos organismos internacionais.
O primeiro projeto importante do governo foi a segunda etapa da contra-reforma da
previdência. Se o governo anterior tinha iniciado a contra-reforma pelo setor privado o
governo Lula a implementa no setor público. Para Paulani (2008,43) o principal efeito da
contra-reforma é a substituição do regime de repartição para o de capitalização já que a
instituição de tetos para os benefícios levarão os trabalhadores a adotar fundos
complementares de previdência56
Mas o carro-chefe do governo, que tem sido propagandeado como responsável pela
redução dos índices de pobreza no Brasil
, beneficiando mais uma vez o capital financeiro. Além
disso, elevou contribuições, idade e tempo de trabalho para a obtenção de benefícios taxou
os inativos, contribuindo com o ajuste fiscal pró-pagamento da dívida através da retirada de
direitos dos trabalhadores.
57
56 “Os fundos de pensão (que agora serão ainda mais numerosos e volumosos) funcionam como braço auxiliar da dívida pública, no papel de retirar da esfera da acumulação produtiva parcelas substantivas da renda real” (PAULANI, 2008, 46) alimentando assim a esfera financeira da economia. 57 Segundo o PNUD - (Plano para o Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas -ONU) de 2007, o Brasil apresentou: crescimento da renda per capita dos 10% mais pobres a taxa de 8% ao ano; crescimento da renda per capita geral de 0,9% ao ano; redução de 3,8% de brasileiros abaixo da linha de pobreza; redução de 5,6% de brasileiros abaixo da linha de extrema pobreza; e redução da desigualdade em 5% segundo o coeficiente Gini. Ainda assim o Brasil apresentava a oitava pior posição de desigualdade de renda entre os países acompanhados pelo PNUD, a frente apenas de sete países africanos.
, foi certamente o Programa Bolsa-Família. O
Programa foi instituído por Medida Provisória em 2003, sancionado por lei e
regulamentado por decreto em 2004. Seu objetivo era unificar a gestão e a execução das
ações de transferência de renda com condicionalidades existentes desde o governo Cardoso
como o Programa Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação e Auxílio Gás. Integrava uma
estratégia de combate à fome e à pobreza, o Fome Zero, transferindo renda com
condicionalidades na saúde e na educação. Famílias com renda mensal per capita entre o
equivalente a 30,7 e 61 dólares e abaixo de 30,7 dólares em outra faixa, nos valores de 2007,
107
teriam direito ao benefício se cadastradas no Cadastro Único para Programas Sociais (Stein,
2008). Ao contrário do BPC – Benefício de Prestação Continuada, um direto constitucional
que garante um salário mínimo de transferência de renda para idosos e portadores de
deficiências incapacitantes para o trabalho, o Programa Bolsa-Família depende dos recursos
liberados pelo governo para a inserção dos usuários. Não se constitui, portanto, enquanto
direito garantido a todos aqueles incluídos em seus critérios, que por si só já são
extremamente rebaixados, limitando o programa àqueles que se encontram em extrema
pobreza.
Alguns autores têm apontado o Programa Bolsa-Família como o principal
responsável pela atual popularidade do governo Lula cuja aprovação está na casa dos 80%.
Singer (2009,83) demonstra que, ainda que a votação de Lula em 2002, quando
vence seu primeiro mandato e em 2006, seu segundo mandato, tenham sido bastante
semelhantes, uma análise mais cuidadosa demonstra “um importante realinhamento político
de estratos decisivos do eleitorado” em 2006. O autor demonstra que de 2002 para 2006 o
governo perdeu apoio de seus eleitores tradicionais da classe média, devido à crise do
mensalão e demais denúncias de corrupção, aos ataques ao funcionalismo público e outras
medidas que geraram desilusão em um governo qualitativamente diferente dos anteriores.
Por outro lado, passou a ter significativo apoio de setores de baixíssima renda, o que o autor
atribui principalmente ao Bolsa-Família mas não só. Também o aumento real do salário
mínimo verificado no período e o aumento do crédito consignado, que ampliaram as
possibilidades de consumo para essa faixa de renda, são elementos que justificam a adesão
dos subproletários ao fenômeno chamado pelo autor de lulismo. O autor se utiliza de Marx,
em sua obra “O dezoito brumário de Luis Bonaparte”, para explicar a necessidade dessa
fração da classe da trabalhadora de, com dificuldades estruturais para se organizar, buscar
no alto sua representação, isto é, não podendo representar-se, serem representados. Apesar
de concordarmos com essa análise de Singer, discordamos de sua conclusão otimista em
relação ao governo que teria, segundo ele, dado de forma inédita voz e melhores condições
para esse segmento da classe trabalhadora.
As políticas apontadas pelo autor como progressistas são bastante limitadas pelos
interesses hegemônicos, expressos pela política econômica francamente neoliberal, e
contraditoriamente também a favorecem. O aumento do crédito e a lógica da transferência
108
de renda, uma política social mediada pelas instituições bancárias, colocam no circuito da
financeirização da economia até os setores mais pauperizados da população, beneficiando
também o capital financeiro. Além disso, a transferência de renda, apesar de ter sido
ampliada no período do governo Lula, continua sendo uma política barata para o governo.
A totalidade do orçamento da Assistência Social, onde se insere o Programa Bolsa-Família,
continua patinando entre 2% e 3% do total do orçamento da União. As políticas também
estão longe de se constituírem como direito, representando mais brechas ou sobras de caixa
garantidas pela boa situação da economia do período e pelos sacrifícios impostos a outros
segmentos da classe trabalhadora.
Boito (2005) também identifica essa mudança de bases do governo58
As diferenças entre os governos Lula e Cardoso atribuem-se menos a origem de
classe do PT e mais aos necessários ajustes feitos pelo conjunto do capitalismo desde seus
que ele chama
de novo populismo. O governo para fazer política com os setores mais pauperizados ataca
direitos dos segmentos assalariados dos trabalhadores, e em particular os funcionários
públicos, reatualizando os “marajás” de Collor e os “vagabundos” de Cardoso, e passa a se
utilizar eleitoralmente desse segmento. Para Boito (2005,3):
Há semelhanças entre esse novo populismo e o antigo populismo de Getúlio Vargas, mas há diferenças importantes também. Vargas apelava aos trabalhadores para levar de vencida ou contornar a resistência das oligarquias e do imperialismo à industrialização do Brasil, enquanto o governo Lula, dando seqüência a um novo filão descoberto por Fernando Collor, apela aos descamisados para jogá-los contra os trabalhadores organizados de modo a fazer passar a política do capital financeiro nacional e internacional.
Em síntese, concluímos nossa análise identificando que o governo Lula teve como
marca a continuidade e não a ruptura, a partir de uma escolha política consciente. As
contra-reformas neoliberais foram mantidas e aprofundadas, bem como os principais
sustentáculos da política econômica de Cardoso: liberalização econômica, favorecimento
do capital financeiro por meio da dívida pública, juros altos, superávits primários. No que
tange as políticas sociais aprofundou-se a perspectiva focalista e manteve-se a privatização,
por meio da lógica público-privada e pública não-estatal.
58 Boito (2005), porém, também atribui essa mudança de base social ao PT, hipótese de que discorda Singer (2009) para quem as mudanças se limitam a figura de Lula. A performance da candidatura do PT nas próximas eleições presidenciais, de Dilma Roussef, será um bom termômetro para esse debate.
109
organismos internacionais, que precisaram, ao menos no discurso, responder ao
crescimento das críticas ao neoliberalismo. Críticas geradas pelas crises econômicas, que
desembocaram em inúmeros movimentos de contestação na América Latina como os
piqueteiros argentinos, os pingüins chilenos, a luta contra a privatização da água na Bolívia,
culminando com a eleição de Morales na Bolívia, Chavez na Venezuela e mesmo Lula no
Brasil. A esperança dos trabalhadores brasileiros numa ruptura do governo com o modelo
neoliberal acabou numa experiência que apenas mesclou medidas do social-liberalismo
com o novo-desenvolvimentismo, tendo como ponto forte o peso ideológico da figura de
Lula e os “bons ventos” da economia internacional, que se mantiveram na maior parte de
seu governo.
111
CAPÍTULO III A contra - reforma nas universidades. Não foi apenas na política econômica que o governo Lula caracterizou-se, como
Oliveira chamou, de terceiro governo da era FHC (apud COUTINHO, 2003). Também em
relação às universidades as medidas do governo, ainda que com inflexões e particularidades,
seguiram, na sua lógica, o que vinha sendo implementado por Cardoso. É essa a discussão
que faremos nessa seção do trabalho.
Na década de 1990, durante o governo Cardoso, a contra-reforma do ensino superior
torna-se parte importante da contra-reforma do Estado em curso. A proposta do governo
estava em consonância com documentos produzidos pelos organismos internacionais como
o Banco Mundial, em particular o documento “O Ensino Superior: as lições derivadas da
experiência” de 199459
O objetivo declarado do Banco Mundial, no documento de 1994, é orientar suas
ações de apoio e financiamento nos países periféricos, determinando um modelo ideal de
. Esse é um marco importante na redefinição das estratégias do
Banco Mundial para a educação, quando o ensino superior passa a ter papel de destaque
para o alívio da pobreza e para a coesão social.
Para Leher (1999, 30), “não é possível compreender o sentido e o significado das
atuais reformas sem considerar sua matriz conceitual, formulada no âmbito do Banco
Mundial”. Na hipótese do autor o substrato das reformas educacionais na América Latina
está na relação entre educação, segurança e pobreza. A educação passa a ser um importante
mecanismo de enfrentamento da questão da pobreza com conteúdos impregnados de
ideologia, com o objetivo de manter um ambiente seguro para os negócios. Para tanto, o
Banco Mundial passa a investir em educação a partir de 1990, com prioridade na periferia
para um “ensino fundamental ‘minimalista’” e para a “formação profissional ‘aligeirada’”
(LEHER, 1999, 27). Isso porque países periféricos com economias subordinadas têm sua
produção restrita a mercadorias de baixo valor agregado, requerendo um trabalho pouco
qualificado.
59 Para Neves e Pronko (2008, 113): “Se é verdade que, no planejamento de suas ações político-pedagógicas, os Estados Nacionais possuem de fato uma autonomia relativa na definição de limites e possibilidades de implementação do sistema, é verdade também que estes seguem, em linhas gerais, as diretrizes dos organismos internacionais. Os planejadores locais, nesse contexto, desempenham majoritariamente o papel de adaptadores, em âmbito local, de políticas formuladas externamente.”
112
ensino superior a partir de experiências que considera bem sucedidas, como o modelo
chileno. O diagnóstico apresentado é de que, por serem financiadas pelo orçamento do
Estado, as universidades públicas seriam também responsáveis pelas crises fiscais, e
mesmo assim continuavam com poucos e mal aplicados recursos. Logo, seria possível,
segundo o Banco, através da racionalização, reduzir os recursos por estudante aumentando
a qualidade do ensino. Para isso seria necessário superar: a. a baixa relação professor-aluno;
b. a subutilização de alguns serviços; c. a duplicação de programas; d. as altas taxas de
evasão e repetência; e. os altos gastos com serviços não-educacionais como alojamento,
alimentação e outros serviços subvencionados pelo o Estado para os estudantes (BANCO
MUNDIAL, 1994, 3).
Outro argumento central é a injustiça que representa para a sociedade financiar as
universidades públicas quando, segundo o documento, a maioria dos estudantes dessas
instituições é proveniente dos setores de renda mais alta na sociedade. Essa é uma mentira
que foi tornando-se verdade de tantas vezes repetida, sustentáculo importante para a
construção de consenso acerca das contra-reformas propostas para as universidades.
Segundo Siqueira (2004), dados do INEP, instituto do próprio governo, de 2003,
demonstram que há mais alunos carentes em instituições públicas do que em privadas em
todas as áreas. O Banco Mundial, entretanto, sem dados concretos insiste na tese de que os
estudantes das universidades públicas são ricos e privilegiados60
As propostas apresentadas para superar a crise do ensino superior se articulam em
quatro eixos: diversificação dos tipos de instituição, não mais numa perspectiva
universitária, mas terciária ou pós-secundária; incentivo à diversificação das fontes de
financiamento das instituições públicas; redefinição da função do governo no ensino
, desconsiderando também
que as parcelas mais pauperizadas da população não poderiam estar na universidade, pois
sequer chegam ao ensino médio, e que essa realidade é de responsabilidade dos governos.
Mais uma vez a estratégia é dividir a classe trabalhadora jogando os setores mais
pauperizados contra os assalariados médios, quem de fato tem seus filhos nas universidades
públicas.
60 O Banco Mundial chega a afirmar que “em países cujos sistemas de governo são débeis, os estudantes ressentidos com a redução de seus subsídios e privilégios podem representar uma ameaça à estabilidade política. Em conseqüência os governos devem proceder com muita cautela ao implementar as reformas que talvez afetem as famílias mais poderosas, que podem desestabilizar o regime”(1999,5, tradução e grifo nossos).
113
superior; e adoção de políticas destinadas a melhorar a qualidade e a equidade do ensino
superior.
Em relação ao primeiro eixo - a diversificação das instituições - o Banco Mundial
considera que o modelo europeu é muito caro e pouco apropriado para países em
desenvolvimento 61 . Sua proposta é que se amplie o ensino privado, o que permitiria
responder a demanda por vagas, em instituições mais capazes de responder rapidamente às
necessidades do mercado. Para isso sugere a implementação de inúmeros modelos de
cursos terciários como politécnicos, institutos profissionais e técnicos de ciclos curtos,
community colleges62
Caberia ao Estado uma regulamentação de incentivos ao setor privado que evite o
controle das mensalidades e inclua uma política de acreditação, fiscalização e avaliação das
instituições privadas, além da possibilidade de incentivos financeiros. Observemos que a
fiscalização não aparece como uma política de controle, mas de incentivo ao ensino privado.
Como no ensino privado o custo do estudante é supostamente mais baixo, o Estado
ganharia dando incentivos públicos para a abertura de novas matrículas. O objetivo em
longo prazo, segundo o documento, seria, a partir de uma equalização na qualidade entre
instituições públicas e privadas, estabelecer condições de igualdade de financiamento
público para ambas, baseando-se apenas no critério da qualidade das suas propostas. Essa
meta relaciona-se com o Acordo Geral sobre Comércios e Serviços assinado pelos
membros da OMC – Organização Mundial do Comércio em 1995. O acordo incluiu a
educação como serviço em bases comerciais
e programas de ensino à distância, que, segundo eles, teriam custos
menores e seriam mais atrativos para estudantes e para investidores privados. O “sistema de
educação terciária”, novo modelo defendido pelos organismos internacionais, pretende, em
verdade, “conferir maior organicidade (...) ao crescimento exponencial de um ensino
fragmentado e privatista por ele impulsionado” (NEVES e PRONKO, 2008, 118).
63
61 Para Leher (1999,27): “se o país submetido às orientações do Banco deve abdicar da construção de um projeto de nação independente, um sistema de ensino superior dotado de autonomia relativa frente ao Estado e às instituições privadas soa mesmo anacrônico”. 62 São institutos públicos de estudos pós-secundários que oferecem dois anos de ensino acadêmico e profissional (BANCO MUNDIAL, 1994, 5). 63 A única exceção são os serviços “caracterizados como fornecidos no exercício da autoridade governamental e que não sejam oferecidos de forma comercial nem entrem em competição com um ou mais provedores de serviço” (OMC, 1995, 285 apud SIQUEIRA, 2004, 56), ou seja, serviços exclusivos do Estado, o que não seria o caso da educação pertencente, na perspectiva neoliberal, ao setor público não-estatal.
o que significa que
114
“se o governo oferecer cursos que outros provedores privados também oferecem, ele estará em concorrência com esses outros provedores (...) e como ele tem financiamento público, pelas leis que regem o comércio isso seria uma concorrência desleal, portanto sujeita a sanções da OMC” (SIQUEIRA, 2004, 56).
O que quer dizer que, segundo essa norma, o setor público e o setor privado devem
ter as mesmas condições no acesso aos recursos públicos.
O segundo eixo refere-se à diversificação do financiamento das instituições públicas,
reduzindo, assim, a participação do Estado no seu custeio. Os objetivos seriam a
mobilização de mais recursos privados para as universidades públicas, a garantia de apoio a
estudantes pobres mais qualificados e a melhoria na utilização dos recursos nas instituições.
O aumento de recursos privados deve ocorrer através de três estratégias. Primeiro,
pelo aumento da participação dos estudantes nos gastos, isto é, o fim da gratuidade e da
assistência estudantil, o que, segundo o Banco Mundial, estimularia os estudantes a
terminarem seus estudos mais rapidamente e escolherem com mais cuidado seus cursos.
Segundo, pelo financiamento de ex-alunos e da indústria privada ou organismos externos. E
por último, através de atividades que gerem recursos como: cursos pagos, pesquisas
encomendadas por empresas privadas e serviços de consultoria. A meta sugerida
inicialmente é de que 30% dos recursos das universidades públicas passem a vir de
arrecadação própria. Com isso espera-se que as universidades públicas dependam menos do
Estado e fiquem menos sujeitas às suas flutuações orçamentárias, sem mencionar que elas
passam a ficar sujeitas às flutuações e interesses de setores privados. Além disso, o Banco
aponta como fator positivo o crescimento da sensibilidade das instituições públicas aos
sinais do mercado. Isto é, as universidades perdem sua autonomia de funcionamento a
serviço da sociedade e passam a depender e se atrelar aos interesses e necessidades do
mercado capitalista.
No que tange ao apoio aos estudantes pobres qualificados podemos notar duas
características: a focalização e a meritocracia. Uma das medidas sugeridas é a melhoria da
eficiência dos programas de crédito estudantil com ampliação de sua cobertura. Já sobre a
assistência estudantil, a idéia é de que seja oferecida independente da instituição cursada, se
pública ou privada, por meio de programas de trabalho e estudo, o que permitiria ao
estudante optar, com as mesmas condições de um estudante com mais recursos e,
estimularia a competição entre as instituições por esses estudantes.
115
O terceiro eixo relaciona-se diretamente ao segundo porque uma mudança nas
funções do governo em relação às instituições de ensino superior é necessária para
viabilizar os caminhos propostos para ampliação das universidades privadas e privatização
das públicas. A proposta é que “em lugar de exercer um controle direto, a função do
governo passa a ser de proporcionar um ambiente de políticas favorável para as instituições
públicas e privadas do nível terciário” (BANCO MUNDIAL, 1994, 10, tradução nossa). Ou
seja, aos moldes das propostas neoliberais da terceira via, o Estado passaria de executor à
regulador, e instituições públicas e privadas, conforme os acordos da OMC, devem ser
igualmente tratadas inclusive no que tange ao financiamento público. O único critério para
diferenciar as instituições seria o de qualidade, que deve ser verificada através de processos
de acreditação. Essa acreditação, segundo o Banco Mundial poderia ser dada pelos
governos, o que é considerado, porém, muito oneroso, ou por instituições privadas de
acreditação ou associações profissionais que desempenhem essa função. Além dessas
medidas, é necessário também que as universidades públicas passem a ter mais autonomia.
A autonomia é entendida como direito a fixar taxas e mensalidades, contratar e despedir
pessoal e utilizar livremente o orçamento que lhe é garantido. O controle público se daria
apenas sobre os resultados das mesmas.
O quarto e último eixo do documento do Banco Mundial refere-se à qualidade,
adaptabilidade e equidade64
64 Sobre equidade o Banco Mundial sugere políticas de cotas para aumentar a proporção de mulheres e minorias étnicas no ensino terciário, para que este cumpra seu papel na coesão social.
, ou seja, determina finalmente quais são os parâmetros de
mensuração do grande critério que passaria a ser utilizado para a distribuição de recursos e
benefícios às instituições. O objetivo seria uma melhoria na qualidade do ensino e da
pesquisa, uma maior adaptação do ensino pós-secundário às demandas do mercado de
trabalho e uma maior equidade no acesso.
Para melhorar a qualidade do ensino e da pesquisa o documento aponta a
necessidade de estudantes melhor preparados pelo ensino fundamental e médio e
professores bem preparados, motivados e com um ambiente que garanta os insumos
pedagógicos necessários. Mais uma vez o que determinará essa qualidade seriam avaliações
internas e externas, sem expor até então que critérios devem ser adotados para medi-la.
116
Mas fica claro que é o segundo objetivo desse eixo o que direciona o conteúdo
esperado no ensino e na pesquisa. O ensino deve se orientar para o mercado sendo que “em
um contexto de estratégias de crescimento econômico baseadas em inovações tecnológicas
tem importância fundamental que as instituições a cargo dos programas avançados de
ensino e pesquisa contem com a orientação de representantes do setor produtivo” (BANCO
MUNDIAL, 1994, 12, tradução nossa). O Banco Mundial sugere, enfim, a participação de
representantes do setor privado nos conselhos administrativos de instituições públicas e
privadas para “assegurar a pertinência dos programas acadêmicos” (BANCO MUNDIAL,
1994, 12, tradução nossa). Ou seja, a qualidade é, sem mediações, a qualidade para os
interesses do mercado. Como prêmio o setor privado incentivaria pesquisas conjuntas entre
universidades e empresas, bolsas de estudos para estudantes e cursos em tempo parcial para
profissionais do setor produtivo.
Chauí (1999) critica essa nova perspectiva de universidade batizada por ela de
universidade operacional. O pressuposto ideológico que sustenta essa transformação é, para
a autora, a defesa do mercado como espaço de garantia do bem-estar e de racionalização
sócio-política e não mais o Estado.
A universidade clássica estava voltada para o conhecimento e a ela sucedeu a
universidade funcional, adaptada para as necessidades do capital de qualificação da força
de trabalho. A terceira fase da universidade seria a universidade operacional. Adequada à
lógica de “serviço público não-estatal” a universidade passa, então, de instituição social à
organização social. Para Chauí essa transformação leva a muitas implicações já que como
organização ela deixa de referenciar-se na sociedade e passa a auto-referenciar-se, ou seja,
“está voltada para si mesma enquanto estrutura de gestão e de arbitragem de contratos”
(CHAUÍ, 1999, 5). Assim a organização social
“É regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso, que para a instituição social universitária é crucial é, para a organização, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que e onde existe” (CHAUÍ, 1999, 3).
Nesse modelo de universidade a autonomia fica reduzida ao gerenciamento
empresarial de receitas e despesas, com liberdade para captação privada de recursos, com o
objetivo de cumprir as metas fixadas em contratos de gestão firmados com o Estado. O
117
corolário da autonomia é, por sua vez, a flexibilização compreendida como: flexibilização
dos contratos com o fim da estabilidade e dos concursos públicos, fim das licitações e das
prestações de conta, flexibilização dos currículos adaptando-os as necessidades do capital
em cada localidade e separação do ensino e da pesquisa. Já a qualidade, ainda segundo
Chauí, passa a ser medida pela produtividade: quanto se produz, em quanto tempo se
produz e com que custo se produz, o que irá definir os contratos de gestão. A qualidade é na
verdade medida pela quantidade não importando mais o que se produz, como se produz e
para que (ou quem) se produz. Todos esses princípios estão claramente em acordo com a
proposta de Reforma do Estado assumida pelo governo desde Cardoso65
Para esse novo período de contra-reformas o Banco Mundial lança um novo
documento em 2003 denominado “Construir sociedades de conhecimento: novos desafios
para a educação terciária”. Nesse documento o Banco afirma ampliar os temas discutidos
no documento de 1994 dando ênfase a novas tendências quais sejam: o papel emergente do
conhecimento como motor do desenvolvimento, as mudanças decorrentes da ampliação do
uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC), a internacionalização tanto de
provedores da educação terciária como de um mercado global de capital humano avançado,
o aumento de demandas de apoio financeiro e técnico ao Banco de países que querem
reformar e desenvolver a educação terciária e, por fim, a necessidade de estabelecer uma
.
Esse documento do Banco Mundial de 1994 refere-se, porém, ao primeiro período
de mudanças na formação do trabalho intelectual, que se estendeu até o final dos anos 1990,
e tinha como objetivo o desmonte do sistema de educação superior então vigente, através
de mudanças no seu arcabouço jurídico e incentivo ao setor privado. Nos anos 2000, a
“reforma” do ensino superior entra numa nova fase caracterizada pela busca de uma nova
organicidade ao novo modelo que vinha sendo implementado, através da definição de
novos parâmetros, estruturas curriculares e expansão mais acelerada do acesso a esse nível
de ensino. Nos anos 2000, a meta prioritária de acesso ao ensino básico para os
trabalhadores passa a ser ampliada, passando a incluir essa população na “educação
superior de novo tipo para o século XXI” (NEVES e PRONKO, 2008, 105). É nesse
segundo período que estarão localizadas as iniciativas do governo Lula.
65 Segundo Sguissard (2009): “(...) uma especificidade da reforma da educação superior no Brasil reside nas diretrizes da reforma gerencial do Estado posta em prática a partir do Plano Diretor da Reforma do Estado, de 1995”.
118
visão integrada da educação onde a educação terciária tem papel crucial na criação de
capital humano e social (BANCO MUNDIAL, 2003).
Observemos agora alguns aspectos fundamentais adicionados por esse documento
às perspectivas do Banco Mundial para a educação superior.
O documento parte do debate de 1994 reafirmando a necessidade de diversificação
do ensino superior, ou educação terciária conforme denominado pelo Banco. Acrescenta,
porém, a tese da sociedade do conhecimento66
O documento também relaciona os objetivos almejados do ensino terciário às
propostas gerais para o desenvolvimento fixadas pelo Banco Mundial. Quatro seriam os
fatores favoráveis ao desenvolvimento dos países, que podem ter no ensino terciário uma
contribuição vital: o regime institucional e de incentivos macroeconômicos, a infraestrutura
das TIC, o sistema de inovação nacional e a qualidade dos recursos humanos do país. Nesse
contexto, o ensino terciário teria entre seus objetivos a redução da pobreza, através do
aumento da produtividade dos países capacitando a força de trabalho local, gerando novos
conhecimentos e adaptando conhecimentos globais ao uso local, além de aumentar as
oportunidades de emprego e ascensão para estudantes com menos recursos
como pressuposto básico para o modelo a
ser implementado. Nessas sociedades o papel da educação terciária seria maior do que
nunca. Isso justifica, de acordo com o documento, o Banco Mundial rever e ampliar suas
práticas para esse setor, ao invés da ênfase dada ao ensino básico no período anterior.
67
66 Segundo Neves e Pronko (2008, 110) para os organismos internacionais: “(...) as sociedades do conhecimento substituem as sociedades industriais porque o capital físico vem perdendo importância como fonte de riqueza depois que esta começou a ser impulsionada pelas inovações tecnológicas”, tese que tem no determinismo tecnológico suas bases e que discordamos, conforme exposto no capítulo 1 desse trabalho. 67 Lembrando que para o Banco Mundial existe uma relação direta e mecânica entre desenvolvimento nacional e redução das desigualdades sociais.
.
Ou seja, fica claro o duplo objetivo: formar força de trabalho qualificada de acordo
com as necessidades do modelo de acumulação e ao mesmo tempo buscar coesão social,
ampliando as possibilidades de acesso ao ensino superior, mesmo que menos qualificadas.
Nesse ponto o documento sugere uma ampliação dos programas de crédito educativo para
estudantes com menos recursos, o que seria uma política de equidade. Outro importante
meio de expansão do ensino terciário, para o documento, é o uso das TIC através do EAD –
ensino à distância.
119
A expansão do ensino terciário, por meio de várias formas de diversificação, deve
ser acelerada para cumprir esse duplo objetivo, numa perspectiva de massificação. Segundo
Neves e Pronko (2008, 118) o termo “massificação” só recentemente vem sendo utilizado
pelos organismos internacionais e no Brasil tem sido substituído pelo termo
“democratização”, na nossa opinião, numa perspectiva transformista para buscar adesão de
setores progressistas da comunidade universitária. Além da diversificação das instituições a
massificação tem como fundamento a equidade e a meritocracia, mecanismos que
prometem aos segmentos mais pauperizados da população acesso ao ensino superior de
acordo com suas capacidades. Assim “o sistema de educação terciária permite, de fato, que
parcela da classe operária ‘chegue ao paraíso’, desde que entre pela porta dos fundos”
(NEVES E PRONKO, 2008, 130).
O documento também se preocupa em determinar de que forma as contra-reformas
devem ser implementadas para conseguirem resultados mais exitosos, através de três lições
derivadas de projetos implementados desde 1992 pelo Banco.
A primeira lição é que as “reformas” integrais são mais eficazes do que a tomada de
medidas isoladas, ainda que admita que as iniciativas em longo prazo possam ocorrer
através de uma série de operações complementares, isto é, uma contra-reforma em fatias.
A segunda lição é que deve se levar em consideração as dimensões políticas das
“reformas”, ou seja, que haverá resistências a sua execução. Para solucionar essa questão o
Banco Mundial aponta que as “reformas” do ensino terciário têm demonstrado melhores
resultados quando há consenso entre os integrantes da comunidade. A criação do consenso
é a primeira fase da contra-reforma , para a qual o Banco Mundial se propõe a facilitar o
diálogo entre as partes. “O Banco pode reunir na mesma mesa interlocutores que em
condições normais não dialogariam nem trabalhariam juntos” (BANCO MUNDIAL, 2008).
A terceira lição demonstra que o oferecimento de incentivos para a realização das
mudanças, ao invés de decretos de cumprimento obrigatório tendem a ter respostas
melhores e mais rápidas das instituições e dos atores envolvidos.
As receitas prescritas pelo Banco Mundial foram adotadas pelo Brasil com
adaptações de acordo com a realidade e com os conflitos e correlações de força locais no
embate entre o projeto neoliberal hegemônico e o projeto dos sujeitos políticos
120
organizados68
a) A nova legislação: LDB, PNE, PDE e as propostas de “reforma”.
em defesa da universidade pública. As ações determinaram uma ampliação
do ensino superior privado, já hegemônico no Brasil desde o período anterior, e ao mesmo
tempo mudanças que privatizaram e transformaram por dentro as universidades públicas,
num processo de contra-reforma.
A análise das inflexões nas propostas do Banco Mundial para o ensino superior nas
décadas de 90 e 2000 reforçam nossa tese de que as diferenças entre o governo Cardoso e o
governo Lula não são de cunho ideológico, que nos levem a identificar matizes de esquerda
e de direita, mas fruto de alterações no discurso e na estratégia do capital desde o centro,
em resposta às resistências impostas pelos trabalhadores ao neoliberalismo. Ninguém
melhor do que um símbolo da luta da classe trabalhadora no Brasil na presidência para
obnubilar essa realidade.
Passemos, portanto, às medidas concretas da contra-reforma universitária brasileira
iniciada na década de 1990, centrando nosso debate nas conseqüências para as
universidades públicas. Por fim, analisaremos os dados concretos que vão demonstrar como
essas medidas alteraram ou aprofundaram o modelo de ensino superior do país.
Neves e Pronko (2008) creditam ao governo Cardoso o momento da implementação
do novo modelo de formação para o trabalho complexo69
68 Lima (2007) destaca ANDES, UNE, UBES, FASUBRA, CONTEE, CNTE, ANPED, ANFOPE, UNDIME, CEDES e ANDIFES no campo contra-hegemônico, reconhecendo diferenças, porém, entre suas pautas, avaliações e projetos. 69 Neves e Pronko (2008) utilizam a categoria “trabalho complexo” baseando-se na formulação de Marx no volume I de O Capital: “(...) o trabalho complexo, ao contrário [do trabalho simples], se caracteriza por ser de natureza especializada, requerendo, por isso, maior dispêndio de tempo de formação daquele que irá realizá-lo” (NEVES e PRONKO, 2008, 22). Estamos utilizando, para o mesmo fim, a categoria “trabalho intelectual” conforme utilizada por Mandel, que refere-se ao trabalho complexo historicamente situado no capitalismo tardio, caracterizado pela necessidade de formação superior.
, adequado às novas demandas de
reprodução do capital. No entanto, identificam já na Constituição de 1988 alguns
elementos que foram importantes precondições para a direção posteriormente tomada,
apesar de admitirem as vitórias parciais inscritas na Carta.
121
As autoras destacam três pontos onde o Fórum Nacional em Defesa da Escola
Pública 70
Já o PNE, elaborado no Congresso Nacional de Educação de 1997, foi aprovado
com nove vetos presidenciais em 2001, no governo Cardoso. Os vetos referiam-se aos
sofreu derrotas importantes, que abriram brechas para o empresariamento da
educação.
O primeiro ponto foi embate entre o Fórum e setores privatistas do ensino sobre o
financiamento público exclusivo para instituições públicas. Derrotada a proposta do Fórum,
manteve-se aberta a possibilidade de financiamento público ao setor privado, sob condições.
O segundo ponto foi a abertura da possibilidade de escolas privadas laicas poderem
ser instituições lucrativas, pela primeira vez na nossa História. Com isso legitimou-se
juridicamente a transformação destas instituições em empresas de prestação de serviços.
Por último, o Fórum foi derrotado na proposta de padrão único de qualidade para o
ensino superior, organicamente vinculado com a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão e a exigência da organização desse nível de ensino em universidades. Em vez
disso, o padrão de qualidade tornou-se um princípio geral da educação como um todo e a
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão ficou restrita às universidades, não
tornando-se a única forma possível de organização do ensino superior, que manteve a
possibilidade de ter diversificadas modalidades de organização (NEVES E PRONKO,
2008, 50).
Já no início do governo Cardoso, Lima (2007) vai enfatizar duas expressões centrais
no embate entre o projeto de educação pública dos sujeitos políticos organizados e o projeto
de educação neoliberal do governo junto a associações de universidades privadas, quais
sejam: a LDB e o PNE aprovados pelo governo respectivamente em 1996 e 2001 e as
propostas elaboradas pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública.
A nova LDB foi promulgada pelo Congresso Nacional em 12 de setembro de 1996,
substituindo o projeto de lei que vinha sendo debatido há oito anos por uma nova versão
“mais compatível com os interesses neoliberais de então” (NEVES e PRONKO, 2008, 58).
O novo projeto, elaborado pelo senador Darcy Ribeiro, apresentava concepções antagônicas
de educação às elaboradas pelo Fórum (LIMA, 2007, 136).
70 Constituído em 1987 reunia entidades acadêmicas, sindicais, estudantis, profissionais e movimentos populares do campo da educação.
122
subitens que promoviam alterações e ampliações nos recursos financeiros para a educação,
sobretudo o ensino superior. Lima (2007, 140) destaca entre os vetos: a) a meta de manter
40% das vagas totais no ensino público; b) a proposta de criação de um Fundo de
Manutenção do Ensino Superior com pelo menos 75% dos recursos da União vinculados a
manutenção e desenvolvimento do ensino; c) a ampliação do crédito educativo, alcançando
pelo menos 30% dos estudantes do ensino privado; d) a ampliação dos recursos para
pesquisa científica e tecnológica com a meta de triplicá-la em 10 anos; e) a elevação dos
gastos públicos para, ao menos, 7% do PIB em 10 anos; f) a exclusão das despesas com
aposentados e pensionistas da fonte manutenção e desenvolvimento do ensino; e g) a
elevação dos valores por aluno a padrões mínimos estabelecidos nacionalmente. Entre as
metas aprovadas e mantidas pelo governo destaca-se ampliação de vagas no ensino superior,
para alcançar 30% dos jovens entre 18 e 24 anos até 2011.
Já no governo Lula, em 2004, o MEC lança o documento “Reafirmando princípios e
consolidando diretrizes da reforma da educação superior”, conhecido como Documento II,
que sistematizará as medidas da contra-reforma pretendidas pelo governo federal. O
objetivo do documento é forjar uma Lei Orgânica para a educação superior que
regulamente aspectos como autonomia, financiamento, avaliação, regulação, carreira dos
trabalhadores entre outros temas. O GTPE do ANDES elaborou uma análise crítica a esse
documento. De início já critica a idéia de Lei Orgânica específica, defendendo um Sistema
Nacional de Educação que integre todos os níveis. Outro aspecto que destaca no documento
é a manutenção da concepção bresseriana de público-não estatal e de Estado como
regulador.
Desde então o governo já aponta para uma ampliação de vagas no ensino superior,
tendo como referência a meta de matrículas do PNE, sem discussão sobre ampliação de
recursos, o que é criticado pelo GTPE/ANDES como uma abertura para a desqualificação
do ensino, ampliação da compra de vagas privadas e do EAD. Outra proposta que já
aparece no Documento II, e vai se consolidar no Decreto REUNI em 2006, é a proposta de
elaboração de Planos de Desenvolvimento e Gestão nas IFES, que estariam atrelados a
aportes de recursos. Sobre isso a posição do GTPE/ANDES (2004) é: “O plano de desenvolvimento institucional pode ser um valioso instrumento de gestão por estabelecer princípios, diretrizes, metas e responsabilidades, desde que elaborado com a participação e envolvimento daqueles que o executarão, sem imposição, e, muito menos, sob coação econômica por parte do governo federal .
123
Como proposto, o plano de desenvolvimento e gestão estaria ferindo a autonomia universitária, pois as IFES deixam de ser públicas e passam a ser governamentais, atuando no interesse do partido político ou grupo dirigente temporariamente no poder. O tipo de mecanismo proposto proporciona um grande incentivo para que as IFES satisfaçam às exigências do mercado, deixando de estar a serviço do conjunto mais amplo da sociedade”.
Em 2006, o governo manda para o Congresso Nacional o PL nº 7200/2006 com sua
proposta de contra-reforma universitária, chamado Normas Gerais do Ensino Superior, já
na sua quarta versão e com o acréscimo de 368 emendas parlamentares. Essa proposta foi
apensada no PL nº 4214/04 e no PL nº 4221/04, ambos de cunho privatista, fragmentador e
desregulamentador, mesmas características das emendas parlamentares do novo PL do
governo Lula (ANDES, 2004).
A proposta do PL mantém, sistematiza e aprofunda as tendências já verificadas da
contra-reforma universitária no Brasil, como a diversificação das instituições de ensino
superior, a diluição das fronteiras entre público e privado sintetizadas na idéia de público
não-estatal, a desregulamentação do setor privado e a redução do papel do Estado como
executor. Além disso, abre o ensino superior brasileiro ao capital estrangeiro, reforça a
EAD como modalidade de ensino na graduação e na pós-graduação stricto sensu e mantém
a centralidade dos critérios de produtividade. O conceito de ensino passa a se restringir à
graduação e à pós-graduação stricto sensu, tornando a obrigatoriedade da gratuidade nas
instituições públicas restrita a esses níveis, o que institucionaliza definitivamente os, já
pagos, cursos de extensão e pós-graduação lato sensu, que se tornarão oficialmente fonte de
arrecadação de recursos. Na mesma medida, referenda e aprofunda o papel das fundações
de apoio como mecanismo de privatização interna nas IFES.
Para ganhar a adesão dos estudantes, o decreto segue as recomendações do Banco
Mundial71
71 O tema das cotas é controverso, mas também vem, em geral, sendo apoiado pelo movimento sindical e estudantil nas universidades. Esses movimentos, porém, costumam dar um tom mais de reivindicação transitória para democratização do acesso a universidade pública, com vistas à universalização dessa modalidade de ensino ao contrário da compreensão focalista e assistencialista do Banco Mundial. Para aprofundar esse tema ver: http://www.andes.org.br/2009/index/consciencianegra.html e http://www.une.org.br/home3/opiniao/artigos/m_16088.html.
, apontando para a implementação de política de cotas para egressos de escolas
públicas, negros e índios. O governo também promete a destinação de 9% das verbas das
IFES para políticas de assistência estudantil. Segundo dados elaborados pelo ANDES, com
base nas receitas das IFES em 2005, esse percentual corresponderia a R$1,00 para cada
124
estudante por dia letivo, o que não seria suficiente para financiar nem os restaurantes
universitários.
Ainda assim, o governo conseguiu o apoio da UNE para seu projeto. Dirigidos
majoritariamente por estudantes ligados ao PC do B, partido da base governista, desde o
início do governo Lula a UNE vem tendo uma postura de diálogo e contribuição, sendo
acusada de “chapa branca”72
Sua caracterização majoritária era de que o projeto continha avanços como a
ampliação de vagas públicas, mais verbas, regulamentação do ensino privado e ampliação
de recursos para assistência estudantil.
por outros setores do movimento estudantil, alguns sequer a
reconhecendo mais como sua máxima representação. O discurso adotado pela entidade é o
do “governo em disputa”. Sua análise geral é que o projeto de “reforma” do governo, fora
algumas objeções pontuais, contempla as bandeiras da entidade, sendo favorável à
educação pública. A disputa se daria nas emendas, essas sim de interesse dos empresários
da educação.
“A disputa real começou. Está colocada a oportunidade de transformarmos a estrutura elitista da universidade brasileira. Ou nos organizamos e vamos com tudo para dentro do Congresso, ou corremos o risco de perder a luta contra o lobby dos tubarões do ensino e das forças conservadoras que não querem reformar a educação no país”, pondera o presidente da UNE, Gustavo Petta”. (UNE, 2006)
73
72 Através de estratégias de cooptação e consenso o governo Lula conseguiu o que almejava o governo militar: transformar as entidades estudantis de subversivas em “lideranças democráticas”, dentro da ordem. 73 Em 2009 a UNE apresentou um PL próprio, o PL 5175/09 em trâmite no Congresso. Ainda que apresente pontos historicamente reivindicados pelo movimento sindical e estudantil das universidades, importantes para reversão da privatização, como a extinção das fundações privadas, a ampliação das vagas públicas e o aumento gradual de recursos públicos para as IFES, ele não toca em questões centrais como a diversificação das instituições de ensino superior, a necessidade de rediscussão dos mecanismos de avaliação em vigor e o fim do EAD na graduação e na pós-graduação.
Leher (2005b) atenta para o falso silogismo que existe entre os empresários da
educação criticarem o projeto e o projeto defender o ensino público. Para o autor não há
divergência de conteúdo entre as propostas dos empresários e a do governo, sendo a
pressão dos empresários expressão de divergências entre diferentes setores do ensino
privado (confessionais, empresariais e etc) e diferenças de grau, com uma pressão sobre o
governo para “incorporar ao seu projeto os anseios do setor privado de modo ainda mais
incondicional” (LEHER,2005, 1). Para o autor:
125
“Somente desconsiderando o que de concreto já foi encaminhado pelo governo e se eximindo de uma leitura minimamente rigorosa do anteprojeto, é possível afirmar que os empresários não estão saindo ainda mais fortalecidos” (LEHER, 2005, 7).
Até o momento de conclusão desse trabalho a PL 7200/06 continuava na Câmara de
Deputados, aguardando votação.
Em 2007, o governo lançou o PDE – Plano de Desenvolvimento da Educação, um
conjunto de programas, decretos, resoluções e portarias apresentado como um “plano
executivo” para atingir as metas determinadas pelo PNE e colocar em prática questões
preconizadas desde a Constituição de 1988 (MEC, 2007). Segundo o sítio do MEC, seu
objetivo principal é garantir uma educação básica de qualidade e para alcançar essa meta
investir também em ensino superior e ensino profissional, por estarem ligados direta ou
indiretamente. Metas bastante de acordo com as propostas do Banco Mundial, e que
reforçam a dualidade histórica da educação brasileira ao deixar de lado os investimentos
públicos no ensino médio.
Ainda segundo o sítio do MEC, o Plano foi baseado no Compromisso Todos pela
Educação. O compromisso é um contrato de gestão entre prefeituras e MEC, onde as
primeiras comprometem-se a alcançar algumas metas na educação básica em troca de
aportes técnicos e financeiros do Ministério. É importante destacar que o “movimento”
Todos pela Educação, que deu impulso a essa “ampla mobilização social”, nas palavras do
MEC, é patrocinado por alguns dos maiores bancos – Itaú, Unibanco, Real e Bradesco, e
por algumas das maiores empresas – Odebrecht, Gerdau, Camargo Correa e Suzano, do
país74
Em relação ao ensino superior, o PDE apresenta os seguintes princípios: a)
expansão da oferta de vagas; b) garantia de qualidade; c) promoção da inclusão social; d)
ordenação territorial; e e) desenvolvimento econômico e social através da formação de
, lembrando as preocupações do Banco Mundial de que a pobreza pode gerar um
clima desfavorável para os negócios, e de que a educação é necessária para aliviar as
tensões do desemprego estrutural (LEHER, 1999).
74 O “movimento” é presidido por Jorge Gerdau Johannpeter, uma das maiores fortunas do país, e contou entre seus sócios e colaboradores com Ruth Cardoso, fundadora da Comunidade Solidária, Vivianne Senna, da Fundação Ayrton Senna, Cristovam Buarque e Fernando Haddad, ex e atual Ministro da Educação, entre outras personalidades.
126
recursos humanos qualificados e do desenvolvimento científico-tecnológico. Os programas
relativos ao ensino superior são: o REUNI, lançado quase concomitantemente com o PDE;
o PROUNI75
75 Aprofundaremos o conteúdo desses programas mais a frente.
, programa de crédito educativo que substituiu o FIES, já em vigência desde
2005; o SINAES, programa de avaliação vigente desde 2004; a UAB, programa de ensino à
distância criado em 2005; o Plano Nacional de Assistência Estudantil, só implementado em
2008; além de outros referentes à extensão, à pesquisa e à pós-graduação. No bojo do PDE,
também foi criado o banco de professores equivalentes, por meio dos decretos
interministeriais nº 22/07 e nº224/07.
Para o ANDES e para os setores minoritários do movimento estudantil, o PDE seria
mais um retrocesso ao caminhar para uma expansão de vagas baseada na redução da
qualidade, o que levou a formação de uma Frente de Luta contra a Reforma Universitária,
que, apesar de ter durado pouco, conseguiu realizar um encontro em 2007 e alguns
materiais impressos.
Toda essa profusão de programas, planos, decretos, projetos de lei que vêem se
sobrepondo, mudando de nome e de discurso, fazem, na nossa visão, parte do mesmo
processo de contra-reforma universitária operada para adequar o ensino superior às
necessidades de formação de força de trabalho, de ciência e tecnologia e de ideologia às
necessidades do capital pós anos 1970, período do neoliberalismo, tendo as propostas do
Banco Mundial como matriz. As pequenas inflexões também acompanham as inflexões no
Banco Mundial não se caracterizando como rupturas progressivas com o modelo
hegemônico de contra-reforma implementado desde Collor, passando por Cardoso. As
mudanças, quando existem, têm por objetivo aumentar o consenso e a adesão em torno da
contra-reforma, o que o governo Lula conseguiu não só com a UNE, mas com diversos
setores de docentes, técnico-administrativos e da sociedade como um todo, fato que tem
dificultado a existência de articulações como o Fórum em Defesa da Escola Pública ou a
Frente de Luta contra a Reforma.
Ao analisar a seguir a trajetória histórica de algumas políticas que têm sido eixo
central da contra-reforma dos sucessivos governos, acreditamos referendar a hipótese
apresentada acima.
127
b) Modelos de avaliação das universidades
Sguissardi (2009) aponta a qualidade como um fenômeno no ensino superior
atualmente, chamando atenção a freqüência com que essa noção se faz presente. Ainda que
a qualidade do fazer universitário sempre tenha sido uma questão, o autor defende que pelo
seu caráter polissêmico, o conteúdo do termo qualidade só pode ser compreendido dentro
do contexto em que é aplicado, no caso atual um contexto de internacionalização do ensino
superior.
As razões assinaladas pelo autor para a emergência da qualidade como questão
central são a expansão do ensino superior e as dificuldades do financiamento público e duas
premissas: a teoria do capital humano, recentemente absorvida pelo Banco Mundial que vai
defender um maior retorno no investimento do ensino básico relacionando qualidade com
empregabilidade, e a tese de que o ensino superior seria um bem privado e não público. Ao
se retirar da responsabilidade exclusiva de expandir e gerir o sistema, o Estado passará a ser
pressionado pela classe média a ampliar seu papel na regulação e no controle, para
assegurar o valor dos títulos.
Sobre o contexto da internacionalização, Sguissardi (2009) destaca a Declaração de
Bolonha como um marco no debate sobre a qualidade no ensino superior. O objetivo
central da Declaração, inicialmente assinada pelo Ministério da Educação de 29 países, é a
construção da Área Européia de Ensino Superior:
“Visando maior mobilidade, empregabilidade dos diplomados e a competitividade do sistema europeu, busca-se a intelegibilidade e a comparabilidade dos graus conferidos pelos diferentes sistemas europeus de ensino superior” (SGUISSARDI, 2009, 268).
Com o mote da competitividade se coloca a questão do controle da qualidade então,
como uma suposta “garantia pública”.
No Brasil, esse marco se dá nos anos 1980, com base, mais uma vez, no argumento
de que a universidade pública beneficiaria os ricos mais do que as privadas, e que, portanto,
precisaria aumentar sua eficiência e produtividade, supostamente passando a se reportar a
partir daí, sistematicamente a sociedade. A avaliação, desde a instituição do GERES, vai
passar, então, a estar na pauta do governo para as universidades, na defesa da qualidade.
128
Sguissard (2009, 273), utilizando os argumentos de Limoeiro (1991) como apoio,
vai definir, no entanto, duas concepções distintas de qualidade, que necessariamente
balizam lógicas de avaliação também distintas.
A primeira baseia-se no critério da eficiência e produtividade, atualmente
hegemônica, conforme já apontamos na análise de Chauí (1999) e a segunda acadêmico-
crítica, que integra ensino e pesquisa e foge ao mero critério de produtividade. A avaliação
é da importância acadêmica, científica, tecnológica e sociopolítica da produção, da
capacidade de ultrapassar as demandas do mercado, desenvolver o pensamento crítico e
produzir conhecimento livre do controle burocrático e do poder (SGUISSARDI, 2009, 274).
A avaliação hegemônica, baseada no primeiro critério, desconsidera, segundo Chauí
(apud SGUISSARDI, 2009, 273): a) as condições concretas e específicas de cada
instituição; b) que a avaliação não pode se reduzir à soma das performances individuais dos
docentes; c) as condições oferecidas à e pela instituição para a produção acadêmica; d) o
projeto institucional e a política acadêmica como balizador chave da avaliação. Além disso,
as avaliações tendem a se associar à idéia de punição, o que aumenta a resistência dos
envolvidos.
A primeira política de avaliação foi implementada ainda no governo Itamar Franco:
o PAIUB – Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras. Esse
programa foi idealizado pelo MEC em parceria com alguns setores das universidades e
entidades como ANDIFES, ABRUEM, ANUP e ABESC. Segundo Lima (2007) ainda que
esse programa tenha sido mais avançado do que aquele que seria implementado
posteriormente no governo Cardoso “o PAIUB não pode ser analisado desconectado das
demais ações do governo Itamar Franco, ordenadas pela lógica da modernização
conservadora das universidades públicas brasileiras” (LIMA, 2007, 133).
No governo Cardoso, através da lei nº9131/95, se estabelece o Exame Nacional de
Cursos, que passa a ser conhecido como Provão. Determina que o MEC avalie os alunos
concluintes anualmente, que passam a ser obrigados a realizar a prova para conseguir seus
diplomas, ainda que as notas individuais não sejam divulgadas. Além da avaliação dos
estudantes, o processo de avaliação do ensino superior no governo Cardoso conta ainda
com avaliação institucional, feita a partir das diretrizes curriculares por especialistas
129
designados pelo MEC e a avaliação docente, que vincula a produtividade com o
recebimento de uma gratificação por desempenho.
Esse modelo sofreu muitas críticas e resistência por parte dos alunos que
boicotaram sistematicamente a prova entregando-a em branco numa campanha conhecida
como “Nota Zero para o Provão”. O Provão foi aplicado de 1996 a 2003, quando já
avaliava 26 áreas totalizando 470 mil formandos, segundo dados do INEP.
Já no governo Lula, o Provão, bastante abalado pela sistemática oposição que sofria
de alunos e docentes, é substituído pelo SINAES – Sistema Nacional de Avaliação do
Ensino Superior. Seus eixos são a avaliação institucional, dos cursos e do desempenho dos
estudantes e é composto de vários instrumentos de avaliação: avaliação externa por
especialistas, auto-avaliação, avaliação dos cursos de graduação e o ENADE – Exame
Nacional de Desempenho dos Estudantes, uma versão requentada do Provão.
O ENADE manteve-se como um componente curricular obrigatório, ou seja,
condição para obtenção de diploma, modificando-se por passar a ser amostral, dividir os
cursos por grupos, que passam a fazer provas a cada três anos, e aplicado a formandos e
alunos dos três primeiros períodos. Apesar das semelhanças com o ENC de Cardoso, o
SINAES passou a contar com a adesão de vários setores da universidade críticos ao
primeiro, como a UNE. Para a UNE o novo método de avaliação teria pontos positivos
como tirar o foco do estudante passando-o para a instituição, além de recuar nos critérios
punitivos, já que enquanto o Provão prometia o fechamento dos cursos o SINAES apontava
para um termo de compromisso entre o MEC e as instituições mal avaliadas (UNE, 2006).
Não só a UNE como outros docentes, antes críticos ao modelo de avaliação, “aderiram” ao
SINAES pelo seu suposto caráter mais amplo e pedagogicamente mais correto.
Para o ANDES, o SINAES manteve o caráter regulador dos modelos de avaliação
anteriores. Mantém a lógica punitiva, ranqueadora e produtivista. Ao deixar nas mãos do
CONAES, Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior, estrutura restrita e
centralizadora nomeada pelo MEC, a elaboração de todos os critérios tanto da avaliação
externa quanto da avaliação interna, a lógica que fere a autonomia universitária continua.
A questão que nos parece central em relação ao debate da avaliação, conforme já
desenvolvido, é que ela nunca se dá de forma abstrata. Os critérios que orientam e valoram
as instituições como boas ou ruins são determinados pela lógica da política para o ensino
130
superior que está sendo implementada, em sua totalidade. Assim, não é possível avaliar os
modelos de avaliação em si mesmos, deslocados do todo, ou separando aspectos
pedagógicos e melhoras “técnicas” pontuais.
Do ponto de vista político o SINAES, e o ENADE dentro dele, mantêm o caráter de
seu antecessor, o famigerado Provão. Para Lima et ali (2008), o que caracteriza as
avaliações do ensino superior nesse período é sua epistemologia positivista, onde a
externalidade dos avaliadores e de seus critérios supostamente imprimiria objetividade aos
processos avaliativos. “Baseada numa espécie de realismo ingênuo, a avaliação positivista e
tecnocrática remete para uma ontologia da exterioridade, na qual a realidade é independente
da consciência dos atores” (2008, 19). Concordando com essa crítica, perguntamos: quem
avalia os avaliadores?
c) Política para o desenvolvimento da Ciência e Tecnologia
Historicamente, em acordo com sua inserção subordinada no capitalismo mundial, o
Brasil sempre optou pela importação de tecnologia ao invés da construção autônoma de
conhecimento.
Apenas no período desenvolvimentista, como já mencionado na segunda parte do
capítulo 2, com a criação da pós-graduação e de entidades de fomento à pesquisa é que se
abriu uma pequena possibilidade de construção de pesquisas autônomas destinadas às
estatais. Ainda assim, foi só em 1985 que criou-se um Ministério voltado para a Ciência e
Tecnologia – C&T (NEVES E PRONKO, 2008, 163).
Na década de 90, quando o modelo desenvolvimentista passa a ser desmontado no
país e substituído pelo modelo neoliberal, uma nova política de C&T começa a ser
delineada visando ampliar a participação do setor privado com o objetivo de produzir
inovações (NEVES E PRONKO, 2008, 163).
Ainda no governo Collor e no governo Itamar Franco, as políticas neoliberais para o
setor começavam a ser implementadas, como o fim da reserva de mercado de informática
conduzida pelo governo Itamar Franco, e tiveram profundo impacto na política de ciência e
tecnologia (C&T) no país. Eliminaram-se as restrições à entrada de capital estrangeiro e
definiu-se uma nova política centrada em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e subsídios
131
públicos ao setor privado, o que estimulou mais ainda a transferência e adaptação de
tecnologia dos países centrais76
Dois documentos sistematizam as políticas de CT&I do governo Cardoso: o Livro
Verde da Ciência, Tecnologia e Inovação
(LIMA, 2007,133).
Já em 1996 no governo Cardoso, cria-se o Conselho Nacional de Ciência e
Tecnologia para estimular a produção em P&D por meio da reorientação do financiamento
público para parcerias público-privadas em áreas consideradas estratégicas.
Segundo Neves e Pronko (2008,164) o primeiro mandato do governo Cardoso
concluiu o processo de desmonte do aparato científico-tecnológico construído no período
desenvolvimentista e iniciou uma contra-reforma jurídico-institucional que formou novas
bases para uma nova política de C&T.
Uma das principais medidas foi a criação dos Fundos Setoriais que materializaram
as parcerias público-privadas, passaram a definir as prioridades na política e redefiniram a
função do Estado, que passou de financiador e executor da C&T para planejador e
coordenador de um sistema público não-estatal. Os Fundos são administrados por comitês
gestores constituídos por representantes da comunidade científica, dos ministérios e do
setor empresarial e financiados por diversas fontes como royalties, licenças e autorizações
de diversos setores produtivos. Com isso, consolidaram a parceria entre universidades,
centros de pesquisa e setor produtivo com prioridade no apoio à pesquisa aplicada que
conjugue tecnologia e inovação (NEVES E PRONKO, 2008,169).
Esses fundos têm seus recursos destinados à pesquisa aplicada, a chamada P&D,
tendo que obrigatoriamente destinar 70% dos seus recursos para essa área, restando 30%
para a pesquisa científica o que pode obrigar o país a ter que comprar pacotes científicos-
tecnológicos dos países avançados (OLIVEIRA, 2004, 81)
Já no segundo mandato de Cardoso a política é definida, introduzindo o foco na
inovação. A partir de então C&T torna-se CT&I nos documentos institucionais.
77
76 Embora a lei tenha sido aprovada no governo Collor em 1991, sua vigência só começa com sua regulamentação já no governo Itamar Franco em 1993 (LIMA, 2007, 134). 77 Participaram dessa elaboração representantes de universidades, empresas privadas e estatais, organizações da sociedade civil, políticos e representantes de organismos internacionais. Neves e Pronko (2008, 164) chamam atenção para o fato de nenhuma entidade dos trabalhadores, como a SBPC, ter sido convidada.
, produzido como apoio aos debates da 2ª
Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação e o Livro Branco com a
sistematização da Conferência, que traçou as diretrizes para essa política até 2010.
132
Esses documentos adotam a ideologia da sociedade do conhecimento e buscam
adequar o Brasil aos ditames dos organismos internacionais, numa posição de subordinação
que tem como objetivo importar conhecimentos produzidos no exterior e adaptá-los a
realidade local, e produzir inovações que agreguem valor a produtos, processos e serviços.
“Por intermédio desses documentos vai ficando claro que a ênfase da política de C&T recai sobre o objetivo de aumentar a produtividade do trabalho sob a ótica do capital, favorecendo e acelerando o processo de valorização” (NEVES e PRONKO, 2008, 165).
O governo Lula manteve a mesma lógica do seu antecessor para essa política,
reafirmando a prioridade das inovações tecnológicas. Duas leis fundamentais foram
aprovadas no seu governo possibilitando o aprofundamento das políticas que vinham sendo
implementadas, de esvaziamento do papel do Estado e compensação do desfinanciamento
público com o incentivo aos investimentos privados: a Lei das Parcerias Público-Privadas e
a Lei de Inovação Tecnológica.
A Lei de Inovação Tecnológica foi discutida pelo governo fora do âmbito da
reforma universitária. No entanto afeta a universidade em profundidade “pois cria
procedimentos mais rápidos de transferência e licenciamento de tecnologia das entidades de
pesquisa para a indústria, sem as delongadas licitações” (MANCEBO, 2004, 855). A lei se
estrutura para: favorecer as parcerias entre universidades e empresas, estimular que as
entidades produtoras de conhecimento desenvolvam inovação e incentivar também as
empresas a fazerem inovações. Ao mesmo tempo em que a lei possibilita a privatização do
espaço e dos resultados de pesquisa pública, ela também prevê recursos públicos para
iniciativas de inovação em instituições privadas. Ainda abre espaço para remunerações
extras para os professores-pesquisadores das instituições públicas que prestarem serviços a
empresas e participação nos lucros gerados pelas inovações.
Assim, a lei de inovação tecnológica do governo Lula, no espírito da parceria
público-privada, regulamenta a venda da pesquisa pública para instituições privadas e
incentiva a diferenciação das condições de trabalho, salários e regimes de funcionamento
dentro das instituições públicas de acordo com sua submissão aos interesses do mercado.
Fortalece, assim, a mercantilização do conhecimento que deve, cada vez mais, estar voltado
à inovação tecnológica em detrimento de necessidades sociais coletivas (Mancebo, 2004).
133
Mercantiliza a pesquisa e não rompe com a histórica heteronomia. Continuamos
seguindo o modelo em que “é somente requentar e usar”78
d) O EAD como política de expansão.
.
Outra iniciativa que se destaca até hoje e potencializou-se no governo Itamar Franco é
a política de EAD - Educação à Distância. Em 1993, o MEC e o Ministério das
Comunicações assumem um protocolo para a criação do Consórcio Interuniversitário de
Educação Continuada e à Distância Brasilead, que tinha por objetivo articular as ações na
área desenvolvendo o EAD no Brasil (LIMA, 2007,134).
Até meados da década de 1990 o ensino á distância era utilizado no Brasil em
cursos profissionalizantes e de complementação de estudos79
Em 2001, o MEC publicou a portaria n º 2253 que autorizava instituições de ensino
superior a cumprirem até 20% da carga horária obrigatória de seus cursos regulares
presenciais por meio de EAD. No mesmo ano a Resolução CES/CNE nº 1 permitiu a
abertura de cursos de pós-graduação strictu sensu à distância, a serem regulados pela
CAPES. Outra importante medida na implementação do EAD no ensino superior brasileiro
. A partir desse período, com a
ampliação da internet, iniciou-se uma política nacional de educação superior à distância.
Seu marco fundamental está na LDB, que incentivou o surgimento desses programas,
posteriormente regulamentados pelos decretos 2494/98 e 2561/98 (LIMA, 2007 145).
O primeiro decreto caracteriza o ensino à distância como uma forma de ensino que
possibilita a auto-aprendizagem pela mediação de materiais didáticos organizados e
veiculados em vários meios de comunicação. O segundo decreto trata do credenciamento
dos cursos à distância, e foi complementado por outras portarias e documentos do MEC
(LIMA, 2007, 146).
78 Em referência a música Parque Industrial de Tom Zé (1968): “Despertai com orações/ O avanço industrial/ Vem trazer nossa redenção.(...)/ Pois temos o sorriso engarrafado/ Já vem pronto e tabelado/ É somente requentar/ E usar,/ É somente requentar/ E usar,/ Porque é made, made, made, made in Brazil. 79 Segundo Tonegutti (2010, 61): “o EAD surge em decorrência da necessidade da classe trabalhadora (ou, mais geral, da sociedade) de ter acesso a educação, o que não era possível, na maioria das vezes, pelos meios tradicionais. (...) por vezes, é a única oportunidade de estudos para os adultos engajados no mercado de trabalho ou nos afazeres domésticos, que não possuem o tempo necessário às atividades de frequência obrigatória em um curso presencial, ou mesmo residem em localidades de difícil acesso (...)”.
134
foi a criação de consórcios entre as universidades, com destaque para o Cederj, que reúne
universidades do Estado do Rio de Janeiro para oferecer cursos de licenciatura à distância.
Ao contrário dos países centrais, onde as TIC agregam novas possibilidades
pedagógicas, nos países periféricos o uso dessas tecnologias tem significado substituição
tecnológica (LIMA, 2007, 146). Uma política de ensino superior pobre para pobres, já que
declaradamente a EAD está associada à oferta de ensino para segmentos mais pauperizados,
conforme consta no PNE aprovado no governo Cardoso. A formação e atualização de
professores em serviço é outro dos focos da implementação do EAD desde o governo
Cardoso (LIMA, 2007, 149). Essas duas metas, formação de professores e acesso ao ensino
superior de segmentos mais empobrecidos continuou sendo o horizonte da implementação
do EAD durante o governo Lula.
Para Tonegutti (2010) o EAD só deve ser considerado para estudantes mais
maduros, que precisam se beneficiar das vantagens da flexibilidade de horários e têm
condições de estabelecer hábitos de estudo independentes. Para estudantes mais jovens a
intervenção mais direta do professor com metodologias de ensino motivadoras é
fundamental para uma aprendizagem mais profunda. Além disso, o EAD poderia ser
utilizado como complementação (e não substituição) do ensino presencial e em educação
continuada.
No entanto, no Brasil, a falta de vagas suficientes no ensino público presencial leva
estudantes jovens de 18 a 24 anos, com perfil para o ensino presencial, a ingressarem em
cursos à distância sem qualquer necessidade. No ensino público enquanto a média de
candidatos por vaga em 2007 em cursos presenciais foi 7, no EAD foi de 0,35 candidatos
por vaga, tornando esse sistema mais fácil de ser acessado. Tonegutti (2010,67) afirma com
veemência que o EAD não deveria ser usado como mecanismo de “democratização” do
acesso ao ensino superior, como defende o governo, com a finalidade política de cumprir a
meta de 30% de jovens no ensino superior até 2011 prevista no PNE. Ainda ressalta que a
precarização do trabalho docente é maior na EAD, onde a maioria dos professores é pago
no ensino público por meio de bolsas e contratos precários.
Em 2007, 4% do total de instituições de ensino superior ofertavam cursos de EAD
sendo 45 públicas e 24 privadas. Porém, a maioria das matrículas concentrava-se no ensino
privado. Além disso, o número de vagas em 2007 foi 89,4% superior ao ano anterior
135
(TONEGUTTI, 2010,63), demonstrando que o EAD cresce exponencialmente no ensino
superior. Não há ainda, no entanto, dados consolidados sobre o percentual de estudantes
que terminam os cursos, mas os poucos e parciais dados do INEP levam a crer que a evasão
é substancialmente superior nessa modalidade.
Várias entidades de ensino e pesquisa de diversas áreas do conhecimento bem como
conselhos profissionais têm se posicionado contra o ensino superior à distância como o
Conselho Federal de Biologia80
e) A regulamentação das fundações de apoio
, o Conselho Federal de Serviço Social e a Associação
Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social.
Para a ABEPSS (2009) “Quanto a graduação à distância, sabemos que realiza no máximo adestramento, mas jamais formação profissional digna deste nome. (...) estamos denunciando o uso da tecnologia para a padronização, empobrecimento e banalização da formação, além de meio de valorização do capital transformando a educação em mercadoria.”
Uma lei e um decreto definem a relação entre fundações de apoio e instituições de
ensino superior: a lei nº 8958 de 1994, elaborada pelo governo Itamar Franco e o decreto
nº5205 de 2004, que regulamenta a primeira, elaborado pelo governo Lula.
Segundo ambos, as fundações de apoio são fundações de direito privado com a
finalidade de apoiar projetos de pesquisa, ensino e extensão e de desenvolvimento
institucional, científico e tecnológico.
Desde sua criação as fundações de apoio têm sido amplamente criticadas pelo
movimento estudantil e de trabalhadores das universidades, além de terem sido em muitos
momentos objeto de investigação policial por desvio de verbas, sendo o caso da UNB o de
maior repercussão81
80 O Conselho Federal de Biologia chegou a negar registro para formados em EAD, o que foi contestado pelo MEC e revertido na Justiça em 2010, por considerar que os cursos de EAD não garantiam os requisitos necessários à formação de biólogos. Ver em: http://www.observatoriodaead.com/2010/02/curso-distancia-de-biologia-tem.html.
.
81 Em 2008 o reitor da UNB foi denunciado pelo Ministério Público por improbidade administrativa por ter, entre outras irregularidades, utilizado verba pública de pesquisa da FINATEC, fundação de apoio da universidade, para mobiliar seu apartamento funcional, um desvio de 470 mil reais. Depois de 15 dias de ocupação dos estudantes do prédio da reitoria, o reitor renunciou, pedindo desligamento, em seguida, seu vice (informações do site http://www.atarde.com.br/vestibular/noticia.jsf?id=874711, consulta em 24 de maio de 2010).
136
A principal crítica política à existência dessas fundações é que elas têm se
constituído como um mecanismo de privatização interna das instituições públicas de ensino
superior. Apesar de existirem desde 1970, foi a partir da regulamentação de 1990, que
passaram a ser instrumentos de captação de recursos fora do orçamento e de
complementação salarial para parte dos trabalhadores das universidades, resposta a redução
de recursos de custeio e ao arrocho salarial (TCU, 2008).
Assim as fundações, de acordo com o discurso hegemônico, passariam a garantir os
recursos que deixaram de ser repassados do fundo público, além de darem maior agilidade
à sua administração, garantindo, por meio da privatização, maior exercício de autonomia
das IFES.
Em abril de 2008 o TCU determinou a realização de uma fiscalização das fundações
de apoio das IFES motivado pelos então recentes escândalos envolvendo a FINATEC e a
UNB. O relatório dessa fiscalização, um longo documento de mais de 100 páginas,
concluiu que inúmeras ilegalidades ocorrem na relação entre as IFES e as Fundações dentre
elas:
a) utilização das Fundações de Apoio para simplesmente intermediar a contratação de
serviços, aquisição de bens e execução de atividades administrativas;
b) formalização de convênios com órgãos da administração como mecanismo de
intermediação da contratação das fundações de apoio, inclusive para a execução de serviços
contínuos de atendimento ao público;
c) utilização de recursos públicos para a formação ou incremento de patrimônio das
fundações de apoio;
d) desvirtuamento das finalidades das fundações de apoio, passando a desenvolver ações de
caráter empresarial;
137
e) debilidade do controle finalístico e de gestão das fundações de apoio pelas instituições
apoiadas e a ausência de regras claras de relacionamento que possibilitem a efetividade
deste controle;
f) pessoal contratado para os projetos muitas vezes deslocado para o exercício de atividades
permanentes ou inerentes aos planos de cargos das IFES, configurando a terceirização
irregular de serviços (burla à licitação) e a contratação indireta de pessoal (burla ao
concurso público);
g) vários modelos de contratações irregulares: a fundação como laranja, a fundação como
mera compradora (caixa dois de despesas), a fundação como mera manipuladora de receitas
(caixa dois de receitas), a fundação como gestora financeira integral (caixa dois global), a
fundação como intermediária de mão de obra.
O TCU afirma que, do ponto de vista da arrecadação, nota-se que a partir de 1995
com a redução de recursos públicos destinados às IFES, houve uma corrida às fundações de
apoio que se multiplicaram 129% entre 1995 e 2002. No entanto, curiosamente, não foi
verificado qualquer acréscimo significativo no ingresso de recursos próprios arrecadados
nos cofres da IFES. Pelo contrário, houve um decréscimo. Isso porque a arrecadação
própria intermediada pelas fundações de apoio deixou de passar pela conta única do
Tesouro, ficando a margem da legislação que rege a execução orçamentária. Segundo o
TCU “em que pesem variados eufemismos de triste notoriedade não há como inventar
conceitos: é a pura e simples formação de caixa dois (ou três, ou quatro...) com recursos
públicos, o descumprimento do princípio de unidade de tesouraria, com os riscos de fraude
e falta de controle”.
Outra “curiosidade” é que a partir de 2004, quando houve algum aumento de
recursos do governo para as IFES, também houve aumento do repasse das IFES para suas
fundações, justificado pela liberação tardia das verbas, que são empenhadas às fundações
para não serem perdidas.
138
Gráfico 1 – Recursos empenhados pelo conjunto das universidades brasileiras para fundações de apoio - Movimento líquido – (2002/2007)
Fonte: TCU Acórdão 2731/2008
Ainda segundo o documento os sucessivos governos vêem tendo uma política
deliberada de institucionalização e fortalecimento das fundações de apoio, apesar do
discurso da regulamentação, promovendo uma “autonomia às avessas” por intermédio das
fundações.
Com tudo isso “corre-se o risco da privatização das instituições públicas por parte
daqueles que nela trabalham”, ou seja, incentiva-se a competição, ampliando as atividades
dos servidores para que complementem seus salários através de prestação de serviços nem
sempre relacionados a atividades acadêmicas e que são priorizados em detrimento das
139
atividades públicas, institucionais. Ainda com relação ao pessoal cedido das IFES para as
fundações de apoio, o TCU deixa claro que as bolsas só podem ser cedidas para ensino,
pesquisa e extensão, e desde que não signifiquem uma contraprestação de serviços, como
ocorre no caso de professores que ministram aulas em pós-graduações latu sensu
organizadas pelas fundações. As bolsas de ensino para docentes só podem significar bolsas
para aperfeiçoamento. Quando cedidas para que docentes ministrem atividades de ensino
caracterizam nova burla.
O TCU entende ainda que obras e atividades de infra-estrutura não devem ser
executados por fundações de apoio recomendando ao MEC alteração na lei atual, que
considera inconstitucional. Deixa claro também que é vedado o repasse de recursos às
fundações para execução total de projetos seja de ensino, pesquisa, extensão ou
desenvolvimento institucional podendo as fundações, legalmente, apoiar projetos, mas não
executá-los.
A partir desse diagnóstico são feitas uma série de recomendações para adequar as
fundações à função que lhes é atribuída na legislação, ampliar a transparência sobre a
execução de seus recursos e garantir efetiva autonomia às universidades, sem necessidade
do recurso às fundações. Em relação à autonomia as recomendações do TCU são as
seguintes:
a) a adoção de um regime especial de execução da despesa, para procedimentos críticos
como a importação de materiais e equipamentos, que propicie às IFES maior flexibilidade e
agilidade na realização de serviços e aquisições;
b) a definição clara do percentual da receita constitucionalmente vinculada capaz de
garantir recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de
educação superior;
c) a adoção de um regime de repasses de recursos da União para as IFES sob a forma de
dotações globais;
140
d) a prerrogativa de que as IFES, a partir da dotação global transferida, elaborem e
executem seus orçamentos, assegurando a ampla possibilidade de remanejamentos entre
rubricas, programas ou categorias de despesa;
e) a adoção de mecanismo que garanta que excedentes financeiros de um exercício sejam
automaticamente incorporados ao exercício seguinte;
f) a promoção, em paralelo à atuação dos órgãos de controle interno e externo, do controle
social e do autocontrole pela comunidade acadêmica mediante mecanismos transparentes
de prestação de contas e de avaliação institucional baseada em medidas de desempenho
verificáveis.
Entre as determinações do TCU para corrigir as irregularidades das fundações
destacamos algumas relacionadas à gestão dos recursos. Primeiro a obrigatoriedade de que
todos os recursos passem pela conta única, incluindo qualquer receita auferida com a
utilização de recursos humanos e materiais das IFES tais como: laboratórios, salas de aula;
materiais de apoio e de escritório; nome e imagem da instituição; redes de tecnologia de
informação; documentação acadêmica e demais itens de patrimônio tangível ou intangível
das instituições de ensino utilizados em parcerias com fundações de apoio. Outra
determinação é de que a administração das IFES não emita empenhos em nome da própria
IFES ou em nome de fundações de apoio sob a alegação de inviabilidade de execução
orçamentária temporal, em especial em proximidade de final de exercício.
Apesar do documento do TCU ser de enorme valor, tanto em termos de dados e
visibilidade às irregularidades como na defesa do caráter público das IFES, o texto parte do
princípio que é possível readequar as fundações de apoio, restringindo suas funções.
Para o ANDES, as fundações de apoio são incompatíveis com a universidade
pública. Sua natureza privada as leva a desenvolver atividades empresariais inseridas na
lógica do mercado, estranha a produção e difusão de conhecimento crítico e socialmente
referenciado. “Para o Movimento Docente, a universidade pública não pode promover,acolher ou ser conivente com a utilização de seus recursos materiais e humanos e do seu prestígio social para o estabelecimento e desenvolvimento de empresas privadas
141
que operam em seu interior. É preciso que essas instituições públicas retomem para si o papel que delegaram a essas fundações” (ANDES, 2008,4).
No dia 10 de julho de 2010, durante reunião com a Andifes, o presidente Lula
assinou 4 decretos e uma medida provisória sobre temas relacionados ao ensino superior,
que ficou conhecido como “pacote da autonomia”. Entre eles estão o decreto nº 7233 e a
MP 495.
Um dos objetivos do decreto, bastante comemorado pela Andifes, é que a partir dele
as universidades passam a poder usar recursos não utilizados no ano anterior quando
vinculados a fonte de manutenção e desenvolvimento do ensino e quando forem recursos
próprios. Essa é uma medida importante para garantir que as universidades consigam
executar seus recursos, recomendada pelo TCU no acórdão 2731/2008. Mas isso precisa ser
analisado dentro do conjunto, já que ao mesmo tempo em que se melhorou os mecanismos
de execução orçamentária das IFES, também se ampliou as possibilidades de atuação das
fundações de apoio na medida provisória 495.
Essa MP é a medida mais problemática do pacote. Ela altera três leis anteriores: a
lei 8666/93 que institui normas para licitações e contratos da administração pública; a lei
8958/94 que regulamenta a relação das instituições federais de ensino superior e pesquisa
científica e tecnológica com as fundações de apoio; e a lei 10973/04 que dispõe sobre os
incentivos à inovação e a pesquisa científica e tecnológica. Na lei 8958/94 as alterações são
mais significativas. Para adequar-se ao acórdão 2731/2008 do TCU mudam-se algumas
regras na regulação das Fundações. Em parte, algumas medidas vão ao encontro das
preocupações do TCU e são progressivas como a obrigatoriedade de divulgação pela
internet dos contratos, das ações executados e do pagamento a servidores públicos pelas
fundações.
Mas outras medidas supostamente para adequação ao acórdão funcionam no sentido
contrário: passam a tornar legal o que o TCU apontava como problemático. Em primeiro
lugar nas finalidades das fundações inclui-se o apoio na gestão administrativa e financeira.
Regula-se também a compreensão de desenvolvimento institucional. A alteração realizada
proíbe que atividades como manutenção predial, limpeza, conservação, vigilância entre
outras atividades administrativas de rotina sejam entendidos como desenvolvimento
institucional, mas permite que as fundações apóiem atividades de natureza infra-estrutural,
material e laboratorial se forem atividades de inovação e pesquisa científica e tecnológica.
142
Outras mudanças muito importantes são a abertura da possibilidade de que agências
de fomento à pesquisa como a FINEP, a CNPq e o Fundo Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico possam firmar convênios e contratos com as fundações de apoio,
uma mudança que também consta na lei 10973/04 e a possibilidade das fundações de apoio
darem bolsas para estudantes de pós-graduação que participem de seus projetos.
Em síntese, se analisadas em conjunto, a MP 495 e o decreto 7233 ao mesmo tempo
em que recolocam as atividades cotidianas de administração e infraestrutura sob a
responsabilidade das IFES, criando, inclusive, mecanismos que facilitam a execução
orçamentária, abrem espaço para uma maior participação das fundações de apoio em
atividades de pesquisa (no sentido da inovação tecnológica conforme compreendido pelo
governo). Com isso, privatiza-se ainda mais os recursos para a pesquisa no Brasil.
Todas essas medidas, de meados dos anos 1990 até fins da primeira década do
século XXI tiveram impacto no perfil do ensino superior no Brasil. Além das ações
relacionadas à vertente de privatização das instituições públicas, observa-se também no
período uma ampliação da transferência de verbas públicas a instituições privadas.
No governo Cardoso era o FIES 82
Em troca, o governo garante mais isenções fiscais do que as então vigentes.
Entidades filantrópicas, que já tinham isenção, foram obrigadas a participar do programa
com 20% da receita em atividades assistenciais, 20% em bolsas integrais e 20% em bolsas
de qualquer modalidade. Entidades sem fins lucrativos que já tinham isenção de imposto de
renda e CSLL passam a ter isenção de COFINS e PIS, oferecendo 10% de bolsas, sendo 5%
integrais e 5% parciais. Entidades com fins lucrativos também podem ter isenções fiscais se
participarem do programa com as mesmas isenções, COFINS, PIS, CSLL e imposto de
renda, e a mesma cota de bolsas, 5% integral e 5% parcial, das entidades sem fins
o mecanismo principal de privatização de
recursos públicos no ensino superior. Em 2005, o governo Lula cria o PROUNI – Programa
Universidade para Todos pela Lei 11.096 de 13 de janeiro. O programa distribui bolsas
integrais e parciais em instituições superiores privadas para estudantes de baixa renda, com
reservas de cotas para segmentos populacionais como índios e negros e para deficientes.
82 O FIES foi criado em 1999 para substituir o Programa de Crédito Educativo/ CREDUC. É intermediado pela Caixa Econômica Federal. O estudante recebe o crédito desde que cumpra uma série de exigências e paga ao governo depois de formado.Ver: www3.caixa.gov.br/fies/FIES_FinancEstudantil.asp
143
lucrativos. Isso significaria em 2005, segundo o MEC, 250 milhões em isenção fiscal, caso
todas as instituições privadas aderissem ao PROUNI. Em 2007 a perspectiva era de que o
PROUNI beneficiasse 301.321 alunos com uma renúncia fiscal de 126,05 milhões de reais.
Com isso o governo festejava que cada aluno custaria, em 2007, 418,32 reais por ano para
os cofres públicos (ANDRÉS, 2008, 18).
O que o governo não diz é que a dívida das instituições privadas, segundo a própria
Receita Federal, chegava a quase 12 bilhões em 2007. Ao se iniciar, o PROUNI previa que
as instituições participantes teriam que comprovar até dezembro do ano anterior da sua
adesão, sua adimplência com os tributos federais que deveriam recolher. O governo
estendeu em mais um ano, entretanto, o prazo dessa comprovação, adiando, em 2006 mais
uma vez o prazo para 2007 e, então, para 2008. Em dezembro de 2007, através da Lei
11.552, o governo estabeleceu que as instituições que participassem do PROUNI poderiam
parcelar as dívidas anteriores a 2006. As instituições poderiam pagar suas dívidas em 120
parcelas mensais, sem apresentação de garantias ou arrolamento de bens (ANDRÉS, 2008,
19). E não foi só isso. A lei que criou o PROUNI permitiu a revalidação de certificados de
filantropia que haviam sido cassados pelo Conselho Nacional de Assistência Social por não
aplicarem 20% da sua receita em ações assistenciais, o que significou “uma anistia velada
para as instituições que burlavam a lei” (ANDRÉS, 29). A fiscalização das entidades
filantrópicas de ensino superior passaria a ser feita pelo MEC, apesar do Ministério não
dispor nem de auditores nem de fiscais para essa atividade. O PROUNI foi, portanto, um
grande negócio para os empresários da educação.
Em termos de impacto em 2006 o PROUNI representava um acréscimo de 61,3%
das vagas custeadas pelo governo federal (considerando as vagas das IFES). No entanto, os
138.668 bolsistas parciais e integrais do PROUNI representavam, naquele ano, apenas 3%
do alunado total do ensino superior.
Outra crítica feita ao PROUNI é que ele seria um programa para “matricular alunos
carentes em instituições que ofereciam ensino de má qualidade” (ANDRÉS, 2008, 31).
Mesmo a UNE, quase sempre aliada ao governo, criticava o programa em 2006, pois os 237
piores cursos, segundo o ENADE, avaliação do próprio governo, estavam oferecendo
bolsas. A legislação prevê um período de seis anos até que um curso mal avaliado duas
vezes possa ser desligado do PROUNI. Levando-se em conta que há um período de 4 anos
144
entre as avaliações, os cursos considerados de péssima qualidade, de acordo com critérios
do próprio governo, podem passar no mínimo dez anos vinculados ao programa, recebendo
dinheiro público, sem realizar nenhuma melhoria.
A transferência do fundo público para instituições privadas no ensino superior
brasileiro não foi inaugurada no período neoliberal. Os governos militares já se utilizavam
de incentivos e isenções fiscais, o que explica o boom do ensino privado naquela época. A
Lei nº5172/66 determinava, por exemplo, que impostos sobre renda, patrimônio e serviços
não incidiriam sobre quaisquer instituições de ensino. “Assim, as organizações privadas de
ensino superior gozaram, desde a sua criação, dos privilégios da imunidade fiscal (...)
valendo-se desse expediente para crescerem” (ANDRÉS, 25). Avigoramos com Lima (2007,
130): “A privatização da educação brasileira não é um elemento político exclusivo do projeto neoliberal de sociabilidade: constitui-se em uma marca histórica da inserção capitalista dependente do Brasil na economia-mundo, seja por intermédio da privatização interna das universidades públicas ou do estímulo à abertura de cursos privados.”
Segundo Andrés, na década de 1970 a imunidade de IPTU permitiu que as
instituições privadas adquirissem imóveis, a isenção de ISSQN e COFINS estimulou o
aumento de matrículas, pois não havia oneração sobre a prestação de serviços, e a isenção
de imposto de renda e CSLL garantiu a saúde financeira das instituições. Esse bom
resultado permitia que as instituições conseguissem empréstimos bancários, auxílio externo
e benefícios das agências de fomento.
Lima (2007) afirma que apesar da privatização do ensino superior não ter começado
no período neoliberal, ela tem, nesse momento, especificidades próprias, como a redução
do financiamento público. Vejamos os dados no gráfico:
145
Gráfico 2 – Orçamento das IFES de 1989 à 2007 – todas as fontes:
Fonte dos dados: TCU acórdão 2731/2008 e IBGE – em preços de 2008 corrigidos pelo IGPDI
Os dados demonstram que foi a primeira década dos anos 2000 o pior momento
para o financiamento das IFES, com clara redução dos recursos no segundo governo
Cardoso e no primeiro governo Lula. Apenas em 2006 há uma recuperação, não chegando,
entretanto, ao patamar de 1989.
A excepcionalidade do período entre 1993 e 1996 é explicada pelo aumento de
recursos próprios nas IFES. Amaral (2003) explica que o alto valor de recursos próprios
arrecadados no período de 1993 a 1995 ocorreu porque as verbas de pessoal eram aplicadas
no mercado financeiro pelas IFES para compensar os altíssimos índices inflacionários, e os
ganhos eram incorporados aos recursos próprios, mecanismo que, segundo autor, era de
conhecimento do MEC. Curiosamente o crescimento das fundações de apoio, apenas para
recordar o que já foi discutido nesse trabalho, começou exatamente em 1995.
146
Gráfico 3– Recursos próprios aplicados em investimentos nas IFES de 1990 à 2002
Fonte: AMARAL (2003). Corrigido pelo IGP-DI. Elaboração própria.
Essa redução na aplicação de recursos nas IFES é ainda mais evidente se
comparamos esses recursos ao PIB anual.
Gráfico 4- Relação entre o orçamento total das IFES e o PIB anual de 1989 à 2007
147
Fonte dos dados: TCU acórdão 2731/2008 e IBGE – em preços de 2008 corrigidos pelo IGPDI
O gráfico 4 demonstra que em relação ao crescimento de riquezas no país a
aplicação de recursos no ensino superior é amplamente descendente e mesmo a recuperação
a partir de 2006 é bem pequena. Portanto, o aumento de recursos no segundo governo Lula
deveu-se, sobretudo, ao bom momento da economia, tendo um crescimento vegetativo em
relação ao PIB que apenas retomou os níveis de 2002, início do seu governo, bastante
distante ainda de 1989 (desconsiderando o período de 1993 a 1996 pelos motivos já
citados). Em suma, apesar dos montantes aplicados nas IFES a partir de 2006 serem
superiores a todo governo Cardoso, são menores, contudo, a todo governo Cardoso na sua
relação com o PIB.
Não se pode desconsiderar, ainda, que durante esse período houve ampliação das
vagas nas IFES e, no caso do governo Lula, inclusive abertura de novas IFES.
O REUNI foi o “canto da sereia” mais recente para os defensores do ensino superior
público no Brasil. Na próxima seção analisaremos o que o decreto propõe e qual tem sido o
impacto de sua implementação até o momento.
3.1. Novas expressões da contra-reforma das universidades: análise do REUNI.
148
Em 24 de abril de 2007 o governo institui o Programa de Apoio a Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI, através do decreto nº
6.096.
Um dos principais argumentos do governo e da ANDIFES em apoio à iniciativa era
de que o decreto garantiria a autonomia das universidades, pela liberdade de decisão sobre
sua participação no programa e na elaboração dos seus planos. Essa estratégia de
“descentralização” já era preconizada pelo Banco Mundial (2003) como um mecanismo
que facilitaria adesão e consenso da comunidade universitária83. Ainda assim em todas as
universidades houve protestos de setores do movimento estudantil e docente contra a
adesão das universidades ao decreto, que levaram a ocupações de reitoria em diversas
universidades84
O decreto caracteriza-se por um contrato de gestão que, como tal, fixa rígidas metas de
desempenho para recebimento de contrapartidas financeiras. Amaral (2003, 118), afirma
que a lógica de financiamento por contrato vinha tentando ser implementada desde o
governo Cardoso. Nesse momento, os contratos de gestão, estavam diretamente vinculados
ao debate da transformação das IFES em fundações públicas de direito privado
.
85
Mas durante todo o governo Cardoso a proposta de financiamento por contrato
esteve presente, atrelada aos debates sobre a concepção de autonomia universitária, que
ou
organizações sociais. O governo Cardoso chega a apresentar o documento “Etapas para a
viabilização da aplicação da Lei de Organizações Sociais na recriação de Universidade
Públicas a ser administrada por Contrato de Gestão”. Graças à rejeição da comunidade
universitária, a proposta foi, por ora, deixada de lado.
83 “Ao ‘utilizar incentivos em lugar de decretos de cumprimento obrigatório’, os dirigentes conquistam um número maior de aliados, uma vez que ‘as instituições e atores envolvidos tendem a responder melhor e mais rapidamente a estímulos construtivos” (BANCO MUNDIAL, 2003 apud NEVES E PRONKO, 2008). 84 Ver: “Projeto do REUNI gera polêmica na UFRJ” em http://webmail.andes.org.br/modules/smartsection/item.php?itemid=141; “Estudantes protestam contra o REUNI” em http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/nacional/estudantes-protestam-contra-reuni; “UFF contra o REUNI” em http://ocupacaouff.blogspot.com/; “Contra o REUNI – UFPE” em http://ocupaufpe.blogspot.com/, entre outros textos e blogs de protesto contra o REUNI em 2007, na sua implementação. Na página http://www.andes.org.br/imprensa/ultimas/contatoview.asp?key=4810 do sítio do ANDES, há atalhos para os blogs de todas as ocupações realizadas então (todas as consultas realizadas em 12 de agosto de 2010). 85 “A fundação ou sociedade civil de direito privado se habilitaria a administrar os recursos humanos, as instalações e os equipamentos pertencentes ao poder público e a receber os recursos orçamentários para o seu funcionamento. Seriam celebrados contratos de gestão com o Poder Executivo para a execução de parceria entre o privado e o público”(Amaral, 2003, 118).
149
substituía a idéia de autonomia da gestão financeira pela de autonomia financeira, isto é,
responsabilizando a própria universidade pela captação de seus recursos.
O debate da autonomia universitária é central para a compreensão crítica do
financiamento por contratos de gestão. A legitimidade da autonomia na formação da
universidade moderna é a reivindicação da independência do conhecimento face à religião e
ao Estado. No Brasil, a universidade nunca pode exercer plenamente sua autonomia, graças
as características autoritárias do Estado, que restringiam a autonomia das universidades em
relação a ele (MANCEBO, 2006, 20). As políticas de contra-reforma universitária,
marcadas pela redução do financiamento têm levado a autonomia universitária a adquirir
novos contornos. O aumento da autonomia financeira (e não da gestão financeira) significa,
na prática, a impossibilidade da autonomia didático-científica e administrativa colocada na
Constituição. O financiamento “autônomo” precisa do mercado e do próprio governo que
atrela as universidades aos seus interesses exatamente através de mecanismos como os
contratos de gestão.
Segundo Amaral (2003), as iniciativas de implementação de contratos de gestão
estiveram travestidas de Planos de Desenvolvimento Institucional e Contratos de
Desenvolvimento Institucional, que não obtiveram apoio das IFES no governo Cardoso.
Para o autor essas ações constituiriam “uma verdadeira ‘antiautonomia’ universitária, por
obrigar as instituições, mediante Contrato de Gestão, a cumprir determinadas metas
definidas numa negociação, em que há claramente um lado mais frágil no embate com o
governo: as próprias instituições” (AMARAL, 2003, 132). Só no governo Lula, com o
decreto REUNI, a contratualização como mecanismo de financiamento, consegue ser
implementada.
O objetivo do programa, segundo o decreto, seria a criação de condições de ampliação
de acesso e permanência no ensino superior “pelo melhor aproveitamento da estrutura
física e de recursos humanos existentes nas universidades federais” (Brasil, 2007, grifo
nosso), numa clara perspectiva racionalizadora, que parte do princípio, coincidente com o
do Banco Mundial, de que há sub-aproveitamento nas universidades federais, diagnóstico
presente no Brasil desde a “reforma universitária” da ditadura militar.
O programa estabelece duas metas globais que materializam esses objetivos: a
elevação da taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais para 90% e da
150
relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor para 18, num período
de 5 anos. O parâmetro para o cálculo de indicadores seria fixado pelo MEC. Iremos
aprofundar esse debate posteriormente, mas é importante já destacar que o MEC, na
regulamentação do decreto, alterou todos os mecanismos para o cálculo dos indicadores de
desempenho das universidades, fixados por órgãos fiscalizadores como o TCU, o que
dificulta muito um comparativo histórico entre a realidade no momento do decreto e as
novas metas. Além disso, a unilateralidade na definição dos parâmetros abriu brechas para
manipulações na aferição das metas, de acordo com os interesses do governo, como
veremos a frente.
As diretrizes do programa são:
I - redução das taxas de evasão, ocupação de vagas ociosas e aumento de vagas, em
particular no período noturno;
II- ampliação da mobilidade estudantil, com a implantação de regimes curriculares e
sistemas de títulos que possibilitem a construção de itinerários formativos, mediante
o aproveitamento de créditos e a circulação de estudantes entre instituições, cursos e
programas de educação superior;
III- revisão da estrutura acadêmica, com a reorganização dos cursos de graduação e
atualização de metodologias de ensino-aprendizagem, buscando a constante
elevação da qualidade;
IV – diversificação das modalidades de graduação, preferencialmente não voltadas à
profissionalização precoce e especializada;
V – ampliação de políticas de inclusão e assistência estudantil;
VI – articulação da graduação com a pós-graduação e da educação superior com a
educação básica.
As diretrizes começam a definir, assim, sobre que bases as metas devem ser
alcançadas, o que seria aprofundado no documento do MEC “Diretrizes do REUNI”,
limitando os planos locais a essas orientações. Nas entrelinhas das diretrizes deixa-se
subentendido possibilidades de: transferência de estudantes do setor privado para o público
(inciso II), ampliação do uso de EAD (inciso III) e implementação de ciclos básicos e
151
bacharelados interdisciplinares (inciso IV) entre outras, que foram posteriormente sendo
definidas, como as bolsas de docência para alunos de pós-graduação (inciso VI).
Na medida em que elaborassem e apresentassem seus planos as universidades teriam
aportes de recursos de pessoal, custeio e investimentos. As propostas, porém, necessitariam
ser aprovadas pelo MEC e os repasses estariam subordinados ao cumprimento das etapas.
Os recursos seriam destinados a: I – construção e readequação de infra-estrutura e
equipamentos necessários à realização dos objetivos do programa; II - compra de bens e
serviços necessários ao funcionamento dos novos regimes acadêmicos; e III – despesas de
custeio e pessoal associadas à expansão das atividades decorrentes do plano de
reestruturação.
Em relação ao terceiro inciso, que trata dos aportes de pessoal e custeio, o decreto fixa
o acréscimo a um limite de 25% das despesas de custeio e pessoal num período de 5 anos,
excluindo os inativos, tendo por base o orçamento inicial da execução do plano em cada
universidade, mesmo antes de definir a proporção da expansão proposta. Já no documento
do MEC “Diretrizes do REUNI” (2007, 13) o acréscimo fixado é ainda menor limitando-se
a 20% a mais no decorrer de 5 anos, tendo como parâmetro o orçamento de 2007 e a
expansão exigida é de no mínimo 20% das vagas.
Com isso, o programa REUNI define uma expansão de vagas nas universidades
federais, desconsiderando os déficits anteriormente acumulados nos orçamentos de custeio
e pessoal. Segundo dados de Amaral (2003), só entre 1995 e 2002, os recursos de custeio,
excluídos os benefícios aos trabalhadores e o pagamento de substitutos, haviam se reduzido
em 62%, padrão que no período posterior não foi reposto.
A expansão das vagas nas universidades públicas é uma reivindicação histórica dos
sujeitos coletivos da sociedade. Desde sua origem, o ANDES-SN defende a universalização
do ensino superior público, compreendido como direito. Nas suas propostas para o
financiamento da universidade consta:
A expansão da rede pública de ensino em todos os níveis e modalidades com recursos assegurados para o pleno aproveitamento da capacidade física instalada para ensino, pesquisa e extensão é prioridade (ANDES, 2003).
Apropriando-se dessas bandeiras, o decreto REUNI conseguiu grande adesão da
sociedade. A expansão proposta, porém, está atrelada a uma reestruturação da universidade
152
para os padrões requisitados pelo capitalismo em sua fase atual, materializados nas
propostas do Banco Mundial. É, portanto, uma “jogada de mestre”, que se aproveita da
confiança depositada no governo Lula por sujeitos e movimentos sociais, que enxergam na
expansão “nossas reivindicações”, e do histórico recrudescimento dos orçamentos públicos
das universidades federais, tornando os recursos prometidos pelo REUNI um sopro de
esperança, após um período mais evidente de exclusivo incentivo ao ensino privado. Não se
pode perder de vista, entretanto, que essa suposta virada de prioridades para as instituições
públicas, não extinguiu o financiamento público para as instituições privadas, que, ao
contrário, aumentou no governo Lula através do PROUNI e da ampliação do FIES.
Outro artigo determina que: “o atendimento aos planos é condicionado à capacidade
orçamentária e operacional do MEC”, o que significa que não há garantias dos repasses,
nem são as necessidades das universidades federais que os orientam, continuando
subordinados aos limites orçamentários determinados pela política econômica e a
flutuações da conjuntura.
Após a elaboração e a aprovação dos Planos de Expansão nos Colegiados Superiores
das universidades federais, os reitores assinaram junto ao MEC um acordo de metas onde
se comprometem com uma expansão determinada de suas vagas em troca de aportes
financeiros e concursos para pessoal. Esses acordos não são públicos na maioria das
universidades.
A seguir iremos detalhar algumas das conseqüências da implementação do REUNI, o
que foi desenvolvido dos documentos posteriores e como tem sido o repasse financeiro para
as universidades federais, tendo como referência o início da implementação dos planos,
entre 2007 e 2008, e meados de 2010. Com isso poderemos chegar a algumas conclusões de
como o REUNI vem funcionando na prática, ainda que preliminares dado que o programa
se estenderá até 2012. Assim poderemos referendar ou refutar as hipóteses levantadas
inicialmente sobre os caminhos que estariam sendo abertos para a contra-reforma das
universidades públicas a partir do decreto.
3.2. Reestruturação: as mudanças curriculares.
153
Segundo Lima (2009), o REUNI é uma face do projeto Universidade Nova,
elaborado por docentes da UFBA. Ambos baseiam-se na mesma proposta de “nova
arquitetura curricular” através da organização de bacharelados interdisciplinares dividindo
a formação entre ciclos básicos e ciclos profissionalizantes. O projeto UniNova sofreu,
porém, críticas dos reitores por desconsiderar a necessidade de ampliação do orçamento
público para garantir as metas de expansão e reestruturação, “o REUNI, portanto, é o
UniNova com (algum) financiamento público” (LIMA, 2009, 23), ainda que o decreto não
faça menção explícita a suas propostas.
O projeto Universidade Nova foi lançado em 2007, quase concomitante ao REUNI,
e recebido com entusiasmo pelo MEC. Ele parte do princípio de que as reformas
universitárias no Brasil são incompletas porque tratam da gestão, da regulação, do
financiamento, do acesso, mas não mexem nas estruturas curriculares. O diagnóstico da
falência do modelo de educação superior no Brasil é dado pelos seguintes aspectos,
segundo o projeto UniNova:
(...) estreitos campos do saber contemplados nos projetos pedagógicos, precocidade na escolha das carreiras, altos índices de evasão de alunos por desencanto com os estudos e por falta de condições de permanência, descompasso entre a rigidez da formação profissional e as amplas e diversificadas competências demandadas pelo mundo trabalho e, sobretudo, os desafios da Sociedade do Conhecimento, são problemas que, para sua superação, requerem modelos de formação profissional mais abrangentes, flexíveis, integradores (UFBA, 2007b, 10)
Outro aspecto relevante citado no projeto é a necessidade de adequar o Brasil ao
ensino superior do mundo globalizado, construindo “um modelo compatível tanto com o
Modelo Norte-Americano, quanto com o Modelo Unificado Europeu (processo de
Bolonha), sem, no entanto, significar submissão a qualquer um desses regimes” (UFBA,
2007b, 9).
O Processo de Bolonha teve início com um acordo assinado em 1999 por 29
Ministros da Educação europeus. Seu objetivo é a criação de uma área comum européia de
ensino superior que amplie a competitividade das instituições daquele continente. As metas
traçadas até o fim da primeira década de 2000 eram: ampliação da mobilidade estudantil e
docente, criação de regras de equivalência de diplomas entre as instituições, divisão do
154
ensino superior em duas fases – a primeira profissionalizante de 3 anos e a segunda de
mestrado e doutorado (DECLARAÇÃO DE BOLONHA, 1999).
Já o modelo norte-americano é marcado pela diversificação de instituições:
universidades de pesquisa, de ensino e cursos pós-secundários, os colleges, voltados para a
formação rápida de mão de obra para o mercado (RISTOFF, 1999).
Ainda que negue ser coincidente com os dois modelos 86
Ao mesmo tempo adequa as competências dos trabalhadores às necessidades do
regime de acumulação flexível. O Projeto Universidade Nova cita o documento que é
resultado do Congresso Mundial sobre o Ensino Superior da UNESCO, ocorrido em 1998,
como importante fonte de dados balizadora das competências que o mercado de trabalho
espera dos trabalhadores egressos do ensino superior. Essas competências seriam:
flexibilidade; capacidade de contribuir para a inovação, demonstrando criatividade;
capacidade de enfrentar a incerteza; desejo de aprender ao longo da vida; sensibilidade
social e aptidão para a comunicação; capacidade de trabalhar em equipe; espírito
empreendedor; preparo para a internacionalização do mercado, familiarizando-se com
culturas diferentes; largo espectro de competências genéricas em variados campos do
conhecimento, especialmente das novas tecnologias, que formam a base das diversas
competências profissionais. Todas são características adequadas ao princípio da
polivalência e à lógica do trabalho instável e desregulamentado. Essa massa de
trabalhadores genéricos, com uma formação equivalente em diversos países, permitiria uma
mobilidade ainda maior do capital, bem como uma redução de salários como produto do
, a UniNova parte do
mesmo princípio de necessidade de integração e equivalência na titulação entre os países e
de adequação de currículos e conteúdos às novas competências exigidas pelo mercado aos
trabalhadores intelectuais.
Com isso pretende adequar a força de trabalho intelectual às necessidades do capital
mundializado, ampliando as possibilidades de mobilidade da força de trabalho, o que
amplia potencialmente o exército de reserva global.
86 O Processo de Bolonha vem exatamente para disputar hegemonia com os EUA, num processo caracterizado por Lima et al (2008) como integrador e diferenciador, ou seja, ao mesmo tempo em que cria um mercado comum europeu de educação superior para competir com outras instituições, agudiza a competição entre as instituições européias, que aderem ao Processo de Bolonha, desconsiderando as debilidades prévias existentes. Assume, assim, “um modelo mercantil, competitivo e etnocêntrico, com claro viés imperialista”.
155
aumento da competição entre os trabalhadores, com tendência à desregulamentação das
profissões. Sobre esse aspecto o documento da UFBA (2007a), critica frontalmente a
elaboração das diretrizes curriculares pelo que chamam de “corporações profissionais”, o
que seria, segundo o documento, uma perda de autonomia e uma submissão dos currículos
ao mercado87
Os princípios da Universidade Nova tomam como referência pedagógica competências desenvolvidas no Projeto Tuning - América Latina, um consórcio de 62 universidades latino-americanas, incluindo instituições brasileiras. Com essa iniciativa, procurou-se iniciar um diálogo para melhorar a colaboração entre essas instituições de educação superior, favorecendo o desenvolvimento da qualidade, da efetividade e da transparência no intuito de identificar tanto competências genéricas proporcionadas pela educação superior como competências específicas relacionadas às profissões. Esses pontos comuns identificados surgiram da necessidade de alargar os canais destinados ao reconhecimento das titulações na região e com outras regiões do planeta.
.
A matriz do Projeto UniNova é o Projeto Tunning, parte do Processo de Bolonha,
elaborado na Europa e transplantado à América Latina pelo Projeto Tunning – América
Latina. Segundo os documentos da UFBA (2007a, 28):
Essas competências genéricas, definidas pelo Projeto Tunning, são as mesmas que
orientam os projetos pedagógicos da UniNova, bastantes adequadas às competências
definidas também pela UNESCO. A noção de competência substitui a de conteúdos
acadêmicos e sintetiza a combinação de conhecimentos teóricos, capacidade de aplicação
prática e valores (ABOITES, 2009). No Tunning há 25 competências genéricas, além das
competências específicas de cada carreira, estando todos no UniNova, quais sejam:
1. Responsabilidade social e compromisso cidadão
2. Capacidade de comunicação oral e escrita
3. Capacidade de comunicação em um segundo idioma
4. Habilidades no uso das tecnologias da informação e da comunicação
5. Capacidade de investigação
6. Capacidade de aprender e atualizar-se permanentemente
7. Capacidade de crítica e autocrítica 87 Argumentos infundados, em nossa opinião, que operam para minar a lógica de regulamentação das profissões. Essa regulamentação serve, muitas vezes como no caso do Serviço Social, exatamente para proteger o arcabouço profissional do pragmatismo do mercado que é beneficiado, isso sim, pela flexibilização dos currículos e a formação polivalente dos futuros trabalhadores.
156
8. Capacidade para atuar em novas situações
9. Capacidade criativa
10. Capacidade para identificar, planejar e resolver problemas
11. Capacidade para tomar decisões
12. Capacidade de trabalho em grupo
13. Capacidade de motivar e conduzir para metas comuns
14. Compromisso com a preservação do meio ambiente
15. Compromisso com seu meio sócio-cultural
16. Valorização e respeito pela diversidade e multiculturalidade
17. Habilidade para trabalhar em contextos internacionais
18. Habilidade para trabalhar de forma autônoma
19. Capacidade para formular e gerir projetos
20. Compromisso ético
21. Compromisso com a qualidade
22. Capacidade de abstração, análise e síntese
23. Capacidade de aplicar os conhecimentos na prática
24. Capacidade para organizar e planejar o uso do tempo
25.Conhecimentos sobre uma área de estudo ou profissão
Aboites (2009,10) critica o projeto, em primeiro lugar, porque ele fere a autonomia
universitária e teve um processo de definição das competências centralizador, restritivo e
inclinado ao pensamento único. Do ponto de vista pedagógico-educativo, o autor define a
lógica das competências como abstrata e irreal, pois desconsidera as diferenças regionais,
os contextos sociais, a diversidade, a cultura e a pluralidade de visões e enfoques da
realidade, gerando um ensino fragmentado que conduz ao que chama de “profissionais de
manual”. Cada competência é tomada em si mesma, sem relacionar-se com o todo.
A lógica de estrutura curricular, propriamente dita, proposta pela UniNova passa a
dividir o ensino superior em três ciclos: o bacharelado interdisciplinar, a formação
profissional em licenciaturas ou carreiras específicas e a formação em nível de pós-
graduação.
157
Os Bacharelados Interdisciplinares compreendem “uma nova modalidade de curso
de graduação”, “interdisciplinar, geral e propedêutica” (UFBA, 2007a, 13). Tem duração de
3 anos e é pré-requisito para os outros ciclos. Ao fim do BI o estudante passa por uma nova
seleção a fim de ingressar no segundo ciclo. A titulação, ao fim do BI, refere-se a uma área
de concentração, sendo cada um dos 4 BIs (Artes, Humanidades, Ciência e Tecnologia e
Saúde) composto por várias áreas. Os estudantes terão, ainda, a opção de fazer apenas os
dois primeiros anos do BI, de formação geral, saindo com um Diploma de Curso
Sequencial, que permite acesso aos cursos tecnológicos, que fornecem diploma de
Tecnólogo após 2 a 3 semestres.
Após os BIs os alunos poderão ingressar em cursos de licenciatura, com mais 1 a 2
anos de formação, cursos profissionais, com mais 2 a 4 anos de formação, ou diretamente
para programas de pós-graduação, se aprovados em processos seletivos, para tornarem-se
docentes ou pesquisadores.
A idéia dos três ciclos assemelha-se ao que vem sendo implementado pelo Processo
de Bolonha, mantendo a centralidade da mobilidade estudantil, já que os alunos podem
disputar nacionalmente as vagas a cada ciclo de formação. Na Europa essa política tem sido
criticada pelos estudantes, pois se mantém os entraves financeiros à mobilidade, que não é
acompanhada de políticas compatíveis de assistência (Lima et al, 2008). Na UniNova a
assistência se traduz em políticas de cotas associadas a projetos de permanência, voltados,
de forma focalizada e meritocrática, aos segmentos mais pauperizados.
Para Lima et al (2008, 26) “em essência, a Universidade Nova não é a negação dos
modelos existentes nos EUA nem em implantação na Europa (Processo de Bolonha), mas
sim, uma mescla tímida de ambos”, sem a infra-estrutura das universidades norte-
americanas e sem encaminhar a formação profissional na graduação, o que ainda acontece
na Europa.
Porém, na prática, as reestruturações acadêmico-curriculares dentro do REUNI tem
acontecido com diferentes ritmos e compreensões. Em janeiro de 2010 a ANDIFES
publicou o Relatório de Acompanhamento do Programa de Apoio a Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). Nesse relatório são
158
repassadas as informações enviadas pelas universidades88
88 As universidades que aderiram ao REUNI são: FURG (RS), UFAL (AL), UFAM (AM), UFBA (BA), UFC (CE), UFCG (Campina Grande – PB), UFCSPA (Ciências da Saúde de POA – RS), UFERSA (Semi-árido, CE), UFES (ES), UFF (RJ), UFG (GO), UFGD (Grande Dourados - MS ), UFJF (Juiz de Fora – MG), UFLA (Lavras – MG), UFMA (MA), UFMG (MG), UFMS (MS), UFMT (MT), UFOP (Ouro Preto – MG), UFPA (PA), UFPB (PB), UFPE (PE), UFPEL (Pelotas – RS), UFPI (PI), UFPR (PR), UFRA (Rural – AM), UFRB (Recôncavo Baiano – BA),UFRGS (RS), UFRJ (RJ), UFRN (RN), UFRPE (Rural – PE), UFRR (RR), UFRRJ (Rural – RJ), UFS (SE), UFSC (SC), UFSCAR (São Carlos – SP), UFSJ (São João Del Rei – MG), UFSM (Santa Maria – RG), UFT (TO), UFTM (Triângulo Mineiro – MG), UFU (Uberlândia – MG), UFV (Viçosa – MG), UVJM (Vale do Jequitinhonha e Mucuri – MG), UNB (BSB), UNIFAL (Alfenas- MG), UNIFAP (AP), UNIFEI (Itajubá-MG), UNIFESP (SP), UNIR (RO), UNIRIO (RJ), UNIVASF (Vale do São Francisco (NE), UFAC (AC), UTFPR (Tecnológica – PR). Apenas a UNIABC (SP) e a UNIPAMPA (RS) não aderiram ao programa pois, criadas em 2005 e 2007 respectivamente, ainda estão em fase de implantação.
sobre os avanços realizados nos
vários aspectos do programa. No que tange as reestruturações acadêmico-curriculares, 45
das 53 universidades que aderiram ao REUNI, ou seja, 85%, afirmam terem inovações em
curso.
Apesar de todas as universidades estarem adequadas ao discurso, pregando
flexibilização e mobilidade, os graus de mudança são distintos, refletindo inclusive as
diferenças de ponto de partida.
Apenas 8 universidades já implementaram ou pretendem implementar um sistema
de BI, destacando-se a UFBA e a UNB, que já estão fazendo concursos de acesso apenas
para esse modelo. A UFJF, a UFT e a UFVJM implementaram BIs para alguns cursos, a
UFRN implementou um BI de dois ciclos, a UFERSA apenas para as Engenharias e a
UNIFESP vai implementar os BIs em 2011.
A maioria das universidades tem caminhado para um novo modelo por meio, até o
momento, da criação de cursos interdisciplinares, em alguns casos dirigidos por várias
unidades acadêmicas e centros setoriais. Algumas como a UFGD e a UFLA começaram a
implementar ciclos básicos de 3 semestres comuns a todos os cursos.
Mas também chama atenção como 17 universidades declaram como inovações
curriculares apenas mudanças muito pontuais na estrutura dos currículos, na estrutura
administrativa e na mobilidade interna dos estudantes.
Destacamos, ainda, como 6 universidades consideraram inovações a introdução do
EAD parcial para o ensino presencial e 2 consideraram políticas de bolsas para estudantes
de pós-graduação exercerem atividades de ensino, que deveriam ser ministradas por
docentes, como inovações importantes.
159
Essas inovações, em particular, se fazem necessárias na medida em que a expansão
proposta de matrículas não é proporcional ao aumento de docentes, o que traz a necessidade
de “alternativas” pedagógicas. Essa é a realidade que analisaremos na próxima seção.
.
3.3. Precarização e superexploração do trabalho docente: a expansão das matrículas e o
aumento da relação professor/aluno
O banco de professores-equivalente foi instituído pela Portaria Interministerial nº 22
de 2007 do MEC e do MPOG, seis dias depois do decreto REUNI89
89 O governo instituiu através do decreto 7232 de 19 de julho de 2010 um banco de equivalentes para os trabalhadores técnico-administrativos das IFES, no molde do banco de docentes.
. O banco é anunciado
na portaria como um instrumento para a gestão administrativa de pessoal, que permitiria as
universidades ter autonomia para fazerem concursos públicos e contratar substitutos dentro
dos limites fixados pelo banco. O banco quantifica o número de docentes de cada IFES
através de um critério de equivalência que toma o professor adjunto 40h como referência.
Os docentes com dedicação exclusiva são multiplicados por 1,55 e os docentes 20h por 0,5.
Já os substitutos são multiplicados por 0,4 se 20h e 0,8 se 40h. As autorizações para
contratação de docentes para expansão das universidades, que expandiria, portanto, o banco,
passam a ser expressas na unidade professor-equivalente, cabendo às universidades a
definição sobre os regimes de trabalho dos concursos e contratos, dentro desse limite.
Até pela sua proximidade, fica claro que o banco de professores-equivalente é uma
medida complementar à lógica de expansão determinada pelo REUNI.
O ANDES, em suas análises, temia que a lógica da equivalência levasse as
universidades a preferirem a contratação de três docentes 20h, em lugar de um docente em
dedicação exclusiva, já que desta forma conseguiria maior carga horária para o ensino, na
medida em que o docente efetivo DE dividiria sua carga horária entre ensino, pesquisa e
extensão. Da mesma forma, as universidades poderiam preferir a contratação de substitutos
em lugar de efetivos, que teriam carga horária exclusiva dentro da sala de aula e não
onerariam a universidade futuramente com gastos de aposentadoria e benefícios que são
direito dos efetivos (ANDES, 2007).
160
Na prática, até 2009, não é isso que tem ocorrido. Houve na expansão das vagas uma
redução dos docentes 20h e uma ampliação dos docentes com dedicação exclusiva. A
tendência só pode ser explicada como uma resistência dos docentes dentro das unidades,
que são responsáveis pela decisão do regime de trabalho de cada nova vaga, já que recebem
as vagas no critério de equivalência.
Mas, apesar da contratação de professores 20h ou da troca de concursados por
contratados não ter se dado até o momento, essa preocupação deve se manter, pois a
necessidade de força de trabalho para lecionar na graduação pode constranger as unidades a
fazerem essa opção mais a frente. Uma opção que teria impacto na redução da pesquisa e
da extensão, quebrando a lógica da indissociabilidade que consta na Constituição brasileira.
Tabela 1 – Ampliação do número de docente e regime de trabalho – UFF e UFRJ90
Docentes
2007 2008 2009 Ampliação
UFRJ 20h 436 507 249 -43% 40h 399 388 376 -6% DE 2656 2655 2842 7%
Equivalente 4733,8 4756,75 4905,6 4% Substitutos 230 386 264 15%
UFF 20h 501 479 466 -7% 40h 181 200 169 -7% DE 1732 1767 2076 20%
Equivalente 3116,1 2446 3619,8 16% Substitutos*
Fonte: Relatórios de Gestão– Elaboração Própria
*Não encontramos esse dado nos Relatórios de Gestão da UFF.
90 Para ter uma melhor compreensão de como tem se dado a implementação do REUNI analisaremos
mais minuciosamente a realidade da UFRJ e da UFF. A UFRJ é uma universidade de grande porte. Em 2007, antes do início do REUNI, contava com 141 cursos de graduação, 87 de mestrado e 73 de doutorado, totalizando 36.174 alunos de graduação e 7.650 alunos de pós-graduação além de 8 HUs e centros importantes de P&D como a COPPE. Isso tenderia a classificá-la, na lógica do governo, como uma universidade de pesquisa (RELATÓRIO DE GESTÃO UFRJ, 2007). Já a UFF é uma universidade de médio porte, que em 2007 possuía 70 cursos de graduação presenciais, totalizando 22.943 alunos, e 43 programas de pós-graduação, totalizando 3.382 alunos. Seria caracterizada, portanto, como uma universidade de ensino (RELATÓRIO DE GESTÃO UFF , 2007).
161
Essa necessidade de mais professores para dar aulas na graduação se intensifica a
partir da meta número 1 do REUNI, que vai reduzir proporcionalmente o número de
docentes das IFES em relação ao existente hoje.
A meta global número um é a ampliação da relação de alunos de graduação em
cursos presenciais por professor para dezoito ao final de 5 anos. Segundo os Relatórios de
Gestão da UFF e da UFRJ, elaborados pelos critérios do TCU, a relação desde 2003 é a
exposta na tabela 2. Na tabela 3, observamos, nos critérios do REUNI, como está prevista a
ampliação da relação professor/aluno até 2017.
Tabela 2 – Comparação da relação professor/ aluno entre UFF e UFRJ pelos critérios do TCU
Relação professor/aluno critério TCU UFF UFRJ
2003 10,55 11,74
2004 10,65 12,88
2005 11,49 13,56
2006 10,75 13,19
2007 10,83 12,72
2008 11,84 13,53 Fonte: Relatórios de Gestão UFF e UFRJ– Elaboração Própria
Tabela 3 - Comparação da previsão de ampliação da relação professor/ aluno na UFF e UFRJ pelos critérios do REUNI
Relação aluno de graduação por professor RAP
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2017
UFF 11,36 12,03 15,92 17,98 18 18 18,28 UFRJ 15,09 15,85 17,28 16,27 16,22 18,26 18,28
Fonte: Acordos de Metas – REUNI– Elaboração Própria
Portanto para atingir essa meta a expansão do número de docentes não pode ser
proporcional à expansão do número de estudantes. Ainda que o número de concursos seja
maior do que nos últimos anos, a meta do REUNI é que em 2012 o número, já insuficiente,
de docentes seja proporcionalmente menor do que a situação atual.
O cálculo professor/aluno (RAP) presente no documento “Diretrizes do REUNI” é:
RAP= MAT
DDE – DPG
162
Nessa conta o numerador (MAT) é a soma das vagas de ingresso anuais
multiplicado pela duração mínima de integralização do curso e multiplicado por (1+fator de
retenção) onde o fator de retenção é determinado de acordo com cada área de conhecimento.
Assim o número de matrículas na graduação não equivale aos efetivamente matriculados,
mas a uma estimativa que leva centralmente em consideração o número de vagas anuais
oferecidas.
O denominador é DDE – docentes com equivalência de dedicação exclusiva que é
igual a soma de professores equivalentes dividido por 1,55, que é o índice da dedicação
exclusiva91
91 Em comparação aos critérios de equivalência do TCU há um aumento da exploração do docente já no cálculo da dedicação exclusiva. Para o TCU um docente DE equivale a 1, o mesmo que um docente 40h. Nos critérios do REUNI o peso do docente DE aumenta 55% , multiplicado na equivalência por 1,55.
. Da DDE subtrai-se a DPG – Dedução da Pós-Graduação que é calculado pela
soma de alunos de mestrado e doutorado multiplicado pela média de avaliação da CAPES
considerando-se como mínimo uma dedução de 5% do DDE, o que seria a média nacional.
Essa dedução tem dois problemas. Em primeiro lugar desconsidera para o cálculo da
RAP, ou seja, da produtividade docente no sentido colocado pelo REUNI, os alunos da pós-
graduação lato sensu. No caso da UFF os relatórios de gestão estimam que são mais de
6.000. Se hoje as pós-graduação lato sensu pagas (chamadas eufemisticamente nos
documentos da reitoria da UFF de auto-financiadas) já são a maioria, a retirada desses
cursos da carga de trabalho considerada tende a determinar de vez sua mercantilização. Em
segundo lugar, a inclusão das notas do CAPES, amplamente criticadas pelo seu caráter
produtivista, leva a um favorecimento de universidades com pós-graduações mais
consolidadas. Com isso se firmam como universidades de pesquisa que vão manter menor o
número de alunos de graduação aquelas que já têm esse perfil e como universidades de
ensino de graduação aquelas que têm menos tradição na pós-graduação stricto sensu.
Pode parecer pouco, mas não é. Na comparação entre a DPG da UFRJ e da UFF,
conforme os dados da tabela 4, retirados dos acordos de metas, percebe-se a gritante
diferença entre as universidades.
Tabela 4 – Comparação do DPG da UFF e da UFRJ
163
Dedução por integração na Pós-
Graduação 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2017
UFF 108,32 115,39 125,79 129,84 137,24 137,24 137,24
UFRJ 1179,72 1187,31 1143,56 1087,31 1049,81 1359,67 1359,67 Fonte: Acordos de Metas – REUNI– Elaboração Própria
Disso decorre que a ampliação das matrículas de graduação na UFF segundo o
acordado pelo REUNI deve ser o dobro da ampliação na UFRJ conforme exposto nas
tabelas 5 e 6. Ou seja, a lógica de ampliação do REUNI já traz, em si, uma ampliação na
diversificação das IFES separando “escolões” de formação profissional de “centros de
excelência” mais voltados à pós-graduação.
Tabela 5 – Comparação da ampliação de matrículas entre UFF e UFRJ prevista por ano, de acordo com as metas do REUNI
Ampliação da matrícula na graduação
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2017
UFF 23384,8 26367,9 38056,8 44364,2 45934,5 46934,5 46934,5
UFRJ 32313,2 34599 41516,5 43624,5 46655,6 48598 48598
Ampliação na UFF 13% 44% 17% 4% 2% 0% Ampliação na UFRJ 7% 20% 5% 7% 4% 0%
Fonte: Acordos de Metas – REUNI– Elaboração Própria
Tabela 6 – Comparação da previsão de ampliação de matrículas entre UFF e UFRJ no total, de acordo com as metas do REUNI
Expansão da graduação 2007 -2012
UFF 101%
UFRJ 50% Fonte: Acordos de Metas – REUNI– Elaboração Própria
Em relação aos concursos docentes, há no acordo de metas de cada universidade
uma previsão de vagas de expansão do banco de professor-equivalente. Analisando a
previsão de expansão e a expansão ocorrida, tendo UFF e UFRJ como exemplo,
164
verificamos que há um atraso desses concursos, assim como há um atraso na expansão de
matrículas prevista, sobretudo nos cursos noturnos (tabela 10).
Tabela 7 – Ampliação do banco de professores equivalentes prevista e executada na UFF e na UFRJ
Professores equivalentes
Número de professores equivalente
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2017
UFF Previsto REUNI 3358 3577 3899 4025 4254 4254 4254
Realizado 3116,1 2446 3619,8
UFRJ Previsto REUNI 5147 5224,5 5495,7 5841,4 6077 6232 6232
Realizado 4733,8 4756,7 4905,6 Fonte: Acordos de Metas e Relatórios de Gestão– Elaboração Própria
Tabela 8 – Ampliação do banco de professores equivalente prevista e executada na UFF e na UFRJ: percentuais.
Ampliação prevista 2007 -
2012
Diferença previsto e
ampliado 2007 - 2010
UFF 27% -7%
UFRJ 21% -11%
Fonte: Acordos de Metas e Relatórios de Gestão– Elaboração Própria
Tabela 9. Ampliação das matrículas, total e noturna, prevista e executada na UFF e na UFRJ
Tabela de indicadores e dados globais Indicadores 2007 2008 2009 2010 Diferença
UFRJ
165
Graduação Vagas Anuais
Previsto REUNI 6625 7095 8503 8923 Ampliado 6625 6825 7682 8254 -7% Previsto REUNI Noturno 1158 1738 1926 2131 Ampliado Noturno 1158 1288 1550 1850 -13%
UFF
Graduação Vagas Anuais
Previsto REUNI 4818 5428 8008 9398 Ampliado 4628 5433 6070 7442 -21% Previsto REUNI Noturno 1140 1315 3095 3745 Ampliado Noturno 970 1315 1429 2093 -44%
Fonte: Acordos de Metas – REUNI e dados do Vestibular UFF e UFRJ– Elaboração Própria
Como podemos observar na tabela 9 a ampliação de vagas docentes prevista na UFF
é um pouco maior que na UFRJ. Essa diferença não compensa, todavia, a ampliação de
matrículas, que na UFF será o dobro. Reforça, portanto, o nosso argumento: que o critério
utilizado no REUNI de dedução de pós-graduação vai ampliar a diferenciação entre
universidades de pesquisa e de ensino, já que a expansão será mais aprofundada e a redução
proporcional do número de docentes será maior em universidades que tem um menor
número de estudantes de pós-graduação stricto sensu e uma nota mais baixa na CAPES.
É importante considerar que esse crescimento desigual entre matrículas e concursos
para docentes e técnico-administrativos não é inaugurado pelo REUNI. A ampliação da
relação professor-aluno para 1 para 18 já parte de um déficit de docentes anterior. Segundo
dados de Silva Júnior et al (2010) as matrículas na graduação em universidades públicas
cresceram, entre 1995 e 2004, em 71%. Na região Sudeste este aumento foi de 44%
acompanhado de uma ampliação de docentes em dedicação exclusiva de 23 mil para 26 mil,
o que significa aproximadamente 15%.
Essa redução proporcional do número de docentes das universidades públicas, que
tende a se ampliar, associado, ainda, ao arrocho salarial 92
92 Ainda segundo Silva Júnior et al (2010, 21), o salário do professor titular doutor em regime de dedicação exclusiva das universidades federais se reduziu, com correção inflacionária, de R$ 10.092,96 em 1995 para R$7.830,13 em 2007, um decréscimo de aproximadamente 25%.
, tem significado uma
superexploração do seu trabalho, com alterações importantes da sua natureza. O professor
também passa a ser vítima da reestruturação produtiva e, assim como os demais
trabalhadores intelectuais que forma, passa a ser exigido em novas competências.
166
Uma das importantes alterações na natureza do trabalho docente transforma o
professor em um empreendedor. Por meio da venda de pesquisas e da prestação de serviços
em parcerias-público privadas, captação dos fundos setoriais entre outros mecanismos. O
trabalho dos docentes passa a ser uma alternativa para o financiamento das universidades,
bem como para a complementação do seu salário, o que é estimulado pelo governo. Esse
estímulo fica claro, por exemplo, nas novas propostas de regulação da dedicação exclusiva
do governo Lula. A proposta apresentada em julho de 2010 flexibiliza a dedicação
exclusiva ampliando as possibilidades legais dos docentes receberem de outras fontes por
serviços prestados93
A polivalência se expressa na demanda por múltiplas atividades: ensino, pesquisa –
dentro do critério produtivista -, extensão – sobretudo por meio da venda de serviços- e
administração. Esse último aspecto tem sido cada vez mais demandado aos docentes, que
sofrem com a falta de recursos financeiros, de apoio administrativo e com a complexidade
dos procedimentos e processos decisórios, tornando uma atividade que deveria ser
acadêmica numa substituição de profissionais técnico-administrativos, também escassos
nas instituições
.
94
Ao mesmo tempo, o docente tem, cada vez mais, seu trabalho controlado, perdendo
sua autonomia. Isso ocorre pela falta de financiamento à pesquisa, que fica subordinada a
convênios e editais, à ampliação da função reguladora de órgãos como a SESU e o MEC, e
as inúmeras avaliações internas e externas do trabalho docente e dos conteúdos
programáticos, como ocorre no ENADE. “Assim a autonomia do docente vai se
(LEMOS, 2010).
A flexibilidade no trabalho se expressa na necessidade de adaptação rápida a novas
modalidades de cursos (rápidos, à distância), a vários modelos de avaliação quantitativos
por produção, prazos reduzidos e resultados de aplicação imediata, além da já citada busca
necessária por financiamento aos seus projetos (LEMOS, 2010, 32). Essa necessidade, por
sua vez, amplia a competitividade entre professores e entre alunos, o individualismo e, em
conseqüência, a alienação no trabalho.
93 Para aprofundar esse debate ver as análises do ANDES em: http://www.andes.org.br/imprensa/ultimas/contatoview.asp?key=6720. 94 Segundo dados do INEP citados por Silva Júnior et al (2010) o número de funcionários técnico-administrativos decresceu em mais de 30% nas IFES entre 1995 e 2004. Segundo a hipótese dos autores as novas tecnologias permitiram uma transferência de funções dessa categoria para os docentes que passaram a preencher planilhas de notas, programas de disciplinas e formulários de agências de fomento online.
167
restringindo cada vez mais e, até, se transformando numa ‘ilusão de autonomia’” (LEMOS,
2010, 35).
O ensino, por sua vez, por ser uma atividade que não garante produtividade, novas
fontes de financiamento, nem o status da pesquisa, contraditoriamente transforma-se numa
atividade marginal, deixando de ser prioridade para instituições e para os próprios docentes
(LEMOS, 2010).
Todas essas mudanças impostas ao trabalho docente no ensino superior são a
expressão da reestruturação produtiva para esse segmento da classe trabalhadora e tende a
ampliar a sujeição da subjetividade docente aos interesses do capital e a alienação em
relação ao seu trabalho. Associa-se isso o refluxo do movimento sindical, também comum
a outros setores da classe trabalhadora.
“A reestruturação do trabalho acadêmico, o esvaziamento material e cultural da Universidade pública, a diferenciação e hierarquização dos docentes, enfim, a ofensiva neoliberal impôs, na década de 90, a desmobilização e o recuo defensivo do movimento docente” (LEMOS, 2010, 36).
Entre os docentes, Lemos (2010) demonstra variadas posições em relação à
participação e percepção do movimento sindical que vão desde a rejeição à discussão
política até a assunção de um papel político limitado ao exercício profissional, constituindo
uma nova concepção de militância fora da participação de órgãos de classe ou partidos
políticos. “(...) ao se afastarem da militância, buscaram construir um papel como professor, que pudesse se aproximar desse papel militante. Essa aproximação inclui a dimensão de ser um “observador crítico”, “um apoiador da decisão coletiva da greve” e a “assessoria a organismos sociais, por intermédio de uma visão crítica da realidade”. Por outro lado, as assembléias, Congressos e Encontros contam com um número cada vez mais reduzido de professores para a deliberação do movimento docente, o qual termina sendo criticado por aqueles que não comparecem às atividades políticas do movimento” (LEMOS, 2010, 36).
Essa situação é ainda pior entre os novos professores que, sem experiência política
anterior já ingressam nas universidades com grande condicionamento aos valores
neoliberais.
Silva Júnior et al (2010) apontam ainda que a atividade imaterial, como a exercida
pelos docentes, caracteriza-se pelo limite pouco perceptível, sobretudo quando é um
168
trabalho superqualificado que dá prazer ao trabalhador. Esse elemento, associado ao
enfraquecimento das organizações de classe e a retórica de adesão típica da reestruturação
produtiva levam a um excesso de trabalho que pode significar um aumento da incidência de
doenças mentais ou somáticas na categoria. Ao mesmo tempo a mercantilização do
conhecimento faz com que toda essa sobrecarga de trabalho esteja cada vez mais a serviço
do capital e não da maioria da população, com a mediação do Estado.
Mas mesmo com toda a propaganda da expansão de vagas nas universidades
federais, como vimos às custas da sobrecarga do trabalho docente, os dados do INEP
demonstram que durante o governo Lula o percentual de vagas públicas em relação ao total
não aumentou, pelo contrário. O total de vagas no ensino superior cresceu entre 2002 e
2008 46%, sendo que as vagas nas universidades federais cresceram apenas 20,9%, e o total
de vagas públicas 21,1%.
Tabela 10. Crescimento das matrículas na graduação presencial entre 2002 e 2008
Privadas Aumento das
vagas privadas Públicas
Aumento das vagas públicas
Total Aumento do
total das vagas
Participação das vagas
públicas no total
2002 2.428.258 1.051.655 3.479.913 30,2% 2003 2.750.652 13% 1.136.370 8% 3.887.022 12% 29,2% 2004 2.985.405 9% 1.178.328 4% 4.163.733 7% 28,3% 2005 3.260.967 9% 1.192.189 1% 4.453.156 7% 26,8% 2006 3.467.342 6% 1.209.304 1% 4.676.646 5% 25,9% 2007 3.639.413 5% 1.240.968 3% 4.880.381 4% 25,4% 2008 3.806.091 5% 1.273.965 3% 5.080.056 4% 25,1% Fonte: Censo do Ensino Superior – INEP 2008 – Elaboração Própria
Em entrevista para o Jornal Valor Econômico, em julho de 2010, o reitor da UFRJ,
Aloísio Teixeira, chamava atenção de que apenas 13% dos jovens entre 18 e 24 anos
estavam matriculados em cursos superiores no Brasil, quando a média da América Latina é
de 32% e da Europa de 60%. Afirmava que, mesmo que o número de vagas nas
universidades federais dobrasse até 2012, o que está colocado pelas metas do REUNI, esse
percentual aumentaria muito pouco. Primeiro porque o número de vagas federais é pequena
comparada com o total do ensino superior no Brasil. Em 2008 a divisão das vagas era
conforme o gráfico 5.
169
Gráfico 5 – Vagas oferecidas nas Instituições de Ensino Superior em 2008
Dados: Censo do Ensino Superior – INEP - 2008– Elaboração Própria
Em segundo lugar o resultado da expansão é que alunos que hoje estão no ensino
privado migrarão para o ensino público. Para Teixeira o assustador é que o número de
vagas oferecidas no ensino superior em 2010 é equivalente aos formandos no ensino médio.
Isto quer dizer que é durante o ensino médio que ocorre o maior estrangulamento na
progressão ao ensino superior, já que grande parte dos estudantes não se forma nesse nível.
Outro problema é o enorme número de vagas privadas que além de mais baixa qualidade,
ficam ociosas porque os estudantes pobres não podem pagar suas mensalidades.
Todos esses dados colocam a nu que as necessidades postas para uma mudança no
ensino superior brasileiro que supere a marca da privatização e se amplie para os 30% de
jovens no ensino superior até 2011, meta do PNE, não será garantida sem uma ampliação
radical de recursos públicos, concursos públicos e garantia de mecanismos públicos de
gestão, o que o REUNI está longe de garantir.
3.4. Redução da evasão e políticas de permanência para os estudantes.
170
A meta global dois do REUNI é a elevação da taxa de conclusão média dos cursos
de graduação presenciais para 90%.
A medida da taxa de conclusão dos cursos de graduação é dada pela média entre os
diplomados em determinado ano e a quantidade de vagas oferecidas 5 anos antes. Mede,
portanto, segundo os parâmetros estabelecidos pelo MEC no documento “Diretrizes do
REUNI”, não diretamente as taxas de sucesso, mas em que medida a universidade é
eficiente na ocupação de vagas ociosas decorrentes do abandono dos cursos. Em última
análise, para esse indicador nada importa se os estudantes ingressos no Vestibular
concluíram seu curso, e sim se a universidade consegue substituir os alunos que
abandonaram seus cursos com eficiência. Por isso tanto se fala no REUNI da mobilidade
estudantil (sem excluir a possibilidade da transferência de universidades privadas para
públicas), na flexibilização dos currículos e no uso de “práticas pedagógicas modernas e o
uso intensivo e inventivo de tecnologias de apoio à aprendizagem” (DIRETRIZES DO
REUNI, 2007, 10), traduzindo: educação à distância.
A tabela 11 demonstra as taxas de conclusão na graduação previstas pelo REUNI na
UFF e na UFRJ. Percebe-se que a UFRJ sai de uma taxa de conclusão mais alta, o que
significa que, para alcançarem o mesmo objetivo de 90% num mesmo período de tempo, a
UFF terá que empreender um maior esforço. Em todas as metas fixadas, desconsidera-se
que as universidades saem de patamares iniciais diferentes. É importante considerar
também, que taxas de conclusão de 90% são bastante altas se, por exemplo, compararmos
com as taxas dos países da OCDE, que eram de 70% em 2007 (OCDE, 2008, 76).
Tabela 11– Comparação das metas de taxa de conclusão do REUNI entre UFF e UFRJ
Taxa de conclusão da graduação 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2017
UFF 64% 68% 71% 71% 87% 90% 90% UFRJ 78% 81% 87% 90% 92% 106% 88%
Fonte: Acordos de Metas UFF e UFRJ– REUNI– Elaboração Própria
Outra diretriz apontada é a disponibilização de mecanismos de inclusão através da
assistência estudantil. Em dezembro de 2007, no rastro do REUNI, o governo instituiu
através da Portaria Normativa nº 39 do MEC o PNAES – Programa Nacional de
Assistência Estudantil, a ser implementado a partir de 2008. O programa considera “a
171
centralidade da assistência estudantil como estratégia de combate às desigualdades sociais e
regionais, bem como sua importância para a ampliação e a democratização das condições
de acesso e permanência dos jovens no ensino superior público federal” (Portaria nº39).
Entende assistência estudantil como: moradia, alimentação, transporte, assistência à saúde,
inclusão digital, cultura, esporte, creche e apoio pedagógico. Suas despesas correriam
através de dotações orçamentárias ao Ministério da Educação que faria a descentralização
dos recursos.
Observando os dados de descentralização temos que em 2008, primeiro ano do
programa foi pactuado R$4.613.802,95, segundo o Relatório de Gestão da UFF de 2008.
Segundo o mesmo Relatório só foram repassados R$120.265,85, 3% do previsto. Na UFRJ
aconteceu o mesmo. O Relatório de Gestão dessa universidade explica que isso decorreu
do atraso nos repasses que só saíram em dezembro. No caso da UFRJ dos R$ 11 milhões
acordados para 2008, R$ 7 milhões tiveram que ser devolvidos por insuficiência de tempo
até para o empenho. Em 2009 não constam repasses do programa nos Relatórios de Gestão
de nenhuma das duas universidades denotando que o PNAES, na prática, ainda não existiu.
Em 19 de julho de 2010 o PNAES, que era uma portaria do MEC, foi transformada
no decreto presidencial nº 7234. No decreto foram relacionados os objetivos do programa
que são: I- democratizar as condições de permanência nas IFES; II-minimizar os efeitos das
desigualdades sociais e regionais na permanência e conclusão da educação superior; III-
reduzir as taxas de retenção e evasão; e IV-contribuir para a promoção da inclusão social
pela educação. Na alínea IV fica claro que a assistência estudantil é estratégica para
difundir a educação superior como possibilidade de ascensão social e para buscar coesão
social apor meio das promessas da educação.
Outra mudança trazida pelo decreto é a inclusão dentro das ações de assistência
estudantil do acesso, participação, desenvolvimento e aprendizagem para estudantes com
deficiências ou superdotação.
Outra diferença importante em relação a portaria original é que, apesar de manter os
critérios de seleção dos beneficiados sob responsabilidade das IFES o decreto determina de
forma mais detalhada os estudantes que devem ser prioritariamente atendidos. Enquanto a
portaria dizia apenas que os estudantes deviam ser “prioritariamente selecionados por
critérios sócio-econômicos” (art.4º) o decreto aponta que devem ser atendidos
172
“prioritariamente estudantes da rede pública de educação básica ou com renda familiar per
capita de até um salário mínimo e meio” (artigo 5º). Ou seja, o governo aparenta garantir
autonomia às IFES, mas determina critérios focalizados extremamente rebaixados para o
acesso às ações de assistência estudantil.
Apesar de não ter havido, até o momento, uma rubrica específica no orçamento para
o Plano de Assistência Estudantil, é inegável um aumento significativo das verbas para o
programa de assistência ao estudante no orçamento das universidades95. Comparamos o ano
de 2002, ainda no governo Cardoso, com 2006 e 2007, antes do REUNI quando ainda não
se notam aportes significativos e os anos de 2008 e 2009, quando ocorrem os maiores
aumentos. Para o ano de 2010 estão autorizados mais de 300 milhões para o programa no
total nacional, dividido entre todas as IFES.
Ainda que o orçamento executado entre 2002 e 2009 pelo programa tenha crescido
9 vezes, o aumento não é tão exorbitante se considerarmos que ocorre em meio a um
processo de expansão das matrículas nas universidades federais É importante ainda reforçar
que a comparação se dá com patamares anteriores baixíssimos, sem qualquer recurso de
investimento para ampliação da assistência estudantil então existentes. Gráfico 6 – Orçamento do programa Assistência ao estudante de graduação no total das IFES
Fonte: Siga Brasil – Senado Federal – Corrigido pelo IGP-DI– Elaboração Própria
95 Apesar de nesse programa também ser notável a dificuldade de execução do orçamento. Aprofundaremos esse ponto na próxima sessão do trabalho.
173
No seu documento de balanço do REUNI (ANDIFES, 2010), a ANDIFES aponta as
políticas que estão sendo implementadas para redução da evasão e, em separado, políticas
de assistência estudantil.
Nas políticas de redução da evasão destacam-se a ampliação de bolsas, a
flexibilização dos currículos, ampliação da mobilidade entre os cursos, melhoria geral na
infraestrutura de laboratórios e bibliotecas, ampliação de atividades de reforço e tutoria,
ampliação dos cursos noturnos e utilização de EAD. As atividades de assistência estudantil
são genericamente apresentadas contando com: reforma e ampliação de moradias
estudantis, ampliação e construção de novos restaurantes universitários, distribuição de
passes para transporte, ampliação na assistência à saúde dos discentes associado a
atividades de esporte e lazer e inclusão digital, com ampliação do acesso dos alunos a
computadores. Destaca-se, ainda, que em todas as áreas algumas universidades optam por
bolsas: Bolsa Moradia, Bolsa Alimentação, Bolsa Transporte, Bolsa Permanência. Bolsas
que diferem das acadêmicas pela sua característica eminentemente assistencial e focalizada.
Essa lógica tira do debate a universalização da assistência estudantil por meio de ações
como a ampliação de infraestrutura (moradia, restaurantes) das universidades associadas a
ampliação de direitos como o passe livre para estudantes universitários no transporte
público, por exemplo.
Sobre a ocupação de vagas ociosas que, como mencionamos, é o verdadeiramente
central para as metas do REUNI, o documento aponta que as IFES estão reformulando seus
regulamentos para otimizar mecanismos como: rematrícula, reopção, transferências,
ingresso como portador de diploma superior, mudança de curso e mudança de turno. Além
dessas modalidades, 4 universidades destacaram o Novo ENEM como mecanismo de
ocupação de vagas.
O Novo ENEM é uma reformulação do Exame Nacional do Ensino Médio, que
passou a ser, a partir de 2009, uma forma de seleção unificada para as universidades
públicas e privadas. Os objetivos seriam democratizar o acesso às vagas, ampliar a
mobilidade acadêmica e induzir reestruturações no currículo do ensino médio. Segundo o
site do MEC, as universidades teriam autonomia para optar por quatro possibilidades na
utilização do ENEM: como fase única, como primeira fase, combinado com o Vestibular
próprio da instituição, ou para ocupar as vagas remanescentes do Vestibular. Ao mesmo
174
tempo o MEC busca ter o poder de centralizar os currículos do ensino médio e o perfil
esperado dos candidatos ao ensino superior e, além disso, unificar as vagas de ingresso nas
universidades numa mesma lista o que possibilitaria, segundo ele, maior mobilidade dos
estudantes e menor número de vagas ociosas.
A redução de vagas ociosas é uma preocupação maior para universidades privadas
que registraram 55% de ociosidade das vagas oferecidas em 2008 (INEP, 2008). As
universidades federais registraram apenas 4% de ociosidade, o dobro de 2007 quando era
de 2%, provavelmente por causa da expansão verificada de 9,3% de vagas oferecidas em
2008.
No seu primeiro ano em 2009, segundo o sítio do MEC, a seleção unificada contou
com 800 mil candidatos inscritos dos 2,5 milhões que fizeram a prova do ENEM.
Preencheram-se 85% das vagas federais oferecidas, sendo as 7 mil vagas sobrantes
destinadas para políticas afirmativas ou para o segundo semestre. Na lista de espera havia
ainda 136 mil candidatos.
Outro balanço foi o aumento da taxa de mobilidade. Antes apenas 1% dos
candidatos saia do seu Estado para cursar universidades federais. Em 2009, verificou-se
uma taxa de 25%. No entanto, o Estado que mais exportou alunos foi São Paulo, o Estado
mais rico da federação. Ainda há poucos dados sobre a mobilidade estudantil que possam
determinar se a lógica do Novo ENEM tira as poucas vagas dos candidatos dos Estados
mais pobres para estudantes mais bem preparados e capazes de custear seus estudos do sul
e do sudeste, ou se, ao contrário, haverá mais oportunidades para estudantes do norte e
nordeste, onde há menos vagas. Sendo São Paulo o Estado que mais exportou estudantes
em 2009, a primeira hipótese, desde já, apresenta-se como a mais provável. No entanto,
Ministro da Educação, alegava no site do MEC, que o mesmo ocorreu devido a pouca
oferta de vagas públicas em São Paulo, fato que deve ser levado em consideração (MEC,
2010a).
No final de 2009, na repactuação do MEC com as universidades dos recursos
REUNI, o Novo ENEM passou também a ser critério para recebimento de recursos, no caso
de assistência estudantil. Mais uma vez o MEC utiliza a atrelamento do financiamento a sua
política, limitando a autonomia das universidades. Segundo essa nova matriz de
distribuição de recursos, as universidades que utilizarem integralmente o ENEM para sua
175
seleção receberão 100% dos recursos de assistência estudantil, as que utilizarem o Novo
ENEM para 50% das suas vagas receberão 75% dos recursos, 50% dos recursos para as que
utilizarem parcialmente o ENEM e apenas 25% dos recursos para demais casos.
3.5. Um novo padrão de financiamento?
Amaral (2003) aponta quatro modelos possíveis de financiamento que são utilizados
no ensino superior: o financiamento incremental, o financiamento por fórmulas, o
financiamento contratual e o financiamento por subsídios às mensalidades dos estudantes.
Para o autor as quatro metodologias enquadram-se na filosofia eficientista e economicista
do neoliberalismo, pois não baseiam-se em uma análise das necessidades das instituições.
Negam também, portanto, o contido no artigo 55 da LDB que prevê que cabe a União
recursos suficientes para a manutenção e desenvolvimento das IFES.
As IFES hoje se utilizam dos três primeiros modelos. O financiamento incremental
determina que os recursos financeiros de um ano baseiam-se no ano anterior, um valor que
é definido pelo governo e aprovado pelo legislativo, sem a participação das instituições. É
esse o modelo adotado até hoje no que tange ao orçamento global destinado pelo MEC às
IFES.
O financiamento por fórmulas acontece por meio do estabelecimento de variáveis e
indicadores que, através de fórmulas matemáticas, vão determinar ao fim um percentual
que deve se destinar a cada instituição. Até 1994 não havia critérios públicos de
distribuição de recursos entre as universidades federais. A partir desse ano o decreto 1286
do MEC passa a determinar parâmetros baseados no número de alunos, na área da
instituição, e nos gastos dos anos anteriores para definir a distribuição dos recursos. Além
desses critérios que pretendem medir as necessidades, são levados em consideração
critérios de desempenho como a avaliação da pós-graduação fixada pela CAPES e a
titulação do corpo docente.
Esse modelo deveria ser revisto anualmente, como foi feito em 1999. A partir daí,
os critérios passam a se dividir entre ensino e pesquisa. Como componente de ensino passa
176
a se considerar basicamente o número de alunos, estimulando a expansão de vagas, e como
componente de pesquisa mantêm-se os mesmos critérios de produtividade da CAPES.
Esse cálculo é conhecido como Matriz ANDIFES, pois é fixado num acordo entre
essas duas partes. A ANDIFES passa a assumir, assim, um papel de reguladora na
distribuição do orçamento.
A partir de 2004, mudam-se mais uma vez os critérios de distribuição. Essa
necessidade de mudança é justificada pela ANDIFES pelas seguintes críticas ao modelo
anterior: estimulava competição desigual entre as IFES, obrigava ao crescimento de
matrículas sem contrapartida de recursos, desconsiderava investimentos em recuperação,
modernização e infra-estrutura.
O novo modelo aprovado teria como princípios: reconhecimento e valorização das
desigualdades entre as IFES, criação de parâmetros que estimulem a redução da evasão e da
retenção, a criação de cursos noturnos, de licenciaturas e de interiorização. Além desses, a
ANDIFES já aponta para um projeto de expansão das universidades a ser construído junto
ao MEC e fala da necessidade de manutenção da qualidade e correção de distorções.
A base do orçamento de manutenção passa a se basear na Unidade Básica de
Custeio. Essa unidade é calculada pela divisão do total de recursos das IFES pelo total da
unidade “aluno-equivalente”, chegando a um valor médio. Cada universidade multiplica
esse valor médio pelo seu total de “alunos-equivalente” chegando ao seu orçamento básico
de manutenção. O cálculo do aluno-equivalente por sua vez baseia-se no total de alunos
ativos ponderado pelas exigências do curso em que estão vinculados96
Esse novo modelo foi, na ocasião, duramente criticado pelo reitor da UFRJ,
professor Aluísio Teixeira. Isso porque, na prática, a construção de uma unidade para todas
as universidades, desconsidera a diferença entre elas. Em entrevista para o Jornal da
ADUFRJ de agosto de 2004, o reitor denunciava que, enquanto o valor médio, que servia
de base para o cálculo da partilha em 2003, era de R$778,66, o custo médio na UFRJ era de
R$ 1.152,78. Isso porque a universidade é uma instituição de grande porte, com uma infra-
. Outros critérios
também são previstos, como o número de diplomados e a oferta de vagas noturnas, de
acordo com os novos princípios da distribuição (JORNAL DA UFRJ, 2007).
96 Alunos de cursos como Medicina e Odontologia, por exemplo, teriam pesos maiores, pois têm custos maiores.
177
estrutura de pesquisa e tecnologia onerosa. Ou seja, o novo cálculo da matriz ANDIFES
passa a beneficiar universidades de ensino, com muitos alunos, mas com menos estrutura
de hospitais, laboratórios e, portanto, menor atuação na pesquisa e na extensão.
Além do orçamento básico de manutenção, o orçamento das universidades estaria
ainda dividido em: orçamento de qualidade e produtividade que manteria os critérios
anteriores com componentes de ensino e pesquisa na proporção de 80% para o ensino e
20% para a pesquisa; orçamento de equalização que repassaria recursos para investimentos
mediante apresentação de projetos para o MEC; e orçamento de políticas públicas e
expansão, também dependente da negociação de recursos extras.
No decreto 7233, de julho de 2010, prevê-se uma mudança na matriz de distribuição
a ser ainda definida por uma comissão paritária formada por representantes do MEC e da
ANDIFES. Já indica-se, porém, alguns parâmetros para esse distribuição no decreto, quais
sejam: número de matrículas, ingressantes e concluintes na graduação e na pós-graduação,
oferta de cursos de graduação e pós-graduação em diferentes áreas do conhecimento,
produção científica, tecnológica, cultural e artística e seu reconhecimento nacional e
internacional, o número de registro e comercialização de patentes, a relação entre número
de professores e alunos, o resultado no SINAES, a avaliação dos cursos de mestrado e
doutorado pela CAPES e a existência de programas de extensão com indicadores de
monitoramento. Esses parâmetros levam a elaboração de uma matriz de distribuição de
recursos atrelada aos critérios fixados pelo REUNI, aos critérios de produtividade vigentes,
à lógica de qualidade fixada pelo SINAES e pela CAPES e às políticas de inovação do
governo. Ganha mais recursos a universidade que melhor se adequar a política do MEC,
ampliando os constrangimentos para que não haja qualquer resistência das IFES a
implementação do projeto do governo, negando mais uma vez a autonomia universitária e o
princípio de que as universidades devem receber recursos suficientes para suas atividades, e
não “prêmios” por seus resultados e, sobretudo pela sua adesão, o que alimenta o pior da
tradição política autoritária brasileira.
Amaral (2003, 116) atenta para o fato de que essas metodologias criam
competitividade entre as instituições
178
(...) é preciso lembrar que o bolo financeiro é praticamente o mesmo de um ano para o outro, e quando uma instituição consegue aumentar a sua fatia é porque outras instituições, obrigatoriamente, ficaram com porções menores.
Além desses dois modelos de financiamento, a partir do decreto REUNI em 2006,
as IFES passam, também, a ter um financiamento contratual com o governo federal. Esse
tipo de financiamento caracteriza-se pelo estabelecimento entre a instituição e o Estado de
um contrato, onde a IFES se compromete com determinado programa, ou a atingir
determinados objetivos, recebendo, com isso, uma contrapartida financeira (ibidem, 112).
No caso do REUNI, como já mencionado, as universidades através de acordos de metas,
assinados com o governo federal comprometeram-se com uma expansão de vagas que pode
ultrapassar os 100%, como no caso da UFF, ampliando a relação professor aluno para 1
para 18 e a taxa de sucesso na graduação para 90%.
Em troca, segundo o documento Diretrizes do REUNI “o valor acrescido ao
orçamento de custeio e pessoal de cada universidade aumentará gradativamente, no período
de 5 anos, até atingir ao final o montante correspondente a 20% do previsto para 2007”. Já
os recursos de investimentos serão distribuídos entre as universidades de acordo com
critérios vinculados ao número de matrículas projetadas. Ou seja, quanto mais aumentam as
vagas mais as universidades receberão recursos. No caso do custeio, a ampliação de 20%
em relação a 2007 que se concluirá em 2012 desconsidera a inflação do período. Além
disso, como a expansão de vagas será maior que 20% em todas as IFES, necessariamente os
recursos de custeio por estudante vão se reduzir.
As tabelas abaixo demonstram o total de recursos prometido pelo MEC para o
REUNI e o impacto desses recursos no orçamento de custeio e investimento das IFES no
exercício de 2008, 2009 e o autorizado em 2010.
179
Tabela 12 – Previsão de verbas REUNI do MEC em valores nominais- em milhares de reais.
Previsão de acréscimo orçamentário a partir do decreto n. 6096/ 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Investimento 305.843,00 567.671,00 593.231,00 603.232,00 Custeio/ Pessoal 174.157,00 564.247,00 975.707,00 1.445.707,00 1.970.205,00
Total 480.000,00 1.131.918,00 1.568.938,00 2.048.939,00 1.970.205,00 Fonte: Diretrizes do REUNI – documento do MEC – Elaboração Própria Tabela 13 – Recursos totais de custeio das IFES que participam do REUNI:
Custeio Total
Autorizado Empenhado Pago
%Empenhado do
Autorizado
%Pago do Autorizado
2007 2.498.245.939,49 2.340.388.798,87 2.015.211.742,59 94% 86% 2008 1.959.882.419,94 1.833.157.085,62 1.626.240.715,90 94% 89% 2009 3.194.554.660,81 2.747.939.763,07 2.241.280.337,71 86% 82% 2010 3.849.358.213,00 - -
Ampliação 2007-2009
28% 17% 11%
Fonte: Câmara de Deputados– Corrigidos para valores de janeiro de 2010 pelo IGP-DI – Elaboração Própria Tabela 14 – Impacto do REUNI no total do orçamento de custeio destinado às IFES participantes do REUNI:
REUNI Impacto do REUNI no custeio total
Autorizado Empenhado Pago Autorizado Empenhado Pago
- - -
2008 81.173.610,29 74.082.635,29 34.894.599,10 4% 4% 2% 2009 198.882.295,72 196.753.825,41 141.095.206,41 6% 7% 6% 2010 441.359.418,00 - -
Fonte: Câmara de Deputados – Corrigidos para valores de janeiro de 2010 pelo IGP-DI – Elaboração própria
180
Tabela 15 – Recursos totais de investimento das IFES que participam do REUNI:
Investimento Total
Autorizado Empenhado Pago
%Empenhado do Autorizado
%Pago do Autorizado
2007 668.737.421,70 608.527.524,84 179.142.445,17 91% 29% 2008 3.110.319.130,35 2.793.395.364,23 2.370.226.949,70 90% 85% 2009 1.731.724.002,26 1.554.366.679,59 439.361.472,28 90% 28% 2010 1.865.996.132,01 - -
Ampliação 2006-2009
259% 255% 245%
Fonte: Câmara de Deputados – Corrigidos para valores de janeiro de 2010 pelo IGP-DI – Elaboração própria
Tabela 16 – Impacto do REUNI no total do orçamento de investimento destinado às universidades federais:
REUNI Impacto do REUNI no
investimento total Autorizado Empenhado Pago
2008 256.394.726,00 122.593.498,00 5.254.423,00 10% 5% 0,27% 2009 964.850.939,00 835.465.584,00 208.044.724,00 63% 61% 54% 2010 944.698.504,00 53%
Fonte: Câmara de Deputados – Corrigidos para valores de janeiro de 2010 pelo IGP-DI – Elaboração própria
As tabelas revelam que no primeiro ano do REUNI os recursos autorizados pelo
governo ampliavam o orçamento total de custeio das universidades em 28% e ampliaram 2
vezes e meia os patamares de investimento verificados em 2007, antes do REUNI. No
entanto, as tabelas também revelam as dificuldades encontradas nas IFES para gastar esses
recursos.
No caso do custeio, em 2008, 94% do autorizado foi empenhado e desse empenho
86% dos recursos foi executado durante o ano, ficando o que sobrou nos restos a pagar do
ano seguinte. Os 6% que não foram sequer empenhados, voltaram para os cofres da União,
num total de cerca de 200 milhões de reais. Essa quantia é bastante alta. Para se ter um
parâmetro o maior orçamento executado de custeio no ano, o da UNB, foi de 309,2 milhões
de reais e o segundo maior, da UNIFESP foi de 132,8 milhões de reais, quase a metade do
total devolvido pelas IFES.
181
O caso do investimento é ainda pior. Em 2008, 10% do orçamento total não foi
sequer empenhado voltando para o MEC. Dos recursos empenhados em 2007 e 2010
apenas 30% foi efetivamente executado ficando todo o restante nos restos a pagar, o que
explica atrasos nas obras que deveriam garantir a infraestrutura da expansão. Em 2008 a
situação atípica deve ser atribuída ao adiantamento de recursos realizado em 2007 e
empenhado em nome das fundações.
Como as universidades não têm conseguido gastar os recursos, nos anos
subseqüentes a 2008 os repasses do MEC começaram a reduzir, ficando abaixo do que
estava fixado nos acordos de metas.
Tabela 17- Repasse do REUNI para a UFRJ entre 2007 e 2010 – Em milhares de reais97
2007 2008
Diferença entre o
acordo e o autorizado
2009
Diferença entre o
acordo e o autorizado
2010
Diferença entre o
acordo e o autorizado
Previsto no Acordo de Metas
Custeio 17,79
54,41
93,02
Investimento 28,77
28,77
29
Autorizado na LOA
Custeio 11,52 -35% 32,96 -39% 34,64 -63%
Investimento 17,26 11,51 0% 17,34 -40% 20,3 -30% Fonte: Siga Brasil – Elaboração Própria Tabela 18 - Diferença entre o Acordo de Metas e o repasse anual pela LOA do REUNI: total entre 2007 e 2010 na UFF
Total Repasse REUNI 2007-2010 Acordado Autorizado Diferença Faltam 168.956.671,27 89.234.396,74 -47% 79.722.274,53
Fonte: Acordo de Metas, LOA 2010 e Siga Brasil – Elaboração própria
A pergunta óbvia que surge a partir dessa constatação é: se as universidades vivem
uma situação de subfinanciamento há anos, porque quando surgem maiores recursos elas
devolvem esses recursos ao MEC? Algumas hipóteses podem ser levantadas. O reitor da
UFRJ, professor Aluísio Teixeira, alegava em reunião com a ADUFRJ em setembro de 97 Os recursos de 2007 são um adiantamento dos recursos de 2008. Se somados os recursos de investimento de 2007 e 2008 são exatamente os 28,77 milhões previstos no acordo de metas.
182
2009, que a universidade não contava com um corpo de técnicos capazes de preparar os
projetos de novas instalações físicas, obrigando a universidade a licitar a elaboração dos
projetos e a execução e a fiscalização das obras, o que tornava o processo muito demorado.
Ainda que elementos como esse possam ser parte da explicação, a situação se remete aos
limites da autonomia da gestão financeira das universidades.
Foi em 2007 que os primeiros aportes financeiros do REUNI começaram a ser
repassados para as universidades que tiveram aprovados seus projetos. Os recursos de 2007
foram adiantamentos dos recursos de 2008, ano no qual iniciava-se efetivamente o REUNI
e não entraram nas unidades orçamentárias desde o início do ano, sendo repassados por
transferência no segundo semestre.
No já citado acórdão 2731 de 2008, que tratava da relação entre universidades e
fundações de apoio, o TCU constatou que todos os recursos de investimento repassados
para as IFES em 2007 foram empenhados em nome das fundações de apoio 98
98 Isso também pode ser visto claramente no gráfico 1 deste trabalho. Nota-se pelo gráfico o crescimento vertiginoso de repasses financeiros das IFES para as fundações em dezembro de 2007.
, o que
também pode ser confirmado na leitura dos Relatórios de Gestão das IFES. Assim, o TCU,
dá destaque aos recursos do REUNI, proibindo que eles sejam empenhados em nome das
fundações. Reafirma que a compreensão de “desenvolvimento institucional” adequada à
Constituição exclui obras e serviços de engenharia que, portanto, não devem ser executados
por fundações de apoio. Com isso as universidades perdem o recurso da “autonomia às
avessas”, isto é, burlar as dificuldades impostas pela legislação por meio da privatização
dos recursos via fundações de apoio. Se em 2008 o empenho em nome das fundações
pudesse ser feito, provavelmente as universidades teriam recorrido a esse expediente, não
devolvendo o dinheiro aos cofres do MEC. A conseqüência disso, porém, seria que todas as
ações de investimento do REUNI seriam realizadas sem licitação, sem controle do poder
público, o que poderia levar a esquemas de corrupção e desvio de recursos, além da perda
de recursos REUNI que seriam pagos às fundações a título de taxa de serviço, taxas que,
apesar de consideradas ilegais pelo TCU, continuam existindo e oscilam entre 5% e 10%.
A solução seriam mudanças na legislação, garantindo dotações globais para as
universidades e repasse dos recursos não utilizados para anos ulteriores, o que afirmaria
uma autonomia da gestão financeira de fato.
183
Apesar das mudanças na execução orçamentária trazidas pelo decreto 7233/2010,
para receber os recursos perdidos, sobretudo de investimentos, nos decorrer dos primeiros
anos do REUNI as universidades terão que executar os recursos empenhados, empenhar a
totalidade dos recursos de 2010 e 2011 e aí então reivindicar novos aportes que constavam
nos acordos de metas. Dependem, então, das garantias verbais da prorrogação do
recebimento de recursos feito pelo MEC, em meio a uma mudança de governo, que pode
mudar os rumos do Ministério. O próprio ministro Fernando Haddad, num lapso de
sinceridade, declarou em 10 de agosto desse ano, durante inauguração de novo prédio da
UNB, que os recursos do REUNI estão esgotados e que seu sucessor vai precisar buscar
novas fontes de recursos para dar continuidade ao programa” (JORNAL DA ADUFRJ, 14
de setembro de 2009).
Mas se fossem executados até o fim, os recursos do REUNI seriam suficientes para
resolver os problemas históricos das universidades e garantir uma expansão com qualidade?
Independente das situações particulares das universidades é importante reafirmar
que um incremento de 20% no orçamento de custeio para uma expansão de estudantes que
pode chegar a mais de 100% é, na prática, não uma ampliação de recursos mas, ao contrário,
uma redução do orçamento de custeio por estudante.A ampliação de pessoal é também,
como já analisamos, na prática, uma redução, já que vai se ampliar o número de estudantes
por professor. Portanto, ainda que haja uma ampliação absoluta dos recursos, há uma
redução relativa dada a expansão de vagas e de cursos exigida pelo REUNI.
Mas vejamos o caso da UFRJ. A universidade acumula historicamente, todos os
anos, déficits no seu orçamento de custeio e de investimento. Em 2008 houve uma redução
desse montante, mas em 2009, apesar dos recursos REUNI, a dívida anual voltou a subir,
como exposto na tabela 17.
Tabela 19 – Dívida anual da UFRJ – Custeio e Investimento
Dívida UFRJ - Custeio e Investimento
2006 19.656.351,12 2007 41.824.805,64 2008 11.338.967,24 2009 30.483.720,00
Fonte: Dados da PR-3 UFRJ corrigidos pelo IGP-DI– Elaboração Própria
184
Dessa dívida 13,4 milhões referem-se a unidade orçamentária UFRJ99
Comparação 2009-2010 por fonte (custeio+capital)
. O que mais
chama atenção na composição do déficit são 5 milhões referentes a serviços de energia
elétrica remanescente de 2008, 5,3 milhões referentes a auxílio financeiro a estudantes/
bolsas e 4,4 milhões referentes a pagamento de terceiros e obrigações tributárias e
contributivas, isto é, a funcionários terceirizados.
O restante da dívida foi contraído pela unidade orçamentária do complexo hospitalar
da UFRJ e refere-se ao gasto com “outros serviços terceiros pessoa física HU” da ordem de
15 milhões e “obrigações tributárias e contributivas HUs” da ordem de 3 milhões de reais.
Ou seja, a falta de pessoal concursado onerou o custeio da universidade que teve
que contratar e pagar pessoal com esses recursos, somando um total de 22,4 milhões do
déficit de 2009.
Na proposta orçamentária para 2010, apresentada pela reitoria da universidade no
Conselho Universitário de 9 de dezembro de 2009, chama atenção que o esforço de
ampliação do orçamento é maior em recursos próprios, ou seja, arrecadado por convênios e
contratos pela universidade, do que em recursos provenientes da União.
Tabela 20 – Orçamento executado em 2009 e previsto para 2010 na UFRJ, por fonte
2009 2010 Aumento
Tesouro 174.998.637,50 199.619.693,00 14,07%
Receita Própria 21.658.609,98 26.856.133,00 24%
Fonte: PR- 3 UFRJ – atualizado para 2010 com a previsão de inflação do Banco Central de 4,4%.– Elaboração Própria
Passemos à questão dos investimentos. Concomitante à implementação do REUNI
na UFRJ, a universidade aprovou um Plano Diretor que propõe uma reordenação espacial
na universidade, na expectativa de concentrar todas as unidades da cidade do Rio de Janeiro
99 A partir de 2009 os hospitais universitários passaram a ser unidades orçamentárias separadas das universidades. No caso da UFRJ, criou-se o complexo hospitalar, unidade orçamentária que reúne todos os hospitais e unidade de assistência à saúde da universidade.
185
no campus do Fundão, acabando com as atividades acadêmicas nos demais campi100
Total Investimento (exceto projetos)
. Sem
entrar em todos os aspectos políticos da proposta, não há dúvida no Plano Diretor da
necessidade de uma significativa ampliação de prédios para atividades acadêmicas,
bibliotecas, alojamentos e restaurantes estudantis, bem como infraestrutura de transporte,
comunicação entre outros, para comportar a transferência das unidades associada à
expansão exigida pelo REUNI.
A única fonte de recursos apresentada no Plano Diretor da universidade são os
recursos do REUNI. A comparação entre os recursos previstos pelo acordo de metas do
REUNI e os necessários para a execução do Plano Diretor demonstram que os recursos
REUNI são insuficientes (tabela 19) Sem mencionar as dificuldades na execução, o que
coloca em risco, conforme já exposto, que os recursos de investimento sejam recebidos em
sua totalidade.
Tabela 21 – Comparação entre recursos previstos pelo REUNI e necessários ao Plano Diretor na UFRJ
Valor Recursos garantidos
REUNI 115.106.225,00
Expansões acadêmicas com valores definidos 84.651.745,45
Restaurantes e residências (exceto a
FAU/ EBA/IPPUR) 43.110.241,22
Equipamentos e mobiliário 5.572.617,00
Infraestrutura e instalações 7.572.075,56
Total de recursos para o Plano Diretor 140.906.679,23
Situação de recursos -25.800.454,23 Fonte: Plano Diretor UFRJ e Acordo de Metas– Elaboração Própria
100 Os campi da Praia Vermelha e do Colégio de Aplicação, na Zona Sul da cidade, da Faculdade de Direito, da Escola de Música e do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, no Centro, teriam novas funções não muito especificadas no Plano Diretor. Em linhas gerais propõe-se a construção de centros culturais nesses espaços.
186
Os dois exemplos do déficit de custeio anual e da insuficiência de recursos e
indefinição de fontes para a implementação do Plano Diretor, no caso particular da UFRJ,
demonstram que os recursos do REUNI continuam não sendo recursos suficientes para a
manutenção e desenvolvimento das IFES. Para realizar seu Plano Diretor, a UFRJ vai ter
que expandir sua capacidade de captação de recursos próprios, o que evidencia que os
novos aportes de recursos, tão festejados, não significaram uma virada nos problemas de
financiamento das universidades.
Dados todos os atrasos e dificuldades de execução dos recursos, em agosto de 2009
o MEC propôs critérios de repactuação dos recursos REUNI para 2010 e 2011. Essa
repactuação adicionaria mais 1,2 bilhões aos recursos REUNI para custeio e pessoal,
metade da ampliação original de 20%, ou seja, um aumento de um terço sobre os recursos
de 2007. Deve-se descontar desses novos aportes, porém, a inflação de 21% acumulada
desde o início de 2007, pelo índice IGP-DI, que foi desconsiderada quando se fixaram os
recursos anuais que deveriam ser repassados às universidades. Essa ampliação de 50% dos
recursos originais corrige, portanto, essa inflação e deve, ainda, levar em conta a inflação
de 2011 e do segundo semestre de 2010. O acréscimo real de recursos nessa repactuação é,
assim, pequeno em relação ao valor inicial do programa.
Todos esses dados nos levam a crer que houve uma mudança na lógica de
financiamento, que passa a ser contratualizada, o que além de ser um golpe (mais um) na
autonomia universitária segue não garantindo os recursos necessários às universidades, no
sentido inscrito na Constituição Brasileira.
Os recursos de investimento são insuficientes para as necessidades de expansão e os
recursos de custeio ampliados em 20% em universidades que pretendem dobrar o número
de alunos significam, na prática, uma redução proporcional de recursos, ainda que
nominalmente tenham se ampliado.
Além disso, e talvez o mais importante, é que a lógica da distribuição dos recursos
do fundo público brasileiro não se alterou, seguindo sendo desviada para o capital
financeiro, o que faz com que o aumento do PIB não se reflita na ampliação de recursos
para as universidades. Com isso não há qualquer garantia de que os recursos prometidos
cheguem, já que o financiamento público das universidades públicas continua não sendo
prioridade.
187
CONCLUSÃO
Balanço parcial do REUNI: à guisa de conclusão.
Esse trabalho foi concluído no fim do primeiro semestre de 2010. Considerando que
o primeiro adiantamento de recursos do REUNI foi realizado em 2007 e que o primeiro ano
oficial do programa foi em 2008, ainda é cedo para termos dados conclusivos sobre o que
de fato mudou nas universidades federais após sua implementação. Os últimos dados
centralizados pelo MEC sobre o ensino superior são do censo de 2008 e os relatórios de
gestão das universidades são de 2009. Ainda temos até 2012 pela frente, em que pese que o
resultado das eleições presidenciais no fim de 2010 pode alterar em diversas gradações os
rumos do programa.
Ainda assim, todas as análises parciais não só do REUNI como do conjunto de
medidas da contra-reforma universitária mais recentes, que no governo Lula foram
efetivamente aprofundadas apenas a partir do segundo mandato, demonstram de forma
inequívoca que a ampliação de vagas proposta não altera as características do ensino
superior no Brasil, marcado pela privatização e no período mais recente pelo
subfinanciamento das universidades públicas.
A história do ensino superior no Brasil acompanha a trajetória da nossa formação
sócio-histórica. A criação tardia das universidades reflete nossa heteronomia, marca central
do papel do país dentro do capitalismo mundial. O avanço do neoliberalismo como contra
ofensiva do capital reatualiza e reconfigura esse papel.
A contra-reforma universitária recente, ao mesmo tempo em que guarda
continuidade com a “reforma” da ditadura, que pretendia adequar o ensino superior às
necessidades do capital monopolista num país de capitalismo dependente, tem também em
relação a ela rupturas. Agora, a contra-reforma universitária pretende atender não só aos
interesses do capitalismo central imperialista, mas, ao capitalismo neoliberal reestruturado
que avança sobre os direitos dos trabalhadores e sobre o fundo público dos países para
garantir sua sobrevida em meio a crises estruturais cada vez mais frequentes.
188
Assim, as universidades públicas, mais do que nunca, se mercantilizam no mesmo
processo pelo qual passam as demais políticas sociais, geridas e financiadas num mix
público-privado. Ao mesmo tempo, o governo injeta cada vez mais recursos públicos em
universidades privadas para favorecer classes proprietárias que como diz Oliveira (2010, 46)
“não as chamemos de burguesia, que era até uma designação honrosa – seus maiores
protagonistas não passam de gangsters, que aparecem também no noticiário policial pelos
golpes contra seus concorrentes, por via do fundo público”.
Além desses processos, que garantem maiores lucros ao capital de forma imediata
com a abertura de novos espaços de valorização, a universidade também é chamada a
mudar seus conteúdos para adequá-los às necessidades de produção e, sobretudo,
reprodução de inovações tecnológicas e formação de trabalhadores intelectuais para as
necessidades do capitalismo contemporâneo.
O REUNI, nesse contexto, só tem aprofundado uma lógica gerencial de gestão com
financiamento por contrato baseado em resultados e metas. Esses mecanismos reduzem
ainda mais o espaço de autonomia universitária, princípio que mesmo que nunca
completamente garantido no Brasil, visa permitir o comprometimento dos interesses da
universidade com a maioria da população e não com o mercado ou o governo. Essa lógica
de financiamento e gestão, perseguida desde o governo Cardoso, que o REUNI generaliza,
coloca a universidade pública brasileira a serviço dos interesses do capitalismo atual, com a
facilitação garantida pelo governo. O financiamento por contrato de gestão funciona como
uma chantagem para o conjunto da comunidade universitária. Ainda que parte dela seja
cúmplice consciente das mudanças promovidas, muitos são levados pela suposta
inevitabilidade das adequações e a ilusão da autonomia, em troca de recursos.
Ao mesmo tempo, a expansão de vagas e de assistência estudantil, ainda que
focalizada, vão servir à coesão social e às ideologias de ascensão social via educação, num
período de agudização das expressões da Questão Social, do desemprego estrutural e da
desigualdade. Esse acesso massificado, todavia, significa uma redução da qualidade
defendida pelos movimentos sociais e inscrita na Constituição de 1988, que é calcada na
indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Também não garante princípios
pedagógicos básicos como o ensino presencial, condições infraestruturais adequadas,
professores suficientes. Também é importante ressaltar, mais uma vez, que ainda que
189
nominalmente haja uma ampliação de recursos financeiros e concursos públicos o que o
REUNI propõe, na prática é uma redução proporcional do número de docentes nas
universidades federais bem como uma redução proporcional dos recursos de custeio.
Possivelmente o REUNI não teria sido tão abnegadamente aceito se o governo não
fosse do Partido dos Trabalhadores, com uma figura com tanto lastro de confiança dos
setores mais progressistas das universidades como Lula. Também possivelmente o REUNI
não teria sido tão unanimidade se não estivesse sendo implementado após um período de
grande restrição orçamentária para as universidades federais, como foi o governo Cardoso.
Mas é importante não perder de vista que a ampliação nominal dos recursos, além de
desproporcional à expansão proposta pelo REUNI, só foi possível num período de
crescimento econômico que gerou para o governo “sobras” de caixa. Na análise da relação
dos recursos para as universidades com o PIB, fica claro que não houve qualquer inversão
de prioridades no governo Lula, que segue pagando religiosamente juros e amortizações da
dívida pública com o capital financeiro.
Mesmo com todas essas questões, houve, e ainda há ainda que minoritária,
resistência à implementação do REUNI nas universidades, principalmente entre setores do
movimento estudantil e docente. Ainda que o governo tenha jogado alto para cooptação do
movimento sindical e estudantil, a crítica segue viva e as contradições começam a aparecer.
Podemos comparar o REUNI a uma bomba relógio pronta para explodir em 2012, quando
as universidades estiverem ampliadas e sem garantias de financiamento. É dessas
contradições, com o protagonismo dos novos estudantes, técnico-administrativos e docentes,
que surgirão novas resistências e novas mobilizações pela universidade pública, autônoma e
socialmente referenciada na maioria da população. Afinal a história não pára, ou, como
diria o poeta: “a história é um carro alegre, cheia de um povo contente e que atropela,
indiferente, todos aquele que a negue101
101 Canción por unidad latinoamericana do cantor cubano Pablo Milanés (1975) na versão de Chico Buarque (1978).
”.
190
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