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66 CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 204 uase sempre confundidas com as cobras, as anfisbênias são na verdade um tipo diferente Q de réptil, com hábitos fossoriais: vivem em túneis subterrâneos, que escavam comprimindo o solo com movimentos da cabeça. A adaptação à vida no inte- rior do solo exigiu especializações marcantes, como o crânio mais rígido, o corpo alongado e sem mem- bros na maioria das espécies (figura 1) e a pele pra- ticamente separada do corpo. Esse curioso réptil também é capaz de se movimentar para frente ou para trás com a mesma facilidade, o que inspirou o nome científico do grupo, Amphisbaenia, baseado nas raízes gregas amphi (duplo) e baen (caminhar). Embora sejam externamente semelhantes às co- bras, as anfisbênias apresentam características comuns também aos lagartos e, por isso, sua posição taxonômica – sua classificação – foi revista várias vezes nos últimos séculos. Em 1758, o naturalista sueco Carl von Linné (1707-1778) incluiu tais ani- mais no mesmo grupo das serpentes, mas outros pesquisadores da época classificaram como la- gartos certas espécies portadoras de membros ante- riores, como as do gênero mexicano Bipes, com pa- tas anteriores bem desenvolvidas. A confusão du- rou até meados do século 20, quando foi propos- to que as anfisbênias deveriam ocupar uma cate- goria distinta dos lagartos e serpentes, a ordem Am- phisbaenia. No entanto, ainda hoje as relações de parentesco entre esses grupos de répteis não estão bem estabelecidas. A habilidade de se deslocar para diante ou para trás – aliada à semelhança entre a extremidade da HERPETOLOGIA Répteis são modelo para estudar animais que se adaptam a condições extremas Figura 1. As cobras-de- duas-cabeças têm o corpo alongado, delgado e constituído por anéis, como as da espécie Amphisbaena mertensi (na imagem) FOTO DE GIUSEPPE PUORTO Popularmente chamadas de ‘cobras-de-duas-cabeças’, as anfisbênias são répteis sem membros, de corpo alongado e escamado e visão reduzida. Embora semelhantes às serpentes, apresentam características comuns aos lagartos, o que levou a várias revisões em sua classificação. Vivem em galerias no solo, que constroem com movimentos da cabeça, graças a um crânio altamente modificado. Esta e outras especializações para a vida subterrânea fazem das anfisbênias um exemplo excelente para o estudo de mudanças sofridas por organismos que se adaptam a modos de vida extremados. Por Maria Eliana C. Navega-Gonçalves (recém-doutora), do Departamento de Zoologia da Universidade de São Paulo. Anfisbênias: quem são essas desconhecidas? Anfisbênias: quem são essas desconhecidas? PRIMEIRA LINHA

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66 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 4 • n º 204

PR IME IRA LINHA

uase sempre confundidas com as cobras, as

anfisbênias são na verdade um tipo diferenteQde réptil, com hábitos fossoriais: vivem em túneis

subterrâneos, que escavam comprimindo o solo com

movimentos da cabeça. A adaptação à vida no inte-

rior do solo exigiu especializações marcantes, como

o crânio mais rígido, o corpo alongado e sem mem-

bros na maioria das espécies (figura 1) e a pele pra-

ticamente separada do corpo. Esse curioso réptil

também é capaz de se movimentar para frente ou

para trás com a mesma facilidade, o que inspirou o

nome científico do grupo, Amphisbaenia, baseado

nas raízes gregas amphi (duplo) e baen (caminhar).

Embora sejam externamente semelhantes às co-

bras, as anfisbênias apresentam características

comuns também aos lagartos e, por isso, sua posição

taxonômica – sua classificação – foi revista várias

vezes nos últimos séculos. Em 1758, o naturalista

sueco Carl von Linné (1707-1778) incluiu tais ani-

mais no mesmo grupo das serpentes, mas outros

pesquisadores da época classificaram como la-

gartos certas espécies portadoras de membros ante-

riores, como as do gênero mexicano Bipes, com pa-

tas anteriores bem desenvolvidas. A confusão du-

rou até meados do século 20, quando foi propos-

to que as anfisbênias deveriam ocupar uma cate-

goria distinta dos lagartos e serpentes, a ordem Am-

phisbaenia. No entanto, ainda hoje as relações de

parentesco entre esses grupos de répteis não estão

bem estabelecidas.

A habilidade de se deslocar para diante ou para

trás – aliada à semelhança entre a extremidade da

HERPETOLOGIA Répteis são modelo para estudar animais que se adaptam a condições extremas

Figura 1.As cobras-de-duas-cabeçastêm o corpoalongado,delgadoe constituídopor anéis,como as daespécieAmphisbaenamertensi(na imagem)

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Popularmente chamadas de ‘cobras-de-duas-cabeças’, as anfisbênias são répteis sem membros, de corpo

alongado e escamado e visão reduzida. Embora semelhantes às serpentes, apresentam características

comuns aos lagartos, o que levou a várias revisões em sua classificação. Vivem em galerias no solo,

que constroem com movimentos da cabeça, graças a um crânio altamente modificado. Esta e outras

especializações para a vida subterrânea fazem das anfisbênias um exemplo excelente para o estudo

de mudanças sofridas por organismos que se adaptam a modos de vida extremados. Por Maria Eliana

C. Navega-Gonçalves (recém-doutora), do Departamento de Zoologia da Universidade de São Paulo.

Anfisbênias: quem sãoessas desconhecidas?

Anfisbênias: quem sãoessas desconhecidas?

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maio de 2004 • C I Ê N C I A H O J E • 6 7

cauda e a cabeça de algumas espécies – originou o

nome popular ‘cobra-de-duas-cabeças’. A pele das

anfisbênias é constituída por escamas tipicamente

arranjadas em anéis, ao longo do corpo e da cauda. O

mais extraordinário, porém, é que essa pele quase

não apresenta conexões com os tecidos subjacentes,

funcionando como um tubo no qual o corpo do ani-

mal desliza com liberdade para a frente e para trás.

Essa característica, aliada à textura lisa da pele, que

minimiza o atrito com o solo, facilita o rastejamento

e garante a eficiência da locomoção nos túneis.

A morfologia da cabeça nas anfisbênias está rela-

cionada com a maneira como cada espécie realiza a

escavação, segundo estudos do zoólogo norte-ameri-

cano Carl Gans, da Universidade de Michigan. As-

sim, espécies com a cabeça mais ou menos arredon-

dada exibem uma forma de escavação considerada

não-especializada. Já as que têm a cabeça em forma

de pá ou as que apresentam uma quilha vertical no

crânio são consideradas especializadas para a esca-

vação (figura 2). As formas não especializadas vivem

perto da superfície, onde a escavação do solo é relati-

vamente mais fácil, enquanto as formas especializa-

das ocorrem em solos compactados mais profundos.

Para suportar as investidas da cabeça durante o

processo de escavação dos túneis, esses répteis con-

Figura 2. A cabeça das anfisbênias pode serarredondada, como na Amphisbaena vermicularis (1),ter forma de pá, como na Leposternon microcephalum(2), ou apresentar uma quilha vertical, como na Anopskingii (3) – vistas dorsal (A), lateral (B) e ventral (C)

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LVES Figura 3.

Vista dorsaldo crânio deAmphisbaenamertensimostrandoas suturas, comforma de dedos,entre os ossosda regiãoanterior (A),e vista lateraldo crânioe mandíbulada espécie,mostrandoos dentesrecurvados epontiagudos (B)

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tam com um crânio extremamente rígido, com os-

sos unidos por suturas digitiformes, que aumentam

a adesão entre eles na frente da cabeça (figura 3). Há

ainda uma sobreposição desses ossos, que parece

fortalecer a parte anterior do crânio, usada como

instrumento primário de escavação e, portanto, su-

jeita a impactos constantes.

As cobras-de-duas-cabeças são predadoras de in-

setos, vermes e até de pequenos vertebrados (figura

4). Isso é possível graças a mandíbulas potentes, com

dentes fortes e recurvados, capazes de arrancar pe-

daços de uma presa grande demais para ser engolida

inteira. As presas são localizadas pelo olfato bem

desenvolvido e/ou através da captação de vibrações

no solo, já que os olhos reduzidos e recobertos por

escamas são ineficientes para essa tarefa.

Mecanismos de defesaAs espécies de cauda longa apresentam uma notá-

vel constrição na parte posterior do corpo, caracteri-

zada por um anel mais estreito, que indica o local de

autotomia (auto-amputação) da cauda (figura 5). Ao

desprender parte da cauda, o animal mutilado pro-

cura fugir enquanto o seu predador ou agressor dis-

trai-se com a porção destacada da cauda, que se move

rapidamente de um lado para o outro por vários mi-

nutos. Essa tática parece ser bastante eficiente como

forma de preservação da vida, pois é relativamente

comum encontrar exemplares vivos com a cauda

autotomizada. No entanto, só pode ser aplicada uma

vez, pois a cauda das cobras-de-duas-cabeças não se

regenera, ao contrário do que ocorre nos lagartos –

nas lagartixas, por exemplo, as caudas são reconsti-

tuídas algumas semanas depois da auto-amputação.

Em espécies de cauda curta não ocorre a autoto-

mia caudal. Um exemplo disso é Amphisbaena alba,

uma das maiores e mais conhecidas anfisbênias do

Brasil (50 cm ou mais de comprimento). No entan-

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Figura 6.Amphisbaenaalba emposição dedefesa prontapara morder

to, essa espécie exibe um comportamento interes-

sante: ao ser ameaçada, levanta ao mesmo tempo a

cauda e a cabeça, mantendo a boca aberta, pronta

para morder (figura 6).

Hábito fossorial dificulta estudoOs mecanismos reprodutivos e outros aspectos da

biologia e da ecologia desses escavadores especiali-

zados são praticamente desconhecidos. Isso decorre

do hábito de vida subterrâneo desses animais, que

restringe as observações na natureza e dificulta a co-

leta de exemplares para pesquisas em laboratório.

São conhecidas atualmente cerca de 160 espé-

cies de anfisbênias, distribuídas no sul da Europa,

oeste da Ásia, África, América do Norte, América

do Sul e Antilhas. No entanto, esse número é certa-

mente maior, como indicam – citando apenas o ca-

so do Brasil – os espécimes resgatados durante o

enchimento de represas construídas para aproveita-

mento hidrelétrico nos últimos anos, o que tem per-

mitido a descrição de novas espécies e contribuído

para a obtenção de dados ecológicos sobre as mes-

mas. Esse fato revela a necessidade de valorizar os

esforços para a coleta e o aproveitamento desses

exemplares, já que as alterações impostas ao meio

ambiente pelas atividades humanas podem fazer

com que espécies desapareçam sem que tenham

sido estudadas ou, pior, sequer registradas.

Por ser raro encontrar um desses animais, os pou-

cos espécimes encaminhados à Universidade de São

Paulo são destinados a pesquisas diversas nas áreas

de anatomia, histologia, citologia e genética. Desta-

cam-se, entre os estudos realizados até o momento,

o do aparelho respiratório, que revelou ser o pulmão

direito muito reduzido ou ausente em algumas es-

pécies de anfisbênias, característica que pode ser

explicada pela acomodação das vísceras em um cor-

po alongado e com pouco diâmetro interno. Em

contrapartida, o pulmão esquerdo é extremamente

alongado e apresenta duas regiões distintas: a ante-

rior é densamente subdividida em câmaras respira-

tórias e encarrega-se das trocas gasosas, enquanto

a posterior, com poucas câmaras respiratórias, pare-

ce funcionar mais como um reservatório de ar, com-

pensando a baixa disponibilidade de oxigênio nos

ambientes subterrâneos.

Importante papel ecológicoEmbora não existam estudos nesse sentido, é pos-

sível deduzir que esses répteis têm um papel am-

biental tão importante quanto o das minhocas, pois,

ao realizar a escavação permanente do solo, eles

contribuem para a penetração da água e do ar no

mesmo, favorecendo o desenvolvimento da vege-

tação. No entanto, a semelhança externa com as

serpentes, aliada à crença popular (incorreta) de

que são perigosos, faz com que esses animais ino-

fensivos sejam sumariamente exterminados quan-

do emergem de suas galerias encharcadas após a

chuva, ou quando são trazidos à tona pela enxada

ou pelo arado.

O que mais atrai os cientistas – entre eles a auto-

ra deste artigo – é o fato de serem as anfisbênias um

exemplo excelente para o estudo de modificações

sofridas por aqueles organismos que se adaptam a

um modo de vida de características extremas. Cabe

a eles a tarefa de continuar desvendando a biologia

desses extraordinários escavadores, inclusive para

ampliar a divulgação de informações sobre essas

espécies e assim ajudar em sua preservação. ■

Figura 5. Cauda de Amphisbaena mertensi em vistaventral, mostrando (seta) o anel de autotomia(onde ocorre a auto-amputação), mais estreito

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Figura 4.Amphisbaenaalbaalimentando-sede larvade inseto FO

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