38

antropologia-4

Embed Size (px)

DESCRIPTION

ANTROPOLOGIA

Citation preview

  • Montes Claros/MG - 2015

    Carlos Caixeta de Queiroz Fabiano Jos Alves de Souza

    2 edio atualizada porCarlos Caixeta de Queiroz

    Antropologia iv

    2 EDIO

  • Copyright : Universidade Estadual de Montes Claros

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES

    2015Proibida a reproduo total ou parcial. Os infratores sero processados na forma da lei.

    EDITORA UNIMONTESCampus Universitrio Professor Darcy Ribeiro, s/n - Vila Mauricia - Montes Claros (MG) - Caixa Postal: 126 - CEP: 39.401-089

    Correio eletrnico: [email protected] - Telefone: (38) 3229-8214

    Catalogao: Biblioteca Central Professor Antnio Jorge - UnimontesFicha Catalogrfica:

    REITORJoo dos Reis Canela

    VICE-REITORAAntnio Alvimar Souza

    DIRETOR DE DOCUMENTAO E INFORMAESJnio Marques Dias

    EDITORA UNIMONTESConselho ConsultivoAntnio Alvimar SouzaCsar Henrique de Queiroz PortoDuarte Nuno Pessoa VieiraFernando Lolas StepkeFernando Verd PascoalHerclio Mertelli JniorHumberto GuidoJos Geraldo de Freitas DrumondLuis JobimMaisa Tavares de Souza LeiteManuel SarmentoMaria Geralda AlmeidaRita de Cssia Silva DionsioSlvio Fernando Guimares CarvalhoSiomara Aparecida Silva

    CONSELHO EDITORIALngela Cristina BorgesArlete Ribeiro NepomucenoBetnia Maria Arajo PassosCarmen Alberta Katayama de Gasperazzo

    Csar Henrique de Queiroz PortoCludia Regina Santos de AlmeidaFernando Guilherme Veloso QueirozLuciana Mendes OliveiraMaria ngela Lopes Dumont MacedoMaria Aparecida Pereira QueirozMaria Nadurce da SilvaMarilia de SouzaPriscila Caires Santana AfonsoZilmar Santos Cardoso

    REVISO DE LNGUA PORTUGUESACarla Roselma Athayde MoraesWaneuza Soares Eullio

    REVISO TCNICAKaren Torres C. Lafet de Almeida Kthia Silva GomesViviane Margareth Chaves Pereira Reis

    DESENVOLVIMENTO DE TECNOLOGIAS EDUCACIONAISAndria Santos DiasCamilla Maria Silva RodriguesSanzio Mendona HenriquesWendell Brito Mineiro

    CONTROLE DE PRODUO DE CONTEDOCamila Pereira GuimaresJoeli Teixeira AntunesMagda Lima de OliveiraZilmar Santos Cardoso

  • diretora do Centro de Cincias Biolgicas da Sade - CCBS/UnimontesMaria das Mercs Borem Correa Machado

    diretor do Centro de Cincias Humanas - CCH/UnimontesAntnio Wagner Veloso Rocha

    diretor do Centro de Cincias Sociais Aplicadas - CCSA/UnimontesPaulo Cesar Mendes Barbosa

    Chefe do departamento de Comunicao e letras/UnimontesMarilia de Souza

    Chefe do departamento de educao/UnimontesMaria Cristina Freire Barbosa

    Chefe do departamento de educao Fsica/UnimontesRogrio Othon Teixeira Alves

    Chefe do departamento de Filosofi a/UnimontesAlex Fabiano Correia Jardim

    Chefe do departamento de Geocincias/UnimontesAnete Marlia Pereira

    Chefe do departamento de Histria/UnimontesClaudia de Jesus Maia

    Chefe do departamento de estgios e Prticas escolaresCla Mrcia Pereira Cmara

    Chefe do departamento de Mtodos e tcnicas educacionaisHelena Murta Moraes Souto

    Chefe do departamento de Poltica e Cincias Sociais/UnimontesCarlos Caixeta de Queiroz

    Ministro da educaoCid Gomes

    Presidente Geral da CAPeSJorge Almeida Guimares

    diretor de educao a distncia da CAPeSJean Marc Georges Mutzig

    Governador do estado de Minas GeraisFernando Damata Pimentel

    Secretrio de estado de Cincia, tecnologia e ensino SuperiorVicente Gamarano

    reitor da Universidade estadual de Montes Claros - UnimontesJoo dos Reis Canela

    vice-reitor da Universidade estadual de Montes Claros - UnimontesAntnio Alvimar Souza

    Pr-reitor de ensino/UnimontesJoo Felcio Rodrigues Neto

    diretor do Centro de educao a distncia/UnimontesFernando Guilherme Veloso Queiroz

    Coordenadora da UAB/UnimontesMaria ngela lopes Dumont Macedo

    Coordenadora Adjunta da UAB/UnimontesBetnia Maria Arajo Passos

  • Autores

    Carlos Caixeta de Queiroz Bacharel em Cincias Sociais Antropologia pela Universidade Federal de Minas

    Gerais. Mestre em Sociologia e Antropologia pela UFMG. Professor de antropologia do Departamento de Poltica e Cincias Sociais da Universidade Estadual de Montes

    Claros Unimontes.

    Fabiano Jos Alves de SouzaDoutorando em Antropologia pela Universidade de So Carlos. Mestre em

    Sociologia Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Cincias Sociais Universidade Estadual de Montes Claros Unimontes. Professor de Antropologia

    do Departamento de Poltica e Cincias Sociais da Universidade Estadual de Montes Claros Unimontes.

  • Sumrio

    Apresentao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9

    Unidade 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11A Antropologia interpretativa de Clifford Geertz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11

    1.1 Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11

    1.2 Situando a perspectiva interpretativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11

    1.3 A Antropologia interpretativa de Geertz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12

    1.4 A perspectiva interpretativa de Marshall Salhins. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21

    1.5 Contribuio terica do antroplogo Marshall Sahlins teoria antropolgica . . . . .21

    Referncias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28

    Unidade 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29A antropologia ps-moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29

    2.1 Introduo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29

    2.2 Antropologia ps-moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29

    Referncias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31

    Resumo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33

    Referncias bsicas, complementares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .35

    Atividades de Aprendizagem - AA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37

  • 9Cincias Sociais - Antropologia IV

    ApresentaoA disciplina Antropologia IV parte constituinte da estrutura curricular do Curso de Cincias

    Sociais - Licenciatura da Universidade Aberta do Brasil (UAB), da Universidade Estadual de Mon-tes Claros.

    Esta disciplina dedicada reflexo sobre a abordagem interpretativa e a chamada antro-pologia ps-moderna ou crtica. A antropologia interpretativa ser abordada a partir de alguns conceitos, temas e mtodo forjados pelo antroplogo estadunidense Clifford Geertz, considera-do um dos maiores expoentes da antropologia interpretativa ou simblica. Abordaremos, ainda, um aspecto da antropologia de Marshall Sahlins, a relao entre estrutura e histria. E, por fim, analisaremos alguns temas propostos pela chamada antropologia ps-moderna.

    Os objetivos pretendidos so: Compreender e discutir as principais contribuies terico/metodolgica da antropologia

    de Clifford Geertz e da chamada antropologia ps-moderna; Continuar a introduzir os estudantes no conhecimento das principais vertentes da teoria an-

    tropolgica; Possibilitar ao aluno uma incurso na constituio histrico-terica da antropologia.

    A disciplina est organizada, portanto, em dois eixos temticos:Tema 1 - A antropologia interpretativaAbordaremos a antropologia elaborada por Clifford

    Geertz, centralizando as discusses em torno do mtodo, conceitos e categorias forjadas por Geertz para a compreenso da realidade sociocultural.

    Tema 2 - Antropologia Ps-modernaAs discusses que faremos neste eixo temtico estaro centralizadas nas crticas que um

    grupo de antroplogos estadunidenses fez antropologia, principalmente as crticas aos textos etnogrficos clssicos.

    Os autores

  • 11

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    UnidAde 1A Antropologia interpretativa de Clifford Geertz

    Carlos Caixeta de QueirozFabiano Jos Alves de Souza

    1.1 IntroduoApresentaremos nesta Unidade a Antropologia Simblica ou interpretativa, que tem como

    um dos seus maiores representantes o antroplogo estadunidense Clifford Geertz, que conce-beu a antropologia como uma cincia interpretativa. O nosso objetivo, ento, mapear algumas noes da antropologia fundada por Geertz. Inicialmente, mostraremos a concepo de cultura como sistemas de smbolos e significados compartilhados. Em seguida, situaremos a orientao terica e metodolgica de Geertz.

    1.2 Situando a perspectiva interpretativa

    Antes de entrarmos propriamente na discusso sobre algumas noes da abordagem inter-pretativa na antropologia, vamos comentar rapidamente um texto de Roberto Cardoso de Oli-veira com o objetivo de situar a perspectiva interpretativa diante de outras tradies do conheci-mento antropolgico. E, dessa forma, tentarmos compreender as contribuies da Antropologia Interpretativa para a compreenso da dimenso simblica da ao social.

    Roberto Cardoso de Oliveira em seu texto Tempo e Tradio: interpretando a antropologia, publicado em seu livro Sobre o Pensamento Antropolgico, ao elaborar uma perspectiva hist-rica da Antropologia, chama a ateno para o seguinte aspecto: os paradigmas na Antropologia coexistem no tempo, tendo cada um certa eficcia. Diferente das Cincias Naturais, em que um paradigma substituiria o outro via revolues, nas Cincias Sociais os paradigmas se complemen-tam. Cardoso de Oliveira afirma, ento, que a histria da antropologia pode ser entendida a par-tir de dois paradigmas: paradigmas da ordem e paradigmas da desordem.

    Para Cardoso de Oliveira os paradigmas da ordem caracterizam-se pela busca de uma cin-cia marcada pelas ideias de razo e objetividade. Incluem-se nesse horizonte os paradigmas: a) racionalista; representado pela Escola Sociolgica Francesa, que se preocupa com questes da organizao social e com a descoberta do pensamento primitivo (1998, p. 920); b) estrutu-ral-funcionalista; interessado em estrutura social e funo social. Esse paradigma representa-do pela Escola Britnica de Antropologia; c) culturalista, representado pela American Historical School of Anthropology. Esse paradigma conduz a indagao para os processos culturais e ao es-tabelecimento de padres ou regularidades culturais (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998, p. 93).

    Esses paradigmas, substancializados sob a rubrica da ordem, segundo Cardoso de Oliveira, inclinaram-se para domesticar alguns elementos conceituais, isto , a subjetividade, o indivduo e a histria. Esses paradigmas influenciaram eficazmente os estudos e as formas de conhecimen-to antropolgico.

    O paradigma racionalista toma uma posio evolucionista, e os representantes desse para-digma falavam em etapas de evoluo. Assim o evento: a particularidade no tem lugar no espa-o das linhas ou crculos evolutivos (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998, p. 940).

    diCAAlm do texto de Ro-berto Cardoso de Olivei-ra, sugerimos a leitura dos seguintes textos de Clifford Geertz para se ter uma compreenso introdutria sobre a concepo de antro-pologia interpretativa: Misturas de gneros: a reconfigurao do pensamento social e Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropo-lgico, ambos publi-cados no livro O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpre-tativa. Petrpolis, RJ: Vozes, 1997.

  • 12

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    Os autores que se enquadram dentro do estrutural-funcionalismo se posicionaram contra a histria, mas tambm contra as teorias da evoluo. O trabalho de campo constitui uma prtica fundamental para essa escola. E foi a partir do trabalho de campo como novo padro para a pes-quisa antropolgica que se pde argumentar que os evolucionistas elaboraram uma concepo especulativa da histria da humanidade ou das sociedades humanas.

    Com os culturalistas, tanto a histria quanto o indivduo passam a ser considerados sistema-ticamente. No entanto, indivduo e histria continuam domesticados. Falam de padro, focalizam muito mais a organizao cultural da personalidade. Na busca de conhecimento objetivo, o indi-vduo culturalizado e a histria naturalizada.

    Contra essas posies, irrompe-se o paradigma hermenutico, representado pela antropolo-gia interpretativa, o qual Cardoso de Oliveira chamou de paradigma da desordem.

    A antropologia interpretativa se posicionou contra o discurso cientificista exercitado pelos paradigmas da ordem. Libertando-se da preocupao objetivista, a antropologia interpretativa reformula os elementos domesticados pelos outros paradigmas. A subjetividade assume uma forma de intersubjetividade, a histria desnaturalizada e tomada como historicidade e o in-divduo toma sua forma personalizada e no teme assumir sua individualidade (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998, p. 97). A ao simblica torna-se um elemento fundamental de compreenso ou de estudo.

    O paradigma hermenutico pode ser tomado como uma reao ao iluminismo, ou seja, uma crtica ao poder absoluto da razo e da cincia. Razo e cincia so postas em suspeita.

    Assim, a antropologia interpretativa resgata a noo de compreenso (Verstehen), em opo-sio explicao. Assim, a apreenso etnogrfica torna-se experimentos e a crena em uma verdade absoluta dissolvida, agora no existe uma nica verdade, mas verdades. A prtica an-tropolgica torna-se um encontro onde os pontos de vista (os horizontes do pesquisador e do pesquisado) so levados em considerao. Elege-se com isso uma sorte de saber negociado, produto de relaes dialgicas, onde pesquisador e pesquisado articulam ou confrontam seus respectivos horizontes (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998, p. 100).

    Nesse contexto, a antropologia interpretativa vem contribuir com algumas noes impor-tantes. Primeiro, com uma moderao na autoridade do autor de textos etnogrficos. Segundo, renova a elaborao da escrita. Terceiro, passa a preocupar-se com o momento histrico do en-contro etnogrfico (pesquisador e pesquisado esto no mesmo momento histrico). Finalmente, leva-se em considerao a compreenso sobre os limites da razo cientfica.

    1.3 A Antropologia interpretativa de Geertz

    Passemos agora a situar minimamente a perspectiva interpretativa na antropologia a partir de um de seus expoentes mximos: Clifford Geertz.

    A antropologia simblica, interpretativa ou chamada por alguns antroplogos de herme-nutica, constituiu-se e consolidou-se nos Estados Unidos a partir de 1960.

    Os fundadores de uma antropologia simblica so Victor Turner, David M. Schneider e Clif-ford Geertz. No entanto, estaremos tratando aqui apenas de algumas noes da antropologia de Geertz.

    Geertz nasceu em So Francisco, Califrnia, em 1926, e morreu em Princeton, em 2006. Estu-dou Filosofia e se doutorou em Antropologia por Harvard em 1956. Lecionou em vrias Univer-sidades americanas e tornou-se membro permanente da School of Social Science do Instituto for Advanced Study da Universidade de Princeton. Junto com as atividades docentes, realizou pro-longados perodos de trabalho de campo na Indonsia e Marrocos. Como afirma Celso Castro:

    Geertz preocupa-se, acima de tudo, com a construo social do significado que ordenam a experincia humana, rejeitando a tradio estruturalista que busca-va alcanar os universais da cultura humana. A busca de universais para Geertz nos afasta do mais produtivo da antropologia que a etnografia suas descries densas. Atravs delas que podemos admitir as limitaes de nossa situao particular de observadores e lidar com dados concretos, circunstanciados. Ao mesmo tempo, a etnografia, inscrita num saber necessariamente local, que

    GloSSrioHermenutica: talvez

    fosse interessante pen-sar no significado ou na definio de hermenu-

    tica. A hermenutica pode ser entendida

    como o ato de interpre-tar, ou interpretao do

    sentido das palavras. O termo hermenutica provm do verbo grego

    hermneuein e signifi-ca declarar, anunciar,

    interpretar, esclarecer e, por ltimo, traduzir. Significa que alguma coisa tornada com-preensvel ou levada

    compreenso (cf. http://pt.wikipedia.org/

    wiki/Hermeneutica). A hermenutica um mtodo de interpreta-o de texto que tem

    suas razes na exegese medieval, especialmen-te na Bblia [...] Ela parte

    do princpio de que um texto simultanea-mente um conjunto de partes individuais e um

    todo inteirio, e que interpretar o texto

    realizar um movimento pendular entre esses dois polos (Eriksen e

    Hylland, 2007, p. 127).

  • 13

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    possibilita e exige a comparao com outras experincias particulares, des-sa forma enriquecendo a compreenso. A interpretao, nessa perspectiva, o resultado sempre inacabado de uma dialtica contnua entre o menor dos deta-lhes e a mais global das estruturas (CASTRO, 2006, p. 117):

    De fato, Geertz um autor renomado dentro da antropologia.

    Grande parte de sua influncia deve-se ao fato de ter proposto e praticado uma antropolo-gia diferente, que ficou conhecida como antropologia interpretativa ou simblica, como j res-saltamos.

    Geertz props que se estudem mais os significados do que comportamentos, que se pro-cure o entendimento, a interpretao mais do que a busca de leis. Rejeita, ento, as explicaes mecanicistas baseadas nas Cincias Naturais em favor da anlise (compreenso) interpretativa. Geertz busca as metforas, as analogias como recurso para se conhecer e compreender as cul-turas. A ao simblica torna-se um ponto relevante para a antropologia interpretativa. E a com-preenso dos significados que os atores atribuem ao seu mundo possvel na medida em que se busque tal compreenso a partir do ponto de vista dos atores. Geertz busca essa compreenso a partir da redefinio do conceito de cultura.

    1.3.1 Geertz: a definio de cultura

    Nesse sentido, Geertz, no captulo introdutrio do seu livro A Interpretao das Culturas, pu-blicado em 1973 e traduzido para o portugus em 1978, aps falar que a noo de cultura se encontra em um pantanal conceitual, comea com uma definio de cultura para propor uma antropologia interpretativa. Geertz, nesse livro, mostra sua teoria interpretativa como forma de analisar a cultura.

    Geertz concebe a cultura como um sistema de smbolos e significados compartilhados. Para esse autor, o conceito de cultura essencialmente semitico. Em vrios momentos do seu livro A Interpretao das Culturas, Geertz explicita a sua concepo de cultura. No captulo 1, Geertz afirma:

    O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, essencialmente semitico. Acreditando, como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, as-sumo a cultura como sendo essas teias e a sua anlise; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa, procura do significado (GEERTZ, 1978, p. 15).

    No captulo 4, do mesmo livro, Geertz argumenta:

    De qualquer forma, o conceito de cultura ao qual eu me atenho no possui referentes mltiplos nem qualquer ambigidade fora do comum, segundo me parece: ele denota um padro de significados transmitidos historicamente, in-corporado em smbolos, um sistema de concepes herdadas expressas em formas simblicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relao vida (GEERTZ, 1978, p. 103).

    Figura 1: Fotos de Clifford Geertz.Fonte: Disponvel em . Acesso em 10 out. 2014.

    diCASugerimos a leitura do captulo 1 (Uma des-crio Densa: por uma teoria interpretativa da cultura) do livro de Geertz A Interpretao das Culturas, traduzido para o portugus pela editora Zahar em 1978.

  • 14

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    a partir desse conceito que Geertz elabora uma anlise interpretativa da cultura e explica como possvel e de que modo deve ser feito uma anlise da cultura. Para o autor, a anlise escolher entre as estruturas de significado [...] e determinar sua base social e sua importncia (1978, p. 19). Portanto, na anlise que a etnografia torna-se descrio densa, ou melhor, a an-lise feita atravs de uma descrio densa.

    Para Geertz, a sociedade ou a cultura pode ser interpretada como um texto. Para esse autor, os fenmenos sociais precisam ser lidos no somente pelos antroplogos, mas pelos prprios membros da sociedade. A interpretao dos antroplogos uma interpretao de segunda mo, pois uma interpretao da interpretao dos indivduos de uma determinada sociedade. A an-tropologia, portanto, na perspectiva fundada por Geertz, deve compreender as maneiras pelas quais as pessoas entendem e interpretam o mundo ao seu redor.

    1.3.2 O credo metodolgico: a descrio densa

    Assim, Geertz sustenta que os antroplogos devem procurar descrever o mundo a partir do ponto de vista do nativo. E a descrio deve ser densa.

    Geertz toma a noo de descrio densa da obra do filsofo Ryle para mostrar que uma compreenso profunda possvel atravs da descrio profunda. A descrio densa consiste na capacidade em que o etngrafo tem de diferenciar um reflexo insignificante, uma contrao muscular de uma piscadela usada como recurso comunicativo conscientemente empregado. Ou seja, h vrias maneiras de interpretar uma piscadela. Uma piscadela pode significar simples-mente uma contrao involuntria das plpebras ou pode significar um ato de comunicao, como um convite cumplicidade, ou ainda pode ser que algum esteja imitando de forma debo-chada um outro que esteja piscando.

    A descrio densa proposta por Geertz mais uma atitude do que um modelo ou um m-todo. Essa atitude exige do etngrafo apreender as estruturas de significao mais profundas e estabelecer bases para compreender diferentes interpretaes em um determinado contexto.

    A antropologia para Geertz , ento, um ato (ao) interpretativo. E esse ato vai da obser-vao etnografia. Agora, a verdade parcial e construda no texto produzido pelo etngrafo, aonde ele vai alm da mera descrio dos fatos. Por isso, a descrio densa baseada na reali-dade do trabalho de campo, e atravs da anlise que a etnografia torna-se descrio densa. Como afirma Geertz:

    O que o etngrafo enfrenta, de fato a no ser quando (como deve fazer, na-turalmente) est seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas sobrepostas ou amarradas umas s outras, que so simultaneamente estranhas, irregulares e inexplicveis, e que ele tem que de alguma forma primeiro apreender e depois apresentar. E isso verdade em todos os nveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, dedu-zir os termos de parentesco, traar linhas de propriedade, fazer o censo domsti-co [...] escrever um dirio. Fazer a etnografia tentar ler (no sentido de construir uma leitura) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerncias, emendas suspeitas e comentrios tendenciosos, escrito no com os sinais con-vencionais do som, mas com exemplos transitrios de comportamento modela-do (GEERTZ, 1978, p. 20).

    1.3.3 Como compreender esse emaranhado de significado na vida nativa

    Geertz afirma que a cultura pblica. Na viso desse autor, a cultura pblica porque o significado tambm . Geertz, assim, refere-se ao carter pblico das significaes dos smbolos, ou seja, as significaes so pblicas. A cultura se constitui de significados veiculados atravs de smbolos. Os smbolos so algo que significa, so intersubjetivos, por conseguinte, so pblicos. Por isso, h possibilidades de comunicao.

    A cultura um documento ativo. Ela no mental nem fsica. Ela no est na cabea das pessoas. Mas funciona como um mapa cognitivo, por meio do qual as pessoas se orientam. Por-tanto, a cultura no uma matriz que empurra as pessoas em uma mesma direo. Pelo contr-rio, permite que as pessoas sigam caminhos diversos.

  • 15

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    Se a cultura um documento, ela pode ser tratada como um texto. A cultura inscreve seus significados, suas instituies. Por isso, o etngrafo pode compreend-la como se fosse um texto a ser desvendado. O que o etngrafo faz inscrever no seu texto a intencionalidade dos fatos. Ele fixa o smbolo, fixa uma ao significativa. Nesse sentido, o texto etnogrfico o prprio ato compreensivo, a prpria interpretao.

    Para Geertz, a compreenso no empatia (penetrar na cabea do outro), mas uma justa-posio de pontos de vista. Para entender o outro e fazer etnografia, no necessrio tornar-se nativo ou pensar como eles. O que o etngrafo deve procurar conversar com os nativos. Des-sa forma, o objetivo da antropologia o alargamento do universo do discurso humano. Assim, Geertz fala que esse um objetivo ao qual o conceito de cultura semitico se adapta bem. Para Geertz:

    Como sistemas entrelaados de signos interpretveis (o que eu chamaria sm-bolos, ignorando as utilizaes provinciais), a cultura no um poder, algo ao qual podem ser atribudos casualmente os acontecimentos sociais, os compor-tamentos, as instituies ou os processos ela um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligvel, isso , descritos com densidade (GEERTZ, 1978, p. 24).

    Percebemos, assim, que Geertz afirma que cultura contexto, e que preciso compreend-la a partir do ponto de vista dos nativos (isso quer dizer atravs de uma justaposio de pontos de vista). Assim, para Geertz, (1978, p. 25) nossas formulaes dos sistemas simblicos de outros povos devem ser orientados pelos atos. . Geertz afasta-se das abordagens essencialmente ob-jetivistas dizendo que as descries das culturas partem da viso dos atores, mas a essas descri-es devemos acrescentar a anlise. Assim, comeamos com nossas prprias interpretaes do que pretendem nossos informantes, ou que achamos que eles pretendem, depois passamos a sistematiz-las... Em resumo, os textos antropolgicos so eles mesmos interpretaes e, na ver-dade, de segunda e terceira mo (GEERTZ, 1978, p. 26).

    Nessa linha de procurar uma antropologia que se afaste dos moldes da antropologia tradi-cional, muitas vezes pautada nas premissas das Cincias Naturais, Geertz traa as caractersticas da antropologia interpretativa e assim reformula a prtica e a forma de escrev-la. Ento, para esse autor, a descrio etnogrfica deve ser interpretativa, o que ela interpreta o fluxo do dis-curso social e a interpretao envolvida consiste em tentar salvar o dito num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fix-lo em formas pesquisveis (GEERTZ, 1978, p. 31). E isso feito em nvel microscpico.

    Mas, ao defender uma abordagem microscpica para a descrio etnogrfica, Geertz fala que as interpretaes em grande escala so possveis. S que os antroplogos tendem a traba-lhar em lugares obscuros. Eles abordam anlises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos (1978, p. 31). Assim, as generalizaes so possveis porque as aes sociais so comentrios a respeito de mais do que elas mesmas; de que, de onde vem uma interpretao no determina pra onde ela poder ser impelida. Fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas... (GEERTZ, 1978, p. 24).

    Pode-se dizer que a proposta de uma antropologia interpretativa acrescenta elementos im-portantes que contribuem enormemente para revitalizar as Cincias Sociais. Assim, Geertz con-trasta as qualidades ricas e densas da teoria interpretativa com as qualidades demasiadamente reducionistas e mecanicistas das Cincias Sociais. Mas, o que Geertz nos fala sobre o papel da teoria na nova antropologia que ele prope? Parece que Geertz admite que as abordagens inter-pretativas no so verificveis. Se no, vejamos o que ele afirma:

    O pecado obstruidor das abordagens interpretativas de qualquer coisa litera-tura, sonhos, smbolos, cultura que elas tendem a resistir, ou lhes permitido resistir, articulao conceptual, e assim, escapar a modelos de avaliao siste-mticas. Ou voc apreende uma interpretao ou no, v o ponto fundamental dela ou no aceita-a ou no. Aprisionada na imediao de seu prprio detalhe, ela apresentada como autovalidante ou, o que pior, como validada pelas sen-sibilidades supostamente desenvolvidas da pessoa que a apresenta; qualquer tentativa de ver o que ela em termos diferentes do seu prprio vista como um travesti como etnocntrico, o termo mais severo do antroplogo para o abuso moral (GEERTZ, 1978, p. 34).

    Mas Geertz argumenta que a teoria interpretativa pode ser adequada para a tarefa central da etnografia: o entendimento da vida nativa.

  • 16

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    Geertz afirma, ainda, que em antropologia apenas pequenos vos de raciocnio so permiti-dos, pois vos mais longos tendem a se perder em embrutecimentos acadmicos. Ento, o con-ceito semitico de cultura a chave para que o antroplogo ganhe acesso ao mundo conceitual de seus sujeitos e da poder conversar com eles. Enfim, o papel da teoria na etnografia, conforme Geertz, fornecer um vocabulrio no qual possa ser expresso o que o ato simblico tem a dizer sobre ele mesmo isto , sobre o papel da cultura na vida humana (GEERTZ, 1978, p. 38).

    Podemos dizer que Geertz busca uma anlise de formas simblicas. Atravs da anlise da cultura, o etngrafo inscreve, fixa o significado e a significao, salvando o discurso social de sua possibilidade de extinguir-se e colocando-o sob formas observveis. Atravs da compreenso dos significados, veiculados atravs dos smbolos, que os atores atribuem ao seu mundo pode-se chegar base social. No entanto, Geertz admite:

    A anlise cultural intrinsecamente incompleta e, o que pior, quanto mais pro-funda, menos completa. uma cincia estranha, cujas afirmaes mais marcantes so as que tm as bases mais tremulas, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado intensificar a suspeita, a sua prpria e a dos outros, de que voc no o est encarando de maneira correta. Mas essa que a vida do etngrafo, alm de perseguir pessoas sutis com questes obtusas (GEERTZ, 1978, p. 39).

    Geertz, no entanto, nos adverte que analisar as formas simblicas no perder o contato com a superfcie dura da realidade social. Geertz se posiciona no que se refere questo do ob-jetivismo, falando que sua prpria posio tem sido tentar resistir ao subjetivismo, de um lado, e ao cabalismo de outro, tentar manter a anlise das formas simblicas to estreitamente ligadas quanto possvel aos acontecimentos sociais e ocasies concretas (GEERTZ, 1978, p. 40).

    Ento, pode-se dizer que ao buscar uma cincia que aborde a ao simblica, Geertz afasta-se dos postulados da Cincia Natural, at ento venerados pelas Cincias Sociais como forma de manter a objetividade e o carter nomolgico como critrios de cientificidade.

    De fato, Geertz busca inspirao em uma tradio filosfica que coloca o papel da Verstehen (compreenso) na metodologia das Cincias Sociais. Como explica Fischer:

    Fazia-se um esforo de combinar, atravs da noo de Versthen, as metas cien-tficas de objetividade com o reconhecimento de que pelo fato de os homens refletirem sobe o que fazem (e agirem de acordo com essas reflexes) difcil trat-los meramente como objetos (GEERTZ, 1983, p. 56).

    As Cincias Sociais estavam comprometidas em explicar a cultura e a sociedade naturali-zando-as ou, o que a mesma coisa, em termos nomolgicos, a antropologia interpretativa tenta compreender o homem. Assim, coloca sob suspeita o conhecimento baseado na razo ins-trumental e estabelece o sentido das aes observadas, o que implica um conhecimento inter-subjetivo. Em outras palavras, a justaposio de pontos de vista um elemento crucial para a compreenso da cultura e da sociedade.

    Pode-se dizer, ento, que Geertz procura resolver o impasse entre o subjetivismo e o objeti-vismo atravs dos smbolos. Ou seja, quando fala do carter pblico das significaes dos smbo-los est falando da objetividade dos smbolos. Se as significaes so pblicas, so objetivas, por conseguinte, possvel a comunicao. Fisher fala que na medida em que a comunicao entre os indivduos compreendida a cultura pblica, objetiva e, pelo menos teoricamente, passvel da anlise (GEERTZ, 1983, p. 59).

    Assim, compreender, em uma descrio densa, consiste em desfiar os significados dos sm-bolos. Nessa perspectiva, os smbolos so as imagens dominantes nos textos antropolgicos que se situam em uma vertente hermenutica.

    1.3.4 O uso de metforas

    Nesse sentido, Geertz prope o uso de metforas, de analogias para o estudo dos sistemas culturais. Em seu texto Gneros Confusos, esse autor anuncia uma convergncia do pensamen-to social para o uso de analogias como estratgia para se produzir conhecimento, ou seja, anun-cia um movimento para a reconfigurao do pensamento social. Para Geertz:

    Certas verdades sobre as cincias sociais parecem hoje em dia autoevidentes. Uma delas que em anos recentes tem havido uma enorme mescla de gneros

  • 17

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    nas cincias sociais, assim como na vida intelectual em geral, e que tal confuso de classes continua, todavia. Outra que muitos cientistas sociais se tem apar-tado de um ideal de explicao de leis e exemplos para outro ideal de casos e interpretaes, buscando menos a classe de coisas que conecta planetas e pn-dulos e mais classe de coisas que conecta crisntemos e espadas. Outra verdade que as analogias que se tm traadas desde as humanidades esto comeando a jogar o mesmo tipo de papel na compreenso sociolgica que as analogias traadas desde as indstrias e a tecnologia tm jogado, desde faz tempo, na compreenso dos fenmenos fsicos. No s penso que estas coisas so certas, mas que so verdades em seu conjunto, simultaneamente, e o giro cultural que faz que isto seja assim o tema desde ensaio: a reconfigurao do pensamento social (GEERTZ, 1991, p. 63).

    Assim, Geertz mostra que o conhecimento se processa por analogias. A analogia do jogo, do drama e do texto torna-se modelo fundamental como novo discurso. As analogias passam a fazer parte do novo pensamento social como peas centrais no discurso cientfico. Qual a razo de usar a analogia para explicar um fenmeno social? A analogia para compreender os fenme-nos humanos mais esclarecedora do que os modelos das cincias naturais, pois o antroplogo trabalha com fenmenos que o prprio homem construiu.

    Geertz, ento, mostra que a analogia do texto a mais ampla das recentes reconfiguraes do pensamento social. O modelo para os interpretativos a filologia, isto , interpretar textos. Assim, para esse autor, a chave para a transcrio do texto ao anlogo ao texto, da escritura como discurso ao como discurso , como assinala Ricoeur, o conceito de fixao: a fixao do significado (GEERTZ, 1991, p. 73).

    1.3.5 A ideologia como sistema cultural

    Uma outra forma de trabalhar os sistemas simblicos encontra-se em um outro texto de Geertz: A Ideologia como Sistema Cultural. Nesse texto, Geertz procura entender a ideologia como texto, em que a eficcia reside nas metforas.

    Porm, Geertz diz que existem duas abordagens ao estudo dos determinantes sociais da ideologia: a teoria do interesse e a teoria da tenso. Para a primeira, a ideologia uma mscara e uma arma. Para a segunda, a ideologia um sintoma e um remdio (GEERTZ, 1978, p. 171).

    Enquanto que para a teoria do interesse a ideologia vista como uma luta por vantagens, a teoria da tenso vista como uma forma de amenizar as tenses sociopsicolgicas. Naquela, os homens perseguem o poder; nesta, os homens fogem da ansiedade.

    No entanto, como ressalta Geertz, interesse e tenso so conceitos psicolgicos e sociol-gicos referindo-se simultaneamente a uma vantagem sentida por um indivduo ou grupo de in-divduos e a estrutura objetiva da oportunidade dentro da qual se movimento um indivduo ou grupo trata-se da interpenetrao dos sistemas de personalidade e social (GEERTZ, 1978, p. 173).

    Para Geertz, (1978) a questo de como os smbolos simbolizam, como funcionam para me-diar significados no foi tratada.

    Diante disso, sem recusar totalmente as duas teorias, o autor prope que se considere a ideologia como sistema de smbolos que constitui um mapa cognitivo que orienta o comporta-mento dos indivduos.

    Porm, Geertz (1978) mostra as limitaes das teorias que interpretam a ideologia e prope buscar na literatura uma soluo para estud-la. Para ver como opera o pensamento, a ideologia dever ser entendida como texto, em que sua eficcia reside nas metforas. Nesse sentido, inter-pretar o sistema simblico como ideologia entender o prprio estilo como um texto. A ideo-logia dever ser interpretada como um texto literrio em sua profundidade, para se entender as metforas, as expresses e os significados.

    AtividAdeSegue entrevista com o antroplogo Clifford Geertz. Ao ler essa entrevista, reflita sobre a perspectiva interpre-tativa na antropologia e como essa disciplina poderia lhe auxiliar em suas atividades de ensino.

  • 18

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    Box 1- Entrevista com Clifford Geetz

    O norte-americano Clifford Geertz discute o futuro e os deveres de sua disciplina.

    | o que o sr. acha que o futuro reserva aos antroplogos? na introduo de seu li-vro, o sr. diz que est cada vez mais difcil sobreviver base de antropologia, as coisas no so mais como eram. Qual o campo de trabalho da antropologia?

    | Bem, no bem que no d para sobreviver com a antropologia, acho que os antrop-logos esto sobrevivendo bem, mas est ficando mais difcil porque tudo est ficando mais complicado. Ns lidamos com uma gama maior de sociedades, no apenas as chamadas so-ciedades simples. Lidamos com sociedades grandes, como a ndia, o Brasil, o que torna as coi-sas mais complexas do que quando ns ficvamos restritos a apenas povos tribais. Em segun-do lugar, o mundo agora muito mais integrado e desenvolvido, logo tudo conectado a tudo o mais de forma bastante complicada. Alm disso, h muito mais pessoas trabalhando nessas reas, em que antes costumvamos trabalhar sozinhos. Ningum mais estava muito in-teressado nos povos que estudvamos, mas hoje todos esto. Isso faz com que a antropologia seja muito mais do que a soma das coisas, em um sentido, mas muito mais difcil de buscar realizar, em outro.

    | Mas qual seria o dever dos antroplogos?| No creio que possamos fazer muito mais do que seguir do jeito que estamos e conti-

    nuar a pensar no que estamos fazendo e qual a nossa contribuio particular _o tipo de con-tribuio que a antropologia pode de fato dar eficazmente. A antropologia no pode mais ser uma cincia completamente geral, que estuda tudo, que diz estudar o Homem. Ela tem que perceber qual , em um lugar como a ndia, ou a Indonsia, ou o Marrocos, ou o Brasil, o seu papel particular em interpretar o que ocorre _isso ao lado de outras disciplinas, como econo-mia, poltica, histria, literatura. Tudo isso deve ser levado em considerao, e a antropologia deve encontrar seu lugar e sua contribuio em meio a esses outros campos.

    | Como o sr. se envolveu com a antropologia?| Eu fiz faculdade depois da guerra depois da Segunda Guerra Mundial e estudei in-

    gls e filosofia por uns tempos. E ento, quando decidi fazer a ps-graduao, um de meus professores sugeriu que eu poderia me interessar por antropologia, em particular a que esta-va ento sendo ensinada em Harvard, porque em Harvard estava sendo ensinada como parte de um departamento multidisciplinar, chamado relaes sociais. Nesse departamento, esta-vam reunidas as disciplinas de antropologia, sociologia, psicologia social e psicologia. Ento eu fiz isso e foi assim que entrei para a antropologia.

    | o sr. acredita que a antropologia cultural, a chamada antropologia hermenutica, pode ser considerada uma cincia? Claude lvi-Strauss diria que o tipo de antropologia praticada pelo sr. no antropologia, e sim etnografia.

    | Devo dizer que no sou da mesma categoria que Claude, mas no acho essa questo particularmente importante. No me importa se ele a chama de cincia ou no, eu mesmo acredito que seja, mas isso depende do que significa cincia. Lvi-Strauss certamente est certo ao dizer que a antropologia cultural no segue o mesmo modelo que as cincias natu-rais, mas eu acredito que seja emprica, sistemtica, tente desenvolver argumentos que pos-sam ser ao menos confrontados com provas. Ela vai atrs de um objetivo mais ou menos es-pecfico... Por isso no vejo motivo para no cham-la de cincia, mas concordo que no como a fsica ou a qumica etc. Porm no vejo por que compar-la fsica. Eu mesmo no acho que a questo de como cham-la seja to importante. Ento, para ela ser vista como cincia, no necessrio que a chamemos de cincia. Suponho que no. , no precisa. Eu costumo faz-lo, bem, por questes polticas.

    | Parafraseando Max Weber, a antropologia, tanto em campo quanto na academia, uma vocao?

    | Com certeza uma vocao para mim, tem sido assim nos ltimos 50 anos. Espero que continue a ser, sim, um compromisso, mais do que um simples trabalho ou um lugar para se receber um salrio. Eu tento, suponho, melhorar as comunicaes entre as pessoas, a com-preenso entre as pessoas. Portanto acredito que seja uma vocao. Nem todos na antropolo-gia esto comprometidos com ela como se fosse uma vocao, mas os melhores esto.

  • 19

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    | Quais so os limites da interpretao? Se a cultura um texto _ou anloga a um texto, e o antroplogo escreve um texto, e o leitor l o texto e o interpreta tambm e isso vai em frente... Quais so os limites?

    | Bem, no sei, acho que voc pra de interpretar quando no tem mais o que dizer. Por exemplo, eu vou e escrevo sobre Bali ou Java, talvez voc leia, pense sobre o que significa no contexto daquilo que voc est fazendo. E, aps um tempo, no h muito mais a ser dito, quer dizer, nada muito mais interessante aparece, voc pega o que pode e ento segue em frente. Acho que a corrente de texto depois de um tempo se entrega, porque tudo o que sabemos de importante ou interessante j foi dito, ao menos naquela linha em particular, no como um todo, mas nessa linha, sim. Ento as coisas so abordadas de modo diferente, e vai-se em fren-te com isso. No creio que haja um ponto final bvio que diga exatamente onde o fim da interpretao, mas, depois de um tempo, depois de 4.000 discusses acerca da briga de galos, quem sabe baste.

    | Mas interessante, porque um estudante de antropologia brasileiro, lendo o ensaio so-bre a briga de galos balinesa, ter uma viso completamente diferente da de um estudante de antropologia balins, que ter uma viso diferente da do sr. quando escreveu o ensaio. Cada um est fazendo a sua prpria interpretao.

    | Bem, mas a deciso pessoal. Uma coisa interessante a fazer seria confrontar as leituras balinesas do texto com as brasileiras. Poderia nos ser til, na verdade no fao idia, depende do que sairia disso. Mas costumo adotar uma viso a posteriori das coisas. Deve-se tentar pri-meiro e depois ver se vale a pena. No podemos prever o que ser til e o que no o ser.

    | Como se pode escapar do niilismo na interpretao?| Eu no vejo qual o papel do niilismo. Se voc fosse niilista, nem comearia a interpre-

    tar. No tentaria ao menos comear a entender os outros. Acho que h uma diferena entre o niilismo e uma simples ausncia de certeza. verdade que quase todas as interpretaes antropolgicas tenham por fim um resduo de incerteza, de vagueza, indeterminao, contin-gncia. Mas isso no niilismo, isso o modo como o mundo . Se voc for realmente um niilista, no se importar com nada, no tentar buscar compreender nada, no interpretar nada. No escreveria ao menos eu no vejo razo para que escrevesse um longo livro so-bre coisa nenhuma.

    | Seu novo livro tem um captulo intitulado Anti Anti-relativismo. diante das duas atitudes dominantes na antropologia defesa de um relativismo quase absoluto e de-fesa de uma moral ou natureza humana anterior a qualquer anlise antropolgica , onde exatamente o sr. se situa?

    | Como eu disse, sou um anti anti-relativista, mas acredito que essa posio seja mais co-mum aqui nos Estados Unidos do que imagino que seja no Brasil, embora eu no tenha certe-za. Aqui nos EUA faz parte do movimento neoconservador puxar a carta do relativismo contra, bem, essencialmente contra a esquerda, contra liberais etc. O que dizem que, a menos que voc se agarre a certas verdades absolutas, de certo tipo, voc no pode acreditar em nada, no pode fazer nada, agir etc., e eu obviamente me oponho a essa viso. Acho que possvel agir sob a incerteza, possvel agir sob o indeterminvel, porque este o modo como todos ns vivemos.

    | Qual a sua perspectiva quanto aos rumos atuais da globalizao, essa moda de globalizao que est tomando conta do mundo? Como isso afeta as culturas?

    | Nos ltimos captulos do meu livro, eu falo sobre o que o padro, ao menos o que acredito que seja um padro. Ao mesmo tempo em que h muita comunicao e integrao em nvel mundial e uma ordem neoliberal geral, simultaneamente ocorre uma reao contra isso, que busca aumentar auto-expresses culturais. Acho que devemos usar esse paradoxo para entender exatamente o que acontece. No me parece que nem a idia de o mundo in-teiro estar meio que subsumido em uma nica hegemonia nem a noo de cada um seu prprio eu se imporo. No sei bem o que dizer sobre a globalizao como processo, a globa-lizao um fato, est ocorrendo, o gado atravessa o mundo, h muita comunicao etc., mas no acho que isso ocorra sem paralelos, sem outros movimentos em direes opostas.

  • 20

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    | ento o sr. no concorda que a globalizao seja um movimento avassalador de culturas menores?

    | No, na verdade, no concordo. Bem, no sei como tudo isso terminar quem que sabe isso? Mas o que eu sinto que essas culturas so realmente fortes e, em certo grau, so estimuladas pela prpria globalizao a se tornarem ainda mais fortes. No creio que elas se-ro esmagadas, embora muita gente ache que sim.

    | o sr. tem uma viso otimista do futuro...| No diria que uma viso otimista, mas que ao menos esse tipo de pessimismo no o

    meu. Tenho meu prprio tipo de pessimismo, que no esse.

    | e qual o seu tipo de pessimismo?| Eu no tenho, estava brincando. Eu no acho que o mundo esteja prestes a se tornar,

    por completo, um tipo de hegemonia neoliberal baseada nos Estados Unidos. H certamente pessoas que querem isso e alguns cientistas em alguns lugares que dizem que isso acontece-r, mas creio que h vrios motivos para questionar isso. No acredito que o neoliberalismo v subjugar todo o mundo. Bem, temos que ver, temos que esperar a histria e ver.

    | existe algum episdio de seu trabalho de campo que o sr. recorde como particular-mente interessante?

    | Fiz muito trabalho de campo e sempre me diverti muito com ele. O primeiro de todos, ir por dois anos e meio a Java, foi bem excitante. Depois fui para Bali por um ano e depois para o Marrocos por vrios anos. E ento estive de volta a Java, a Bali, ao Marrocos... O trabalho de campo foi seguramente um dos pontos altos da minha vida.

    | Gostaria que o sr. contasse um caso especfico, uma histria anedtica...| Escrevi sobre praticamente todos os eventos anedticos que me aconteceram, difcil

    me lembrar de algum especfico agora. O trabalho, depois de feito, quando olhamos para ele, semi-autobiogrfico, ao menos em parte. E no meu trabalho eu j contei uma srie de hist-rias, coisas que me aconteceram: ter sido surpreendido em plena guerra civil na Sumatra, ter-me envolvido com certas pessoas no Marrocos...

    | At que ponto a sociedade a que se pertence e aquela na qual se faz o trabalho de campo influem no trabalho dos antroplogos?

    | No h dvida quanto a isso, todos ns somos, como se diz hoje, observadores situa-dos. A nica coisa que se pode fazer a respeito ter a maior conscincia possvel desse fato e pensar nisso, no assumir que o modo como vemos as coisas o modo como as coisas sim-plesmente so, mas entender. Sim, obviamente, um antroplogo norte-americano ou um bra-sileiro ou um francs vero as coisas de uma maneira algo diferente, e uma das razes o contexto cultural do qual eles vm, do qual extraem suas percepes e seus princpios. No h nada de errado nisso, inevitvel, o erro ocorre quando as pessoas no se conscientizam disso e simplesmente assumem que qualquer sensao que tm no precisa ser confrontada com a realidade. Claro, no h nada semelhante a um observador totalmente neutro e abstra-to. Isso no to fatal quanto pode soar, s significa que preciso pensar sobre de onde as pessoas vm, onde elas esto trabalhando etc.

  • 21

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    | e o que o sr. pensa a respeito do atual movimento chamado ps-moderno na an-tropologia?

    | Frequentemente no se sabe bem de que se trata quando se fala em ps-moderno. No me considero um ps-moderno no sentido estrito, mas acredito que os ps-modernos esto apresentando questes interessantes que precisam ser confrontadas at por aqueles de ns que possivelmente no esto muito enamorados das respostas dadas por eles quanto pode-riam estar. Mas as questes que eles trazem e as preocupaes que eles tm so todas bem reais, e essas questes e preocupaes exigem algum tipo de resposta. Se a resposta que usualmente associada ao ps-modernismo, que uma viso descentrada e altamente relati-va das coisas, a resposta ideal, eu no tenho certeza, mas acho que os ps-modernos de-vem ser tomados como positivos para a construo da teoria antropolgica. Eles contriburam muito, criticamente, fizeram com que algumas posies e argumentos se mostrassem simples demais para serem mantidos e tambm trouxeram o tipo de pergunta que voc fez momen-tos atrs sobre a influncia da sociedade de algum na percepo desse algum etc. Foi esse tipo de coisa, entre outras, que nos foi trazido pelos ps-modernos. Um monte de outros pro-blemas com relao escrita, com relao retrica, com relao questo da prova etc., como nas cincias naturais, tudo isso vem tona, ao menos em parte, devido crtica ps-moderna. Ento, como crtica, acredito que tenha tido um valor significativo, mas, como fora positiva e construtiva, sou um pouco mais ctico.

    | Quais so os seus planos para o futuro? o sr. pensa em escrever mais um livro?| No sei, no estou escrevendo um agora, tenho que escrever alguns ensaios e tenho

    que dar algumas palestras, mas tenho 74 anos, ento... Voc sabe, nessa altura, a gente pensa no futuro de um modo diferente. No sei, talvez escreva algo, mas no momento no estou trabalhando em um livro, estou trabalhando bem, escrevo resenhas, tenho que falar com algumas pessoas no ms que vem e coisas do gnero. Tenho que tentar cumprir algumas pro-messas que fiz antes e no pude cumprir enquanto estava escrevendo livros. Mas eu posso eventualmente voltar a escrever. Veremos. Quando se toca de ouvido, quem sabe?

    Fonte: Folha de So Paulo: MAIS, p. 4-5. A Mitologia de um Antroplogo. Autor: Victor Aiello Tsu. Editora MAIS. Edio Nacional, 18 de fevereiro de 2001.

    1.4 A perspectiva interpretativa de Marshall Salhins

    Prezado aluno, dando sequncia ao trabalho, trataremos agora da contribuio terica do antroplogo Marshall Sahlins teoria antropolgica. Nesta etapa, todos os conhecimentos ad-quiridos anteriormente devero ser atualizados para uma melhor compreenso da proposta de Sahlins teoria antropolgica. Sua obra oferece um rico debate sobre a relao entre histria e cultura, bem como uma interpretao simblica da cultura bem longe do utilitarismo.

    1.5 Contribuio terica do antroplogo Marshall Sahlins teoria antropolgica

    Marshall Sahlins um dos principais expoentes das cincias sociais nas ltimas dcadas. Professor emrito da Universidade de Chicago e autor de um conjunto de obras fundamentais como Cultura e Razo Prtica, Ilhas de Histria, Metforas Histricas e Realidades Mticas.

  • 22

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    A sua reflexo oferece uma nfase noo de dinmica cultural, que marca sua obra, bem como a ideia de que a cultura est sempre em transformao. Em suas prprias palavras, as cul-turas so como os rios: no se pode mergulhar duas vezes no mesmo lugar, pois esto sempre mudando.

    A sua definio de cultura, portanto, chama-nos ateno para uma constante relao din-mica entre seus modelos internos e aqueles vindos de fora. Esses modelos de fora jamais so ab-sorvidos de forma passiva, antes, passam por uma reavaliao a partir da prpria estrutura. As-sim, preciso pensar na tenso entre a estrutura (cultural) e a histria. Nesse sentido, a cultura pode ser pensada como um conjunto estrutural de significao, no entanto, o contedo desses conjuntos estruturais altera-se em funo da histria, atravs do que Sahlins denominou como uma reavaliao funcional de categorias.

    A partir desta definio de cultura, observamos que o grande esforo de Sahlins consiste em historicizar a noo de estrutura, bem como pesquisar como a estrutura se realiza no interior da ordem cultural (conjunto estrutural de significao). Nesse sentido, poderamos falar aqui de um estruturalismo histrico, por mais paradoxal que isto possa parecer, pois se pode observar uma maior comunicao entre estrutura e histria, superando as antigas dicotomias. O debate sobre histria e cultura poder ser resumido na frase seminal de Sahlins (2003, p. 4). Se a antropologia foi por demasiado tempo o estudo dos povos sem histria, a histria andou, por mais tempo ain-da, estudando povos sem cultura. Felizmente, toda essa histria passada tambm uma antro-pologia (ultra)passada se no vice-versa.

    Avanando um pouco mais, preciso pensar, ento, nas implicaes que tais definies sus-citam. Em primeiro lugar, preciso focalizar a importncia das histrias nativas, ou melhor, das lgicas nativas, em um contexto atual em que se aponta para uma suposta dominao ou uma injuno da cultura pela globalizao. De acordo com Sahlins possvel pensar que atravs das diferentes lgicas nativas, a leitura da globalizao no pode ser pensada de forma monoltica ou nica, pois tais lgicas nativas absorvem, incorporam e muitas vezes desviam, de maneira particular, as injunes da globalizao.

    Box 2 - Entrevista com Marshall Sahlins

    Pergunta - De origem russa, o sr. nasceu em Chicago, bero de uma grande escola da an-tropologia norte-americana. De onde lhe veio o gosto por essa disciplina?

    Sahlins - A Universidade de Chicago de fato foi bero de uma grande escola de antropo-logia, mas quando cheguei a ela, em 1973, esse movimento j tinha envelhecido. Foi a escolha de Radcliffe-Brown para uma cadeira de professor, nos anos 1930, que fez de Chicago o pos-to avanado, nos EUA, da antropologia social britnica, ao preo de vrias conciliaes com a cultura local, como o caso nesse gnero de situao colonial.

    A universidade ficava no South Side, um bairro que, alm da equipe de beisebol rival, abrigava judeus alemes bastante esnobes, mais cultos e ricos que os judeus originrios da Europa Oriental que viviam no West Side. A gente no se misturava.

    Sempre fao questo de acrescentar que tive uma criao inteiramente laica numa fa-mlia no praticante. Quanto poltica, minha famlia no era filiada a nenhum partido, mas minha me admirava Emma Goldman [1869-1940, militante anarquista] e, durante o levante russo de 1905, quando ainda era criana, chegou a transportar folhetos revolucionrios es-condidos em sua mala escolar!

    Havia, portanto, afinidades entre esse meio de imigrantes esquerdistas do Meio-Oeste americano e as teorias antropolgicas de Leslie White [1900-75], que foi meu mentor na Uni-versidade de Michigan. White era um dos grandes intelectuais orgnicos contestatrios que a Amrica rural e das pequenas cidades produziu na primeira metade do sculo 20, entre os quais figuram tambm Thorstein Veblen, Clarence Ayres, Charles Beard e C. Wright Mills.

    Eles eram, por assim dizer, os ateus da aldeia: universitrios marginais em revolta contra os exploradores, as classes dominantes, os dogmas ideolgicos da sociedade americana.

    Pergunta - Em 1965, em plena Guerra do Vietn, o sr. lanou o primeiro teach-in [mani-festao em forma de aula] dos EUA. Poderia nos relatar essa experincia e o papel que esse evento exerceu em seu pensamento?

    Sahlins - Lancei a ideia de um teach-in, em oposio ao projeto inicial de teach-out lanado por cerca de 20 professores, que teria consistido em suspender as aulas para organi-zar debates sobre a Guerra do Vietn, fora do campus.

    Diante das crticas virulentas de nossos colegas, propus, ento, que ocupssemos as salas de aula aps as aulas, fizssemos teach-ins e criticssemos a guerra at tarde da noite.

  • 23

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    verdade que eu talvez tivesse uma predisposio para as oposies binrias, pois nos anos 1960 os americanos estavam se apaixonando por [Claude] Lvi-Strauss.

    Mas existiam, tambm, condies estruturais mais gerais, especialmente o abismo de ge-raes, que se aprofundava nessa poca: os estudantes, que at ento vinham sendo aprendi-zes de adultos burgueses, comeavam a imitar a classe operria -Levi Strauss, os jeans, no os livros!

    No ps-guerra havia apenas um tipo de msica popular que estava na moda nos EUA, e era apreciada igualmente por adultos e adolescentes. Ento surgiram Elvis e os Beatles, com-provando que Confcio e Plato tinham razo ao se preocuparem com a relao entre a msi-ca e a harmonia poltica.

    De fato, j existiam na juventude americana movimentos contraculturais e contestat-rios dignos desse nome antes mesmo da intensificao do conflito no Vietn, em fevereiro de 1965.

    Ao reavaliar o papel que desempenhei nessa conjuntura, cheguei concluso de que o papel histrico dos indivduos autoriza a si prprio uma estrutura, ou seja, uma posio no interior de um sistema, mesmo se essa posio no basta para determinar o que eles faro.

    O poder coletivo pode encarnar-se em um indivduo: seja por uma iniciativa feliz e opor-tuna -como no caso dos teach-ins, que tiveram grande sucesso-, seja pela autoridade consti-tuda do indivduo agindo na condio de dirigente designado de uma coletividade estrutu-ralmente organizada para refletir e fazer ouvir tudo o que um George W. Bush pode fazer ou suportar.

    Em todos os casos, porm, se esse indivduo determina o destino da coletividade, esta, por sua vez, no determina sua prpria individualidade. Como diz Sartre, o grupo obrigado a se realizar, da mesma maneira como se deixa personificar.

    De maneira geral, na esteira da Guerra Fria, a Guerra do Vietn exerceu impacto conside-rvel sobre praticamente todas as disciplinas universitrias nos EUA. Consideraes polticas e estratgicas afetaram ou at mesmo ditaram a escolha das pesquisas cientficas a serem em-preendidas, das lnguas a serem ensinados, das regies do mundo a serem estudadas.

    Se consideramos at que ponto a Guerra Fria impregnou todos os campos de reflexo, a poca se prestava idealmente ao pensamento de Foucault, que, tambm ele, enxergava o poder por toda parte.

    Globalmente, as cincias humanas e as letras optaram por combater os poderes institu-dos, desenvolvendo uma crtica anti-hegemnica do nacionalismo, do imperialismo, do Esta-do, do racismo, do sexismo e de outros demnios planetrios. Elas correram o risco de se de-baterem numa contradio inevitvel, j que, privilegiando os contradiscursos libertadores da anti-estrutura ou da desconstruo, implicitamente ratificaram certos discursos de dominao como sendo relatos fundadores, mais especialmente a verso foucaultiana.

    Mas se, para muitas pessoas, a lio dos anos 1960 foi a de se opor a todas as formas de poder, a lio do Vietn me ensinou, sobretudo, a celebrar todas as formas de cultura. O xito dos vietnamitas diante do poderio americano no reforou minha confiana no determinismo tecnolgico que eu aprendera na universidade.

    Iniciei uma srie de estudos sobre o que chamei de a indigenizao da modernidade, fazendo referncia aos diferentes mtodos culturais empregados pelos esquims, os povos da Nova Guin, os polinsios etc.

    para inscreverem um sistema mundial invasor dentro de um contexto ainda mais englo-bador: seu prprio sistema do mundo.

    Pergunta - Em 1968 e 1969 o sr. trabalhou com Lvi-Strauss em Paris. O que tirou desse confronto?

    Sahlins - impossvel para mim sintetizar tudo o que aprendi nessa poca no laborat-rio de Lvi-Strauss no Collge de France. Permita que eu resuma essa experincia. Em 1969 apresentei uma pesquisa sobre determinados sistemas de troca tradicionais da Austrlia e da Melansia, precisando bem, no prembulo, que eu no era estruturalista, pois no falava de uma troca de mulheres ou de palavras, mas de uma infra-estrutura material bastante real e concreta cuja anlise Lvi-Strauss j concedera a Marx.

  • 24

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    Durante a discusso que se seguiu, ele afirmou que eu era estruturalista, sim: afinal, aqui-lo que eu demonstrara com relao s trocas materiais correspondia a certas estruturas de troca matrimonial que ele descrevera em As Estruturas Elementares do Parentesco [ed. Vo-zes]. Protestei, citando o trecho em O Pensamento Selvagem [Papirus] em que ele declara que o estruturalismo especificamente uma cincia de superestruturas.

    verdade, ele retrucou, mas o sr. deve compreender que aprendi antropologia com Franz Boas [1858-1942] e Robert Lowie [1883-1957], que discutiam com ndios de reservas os costumes de geraes passadas -ele chamava isso de arqueologia do vivo. Ningum pres-tava ateno existncia de ndios contemporneos, ele acrescentou. Mas hoje preciso es-tender o estruturalismo s infra-estruturas.

    Retruquei que eu acreditava que sua restrio do estruturalismo s superestruturas era uma questo de princpio cientfico, e no pude me impedir de lhe perguntar: O que o es-truturalismo, afinal?. Ele me respondeu: a boa antropologia, em suma. E, de fato, segundo esse critrio, admito que eu era estruturalista.

    Pergunta - Desde quando vem seu interesse pela Polinsia e por Fiji? Pode nos explicar sua opo por uma etnografia histrica, fundamentada nos arquivos mais que no trabalho de campo? O que o sr. aprendeu sobre essas sociedades?

    Sahlins - Como muitos homens de minha gerao, minha iniciao na antropologia se-guiu, em sua prpria escala modesta, a trajetria do primeiro grande mestre americano, Lewis Henry Morgan [1818-81]. Ele decidiu fazer um estudo de campo sobre as tribos iroquesas lo-cais e, com isso, inaugurou a tradio etnogrfica americana.

    Da mesma maneira, minha infncia passada brincando de caubi e ndio e lendo os romances de Fenimore Cooper [1789-1851, de O ltimo dos Moicanos], escritos em falsa lin-guagem indgena, levou-me a fazer um estudo de campo sobre um tipo de cl incomum, por ser hierarquizado, que qualificamos como cl cnico.

    Eu acabava de concluir um estudo das hierarquias polticas polinsias, e era em Fiji que se podia realizar um estudo etnogrfico desse tipo de hierarquia de cl.

    Pergunta - Por que o sr. escreve que a tradio nessas sociedades do Pacfico pode ser tambm uma modalidade de mudana?

    Sahlins - Desde o sculo 19, os povos do Pacfico, medida que a sobrevivncia de sua comunidade o permitiu, continuaram a ser atores e motores de suas prprias histrias.

    Emprego o plural desse termo propositalmente, pois sobretudo em suas culturas res-pectivas que eles foram buscar os recursos para continuar a serem atores de suas histrias. Logo, a tradio se tornou o mediador e a medida das transformaes por que passaram. Bas-ta estudar dois exemplos muito distintos de cristianizao, ambos seguindo um modelo pro-testante e at mesmo puritano: de um lado os urapmins da Nova Guin, que no demoraram a se perceber atingidos pelo pecado original e, portanto, se converteram em massa por con-tato com outros povos da Nova Guin antes mesmo de terem visto qualquer missionrio eu-ropeu. E, de outro lado, os havaianos, sobretudo aqueles das camadas populares, que se man-tiveram devassos e resistiram converso durante dcadas, porque, como freqentemente observaram os missionrios americanos, lhes faltava a averso por eles mesmos.

    Eu me contentarei em mencionar alguns elementos culturais para demonstrar essa dife-rena. Para comear, o carter fortemente centralizado da sociedade havaiana, segundo o qual a existncia e a felicidade das camadas populares dependiam das aes de seus chefes. Inde-pendentemente de suas prprias convices, como repetiam aos missionrios desesperados, as pessoas comuns se converteriam ao cristianismo quando seu chefe lhes desse o exemplo.

    Mas, em vista do valor poltico e material das relaes erticas no sistema o famoso esprito aloha, que governava a sorte tanto dos chefes quanto dos no nobres , era difcil convenc-los a praticar a abstinncia e a mortificao nas quais os protestantes enxergavam o sinal da graa divina. Um missionrio deplorou o fato de os havaianos disporem de 20 pala-vras diferentes para designar o adultrio: se ele escolhesse uma delas para traduzir o stimo mandamento, eles pensariam que as outras formas de adultrio continuariam a ser lcitas.

    diCA Caro aluno, se voc est

    sentindo dificuldade em compreender a

    revoluo que estas ideias representam para

    a teoria antropolgica, recomendamos retomar

    os Cadernos anteriores antes de seguir em

    frente, em particular, aqueles que tratam

    da noo de estrutura em Radcliffe-Brown e

    Claude Lvi-Strauss.

    diCA Recomendamos uma

    leitura atenciosa do su-plemento viagem de CooK; ou le calcul sau-

    vage, primeiro captulo do livro Ilhas de Histria,

    pois trata-se de uma histria nativa clssica

    das ilhas havaianas para entender as implicaes

    que estamos tratando. Em sntese, podemos dizer que Sahlins nos

    ajuda pensar que no estamos condenados a

    uma homogeneidade cultural imposta pela

    lgica global.

    AtividAde Segue abaixo entrevista

    com o Professor Mar-shall Sahlins, realizada por FRANOIS ARMA-

    NET e GILLES ANQUETIL. Sahlins, nesta entrevis-

    ta, fala de sua expe-rincia com os nativos da Oceania e compara

    a Guerra do Iraque aos confrontos entre

    Esparta e Atenas, entre outros assuntos diver-

    sos. Destaque os temas que julgar interessante

    e em seguida realize seminrios e discusses

    com seus colegas.

  • 25

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    Inversamente, os urapmins formam um pequeno grupo, relativamente igualitrio, de 360 pessoas que se casam entre si e se vem envolvidas em relaes recprocas e complexas de parentesco, intensas e freqentemente incompatveis. Seria possvel dizer que, em seu siste-ma tradicional, qualquer boa ao era tambm uma m ao na medida em que a escolha de viver com algum implicava deixar de lado outra pessoa, no menos prxima; ao dar um presente a alguns, incentivava-se a crtica por ter desprezado suas obrigaes em relao aos outros.

    Assim, no surpreende que, para traduzir o conceito cristo de pecado, os urapmins em-preguem o termo dvida. Mas eles se enganavam ao crer que o cristianismo seria sua reden-o. Como no podiam renunciar pura e simplesmente a sua cultura tradicional, eles apenas agravaram seu caso, pois sua cultura era incompatvel com os ideais de harmonia crist.

    Pergunta - Qual o papel da cultura em sua pesquisa antropolgica?Sahlins - Para mim a cultura tudo. Em suas formas e em suas transformaes, seu papel

    na histria das sociedades e na organizao dos indivduos, a cultura o objeto por exceln-cia de todo saber antropolgico.

    A melhor maneira de ilustrar essa convico talvez seja contestar o folclore do determi-nismo gentico que ficou to em voga nos EUA: esse movimento pretende remeter toda for-ma cultural a uma natureza humana universal fundamentada no interesse pessoal e no esp-rito de competio.

    Associadas s teorias econmicas da escolha racional, disciplinas vulgarizadas, como so a sociobiologia e a psicologia evolutiva, esto criando uma cincia humana de mltiplos usos, a cincia do gene egosta. Naturalmente, fcil reconhecer nessa suposta natureza hu-mana o velho sujeito burgus.

    Uma parcela grande demais dos americanos ainda est convencida de que a espcie sou eu. Entretanto, como prova a antropologia mais elementar, viver sua vida em conformidade com sua cultura permite que se tenha a possibilidade e que se reconhea a necessidade de satisfazer nossas inclinaes naturais no modo simblico, segundo definies significantes de ns mesmos, de nosso ambiente, de nossas relaes e de nossas produes.

    De fato, a cultura humana bem mais antiga que nossa natureza enquanto espcie, pois ela remonta a pelo menos 2 milhes de anos, sendo que o Homo sapiens surgiu h apenas 200 mil anos, engendrado dentro de e por um contexto cultural que tomava a reproduo hu-mana a seu cargo. Se evolumos biologicamente, isso se deu sob a presso da seleo cultural, ou seja, a necessidade de culturalizar nossa animalidade.

    Isso no faz de ns ou de nossos ancestrais pginas em branco despidas de qualquer imperativo biolgico; quer dizer simplesmente que o que foi selecionado de maneira espec-fica pelo gnero Homo foi a capacidade de realizar esses imperativos de mil maneiras diferen-tes e pouco conhecidas, mas demonstradas pela histria e pela antropologia.

    O fato mais pertinente para compreender as relaes entre cultura e natureza humana no , por exemplo, o fato de que todas as culturas conhecem a sexualidade, mas que toda sexualidade conhece a cultura. As pulses sexuais so diversamente expressas e reprimidas segundo as definies, especficas de cada cultura, de o que so os parceiros, as circunstn-cias, os lugares, os momentos e as funes corporais apropriados.

    Figura 2: Surgimento do Homo sapiens 1Fonte: Disponvel em . Acesso em 4 dez. 2014.

  • 26

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    Alguns chegam a praticar sexo por telefone. Outro exemplo de manipulao (o jogo de palavras proposital) conceitual a clebre rplica do ex-presidente Bill Clinton: No fiz sexo com essa mulher.

    Inversamente, sublimamos nossa sexualidade genrica de mil maneiras, incluin-do a de transcend-la e dar preferncia castidade, valorizada pelo pensamento cristo. O mesmo se aplica agressividade: podemos brincar de guerra, desancar impiedosamente o livro mais recente de um acadmico inimigo ou, mesmo, moda nova-iorquina, responder a um tenha um bom dia com no preciso receber ordens de voc!.

    Sejam quais forem nossas necessidades, pulses, inclinaes inatas, quer sejam de ordem agressiva, egosta, alimentar, social ou altrusta, elas so frutos de uma definio simblica, portanto de ordem cultural. Na espcie humana, a biologia um determinante culturalmente determinado.

    Pergunta - O verdadeiro pensamento selvagem o do capitalismo contemporneo?Sahlins - No no sentido estrito do termo. Mais exatamente, o capitalismo contempor-

    neo implica uma mesma lgica cultural do concreto sob a forma de valores de uso, que, uma vez fetichizados como preos e colocados em ao para fins lucrativos, fazem inegavelmente o efeito de um pensamento selvagem incontrolado. Por mais que nossa racionalidade pecu-niria o tenha ocultado, se ergue sobre todo um sistema de valores culturais motivados que associam sujeitos e objetos, logo, preferncias e produtos, em razo de suas caractersticas distintivas.

    claro que essa realidade passa despercebida aos olhos dos sujeitos burgueses que ge-ralmente vivem seus valores culturais como um hbito, sem prestar ateno a ele e dos eco-nomistas, que, tendo definido seu domnio como uma racionalidade prudente, enquadram as formas culturais nos limbos dos fatores exgenos ou mesmo irracionais.

    No nos damos conta de que nossas escolhas racionais por exemplo, no serviremos hambrgueres a convidados que respeitamos so baseadas num cdigo de valores que no guarda relao nenhuma com o carter nutritivo e que tem tudo a ver com a significao res-pectiva dos rgos e dos msculos, da carne e dos cortes, do cortado e do modo, dos pratos e dos sanduches etc.

    Da mesma maneira, no so as qualidades concretas das roupas que explicam a diferen-a de estilo de vestimenta que manifesta a distino social em vigor entre homens e mulhe-res em situaes de trabalho e de lazer, entre empresrios e policiais, bailes de debutantes e boates: basta pensar em todos os significados veiculados por uma pea de vesturio, como [Roland] Barthes nos ensinou.

    Vivemos hoje em um mundo que se encanta com objetos semioticamente construdos e culturalmente relativos, como o ouro, a seda, as cepas de pinot noir, o petrleo, o fil mignon, os tomates primeira colheita e a gua pura de Fiji.

    Assistimos a uma construo da natureza por meio de esquemas culturais historicamen-te determinados, mas cujas qualidades simblicas so transformadas em qualidades pecuni-rias, cujas fontes sociais so atribudas a desejos individuais e cuja satisfao arbitrria tra-vestida em escolha universalmente racional.

    Mas, como impelido competio pelo interesse financeiro, esse encantamento produz uma infinidade de objetos, enquanto ainda for possvel metamorfosear as distines sociais dos sujeitos e dos objetos em mercadorias rentveis.

    Pergunta - O sr. no hesita em traar comparaes entre civilizaes geogrfica e histo-ricamente distantes, como, por exemplo, entre as guerras do Peloponeso narradas por Tucdi-des e as de Fiji. O que lhe traz esse olhar cruzado?

    Sahlins - O conflito entre os reinos fijianos de Bau e de Rewa (e seus respectivos aliados), que durou de 1843 a 1855, foi a maior guerra travada nos mares do Sul antes da Segunda Guerra Mundial.

    Como Bau (como Atenas) era uma potncia naval imperialista, e Rewa (como Esparta) era uma velha potncia terrestre, a guerra da Polinsia j tinha levado os visitantes europeus do sculo 19 a traar comparaes entre ela e as guerras do Peloponeso.

  • 27

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    A diferena de estrutura poltica entre Bau e Rewa procedia de uma interdependncia, comparvel relao entre o parentesco de sangue (consanguinidade) e o parentesco por ca-samento (afinidade), o que autoriza a pensar que os prprios fijianos teriam conscincia de que essas estruturas eram o espelho invertido (a anttese) uma da outra.

    Da mesma maneira, Atenas e Esparta constituem antitipos estruturais e histricos: essas duas cidades eram, respectivamente, cosmopolita e xenfoba, martima e terrestre, comer-ciante e autrquica, luxuosa e frugal, democrtica e oligrquica, urbana e campnia, autcto-ne e imigrante

    Poderamos continuar ao infinito com essas dicotomias. O que lembra a injuno to in-fluente de Lvi-Strauss em Race et Histoire [Raa e Histria]: preciso evitar estudar a diver-sidade das culturas humanas caso a caso, pois essa diversidade nasce menos do isolamento dos diversos grupos que das relaes entre eles.

    Como esse princpio confirmado vrias vezes em Mythologiques [Mitolgicas], somos tentados a concluir que, apesar de seu apego sincronia, o estruturalismo igualmente forte-mente historicista. ]

    Pergunta - O que as guerras do Peloponeso podem nos ensinar sobre a guerra do Ira-que, hoje?

    Sahlins - Substituindo os mitos de Herdoto pelo lgos, Tucdides usurpou o ttulo de pai da histria, tornando-se o queridinho dos pragmticos das relaes internacionais e ou-tros adeptos ocidentais da realpolitik.

    Mas o paralelo mais esclarecedor com o Iraque nos oferecido pela guerra civil anrqui-ca (estase) que devastou Corcira, onde espartanos e atenienses se envolveram no conflito interno que opunha os oligarcas locais aos democratas, disputando o controle da cidade. Em Corcira, assim como no Iraque, quando as instituies de Estado perderam toda legitimidade e a violncia se tornou o recurso privilegiado de todas as causas partidrias, os valores sagra-dos da justia, da moral e da religio foram afogados no sangue e reduzidos a nada.

    Figura 3: Guerra do Peloponeso 1Fonte: Disponvel em . Acesso em 4 dez. 2014.

  • 28

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    Plato observou um dia que cada plis na verdade composta de vrias plei, pois ela se divide em cidade dos ricos e cidade dos pobres, em guerra de um contra o outro, e cada uma dividida, ela prpria, entre faces opostas. E, quando as causas e as foras internacio-nais -como a dominao ateniense sobre Corcira ou a oposio entre democracia e funda-mentalismo islmico no Iraque- se somam s dissenses locais, tem-se a impresso de assistir a um colapso da ordem cultural e irrupo da natureza humana sob sua forma mais brutal.

    Em Corcira, escreve Tucdides, at as palavras foram obrigadas a renunciar a seu sentido habitual e aceitar aquele que se lhes era dado. Desse modo, a premeditao virou legtima defesa; a moderao, falta de virilidade, a prudncia, covardia.

    Ecoando alguns argumentos dos sofistas, opondo o carter superficial da cultura (n-mos) ao carter irresistvel da natureza (physis), o historiador antigo afirmava que essa ma-nifestao desenfreada de hipocrisia e injustia se produziria cada vez que o desejo natural de poder e de lucro se chocasse com as frgeis convenes da ordem social.

    E ainda encontramos os ecos dessa ideologia no comentrio feito por Donald Rumsfeld [ento secretrio da Defesa] sobre o caos que se seguiu ocupao americana de Bagd: Isso teria que acontecer, cedo ou tarde, uma verso asseptizada de Cedo ou tarde a coisa teria que explodir. um defeito que os ocidentais sempre atribuem aos outros povos, mas eles prprios tendem rapidamente a confundir natureza e cultura.

    Quer seja em Corcira ou no Iraque, foi preciso uma combinao gigantesca de causas morais e polticas conflitantes para produzir esse suposto estado de natureza. Em Corcira, as-sim como no Iraque, a interveno de fatores externos poderosos conferiu um valor novo e absoluto aos cismas internos da cidade, tornando-os to insolveis quanto abstratos e ideo-lgicos.

    Daquele momento em diante, as pessoas passaram a lutar por ou contra generalidades: a liberdade, a escravido, a democracia, o isl, a ditadura, o terrorismo, o imperialismo. Fato que prova simplesmente que necessria muita cultura para criar um estado de natureza.

    Fonte: Jornal Folha de So Paulo. Disponvel: .

    RefernciasCARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o Pensamento Antropolgico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.

    CASTRO, Celso. Antropologia com Vocao: uma homenagem a Clifford Geertz. estudos Hist-ricos. Rio de Janeiro. n. 38. julho-dezembro de 2006, p. 116-119.

    ERIKSEN, Thomas Hylland; NILSEN, Finn Sivert. Historia da Antropologia. 1. ed. Petrpolis: Vo-zes, 2010.

    FISCHER, Michael. Da Antropologia Interpretativa a Antropologia Crtica. Anurio Antropol-gico 83. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

    GEERTZ, Clifford. A interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

    GEERTZ, Clifford. Gneros Confusos: la refiguracin del pensamiento social. In: REYNOSO, Carlos. (org.) el Surgimiento de la Antropologia. Ps-Moderna. Mxico: Gedisa, 1991.

    SAHLINS, Marshall David. Como Pensam os nativos: Sobre o Capito Cook, por exemplo. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2001.

    SAHLINS, Marshall David. Cultura na Prtica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

    SAHLINS, Marshall David. ilhas de Histria. Rio de Janeiro: Jorge Sahar editora, 2003.

  • 29

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    UnidAde 2A Antropologia ps-moderna

    Carlos Caixeta de Queiroz

    2.1 IntroduoComo vimos, Geertz, ao elaborar uma nova concepo de antropologia, que ficou conheci-

    da como antropologia interpretativa, posicionou-se criticamente frente s capacidades explicati-vas dos modelos antropolgicos clssicos de representaes culturais. Geertz procurou entender que a cultura um texto e que pode ser interpretado como um texto. A cultura uma tessitura de significados elaborados pelo homem e que poderia ser lida e interpretada como se fosse um texto. Caberia, ento, antropologia interpretar os significados da cultura e a interpretao seria de segunda mo, pois quem faria a interpretao de primeira mo seriam os nativos.

    Partindo dessa ideia de ver a cultura como texto, os antroplogos chamados ps-modernos tomaram como objeto da antropologia o prprio texto antropolgico ou, em outras palavras, propuseram interpretar criticamente o texto etnogrfico. As crticas dos ps-modernos se centra-ram, principalmente, nos contextos de produo do texto etnogrfico, sobre a autoria dos textos etnogrficos e a relao entre pesquisador e pesquisado. Procuraremos, ento, situar algumas das preocupaes dos autores chamados ps-modernos.

    2.2 Antropologia ps-modernaAinda no sculo XIX, a expresso evolucionismo social foi combatida e, em seu lugar, a an-

    tropologia, em diversas manifestaes distintas na Frana, Inglaterra, e Estados Unidos e outros lugares, comeou a ser divulgada e trabalhada.

    Para pensar a emergncia de uma antropologia moderna j em fins do sculo XIX e come-o do XX, como se sabe, o caso francs marcado pelos trabalhos de Emile Durkheim e Mar-cel Mauss para a terminao etnologia; na Inglaterra, Bronislaw Malinowski e Radcliffe Brown contriburam para aquilo que passou a ser chamado de antropologia social; e, finalmente, no caso dos Estados Unidos, foi Franz Boas e a escola de cultura e personalidade (que foi mentor) quem deu terminao antropologia cultural a roupagem como um pensamento que ainda h fortes traos neste pas ainda hoje (Stocking Jr. 2004, p.15). Mas, nenhumas dessas formulaes deixaram de ser precedidas de discusses entorno de fenmenos sociais (e mesmo biolgicos) relevantes. Foi durante o sculo XIX que a Europa e os Estados Unidos passaram a colher dados e informaes de populaes que possuam a presena colonial em seus territrios: o Africano, a Oceania, a sia, e as Amricas.

    Entre as inmeras expedies, pode ser citada a do Estreito de Torres (The Cambridge An-thropological Expedition to the Torres Straits), em 1898-1899, que foram organizadas pelos ingle-ses Alfred Court Haddon (1855 - 1940), W. H. R. Rivers (1864 (1864-03-12) - 1922) e Charles Gabriel Seligman (1873 - 1940); acrescentam-se, ainda, os trabalhos documental-bibliogrficos de Fran-cis James Gillen (1855 - 1912) e Walter Baldwin Spencer (1860 - 1929) que, em 1899, fazem uma descrio das sociedades indgenas do centro australiano: The native tribes of Central Austrlia e, em 1904, das do Norte desse mesmo continente: The northern tribes of Central Austrlia. Foram esses conjuntos de descries e pensamentos que deram posies que viraram referncia pelos dados etnogrficos que produziram para obras clebres como: Les formes lmentaires de la vie religieuse (1912), de Emile Durkheim; Totem and Taboo: Resemblances Between the Mental Lives of Savages and Neurotics (1913), de Sigmund Freud; e The family among the Australian aborigenes: a sociological study (1913), de Malinowski.

  • 30

    UAB/Unimontes - 4 Perodo

    A partir disso, ento, muitos casos como estes ecoaram no terreno acadmico. Como di-vulgado na literatura antropolgica, se com Durkheim j aparecia a ideia de integrao e as l-gicas prprias de cada povo, foi com Franz Boas (1858 - 1942) de um lado para a antropologia cultural americana e Bronisaw Kasper Malinowski (1884 - 1942) de outro, para a antropologia social inglesa, que o mtodo comparativo, trabalho de campo e o nativo comeam a parecer em formas mais necessrias para aquilo que se convencionou chamar de modernidade antro-polgica.

    Mas, o ponto de maior interesse aqui no bem trabalharmos essa produo antropolgica por diversos pesquisadores durante os anos, algo que j foi discutido em outras disciplinas do nosso Curso, mas a efervescncia de um pensamento que comeou a questionar tais trabalhos e o tempo em que foram escritos. Foram nos anos de 1980 que algumas discusses de antropo-logia comearam a usar a roupagem de ps-moderna ou crtica. Contudo, j se deve advertir aqui que nenhuma referncia terica que construda, como se tentou previamente dizer, est solta sem alguns desmembramentos ou referncias. Vamos tentar mapear momentos circunscri-tos de significativos desdobramentos para a chegada da antropologia ps-moderna ou crtica.

    Para Ardener (1985), o modernismo antropolgico se consolida com a instaurao de gran-des escolas de pensamento antropolgico, e o momento de crtica aos pensamentos que se prendem a essa fase se instaura na diversidade terica contempornea. O perodo dos ismos (como caracterizado a modernidade antropolgica: Funcionalismo, Culturalismo, Estrutura-lismo e outros), foi marcado por uma srie de pensadores que contriburam para afirmao de tradies paradigmticas em antropologia (Stocking Jr., 2006) em vrios cantos do mundo. Even-tos como as guerras mundiais e a crise dos modelos coloniais pelo mundo serviram para pensar (entre muitas coisas) sobre o lugar da teoria, da produo do conhecimento, do lugar do objeto e da posio do sujeito, elementos balizadores importantes do que se toma como clssico no pensamento moderno. Crticas aos movimentos coloniais e de revolta no continente Africano e outros, a produo literria, a emergncia da ideia de conflito em comeo dos anos 1970, a crise dos modelos industriais e outros inmeros acontecimentos no mundo ajudaram a postular um pensamento crtico deste tipo de realidade moderna que at ento dominou o cenrio de pro-duo intelectual pela antropologia sob a imagem de grandes escolas.

    Na Europa, pensadores como M. Bakhtin, M. Foucault, J. Derrida, R. Barthes, P. Bourdieu se destacaram em questionamentos sobre o pensamento moderno em vrios campos de conheci-mento, possibilitado principalmente pelas discusses da lingustica que j estavam sendo divul-gadas e foram mais consolidadas nas dcadas do perodo de 1950 e 1970. Em conjunto aos seus questionamentos, havia outros inmeros antroplogos que se esboaram em variadas obras pelo mundo, como a antropologia simblica e a antropologia interpretativa nos EUA.

    Clifford Geertz, como o principal expoente da chamada antropologia hermenutica ou in-terpretativa, j advertia como sada do mal-estar da relao objeto x sujeito, observador x nativo, a frase somos todos nativos (Geertz, 2001). Esta e outras inmeras tentativas deram suporte a pensamentos que veio a chamar de ps-modernos ou crticos: James Clifford, George Marcus, James Boon, Paul Rabinow, Vincent Crapanzano, Michael Taussig, Stephan Tyler, Talad Asad e ou-tros.

    Os pontos mais gerais de vrias das discusses esto na natureza do prprio empreendi-mento clssico da antropologia: a etnografia, na escrita e da autoridade implicada neste proces-so. Portanto, em meio a esta crise representacional, um conjunto de pensadores, talvez iniciado pelo trabalho de Clifford Geertz, procurou dar uma resposta suposta crise que a antropologia passava (ou o que eles chamam de crise da modernidade). Entre os pontos centrais de (re)deli-neamento est a escrita etnogrfica.

    Um fato importante que Geertz chama a ateno quando a publicao dos dirios de Ma-linowski (este cone da antropologia moderna) foi realizada e houve uma nova discusso so-bre a autoridade etnogrfica. Para Geertz, Malinowski retrata um tipo de pesquisador que obli-terou o prprio ego em vez de procurar estudar o que ele chama de sistemas simblicos de uma dada sociedade, processo que deveria ser feito a partir da possibilidade de compreenso da cultura (que um contexto) do povo estudado, ou seja, uma antropologia da compreenso da explicao do outro de sua experincia: a antropologia interpretativa. Portanto, nesse entendi-mento, os textos antropolgicos seriam estas construes ficcionais (interpretaes de segunda ou terceira mo), mas sempre como algo construdo por fatos cumulativos (Geertz, 1989:10-11). Afinal, para o autor estadunidense, os antroplogos no estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanas...) eles estudam nas aldeias (GEERTZ, 1989, p.16).

    Na verdade, os pressupostos da objetividade e da neutralidade estavam sendo postos em questionamento. Para o pai da antropologia interpretativa (Geertz) o que se deveria buscar

  • 31

    Cincias Sociais - Antropologia IV

    trilhar o discurso social por meio de uma interpretao dada, por exemplo, da experincia dos balineses contada pelos balineses, e no mais a proposta (moderna) do etngrafo sobre os bali-neses. Este domnio do discurso foi de certa forma a maior mola de debate.

    Bem, outros autores que representam o pensamento ps-moderno consideram a existn-cia, portanto, de uma crise como sinal de uma projeo nefasta pretensa objetividade diante de um contexto de mudana culturais e sociais, afinal: las personas y las cosas estn cada vez ms fuera de lugar (CLIFFORD, 1998, p. 20).

    Algumas propostas, como de George Marcus (1995), parecem procurar entender o sentido mais global dos contextos construdos, em sua anlise de um objeto multi sited tem como en-foque que a etnografia possa romper os espaos convencionalizados por fronteiras, que levem e