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O nascimento da ciência moderna e a América.

O papel das comunidades científicas, dos

profissionais e dos técnicos no estudo do território

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Editora da Universidade Estadual de Maringá

Reitora: Profa M.A. Neusa Altoé Vice-Reitor: Prof. Dr. José de Jesus Previdelli

CONSELHO EDITORIAL Presidente: Prof. Dr. Gilberto Cezar Pavanelli. Coordenador Editorial: Prof. Dr. Jean Vincent Marie Guhur. Membros: Prof. Dr. Antonio Cláudio Furlan, Profa Dra Astrid Meira Martoni, Prof. Dr. Carlos Kemmelmeier, Profa Dra Celene Tonela, Profa Dra Celina Midori Murassi, Prof. Dr. Celso Luiz Cardoso, Prof. Dr. Fernando Antonio Prado Gimenez, Prof. Dr. Gentil José Vidotti, Profa Dra Lizete Shizue Bomura Maciel, Profa Dra Maria Suely Pagliarini, Prof. Dr. Renilson José Menegassi, Prof. Dr. Thomas Bonnici. Secretária: Maria José de Melo Vandresen.

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HORÁCIO CAPEL SAEZ

O nascimento da ciência moderna e a América.

O papel das comunidades científicas, dos

profissionais e dos técnicos no estudo do território

Organização e tradução Jorge Ulises Guerra Villalobos

Maringá 1999

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FICHA TÉCNICA

Editoração eletrônica . Marcos Kazuyoshi Sassaka . Marcos Cipriano da Silva . Juliano Rodrigues Lopes

Capa - arte final . Marcos Kazuyoshi Sassaka

Foto da capa . Imagem TM-LANDSAT na composição

colorida das bandas 2,3 e 4 mostrando a região da Grande São Paulo e Santos, em azul claro.

Tiragem . 500 exemplares

Organização e tradução . Dr. Jorge Ulises Guerra Villalobos.

Departamento de Geografia UEM

Revisão Técnica . Janette Monteiro de Cnop; Maria

Teresa de Nóbrega, Maria Dolis, Maria Teresa Benevides, Olinda Teruko, Lígia Cristina Cordeiro, Jorge Ulises Guerra Villalobos.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca Central – UEM, Maringá

C238 Capel Saez, Horácio O nascimento da ciência moderna e a América. O papel das

comunidades científicas, dos profissionais e dos técnicos no estudo do território / Organização e tradução de Jorge Ulises Guerra Villalobos. -- Maringá : Eduem, 1999.

198 p.

ISBN : 85-85545-33-X

1. Geografia. 2. Teoria da Geografia. 3. História da Geografia. 4. História da Ciência. 5. América. 6. Ciência Moderna.

CDD 21. Ed. 910.01 910.9

CIP NBR-12899 AACR2

Copyright 1999 para EDUEM Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer

processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, da EDUEM.

Direitos para tradução e edição em língua portuguesa, cedidos pelo autor. Endereço para correspondência:

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá Universidade Estadual de Maringá Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação/Divisão de Editoração Av. Colombo, 5790 - Bloco 115/Campus Universitário 87020-900 - Maringá-Paraná-Brasil Fone: (044) 263-6335 e (044) 261-4253 Fax: (044) 263-5116 E-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

Apresentação ........................................................... vii

Prefácio .................................................................... ix

Fatores sociais e o desenvolvimento da ciência: o papel das comunidades científicas ........................... 1

A América no nascimento da geografia moderna: das crônicas medievais às crônicas sobre as Índias, passando por Plínio e pelo descobrimento das novas terras .............................................................. 45

Ambientalismo e História: o padre Las Casas como geógrafo ................................................................... 81

A criação do território. Engenheiros e arquitetos da ilustração, na Espanha e na América ........................ 113

A Geografia e as periferias urbanas: reflexões para arquitetos ................................................................. 175

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APRESENTAÇÃO

Horácio Capel é Catedrático em Geografia Humana na Universidade de Barcelona. Nascido em Málaga, em fevereiro de 1941, realizou seus estudos de licenciatura em Filosofia e Letras, centrando sua formação na área de História, na Universidade de Murcia. Seu trabalho de conclusão de curso, intitulado Población y los movimientos migratorios en el municipio de Lorca (Murcia), foi apresentado nessa universidade em setembro de 1963, orientado pelo Dr. Joan Vilá Valentí.

Em 1966 ingressou, como Professor Encargado de Curso, na Universidade de Barcelona. Doutorou-se em Filosofia e Letras, na área de Geografia, em 1972, com a tese La red urbana española, 1950-1960.

Foi diretor de Geo Crítica: Cuadernos Críticos de Geografía Humana, editada pela Universidade de Barcelona, no período de 1976-1994 (com 100 números publicados) e secretário da Revista de Geografia (1967-1992). Tem realizado investigações sobre Geografia Urbana (sistemas urbanos, morfologia urbana), Teoria, História e Sociologia da Ciência (História da Geografia e da Geologia, comunidades científicas e corporações profissionais). Na atualidade, trabalha com temas relacionados com a inovação tecnológica e o desenvolvimento urbano na Espanha contemporânea. Tem orientado mais de trinta teses de doutoramento.

Entre seus livros podemos destacar:

Estudios sobre el sistema urbano (1974, 1982); Geografía y matemáticas en la España del siglo XVIII (1982); Capitalismo y morfología urbana en España (1975, 1977, 1981, 1983, e edição ampliada, com o capítulo a respeito do Planeamiento urbano en España, 1975-1989, 1990); Filosofía y Ciencia en la Geografía

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contemporánea, (1981, 1984); La estructura física de la Tierra según los libros de Geografía (1983); La Física Sagrada: Creencias religiosas y teorías científicas en los orígenes de la geomorfología española (1985); Geografía Humana y Ciencias Sociales: Una perspectiva histórica (1987); Las Tres Chimeneas: Implantación industrial, cambio tecnológico y transformación de un espacio urbano barcelonés (1994); Habitatge, especialització i conflicte a la ciutat catalana (1996).

A idéia da presente obra nasceu quando de nossa estadia, como pesquisador, na Universidade de Barcelona no período out/95 a jul/96.

Após acesso à produção do Prof. Horácio Capel, publicada em diversos periódicos, decidimos juntamente ao autor selecionar alguns desses artigos para fins de publicação de um livro no Brasil.

O critério utilizado nesse processo de seleção foram os artigos que viessem a contribuir no debate teórico-metodológico da ciência geográfica no país; desta forma, surgiu a proposta do título da obra que congregasse tal produção, ou seja: O nascimento da ciência moderna e a América. O papel das comunidades científicas, dos profissionais e dos técnicos no estudo do território.

Os trabalhos selecionados foram os seguintes: Factores sociales y desarrollo de la ciencia: el papel de las comunidades científicas; América en el nacimiento de la geografía moderna. O sea, de las crónicas medievales a las crónicas de Indias pasando por Plinio y el descubrimiento de las tierras nuevas; Ambientalismo e Historia. El padre Las Casas como geógrafo; La invención del territorio. Ingenieros y arquitectos de la Ilustración en España y América; La geografía y las periferias urbanas. Reflexiones para arquitectos, todos publicados em “ANTHROPOS. La geografia hoy. Textos, historia y documentación. Suplementos. Barcelona, 43, abr. 1994”.

Jorge Ulises Guerra Villalobos Universidade Estadual de Maringá, 1998

Departamento de Geografia

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PREFÁCIO

Os trabalhos incluídos neste livro foram redigidos entre 1989 e 1993 e constituem uma mostra das preocupações e das linhas de investigação que eu desenvolvia naqueles anos, linhas que se haviam iniciado em anos anteriores, e que de algum modo, ainda continuavam produzindo diversas bifurcações e desenvolvimentos, às vezes, inesperados.

Trata-se de trabalhos que já foram editados em castelhano, embora dois deles somente estejam sendo publicados agora pela primeira vez completos, incluindo as notas e a bibliografia.

A seleção dos textos que compõem este volume foi realizada pelo Dr. Jorge Guerra Villalobos, a partir dos trabalhos incluídos no número especial da revista Anthropos, intitulados A Geografia hoje. Textos, história e documentação (Barcelona, nº 43, abril 1994). Quero agradecer ao Dr. Guerra Villalobos a preocupação que teve na realização deste livro, que permite, agora, difundir estes trabalhos no mundo acadêmico brasileiro, e talvez possa contribuir para suscitar um debate mais geral sobre as contribuições do mundo ibero-americano para o desenvolvimento da ciência moderna a partir do século XVI.

Os capítulos deste livro abordam temas diferentes, mas que estão também inter-relacionados em alguns aspectos.

O primeiro trabalho constitui a apresentação sistemática de algumas conclusões gerais de um programa de pesquisa que se iniciou, na realidade, em 1976, e que ainda continua. Trata-se de uma investigação cujo ponto de partida encontra-se no trabalho

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intitulado A institucionalização da Geografia e as estratégias da comunidade científica dos geógrafos (Geocrítica, nº 08 e 09, 1977).

Das investigações parciais, que, em relação a esse programa, estão se realizando, algumas foram finalizadas após a publicação deste artigo. Não quero deixar de citar, em particular, três de especial relevância: o livro de Vicente Casals, Los ingenieros de montes en la España contemporánea, Barcelona, Edições do Serbal, 1996; o de Pere Sunyer, Los engenieros de montes en la España contemporánea, Barcelona, Ed. del Serbal, 1996; o de Pere Sunyer, La configuración de una disciplina científica: la ciencia del suelo, Madri, Ministério da Agricultura, Pesca e Alimentação/Editorial Doce Calles, 1997), e a Tese de doutoramento de Jerónimo Bouza, La institucionalización de la antropologia catalana en el siglo XIX (Universidade de Barcelona, 1978).

Este programa continua se desenvolvendo, tem ampliado ainda mais o seu alcance, e se interessa agora também pelas corporações profissionais que, nos séculos XIX e XX, intervêm na inovação técnica e estendem sua aplicação à cidade, de modo mais amplo, por todos os agentes sociais que, de forma organizada ou individual, adotam decisões para a geração ou a incorporação de inovações e contribuem para o dinamismo de determinados meios locais ou regionais.

Os artigos II e III referem-se ao papel da América no nascimento da Geografia e da ciência moderna. O descobrimento da América pelos europeus no século XVI teve um impacto essencial para o desenvolvimento da investigação científica no Velho Continente, ao mesmo tempo que significou a criação de uma nova Europa ultramarina. Seu impacto foi essencialmente importante para a evolução da Geografia, contribuindo para uma linha de reflexão que integra, ao mesmo tempo, fenômenos físicos e humanos. Os membros da comunidade cultural ibérica e ibero-americana devemos ser especialmente conscientes disso e, a partir daí, aprofundarmo-nos na recuperação de nossa história e no estudo de nossas tradições científicas e intelectuais.

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O capítulo IV, sobre o século XVIII, relaciona-se, em parte, à linha de investigação sobre comunidades científicas e corporações profissionais, dando ênfase ao papel de engenheiros e arquitetos na organização do território durante os anos Setecentos. Mas também integra-se na investigação sobre as transformações científicas que se realizaram nos anos Setecentos, um século especialmente decisivo para a configuração do mundo contemporâneo e que todavia nos segue emocionando por sua confiança na razão, por seus ideais humanitários e pelo otimismo intelectual de muitos de seus mais importantes pensadores.

Todos estes aspectos são especialmente dignos de se recordar neste fim de século tão pós-moderno.

O último capítulo reproduz o texto de uma conferência dirigida a arquitetos, em um curso de pós-graduação em Arquitetura. Refere-se à cidade; um tema de estudo que tem me ocupado desde os anos 60 e que agora volta a ser objeto de atenção preferencial de minha parte.

Destacaria deste capítulo duas idéias: por um lado, a necessidade de se prestar atenção aos interesses profissionais e corporativos de arquitetos e engenheiros para entender as opções intelectuais que adotam em seus desenhos e intervenções - o que remete novamente ao tema abordado no primeiro capítulo do livro; e, por outro, a necessidade de manter o controle público do urbanismo. Creio necessário destacar o último, neste momento em que se estão difundindo, no urbanismo, tantos projetos neoliberais a favor da liberdade quase absoluta da iniciativa privada.

Horácio Capel - Barcelona, verão de 1998.

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Fatores sociais e o desenvolvimento da ciência: o papel das comunidades científicas

As investigações a respeito dos fatores que afetaram o desenvolvimento do conhecimento científico, a partir de 1930, seguiram dois caminhos diferentes.

O primeiro, percorrido em geral pelos filósofos e historiadores da filosofia e, de modo particular, ainda que não exclusivamente, influenciados pela filosofia analítica do Círculo de Viena, confirmou a importância decisiva do próprio conhecimento científico, concebendo esse desenvolvimento como resultado do debate intelectual, que leva a um refinamento progressivo das teorias e ao surgimento de novos problemas científicos. O segundo deu ênfase ao caráter socialmente organizado da prática científica e ao peso decisivo dos fatores sociais no desenvolvimento do conhecimento.

A afirmação a respeito do caráter socialmente organizado da prática científica está explícita na obra do polonês Ludwig Fleck, A gênesis e o desenvolvimento de um fato científico, publicada em 1935. Com a chegada do nazismo e o encarceramento do seu autor, ela teve uma repercussão infinitamente menor do que merecia.

A obra, escrita a partir do conhecimento direto que possuía o autor, oriundo das suas pesquisas em Medicina e Biologia, constitui um argumento direto contra as teorias da ciência vindas do Círculo de Viena, e destaca o caráter coletivo da investigação e a importância dos estilos de pensamento, numa surpreendente e atrativa elaboração, que esboça muitos dos desenvolvimentos posteriores da epistemologia e da sociologia da ciência.

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Paralelamente desenvolveu-se outra linha de pensamento, que viria ter uma repercussão imediata e, pelo posicionamento que exigiu, foi importante no desenvolvimento da História da Ciência.

A presença de um grupo de historiadores soviéticos no II Congresso Internacional de História da Ciência, realizado em Londres em junho de 1931, introduziu explicitamente os pressupostos marxistas. Nas palavras do chefe da delegação soviética, Nicolás I. Bujarín, que havia publicado dez anos antes uma teoria do materialismo histórico diz, é um fato provado que toda ciência surge das exigências da sociedade ou da sua classe e que o conteúdo da ciência está determinado, em última instância, pela fase econômica e social da sociedade1

Primeiro, o conteúdo da ciência é dado pelo conteúdo da técnica e da economia; segundo, seu desenvolvimento foi determinado, entre outras coisas, pelos instrumentos científicos; terceiro, as diferentes condições sociais às vezes freiam e em outras aceleram o ‘progresso’; quarto, o método seguido pelo pensamento científico foi determinado pela estrutura econômica da sociedade [...]; quinto, a estrutura classista da sociedade imprimiu sua marca às matemáticas, como às outras áreas da ciência.

. Segundo os pontos de vista da ortodoxia marxista da época, a ciência não estaria limitada somente ao sistema de idéias, estando profundamente relacionada com a prática: a prática criou a teoria e a impulsionou para frente, escreveu Bujarín, que havia sintetizado as teses fundamentais da doutrina nas expressivas e concisas fórmulas que seguem:

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1 Cf. Bujarín, 1974, p. 109-249.

2 Ibidem, p. 254 e p. 246-247.

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Uma posição semelhante adotou Boris Hessen, na sua comunicação ao Congresso de Londres, a respeito de As raízes sociais e econômicas dos Principia de Newton. A análise marxista permitiria, afirmou desde o começo, compreender Newton, sua obra e a sua visão de mundo como um produto do período em que viveu e, mais concretamente, como resultado da ascensão da burguesia e do capitalismo mercantil da Inglaterra do século XVII, com sua forte demanda novas tecnologias. Ao mesmo tempo, os princípios religiosos e filosóficos que Newton e seus seguidores possuíam também estariam intimamente relacionados aos interesses sociais e às disputas econômicas e políticas da época3

Hoje sabemos, depois do exaustivo e detalhado trabalho de Loren Graham, que a comunicação de Hessen foi elaborada num contexto de dificuldades crescentes, para ele e outros intelectuais soviéticos, isto como resultado da repressão da política stalinista, dificuldades que finalmente terminariam com a vida da maioria dos componentes da delegação soviética, incluídos o próprio Hessen e o chefe oficial da mesma, Bujarín.

.

Em Moscou, como professor de Física na Universidade, Hessen estava comprometido com a luta pela defesa da teoria da relatividade e a mecânica quântica, as quais, segundo a visão stalinista, ao fazer equivalentes matéria e energia, deixavam o marxismo sem fundamento. A comunicação de Hessen estava escrita num marxismo esquemático, para defender-se dos ataques de direitização que nesses momentos recebia e havia, ademais, outro objetivo: separar a valorização de uma concepção científica como a newtoniana, que era aceita pela ortodoxia stalinista, do contexto social em que se produziu, e aplicar, implicitamente, uma similar dissociação à teoria da relatividade, que poderia assim ser aceita na URSS, independentemente da sua origem burguesa4

3 Cf. Hessen, B. p. 3-4.

.

4 Cf. Graham, L,.

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Produziu profundo impacto o fato de as sutilezas presentes em trabalhos como os de Hessen e de outros delegados, não terem sido percebidos no ambiente pró-marxista dos jovens radicais que assistiram ao Congresso de Londres.

Mesmo com as fortes e significativas críticas que, baseadas no marxismo historicista, Gramsci fez às idéias do marxismo esquemático e vulgar, aludindo explicitamente às comunicações apresentadas no Congresso de Londres, e mesmo criticando decididamente as interpretações que faziam a ciência depender da prática e dos instrumentos, apresentou, por sua vez, uma alternativa que valorizava os fatores intelectuais no desenvolvimento da ciência5. As mensagens de Bujarín - que era em 1931 diretor de planejamento científico na URSS e o teórico soviético mais ilustre - e as de Hessen se difundiram com grande força e inspiraram, durante vários decênios, importante movimento na História da Ciência. Segundo esta perspetiva, as teorias mais abstratas e formalizadas, como as da Matemática ou da Física, estavam condicionadas por fatores sociais e econômicos.6

Como é conhecido, os pontos de vista da delegação soviética, difundidos no Congresso e através do livro Science at the Crossroads,

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5 Gramsci, em Notas críticas à obra de Bujarín redigidas em 1933-34, criticou

o conceito positivista da ciência e o reducionismo naturalista que este propunha, opondo-se também às teses que afirmavam que os progressos científicos dependem, assim como os efeitos, dos instrumentos científicos, sustentando, por sua vez, que os principais instrumentos do progresso científico são de caráter intelectual ( e também político) , e metodológico. Cf. Gramsci p.91.

tiveram forte impacto em alguns investigadores (como J.D. Bernal, J. Needham, L. Hogben, e J.G. Crowther). A

6 Cf. Bukharín, vários dos integrantes da delegação soviética morreram pouco tempo depois, por ordem de Stalin, nos conflitos políticos que aconteceram na URSS naqueles anos (Bujarín 1938, Hessen 1936 e Vavilov em 1943), o que sem dúvida afetou o desenvolvimento posterior da História da Ciência na União Soviética.

7 Op. cit.

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obra de Bernal, Social Functions of Science (1939), adotou claramente esta perspectiva, considerando que o trabalho de Hessen havia sido o ponto de partida de uma nova avaliação da História da Ciência 8

Terminada a guerra mundial, Bernal embarcou na ambiciosa tarefa de descrever e interpretar as relações existentes entre o desenvolvimento da ciência e os outros aspectos da história humana

.

9

O debate internalismo-externalismo enfrentou, acima de tudo, historiadores da ciência que se aproximavam das posições filosóficas neokantianas e idealistas, como Koyre, e historiadores que aceitavam a filosofia da ciência neopositivista, por uma parte, e historiadores da tradição marxista, por outra.

e, ao dar ênfase às interações entre ciência e sociedade, destacou sistematicamente o impacto desta sobre o desenvolvimento da primeira, realizada diretamente pelas demandas que o cientista devia de responder, ou indiretamente, através das instituições científicas que se haviam criado ao longo da história. Considerando que numa perspectiva como essa se dava ênfase a fatores externos à ciência, e não aos propriamente internos, a discordância entre internalismo e externalismo se converteu em um dos pontos centrais da historiografia da ciência.

Mas foi através dos avanços técnicos e da contraposição entre uma história puramente intelectual, em que as teorias e os métodos científicos se aperfeiçoavam em virtude da própria lógica, e da sua capacidade crescente para explicar e dar conta da realidade, bem como de uma história social, com suas mudanças sociais e econômicas, que houve influência decisiva na configuração das respostas científicas.

8 Cf. Bernal, J., p. 406. A influência desta obra na historiografia tem sido

destacada, no Congresso Internacional de História da Ciência realizado em Hamburgo e Munique, no qual se dedicou um simpósio a comemorar os cinqüenta anos da sua publicação.

9 Cf. Bernal, J. 1967, p.23.

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O desenvolvimento da sociologia da ciência, a partir de 1940, acentuou o interesse pelos seus aspectos sociais. Se a aproximação de Merton à ciência do século XVIII levou-o a examinar as relações entre ciência, tecnologia e sociedade; as investigações especificamente sociológicas a respeito de normas existentes na comunidade científica conduziram, a partir de 1950, a uma atenção crescente em direção aos aspectos institucionais.

Mais tarde, a obra de Kuhn (1962) e os debates que esta provocou obrigaram necessariamente a se prestar atenção na sociologia das comunidades científicas, considerando que são seus membros os que se viam afetados pelas fases da ciência normal e as mudanças revolucionárias.

Deste modo, apesar de durante todos aqueles anos predominar na História da Ciência uma abordagem internalista, que dedicava mais atenção à história das idéias científicas, a perspectiva de uma História social da ciência nunca ficou interrompida e, por isso, nos anos setenta foi possível realizar-se o que, em palavras de Kuhn, tem sido a transformação qualitativa mais significativa acontecida na História da Ciência: o grande papel da função da história social e institucional 10

Na década de setenta, o debate a respeito da importância relativa dos fatores sociais adquiriu, concretamente, um novo impulso, tanto na confrontação tradicional entre internalismo e externalismo, quanto numa perspectiva mais sociológica e institucional.

.

Os sucessivos congressos internacionais de História da Ciência têm mostrado não somente o crescente interesse pelas dimensões sociais da ciência, mas também pelo problema

10 Cf. Kuhn, T. As histórias da ciência: mundos diferentes para públicos distintos.

Conferência inaugural no XVII Congresso Internacional da História da Ciência, 1985. Apud MacLeod, R., p.149.

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específico das causas internas e externas das idéias científicas11. Constituiu-se, com esse mesmo nome, o tema do debate central de um simpósio no XV Congresso, realizado em Edimburgo (1977), além de esta problemática estar implícita em outros dois ou três simpósios, como em comunicações12, convertendo-se, no XVII Congresso, realizado em Berkeley, numa questão central de diversos simpósios e o que é mais significativo, também em sessões 13

O tema desse Congresso, Ciência e ordem política, levou, em primeiro lugar, a se dirigir a atenção em direção às influências da política, o Estado e todos os tipos de elementos políticos que podem ter influenciado a ciência. De modo mais geral, obrigou ainda a se propor a questão da interação entre os desenvolvimentos teóricos e conceituais e todos os fatores sociais que os afetam, entre estes o papel das instituições acadêmicas, criadas pelo Estado em função das suas necessidades econômicas, sociais, políticas, ideológicas e técnicas

, mas no XVIII Congresso, realizado em Hamburgo e Munich (1989), foi o problema essencial de todo o evento.

14

O desenvolvimento da Sociologia da ciência e dos estudos institucionais, assim como as transformações na ortodoxia marxista, têm permitido aproximar posições dentro dos estudos sociais da ciência.

.

11 Título do II Simpósio do XV Congresso Internacional de História da

Ciência, Edimburgo 1977. Com comunicações de M. Hesse, P. Rossi, J. Ben David, A. Thackray, S.R. Mikulinsky e J. Kröber. Cf. Forbes, E.G. 1978. p. 57-110.

12 Outros títulos significativos do Congresso de Edimburgo foram: Ciência e valores humanos; Medicina e industrialização na História; Cooperação internacional e difusão na Ciência. Cf. Forbes, E.G. 1978.

13 Algumas sessões científicas se dedicaram aos seguintes temas: Revolução na Ciência, Ciência, Tecnologia e Engenharia, Organização acadêmica nos séculos XIX e XX, Ciência e marco institucional, Imigração e intercâmbios científicos. Entre os simpósios podemos citar: Treinamento tecnológico e educação, Genética e sociedade, Governo, indústria e crescimento da investigação cooperativa, Políticas da Ciência e da Tecnologia e Sociologia Histórica da Ciência. Cf. Program 1985 e Abstracts 1985.

14 Cf. Krafft e Scriba, 1989.

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Em meados dos anos setenta, o ponto de vista dos historiadores marxistas passou a ser o enfrentamento internalismo-externalismo, que era, na realidade, uma falsa dicotomia15. Segundo esse ponto de vista, tal oposição é, de fato, um produto das proposições internalistas, para as quais o movimento das idéias científicas, as teorias e os métodos são considerados, em si mesmos, de maneira isolada, negando a conexão interna entre a natureza, a estrutura e as tendências do desenvolvimento científico, por uma parte, e a vida espiritual e material da sociedade, assim como pela prática sócio-histórica, por outra. Disto se deduz, por conseguinte, que tanto o internalismo como o externalismo são reduções e simplificações equivocadas: o primeiro, porque reduz a ciência somente a uma parte do seu conteúdo real; o segundo, porque reduz os fatores, que são, na realidade, exteriores a esta, e isto porque o social não seria externo, senão pela sua mesma natureza inerente à ciência, sendo que a ciência é criada pela sociedade e constitui parte orgânica da mesma: não existe ciência fora da sociedade16

Nos últimos anos, entre os autores de países socialistas, a rejeição de uma contraposição radical entre os fatores internos e externos tem permitido considerar estes como complementares, no sentido de que, existindo uma situação dada (interna) da ciência, o progresso depende das condições externas e vice-versa: se estas são fixas, então o desenvolvimento interno passa a ser decisivo, o que se acrescenta, às vezes, à afirmação de que os fatores internos podem ser dominantes nas ciências formais e físico-naturais e os externos, nas ciências aplicadas, sociais e humanas

.

17

15 Cf. Mikulinsky, S.

.

16 Ibidem, p. 08-14. 17 Cf. Polikarov, A. Externalist moldels of Scientific growth, apud Krafft, F. e

Scriba, C. 1989. Ao debate a respeito de internalismo-externalismo foram dedicados dois simpósios no XVIII Congresso Internacional de História da Ciência (Towards a Social History of Science and Scientific Disciplines e Social History of Sciences/Disciplines/Theories). Algumas comunicações trataram de desvendar os fatores externos e internos no desenvolvimento das teorias científicas, assim

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O confronto entre internalismo e externalismo esteve viciado pela ambigüidade da caracterização do que é interno e externo, na ciência. Internos podem ser somente as teorias e os métodos específicos da ciência, ou melhor, o conjunto das atividades intelectuais que influem no pensamento científico. Externos, por sua vez, podem ser os fatores sociais ou, como alguns têm denominado, os fatores intelectuais externos que influem na ciência, ou seja, conhecimentos exteriores não propriamente científicos, mas incorporados à prática e às teorias científicas.

Ademais, existe o problema da mudança histórica na ciência, o qual é, de início, indispensável de se tomar em consideração nos estudos da História da Ciência. Existe hoje, sem dúvida, um acordo a respeito da impossibilidade de se aplicarem ao passado critérios de delimitação científica da escola neopositivista. O conceito de ciência tem mudado e, com relação à atividade e à produção científica do passado, é necessário considerá-las como uma estrutura profundamente imbricada com as crenças religiosas, políticas e com as idéias estéticas ou filosóficas que a constituem.

Finalmente, quando nos referimos à dimensão interna da ciência, inclusive se adotamos uma posição mais estritamente científica, não nos emerge uma imagem unitária e diáfana, mas, sim, um conjunto de atividades e produtos diferenciados: o próprio pensamento científico (as descrições de experimentos, as propostas de interpretação, as teorias, os debates), expresso através de artigos de revistas e livros; a dimensão psicológica dos cientistas, incluindo suas estratégias pessoais e suas motivações profundas; as ferramentas científicas (laboratórios, instrumentos, mapas); a utilização pessoal e social desse instrumental; o como por exemplo a de Pycior, H. Internal versus external revisiter: British álgebra Through 1850, a qual afirma que a história da Álgebra britânica supõe a construção de um conjunto de matrizes sócio-culturais que refletem diferentes relações entre matemáticas (fatores internos) e fatores externos, notadamente entre a Filosofia e os interesses existentes nas instituições acadêmicas. Cf. Krafft e Scriba.

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pensamento científico cristalizado em sistematizações que apresentam uma visão simplificada e em que podem estar ausentes as contradições e os problemas; o sistema acadêmico no qual se socializam os cientistas.

Também seria interessante relativizar o que se entende por influência dos fatores sociais sobre o pensamento ou a atividade científica. Certamente existiria um acordo restrito a respeito da incidência desses fatores em direção e intensidade do desenvolvimento, através dos apoios institucionais a uma ou a outras linhas de pesquisa, beneficiadas ou prejudicadas, também, pelas demandas econômicas, e o clima social geral que solicita ou bloqueia orientações e esforços. Mas, no que diz respeito ao conteúdo próprio da ciência, as opiniões estão divididas. É possível que, como propôs Mark Blaug, para elucidar este assunto ter-se-iam que encontrar exemplos inequívocos de:

1.- idéias científicas intensamente consistentes, comprovadas, úteis e poderosas, que foram rejeitadas em determinados momentos da história das idéias por fatores especificamente externos, ou de 2.- idéias científicas pouco convincentes, incoerentes e insuficientemente comprovadas, que foram aceitas por motivos externos específicos 18

Postas assim as coisas, em termos de aceitação e rejeição, o balanço não é concludente. Se o próprio Blaug considera que ele não pôde apontar exemplos inequívocos do tipo um ou do tipo dois na história da economia, outras situações são mais duvidosas.

.

Talvez em algumas disciplinas científicas, em particular no campo das ciências sociais, seja possível encontrar casos de idéias do primeiro tipo, rejeitadas durante certo tempo por uma comunidade rigidamente estruturada (por exemplo, a tardia aceitação da Geografia quantitativa neopositivista na Geografia francesa), e de idéias do segundo tipo, mantidas durante mais

18 Cf. Blaug, M, p. 47.

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tempo do que valeria esperar. Poder-se-ia talvez concluir que, se se encontrarem exemplos convincentes, os fatores externos podem ativar ou retardar o desenvolvimento das idéias científicas.

Ainda assim, e seja qual for a resposta a esta problemática, o debate não terminaria, pois nele não é considerada a gênese das idéias. A respeito disto é possível argumentar com fortes razões - como fez Koyre -19 que os aspectos puramente intelectuais resultam essenciais, ainda que existam autores - como Fleck, com referência às investigações a respeito da sífilis -20

Além disso, o debate a respeito dos fatores que afetam o desenvolvimento do conhecimento científico, o enfrentamento entre internalismo e externalismo, possui também outro interesse: o que se refere às dimensões em que se nos apresenta a ciência.

que têm demostrado até que ponto o mesmo trabalho de criação está coletivamente realizado e depende, em definitivo, de apoios sociais. O debate, sem dúvida, fica aberto, ainda que se disponha hoje de uma visão mais matizada e de uma nova avaliação do interno e do externo da ciência.

Com efeito, podemos, por um lado, pensar na ciência como um sistema articulado de conhecimento, como uma estrutura cognitiva, o que nos conduz à história dos conceitos e das idéias, à história da formulação, confrontação, aceitação e crítica das teorias, à história das estruturas lógicas da ciência avaliadas com critérios exigentes de cientificidade. Podemos, porém, também pensar nela como forma de atividade, como estrutura institucional que permite ou facilita tal atividade, como História social da ciência.

19 Cf. Koyre, A. 1952-1973. Eu mesmo pude argumentar sobre esta questão

com o exemplo da Geologia, que somente pode desenvolver-se com a superação do debate entre o conceito estático, teleológico e providencialista da Génesis. Cf. Capel, H. 1985.

20 Cf. Fleck, L. Cap. IV.

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Não se trata de duas histórias separadas, porém de dois aspectos de uma mesma realidade, que se destacam segundo os objetivos e/ou interesses com que se aplicam21. O desenvolvimento de uma ou outra dimensão está geralmente vinculado, mas também pode ser -ao menos durante algum tempo- relativamente autônomo. O desenvolvimento intelectual cognitivo possui sua lógica e se apóia em idéias prévias, propostas formuladas e debates, mas por sua vez se sustenta em estruturas e num ambiente social que as incentiva ou permite -instituições científicas, carreiras ou incentivos profissionais, programas de estudo, investimentos públicos ou privados, etc. Somente quando as duas dimensões se desenvolvem simultaneamente, é que se produz um verdadeiro e durável desenvolvimento científico. Sem dúvida, o debate a respeito das razões do avanço ou do atraso relativo de alguns países no desenvolvimento da ciência deve levar em consideração, por sua vez, uma e outra dimensões22

II.-

.

A consideração simultânea das duas dimensões do desenvolvimento científico, a intelectual e a profissional ou social, permite uma nova perspectiva na História da Ciência, em particular quando se centra a atenção na criação e na evolução das disciplinas científicas.

21 Como foi assinalado por Stephen Toulmin, 1974. p. 405; 1972. p. 152,

que considera que as Ciências, vistas ou analisadas como empresas que se desenvolvem historicamente, possuem duas caras: Podemos pensar nelas como uma disciplina intelectual ou como uma profissão institucionalizada. Por outro lado, Mikulinsky, S.R., 1977, p.14, afirma que podemos falar de duas formas nas quais aparece a Ciência: Ciência como um sistema de conhecimento científico e Ciência como uma atividade especial ou instituição social.

22 Por exemplo, o debate sobre o desenvolvimento da Revolução Científica no século XVII e o avanço da ciência européia sobre a da China na Idade Moderna. A este respeito, cf. Nelson, B., 1974.

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A existência de uma disciplina é inseparável da existência de uma comunidade científica, que comporta objetivos intelectuais e normas coletivas de avaliação conceitual. A continuidade e os limites historicamente permutados das disciplinas, assim como a multiplicação das mesmas, a partir, sobretudo, do século XIX, estão relacionados com a existência de comunidades científicas bem estruturadas e com fortes apoios institucionais. O enfoque evolutivo proposto implicitamente por O. Hagstrom23, e de maneira explícita por S. Toulmin24

A sociologia da ciência, por sua vez, dispõe hoje de suficientes estudos referentes à associação entre disciplinas e comunidades científicas e a respeito da influência que umas e outras exercem nas atividades dos cientistas, instaurando referências rígidas na seleção e no tratamento dos problemas e afetando toda sua atividade profissional, através das oportunidades que lhes proporcionam os cursos

, permite hoje entender os processos de mudança conceitual, que se cristalizam na criação de disciplinas científicas, e o papel que estas desempenham na emergência e na perpetuação de variantes conceituais.

25

Como empresas intelectuais, as disciplinas científicas se diferenciam pelos problemas-chave de que tratam. É necessário dizer, como Toulmin, que os matizes dos domínios das disciplinas devem ser identificados não pelos tipos de objetos de que tratam, mas, sim, pelas questões que propõem a respeito deles, e também porque o mesmo objeto caíra dentro do domínio de diversas ciências, segundo as questões que se propõem a seu respeito

.

26

Se esta caracterização é válida numa perspectiva teórica geral, também é correto que o horizonte real das disciplinas,

.

23 Cf. Hagstrom, W. 24 Cf. Toulmin, S. 25 Cf. Ben, D., 1975; Ben, D. e Collins, 1966 e Mulkay, 1972 e 1977. 26 Cf. Toulmin, S., p.155-156.

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num dado momento, pode não ser tão claro, isto em dois sentidos diferentes. Pode ocorrer que numa disciplina bem elaborada existam opiniões diferentes e confrontantes a respeito do problema essencial da mesma; é seguramente o que ocorre na Geografia, ciência para a qual, ao longo de nosso século, se propuseram diferentes definições, podendo-se distinguir, pelo menos, dois problemas-chave, sem dúvida relacionados mas distintos: o da relação homem-meio e o da diferenciação do espaço na superfície terrestre. Por outro lado, pode ocorrer também que alguns dos problemas-chave da disciplina se escondam ou coincidam com os de outras disciplinas. Sem examinar agora a possível coincidência dos problemas-chave entre a Sociologia e a Antropologia Social, ou entre a História Econômica e a Economia, é possível que este seja o caso da coincidência entre a Geografia Humana, ramo da Geografia, e a Ecologia Humana, ramo da Sociologia, ou entre a Geografia Humana e a Geografia Regional, ramo da Economia27

Sob o ponto de vista intelectual, a diferenciação de disciplinas científicas se produz geralmente por ramificação

.

28, através da aparição de novas linhas de pesquisa, que se ocupam de problemas específicos e que podem dar lugar à constituição de subdisciplinas. Em algumas situações, este processo produz uma separação crescente e final da comunicação, e os intercâmbios entre as subdisciplinas se tornam praticamente nulos, com o que se convertem em campos autônomos, que podem levar a estabelecer novas relações com outros campos, antigos ou recentes. A analogia orgânica da especialização, utilizada por Hagstrom e Toulmin, adquire aqui todo o seu sentido, e as disciplinas se diferenciam progressivamente, como os dedos da mão unidos na sua origem, mas sem contato entre si29

27 Cf. Capel, H., 1984, cap III.

.

28 Cf. Mulkay, 1977, p.116. 29 Cf. Oppenheimer, R. The tree of Knowledge, p. 55-57, apud in Barnes, B.

1972, p.123.

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De qualquer maneira, o citado processo de diferenciação não culmina sempre na criação de novas disciplinas. A recomposição dos campos disciplinares é, sem dúvida, constante, vistos estes numa perspectiva histórica. Mas também se pode comprovar que nem sempre as novas linhas de pesquisa, transformadas em subdisciplinas, dão lugar a um ramo científico autônomo, e que nem todas as que iniciam seu desenvolvimento são, ao longo do tempo, viáveis.

Isso somente ocorre quando se apresentam as condições sociais apropriadas, a saber, quando o grupo de cientistas que trabalham, no novo campo de trabalho intelectual, podem converter-se numa comunidade científica autônoma, com apoios sociais, ou seja, como diria Toulmin, quando se encontra um nicho ecológico, ou seja, um apoio institucional adequado.

Para a pergunta em que momento uma nova disciplina científica se encontra plenamente constituída, há duas respostas. Uma intelectual, a saber: quando existe um novo problema científico bastante importante, como para atrair um número suficiente de profissionais que têm a necessidade de introduzir novas perspectivas e consideram insatisfatórias as referências disciplinares com as quais até então se abordava o referido problema. Outra, social: quando existe um reconhecimento institucional e há uma comunidade científica reconhecida e dedicada a este problema, com formas de socialização estabelecidas (normas de ingresso à comunidade, manuais, etc.), incluindo nelas elementos de configuração ideológica, tais como: mitos, legitimações e histórias.

A institucionalização e a profissionalização, com a conseqüente formação de comunidades científicas, têm desempenhado papel essencial na constituição e no desenvolvimento das disciplinas científicas. Através dessas comunidades, apoiadas em instituições acadêmicas e de pesquisa, avançou-se no processo de especialização, que tem

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sido decisivo para o progresso científico, a partir dos séculos XVIII e XIX.

Normalmente se afirma que a figura do cientista profissional é recente, situando seu nascimento no século XIX. A expressão cientista somente possuiria um século e meio de existência, e a historiografia anglo-saxônica atribui a primeira proposta nessa direção a Whewell, em 1834. Roy Macleod escreveu que foram necessárias três gerações de construção de instituições científicas e possivelmente a guerra de 1914 - 18 para que ocorresse uma aceitação geral da idéia de cientista, apontando também a importância que na definição de tal idéia tiveram as pressões sociais e econômicas, mais que a própria definição de um código intelectual internamente gerado30

Efetivamente, antes do século XIX existiam poucos profissionais da ciência pagos para isso, embora, certamente, fossem mais numerosos do que às vezes se admite. O normal era que pessoas de bens se dedicassem à prática ou à especulação científica; assim, por exemplo, Adam Smith, nos seus Ensaios de 1785, considerava que esses eram os principais cultores da ciência.

.

A atividade científica podia realizar-se de maneira totalmente independente, ou dentro das referências das instituições do tipo sociedades científicas ou acadêmicas. A estas podiam unir-se outras pessoas sem condições econômicas, mas que, ao estarem em certas organizações, não possuíam a necessidade de se preocupar com a subsistência, como é a situação dos clérigos ou membros de ordens religiosas.

Junto a estes grupos, porém, existia também, antes do século XIX, todo um conjunto de cientistas profissionais de diversos tipos: professores de universidades e de outras instituições acadêmicas de nível superior ou médio; membros remunerados

30 Cf. MacLeod, R., p.165.

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de instituições científicas (academias, observatórios); profissionais com interesses na ciência por força da sua atividade (médicos, farmacêuticos, militares, arquitetos, marinheiros...) ou por simples curiosidade intelectual (por exemplo, advogados, funcionários); e técnicos a serviço do governo (engenheiros militares ou civis, geógrafos). Estes últimos podiam estar agrupados em corpos facultativos ou serem nomeados a título individual, entre os quais o geógrafo (geógrafo real, geógrafo dos domínios da Sua Majestade) especializado na cartografia e na sistematização de notícias geográficas, que foi um título comum durante os séculos XVII e XVIII.

No século XIX, este processo de profissionalização científica se intensifica. De um lado, aumentava o número de cientistas profissionais, por causa da criação de um numeroso e diversificado grupo de novas instituições científicas e acadêmicas; por outro, o mais importante, não continuaria ocorrendo a existência de cientistas isolados, mas de verdadeiras comunidades científicas institucionalizadas e estruturadas.

As demandas sociais e o desenvolvimento de uma ciência acadêmica permitiam o ensino especializado e a existência de cursos científicos seguros, que atraíam jovens ambiciosos e intelectualmente bem dotados. O número de faculdades, de centros especializados e de cursos científicos aumentava consideravelmente.

Em toda esta evolução, foi essencial o papel crescente do Estado, condutor das demandas sociais e das necessidades do aparato produtivo e que, desde o século XIX, apresentava uma intervenção cada vez mais importante no incentivo científico.

Na realidade, a atitude do laissez-faire na ciência não existiu nunca. Durante toda a Idade Moderna, o Estado apoiou a criação de instituições e de sociedades científicas, ainda que somente outorgando-lhes o direito do patronato real e legislando a respeito dos currículos de estudo.

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Em alguns países, como a Espanha, a intervenção estatal foi decisiva, durante o século XVIII, para o desenvolvimento científico.

O papel do Estado se incrementou de maneira mais geral no século XIX quando sua ação incentivou o desenvolvimento de conhecimentos mineiro-geológicos, oceanográficos, cartográficos, médicos e de toda uma ampla variedade de atividades. De qualquer forma, ainda durante algum tempo, o Estado não atuou de forma decisiva na direção das investigações. No entanto, recentemente, e em particular desde a Segunda Guerra Mundial, com a evolução da pequena ciência à grande ciência31 e a valorização da pesquisa, Estado e Sociedade esperavam resultados concretos e rápidos das inversões efetuadas e definiam-se políticas científicas com linhas prioritárias, aumentando, por sua vez, o controle da atividade científica32

As decisões do poder para apoiar certas áreas da atividade científica têm sido fundamentais para a criação de oportunidades profissionais. Estas, por sua vez, têm sido essenciais para o desenvolvimento das disciplinas vinculadas, como afirmamos, à criação das comunidades científicas.

.

A divisão, em Faculdades e Escolas Técnicas, primeiro, e mais tarde, em seções, especialidades, cátedras, laboratórios, departamentos, títulos profissionais, ou ainda, disciplinas, tem exercido um papel essencial na criação das disciplinas científicas, cada uma sob o ponto de vista social, com suas normas, sistemas de recrutamento, legitimações e controles e com um prestígio intelectual e oportunidades profissionais, concretas ou

31 Cf. Prise, D. 32 Cf. Spiegel-Rösing e Prise D.J. 1976. Terceira parte. Chotkowsky La

Follette, M. 1982. McGucken, W. 1984. A respeito de políticas científicas governamentais, cf. Ronayne, J. 1984.

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imaginárias, que determinam o incentivo para o ingresso de jovens estudantes33

A partir do século XIX, organizam-se também foros de debate de disciplinas científicas, cada vez mais especializadas (sociedades, congressos) de caráter nacional e internacional, assim como organizações de caráter interdisciplinar (tipo Associação para o Desenvolvimento das Ciências). O comum é a tendência à especialização e à fragmentação dos cursos, instituições e disciplinas. Com o tempo, no entanto, estas ramificações de disciplinas e subdisciplinas dão lugar a sobreposições e superposições, surgindo a necessidade de trabalhos interdisciplinares, transdisciplinares ou metadisciplinares, numa multiplicação de termos e propostas, sendo essa cronologia interessante de se conhecer.

.

A Sociologia da ciência tem posto em relevo a importância dos foros comunitários e os aspectos institucionais nos processos de socialização acadêmica e na seleção e adaptação de conceitos científicos. Por meio da criação e do incentivo de comunidades científicas, é como normalmente se deixa sentir a ação social sobre o desenvolvimento do pensamento científico. Poder-se-ia afirmar, porém, que a velha polêmica entre internalismo e externalismo pode ter uma nova perspectiva, centrando sua atenção nos aspectos institucionais e comunitários.

A comunidade científica é um subsistema social, estruturado, por sua vez, em comunidades diferenciadas, ou disciplinares, com diferentes prestígio e poder social.

Utilizamos aqui a expressão comunidade científica como um termo amplo, que inclui, por um lado, tanto os pesquisadores profissionais dedicados à pesquisa pura ou aplicada quanto os docentes de uma disciplina científica, e que, por outro, se estende tanto às disciplinas físico-naturais como às ciências

33 Cf. Tayllor, J.

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sociais e humanas34

Questões, como a distinção entre ciência pura e aplicada, a diferença entre comunidades científicas e corporações profissionais técnicas, ou a definição de estratégias sociais que se devem desenhar a respeito de cada uma destas facetas, devem ser postas outra vez, tendo em consideração nosso contexto social.

. Numa primeira abordagem, entendemos também o conceito ciência num sentido amplo, como todo aquele conhecimento racional desenvolvido institucionalmente e aceito como tal pela comunidade científica.

A impossibilidade de se distinguir entre ciência pura e aplicada, em função das motivações dos cientistas, tem levado a se destacar o contexto social em que se desenvolvem umas e outras pesquisas35

A pesquisa pura, desenvolvida em instituições acadêmicas, poderia ser relevante somente pelo seu significado científico e circularia unicamente no seio da comunidade científica, analisada por outros cientistas, que a avaliariam tendo como base critérios puramente científicos. A investigação aplicada, realizada essencialmente em instituições não-acadêmicas, produziria resultados práticos, os quais estariam guiados prioritariamente em direção à comunidade externa, no rumo dos agentes ou instituições sociais que pretendem se utilizar deles. Certamente os procedimentos intelectuais que estão presentes numa e noutra são similares; ainda que possam existir algumas diferenças na linguagem, existiria um caráter mais retórico na apresentação dos resultados da investigação aplicada.

.

34 Não aceitamos neste texto a definição utilizada por Mulkay, M.J. (1977,

p. 93), por considerá-la restrita. Ele considera que a comunidade de investigação científica está composta por aquelas pessoas que, como parte fundamental de suas atividades profissionais, estão comprometidas diretamente com a expansão do conhecimento sistemático dos fenômenos naturais.

35 Ibidem. p. 95-97 e 129.

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No entanto, quando se trata de comunidades científicas que possuem seu nicho ecológico principal em instituições docentes, como a universidade e outros centros de ensino, a distinção anterior resulta difícil. Parte da investigação pode estar relacionada às necessidades da docência (por exemplo, trabalhos teóricos, discussões sobre o objeto e o método da ciência), a qual, sem dúvida, pode-se considerar, também, como uma aplicação da ciência. Ao longo de nosso século e principalmente depois da segunda guerra mundial, as universidades e as escolas técnicas têm-se aberto cada vez mais ao exterior e também trabalham, em geral, a partir de solicitações industriais ou sociais.

No conjunto, pode ser aceita a hipótese de que as disciplinas maduras evoluem, com o tempo, em direção a uma maior aplicação, ainda que também se possa dar o caso de que uma aplicação técnica exija, num momento dado, uma pesquisa pura, e isto se dirija para a institucionalização de uma disciplina científica.

III.-

A existência de uma comunidade científica especializada modela o pensamento de seus integrantes e, com o tempo, origina o que se tem denominado estilos de pensamento,36

36 Cf. Fleck, L., p. 55, 86, 146 e seguintes.

que determinam a eleição dos problemas científicos, as perguntas que são feitas, guiam as observações, estabelecem as regras para se trabalhar e ainda predeterminam o vocabulário que se há de utilizar. O que em muitas disciplinas científicas se denominou de DOWNLOAD FREE

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ponto de vista37

O conjunto das idéias aceitas pela comunidade, num dado momento, exerce sobre os cientistas individuais uma influência extraordinária, à qual é muito difícil se opor. Quanto mais profundamente se entra num campo científico - escreveu L. Fleck, em 1935 - mais forte se torna a união ao coletivo do pensamento, ou seja, mais peso possui a influência do estilo de pensar da comunidade científica

, talvez não seja mais que uma aplicação do estilo próprio de pensar da comunidade.

38. Efetivamente, nas fases iniciais do desenvolvimento da disciplina, as contribuições individuais podem ser mais significativas -ainda que sempre vinculadas à difusão social dos conhecimentos. Mas, com o desenvolvimento das disciplinas, o papel da comunidade, das idéias aceitas, é cada vez maior. Por isso, quanto mais elaborada e desenvolvida está uma área do saber, menores são as diferenças de opinião 39

As comunidades científicas se estruturam em comunidades especializadas (físicos, bioquímicos, geógrafos), mas, por sua vez, estão subdivididas em núcleos nacionais com características próprias, tanto institucionais quanto intelectuais. Os estudos que se têm realizado, recentemente, sobre as conseqüências das migrações internacionais de cientistas na configuração da produção intelectual de diferentes comunidades nacionais - e, em especial, os estudos sobre a migração de cientistas alemães em direção aos EUA, a partir de 1933 - têm posto claramente que, ainda que a maior parte deles tenham logrado obter no novo país uma posição institucional, nas suas respetivas especialidades, no entanto tiveram que adaptar-se às condições que encontraram, e não conseguiram modificar, no essencial, a estrutura institucional ou intelectual da comunidade científica que os recebia. Antes,

e mais peso possuem a ortodoxia, os acordos e as convenções.

37 A respeito do ponto de vista em Geografia, em Antropologia ou em

Economia, cf. Capel, H., 1984. 38 Cf. Fleck, L., p.129. 39 Ibidem p. 130.

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eles imprimiram sutis modificações nas suas idéias, tanto no conteúdo como na maneira de apresentá-las40

A generalização e a difusão de um estilo de pensamento comunitário e disciplinador se realiza através de um complexo processo no qual incidem, por sua vez, fatores sociais e intelectuais profundamente enraizados. Na sua fase inicial, certamente as aproximações e as respostas ao problema ou problemas que estão na base da diferenciação da disciplina, junto com a influência de algumas personalidades relevantes, possuem um papel fundamental.

.

A criação de revistas especializadas no novo campo científico, os intercâmbios de informação e a comunidade de leituras vão constituindo uma comunidade de pensamento entre o núcleo inicial, que pode estar composto por um grupo de pessoas relativamente limitado. Posteriormente, tudo isso influi nos aspirantes atraídos ao novo campo, através do processo de socialização, durante o qual se faz presente o peso da tradição coletiva. Os manuais têm, sem dúvida, um papel básico: no saber do manual- escreveu Fleck de modo sintético e elegante - o estilo do pensamento transforma-se em coerção do pensamento, e nele fica articulado o movimento normativo da ciência41

Quanto aos trabalhos de investigação, resulta decisivo o papel de cientistas importantes e de grupos influentes, que podem ser considerados como guardas da racionalidade

.

42

40 Veja-se o conjunto de comunicações no Simpósio C41 do XVIII Congresso

Internacional da História da Ciência, que tratou do tema Enforced migration and scientific change: German- Spaking Scientist after 1933. Apud Krafft, F. e Scriba, C. 1979. Coser, L. 1984 tem estudado o produtivo processo de hibridismo resultante da união entre a ênfase teórica dos cientistas alemães e do empirismo norte-americano.

disciplinadora, e que determinam os critérios para a publicação

41 Cf. Fleck, L., p. 35. 42 Cf. Toulmim, S. 1974, p. 407.

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em revistas especializadas. Por meio da publicação, nelas se impõe a conformidade com as teorias e os métodos dominantes, sendo que os trabalhos que fogem da norma não serão aceitos para publicação nos periódicos científicos43

Na criação destes estilos de pensamento, assim como na própria organização e legitimação da disciplina, desempenham também um papel importante os mitos e as utopias, assim como as justificações ideológicas.

.

Mitos heróicos e utopias gerais, ou disciplinas específicas, proporcionam ao novato ideais que lhe permitem se afirmar como um cientista esforçado no avanço do conhecimento e como especialista numa área do conhecimento concreto. Apesar de que com freqüência se chegue a uma ciência não somente por razões intelectuais, mas também por uma cuidadosa apreciação das oportunidades profissionais, serão muitos os que aceitarão as idéias de vocação e sacrifício.

Como mitos também podem ser considerados os ideais mertonianos do trabalho científico -o éthos da ciência-: universalismo, desinteresse, ceticismo44

O conhecimento da prática científica assinala, com freqüência, que estes ideais não se produzem na realidade, e que certamente respondiam, como assinalara Mulkay, ao que pensavam em meados de 1940 cientistas e governantes

, humildade e outros mais.

45

43 Cf. Hagstron, W. Apud Barnes, B., p.111.

. O mesmo se poderia dizer dos mitos específicos das disciplinas. É comum que objetivos e tarefas retoricamente proclamados em

44 Cf. Merton, R. A estrutura normativa da Ciência, apud Merton. R. 1973. Vol.2, p. 355-358. Esse cientista mostrou a bivalência e a ambigüidade dos pesquisadores que oscilam entre os ideais que algumas vezes proclamam e os seus comportamentos concretos contra elas.

45 Cf. Mulkay, M. 1977, p. 98-99.

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uma disciplina não sejam, na realidade, levados em conta pela maioria dos membros de uma comunidade46

As justificativas ideológicas merecem também atenção. Entre estas, as histórias das disciplinas possuem um papel essencial, pois proporcionam aos cientistas uma imagem de si mesmos, da comunidade a que pertencem e do sentido do seu trabalho. Através da história da disciplina científica, se constroem e se difundem os mitos e as ideologias que proporcionam coesão e autoconfiança na comunidade científica: quais são seus progenitores e suas figuras mais ilustres, sua dignidade como cientista, os objetivos e a relevância social do seu trabalho, bem como as relações de cooperação ou conflito com outras disciplinas ou subdisciplinas

.

47

.

IV.-

O estilo do pensamento e a ortodoxia, na disciplina, reforçam-se pela mesma estrutura social da comunidade e são tanto mais rígidas quanto mais hierarquizadas elas se encontrem. Os controles ao ingresso, que obrigam a aceitar previamente as normas estabelecidas, as possibilidades de trabalhar em tempo integral, as valorações atribuídas ao trabalho dos cientistas e o sistema de recompensas, o ingresso nos meios de comunicação e a visibilidade social do trabalho realizado, tudo isso se vê afetado pela estrutura social comunitária, na qual existem não somente hierarquias intelectuais entre indivíduo e grupos de trabalho, mas

46 Um exemplo na Geografia é o mito do geógrafo sintetizador anunciado

algumas vezes, mas sempre postergado, até dispor de um número significativo de trabalhos monográficos. Cf. Reynaud, A. 1976, a substituição de mitos na Geografia Contemporânea à luz da revolução quantitativa nos anos 50 foi analisada por Taylor, P. 1977.

47 Cf. Lepenies G. e Weingart. 1983 e Capel, H. 1989.

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também uma autêntica hierarquia social quanto ao ingresso no poder e à utilização dele.

As diferenças que, de fato, podem existir na avaliação e no controle da qualidade científica constituem uma mostra evidente da importância dos aspectos sociais. Em princípio, o acordo sobre a qualidade deveria refletir-se num exame transparente e unânime na ascensão profissional dentro da comunidade científica. Por exemplo, nos exames para a nomeação de professores contratados titulares e catedráticos de universidades, bem como de pesquisadores de centros de pesquisa. No entanto, todos sabemos que isso não acontece. Trata-se de um tema de grande importância, a respeito do qual precisamos pesquisar e sobre o qual, porém, exceto poucas análises e desabafos48

De todo modo, todos os que têm feito parte de alguma comissão de seleção do professorado universitário têm podido comprovar: 1) a dificuldade para estabelecer critérios objetivos; 2) uma vez estabelecidos, a aplicação deles se dá de forma diferenciada pelos distintos membros da banca; e 3) como em muitos casos, o que decide em última instância são fatores extracientíficos, como a afinidade com o grupo ou com as clientelas.

, existem escassos trabalhos.

Os membros da comunidade científica possuem interesses individuais ou corporativos e, em relação a estes, desenvolvem estratégias sociais e intelectuais que podem afetar decisivamente a evolução do conhecimento científico.

Sob o ponto de vista comunitário, nas primeiras fases do desenvolvimento das disciplinas científicas, é necessário traçar estratégias de auto-afirmação e delimitação com outras disciplinas e comunidades científicas que concorrem no mesmo

48 Cf. Kourganoff, 1973, Nieto, 1984. Sobre o controle do acesso do

professorado na Geografia espanhola, I. Sánchez, 1981.

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campo científico. Isto obriga não somente a realizar trabalhos científicos de qualidade mas também a promover uma ativa propaganda para o exterior da comunidade, mostrando, com trabalhos teóricos adequados, a utilidade do novo campo e delimitando-o, cuidadosamente, com outras disciplinas, com as quais, no passado, esteve relacionado, assim como frente a outras disciplinas que surgem, com objetivos parecidos.

Numa fase posterior, a comunidade pode traçar estratégias de consolidação, lutando para obter vantagens sociais (investimentos, reconhecimento público), acadêmicas (ensino especializado) e profissionais (títulos), assim como para organizar sistemas eficientes de socialização. As polêmicas com outras disciplinas próximas podem acirrar-se e isto leva à adoção de estratégias difamadoras contra os adversários. Trata-se, na realidade, de uma luta de morte, na qual a comunidade derrotada corre o risco de ver freado seu desenvolvimento e ainda desaparecer, como de fato tem acontecido ao longo destes dois últimos séculos.

Toda essa luta gera, novamente, uma produção teórica, que se preocupa em delimitar os campos respectivos -tanto cognitivos como profissionais- e, eventualmente, em redefinir o objeto da disciplina.

Quando a comunidade consegue se consolidar e sustentar o campo da disciplina no conjunto da comunidade científica, pode traçar estratégias expansivas, imperialistas, que se dirigem à invasão de campos disciplinares próximos, com a conseqüente reação defensiva destas e a correspondente elaboração teórica de argumentos numa e noutra direção.

Em todo caso, tanto nesta fase como na anterior, a comunidade há de se manter atenta para não ficar atrás do avanço relativo de outras disciplinas competidoras e, por isso, se esforça por conhecer e, no seu caso, assimilar os

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desenvolvimentos teóricos e metodológicos que se produzem nelas.

Isto pode obrigar a um processo de adaptação, que modifica em menor ou maior grau os conceitos iniciais, e pode criar também uma renovação teórica e metodológica na disciplina receptora.

Em outros trabalhos, temos tratado de identificar estratégias destes diferentes tipos para a Geografia,49

No confronto entre comunidades científicas, os integrantes destas se comportam de forma solidária, pois isto implica a sua sobrevivência como coletividade. No entanto, no interior de cada comunidade, a situação é geralmente muito diferente, pois existem tensões violentas como resultado de uma luta implacável pelos prestígios intelectuais e pelo poder. Os indivíduos e grupos (escolas, colégios, departamentos, grupos de pesquisa) se vêem, por causa disso, impelidos a traçar diversas estratégias de ataque e de defesa.

mas acreditamos que o tema ainda mereça uma maior atenção e especialmente pesquisas comparativas.

As estratégias das comunidades científicas podem ser detectadas através da produção científica de seus membros. E, inversamente, esta -tanto a produção teórica quanto a aplicada- pode ser interpretada como resultado dessas estratégias e não como produto lógico e inevitável do desenvolvimento científico.

O estudo destas estratégias deve se iniciar pelos pais fundadores da disciplina, pois são estes os que estabelecem as bases teóricas da mesma e organizam a primeira escola dentro dela.

49 Cf. Capel, H. 1977, 1981 a e b.

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Também, devem-se estudar as conversões de outros cientistas, já formados, para a nova disciplina.

Nessas fases iniciais - e, esporadicamente, em outras que se abateram sobre a disciplina, depois de uma crise conceitual e metodológica grave- os convertidos, procedentes de outras disciplinas, trazem consigo os próprios conhecimentos e as próprias habilidades, e precisam traçar dois tipos de estratégias. Uma, em direção aos antigos colegas, destacando os aspectos mais modernos e originais da nova disciplina e valorizando, em conseqüência, os aspectos diferenciais com o campo do qual vinham. Outras, em direção ao interior da disciplina, valorizando sua antiga formação e extraindo dela possibilidades de prestígio intelectual na sua nova comunidade. Os estudos existentes 50

Quando a comunidade está bem estabelecida, o acesso a ela se produz através de um processo prévio de formação e de interiorização das normas comunitárias, que se iniciam na juventude. Ainda assim, pode-se produzir também ocasionalmente, e sobretudo em fases de expansão, a chegada de pessoas formadas em outras disciplinas, introduzindo enfoques modernos, que podem afetar o desenvolvimento da disciplina receptora.

mostram, por outro lado, que nestas conversões se produzem com freqüência fenômenos de hibridismo conceitual e metodológico que favorecem o desenvolvimento da disciplina.

No interior da comunidade existe uma verdadeira luta pelo prestígio e pelo poder51

50 Cf. Ben David, J. e Collins, R., 1966 bem como Toulmin 1974, p. 409, que,

fundamentando-se nos trabalhos de Fleming, D. 1968, comentou as conseqüências da chegada de físicos à Biologia nos anos 40.

. Como evidenciaram muitas pesquisas de Sociologia da Ciência, os cientistas pugnam pelo reconhecimento do seu trabalho para obterem prestígio entre seus colegas, pela

51 Cf. Merton, R. 1973, IV parte: o sistema de recompensas na Ciência. Veja-se também Mulkay, M. 1977.

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prioridade de suas investigações, pelo dinheiro (para as pesquisas e para si mesmos), pelo poder, ou pela simples sobrevivência no seio da comunidade. Sempre se espera o reconhecimento pelos trabalhos realizados, mesmo quando se trata de uma contribuição científica que se realiza como uma doação à sociedade, sem se esperar, aparentemente, recompensas52. Certamente é correto que, quanto mais reconhecimento recebem, mais produtivos e influentes são53, atuando, então, o efeito cumulativo que Merton, com brilhantismo, denominou efeito Mateo54

Por razões intelectuais e sociais, alguns membros da comunidade chegam a ser particularmente influentes na mesma. Sua opinião contribui de modo importante para estabelecer um consenso na disciplina, aceito pela comunidade. A capacidade para impor um ponto de vista é tanto mais forte quanto maior for a influência que se tem sobre os empregos dos futuros estudantes

.

55

Pode-se dizer que, em geral, o cientista realiza seu trabalho e é reconhecido segundo sua afinidade ou conformidade com as normas ou formas de pensar aceitas pelo conjunto da

.

52 Cf. Hagstrom, W. 1965, cap. L., apud Barnes, B. 1980, p.103-118. 53 Cf. Cole, J. e Cole, S. 1973. Gouldner, A. 1973, p.164, que, ao referir-se a

Talcot Parsons, definiu esse fenômeno com a expressão complexo de Olimpo. O reconhecimento não procede somente da qualidade mas também do poder. Poder-se-ia propor a hipótese de que os mais citados não são sempre os melhores, porém os mais poderosos e influentes nas carreiras profissionais. Isso é válido sobretudo para as disciplinas que não possuem um componente aplicado, pois quando este existe a validade e a utilidade costumam ser os únicos critérios.

54 Cf. Merton, R. O efeito Mateo na Ciência apud Merton,. 1973, vol. II, p. 554-578. Como é conhecido, o efeito Mateo baseia-se numa frase do Evangelho segundo São Mateus: pois ao que tenha dar-se-á abundância; mas ao que não tem lhe será tirado o pouco que tem, isto descreve a acumulação do reconhecimento às contribuições científicas particulares dos cientistas [ou grupos] de considerável reputação e nega tal reconhecimento aos que ainda não se notabilizaram.

55 Cf. Gouldner, A. 1973, p. 162-163, que realizou esta observação tendo como base a influência dos professores de Harvard sobre seus estudantes.

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comunidade56

Na realidade, os desvios ou dissidências podem produzir-se em duas situações diferentes: em situações de coerência e estabilidade comunitária e disciplinadora, associadas a uma forte estrutura hierárquica, e em situações de transformação ou de crises.

. Apesar de tudo isso, a inovação e a transformação - mesmo a revolucionária - também se produzem dentro das disciplinas; isto significa que existem mecanismos para integrar os desvios a respeito do consenso comunitário.

No primeiro caso - que alguns chamaram de consenso cognoscitivo - o consenso é forte, a autoridade indiscutível, as transformações são lentas e as propostas verdadeiramente inovadoras podem ter dificuldade para sua difusão. Em épocas de crises, a situação pode ser diferente.

Apesar das fortes impugnações a respeito da dicotomia kuhniana ciência normal - períodos revolucionários, dos quais hoje se conhece toda uma gradação de mudanças, desde as mais amplas, do tipo revolução científica do século XVII, até as mais limitadas, do tipo uma simples reorganização de uma área à luz de um novo modelo57, o certo é que a evolução das disciplinas oferece situações em que a coincidência de diversos fatores parece questionar o consenso e, por sua vez, a autoridade existente. Entre elas, a década de cinqüenta é um caso esclarecedor das transformações revolucionárias em numerosas disciplinas, e da aceitação geral da idéia de revolução na ciência, o que, sem dúvida, influenciou Khun no momento de elaborar suas conhecidas teses58

56 Cf. Mulkay, M. 1968, apud Barnes, B. 1980, p. 25 e seguintes.

.

57 Cf. McMullin, E. 1974, p. 422. 58 Por exemplo, na Geografia a idéia de revolução na disciplina havia sido

amplamente debatida durante a segunda metade dos anos 50 e início dos anos 60. Em particular no mundo anglo-saxão, considerava-se que essa revolução-

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Em algumas ocasiões podem coincidir: 1)mudanças sociais e problemas que demandam novas respostas científicas; 2) mudanças gerais no ambiente intelectual, como a difusão e a aceitação de novas filosofias; e 3) mudanças no seio da disciplina, com a aparição de jovens ambiciosos dispostos a adquirir uma posição na estrutura comunitária e a questionar o consenso nas disciplinas e a autoridade dos mestres.

Nestas situações se produz uma verdadeira guerra civil no seio da comunidade científica, com enfrentamentos entre os partidários de se manter a ortodoxia tradicional e os inovadores.

Os primeiros tendem a marginalizar e ainda a expulsar da comunidade os segundos. Se estes últimos se impõem, os expulsos integram-se em outras comunidades existentes ou podem tentar constituir um núcleo de uma nova disciplina, cuja viabilidade vai depender das oportunidades de institucionalização. Se a vitória é dos inovadores, estes tomam o poder e os conservadores perdem prestígio, autoridade e influência na comunidade científica.

Nessa guerra intracomunitária, os aspectos sociais e conceituais se superpõem. Os cientistas inovadores ganham a batalha, apoiando-se em novas idéias, e as idéias se impõem porque os cientistas inovadores triunfaram e tomaram o poder.

Tomar o poder em uma comunidade científica significa duas coisas. Sob o ponto de vista social: passar a controlar os departamentos e as revistas mais prestigiosas, os conselhos para a concessão de bolsas e os recursos de pesquisa, o ingresso à comunidade e aos cursos profissionais dos jovens. Sob o ponto de vista intelectual: redefinir os objetivos e os problemas-chave da disciplina, novos modelos normativos, novas tarefas e métodos, assim como novos mitos e ideais científicos, tudo o que

que significou a difusão da Filosofia neo-positivista- havia triunfado. Cf. Capel, H., 1981, cap. XII.

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pode vir legitimado pelas novas histórias da disciplina, nas quais se reavalia o passado e se descobrem novas informações e novos mestres.

A questão de quais são os inovadores, os que estimulam a mudança em geral, constitui uma pergunta estratégica de grande interesse, para delimitar as políticas científicas. Talvez existam psicologias diferentes e seja necessário distinguir, como têm feito alguns psicólogos da ciência59

, entre produtividade quantitativa e criativa, ou capacidade para gerar novas idéias. Também se poderia formular a idéia de que os inovadores possuem algumas características sociais significativas: possuem um disciplinamento incompleto, são membros periféricos na comunidade, possuem maiores contatos com outras disciplinas, questionam a autoridade ou têm ambições pessoais e institucionais. É um problema de grande interesse sobre o qual precisamos realizar urgentemente pesquisas comparativas.

V.-

Dentro de uma perspectiva geral do tipo que terminamos de resumir nas páginas anteriores e a partir de perguntas geradas pela própria evolução da disciplina geográfica, nos últimos decênios60

Dois períodos bem diferentes as caracterizam. Durante o primeiro, que chega até o século XVIII e princípio do XIX, já existia o ofício de geógrafo, mas o processo de especialização e profissionalização não se havia desenvolvido com intensidade, no

, o estudo da comunidade científica dos geógrafos se converteu numa parte essencial das pesquisas desenvolvidas no departamento de Geografia da Universidade de Barcelona.

59 Cf. Fisch, R. 1977. 60 Uma apresentação geral dos objetivos e do desenvolvimento deste

programa de pesquisa pode ser analisado em Capel, H. 1989.

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sentido de que os geógrafos, como outros cientistas, pudessem cultivar freqüentemente diversas áreas do saber.

No segundo, desde meados do século XIX, configuram-se comunidades científicas nacionais que se integram, através de entidades e das relações internacionais, em uma comunidade de geógrafos supranacional, com regras de ingresso e funcionamento rigidamente definidas. Nosso trabalho vai na direção de estabelecer as características específicas e gerais da comunidade de geógrafos e suas relações com o restante da comunidade científica, os diferentes modelos de profissionalização e de organização da atividade intelectual, as regras para o ingresso e as normas internas de funcionamento e, no geral, as estratégias sociais que se desenvolvem e sua influência na atividade científica e nos conceitos que geram. Acreditamos ter demostrado convincentemente que, no caso da comunidade de geógrafos, alguns aspectos da evolução da disciplina não resultam plenamente compreensíveis sem levar em consideração os aspectos sociais61

O processo de socialização que se desenvolve dentro de cada comunidade é essencial, como temos dito, para a maneira como se realiza a prática científica, sendo o vocabulário, os conceitos e certamente as teorias elaboradas afetadas pelos requisitos de ingresso, bem como os programas de estudo, as leituras, os trabalhos práticos realizados, as aplicações profissionais, e outros.

.

Por isso, quando várias comunidades científicas abordam trabalhos de estudo total ou parcialmente coincidentes, a análise das relações entre estrutura comunitária e produção intelectual oferece um interesse especial. Trata-se de uma maneira nova e sugestiva de abordar o problema geral das relações entre fatores sociais e desenvolvimento científico.

61 Cf. Capel, H. 1977 e 1981, cap. III a IX; e Sánchez, I. 1981.

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A Geografia é uma ciência particularmente bem situada para este tipo de análise comparativa. Como ciência que se interessa pela organização e pelas relações que se produzem no espaço terrestre, pode ter superposições mais ou menos amplas com outras disciplinas que também se preocupem com o espaço. Estudar de que modo se aproximam do mesmo objeto científico os profissionais de distintas comunidades nos parece ser de grande interesse.

Entre as comunidades científicas que abordam, de alguma forma, o estudo do espaço terrestre se encontram, além da dos geógrafos, algumas como estas: geólogos, geofísicos, ecólogos, edafólogos, botânicos, oceanógrafos, economistas, antropólogos, ecólogos humanos, sociólogos ou historiadores. A estes devemos incluir numerosas comunidades científico-técnicas que desenvolvem intervenções sobre o espaço, para as quais é preciso realizar estudos prévios de caráter científico: arquitetos, engenheiros civis, florestais, de minas, agrônomos ou militares.

O espaço terrestre é para todos eles, como para os geógrafos, uma dimensão básica para a elaboração das suas teorias ou para a intervenção profissional, com o objetivo da sua transformação. Mas em função dos objetivos que possui cada um, estes escolhem ou privilegiam características do mesmo.

Comprovar de que modo se desenvolve isso, de que modo influi a estrutura comunitária na seleção e na elaboração dos conceitos espaciais é uma perspectiva essencial de nossa pesquisa. E, por esta razão, selecionamos algumas dessas comunidades para iniciar o trabalho.

A metodologia a desenvolver inclui a análise de diversas dimensões. Uma se refere ao conhecimento da estrutura institucional: legislação sobre títulos e funções, normas de funcionamento interno, recrutamento, seleção, controle de qualidade; outra, ao processo de socialização acadêmica, programas de estudo, instituições docentes, titulações,

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justificativas ideológicas sobre a dignidade e utilidade do trabalho a desenvolver; uma terceira, ao inventário dos componentes da comunidade científica, num censo o mais completo possível, e que permita posteriormente análises prosopográficas; finalmente, o conhecimento e a interpretação da produção científica, das tarefas profissionais e de outras atividades intelectuais dos membros do grupo, com atenção preferencial, no nosso caso, às publicações e às atividades que fazem referência ao espaço terrestre.

O objetivo de tudo isso é conhecer as bases intelectuais e os interesses sociais que têm podido influir na elaboração de conceitos e teorias científicas relacionadas com o espaço terrestre, separando, por uma parte, os aspectos comuns, resultado das idéias dominantes na comunidade científica geral e na sociedade em cada momento histórico e, por outro, os aspectos específicos e diferenciais, relacionando-os com o processo de socialização da disciplina e com os objetivos intelectuais e profissionais de cada comunidade.

Com esta metodologia, empreendemos o estudo do corpo de Engenheiros Militares, que na Espanha foi- devido à tardia criação do corpo de engenheiros civis -, durante todo o século XVIII e parte do XIX, um grupo essencial nas tarefas cartográficas, na descrição e no estudo do território e na ordenação espacial.

Com referência ao século XVIII, elaboramos um repertório biográfico e um inventário do trabalho científico e espacial do milhar de membros que o integraram62, um estudo da sua formação científica e sua estrutura institucional63, assim como várias análises da sua atividade na intervenção espacial, 64

62 Cf. Capel, H. García, L. Moncada, J.O Olivés, F. Quesada, S. Rodriguéz, A.

Sánchez, J.E e Tello, R. 1983.

63 Cf. Sánchez, J.E. 1987; Capel, H. 1987; Sánchez e Moncada, J. O.1988; Capel, H. 1988.

64 Cf. Sánchez, J.E. 1987; Capel, H. 1988; Muñoz, C. 1988.

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estando em andamento a realização da análise da sua produção científica e cartográfica relacionada às normas da corporação (ordens que determinam o tipo de planos ou descrições a desenvolver) e a formação obtida nas Academias Militares de Matemática existentes na Espanha nesse século.

A respeito do século XIX, o estudo desse corpus é realizado dentro de uma análise mais geral, dentro do papel da Geografia, utilizando os conceitos espaciais na formação militar65

Ao mesmo tempo abordou-se, seja diretamente, seja em relação a outras linhas de pesquisa, o estudo dos oceanógrafos,

.

66 dos engenheiros florestais,67 dos engenheiros agrônomos, dos engenheiros civis, dos edafólogos68, dos antropólogos,69

Se o projeto global puder se desenvolver durante os próximos anos, esperamos chegar ao final dele com conclusões de interesse - na nossa limitada área - sobre o problema geral da relação entre fatores sociais e o desenvolvimento do conhecimento científico.

além do que realizamos em relação aos geógrafos.

Tudo isto supõe uma pesquisa histórica e sociológica que possua um interesse para a prática científica atual. A valorização do papel das disciplinas científicas, a formação dos cientistas no desenvolvimento da ciência, as estratégias acadêmicas ou institucionais para desenvolver novos campos do saber, bem como a validade da utilização de teorias e métodos de uma disciplina em outra diferente são questões que podem ser elucidadas por estas pesquisas.

65 Cf. Muro, I. 1989; Nadau, F. 1988. 66 Cf. Suárez, J. 1969. 67 Cf. Casals, V. 1987 e 1988. 68 Cf. Huguet, 1983. 69 Cf. Bouza, J.

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A América no nascimento da geografia moderna: das crônicas medievais às crônicas sobre as Índias, passando por

Plínio e pelo descobrimento das novas terras

A desvalorização ou o desconhecimento do impacto do descobrimento da América no processo de construção da ciência geográfica tem sido, às vezes, surpreendentemente significativo. A Geografia tem obtido dos grandes descobrimentos escassos benefícios imediatos, escreveu René Clozier1

As palavras de Clozier são ainda mais surpreendentes quando pronunciadas a respeito de uma disciplina que, em sua história, tem atribuído tradicionalmente um papel essencial, e durante muito tempo quase exclusivo, aos descobrimentos geográficos

, o que outros têm confirmado, de uma forma ou de outra, ao longo deste século. Essa desvalorização se acentua ainda mais quando, a partir das obras de Alexandre Humbolt e Carl Ritter, entre os séculos XVIII e XIX, se generaliza uma interpretação da História da Geografia. Estas obras são consideradas o fato decisivo na transformação desta ciência, em direção à geografia contemporânea.

2

1 Clozier, 1967, p.53.

. Na realidade, suas palavras procuravam afirmar que mesmo com o aumento da informação disponível, a teoria geográfica, no entanto, realizou escassos progressos, e teria seguido ancorada no modelo de Estrabão e de outros geógrafos clássicos. Max Sorre é um dos que mantiveram esse ponto de vista, ou seja, para que a geografia adquirisse impulso seria necessário esperar pelos progressos realizados no século XVIII, quando:

2 Urteaga, 1987.

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a curiosidade dos filósofos, dos historiadores e dos políticos se voltava em direção aos costumes dos povos estrangeiros no seu ambiente natural; grandes publicações, como a história geral das viagens, recolhem um tesouro de observações geográficas [...] nelas se encontram reunidas todas as condições para o nascimento da Geografia Contemporânea3

Um ponto de vista recentemente adotado, por um geógrafo atual e excelente historiador da geografia, David Stoddert, é que a geografia moderna se configurou num espaço de tempo curto, entre final do século XVIII e início do XIX, assinalando como data crucial o ano de 1769 quando se iniciaram as explorações do capitão Cook no Pacífico.

.

Como a história das disciplinas científicas tem, com freqüência, funções legitimadas e autojustificações4, é possível supor que isto também existisse em relação às interpretações que promoveram, até o século XVIII, a transformação no desenvolvimento da geografia; e respondem, até hoje, a uma preocupação em aproximar essas transformações ao momento geralmente aceito como o do início da geografia contemporânea5

3 Sorre, 1957, p. 23-24; apud Quaini, 1981, p. 40.

.

4 Capel, H., 1988. 5 O século XVIII assinala um momento decisivo na evolução da Geografia,

porém, por razões diferentes, relacionadas com o processo de intensificação e especialização científica que afeta o conteúdo da ciência geográfica. Cf. Capel, 1982. O que os autores referidos querem expressar quando falam da transcendência das trocas experimentadas durante a Ilustração e o impacto da pesquisa sobre formas de vida, exame das relações entre a situação econômica e as condições ambientais de regiões específicas, às vezes também é a procura de conjuntos naturais concretos (clima, hidrografia, solo), em função dos assentamentos humanos (Gambi, apud Quaini, 1981, p. 47.).

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Estas interpretações têm sido aceitas mesmo por escritores espanhóis afetados pelo vício do mimetismo e pela supervalorização de tudo o que é estrangeiro, os quais evidenciam, infelizmente, o desconhecimento do desenvolvimento real da ciência geográfica e em particular desvalorizam de maneira inaceitável o impacto do descobrimento da América e a transcendência da reflexão geográfica que sobre essas terras se realizou na ciência hispânica do século XVI.

Pareceu-me apropriado dedicar, nos limites deste seminário referente a Intercâmbios científicos e culturais na Era dos Descobrimentos: fluxo e refluxo entre Espanha e América, uma comunicação referente ao impacto da América sobre a ciência européia, com a esperança de poder assinalar até que ponto a Geografia, como outras áreas científicas, foi afetada pelo conhecimento do Novo Mundo, num processo de fluxo e refluxo, no qual as idéias renascentistas, de base clássica e medieval, serviram como ponto de partida para a observação e a interpretação da realidade, mas resultaram profundamente transformadas pelo contato com a mesma.

Neste artigo, centrarei a atenção em: 1) a transformação do gênero historiográfico das crônicas medievais como resultado da utilização da obra de Plínio e do impacto produzido pelo contato com a natureza e com os povos americanos; 2) o desenvolvimento de um eixo de reflexão científica que leva a integrar e relacionar os fatos físicos e humanos.

As crônicas das Índias e sua origem medieval

De certo modo, poder-se-ia afirmar que a geografia moderna nasceu durante o século XVI, na América, no esforço por reconhecer, descrever, estudar e organizar as informações das terras descobertas.

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Em nenhuma outra época, desde a fundação da sociedade -escreveu Humbolt num conhecido e importante texto- se ampliou tão abrupta e maravilhosamente o círculo das idéias, no que se refere ao mundo exterior e às relações do espaço. Jamais se sentiu com tanto ímpeto a necessidade de observar a Natureza em latitudes diferentes e em diferentes altitudes sobre o nível do mar, e multiplicar os meios pelos quais se pode obrigar a revelar seus segredos6

É, sem dúvida, nas crônicas das Índias e, concretamente, nas obras de Fernández de Oviedo y Acosta, que se encontram, segundo reconheceu o próprio Humbolt, o fundamento da Física do globo

.

7

Não existe nenhuma dúvida sobre a profunda novidade que surge no esforço da integração de fenômenos diversos de caráter humano e natural nessas obras, que contribuíram decisivamente para sistematizar e difundir as notícias sobre o Novo Mundo e que, ao mesmo tempo, puderam converter-se também em modelos de uma nova forma de descrevê-lo.

, esse ramo da ciência que muitos geógrafos têm considerado, nos últimos cento e cinqüenta anos, como a origem da geografia contemporânea.

Surpreende, no entanto, que esses autores pudessem converter um gênero historiográfico tão claramente medieval como as crônicas num instrumento moderno da organização dos conhecimentos e da reflexão científica do mundo geográfico.

Como em tantos outros aspectos do Descobrimento, é na tradição clássica medieval que se encontram as origens do gênero. Também, como em outros tantos aspectos do Descobrimento, os fatos são mais bem entendidos se se consideram não somente como o despertar da Idade Moderna

6 Cf. Humboldt, Cosmos, 1874, p.256. 7 Cf. Humboldt, 1874, p.255-256.

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mas também como continuação e ponto culminante do desenvolvimento medieval.

Os historiadores antigos haviam incluído, freqüentemente, as considerações sobre o meio geográfico em suas narrações, e o caso da História de Heródoto não é senão o mais brilhante dos exemplos que podem vir de uma tradição na qual também se encontram, entre outros, Políbio8 e Justino, para mencionar autores bem conhecidos na Idade Média9

Mas a associação entre História e Geografia podia chegar ao ponto de dirigir em direção a esta última especialistas da primeira, como parece ter sido a situação de Estrabão, que redigiu sua Geografia depois de ter escrito suas Memórias Históricas em 47 livros, úteis para a filosofia moral e política

.

10. O mesmo parece ter acontecido com Santo Isidoro em De Natura rerum, que poderia ser lido praticamente como uma introdução às suas duas grandes obras históricas, o Chronicon e a História de Regibus Gothorum, Wandalorum et Suevorum11

8 Nas suas histórias, Políbio acostumava apresentar a geografia das regiões

onde se desenvolviam os acontecimentos, por exemplo geografia de Cecília em I, 42, de Cártago, I,72, e afirma que a Geografia e a Topografia são essenciais para a guerra, V, 21,6. De modo geral, descreve as terras conquistadas por Roma no livro XXXIV. Políbio interessou-se também pela Astronomia e Geografia e, pelo que tudo indica, escreveu uma obra intitulada Sobre la habitabilidad de la zona ecuatorial na qual defendia, como Erastóstenes, uma resposta afirmativa. Cf. Políbio, 1972 e a introdução de A. Diaz Tejera.

, e em autores

9 Em seu resumo da História de Trogo, Pompéyo e Justino incluem descrições geográficas a respeito dos povoados que estudam. Veja-se, por exemplo, a descrição de Cecília no livro IV, 1538, p.51 e seguintes.

10 Estrabón, 1980, livro I, cap. 1, 23, p.26. 11 Assim se deduz da colocação destas três obras na Patrologia de Migne, v.

LXXXIII, cols.965-1018, 1018-1057 e 1058-1082, respectivamente. Esta última inicia com uma conhecida e influente Laudes Hispaniae, na qual Isidoro dá também atenção a questões naturais, como a sinais terrestres que anunciam acontecimentos históricos, col. 1065, ou a conseqüências geográficas das

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posteriores, que chegaram à Geografia através da História e da Cronologia: por exemplo, na De Temporum ratione, Beda, ao analisar a razão dos tempos e procurar a cronologia para explicar as idades do mundo, vê-se obrigado a realizar uma apresentação dos movimentos da Terra e a escrever um verdadeiro tratado cosmográfico, ampliado em outro livro, De rerum natura12

Situadas nessa tradição, as crônicas, essas histórias nas quais se observa a ordem dos tempos

.

13

Tudo isto foi consolidando uma tradição, que possuía, sem dúvida, raízes antigas, presentes no início da modernidade, e que levava a integrar facilmente a Geografia na História

, incluíam freqüentemente, durante a Idade Média, segundo o modelo de Chronicon Isidoriano (s. VII), o da Crônica Albeldense (fines s. X), preâmbulos geográficos que podiam se referir também a aspectos como o caráter dos povos, os monumentos, as letras, os cavalheiros, a explicação do mundo natural através dos seis dias da criação, a descrição de todo o orbe terrestre ou de territórios particulares, a incorporação de dissertações sobre De excellentia Hispaniae, transformadas em hiperbólicas cartas, que alargavam e destacavam as qualidades do solo peninsular.

14

invasões dos bárbaros, col. 1077. Veja-se também a edição desta obra, elaborada por C. Rodriguez Alonso, 1975.

; e não

12 Beda, en Patrologia de Migne, vol. XC, cols. 294-578 e 187-294. Ao mesmo tempo, em De Gestis Longobardorum inclui amplas descrições de Germânia, Britânia e Itália, vol. XCV, especificamente cols. 493-498.

13 Diccionario de la Academia, sub voce. 14 Exemplo disto pode ser a Primera crónica general, mandada elaborar por

Alfonso o Sábio, século XIII. Nela encontramos, além de capítulos iniciais dedicados à criação do mundo, cap. 1 e sua divisão, em particular a descrição da Europa porque refere-se à História da Espanha que aqui desejamos contar cap.2, alusões ao contexto geográfico da fundação fabulosa da Espanha, caps.3, 9, 11 e 13, que tratavam respectivamente de: povoamento pelos filhos de Jafet; ocupação de Cadiz, Osuna e Granada e as vantagens estratégicas que possuíam; a grande seca que assolou a Península durante vinte e seis anos e foi acompanhada de três intensas chuvas. As divisões administrativas da época

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somente na História Geral, mas também no que se referia a fatos particulares, como a conquista de um território15

Pelo seu posto de cronista de um rei ou de um reino, esses historiadores possuíam a obrigação de relatar os fatos presentes no reinado

.

16

Desde a Idade Média existia, pois, tanto o cargo de cronista como a capacidade deste para observar lucidamente os acontecimentos contemporâneos e, por sua vez, para sistematizar, com maior ou menor crítica, materiais de diversas procedências.

. Sua preocupação em mostrar as origens dos fatos conduzia-os, em muitos casos, a compilar materiais variados, desde anais históricos a poemas e lendas populares, passando por informações de escritores sagrados e clássicos.

Por isso, não nos pode surpreender que o volume de assombrosas informações que chegavam das Índias tenha tornado evidente a necessidade de sistematizá-las, criando-se, para isto, o cargo de cronista das Índias, primeiro de modo

visigoda, cap.530-534; os nomes das cidades, cap.537, o processo de povoamento do planalto pela Reconquista, cap. 866, repovoamento de Extremadura; o cap. 558, Del loor de España, como é plena de todos os bens, p.310-312. Aqui está a mais famosa carta medieval da bondade da terra peninsular. Veja-se Alfonso, o Sábio, 1906.

Outro exemplo de crônica medieval com inclusão de cartas e Cronicon Mundi de Lucas, o bispo de Tuy, escrita entre 1197 e 1209, onde se relata a criação do mundo e as sucessivas idades. Cf. Lucas, 1926.

15 Exemplos das primeiras podem ser Crónica Gothorum pseudo isidoriana séc.XI, Crónica Najerense, séc. XII, Primera Crónica General ou General y grans Estoria de Alfonso X, séc. XIII, Suma de Crónicas de España, de Pablo de Cartagena e os Paralipómenos do bispo de Gerona Juan Margarit, séc. XV. A exemplo das segundas, estão Belli navarienses libri duo de Antonio de Nebrija, a respeito da expedição de 1512, que anexou o reino e na qual inclui um prefácio da geografia e dos habitantes de Navarra. Cf. Sánchez Alonso 1947, v. I.

16 Assim o afirma Alonso de Palencia, cronista de Henrique IV de Castilla, em 1477. Cf. Sánchez Alonso, 1947, vol. 1, p.391-393.

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espontâneo, como na situação de Pedro Mártir de Angleria, e mais tarde formalmente, nos casos de frei Antonio de Guevara e de Gonzalo Fernández de Oviedo (1536).

Por isso não nos podemos surprender com o fato de que estes cronistas tivessem se dedicado inteiramente às suas tarefas, com o apoio de uma longa tradição, à qual o humanismo havia agregado novas curiosidades e, por sua vez, novos modelos clássicos de fácil e imediata utilização.

O modelo de Plínio

Contudo, não podemos deixar de nos assombrar frente ao caminho que foi seguido. Quando Gonzalo Fernández de Oviedo trata da realização de sua História Geral e Natural das Índias, aproximando-se desses aspectos de modo simultâneo e com idêntica profundidade numa mesma obra, não há dúvida de que se deu um passo decisivo para o exame integrado dos fatos humanos e físicos. E não há dúvida também de que foi, concretamente, a América que o obrigou a dar esse passo.

Foi, com efeito, a surpresa frente às características do meio americano que levou o historiador e humanista Fernández de Oviedo a prestar decidida atenção ao meio natural. E para ordenar os dados que reuniu a respeito, utilizou-se da obra enciclopédica elaborada por Plínio o Velho.

Sem dúvida, os sucessos do Descobrimento e da Conquista eram memoráveis e o cronista-historiador17

17 Fernández de Oviedo afirma na Epístola, dedicatória da História, que a

obra está feita para cumprir a compilação dos materiais que sua Majestade Cesárea mandou e que com suas notícias contribuiria para escrever uma Historia General. O rei mandou-me que as escrevesse e as enviasse a seu real Conselho de Indias para

dedicava seu trabalho DOWNLOAD FREE

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a descrevê-los cuidadosamente, uma vez que possuía poder para requerer documentos e testemunhos dos protagonistas18

O que Fernández de Oviedo possuía quando chegou à América como inspetor das minas de ouro era o ofício de historiador, aplicado à narração dos sucessos acontecidos na Espanha e em outros territórios e dos quais possuía sido testemunha direta

. No entanto, mais atenção dava ao solo, às produções, à fauna, à flora e aos habitantes das novas terras. E isso foi precisamente o que destacou o autor quando teve que fazer uma rápida exposição ao Imperador dos novos domínios ultramarinos.

19

que, logo que fosse aumentando e se conhecendo, seriam incorporadas na sua gloriosa Crónica de España 1959, vol.1 p. 4 e 9.

e, no entanto, quando queria dar ao Imperador alguma recreação, resumindo algo das Índias, era nos aspectos naturais que punha ênfase. Além do caminho e da navegação até as Índias é dos animais terrestres e das aves e dos rios e das fontes e mares e pescados, e das plantas e ervas que produz a terra, e de alguns ritos e cerimônias dessas gentes selvagens que escreve de memória em seu Sumario (1526), insistindo, ademais, na novidade do que narra e reforçando seu caráter de testemunha direta e fiel.

18 Tenho cédulas e ordens da Cesárea Majestade para que todos seus governadores e oficiais de justiça de todas as Índias me comuniquem e dêem verdadeira relação de tudo que for digno de história, através de testemunhos autênticos assinados com seus nomes e certificados por escrivão público. Fernández de Oviedo, História, 1959 v.I, p.13-14.

19 A respeito da vida e da obra de Fernández de Oviedo, veja-se a biografia de J. Pérez de Tudela, 1959 e Gerbi, 1978. A obra que ele destaca no Sumário é a Crónica y vida de los Reyes Católicos... hasta el fin de sus dias, de lo que después de vuestra bienaventurada suceción se ha ofrecido, Prefácio, 1942, p.44. Sem dúvida, o Cathálogo Real de Castilla y de todos los Reyes de las Españas: e de Nápoles y Sicília: e de los Reyes y Señores de las Casas de Francia: Austria: Holanda y Borgoña... con relación de todos os Emperadores y summos pontífices que han sucedido desde Julio Cesar... hasta este año de Christo de MQXXXII años. Ao que temos que incluir o Libro de Cámara real del principe D. Juan; Relación de lo sucedido en la prisión del rey de Francia (Francisco I); Claribalte, 1519, que é uma novela de cavalaria.

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Sem dúvida, a surpreendente novidade da natureza americana produziu tal impacto e emoção no nosso autor e isso explica a profusa atenção atribuída a sua crônica, ampliando, consideravelmente, o que a tradição desse gênero historiográfico permitia.

Para compreendê-la melhor, para entender tantos segredos da Natura20

Mas é na obra enciclopédica de Plínio que encontra seu modelo, como declara desde o princípio e mais algumas vezes ao longo da sua obra: de algum modo, entendo seguir e imitar a Plínio, e em tudo quanto puder imitar, o faço; e o segue, com efeito, ainda no título do livro, quer dizer, no atrevimento de destacar a História Natural junto à Geral

, nosso historiador e funcionário espelhou-se nos autores clássicos; citou e utilizou Columela, Teofrasto e Virgílio, como também Crescentino e Gabriel Alonso de Herrera.

21, assim como o imita no sistema classificatório22 e recorre a ele ainda para encontrar exemplos semelhantes aos que encontra na América23

Mas a natureza das Índias era tão distante e diferente do mundo conhecido dos antigos que, mesmo sendo tão amigo de

.

20 Fernández de Oviedo, 1959, v. 1, p. 10. 21 Fernández de Oviedo, 1959, v. 1, p. 10, 11 e 13. No índice onomástico

desta edição estão as referências de Plínio, sendo ele o autor mais citado. 22 Fernández de Oviedo. Dele deriva a distinção que introduz no reino

vegetal e animal, tratando sucessivamente dos vegetais cultivados, livro VII; das árvores frutíferas, VIII; das árvores selvagens, IX; das árvores e plantas medicinais, X; das ervas e sementes trazidas da Espanha e outras encontradas nas Índias, XI; no que se refere às plantas e animais da Terra, livro XII; da água, XIII; voláteis, XIV; e insetos, XV.

23 Fernández de Oviedo compara sempre suas observações com as de Plínio, concordando e diferindo delas segundo seu conhecer e entender. Por exemplo, difere abertamente da explicação das marés do oceano, repetindo em várias oportunidades que não o convence a opinião de Plínio. 1959, v. I p.42

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Plínio24, não tem mais saída que superá-lo. Em Fernández de Oviedo aparece uma das primeiras formulações explícitas da crítica e da superação do saber clássico. Para que eu quero -escreveu- trazer a autoridade dos antigos nas coisas que eu vi e nas que a natureza ensina a todos e se vêem todos os dias?25

Da primeira:

. Ainda que seja consciente das suas limitações pessoais frente à empresa enciclopédica e erudita de Plínio, confia na sua experiência e na sua capacidade de observação pessoal e direta e supera, sem dar lugar a dúvidas, o naturalista latino, tanto no cuidado para não aceitar nada que não seja provado ou que pareça fabuloso, como no noticiário de terras por ele não conhecidas. De uma e de outra coisa tem plena consciência Fernández de Oviedo.

E assim como na sua história quis [Plínio] e se esforçou por compreender o universo, teve mais que decidir do que eu poderei aqui acumular; porque o que eu falo e escrevo é da minha pena e débil inteligência, e destas partes, e ele escreveu sobre o que muitos escreveram, e, o que é mais, soube, e assim teve menos trabalho nessas acumulações26

Da segunda:

.

E razão é que lhe ajudamos a escrever o que [Plínio] não soube e não encontrou escrito nas partes austrais e ocidentais destas nossas Índias nem nas outras regiões delas27

24 Fernández de Oviedo, 1959, v. 1, p. 229.

.

25 Fernández de Oviedo, 1959, v. I, livro VI, p. 151. 26 Fernández de Oviedo, 1959, v. I, p. 245. Em seguida diz que se não

escreve tanto quanto Plínio deve ser porque a terra é nova para nós e ainda a maior parte dela é desconhecida.

27 Fernández de Oviedo, 1959, v. II, p. 57.

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Através de Plínio e do conhecimento direto das terras americanas, o historiador Fernández de Oviedo se converteu, também, poderíamos dizer, em geógrafo moderno. Em Plínio encontrou não somente a história natural de plantas e animais, o que já era muito, mas também grande número de notícias geofísicas e cosmográficas as quais, aplicadas -junto com as anteriores- às diferentes regiões das Índias, permitiam a ele ir dando os primeiros passos em direção a uma geografia regional. Vejamos as suas palavras:

Digo que o segundo livro de Plínio trata dos elementos e estrelas e planetas e eclipses; e do dia e da noite; e da geometria do mundo e suas medidas; e dos ventos e trovões e raios; e dos quatro tempos do ano; e de prodígios e grandezas; e onde e como se congela a neve e o granizo; e da natureza da terra e da sua forma; e qual parte dela é habitada (ainda no que diz de ser inabitável a zona tórrida ou linha equinocial ele se enganou, também, como os que escreveram isso...) E também fez menção dos terremotos, e em que terra não chove, e onde continuamente treme a terra, e como cresce e diminui o mar, e relata alguns milagres do fogo.

Destas coisas e outras que ele diz, as que houvesse semelhança a elas, nesta História das Índias se dirão nas províncias ou terras onde houvera algo que notar de tais materiais28

Fernández de Oviedo afirma que, além de dar notícia dos descobrimentos e dos primeiros sucessos históricos, quer também dar a entender a verdadeira cosmografia das terras

.

29

A História Natural ou descrição da natureza de Plínio era, de fato, mais do que seu título habitual manifesta, uma verdadeira enciclopédia geográfica e cosmográfica, uma autêntica História

.

28 Fernández de Oviedo, 1959, v. I, p.14. 29 Fernández de Oviedo, 1959, v. I, Prefácio do Livro VI, p.142.

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Mundi, tal como, corretamente, foi intitulada em algumas edições do Renascimento30

Os primeiros livros da obra são dedicados diretamente à Cosmografia e à Geografia e constituem modelos que foram, sem dúvida, tidos em conta na redação das geografias medievais e renascentistas, com influência até no século XVIII. O livro segundo, sobre o mundo, os elementos e as estrelas, apresenta o cosmos e constitui, por sua vez, um tratado da esfera terrestre, estudando as conseqüências que a forma da Terra apresenta quanto à disposição dos climas astronômicos e das regiões e sua influência nos habitantes, além de incluir noções a respeito dos meteoros e terremotos. Desde o livro terceiro até o sexto trata das partes do mundo, dedicando especial atenção à Europa, continente sustentador do povo vencedor e o mais formoso de todos; trata da orografia, das divisões administrativas, das cidades, descreve os povos que habitam as diferentes regiões, preocupa-se sempre com sua latitude, longitude e extensão, e eventualmente debate as razões geográficas da grandeza de uma nação

.

31

Como é conhecido, a obra de Plínio foi muito imitada e resumida no final da época romana e foi conhecida através dos

. A incorporação do homem como ser criador e inventor, dentro da obra, no sétimo livro, supõe finalmente uma atenção rumo ao campo da moral e termina por dar à História de Plínio um alcance que supera amplamente o puro natural.

30 Veja-se Plínio, 1561 e 1582. O título está amplamente justificado, mesmo

que na dedicatória Vespasiano, o autor, fale de História natural, sendo que o índice geral da obra diz: C. Plinii Secundi Historiarum Mundi Elenchos.

31 Também no livro IV, onde discute de que parte saiu primeiro toda a grandeza da Grécia. Não é estranho, por isso, que o conteúdo geográfico da obra de Plínio, traduzido por Gerónimo de la Huerta, se convertesse também num tratado de geografia a respeito das terras desconhecidas pelos gregos e romanos, incorporando nelas uma geografia da América. Plínio, ed. Gerónimo de la Huerta, 1624, cap. 34, p.226-248.

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resumos ou diretamente, na Idade Média32. A Mirabilum Collectanea rerum, também conhecida como Polyhistor de Solino, constitui, em grande parte, uma sistematização geográfica da obra de Plínio, muito utilizada na época medieval e repetidamente editada a partir de 149333. O mesmo se faz, ainda que parcialmente, com as Etimologias de Santo Isidoro de Sevilla, essa monumental enciclopédia do saber antigo, na qual se sistematizaram muitas das ciências e artes da Antigüidade34. Mas, sobretudo, em relação ao problema que aqui nos ocupa, foi também utilizada pelos historiadores e citada na Primeira Crônica Geral de Alfonso, o Sábio35

Na Espanha, Plínio foi autor conhecido e estudado nas universidades durante os séculos XV e XVI, e objeto de comentários e anotações por parte de diferentes humanistas, desde Nebrija até Pedro Chacón

.

36

32 A obra de Plínio era localizável de modo freqüente nas bibliotecas

medievais, como assim o demonstram os numerosos manuscritos conservados dessa época.

.

33 Solino, 1538, BC. Sevilla, 1573. A primeira edição foi publicada em Veneza, em 1493, e realizaram-se posteriormente edições em Viena, Lyon, Amberes e outras cidades. A de Viena, em 1520, elaborada por Cámera, contém o famoso mapa do mundo de Apiano com o contimente americano; a de Amberes, em 1572, foi realizada aos cuidados de Martín Antón del Río.

34 São Isidoro, na Patrologia de Migne, v. LXXII, livros 11 e 14. Eles tratam respectivamente do homem, dos animais, do mundo e da terra.

35 Alfonso, o Sábio, 1906, no cap. 105 dedica-se a resumir os reconhecimentos que fez Plínio de Pompeyo no cap. XXVII da sua obra.

36 Plínio era um dos autores mais freqüentes que existia nas bibliotecas no século XVI, com ao menos oito exemplares, e no século XVII, com dezoito exemplares, segundo Rojo y Vega, 1985 p.96-105. A respeito de Plínio na Universidad de Salamanca, isto pode ser visto em Vicente Castro e Rodriguéz Molinero, 1986, e em Gil, 1980, p.436. De todo modo, em 1544, a edição das anotações de Hernán Nuñez a Plínio não era vendida e o autor afirmava que o naturalista romano era pouco conhecido na Espanha, Cf. Gil, 1980, p.672 e 677-678. A partir de Menéndez Pelayo, 1954, v. III, podemos assinalar as seguintes

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Se a História Natural de Plínio se dirigia à Cosmografia e à Geografia, é oportuno lembrar que, por sua vez, também esta se conduzia em direção à História Natural. Estrabão havia advertido, na sua Geografia, que aos conhecimentos matemáticos e astronômicos o geógrafo devia incluir o conhecimento do que se encontra sobre a terra, por exemplo os animais, as plantas e todo o útil e nocivo que contêm o mar e a terra. Dessa maneira, existia toda uma série de vínculos que relacionavam, intimamente, essas distintas áreas do conhecimento científico e que formavam uma tradição influente no início do Descobrimento.

A tradição historiográfica e o impacto da natureza americana

A partir da tradição historiográfica medieval e renascentista e com a ajuda da enciclopédia de Plínio e de outras obras clássicas, os cronistas das Índias se converteram também em geógrafos modernos no contato com a natureza e com os povos americanos, ante a necessidade de transmitir aos leitores europeus a novidade do mundo descoberto.

Possuíam, desde logo, a vantagem de que sobre a América os historiadores e geógrafos antigos não haviam falado nada. Não existiam, então, os argumentos de autoridade e eles podiam observar livremente o que viam, aplicando as luzes das suas

anotações e os comentários a Plínio na Espanha do século XVI: Elio Antonio de Nebrija; Francisco López de Villalobos, Glossze Lideradis in primum et Secundum Naturalis Historiae Libros Alcalá, 1524; Martín Figueredo Commentum in Pliini Naturalis Historiae Prologum, 1524; Juan Andrés Strany Annotationes in C. Plinii Secundi Naturalis Historiae Libros, XXXVII, anterior a 1531; Hernán Nuñez, Observationes in loca obscura ant depravata Historiae Naturalis cum retractationibus quorumdam locorum Geographiae Pomponii Melae, Salamanca, 1544; Francisco Hernández e Pedro Chacón, em meados de 1580. Algumas destas obras estão referenciadas na bibliografia deste trabalho.

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mentes e a exigência de veracidade e certeza. Nisto foram observadores atentos e perspicazes, tratando sempre de assinalar o cenário dos grandiosos acontecimentos que historiavam.

Seu objetivo principal não era escrever uma obra sistemática de Geografia. Outros especialistas, os cosmógrafos, possuíam essa tarefa e a realizavam eficientemente, seguindo o eixo renovador assinalado pela pesquisa universitária de base nominalista, e pela obra de Ptolomeu. No entanto, superam a uns e outros na descrição do território e de seus habitantes, e inventaram, ao avançar, novos métodos para as narrações geográficas.

No caso de Fernández de Oviedo, o que corresponde a um mérito especial, sua atitude geográfica se reflete em algumas características, o que é oportuno lembrar.

Primeiro, a organização geográfica da sua crônica, sendo que os acontecimentos se apresentam sucessivamente como História da Ilha Espanhola, de São João (o Porto Rico), de Cuba e de Terra Firme.

Em segundo lugar, a cuidadosa atenção às referências geográficas dos acontecimentos. Sua história é sempre uma história rigorosamente localizada, com atenção para circunstâncias topográficas, hidrográficas e climáticas, que servem, ademais, para interpretar melhor certos acontecimentos.

Em muitos casos, mistura a narração histórica com a apresentação do território e dos povos que ali habitam, e, em outros, faz preceder toda a história do território pela exposição ampliada e detalhada da sua geografia e de notícias cosmográficas indispensáveis. Mas sempre está atento ao cenário da crônica e suas conseqüências sobre os acontecimentos.

Em terceiro lugar, sua preocupação em fixar cuidadosamente a posição das terras, especificando a latitude e as distâncias,

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manifestava-se nas suas observações, tomando com o astrolábio as alturas e atrevendo-se a corrigir ainda um cosmógrafo tão prestigiado como Alonso de Chaves.

Por último, e talvez fundamentalmente, sua capacidade para realizar uma Geografia e uma História natural comparada, efetuadas tanto a partir da perspectiva da semelhança com o mundo conhecido quanto da diversidade; ou seja, a partir da preocupação em incorporar as novas terras ao próprio horizonte mental, ao que se dirige o reconhecimento do novo e das suas diferenças a respeito do conhecido.

Mesmo com tudo isto, certamente o significado fundamental da obra de Fernández de Oviedo é que, com ela, a tradição historiográfica das crônicas ficou profundamente afetada pelo impacto da natureza americana. Se, como afirmei antes, não era em absoluto uma novidade a incorporação de notícias geográficas nelas, era natural, no entanto, o amplo desenvolvimento que estas adquiriam e a decidida atenção que atribuíam ao mundo natural e cultural do novo continente, assim como o papel decisivo da observação pessoal.

De fato, e simplificando muito, depois de Fernández de Oviedo, podemos diferenciar claramente dois tipos de crônicas históricas, as duas derivadas da tradição medieval.

Por um lado, os historiadores que elaboraram suas edições na Espanha, recolhendo e sistematizando de forma erudita materiais de fontes secundárias, iguais a muitas crônicas medievais, fazem anteceder a narração de um preâmbulo geográfico no qual apresentam algumas noções cosmográficas gerais para situar o Novo Mundo no conjunto da esfera terrestre, discutindo para confirmar ou rejeitar as idéias precedentes da Antigüidade Clássica e Medieval. Assim procede, por exemplo, o cronista imperial Francisco López de Gómara na sua Hispania Victrix, Historia General de las Índias (Zaragoza, 1552), ainda que mais

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tarde pudesse introduzir, mesmo que eventualmente, algumas notícias geográficas em outras partes da obra.

Por outro lado, para os historiadores, que tiveram contato com a realidade americana, o essencial era a transmissão do diretamente percebido, a emoção sentida no descobrimento pessoal e nos esforços para comunicar ao leitor europeu uma imagem viva e verdadeira da impotente natureza indiana e dos estranhos povos que ali moravam. A descrição geográfica envolve agora toda a obra, não somente como apresentação geral dos territórios, mas também como vontade permanente de assinalar as referências físicas dos acontecimentos, o cenário da história, ainda que em alguns mais eruditos ou preparados tudo isto possa estar acompanhado de debates a respeito das idéias clássicas ou de notícias cosmográficas sobre a latitude e as posições dos lugares descritos.

A este segundo grupo pertencia Cieza de León. Que Cieza se sentia historiador é algo fora de questionamento. Assim como para escrever sua Crônica do Peru contou com a autorização, e talvez o estímulo, do presidente La Gasca, que lhe permitiu o acesso a seus documentos pessoais e lhe facilitou cartas para todos os corregedores, que lhe dessem autorização para inquirir aos mais notáveis das províncias.

Cieza teve necessariamente que incorporar na sua crônica a Geografia. E seus argumentos são esclarecedores:

Quem poderia dizer as coisas grandes e diferentes que estão nele [no Peru], as serras altíssimas e vales profundos, por onde se foi descobrindo e conquistando; os rios, tantos e tão grandes, de tão crescida profundidade, tanta variedade de províncias como há, com tantas e diferentes qualidades; as diferenças dos povoados e pessoas com diversos costumes, ritos e cerimônias estranhas; tantas aves e animais, árvores e peixes tão diferentes e desconhecidos? Sem isto, quem poderia falar dos jamais ouvidos sofrimentos que

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tão poucos espanhóis, nesta terra de grandeza, padeceram? Quem pensará ou poderá afirmar os desconhecidos casos em que as guerras e descobrimentos de mil e setecentas léguas de terra lhes sucederam, a fome, a sede, morte, temores e cansaço?

Por isso, ao desenhar o plano geral da sua Crônica do Peru, dedica toda a primeira parte, a única que veio à luz na sua época (1553), à descrição do território, tal como explicitamente declara nela:

Esta primeira parte trata da demarcação e divisão das províncias do Peru, tanto pelo mar como pela terra, e da latitude e longitude, a descrição de todas elas, as fundações das novas cidades pelos espanhóis, os nomes dos fundadores; quando foram habitadas; os ritos e costumes que possuíam antigamente os índios naturais, e outras coisas estranhas e muito diferentes das nossas, que são dignas de anotar.

A obra é, efetivamente, um verdadeiro tratado descritivo de Geografia Regional, Física e Humana, de uma modernidade verdadeiramente assombrosa e de uma influência que - como a de Oviedo - há de se supor significativa, considerando sua ampla difusão na Europa.

De modo semelhante e quase simultâneo, ainda que de forma independente, procedeu o funcionário da fazenda real Agustín Zárate, que na sua História do Descobrimento e conquista da Província do Peru (Amberes, 1555) iniciou também a narração com um primeiro livro dedicado, em grande parte, à apresentação do meio geográfico; o padre Las Casas, que na sua Apologética Historia misturou habilmente o conhecimento do meio americano com uma teoria ambientalista que lhe permitia defender a nobreza e a dignidade dos indígenas.

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Também sente a necessidade de incorporar o meio geográfico à sua Historia de los Índios de la Nueva España o franciscano frei Toribio de Benavente (Motolonia), ainda que seu objetivo principal -a exaltação do labor missionário e a defesa dos indígenas mexicanos na referência ao projeto evangelizador franciscano- não exigisse isso. Ainda assim, após redigida uma parte importante da sua obra, relata e confessa:

Algumas vezes tive o pensamento de escrever e dizer algo das coisas que há nesta Nova Espanha, naturais e criadas nelas, como se têm criado nesta terra, e vejo que ainda por falta de tempo isto vai remendando e não pôde sair de acordo com minha intenção desde o início [...] Mas já que comecei direi destes montes de que falei, que são grandes e ricos.

A partir dali, e nos capítulos finais, introduz decididamente a Geografia da Nova Espanha, transmitindo ao leitor sua emoção pela visão direta da natureza americana, como quando ingenuamente exclama:

É de observar e prestar grande admiração quando algo é incorreto, uns montes tão altos e tão grandes que parece coisa impossível que por ali possam passar rios, e ali no profundo dá Deus aos rios seus canais e cursos, amplos, extensos, estreitos e apertados. Em partes correm com grande mansidão e por outras partes deslizam com tanta fúria que inspiram temor e espanto aos que os miram.

Montes, rios, geadas, florestas e descrições das regiões se sucedem, repetem-se as exaltações da beleza e da fertilidade do solo e não faltam as comparações com a Geografia européia.

O mesmo acontece na Crónica de la Nueva España, do humanista, catedrático e mais tarde reitor da Universidade do México, Francisco Cervantes de Salazar; com a História do Chile (1575), do capitão Alonso de Góngora Marmolejo; com a crônica do Reino do Chile, de Pedro Marinho de Lobera, para citar alguns.

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Ainda que não somente aos historiadores, a mesma causa que influenciou Oviedo e outros cronistas atuou igualmente em outros descobridores e conquistadores, transformados, quase sem se dar conta em verdadeiros geógrafos.

Os relatos de uns e de outros, assim como de funcionários e governantes, estão plenos, algumas vezes, de notícias geográficas. Sentiram também que era impossível entender a magnitude das penalidades e a grandeza dos sucessos sem dar atenção às referências geográficas nas quais estes se produziam.

Se é correto que em alguns dos primeiros relatos da conquista o importante é a narração das vicissitudes da façanha e a admiração pelas fadigas dos conquistadores e pelas riquezas obtidas, na maioria a descrição do cenário geográfico adquire um aspecto destacado.

Os descobridores e conquistadores tiveram, sem dúvida alguma, uma nítida percepção da Geografia. Poder-se-ia ainda, afirmar que somente os que tiveram essa percepção alcançaram o êxito, pois de outro modo era impossível se locomover nas novas terras, totalmente desconhecidas e com características topográficas e biogeográficas tão particulares: cordilheiras e depressões às vezes inacessíveis, áreas pantanosas, selvas intransitáveis, rios com correntes turbulentas ou acidentadas. O mesmo se pode afirmar dos funcionários reais que, mesmo com a ajuda recebida, tiveram que experimentar pessoalmente, de modo intenso, as fadigas das longas caminhadas e o percurso por regiões inóspitas.

Não há de se estranhar, por isso, que nas suas cartas de Descobrimento ou Conquista e nas fundações das cidades e nas notícias das primeiras disposições de governo encontremos algumas vezes observações geográficas e uma nítida percepção das possibilidades oferecidas pelo meio natural, onde também aparecem extensas e precisas descrições do território e dos seus

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habitantes, isto não somente por obrigação mas também por espontânea opção.

Plínio e Sahagún

Na história das Índias, a influência de Plínio se faz sentir diretamente, não somente em Fernández de Oviedo mas também em outros cronistas que foram igualmente leitores atentos do naturalista latino. O caso mais significativo, pela surpresa, é o do franciscano frei Bernardino de Sahagún.

Quando Sahagún iniciou sua profusa publicação acerca das tradições e dos costumes indígenas, a partir dos quais elaborou sua História das coisas da Nova Espanha, empreendeu também a tarefa de ordenar as notícias que tinham os astecas e outros povos a respeito do mundo natural, e foi na obra de Plínio que encontrou o modelo para classificar as produções da natureza.

Segundo a História Natural, que, como conhecemos, estava na biblioteca do Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco, frei Bernardino realizou uma parte do seu labor, organizou o livro décimo primeiro da sua obra estudando sucessivamente os animais terrestres, as aves, os peixes, as árvores, as flores, os metais, as pedras e as cores, num projeto de nítida fundamentação pliniana e que ele aplica à descrição do mundo natural dos povos indígenas da Nova Espanha, tal como estes o percebiam. E não se trata somente da apresentação dos resultados. Parece indubitável que, desde o início, a coleta de informação de Sahagún tivesse um modelo definido, o que se refletia no questionário aplicado a informantes, e que pode ser reconstituído, a partir da uniformidade das respostas incluídas na obra.

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O objetivo da História das coisas da Nova Espanha era basicamente missionário e dirigia-se, como é sabido, a conhecer a história e os costumes dos indígenas, partindo da premissa de que para sanar um mal é necessário conhecer antes a enfermidade que se vai combater.

Para isso era necessário, sobretudo, uma informação, que hoje caracterizaríamos como antropológica e, através da sua sistematização, Sahagún se converteu em um verdadeiro propulsor dessa ciência. Mas, com o modelo de Plínio, frei Bernardino se converteu também em um sistematizador da História Natural e da Geografia dos povos indígenas.

Mesmo no livro décimo primeiro, o qual trata das produções naturais, o autor dedica um capítulo à diversidade das águas e das terras, seguindo a estrutura de Plínio, e termina com a apresentação da topografia das rotas de expansão da Igreja e dos alimentos.

Apesar de ter objetivos radicalmente distintos, a obra de Sahagún possui elementos que a fazem equivalente à de Fernández de Oviedo: a mesma dependência do modelo pliniano, a mesma preocupação com as dificuldades da conquista, apresentada como um acontecimento divino, e idêntico interesse pelos costumes dos povos indígenas. Não há nela, no entanto, ao contrário do que acontece com outros cronistas, essa emoção ante a natureza americana e esse esforço por descrever a sua grandiosidade e seus elementos particulares.

Ainda que, sem dúvida, ele tivesse conhecido a tradição historiográfica das crônicas medievais, é, no entanto, uma obra independente dessa tradição, pela amplitude do esforço para entender, de forma mais íntima, a cultura dos dominados, e nesse sentido representa um marco essencial no desenvolvimento da Antropologia. Mesmo nesse aspecto, que foi unido ao crescimento dessa ciência até a época contemporânea, o esforço se dirigiu a utilizar o conhecimento dos povos

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estudados, para poder destruir sua cultura e aprimorar as técnicas de sujeição e transformação cultural.

Outras vias para a integração dos fatos físicos e humanos

As crônicas das Índias mostram como os historiadores dos acontecimentos humanos podiam chegar facilmente à descrição e ao estudo da natureza, integrando os fatos humanos e naturais numa mesma obra ou projeto de pesquisa, até alcançar uma reflexão sobre a interação de uns e outros.

Mas não somente a partir da história humana se podia seguir esse caminho. Também se podia chegar a um resultado similar por outros pontos de partida e com diferentes preocupações, e em particular pela História natural, pela Filosofia e pela Religião. Falaremos agora disso.

Desde a Antigüidade, existia uma poderosa linha de reflexão sobre o mundo natural, que incluía também o homem, tanto no que se refere aos aspectos puramente biológicos quanto às faculdades intelectuais e morais ou à sua dimensão social. Esta tradição podia apoiar-se em Aristóteles, que havia incorporado ao final da Física o tratado sobre a alma, nas suas funções vegetativa, sensitiva e intelectiva.

A integração, numa mesma obra, de temas naturais e morais -moral no sentido social ou dos costumes, e ético- aparece claramente na cultura romana. Lembremo-nos de que no poema épico de Lucrécio, De Rerum Natura, existe um tratado a respeito da alma e das sensações, e de que a obra termina com a causa das doenças e a impressionante descrição da peste de Atenas. O mesmo realiza Plínio na sua Historia Naturalis, e Sêneca em outra das mais influentes obras a respeito de temas naturais escrita na época romana, as Naturales Quaestiones, incrementada com longas discussões morais.

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Sem dúvida, é essa antiga tradição que se deixa sentir, durante o Renascimento, em autores humanistas que tratam na mesma obra sobre os corpos naturais e as causas morais, como o fez, por exemplo, Francisco López de Villalobos em seus famosos Problemas. Mas de forma mais ampla se reflete nas preocupações que emergem em alguns dos grandes cientistas do século XVI, que chegam a relacionar os fenômenos naturais aos morais. Porém, um dos mais significativos é o caso do médico naturista Francisco Hernández, diretor da primeira expedição científica a terras americanas, ordenada por Felipe II.

Com Hernández, recuperamos Aristóteles, Plínio, Sêneca, Pompônio Mela e a natureza americana, numa fantástica e imbricada associação que inspira um dos mais importantes empreendimentos científicos do século XVI.

Como outros humanistas, Hernández esteve interessado nas obras aristotélicas, sendo que resumiu e glosou pessoalmente a Física e a Ética Nicomáquea, dedicando-as, talvez, para uso de Felipe II. Mas também estuda amplamente a filosofia dos estóicos e, em particular, a moral, tratando de aproximá-la dos peripatéticos e, eventualmente, de Platão.

O inanimado e o que tem a alma, a natureza e a moral aparecem, assim, tratados simultaneamente na glosa da obra aristotélica, e, por sua vez, como motivo de indagação na obra dos filósofos da Antigüidade.

Ao mesmo tempo, o protomédico real traduzia, comentava e estudava atentamente a obra de Plínio, com a qual não somente adquiria conhecimentos indispensáveis para seu trabalho de naturista mas também obtinha uma formação geográfica que lhe permitia desenvolver a outra dimensão essencial da sua expedição científica às Índias Ocidentais.

Os amplos comentários que Francisco Hernández realizou nos livros plinianos de Cosmografia e Geografia se converteram

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esporadicamente em trabalhos complementares, como o Compêndio da Geografia da Ásia, escrito para o entendimento da Ásia de Plínio e sempre com comentários eruditos e com uma crítica prolixa sobre as notícias apontadas pelo naturista romano.

Ainda que Hernández não deixe de fazer profissão pública de realizar um ofício muito diferente do Geógrafo, na verdade, era bom conhecedor de Ptolomeu e outros geógrafos antigos, como Pompônio Mela, assim como dos modernos, aos quais não hesita em criticar, além de ser conhecedor das crônicas históricas. Por isso, estava convencido da necessidade de elaborar uma nova geografia do mundo, em que unindo o antigo com o moderno se concretizara numa particular e completa descrição e história geográfica. Trabalho que, sem dúvida, tratou em relação ao México como uma nova Geografia y corografia de las Índias.

Com essa ampla formação, explica-se o vínculo entre o natural e o moral, entre o mundo da natureza e o mundo do social, como uma questão lógica e inevitável para ele. Assim o confirma claramente quando edita seus Antiguedades de la Nueva España, afirmando que a História, na qual trabalha com afinco por ordem do rei, ou seja, a história natural, não podia ser concluída plenamente sem esta parte [a das Antigüidades].

Esta obra histórica foi elaborada essencialmente a partir dos materiais reunidos pelo frei Bernardino de Sahagún e por outros autores, e remetida a Ovando, talvez como resposta à cédula real de 1573, que se referia à descrição das Índias.

A obra de Hernández se inicia com a descrição geral de todas as Índias, e mesmo dedicando, praticamente em sua totalidade, a uma história do México pré-hispânico, não deixa de dar atenção a alguns fatos naturais, e em particular às características da cidade do México, partindo das condições do seu clima astronômico e do território em que foi fundada, bem como referindo-se a outros fenômenos naturais dignos de admiração.

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No entanto, mais importante que isso é a aceitação explícita da correspondência entre a alma e o corpo, por um lado, e o corpo e os astros e o ambiente por outro, questão amplamente reconhecida pelos cientistas do século XVI, em especial pelos médicos. Isto levava, necessariamente, a se perguntar pelas influências do mundo natural sobre os homens e a interessar-se tanto por um quanto pelo outro.

Assim, sem dúvida, pensava Francisco Hernández, que, mesmo sendo comissionado por Felipe II para investigar a natureza do Novo Mundo, chegou também a interessar-se pelos povos americanos, consciente dessas inter-relações. Manifestou isso de forma expressiva na dedicatória ao rei, nas suas Antigüidades de la Nueva Espanha:

Ainda que me tenhas comissionado tão somente para realizar a história das coisas naturais deste orbe, Sacratíssimo Rei, e ainda que a tarefa de escrever sobre antigüidades possa considerar-se como que não me pertence, no entanto julgo que não são isoladas estas dos costumes e ritos das pessoas, porque ainda quando em grande parte não devam ser atribuídas ao céu e aos astros, pois a vontade humana é livre e não está obrigada por ninguém e pode espontaneamente executar qualquer ação, ainda os mais ilustres filósofos opinam que existe concordância entre a alma e o corpo, e mútua correspondência entre o corpo e os astros; de maneira que correntemente separando o honesto e o justo, seguimos as relações do céu e do corpo e rara vez se encontram os que negam esses impulsos e a essas forças resistam firmes e tranqüilos.

A aceitação dessas interações, que, por outro lado, podiam ligar-se aos princípios da similitude ou semelhanças entre o todo existente e as idéias a respeito da relação entre o macrocosmos e os microcosmos, conduzia muitos médicos e naturistas a uma reflexão ambientalista que era herdeira de uma longa tradição clássica e medieval.

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Nesse mesmo sentido, situa-se o doutor Juan Cárdenas, na sua obra Problemas y Secretos Maravillosos de Las Índias, publicada no México em 1591, que herda, sem dúvida, a proposta de Villalobos a respeito das questões problemáticas da tradição hipocrática e aristotélica, e provavelmente também a respeito da influência da permanência de Hernández na Nova Espanha.

Cárdenas apresenta sua obra como uma História natural, e utiliza amplamente argumentos de origem clássica, ainda que se situe na linha da autoconsciência da superioridade dos modernos sobre os antigos, pois conta com verdades e fidedignos testemunhos de pessoas que viram coisas que, se por acaso as escutasse Plínio, ficaria paralisado e espantado. Sua longa permanência na Nova Espanha lhe permitiu conhecer muito bem a realidade americana, que compara sempre com as idéias dos clássicos (e em especial Aristóteles, Plínio e Galeno) e trata sucessivamente do local, clima e posição da terra (livro I), dos minerais e plantas (livro II) e das adaptações dos homens ao ambiente e dos animais nascidos nas Índias (livro III).

Esta obra constitui um tratado de História Natural, na versão de um médico de formação humanista, adquirida na universidade mexicana, e interessado por entender as peculiaridades da natureza americana e as características físicas e mentais do homem europeu transplantado para a América.

A tudo isto há que se unir a tradição cristã, que distingue cuidadosamente entre matéria e espírito e, por conseguinte, entre o mundo natural e o moral, permitindo também, apesar disso, uma visão integradora de um e de outro.

Principalmente porque, na concepção antropocêntrica, teleológica e providencialista do cristianismo, Deus havia criado o mundo para o homem, e a este, formado à sua imagem e semelhança, tinha atribuído a grandiosa tarefa de completar e aperfeiçoar a criação.

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O estudo da transformação da natureza pelo homem era, por sua vez, o estudo do mesmo destino do Criador sobre o mundo e a Humanidade, sendo indubitável que essa transformação fosse desejada e guiada divinamente pelo mesmo Deus.

Essa é, de certo modo, a confiança que anima o cronista imperial López de Gómara quando, disposto a contar os memoráveis fatos dos espanhóis na América, inicia sua Historia de las Índias Ocidentales com as seguintes palavras:

Deus criou o mundo por causa do homem e o entregou ao seu poder, e o colocou debaixo dos seus pés e, como Esdras diz, os que olham a Terra podem entender o que nela existe, assim Deus colocou o homem nesse desafio, e nos fez merecedores e capazes de poder entendê-lo.

Mais ainda, segundo a teologia cristã, os homens, crentes ou não, podiam reconhecer Deus no mundo criado por Ele. Podiam utilizar para isso as palavras de São Paulo: desde a criação do mundo o invisível de Deus, seu eterno poder e sua divindade são conhecidos por meio das criaturas. O mundo era um livro cuja leitura nos aproximava do Criador. Tanto a ordem da natureza como o desenvolvimento da História respondia a seu destino, por isso dali se conclui que a reflexão a respeito de um e de outro permitia que se maravilhasse com sua grandeza.

A visão divina marca a obra dos cronistas das Índias, mesmo que todos eles, laicos e religiosos, comprovem uma ou outra vez a grandeza da criação da natureza americana. Ao mesmo tempo, apresentam sempre o Descobrimento e a Conquista do Novo Mundo como resultado de um destino divino, ainda que em muitas situações -por exemplo no tocante às barbaridades dos espanhóis e à destruição dos indígenas- isto seja contraditório.

Essa concepção do mundo como um livro aberto, permite uma aproximação de Deus e inspirou muitos religiosos a uma

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pesquisa sobre a natureza e sobre a história humana para conhecer melhor o Criador.

Não se pode estranhar, por isto, que nas obras de teologia e moral emerjam, com freqüência, nessa época, reflexões a respeito da ordem natural dos céus e da Terra, ou referentes a criaturas seguindo através delas a infinita sabedoria e onipotência de quem as criou e a bondade e providência com que as governa.

Nessa mesma linha de raciocínio quando o jesuíta José Acosta concebe o seu projeto missionário expresso no De Procuranda Indorum Salute (1577) e, consciente da diversidade das terras e povoados das Índias, sente a necessidade de elaborar sua Historia Natural y Moral de las Índias (1590), a qual planejara inicialmente com objetivos religiosos, ainda que aceite a possibilidade, mesmo que secundária, da sua utilidade através de uma perspectiva profana. Assim o expressa claramente no prefácio da sua obra:

O fim deste trabalho é que pela notícia das obras naturais, que o autor tão sábio de toda a natureza tem realizado, se façam louvores e glórias ao altíssimo Deus, que é maravilhoso em todas partes; e pelo conhecimento dos costumes e coisas próprias dos índios, estes sejam ajudados a conseguir e permanecer na graça da alta vocação do Santo Evangelho, o que se dignou, no fim dos séculos, a trazer gente tão cega, a que ilumina desde os montes altíssimos da sua eternidade. Além disso, cada um poderia obter para si também algum fruto, pois, por baixo que seja o sujeito, o homem sábio obtém para si sabedoria; e dos mais vis e pequenos animaizinhos pode-se obter respeito e proveitosa filosofia.

Assim, por um caminho diferente do de Fernández de Oviedo se chegou também à integração dos fenômenos naturais e humanos em uma obra sistemática sobre a América; uma obra que tem sido considerada, com toda razão, como de importância

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transcendental em distintas áreas do saber, e que foi, em particular, valorizada por Alexandre Humbolt como um evidente precedente da sua Física do Globo, e que os geógrafos do século XIX e outros no nosso século consideram como o fundamento da Geografia Contemporânea.

Na obra do padre Acosta culmina, sem dúvida, o processo de reflexão científica sobre o Novo Mundo desenvolvido durante todo o século XVI. Sua transcendência é inegável, e ainda que o impulso inicial para escrever tenha respondido a uma motivação religiosa, evangelizadora, o resultado constitui uma contribuição de primeira ordem ao conhecimento da América e, de maneira mais geral, à codificação de um gênero, o da História natural e moral, apresentadas conjuntamente, o que teria mais tarde uma profunda influência e prolongamento.

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Ambientalismo e História. O padre Las Casas como geógrafo

Durante a baixa Idade Média e o Renascimento, as teses ambientalistas, de raízes antigas, receberam novo impulso pela influência renovada de autores clássicos e pela obra de alguns escritores europeus. A aplicação dessas idéias às características das terras e dos habitantes americanos produziu importantes debates intelectuais e científicos, que percorreram toda a Idade Moderna. Nesse contexto, a obra do padre Las Casas deve ser vista como uma importante contribuição a esse debate e merece ser incorporada à história da Geografia.

O presente artigo é uma pequena contribuição a esse tema como homenagem a Luis Miguel Albentosa, um íntimo amigo, que nos últimos anos sentiu uma viva preocupação com os problemas ambientais, aos quais dedicou sua inteligência e sua capacidade de organização.

A tradição ambientalista na América

Uma antiga linha de pensamento de origem clássica e alimentada pela reflexão médica, filosófica e política havia colocado em comparação as condições naturais, por um lado, e os temperamentos, as qualidades fisiológicas e ainda o caráter moral e a inteligência dos homens, por outro. 1

1 Cf. Clarence, J. Glacken. Cap. II, VI, IX e XII.

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Essa linha ambientalista, que em alguns autores podia dar lugar a posições fatalistas a respeito da capacidade da atuação humana, estava no pensamento europeu, limitado pelas crenças cristãs sobre a liberdade do homem; entretanto, existiam numerosos campos de aplicação: desde a medicina ao estudo dos costumes e do caráter dos povos, passando pelos tratados da política e pelo urbanismo.

Durante a baixa Idade Média, pensadores influentes como Alberto Magno (na sua Liber de natura locorum), Tomás de Aquino (em seu De Regimine principum), e outros, recolhendo velhas tradições, haviam incorporado a ação dos astros ou dos elementos do meio natural no plano divino da criação, avançando numa teoria cristã sobre a natureza dos lugares e sua influência nos homens e no governo dos Estados.

Quando a ampliação do horizonte geográfico e as mudanças políticas e religiosas que aconteciam durante o Renascimento produziram grandes inquietudes intelectuais e sociais, as explicações ambientalistas podiam oferecer, então, uma resposta convincente, apoiada pela autoridade de Hipócrates, Políbio e Galeno.

Nessa linha de pensamento, a reflexão a respeito das inclinações naturais dos povos segundo a posição latitudinal e cardinal, a orientação e o relevo, levou um jurista como Bodino (1576) a conclusões que não possuíam o caráter de relações necessárias e fatais, mas que por certo eram de grande importância para o estabelecimento das repúblicas, as leis e os costumes, relações nas quais os povos nórdicos apareciam como os mais fortes e valentes; os de latitudes médias como razoáveis e inteligentes, e os meridionais como sujeitos às maiores enfermidades e vícios do corpo, e em que os homens das montanhas podiam mostrar-se

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como vigorosos e amantes da liberdade, e os dos vales como geralmente afeminados e delicados.2

Não se pode surpreender que, nesse contexto intelectual, depois do descobrimento da América, as idéias ambientalistas tenham sido aplicadas de uma e de outra forma ao Novo Mundo.

Se a posição astronômica, o clima e as condições naturais podiam favorecer nos homens a emergência de qualidades superiores, também podiam gerar debilidade, vícios e depravações; e, neste último sentido, podiam predispor para a condição de seres inferiores. Esta questão era importante, no momento em que se debatia o grave problema da natureza do índio americano e sua condição de liberdade ou escravidão.

A geografia e o ambiente natural das terras americanas podiam aparecer como responsáveis por muitas das fraquezas e carências dos indígenas e ainda como responsáveis por sua condição para ser homem livre:

Para justificar com textos veneráveis - escreveu Antonello Gerbi3

Nascia, assim, ainda que debilmente, uma linha de pensamento que proclamaria a inferioridade das terras e dos homens da América, dos nativos e dos imigrantes submetidos à sua influência. Tudo isto viria subsidiar o debate intelectual estudado por Gerbi.

- a servidão dos índios, os escolásticos europeus não duvidavam em condenar a terra que os havia visto nascer, o clima no qual haviam crescido e até as inclementes estrelas que apareciam nas suas noites.

De todo modo, isso constitui uma parte do problema. Os debates foram muito mais amplos, frutíferos e complexos, como

2 Cf. Bodino, J., p. 171-173. 3 Cf. Gerbi, A., 1982, p. 97.

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deve ser no ambiente intelectual em que se mesclam e disputam diferentes tradições e correntes de pensamento, alimentados, ademais, pelo mesmo conhecimento da realidade americana. E o mesmo Gerbi demonstrou, noutra obra4

Nas páginas escritas por conquistadores, funcionários e cronistas das Índias, emerge, uma ou outra vez, e desde o primeiro momento, uma perspicaz apreensão das características das novas terras e de suas singularidades, junto a uma constante afirmação da sua natureza semelhante à do Velho Mundo, o que permitia as comparações entre um e outro. Descreveram as diferenças de caráter e localização das regiões e não somente destacaram que as terras tropicais, contra a opinião dos antigos, podiam ser habitadas, mas esforçaram-se por explicar racionalmente a causa disso.

, a nítida e exata percepção que da natureza e dos povos americanos tiveram os descobridores e primeiros cronistas, e em especial Gonzalo Fernández de Oviedo.

5

Os cientistas espanhóis do Renascimento se encontravam numa difícil posição, porque haviam de aceitar, por um lado, uma tradição clássica ambientalista, que destacava, com todo o prestígio da Antigüidade, a influência do meio geográfico, e, por outro, uma tradição cristã que afirmava o livre arbítrio e considerava o homem o rei da criação, dispondo da natureza a seu serviço.

Ainda que exista o perigo de uma simplificação dos debates e da sua multiplicidade de matizes, penso que a posição comumente adotada podia resumir-se no que expressou o protomédico Francisco Hernández:

4 Cf. Gerbi, A., 1978. 5 Cf. Fernández de Oviedo, G.; Acosta de, J. e Cieza de León, P., p.67, que

afirma: Pela razão de possuir o ano todo, os dias e as noites quase iguais, se permite que o frescor da noite tempere o calor do dia e assim a terra possuía a sazão para produzir e criar os frutos.

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Primeiro, os costumes e ritos das pessoas não devem ser atribuídos ao céu e aos astros (como a nenhuma outra condição natural), posto que a vontade humana é livre e não está obrigada por ninguém, e executa espontaneamente suas ações. Segundo, apesar de tudo:

os mais ilustres filósofos opinam que existe concordância entre a alma e o corpo, e mútua correspondência entre o corpo e os astros [e, poderíamos incluir, as condições ambientais], de maneira que, comumente separando o honesto e o justo, seguimos as relações do céu e do corpo e rara vez se encontram os que negam esses impulsos e a dessas forças resistam firmes e tranqüilos.6

Trata-se, pois, de um ambientalismo matizado no qual sempre fica garantida a liberdade humana, mas que também aceita muitas outras coisas não essenciais -quer dizer, não afetam a honestidade e a justiça-, como o fato de o homem não estar plenamente influenciado pelo meio geográfico.

A partir desta concepção, entende-se o porquê da atitude dos espanhóis, que se enfrentavam com a natureza americana e assumiam a seu respeito uma posição em geral não fatalista. A mesma epopéia da conquista e da colonização dava argumentos sobre a capacidade do homem de superar os obstáculos naturais, e proclamava a superioridade humana sobre o ambiente.

Em geral, o que mais impressiona nos primeiros cronistas são suas afirmações constantes a respeito da força do homem para dominar e modificar o ambiente natural; em especial, através da introdução de plantas e de animais europeus.

Isso permitiu formular prematuramente a tese de que os colonos estavam contribuindo para transformar profundamente o território, até o ponto de o clima estar sendo domado, e dominada

6 Cf. Hernández, F., p.47.

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a região e a rigorosidade dela pela presença dos espanhóis, como também aos índios homens naturais e animais e tudo o que está nesta Terra, em particular graças à derrubada de bosques e à multiplicação do gado, que com suas exalações numerosas rompem o ar e o purificam, além de abrir muitos vapores.7

Funcionários e cronistas observaram, em geral, detida e metodicamente a natureza americana e obtiveram uma idéia bastante nítida sobre as relações entre clima e vegetação natural, e entre o clima e a produção agrícola.

Fernández de Oviedo, seguindo a História Natural de Plínio, foi capaz de realizar uma primeira classificação da natureza americana e ainda planejou uma taxionomia, realizou observações válidas sobre a relação entre distintos tipos de plantas e animais e dos ambientes nos quais se desenvolviam; nele e em outros cronistas, como Cieza de León, há também uma nítida percepção das condições favoráveis ou desfavoráveis do ambiente natural, para o cultivo de uns ou de outros tipos de plantas, ou para a criação de gado de origem européia.8

Também se preocuparam com efeitos do ambiente na constituição dos homens, descrevendo a forma na qual o relevo, a temperatura e a qualidade do solo provocavam mudanças nos corpos humanos e davam lugar a enfermidades e doenças.

9

7 Cf. Oviedo de F., p.206.

Mas, freqüentemente, evitaram desenvolver especulações gerais sobre a influência do meio ambiente nas características dos povos

8 Este tipo de relação pode ser exemplificado por Cieza de León quando afirma: em todos esses povoados se produz pouco ou nenhum milho, por causa da terra ser muito fria e a semente do milho ser muito delicada. p. 53.

9 Por exemplo, Oviedo, F. de, Historia General y Natural, 1959. Vol. V, Cap. IV – XI – XII, e XV, o qual descreve as diferenças entre os Andes do Peru e Acosta; os interrogatórios realizados pela Coroa, ao longo do século XVI, incluíram sempre perguntas sobre estes temas. Veja Solano, 1988, interrogatório de 1577, questões 3,4,10,17,49.

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indígenas e, em raras ocasiões, chegaram a interpretações de tipos deterministas.

Muitas vezes, o que encontramos é precisamente o contrário, vale dizer, uma proposta decididamente antideterminista.

Se a localização das terras e as características do meio natural parecem se subpor ao homem e influenciar suas características físicas e mentais, serão, em última instância, os termos sociais os que se tornam decisivos. Talvez tenha sido Cieza de León quem mais contundentemente expressou essa tese, num capítulo da sua Crônica (1533), que foi dedicada aos índios de Popayán:

Muitos assustam-se como estes índios, tendo muitos deles seus povoados em lugares propícios para conquistá-los, e que em todo o território (deixando a vila de Pasto) não faz demasiado frio, nem calor, e não existem obstáculos para a conquista. Como são tão indômitos e puros! E os do Peru, mesmo estando seus vales entre montanhas e serras de neve e muitos precipícios e rios, e sendo mais gente que nós, e habitando grandes regiões despovoadas, são servis e dóceis.

A problemática determinista recebe, por parte de Cieza, uma resposta que invalida qualquer explicação ambientalista do tipo que argumentara Bodino, um quarto de século mais tarde, e que utiliza, sobretudo, argumentos do tipo histórico e social, mas que consideravam, também, as características do meio:

Afirmarei que todos os índios sujeitos às ordens do governo de Popayán têm sido sempre, e são, homens livres. Não houve, entre eles, senhores que os fizessem temer. São preguiçosos, sobretudo, não gostam de servir e ser mandados, o que é suficiente para que receassem ser governados por pessoas estranhas. Mas isto não era argumento para que eles realizassem suas intenções, porque, mesmo obrigados, fizeram o que outros fazem. Porém, existe outra causa mais importante, a qual é que

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todas estas províncias e regiões são férteis, e numa parte e noutra existem montanhas e canaviais e outras vegetações. E como os espanhóis os perseguem, queimam suas casas, e vão a uma légua dali, ou a duas, ou às que querem; em três ou quatro dias fazem uma casa, e em outros tantos semeiam a quantidade de milho que desejam, e colhem em três ou quatro meses [...] Os do Peru servem melhor e são domáveis, porque possuem mais motivos que os outros e porque todos foram dominados pelos reis incas [...]; e eram obrigados a obedecer, porque a terra do Peru é toda desabitada, plena de montanhas, serras e campos nevados. E, se fugissem dos seus povoados e vales para esses desertos, não poderiam sobreviver.10

De todo modo, era difícil escapar das poderosas tradições intelectuais que dominavam a cultura européia da época, e a corrente ambientalista aparece também nos autores hispânicos do século XVI. Em algumas oportunidades, como vimos, de maneira interessada, para justificar a submissão e a servidão dos indígenas. Outras, no entanto, com um sentido totalmente distinto, para exaltar sua dignidade e grandeza como resultado das qualidades da natureza americana. A obra do padre Las Casas, convertido também em geógrafo pelo contato com a realidade americana, é, sem dúvida, o mais significativo desta última linha de pensamento.

A Geografia como fator explicativo na História do padre Las Casas

Pelo importante papel que dá aos fatos geográficos como fator explicativo da história humana, a obra do padre Las Casas, e concretamente sua Apologética História Sumária, merece ser considerada como uma das mais destacadas contribuições que

10 Cf. León de C., p. 23.

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foram dadas à geografia de todo o século XVI. E o mesmo acontece com outros autores, como Fernández de Oviedo, Cieza de León e Acosta. Também, neste caso, sua gênese está intimamente vinculada ao novo continente.

Desde 1552, Las Casas, desiludido com suas batalhas e efêmeras vitórias e, de certo modo, vencido politicamente pelo fracasso das Leis Novas de 1542, instala-se definitivamente na Espanha e se dedica à redação de uma obra mais reflexiva, na qual procura, mediante um argumento científico e ético-legalista, a defesa das teses que havia sustentado com decisão e vigor incansável, nos anos anteriores. É nesse momento, que, depois de ter publicado os famosos oito tratados11

A característica essencial da obra é ser um manifesto, desde as primeiras linhas, e nele aparece nitidamente, de seu punho, a transcendência das explicações geográficas. Vale a pena reproduzi-lo:

, dedica-se, entre 1552 e 1559, à redação da Apologética História, uma das mais bem argumentadas defesas sobre os índios americanos produzidas por ele.

A causa final deste escrito foi conhecer todas e tão infinitas noções deste vasto orbe, difamadas por alguns [...] publicando que os índios não eram pessoas de bom coração para serem governados, carentes de política humana e repúblicas ordenadas [...].

Para demonstrar a verdade, que é o contrário, são resgatadas e compiladas neste livro (referindo primeiro à descrição e qualidades e felicidade destas terras, e o que pertence à Geografia e a algo

11 Esses tratados são: El octavo remedio. La Brevísima relación. El Confesionario

o Avisos y reglas para confesores que oyeran confesiones de españoles que son o han sido encargo a los Indios de las Indias del mar Océano. Las Treinta proposiciones muy jurídicas. El Tratado de los esclavos. El Tratado comprobatorio. La Disputa con Sepúlveda. E La Carta relación, que é uma obra que não lhe pertence.

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de Cosmografia) seis causas naturais, iniciadas no capítulo 22, que são a influência do céu, a disposição das regiões, a ordem dos membros e órgãos dos sentidos interiores e exteriores, a clemência e suavidade dos tempos, a idade dos padres, a abundância e a qualidade dos mantimentos, com os quais concorrem algumas causas particulares, como a boa disposição das terras, lugares e ventos locais12

São, pois, estas razões geográficas e ambientais as que, como anunciou, basicamente utilizaria ao longo da sua obra, e não somente nos capítulos a que se refere, mas também em muitos outros relativos à geografia regional das Índias.

A estrutura da obra é complexa, mas perfeitamente articulada e coerente desde o início; e toda ela é dirigida para demonstrar a sua tese referente ao caráter racional e superior dos indígenas e de suas organizações sociais.

Las Casas inicia seu trabalho descrevendo a geografia regional da Ilha Espanhola13 e suas produções naturais14, estas últimas com uma sistematização que lembra Fernández de Oviedo, obra que, sem dúvida, conheceu15, mas não seguiu de perto16

12 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 3.

. Sucedem, depois, seis capítulos, que analisam a

13 Las Casas, Apologética Historia, 1958, cap. I até IX. 14 Las Casas, Apologética Historia, 1958, cap. X até XV, nos quais descreve os

animais, as frutas, as árvores e os alimentos da ilha. 15 O Sumario de la Natural Historia de las Indias, foi publicado em 1526. A

primeira parte da Historia General y Natural de Oviedo foi publicada em Sevilla, e teve uma reedição em Salamanca no ano de 1547. É provável que tenha conhecido as partes manuscritas dessa obra porque Oviedo esteve em Sevilla em 1548, quando levou a obra completa para a imprensa.

16 As descrições de plantas ou animais na obra de Las Casas são breves e, ainda que existam características coincidentes, destaca freqüentemente outras que não aparecem em Oviedo. Existem notícias nas quais Las Casas se manteve

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salubridade da ilha17, e outro em que procura demostrar que as Índias ocidentais são uma parte das Índias orientais, apoiando-se em argumentos eruditos procedentes de autores antigos, que falam de fertilidade, cor da pele e multidão de pessoas e nações da Índia acima do Ganges18

Na parte seguinte, está o essencial da sua obra, quer dizer, a discussão das causas naturais -ambientais e fisiológicas- que influem na inteligência e no caráter dos homens. Depois de um debate geral dessas influências

, com o que termina a apresentação geográfica da Espanhola.

19, aplica os argumentos às Índias20

Ainda que não o diga explicitamente e, por momentos, se supere o limite territorial, os argumentos nesses capítulos se referem essencialmente às ilhas das Antilhas. Por isso, Las Casas continua sua obra a partir do capítulo 49 com uma descrição geográfica e etnográfica de outras regiões americanas, através das quais, por serem dominadas por povos mais civilizados, ser-lhe-á mais fácil defender suas teses, mostrando a boa administração política e o desenvolvimento econômico de astecas e incas

, mostrando que tanto pelas condições ambientais como pela fisiologia os indígenas deveriam ser necessariamente inteligentes, valentes, alma nobre e de bom governo.

21

Finalmente, como ao tratar da religião desses povos não pode manifestar sua rejeição às falsas crenças deles e a suas práticas supersticiosas e diabólicas, mudando sua argumentação,

.

muito próximo a Oviedo, como, por exemplo, quando se refere aos piolhos e pulgas na navegação. Cf. Las Casas, op. cit; p. 58 e Oviedo, op. cit., vol II, p. 81.

17 Cf. Las Casas. Apologética Historia, cap. XVI até XXI. 18 Cf. Las Casas. Apologética Historia, cap. XXII. 19 Las Casas, 1958, cap. XXIII até XXXII. 20 Las Casas, 1958, cap. XXXIII até XLVIII. 21 Las Casas, Apologética Historia, 1958, cap. XLIX até LXX.

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esforçou-se em demonstrar que nisso não eram mais culpados que os povos antigos do Velho Mundo, os quais também tiveram suas crenças religiosas falsas e desenvolveram práticas erradas e abomináveis22, demonstrando, assim, que os índios tiveram mais luz e conhecimento natural de Deus que os gregos e romanos23. Nessa última parte, ao tratar de Vulcano e do templo que havia na Sicília junto ao Etna, introduz três interessantes capítulos dedicados aos fenômenos vulcânicos na Europa e na América24

Na elaboração de sua obra, Las Casas combinou, por sua vez, os argumentos procedentes de autores anteriores e os da própria observação, em terras americanas, postos todos com vigor e habilidade ao serviço da defesa de sua tese.

.

As idéias básicas procedem da tradição clássica e medieval. Como dominicano, Las Casas conhecia muito bem a obra aristotélica, tanto diretamente quanto através dos grandes autores da sua ordem. Cita Aristóteles freqüentemente e, em particular, desde a perspectiva das suas argumentações socioambientais, os tratados De Coelo et Mundo, A Política e De Anima. Domina o De natura locorum, Os Meteoros, De passionibus aeris, e De morte et vita, de Santo Alberto Magno, assim como De Regimine Principum e outras obras de Santo Tomás.

Apóia-se, explicitamente, nas idéias ambientalistas de Hipócrates (De aëre et aqua) e Galeno; e conhece muito bem os geógrafos, naturalistas e escritores clássicos, a Geografia de Estrabão, Pompônio Mela e Ptolomeu, e o Quadriparto, deste último autor, com os comentários medievais de Haly; a Historia plantarum de Teofrasto, Plínio, Diodoro Sículo, Solino, Polyhistor, César, Virgílio, Ovídio, Sêneca, Macróbio. Dos autores medievais utiliza as Etimologias de Santo Isidoro, a Cidade de Deus de Santo

22 Las Casas, Apologética Historia, 1958, cap. LXXI até CXXXIII. 23 Las Casas, Apologética Historia, 1958, cap. CXXVII, p. 436. 24 Las Casas, Apologética Historia, 1958, cap. CX até CXII.

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Agostinho, o tratado De locorum habitabilium indiciis de Avicena, o De imagine mundi de Pedro de Alíaco; finalmente, entre os modernos, conhece Cardano, e De re metalica de Agrícola.

Naturalmente, Las Casas encontra também na Bíblia muitas idéias para interpretar o mundo natural. Por exemplo, a discussão a respeito de se a água do mar entra subterraneamente na lagoa de Xaragu: apóia-se no Salmo 103 e no Eclesiastes para defender que as águas do mar estão sob os montes que sobem do centro da Terra e que pelos subterrâneos e veias da terra podem entrar as águas do mar e ainda as dos rios e as dos lagos25

Mas aos argumentos eruditos e aos das Sagradas Escrituras Las Casas incorpora o próprio conhecimento das terras americanas e suas inquestionáveis qualidades de observador. Uma ou outra vez apresenta notícias, afirmando eu tenho visto, tudo através dos meus olhos e outras expressões similares. Ao ler suas descrições, percebe-se que respondem a uma observação pessoal, mostrando uma grande capacidade de descrever sintética e expressivamente as características fundamentais

.

26 e de reproduzir cuidadosamente a pronúncia indígena27

Quando não podia comprovar pessoalmente ou manifestar claramente e facilitar -do mesmo modo que fazia Fernández de Oviedo- os testemunhos, assinala seu grau de conhecimento e confiabilidade

.

28

25 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 21 e 22.

. Na verdade, comporta-se em tudo isto como um

26 Veja-se, por exemplo, sua descrição das videiras silvestres da ilha Espanhola: p. 51.

27 Dedica grande atenção à pronúncia de topônimos e nomes de plantas e aves. Por exemplo, a província de Bainoa, a penúltima sílaba longa, um vale que se chamava na linguagem dos Índios Hami, a última sílaba aguda, e o outro Zapita, a penúltima longa, a província que chamavam Banique, a sílaba do meio breve: p. 9 e 19.

28 Por exemplo, depois de descrever a província de Iguanuco, escreve: Segue-se ao que penso outra pelo lado esquerdo; afirmo isto porque esta não a tenho

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autêntico geógrafo e concede um papel essencial à experiência, seguindo nisto a Ptolomeu na sua Geografia:

Alguns dos princípios e fundamentos que a Geografia tem (segundo Ptolomeu no livro I, cap. 2 e cap. 8), sem os quais, como em outras ciências, ninguém pode saber e adquirir conhecimentos, são a relação e a história do que pelos seus olhos e experiências viram e conheceram das terras sobre as quais se está escrevendo29

No entanto, essa inquestionável capacidade de observar, em tantas oportunidades demonstrada na descrição geográfica e nos produtos naturais das Índias, torna-se muitas vezes destruída pelas idéias que trata de defender.

.

A Apologética Historia é, na verdade, uma história apologética, uma visão que exalta e idealiza a realidade americana, a serviço de uma utopia lascasiana. Os adjetivos vão continuamente qualificando de maneira positiva a beleza de uma terra excelente. A terra fértil e deliciosa, os rios e riachos alegres e belos e de águas dulcíssimas, transparentes, suaves e frescas, as savanas graciosas, as ervas formosas e aromáticas, os rouxinóis cantando docemente30

visto, mesmo estando perto dela: p. 19. Em outro momento, calcula o que poderia existir na região e adverte que isto é uma aproximação porque há muitos anos estive nela e não pensava em descrevê-la, não consigo lembrar com precisão, parece-me então que...: p. 26.

.

29 Las Casas, Apologética Historia, 1958, cap. XI. Repete os argumentos nas p. 110 e 111.

30 Alguns exemplos: Há que afirmar dela que é fértil, frutífera e muito boa. Mas a esta e outras [regiões] excede outra [...]; esta goza de um rio grande [...], e está por ambos os lados do rio; é de grande consolo vê-la e considerar sua beleza, disposição, fertilidade, suavidade, gozo e alegria [...] vales todos esses cobertos de ervas belíssimas: p. 16. Cordilheiras altíssimas e férteis, e serras graciosas: p. 30. E ainda existe outro vale que possui três ou quatro léguas de comprimento e uma ou mais de largura; passa por meio dele um grande riacho, quase um rio; morros e serras planas, tudo isto pleno de alegria, formosura, fertilidade e amenidade, e não possuo palavras com que destacar

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Na Espanhola, se a terra está arborizada, é fértil e deliciosa, e, se está sem bosques, pode ser ainda muito mais: porém, sempre é mais embelezada na lembrança, o que conduz, às vezes, a imagens exaltadas e um tanto exageradas31

Se a descrição que ele nos proporciona da Espanhola e das outras ilhas antilhanas nos dá uma visão idílica e paradisíaca, por parecer insuperável, ao chegar à Terra Firme, os elogios sobem de nível: Não parece que exista no mundo terra nem região, por bem-aventurada que seja, que possa comparar-se à pior de toda esta e que sobre as do mundo se tenha que afirmar que é felicíssima

.

32

em algumas partes e lugares, pela disposição e sítio delas e por algumas causas particulares se encontre o contrário, por ser a terra sombria e protegida, ou por passarem as águas por alguns pântanos ou terras lamacentas e por isto os ares locais não são sadios.

. O que não é, em absoluto, contraditório, pelo fato de que:

Quando isso sucede, e depois de realizar uma boa enumeração das regiões onde isto acontece, pode-se concluir: mas isto ocorre em lugares pouco comuns, é como encontrar um monstro na natureza33

e engrandecer a dignidade de tudo isto: p. 9.; Guanaba é uma terra feliz, muito bela e fértil o ano todo e belíssima: p. 11. A utilização do diminutivo serve para destacar de modo carinhoso a beleza: passarinhos de diversas cores, formosos: p. 12.

.

31 Por exemplo, na Vega Real entram, creio, uns trinta mil rios e riachos que a pintam, enfeitam e formoseiam, e refrescam com seus noturnos e suaves ares, com a frescura e suavidade das formosíssimas correntes. Las Casas, Apologética Historia, p. 32.

32 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 67. 33 Las Casas, Apologética Historia, p. 69. A visão paradisíaca culmina, de toda

forma, na descrição da Vega Real da ilha Espanhola, descrita como um Éden, que permite subir na contemplação, que tais deverão ser os aposentos invisíveis do céu e que nenhuma coisa falta-lhe para ser feliz e serem os verdadeiros Campos Elíseos terrestres: p. 31-32 e 34.

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Essa predisposição favorável o leva a diminuir os aspectos negativos que pode encontrar e a não se preocupar com as contradições nas quais possa incorrer34. E a não se dar conta das características etnográficas e culturais que outros cronistas haviam assinalado insistentemente35

Mesmo com estes erros, que o impedem de perceber as características negativas que seriam possíveis de encontrar no meio natural americano ou nas sociedades indígenas, sua descrição geográfica apresenta muitos aspectos válidos, desde a perspectiva do desenvolvimento da Geografia.

.

Las Casas revela uma ou outra vez seu conhecimento direto das terras americanas, sua cuidadosa atenção à extensão, localização, topografia, ao meio físico e biogeográfico, às culturas, ao povoamento e às atividades econômicas. Assinala um conhecimento e um domínio exigente da Cartografia, até o ponto de poder afirmar que no largo e comprimento desta Ilha [Espanhola]

34 Por exemplo, dedica todo um capítulo para demonstrar como não era

comum existirem piolhos na ilha Espanhola: cap. XIX. E descreve ainda que os piolhos por sorte, muito raras vezes são encontrados. Quanto às pulgas, nenhuma se encontra nas casas que estas pessoas habitam. Ainda em continuação explica que as cabanas dos vizinhos estão cheias de pulgas e que os vizinhos índios da ilha criavam nas suas redes, suas camas e também nas cabeças abundantes piolhos; perecidos já com todos aqueles índios e chegando a estas terras grande número de negros não sei como a estes lhes vão os piolhos. A respeito da viagem marítima das pulgas (p. 58), repete o que escrevera Fernández de Oviedo. Em outro momento, ao apresentar as regiões litorais do norte, não deixa de mencionar um pouco menos que praga de mosquitos: p.10.

35 Por exemplo, ao descrever no cap. LV os povoados indígenas de Nueva Granada, onde Cieza de León, (cap. XVI e seguintes), via miséria, selvagens antropófagos e estacas cheias de caveiras dos inimigos, ele somente assinala as estacas sem caveiras e percebe pessoas, lugares, vilas em infinitas cidades e vivem socialmente como homens racionais e em muitos povoados e províncias existem edifícios notáveis e [...] admiráveis: p.186.

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estão equivocadas as cartas das marés como também de muitas outras partes das Índias36

Enfrenta decididamente o problema que preocupou inúmeras vezes os geógrafos: o da ordem a seguir nas descrições regionais.

.

A questão de decidir por que aspecto se inicia uma descrição das regiões ou comarcas (por exemplo, se é no centro ou num extremo) e em que direção se prossegue depois (se de norte a sul, de oeste a este, em espiral, etc.), resolve-se aqui, como em outros cronistas das Índias, aplicando uma perspectiva histórica: dá-se prioridade à região primeiramente descoberta; depois a descrição prossegue dando várias voltas: a primeira, seguindo o litoral norte, de oeste a este, e girando até alcançar o litoral meridional, que segue logo de este a oeste; a Segunda, pela costa ocidental, de norte a sul; a terceira, que descreve as províncias do rim, quer dizer, o íntimo e mais montanhoso; finalmente a quarta, que segue a depressão em sentido latitudinal da Vega Real37

O frade dominicano consegue transmitir ao leitor uma imagem viva e precisa das terras que descreve, embelezada freqüentemente, mas sempre atento, e cuidando de destacar as características geográficas essenciais.

.

Não somente apresenta com precisão as unidades do relevo mas também se fixa nos materiais que a formam e em alguns aspectos da sua morfologia. Assinala as lajes e pedras dos relevos setentrionais, e descreve corretamente formações de conglomerados da serra central de Cibão: toda a província é serra

36 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 6. 37 Las Casas, Apologética Historia. A primeira volta se desenvolve ao longo

dos capítulos II e IV, p. 8 a 18; a segunda no cap. V, p. 19 a 22; a terceira no VI e VII, p. 22 a 29 e a quarta nos cap. VIII e IX, p. 29 a 35. A esta apresentação geral segue a descrição de plantas e animais, cap. X ao XVI, assim como o clima, cap. XVII-XVIII e considerações sobre a fertilidade e a sanidade destas e de outras terras das Índias, cap. XIX-XXI.

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altíssima, toda de pedras nuas, das que em Castilha chamam pedregulhos; não estão comumente as pedras soltas, cada uma por si, mas juntas e grudadas como se estivessem com cimento38. Dá-se conta da existência, na parte oriental, de fenômenos que hoje chamaríamos cársicos, com sumidouros e ressurgências naturais ou xangüeyes, nas quais a água salgada, quando existe, por ser mais densa, situa-se no fundo e sobre ela a doce, e o encontramos envidando esforços para calcular com a sonda a profundidade de um desses xangüeyes39; enumera os estuários e salitreiras40

[...] estão vestidos de erva baixa, com um palmo ou dois, em umas partes mais crescida que em outras, porque em algumas há mais terra, ainda que toda arenítica e mais úmida ou menos fértil que em outras. Estão todas essas terras enfeitadas de muitos pinhos e pinheirais não densos, mas escassos pela sua aridez, dispostos de forma parecida e, como em Castilha, se plantam a mão as oliveiras [...] O interior destas províncias e ainda de toda a ilha é praticamente no cimo de toda esta terra e é de mais fertilidade porque o terreno é de barro ou semibarro, e aquele lugar está sem pinhos, porque pela regra geral toda terra onde há pinhos é estéril

. Percebe também que existem associações entre litologia e tipos de formações vegetais; assim, na serra de Cibão os conglomerados:

41

Identifica as savanas

.

42

38 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 23.

, observa que a lagoa de Xaraguá é de água salgada, e pelos peixes que nela se criam, incluídos os

39 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 14. 40 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 17. 41 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 23. 42 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 13.

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tubarões, deduz corretamente que é água marinha separada do mar43

Desde logo, para interpretar alguns fenômenos, recorre às idéias dominantes no momento. Assim, por exemplo, descreve e localiza com precisão as minas de ouro existentes, mas interpreta sua gênese como resultado da influência solar, do mesmo modo como era comum naquele momento, e seguirá sendo ainda até o século XVII, e residualmente até o século XVIII

.

44

Ao descrever as minas da serra de Cibão indica:

.

a força do ouro está em todas partes da serra, rios e riachos que olham em direção ao Oriente, as quais banha o sol ao sair [...] e pela outra parte destas serras, nas vertentes ao Poente, não se encontrou nenhum ouro, pelo que parece que as influências do sol possuem mais eficiência na terra por onde ele sai que por onde ele se põe45

Por esta razão, pode prever que voltaria a crescer o ouro e que deixando descansar alguns anos, a mesma mina tornaria a produzir, como tem produzido por tempos muitas riquezas.

.

Geralmente, presta atenção às relações entre clima e vegetação, entre clima, solos e fertilidade. Nos trópicos, a terra úmida é menos sadia, e a seca ou desumedecida é mais favorável à vida humana. Assim, toda a província de Cibão é sadia por existir a secura da terra e toda a serra estar descoberta e alta, isenta de umidade e banhada pelo sol todo dia e os ares amenos e contínuos e sadios, que são comuns, e as constantes brisas46

43 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 21. Efetivamente, trata-se de um

lago que resultou de um antigo braço de mar separado por sedimentos.

.

44 Cf. Capel, H. Organicismo, fuego interior y terremotos, 1980. 45 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 25. 46 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 23.

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Fixa-se nos campos de cultivo ou conucos, nas grandes propriedades ou estâncias, nos engenhos de açúcar. Ainda explica as experiências empíricas que permitem aclimatar uma nova planta e divulgação desse processo quando havia êxito:

E considerando que algumas plantas e sementes não se adaptam pela força, granulosidade da terra e por estar fraca pondo, no entanto, habilidade e esforço e aguardando os tempos da sazão, nenhuma das procedentes da Espanha certamente deixaram de produzir. Assim foi e ocorreu na vila de Azúa, onde antes de existirem cebolas, um clérigo procurou semeá-las e muitas vezes perdeu a semente, não acertando com o dia ou mês ou com o vento e com a água, ou porque a terra estava fraca. Decidiu semeá-las cada mês e em cada tempo e, por alguma das ditas causas, parou, acertou, dando-se tão belas e grandes como em Espanha; e assim, semeando cem mil sementes de cebola, teve renda por alguns dias de cem mil quartos de quatro maravedis, porque a quatro as vendia, até que outros exercitaram atividades de horticultura47

Do mesmo modo que Hernández de Oviedo e outros cronistas, Las Casas utiliza amplamente o método comparativo, comparando as características que descreve com as que conhece na Espanha, algumas vezes para tornar inteligível o novo que apresenta

.

48

47 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 32.

, outras para valorizar a superioridade das terras americanas. Neste sentido, retoma em particular a comparação que havia feito Fernández de Oviedo entre a Espanhola, Sicília e Inglaterra, estendendo-se até a ilha de Creta com novos argumentos eruditos, concluindo pela grandeza, capacidade,

48 Exemplo, os rios estão cheios de peixes, como os de Castilla e o Guadalquivir: p. 24.

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amenidade, temperamento, suavidade, riquezas, felicidade e excelência desta Espanhola sobre as outras ilhas49

Mas a mais importante contribuição do padre Las Casas penso que foi o coerente argumento sobre as relações ecológicas entre o meio ambiente e as características individuais e sociais dos povos indígenas, ainda que para isso se apoiasse no conjunto de idéias acumuladas desde a Antigüidade. Sem dúvida, sua obra deve ser considerada como um fato fundamental da contribuição renascentista para a história das idéias ambientalistas, ainda mais porque, diferentemente de outras, suas idéias aparecem nitidamente consolidadas em argumentos de caráter geográfico.

.

Las Casas propõe basicamente este tema, ao considerar as causas gerais e particulares que concorrem para que a ilha Espanhola seja de clima seco e ameno50

Umas e outras podem concordar e reforçar-se mutuamente ou atuar em sentido contrário. E em geral –no que diz respeito às Índias- pode ser inadequada ou inconveniente à posição na esfera e, por conseguinte, à distância do caminho do sol, e podem ser boas, no entanto, as causas particulares.

e, por conseguinte, favorável para a vida humana. A causa universal é, seguindo Aristóteles, a distância ou proximidade da via ou caminho do sol, porque a muita distância dele se produz muito frio e a muita proximidade excesso de calor; e a secundária, a disposição da terra, em particular o lugar e o comportamento dos montes, vales e ares que existem.

Assim ocorria segundo Estrabão, Plínio, Pompônio Mela e outros autores clássicos nos montes Hiperbóreos, que deviam ser inabitados por estarem situados no pólo ártico, e que eram, no entanto, habitados por pessoas felizes e velhas. Do mesmo modo, argumenta Las Casas, ocorria nas Índias ocidentais,

49 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p.66. Fernández de Oviedo havia feito o mesmo no seu livro, no cap. XI.

50 Título do cap. XVII da Apologética Historia.

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situadas perto ou abaixo da linha equinocial, porque se as causas particulares que facilitavam a boa moradia, ainda que a geral fosse contrária, seria possível ser essa região habitável.

No caso da Espanhola, concorriam, por sua vez, uma causa universal, por estar a distância apropriada do Equador, e uma particular, porque a terra, os ventos e as águas são especialmente sadios51

A continuação propõe, de modo mais abrangente, o problema das causas pelas quais as almas e os corpos dos homens são mais ou menos perfeitos. Das seis causas naturais principais que considera que influem nisto, quatro são diretamente ambientais: a influência do céu, a disposição das regiões, a clemência e suavidade dos tempos e -de modo indireto- a bondade e suavidade dos alimentos.

, pelo que se torna digna de ser a terra do paraíso terrestre.

Sem dúvida, a contribuição pessoal do padre Las Casas ao debate geral é pequena. Segue, no essencial, Aristóteles e seus comentaristas escolásticos, Santo Alberto, São Tomás e Hipócrates, e repete os conhecidos argumentos sobre a influência dos corpos celestes no momento da concepção, sobre as diferenças de caráter dos homens que habitam regiões frias, quentes e médias -e estes últimos, assim como possuem o médio segundo o lugar, têm as disposições e inclinações médias- e a respeito da influência dos ventos, a secura ou a umidade nas pessoas. A argumentação é delicada e cuidadosa pois, para um cristão que aceita o livre arbítrio, o raciocínio não pode ser rigidamente naturista e deve aceitar também o papel da vontade pessoal e da opção, assim como prestar conta da diversidade de caracteres e inteligências que existe no mesmo lugar. Mas, por isso e pela recapitulação geral das idéias clássicas e medievais, os capítulos

51 Las Casas, Apologética Historia, 1958, cap. XVIII.

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dedicados a esta proposta geral52

São principalmente essas as propostas que facilitaram os argumentos que permitiriam a ele demostrar as razões da inteligência, valentia, beleza e outras características e virtudes dos indígenas. Ao apoiar-se nos dados geográficos que possui, pode provar finalmente ...

se tornam interessantes, mesmo possuindo escassa originalidade.

1) [...] que a primeira causa universal, que é a influência do céu, favorece natural e amplamente a estes nossos índios, para que sejam inteligentes, engenhosos, racionais e de boa capacidade, e assim, por conseguinte, lhes tenha caído em sorte receber de Deus e da natureza boas e novéis almas53

2) [que] como as regiões destas Índias, praticamente em toda sua extensão são amenas, mais amenas que em nenhuma parte das que se conhecem, no mundo, e as nações que as habitam, por conseguinte, obtenham uma compleição adequada, deduz-se que da sua natureza não somente são de bom e vivo entendimento, mais que as outras nações, mas também não lhes falta animosidade e esforço de coração

.

54

3) [Sua] natural mansidão e humildade provém da sua nobreza, temperamento e mediocridade de suas compleições, e esta nasce da mediocridade, temperatura agradável, salubridade e aprazibilidade de todas estas regiões, por causa da igualdade dos tempos o ano todo; porque não existem contínuas e freqüentes mudanças de tempo ou modificações bruscas, nem frios ou calores excessivos, mas os tempos são sempre iguais ou

.

52 O capítulo XXIII, que trata da influência do céu, o XXIV da terra, o XIX e

XXX a respeito dos climas, e o XXXII, dos alimentos. 53 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 110. 54 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 112.

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quase iguais. De onde provêm que nem as mentes dos habitantes são fatigadas com alterações, estupor ou espanto pela grande violência do tempo, nem nos corpos acontece transmutação que seja forte ou amena, de onde se deduz que a matéria seminal não recebe alteração nem corrupção daninha ou alteração prejudicial no momento da procriação55

e 4) Como os índios todos são sóbrios e abstinentes, de comer pouco, e a comida seja `a base de legumes e ervas, e o pão bastante áspero e não muito bom [...] e as farinhas que se preparam de raízes são finas e macias e de fácil digestão e menos substâncias em todas estas ilhas e alguma parte da Terra Firme e, por isso, sejam de moderada quantidade de sangue e calor, e por conseguinte de poucas iniciativas, mas inteligentes e sutis porque não lhes sobem as evaporações nem humosidades que confundem [...] fica claro, e dali procede que as potências cognitivas e as referentes à memória e à imaginação sejam dispostas e bem dispostas para produzir seus atos e exercitar seu ofícios e emerjam à imaginação as formas ou espécies, ou imagens e intenções sensíveis e claras, distintas e ordenadas [...] deduz-se de tudo o que foi escrito que os índios são inteligentes e possuem bons entendimentos e são pessoas de bom raciocínio

.

56

A disputa do Novo Mundo

.

Os argumentos ambientalistas do dominicano Las Casas estavam influenciados pela concepção aristotélica, transmitida e reelaborada pelas grandes figuras da sua ordem, Alberto Magno e Tomás de Aquino.

55 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p. 123. 56 Las Casas, Apologética Historia, 1958, p.118 - 119.

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Em sua De Natura Locorum, Alberto havia desenvolvido temas básicos que aparecem na Apologética Historia. Entre eles, a ação do céu e das estrelas sobre os lugares, assim como também as relações particulares que estes possuíam sobre o círculo do horizonte e a existência ou proximidade das montanhas, mares e outros acidentes geográficos.

A insistência na amenidade dos lugares, sem turbulências nem calores excessivos e a referência à matéria seminal e à procriação, sem dúvida são as teses aristotélicas de que os povos expostos a temperaturas extremas são bárbaros, e com os debates sobre a procriação também retoma Alberto Magno; e a conexão entre os alimentos, os humores e as características intelectuais possuíam igualmente uma longa tradição médica e filosófica.

O interessante é ver tudo isso aplicado na elaboração de um determinismo geográfico, por um lado, que se refere de modo sempre favorável ao meio americano e, por outro, trata de explicar com isso a racionalidade, nobreza e dignidade dos povos indígenas. Algo que por certo encontrava alguns precedentes na tradição intelectual dos dominicanos -pois Alberto Magno havia reconhecido a existência de certas qualidades nobres dos povos asiáticos e africanos, localizados abaixo da linha equinocial-mas era esta a primeira vez que se aplicava de modo sistemático a povos extra-europeus.

Tradicionalmente, as teses ambientalistas se haviam empregado e se empregariam até o século XX, para justificar a superioridade dos povos situados na zona temperada, quer dizer, na Europa. É o eurocentrismo que aparece nitidamente em Bodino quando afirma que os povos da região central [isto é, latitudes médias entre os 30o e 60o] estão mais bem dotados para governar as repúblicas por ter mais prudência natural57

57 Bodino, J., 1973, p. 170.

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Diante disso, os indígenas americanos aos quais se refere Las Casas, os das Antilhas e Terra Firme, localizados todos abaixo dos 30o

No que se refere à percepção favorável do meio natural, o padre Las Casas era, de fato, continuador da visão otimista que haviam transmitido os primeiros descobridores, começando pelo mesmo Colombo, que apresentou uma imagem paradisíaca das terras por ele descobertas. Em Las Casas, isso se converteu em uma afirmação iluminada, referente aos efeitos favoráveis da natureza americana sobre os habitantes, apoiando sua tese político-antropológica em defesa da dignidade dos indígenas.

de latitude, apresentam-se com virtudes intelectuais e morais notáveis: intelectivos, engenhosos, de vivo entendimento, animados, de esforçado coração, mansos, morigerados, modestos, sóbrios e de boa razão. Tudo influenciado por uma geografia física americana que se descreve como submetida a favoráveis influências do céu, amenas, sem turbulências nem frios ou calores excessivos, saudável e produzindo alimentos sadios e de fácil digestão.

Pelos seus objetivos e suas conclusões, sua obra é verdadeiramente excepcional. Mas a visão positiva do continente não ficou isolada; bem pelo contrário, apresenta uma linha de grande continuidade na Espanha e nas Índias durante todo o período colonial. Uma linha que se contrapõe nitidamente à que destacava a inferioridade, a imaturidade e a debilidade da América e, a partir disso, a degeneração de todos os seres vivos que ali se desenvolviam58

Além disso, existiam três tipos de argumentos que podem ser encontrados intensamente desenvolvidos nas obras dos cronistas, geógrafos e funcionários espanhóis, desde o início do século XVI.

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58 Gerbi, A. La disputa del Nuevo Mundo, 1982. Esta corrente intelectual

degeneracionista alcançou suas máximas formulações durante os séculos XVIII e XIX, nas obras de De Pauw, Buffon e Hegel.

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Primeiramente, a diversidade geográfica das Índias, tanto no tocante à sua dimensão continental, tratada em obras gerais como as de Fernández de Oviedo, López de Velasco, Acosta e Vázquez de Espinosa, quanto a tratada em escala local59

Em segundo lugar, o fato da adaptação climática das plantas e animais europeus constituía um argumento de muita força em favor do meio americano. A tradição ambientalista de origem clássica, refletida, por exemplo, na De natura locorum de Alberto Magno

. Impediam-no de concretizar generalizações sobre o meio natural americano e o obrigavam a introduzir o tema da diferenciação regional.

60

A constatação da perfeita aclimatação e ainda do vigor das plantas de cultivo e do gado europeu nas Antilhas e em Terra Firme constituía um argumento importante que, na espera de uma reformulação das teses clássicas, podia servir para demonstrar a bondade do meio americano.

, considerava que os seres tirados do seu lugar natural perdiam as virtudes e podiam degenerar. Os animais e as plantas podiam converter-se em estéreis fora do seu habitat, ainda que pudessem mais tarde recuperar sua força e sua fertilidade.

Finalmente, o mesmo homem se havia adaptado com êxito às Índias Ocidentais e criava nelas novas Espanhas, semelhantes em muitas coisas às européias. É certo que em alguns meios, particularmente adversos, podiam dar-se problemas de adaptação, como nas altas terras andinas -por exemplo, nesse empório econômico que era Potosí – tardou muito tempo em nascer um filho de espanhol, o que poderia vir a apoiar as teses degeneracionistas, já que alguns colonizadores caíam na preguiça

59 Como exemplo deste último está a observação de Francisco Hernández

na sua Antiguidades de la Nueva España, vol. II, p. 40, onde se lê: é de admirar que num intervalo de três milhas encontrem-se temperaturas tão diferentes; aqui ficas gelado e ali te queimas; isto não por causa do céu, mas sim pela posição dos vales.

60 Magno, S. Tract. I, cap. I e II.

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e pareciam adaptar-se aos vícios dos indígenas. Mas as provas em contrário eram abundantes e demostravam que os índios haviam conseguido níveis elevados de organização social antes da chegada dos espanhóis, e que estes podiam adaptar-se plenamente àqueles ambientes.

Na realidade, ao longo do século XVI, o conhecimento direto da realidade americana e a influência de poderosas tradições intelectuais combinaram de modo inseparável os argumentos ambientalistas com outros do tipo fisiológico ou social, com o fim de encontrar explicações científicas para os problemas propostos. No entanto, a natureza dos problemas, os objetivos seguidos e os prejuízos afetavam a forma com que se realizavam essas combinações.

Com freqüência, o conhecimento do conjunto dos argumentos expressos pelo autor põe em relevo os esforços que se realizavam e as dificuldades que se encontravam para dar explicações racionais a questões como a causa das enfermidades, as características dos indivíduos ou as diferenças na organização social. Os argumentos de procedência diversa se combinavam amplamente, sem que faltassem as contradições aparentes ou reais, que convêm interpretar tendo como referência toda a obra.

Os médicos, por exemplo, podiam combinar, de acordo com a tradição hipocrática e galênica, as explicações ambientais, orgânicas e sociais, aplicando-lhes uma proporção variável em diversas situações que enfrentavam e sendo afetados, por sua vez, pelos seus prejuízos a respeito da qualidade dos grupos sociais de que tratavam.

O exemplo do doutor Juan Cárdenas, autor de um estudo sobre os Problemas y Segretos Maravillosos de Las Indias (México, 1591), é significativo. Para ele as enfermidades sujas, como furúnculos ou males venéreos, podiam ser próprios de regiões quentes e úmidas como as Índias porque o calor e a umidade são as

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qualidades mais dispostas a gerar corrupção, putrefação e sujeira de todo tipo, o que o leva a realizar a seguinte afirmação:

Afirmo que, como de modo geral, toda esta terra das Índias é quente e úmida (que é a condição que mais conserva a sujeira e putrefação de todas) e, por conseguinte, crie e produza em si sujeitos imundos e sujos, como claramente são os índios e negros, é provável que este mal tão sujo, como os tumores, se conserve e abunde nesta terra, mais que noutro lugar do mundo61

Porém, essas mesmas características ambientais podiam afetar de modo diverso, segundo o tipo de enfermidade, a raça e a natureza orgânica dos indivíduos.

.

Por um lado, o espanhol que nascia nas Índias podia viver menos que o nascido em Castilha pela desarmonia da região indiana, que era quente e úmida e porque a pouca virtude e substância dos alimentos desta terra fazem abreviar a vida, o que se juntava à ociosidade e ao vício imperantes nessas terras e a delicada moleza que possuem todos os corpos nas Índias, porque como terra úmida, assim também a própria textura e substância dos membros de que são compostos é laça, frouxa, mole e mal compactada e mal unida62

Por outro lado, esses mesmos espanhóis nascidos nas Índias eram de gênio vivo, elevado e delicado, o que se devia à sua condição sangüíneo-colérica e esta, por sua vez, era provocada por dois fatores. Primeiro:

.

pela própria constituição climática das Índias, que é o calor com umidade ou, para dizer melhor, pelo predomínio que o sol possui sobre toda as gentes das Índias, que com a retidão dos seus raios imprime abundante calor, tomando os corpos a

61 Cárdenas, 1591, f. 197. 62 Cárdenas, 1591, 3ª parte, cap. I, p. 175-176.

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umidade por parte da terra, e assim são quentes e úmidos.

Segundo, porque a nação espanhola é de natureza colérica, e a secura desta cólera dada pelos pais se reflete nos filhos com a umidade da região e os alimentos63

Na obra deste sevilhano, trasladado desde pequeno à Nova Espanha e formado na Universidade do México, o galenismo mais ortodoxo se aplica às ánalises das enfermidades das características orgânicas de filhos de espanhóis nascidos nas Índias e aos indígenas. E nelas as características do meio americano não aparecem como fatalmente geradoras de um único efeito, mas de conseqüências diversas, segundo os humores corporais que as afetam.

.

Em algumas vezes, o ambiente podia favorecer o desenvolvimento de gênios, inibir as febres morais ou livrar das enfermidades os velhos, porquanto estes por razão da idade são frios e secos e esta frialdade e excesso de secura se dosa admiravelmente com o calor da região indiana, por ser quente e úmida64. Outras, no entanto, davam lugar a enfermidades sujas e podiam provocar males gástricos65

Ao mesmo tempo, aceitava-se que podiam existir enfermidades ou males que podem chamar-se - e desse modo o faz Cárdenas - regionais, porque da sua natureza e propriedade podem conservar-se mais seu contágio e semente em uma região que noutra

.

66

63 Cárdenas, 1591, 3ª parte, cap. II.

. Também podia constatar-se que numa mesma

64 Cárdenas, 1591, 3ª, cap. VI: Por que não se vêem homens éticos nas Índias, cap. VIII. Por que nas Índias os velhos vivem muito mais anos do que os moços, f. 206.

65 Cárdenas, 1591, 3ª, cap. IX: Por que existem nas Índias tantos doentes de estômago, de hidropesias, pilações e câmaras; entre elas encontra-se o calor, o qual chama para fora o calor natural do estômago, deixando-o frio.

66 Cárdenas, 1591, f. 194.

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região viviam pessoas ou grupos étnicos com características corporais diferentes. Assim, os indígenas de Nova Espanha raramente ficavam calvos e eram imberbes, ao contrário do que acontecia aos espanhóis, no que existe muita razão de duvidar mesmo que todos vivessem numa mesma região, e utilizássemos as mesmas águas e ainda os mesmo alimentos e, para concluir, tenhamos a mesma composição e organização que a deles67

Existia, porém, também durante o século XVI, um ambientalismo matizado de origem hipocrática e galênica, utilizado pelos médicos interessados na nosologia americana. Nele podemos encontrar o mesmo que em outros debates- alguns dos temas que, mais tarde, se desenvolveriam na disputa do Novo Mundo, como o da putrefação e o da corrupção associada às regiões cálidas e úmidas, e estendido, às vezes abusivamente, ao conjunto das Índias. Mas isso era feito com certo cuidado, que - dentro das concepções dominantes - evitava as simplificações exageradas, e em nenhuma situação se chegava a desvalorizar o meio americano. A partir do conhecimento direto desse meio somente se poderia exclamar, como o fazia o doutor Cárdenas, que nas Índias tudo é grandioso, tudo é surpreendente, tudo é diferente e em maior grau que na Europa. Era esta uma expressiva e admirável declaração - comum também aos cronistas das Índias e a muitos outros hispânicos da época- a partir da qual, em qualquer situação, era difícil concluir pela inferioridade do meio americano.

.

67 Cárdenas, 1591, 3ª, cap. IV: Por que causa se tornam calvos os índios como os

espanhóis e a estes não lhes cresce a barba e aos espanhóis é tudo ao inverso?

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A criação do território. Engenheiros e arquitetos da ilustração na Espanha e na América

O corpo de Engenheiros Militares certamente foi a corporação técnica de maior solidez e eficácia com que contou o Estado, durante o século XVIII, para suas tarefas de organização territorial, tanto no seu aspecto militar quanto no civil. A pobreza da ciência espanhola, a inexistência de corporações profissionais bem estruturadas e a fragilidade da iniciativa privada obrigaram a Coroa a utilizar, amplamente, nas tarefas da ordenação territorial, um corpo de engenheiros que, em princípio, teria que possuir unicamente funções militares.

A capacitação científica e técnica dos seus membros, obtida na Academia Militar de Matemática, permitiu-lhes intervir ativamente nessas tarefas e desenvolver um papel destacado na introdução da ciência moderna na Espanha. No entanto, ao mesmo tempo e como contrapartida, a extensão das funções civis dadas a este corpo militar foi, de certo modo, um obstáculo para o desenvolvimento de uma ciência civil.

Existia, já desde o século XVI, uma longa tradição da engenharia militar na Monarquia espanhola. Foi em 1710 - 1711, em plena guerra de sucessão, que se constituiu formalmente o corpo de engenheiros dos exércitos e fortes separado da artilharia, nomeando-se Jorge Próspero de Verboom, Engenheiro Geral e Mestre Geral dos Exércitos.

O núcleo inicial foi constituído por engenheiros vindos de Flandes, entre os quais se contavam flamengos, como Verboom, e espanhóis, aos quais se uniram outros engenheiros que

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trabalhavam na Espanha e na Itália, bem como alguns franceses enviados por Luís XV, como parte da ajuda a seu neto.

O número de membros do corpo foi de 80, em 1723, superando uma centena em fins dessa década. Em 1740, seu número foi de 140, passando a 150, em 1765, aí incluídos os engenheiros da América, cujo número durante o século XVIII não havia sido superior a meia centena. Finalmente, o número de Engenheiros Militares registrados, desde o início da fundação da corporação até inícios da guerra da Independência contra Napoleão (1808), é de aproximadamente um milhar de indivíduos, o que produz uma idéia clara da importância desta corporação profissional.

De fato, junto com os oficiais da marinha, formados nas Academias de Guardas-marinhas de Cádiz, El Ferrol, e Cartagena, as associações de engenheiros constituem, em extensão e qualidade, as mais importantes corporações técnicas, com as quais contou a Coroa para suas tarefas científicas e organizacionais durante o século XVIII. Nenhuma outra das existentes durante esse século logrou tão elevado número de membros e foi tão fortemente estruturada e capacitada para intervir contínua e ativamente no serviço dos interesses territoriais da Monarquia.

Seria necessário esperar até o reinado de Carlos III e o do seu sucessor para que se iniciasse a constituição de outras comunidades científicas de caráter civil e desenvolvidas ao redor de instituições acadêmicas, ainda que seus níveis de organização fossem muito mais débeis e sua continuidade estivesse sempre ameaçada pela frágil política científica governamental e pelos reduzidos recursos.

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Centralização política e corporativa para um desenho territorial

As amplas funções dos Engenheiros Militares foram nitidamente definidas pelos Regulamentos de 1718, nos quais se lhes delineavam tarefas militares e civis. As primeiras referiam-se essencialmente à defesa do território metropolitano e dos territórios de ultramar, bem como, esporadicamente, à sua participação no ataque de praças fortes, em caso de conflito bélico. Em relação a estas tarefas, também deveriam desenvolver trabalhos de reconhecimento territorial e de cartografia dos territórios do Império. As funções civis tendiam, de modo geral, à ordenação e articulação do território e à intervenção espacial por meio de planejamento e supervisão das obras públicas1

Do ponto de vista militar, sua atuação centrou-se na realização de projetos e supervisão das fortificações militares e portos, tendo também a obrigação de entender e dirigir as referidas construções, segundo as regras da Arte e com a economia que requerem estas obras tão grandes e custosas. Da perspectiva civil, a política do incentivo econômico e a reorganização administrativa levada adiante pela nova dinastia exigia o domínio de instrumentos coerentes para a intervenção territorial, e os Engenheiros Militares foram agentes eficientes desse programa.

.

Dos Regulamentos dos Engenheiros de 1718 emerge, sem dúvida, uma nova política de ordenação econômica e territorial.

1 A dupla relação militar e civil aparece refletida claramente nas medidas

adotadas depois do fim da guerra de sucessão. Em 1721, uma vez também finalizadas as campanhas de Sicília, ordenou-se ao Engenheiro Geral Jorge Próspero de Verboom a realização de uma viagem de reconhecimento que durou cinco anos e compreendeu diversas regiões espanholas. Nessa viagem, supervisionou as obras que estavam em andamento e contribuiu na elaboração de projetos militares e civis. Entre estes está o dos pântanos de Alicante, o projeto do canal de Lorca, o abastecimento de águas de Málaga e os projetos para tornar navegável o rio Guadalquivir até a cidade de Córdoba.

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Na Espanha, como em outras partes, o espaço adquire uma nova dimensão. Alguns afirmam ainda que é entre fins do século XVII e fins do XVIII, que se cria o território2

A França, sem dúvida, estava na vanguarda desta empresa: os trabalhos da medida do grau do meridiano, realizados a partir de 1670, com os incentivos da Académie des Sciences de Paris permitem a realização do primeiro mapa moderno da França (e o início da elaboração da carta desse país), perseguida com tenacidade pelos Cassini durante todo o século XVIII. Mas também outros países vão por esse mesmo caminho e, a partir da solução dos problemas da figura e da magnitude da Terra, desenvolvem trabalhos com exatidão científica, apoiados na Astronomia e na Geodesia.

, no sentido de que é quando ele se torna mensurável e pensável, tanto em termos econômicos quanto técnicos. A aspiração a uma formulação exata e precisa do território, nascida em Flandes e na Espanha do século XVI, começa a converter-se em realidade.

Jorge Juan e os Engenheiros Militares, que em 1749 recebem a ordem de elaborar o mapa da Espanha, mais os marinheiros que empreendem a tarefa de traçar com exatidão a carta das costas da Espanha e seus vastos domínios, constituem referências significativas nesse campo.

Através desses trabalhos científicos, fixa-se e delimita-se, com precisão, o território. Converte-se num espaço geométrico mensurável, com distâncias exatas e calculáveis. Um espaço no qual se pode situar redes de comunicação e infra-estruturas, que pode ser pensado como um lugar para a circulação de homens e mercadorias, e que pode ser concebido como um território organizado e organizável. Tudo isto aparece na Espanha, de modo categórico, desde os Regulamentos dos Engenheiros de 1718, que manifestam uma nova atitude a respeito da circulação

2 Alliés, 1980. Tomei a liberdade de utilizar como título desse trabalho a

mesma expressão de Alliés no livro citado.

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e da produção, assim como a respeito do papel do Estado na produção do espaço.

E são os engenheiros o grupo técnico no qual o Estado se apóia para sua intervenção na ordenação espacial, e através dessa utilização se acentua o poder estatal sobre o território.

Um Estado centralizado e absoluto necessitava de servidores fiéis e submissos, que dominassem um saber técnico que permitisse intervir eficientemente no território. Os engenheiros nasceram para isso. Eles, como funcionários da Coroa, seriam os responsáveis por dirigir e realizar todas as tarefas territoriais, incluindo também as construções de edifícios de iniciativa governamental. Sua fidelidade e submissão ao Estado seriam a garantia de sua sobrevivência, do seu prestígio e da sua prosperidade. Isto vale tanto para os Engenheiros Militares como Civis, do mesmo modo na Espanha, na França ou em outros países europeus.

A estrutura hierárquica - por sua vez militar e facultativa - e o espírito corporativo permitiam assumir empresas territoriais ambiciosas nas quais um único indivíduo, por mais preparado que estivesse, ficava superado pela coletividade. Trata-se pois de técnicos do Estado cuja produtividade se faz maior devido à profissionalização, que torna possível a dedicação em tempo integral.

Capacidade e seleção como prática e como ideologia

Desde a fundação da corporação, os organizadores insistiram nas virtudes essenciais que deveriam ter seus membros: capacidade, inteligência na profissão, disciplina. Valorizavam-se, sobretudo, os conhecimentos especializados que os capacitavam a intervir de forma exclusiva em todas as obras da iniciativa estatal. Os engenheiros é que deviam realizar os informes a

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respeito das construções que se empreendiam, sem que esta incumbência - escreve Verboom em 1710 - fique ao arbítrio dos que nada entendem da profissão.

Trata-se, sem dúvida, de um corpo de elite, com forte autoconsciência de todos os seus integrantes. Desde logo, não estão ausentes as preocupações da nobreza, intimamente vinculadas com a oficilidade militar no antigo regime que considerava a nobreza como o nervo da mílicia. No entanto, algumas vezes afirmava-se que as ascensões deviam realizar-se pelo mérito e não pela antigüidade. Assim, em 26 de agosto de 1733, em carta a José Patiño, Verboom insistia ser possível conseguir que esse corpo fosse um dos melhores:

se se premiasse, com justiça, os indivíduos que mais se dedicassem e destacassem, preferindo esses aos mais antigos, pois em outras corporações se atende comumente à antigüidade para ascensão. Neste somente seria levada em conta a qualificação, ascendendo aos empregos que fossem vagando os sujeitos que, pela sua aplicação, capacidade, méritos e qualidade de serviços fossem mais merecedores para a tarefa. Com isso não duvido, teríamos uma preocupação entre os indivíduos, pois procurariam distinguir-se e aplicar-se na sua profissão.

Este critério estrito para a ascensão e promoção exigia também rigor na hora de examinar os méritos dos seus membros. A aplicação ao estudo, a formação teórica e o domínio do desenho eram insubstituíveis. Mas ao mesmo tempo se necessitava de prática, não bastando a teoria - escreve outra vez o fundador - sim, muita prática e repetidas experiências em grande variedade de coisas que devem confluir para fazer um bom engenheiro. Por isso, os que, uma vez ingressados demonstrassem pouca

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aplicação deveriam ser separados da corporação enquanto existisse possibilidade3

Para isso, a rigorosa seleção dos engenheiros era uma realidade e, ao mesmo tempo, um argumento que não se duvidava em utilizar quando conviesse na competição com outros corpos militares, para conseguir a nomeação de cargos políticos, com o propósito de incorporar-se na rede do aparato do poder e da tomada de decisões.

.

A propósito dos debates que se realizavam em 1765, para a reforma da corporação, o engenheiro geral La Croix referia-se ao desconsolo da corporação por não obter cargos de governadores, tenentes de rei ou corregedores na Espanha e nas Índias, como outros militares. E escrevia:

a maior parte dos engenheiros saem dos mais seletos cadetes, ou oficiais dos corpos de infantaria, cavalaria e dragões, e através da inclinação ao estudo procuram ser mais úteis ao serviço real, e tem-nos distinguido dos demais corpos; no entanto, esta situação capaz de distingüi-los parece muito depreciada.

A enumeração das difíceis e penosas tarefas desenvolvidas pelos engenheiros, na guerra e na paz, era repetida algumas vezes para ponderar seus méritos: reconhecimento do país, direção das marchas e acampamentos, fortificação, ataques de fortes, seriam elementos suficientes para reconhecer que o corpo de engenheiros deveria ser considerado um verdadeiro seminário de generais, de onde se deduzia a capacidade e utilidade dos engenheiros para o mando, isto é, para a obtenção de cargos políticos.

3 A respeito podem ser consultados trabalhos de Capel, Sánchez e

Moncada, cap. II, p. 50-56. 1988.

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Junt40o a isto vêm as referências ao domínio de uma faculdade para qual não são suficientes o estudo e as experiências de uma vida humana, e a direção efetiva das obras civis e militares da Monarquia contribuíam para afirmar esta autovalorização dos membros e difundia uma ideologia que unificava este corpo de elite.

A carreira profissional dos Engenheiros Militares valorizava, pois, o conhecimento técnico e a formação adquirida e não a antigüidade ou a valentia. Por isso, proporcionava oportunidades de ascensão social para os mais capazes, isto é, para aqueles que podiam tornar visíveis sua preparação, favorecidos por alguma circunstância social ou pessoal (relações familiares, capacidade e domínio de certas técnicas, etc.).

Diferentes alternativas

Para seu funcionamento eficiente, a organização desse corpo técnico, fortemente hierarquizado, exigia uma formação científica o mais homogênea possível. Em geral, até o século XVIII, a formação técnica e científica se transmitia de modo pessoal de pais a filhos e de mestres a discípulos. No caso dos engenheiros, a preparação se adquiria no trabalho, intervindo junto com outros engenheiros experientes nos ataques ou nas obras de fortificação.

Na situação espanhola, este modelo não é de todo verdadeiro, já que desde o século XVII se criaram diversos estabelecimentos educacionais que procuravam uma reprodução institucionalizada do saber. Em Madri e nas regiões de fronteiras, submetidas a fortes ameaças bélicas (Flandes, Itália, Catalunha), se organizaram Academias de Matemáticas, de maior ou menor duração, para que cadetes e oficiais do exército pudessem converter-se em engenheiros e artilheiros. Uma delas, a Real Academia Militar de Matemáticas, do Exército dos Países

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Baixos instalada em Bruxelas e dirigida durante os últimos decênios do século XVII por Sebastián Fernández de Medrano, converteu-se no núcleo mais ativo para a formação de engenheiros, e dali saiu uma parte essencial dos oficiais que constituíram a corporação no momento da sua criação, entre eles o Engenheiro Geral Verboom.

As ameaças francesas à Catalunha e a existência ali de um numeroso exército daria lugar, também em Barcelona, desde fins do século XVII, à criação de uma Academia de Matemática que, em 1697, herdou formalmente a de Madri, adotando o modelo de Bruxelas, sendo extinta em 1705, quando as tropas do arquiduque ocuparam a capital do Principado. Quando, depois da criação da corporação, se pensou outra vez na fundação de um centro para a formação de engenheiros, essa tradição foi novamente considerada. Decidida a criação do centro, era preciso definir sua estrutura, seus programas e funcionamento.

Descartou-se, rapidamente, a possibilidade de solicitar a organização dos estudos a instituições civis, como as universidades, ou religiosas, como o Colégio Imperial dos Jesuítas, pelo temor ao ensino especulativo e pelo critério de destacar a obediência e a disciplina de alunos e professores, bem como, se fosse necessário, o caráter reservado do ensino. A opção foi em direção à criação de Academias Militares.

O modelo da Academia de Bruxelas era, sem dúvida, obrigatório, mas a nova realidade podia exigir também adaptações, e propostas diversas foram debatidas a esse respeito nos anos seguintes, aparecendo divergências e conflitos notáveis.

A interpretação dos conflitos

Para além desta polêmica referente à estrutura das Academias Militares, na realidade estavam em jogo questões

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importantes: em primeiro lugar, as diversas concepções sobre o ensino dos saberes técnicos e o papel relativo da prática e da teoria; em segundo lugar, diversas concepções referentes à hierarquização e ao organograma dos centros de estudos militares e, por último, diferentes formas de conceber a posição dos integrantes das corporações na estrutura social.

No que se refere à função das Academias e dos centros de ensino militar, existiam duas alternativas: a de se criar instituições científicas do mais alto nível, que possibilitassem uma ampla e exigente formação teórica, sem esquecer as dimensões práticas e úteis; e de pôr ênfase, sobretudo, na instrução prática, com os elementos científicos indispensáveis.

O problema se apresentou em todos os níveis e não somente nas Academias de engenheiros. Paralelamente a isso emergia um debate similar a respeito da organização dos centros de instrução para oficiais da armada, concretamente quanto à estrutura e organização da Academia de guardas-marinhas que havia sido fundada em Cádiz, em 1717.

Para uns, a instrução militar exigia, antes de mais nada, virtudes militares inatas, como a valentia e a coragem, e depois uma prática condizente, que no caso da Marinha significava prática de navegação; na dos artilheiros, participação em campanhas; e para os engenheiros, intervenção em obras de fortificação e ações de ataque e defesa de praças fortes; e, em todas as situações, a vida disciplinada e dura da milícia e dos quartéis, que constituía a melhor escola para se aprender as artes da guerra.

Para outros, que representavam, sem dúvida, o espírito mais ilustrado e inovador da época, na qual aparecem os exércitos permanentes e as mudanças na estratégia militar, somente a ciência poderia fazer bons militares, especialmente naquelas corporações que, como a Marinha, a Artilharia ou Engenheiros, exigiam conhecimentos rigorosos de matemática pura

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(Aritmética, Geometria, Álgebra, Trigonometria) e matemática mista (Hidráulica, Arquitetura civil e militar, Pirotécnica e Artilharia, Ótica, Perspectiva, Catóptrica, Dióptrica, Meteoros, Astronomia, Geografia, Náutica, Gnomônica). Eram as ciências que, de forma particular, poderiam contribuir na preparação do novo oficial.

Não era fácil, no entanto, concretizar uma política científica levando em conta as condições de início. E, mesmo, era urgente melhorar a formação dos oficiais, por isso era muito perigoso concretizar uma parte importante do esforço científico na criação de Academias Militares. Sem dúvida, contava-se com elas para elevar também o nível da ciência no âmbito civil, e a insistência de aceitar alunos não-militares nas Academias assim o demonstra. Mas isso ainda deixava aberto o problema da articulação entre a sociedade civil e a corporação militar, dando um destaque importante a essa última, o que produzirá conseqüências nefastas na história espanhola, mais tarde.

A própria organização das Academias suscitava problemas delicados. Existia, em particular, um debate interno a respeito da forma com que se devia realizar a hierarquização militar nas Academias, e a dependência, por um lado, dos diretores às autoridades militares e, por outro, dos professores, que também eram militares, em relação a uns e outros.

Na Academia de guardas-marinhas de Cádiz, a existência de um diretor docente e de um comandante da Companhia constituiu uma fonte contínua de conflitos ao longo de todo o século. Na Academia de matemática de Barcelona, o conflito entre Calabro e o Engenheiro Geral Verboom mostra que a posição dos diretores não era muito sólida e que existiam numerosos pontos de atrito.

A criação das Academias Militares supunha, por último, pôr em questão muitas tradições, e ainda se podiam afetar os privilégios de alguns grupos sociais e sua posição na estrutura

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social. A valorização das virtudes militares, (da prática, da transmissão oral da arte militar na família ou nos quartéis, da promoção por antigüidade), estava unida, geralmente, à consideração da nobreza da oficialidade militar e ao temor da acensão de outros grupos sociais, como a baixa nobreza e a burguesia.

A consideração dos conhecimentos científicos, da aplicação, e o mérito e o questionamento da promoção por antigüidade, supunha uma possibilidade de incorporar novos grupos sociais a essa corporação privilegiada que era a oficialidade militar.

Os diferentes projetos elaborados foram eco desse latente conflito social, e levantavam uma problemática que estaria presente durante todo o século. Trata-se do enfrentamento entre uma visão nobiliária do corpo de engenheiros e outra, que admite entre seus membros a pessoa em função da sua capacidade e do mérito pessoal, e que trata de integrar grupos sociais que até esse momento não possuíam participação no aparato do Estado.

A formação científica dos engenheiros

Em 1720 foi aberto finalmente o centro de Barcelona, sob a direção de Mateo Calabro, que estruturou os estudos seguindo, basicamente, o modelo de Bruxelas. As reformas de 1739 e a direção de Pedro Lucuce, que durariam até 1774, terminariam de desenhar definitivamente o programa de estudos e as regras de funcionamento.

As Academias que posteriormente foram criadas em Orán (1732) e Ceuta (1739) seguiram no fundamental, e de modo limitado, a organização e o programa de Barcelona.

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O programa de estudos incluía todas as disciplinas matemáticas, puras e mistas, necessárias à formação militar, desenvolvidas durante três anos, em quatro cursos de nove meses cada um. O ensino possuía as seguintes matérias: Aritmética numérica e literal; Geometria especulativa e prática; Trigonometria; Fortificação ofensiva e defensiva; Tática terrestre; Mecânica geral, Funcionamento de máquinas simples e compostas, bem como a Pressão dos fluídos; Artilharia; Cosmografia com atenção particular à esfera terrestre; Geografia política e elaboração de cartas, Gnomônica, ou ciência dos relógios solares; e princípios de Perspectiva e Arquitetura civil. O último curso estava dedicado aos princípios fundamentais do desenho e aplicação das cores, iniciando pelos planos gerais, perfis e elevações principais, e seguindo com o desenho de planos e perfis em grande escala e desenho de edifícios civis e militares.

A admissão na Academia estava reservada a cadetes e oficiais das diferentes armas, e também eram aceitos a cada ano alguns cavalheiros particulares. De qualquer modo, realizava-se uma seleção prévia na qual se consideravam não somente as atitudes científicas mas também as condições familiares: a nobreza de sangue ou filiação militar eram condições básicas para a admissão nesses estudos privilegiados, mas ainda podiam ser aceitos filhos de famílias de qualidade, o que excepcionalmente facilitava o ingresso aos indivíduos pertencentes à burguesia.

O controle dos estudos era rigorosíssimo com exames sucessivos, que culminavam ao terminar os estudos, com novas provas e, eventualmente, exames públicos. O ingresso no corpo de engenheiros se efetuava através de um novo exame no qual participavam os alunos que haviam concluído seus estudos, embora também pudessem existir outras vias diretas de incorporação; estas foram utilizadas, por exemplo, para o ingresso de técnicos estrangeiros (como Carlos Lemaur ou Francisco Sabatini), de filhos de personalidades relevantes (os Lemaur ou Vanvitelli) e a de oficiais destacados. Uma vez no

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corpo, a acensão aos diferentes graus realizava-se por mérito e capacidade e não por antigüidade, o que demonstrava uma importante novidade castrense, que procurava estimular a formação técnica e científica dos seus membros.

Até meados do século, os dois primeiros cursos das Academias matemáticas de Barcelona, Orán e Ceuta, atuavam como Academias gerais para os oficiais de todas as armas do exército, enquanto os dois últimos capacitavam para a artilharia e a engenharia. A partir de 1751, com a criação das Escolas Teóricas de Artilharia de Barcelona e Cádiz, à formação de uns e outros se diferenciou definitivamente, dedicando-se as primeiras citadas a formação de engenheiros.

Durante meados do século XVIII, época que corresponde ao reinado de Fernando VI e ao governo de Ensenada, coincidindo também com numerosas iniciativas para desenvolver os estudos científicos, intentou-se reformar os estudos de matemáticas militares. Em particular, era sensível a carência de textos para o ensino e a persistência do sistema tradicional de apontamentos: o diretor, como responsável pelo ensino, elaborava, a partir de fontes diversas e como doutrina própria o curso matemático, que era ministrado por ele mesmo e por outros professores, estando obrigados os alunos a anotarem cuidadosamente as lições e passá-las a limpo em cadernos sujeitos a revisão.

Esse caráter pessoal dos apontamentos assegurava, sem dúvida, o controle da informação dos conhecimentos técnicos lecionados na Academia; no entanto, a rigidez do sistema impedia, por sua vez, aprofundar os estudos e a adoção e difusão das inovações.

O intento, por parte do conde de Aranda, nomeado em 1756 diretor geral da artilharia e engenharia, de criar uma Sociedade Militar de Matemática, que possuía como objetivo essencial a redação de textos para o ensino, fracassou por causa da tempestiva renúncia de Aranda ao cargo, devido a diversos

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conflitos com outras autoridades militares, bem como a conflitos internos entre engenheiros e artilheiros.

Ao longo da última metade do século XVIII, o corpo de engenheiros foi incapaz de resolver este grave problema de textos, com o que a qualidade do ensino decaiu em comparação com o que se fazia, nesse mesmo período, nas Academias de Engenheiros de outros países, e em particular em relação à francesa, de Mezières.

Tempo de reformas

Com a chegada de Carlos III, a necessidade de uma reforma geral do exército, e do corpo de engenheiros em particular, fazia-se sentir de modo iminente. Primeiro, foi desenvolvida de forma profunda e ampla a promulgação dos Regulamentos Militares de 1768. Segundo, a reforma do corpo de engenheiros se realizou através de sucessivas medidas, tais como: o aumento do número de membros para 150, em 1768, ou a publicação de novas ordens em 1768, que direcionavam detalhadamente o funcionamento e a estrutura da corporação, dando ênfase ao caráter militar de suas atribuições e tarefas.

No entanto, é significativa a importante reforma de 1774, segundo a qual se dividiu a corporação em três ramos: a de praças fortes e fortificações do reino, para o qual foi nomeado diretor e comandante Silvestre Abarca; a das Academias Militares de Matemática de Barcelona, Orán e Ceuta e de outras que foram oferecidas, para as quais foi nomeado diretor e comandante o prestigioso ancião Pedro de Lucuce; e a de caminhos, pontes, edifícios de arquitetura civil e canais de irrigação e navegação, a cuja frente esteve Francisco Sabatini.

A razão desta última reforma se justifica por dois motivos. Antes de mais nada, a amplitude das funções encomendadas

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desde as ordenações de 1718 impedia que uma só pessoa pudesse ocupar-se das diversas e variadas tarefas, exigindo uma especialização crescente dos seus membros e, sobretudo, a distinção entre a direção das obras militares e civis, assim como uma especialização docente que assegurasse na qualidade da formação dos engenheiros.

Em segundo lugar, desde os anos de 1770 se insistia na aparição de corpos técnicos especializados que absorvessem funções até então encomendadas aos Engenheiros Militares: a crescente atribuição de funções em obras civis aos arquitetos formados na Real Academia de Belas Artes de São Fernando supunha uma crescente competição, frente à qual os Engenheiros Militares se viam obrigados a reagir especializando alguns indivíduos da corporação; e desde 1770 a criação do corpo de Engenheiros da Marinha subtraía também competência aos militares, pois sua fundação fazia parte do projeto da armada para assegurar a auto-suficiência em todos os campos relacionados com a construção naval, com a realização de projetos hidráulicos e com a engenharia dos arsenais.

As reformas de 1774 eram o reflexo dos conflitos latentes e das tensões às quais estava sendo submetido o corpo dos Engenheiros Militares e, de modo mais geral, todo o campo da construção e da engenharia, não somente na Espanha mas também em toda a Europa, desde o início do século XVIII. Trata-se, por um lado, do conflito entre engenheiros e arquitetos, que começam a se diferenciar como corporações específicas e, por outro, de conflito interno no campo da engenharia, já que os engenheiros civis se diferenciavam claramente dos militares e já que, por sua sua vez, as primeiras fases da Revolução Industrial estavam dando lugar a um desenvolvimento da maquinaria que conduziria, posteriormente, à aparição da engenharia industrial. Referir-nos-emos agora, sucessivamente, a cada um desses conflitos.

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O conflito entre engenheiros e arquitetos

Em 1774, com a criação da Junta Preparatória da Academia de Belas Artes de São Fernando, que seria aprovada e obteria o título de Real em 1752, a Monarquia pode dispor de uma instituição que, porque promovia o gosto pelas três nobres artes, pintura, escultura e arquitetura, cuidaria do bom gosto artístico e da aplicação das ciências às artes.

Os estudos de Arquitetura dentro da Real Academia não se desenvolveram sem dificuldade, já que questionavam os usos tradicionais, segundo os quais o título de arquiteto ou mestre de obras era outorgado por instâncias muito diferentes: cidades, corpos eclesiásticos ou confrarias e congregações, como a de Nossa Senhora de Belém e a da Fuga de Egito de Madri4

Em 1758, uns 300 alunos seguiam os estudos das três nobres artes na Academia, uma parte dos quais na arquitetura

. O Conselho de Castilha, que revalidava esses títulos, procurou conservar o privilégio, ao qual se opôs a Academia, e apoiou a Congregação de Belém. Mas, com apoio governamental, o ensino na Academia e o direito correspondente para controlar o exercício da arquitetura pôde ser assegurado.

5. Os Regulamentos da Academia de 1757 proibiram a qualquer junta, congregação ou confraria regular os estudos e a prática das três nobres artes, mas foi preciso obter ordens reais mais explícitas, de 1777 a 1787, para que fossem declarados nulos os títulos tradicionalmente obtidos, e dispuseram que os cargos de arquitetos e mestres maiores de cidades e cabidos eclesiais deviam ser ocupados pelas Academias de São Fernando ou de São Carlos de Valencia6

4 Bedat, 1974. p. 293-301.

.

5 Quintana Martínez, 1983. p. 85.

6 Bedat, 1974, Navasques, 1975.

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Mais problemática, e objeto de vivas polêmicas, que mascaravam certas deficiências reais, foi a substituição do barroco acadêmico pelo neoclassicismo racionalista, que exigia uma sólida base matemática e técnica. Foi aqui que as deficiências científicas e educacionais do país se fizeram sentir: os arquitetos e os alunos da Academia não possuíam a formação necessária em matemática para realizar essa nova arquitetura que triunfava na Europa. Com a chegada de Carlos III, em 1760, intentara-se, por todos os meios, promover uma mudança importante nos gostos e na prática arquitetônica, assim como no trabalho da Academia, para assegurar uma formação científica indispensável.

A criação da cátedra de Perspectiva em 1766, atribuída a Alejandro González Velázquez, e sobretudo a de Matemática, encomendada a Benito Bails, significou marcas decisivas7

Consolidava-se, com isso, uma mudança que ia em direção a uma arte fundamentada na razão e na ciência, vinculada, de alguma maneira, aos ideais da Enciclopédia e do período central da ilustração européia, e em contato também com os descobrimentos e a valorização do mundo clássico; descobrimentos que precisamente o novo rei Carlos III havia impulsionado de forma decisiva, durante o seu reinado napolitano, apoiando as escavações de Pompéia e Herculano.

. Os arquitetos formados neste centro começaram a ter um papel crescente, sobretudo a partir da década de 1770, quando a Academia se converteu, através da comissão de arquitetura, na entidade que examinava e aprovava os edifícios públicos que deviam ser construídos na Espanha.

Tudo isso representava, sem dúvida, um importante esforço de caráter institucional para a renovação da Arquitetura na Espanha e na América, onde a Academia de Nobres Artes do

7 A respeito da História da Academia veja-se Bedat, 1974, e de modo

particular, por se referir ao ensino da arquitetura, Quintana Martínez, 1983.

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México, fundada em 1781, adquiriu também funções similares às metropolitanas. Mas, por sua vez, surgia um conflito entre os engenheiros, devido à indefinição dos limites que existiram desde a antigüidade entre a Engenharia e a Arquitetura.

De fato, seguindo a tradição clássica, o arquiteto do Renascimento, e ainda o do século XVIII, podiam também fazer as vezes de engenheiro. As competências eram semelhantes, no sentido de que uns e outros podiam realizar funções de construção de edifícios ou de engenharia, e de atuar no desenho de espaços físicos, o que mais tarde seria o campo da ordenação territorial8

Na sua atividade, o arquiteto não somente poderia dedicar-se às tarefas propriamente construtoras mas também à seleção de lugares adequados, ao conhecimento e à seleção dos terrenos e materiais, à procura e condução de águas através de operações de nivelamento, à construção de relógios de sol, o que requeria amplos conhecimentos astronômicos, ao cálculo do custo das obras, e à construção de máquinas de tração hidráulica e militares, o que exigia conhecimentos a respeito das ciências do movimento

. Em Os Dez Livros de Arquitetura de Vitrúbio o arquiteto aparece como técnico que, relacionando a prática com a teoria, dispõe de diferentes ciências e artes para construir edifícios e cidades segundo ordem, proporção e distribuição adequadas.

9

Uma concepção semelhante possui também o arquiteto renascentista León Battista Alberti na sua De re edificatoria, obra na qual chamou a atenção para o contexto geográfico dos edifícios, para os materiais, para a localização das cidades, suas formas e elementos principais, incluindo pontes, portos, abastecimento de água e esgotos. E, de forma semelhante,

.

8 Veja-se Bonet, 1985.

9 Vitrúbio: Los diez libros de la Arquitectura, siglo I.

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surgem numerosos tratados de arquitetura, publicados nos séculos XVII e XVIII10. A expressão Arquitetura hidráulica, de uso comum nos séculos XVIII e XIX, mostra a origem deste ramo da Engenharia.11

A prática concreta dos arquitetos não fazia mais que confirmar os princípios teóricos dos tratados, já que quase todos os grandes arquitetos do século de ouro espanhol (como Juan Bautista de Toledo, Juan de Herrera, Juan de Oviedo, Juan Gómez de Mora, Domingo Antonio de Andrade e outros), assim como muitos dos do século XVIII (como Juan de Villanueva), desenvolveram tarefas, tanto na Espanha como nas Índias, de caráter construtor e de engenharia civil e militar

12

Mas no século XVIII, com a constituição dos corpos de Engenheiros Militares ou Civis começa a definir-se uma nova divisão do trabalho, que terminará por atribuir a edificação aos arquitetos, e a infra-estrutura e ordenação espacial aos engenheiros, os quais se vão convertendo em técnicos da produção do espaço.

.

Esta separação, no entanto, não se fez facilmente. Durante o século XVIII, não é incomum o caso de arquitetos convertidos em engenheiros ou engenheiros que se integram às instituições de

10

Veja-se, a respeito, a Bibliografia de Arquitectura, Ingenieria y Urbanismo en España.(1498-1880) dirigida por A. Bonet Correa, 1980. Como exemplo pode ser citado Arte y Uso de Architectura, de Lorenzo de San Nicolás (1633), onde se analisa a construção de pontes, nivelamentos, minas de águas, açudes e insiste-se na importância dos conhecimentos matemáticos, do mesmo modo que Juan Caramuel (1678) na sua obra Arquitectura Civil recta y oblíqua.

11 Aparece no século XVIII, por exemplo, no Tratado de Benito Bails,

Elementos de Matemática, 1787, vol. IX, parte II. 12

Veja-se Bonet Correa, 1988.

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arquitetura, tanto na França13

A prática construtora de uns e de outros estava próxima. Suas relações eram também freqüentes. Por outra parte, a existência, no século XIX, de obras intituladas Manual del Ingeniero y Arquitecto

como na Espanha. Nesta última, os casos de engenheiros integrados na Academia de São Fernando, como José Hermosilla, professor de Matemática, ou de outros importantes membros da instituição, como Martín Cermeño, equiparam-se ao de um arquiteto que se integrou ao corpo de Engenheiros Militares: Francisco Sabatini, que chegaria a ser aí uma figura de destaque.

14

Durante o século XVIII, os domínios continuam ainda sem estar nitidamente definidos. Arquitetos e engenheiros se apoiavam, no entanto, em novas instituições, que se converteram em centros unificadores, do ponto de vista educativo, e em organismos de defesa e de pressão corporativa.

é uma prova da lentidão com que se realizou a dissociação.

Por um lado, as Academias de Belas Artes, ou de Nobres Artes, como na França a Acadèmie d’Architecture, fundada por Colbert (1671); na Espanha, a de São Fernando (1742) e as outras que apareceram em Valencia e México, é que concedem o título que permitia dirigir a construção de fábricas arquitetônicas, questionando decididamente a ordem corporativa até então existente e impondo aos cabidos, prefeituras ou particulares a contratação dos novos titulados.

13

A. Picon (1988) p. 19-20, cita os casos de Perronet, diretor da École des Pontes et chaussées, que começou sendo arquiteto, depois de outros engenheiros que chegaram a ser membros da Acadèmie d’ Architecture e de Ledoux, o arquiteto típico de fins do século XVIII que se iniciou como engenheiro.

14 Por exemplo, a do tenente-coronel de engenheiros Nicolás Valdés, 1859

e citado por Bonet, 1980.

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Por outro lado, os corpos de Engenheiros Militares ou civis também se vão organizando em toda a Europa. Por exemplo: os Ingenieurs du Roy (1692), ou Fortifikationskontoret da Suécia (1681), o Corps de Ponts et Chaussées (1712) na França, o Cuerpo de Ingenieros de los Ejércitos y Plazas (1711) na Espanha, Corpo de Engenheiros dos Países Baixos, dependente do exército austríaco (1714), ou os diversos corpos de Engenheiros Militares e Civis criados nos estados italianos no século XVIII15

A existência dessas instituições reforça e apóia a divisão do trabalho que se estava produzindo. É como se, cada vez mais, os arquitetos estivessem se especializando na construção de edifícios. Seus tratados não deixavam de contemplar, às vezes, essa antiga preocupação pelo espaço, enquanto a engenharia se interessava mais pelos tipos, pelo desenho estilístico, pela decoração. Suas atribuições como funcionários municipais não afetavam profundamente a estrutura da cidade, já que a capacidade que podiam ter para aprovar e corrigir projetos se referia essencialmente às fachadas, com a preocupação essencial da ornamentação da cidade e sem misturar-se no interior da construção, economia e divisão do edifício

.

16

As tradições corporativas dos arquitetos não se relacionam, como vimos, com as novas instituições acadêmicas que eram criadas, e ainda que terminassem juntando-se a elas, pelo imperativo das normas legais, às vezes é como se o fizessem a contragosto. Ainda quando foram obrigados a estudar

.

15

Entre eles o corpo de Esperti Uffiali Infenieri e d’Artigleria em Torino e que desde 1739 incorporou um Ufficio degli Ingenieri Topografi e uma Escuola Teorica e Prattica d’Artigleria ( Massàbo e Carassi, 1787; Corpo do Genio Militare de Toscana (Rambai, 1987); Corpo d’Ingenieri de Genova, com uma Scuola d’Architettura Militare desde 1713; e o da República de Veneza ( Concina, 1987).

16 Como se afirma no Regulamento do Conselho de Madri de 06 de abril de

1767 citado por Garcia Felguera e outros 1980, p. 31, nota 10, o cargo implicava também vigilância do esgoto empedrado, das fontes de água e da limpeza das ruas.

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matemáticas na Academia, parece que também o fizeram contrariados.

O contraste entre os nomes das instituições dos Arquitetos e dos Engenheiros é significativo: Academia de Belas ou Nobres Artes, para uns; Academia de Matemáticas para os outros. Como se assistíssemos ao confronto entre arte e ciência, o que ao mesmo tempo se dava em outros domínios intelectuais da época.

De modo mais geral, e com referência à França, esta evolução foi assinalada por Antoine Picon. Durante o século XVIII, segundo este autor:

o saber do arquiteto se separa cada vez mais das ciências. Fiéis à geometria do Grão Século, as matemáticas do arquiteto ignoravam o progresso da análise, assim como a contribuição decisiva dos físicos e dos naturistas a compreensão do mundo. A explosão dos conhecimentos arqueológicos contribui, igualmente, para debilitar uma teoria cujo poder explicativo se reduz cada vez mais17

De modo semelhante, e com relação ao ensino acadêmico de Arquitetura da Espanha do século XVIII, Antonio Bonet Correa escreveu que em fins do referido século, e apesar das reformas, ainda os professores continuavam aferrados aos velhos tratados renascentistas e barrocos, e em suas lições davam maior importância ao desenho das ordens e das receitas práticas grosseiras que ao estudo das tipologias da teoria da arquitetura e das matemáticas

.

18

17

Picon, 1988, p. 93.

.

18 Bonet Correa, 1985, p. 20. Tal como se assinala nesse trabalho, as

reformas do ensino na Academia de San Fernando, a partir de 1799, intentaram dar maior peso à matemática nos programas curriculares.

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Sem dúvida, os arquitetos, seguindo a tradição renascentista de Alberti e outros tratadistas, insistiram na necessidade de que seu trabalho se fundamentasse na idéia prévia e no desenho, defendendo que é preciso conceber para construir, mas nas polêmicas que se mantiveram - como a que enfrentou Juan Villanueva, arquiteto de Madri, com seu tenente Mateu Gill19

O tema do desenho é, parece-me, muito significativo. Tanto para os arquitetos como para os engenheiros seu domínio era, como vimos, absolutamente fundamental, e isto assim se reflete em todos os programas de estudo e nas diretrizes de docência.

- não percebemos tanto a preocupação intelectual, mas um interesse de distinguir-se e elevar-se socialmente sobre os oficiais e peões, confirmando a Arquitetura como uma arte nobre e distinguindo-a dos ofícios mais simples, como o de mestre maior.

No entanto, para os arquitetos, a forma continuava inquestionável, indiscutível e a base essencial do aprendizado durante todo o século, enquanto os engenheiros, sem abandonar seu estudo, sentiram a necessidade, sobretudo desde a década de 1770, de pôr uma ênfase maior na ciência teórica. Em 1780, por ocasião dos debates que se realizaram dentro do corpo de engenheiros a propósito dos critérios de seleção, essa posição aparece nitidamente expressa por Sabatini, que era naquele momento diretor e comandante da disciplina de estradas, pontes, edifícios de arquitetura civil e canais de irrigação e navegação. Em relação à problemática de que seus alunos da Academia de Matemáticas deveriam ser eficientes na ciência e no desenho, pensava que:

ainda que esta parte do curso fosse essencial ao engenheiro, é mais útil e necessária à inteligência das matérias; porque poderá dar-se o caso em que

19

Checa Cremades, 1979.

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o mais habilidoso nelas tenha ou pouca inclinação ou pouca afeição ao desenho, e esta falta não lhe desmerecerá seu ingresso, como também a corporação não pode perder um indivíduo que faça progresso na ciência, ainda que sempre seja bom dominar uma e outra20

A integração dos engenheiros em associações estatais lhes dava mais flexibilidade, uma formação mais ampla e uma vontade de intervir nos negócios públicos. O arquiteto, no entanto, apesar de submeter-se às exigências do poder, mantinha certo grau de independência frente ao mesmo, atendendo, às vezes, uma clientela privada. Esta ambigüidade foi reforçada no século seguinte, com a constituição do exercício liberal da profissão.

.

De modo crescente, os engenheiros foram ocupando o campo de intervenção territorial e, em particular, das intervenções estatais, onde predominaram de forma quase exclusiva. Na Espanha, durante a maior parte do século, a ação dos novos arquitetos acadêmicos esteve controlada pelas limitações que, insistentemente, criava o Conselho Castilha, receoso de suas tradições, privilégios e benefícios, e pelo fato de o número de alunos de arquitetura titulados pela Academia de São Fernando não chegarem a ser tão numeroso a ponto de ocupar as vagas de arquiteto maior das cidades e cabidos, tal como havia disposto a real ordem de 176521

A necessidade que sentia o grande arquiteto Juan de Villanueva - arquiteto maior de Madri, diretor honorário de

. No que se refere à sua competência frente aos engenheiros, tem-se a impressão que a forte estrutura hierárquica e corporativa lhes dava uma superioridade.

20

Capel, Sánchez, Moncada, 1988, p.191-192. 21

Garcia Felguera e outros, 1980, p. 30-31.

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arquitetura da Real Academia de San Fernando e Arquiteto dos reais sítios -, de insistir algumas vezes que ofício de arquiteto não era um ofício qualquer, senão intelectual e de mando, mostra, bem me parece, a indefinição que havia a respeito, ainda em fins do século XVIII, enquanto que a posição dos Engenheiros22

Se nos limitarmos ao campo da construção, desenvolvido por uns e outros, parece-me que o impulso renovador foi mais intenso pelo lado da Engenharia que pelo da Arquitetura. Na Espanha da primeira metade do século XVIII isso me parece indubitável. A arquitetura, fundamentada na razão, e a ciência, que a Academia de San Fernando intentou impulsionar desde a década 1760, vinham já sendo desenvolvidas pelos Engenheiros Militares desde vários decênios. Estes eram praticamente os únicos na Espanha da primeira terça parte do século XVIII que possuíam uma formação científica e técnica adequada, adquirida na Academia de Matemáticas de Barcelona e em outras que mais tarde se formaram.

era mais definida.

Os arquitetos que, convém não esquecer, não eram somente os formados nas Academias, freqüentemente não possuíam a formação científica necessária e conheceram ainda alguns fracassos espetaculares quando participaram dos projetos e da supervisão de obras públicas23

22

Checa Cremades, 1979. O conflito entre Villanueva e Sabatini depois do incêndio da Praça Maior de Madri de 1790 e a superioridade hierárquica desse último, que era tenente geral, refletiam muito bem as tensões e desenlaces dos conflitos. Veja-se também Garcia Felguera, 1980.

.

23 Com referência à autoria dos planos das novas cidades de Andaluzia e

Sierra Morena, tem-se discutido a participação de arquitetos, como é o caso do italiano Nebroni, e engenheiros militares, como Desnaux e Isaba, identificados por Reese. Indicando-se que o autor dos planos deve ter sido sem dúvida um engenheiro, posto que os arquitetos conheciam muito pouco, e menos ainda os barrocos italianos se considerarmos suas posições da funcionalidade e importância que davam ao assunto da moradia. Sambrício, 1982, p. 150. Tem-se assinalado também alguns

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Convém não esquecer que a influência dessas instituições militares de engenharia não se limitou aos oficiais que nela estudaram. Certo número de cavalheiros particulares puderam também freqüentá-las e adquirir a formação técnica e científica que ali se transmitia. Ainda mais pelo sistema de vagas que se seguiu para a realização das obras, muitas outras pessoas receberam de forma indireta essa influência, através da sua relação com os Engenheiros Militares e da necessidade que possuíam essas pessoas de assimilar a linguagem técnica que os engenheiros empregavam, seguindo os rigorosos critérios adotados na realização das obras.

Sem dúvida, através dos arquitetos, os textos e as inovações tecnológicas e artísticas que se difundiam nas Academias Militares chegavam a um público mais amplo, contribuindo para renovar, de modo lento e profundo, o panorama construtor e artístico da Espanha do século XVIII, mais que os debates acadêmicos mantidos nas instituições de San Fernando e San Carlos e as normas legais do último terço do século, que impuseram o padrão da arquitetura neoclássica.

A formação matemática, a racionalização do desenho e a preocupação com as inovações técnicas, indispensáveis para

fracassos na construção de pontes por arquitetos (Recuero, 1988) como por exemplo, o fracasso do arquiteto Martínez de Lara ao desenhar a represa de Puentes em Lorca (Capel, 1991), ainda que nesta situação a responsabilidade seria também compartilhada pelo engenheiro militar Juan Escofet, que foi seu professor. De todo modo, mesmo os engenheiros ocupando a maioria dos trabalhos de planejamento territorial, os arquitetos continuaram desenvolvendo algumas funções, em particular o abastecimento de água das cidades. Exemplo dessa situação é o caso de Ventura Rodriguez, que desde 1780 trabalhou no projeto de abastecimento de água da cidade de Pamplona e no do Aqueduto de Noaín; a José Martínez de Aldehuela, responsável pelo abastecimento de águas em Málaga e pelo Aqueduto de San Telmo; e a Bernardo Ramírez, aluno destacado da Academia de Bellas Artes de Madri, e que fora nomeado mestre maior e encanador da Cidade de Guatemala, onde foi também diretor do abastecimento de águas até 1790 e posteriormente ocupou o mesmo cargo em San Juan de Comapala.

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diminuir o custo de construções realizadas por necessidades utilitárias e financiadas por recursos públicos sempre escassos, pareciam caracterizar os engenheiros, enquanto os arquitetos intervinham freqüentemente em obras suntuosas para o poder, para a Igreja ou para os particulares pareciam preocupar-se mais com a aparência e o embelezamento.

Escrevendo sobre o conflito entre arquitetos e engenheiros na França da Ilustração, Antoine Picon, porta-voz, sem dúvida, dos interesses dos engenheiros, escreveu:

o desenvolvimento da arquitetura, assim como sua medida, passam pela necessidade da experimentação. Há que determinar-se, então, em favor da sensação ou do cálculo. Se os engenheiros optam pelo cálculo, ainda que afirmando, por sua vez, uma íntima relação com a sensação, os arquitetos elegem o contrário24

A sensação, para o arquiteto ilustrado, significa gosto, conteúdo, sentimento estético, equilíbrio, ordem, proporção, sobriedade, mas também adaptação às necessidades de expressão de status dos grupos sociais definidos, cada um dos quais deveria adotar uma aparência coerente.

.

No Cours d’Architecture (1771 -74) de Jean François Blondel, decoração e distribuição constituem os aspectos essenciais do trabalho do arquiteto, através do qual se reflete a ordem social: a ordem decorativa se percebe como reflexo da estrutura social. Frente a isto o cálculo dos engenheiros se vincula com o funcional, com a estrutura, com o projeto, o qual constitui a referência última

24

Picon, 1989, p. 50.

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subordinada às exigências de construção e aos imperativos de racionalização do poder25

O conflito interno no campo da engenharia

.

Na Monarquia hispânica do século XVIII, o conflito entre arquitetos e engenheiros foi, em realidade, o conflito entre, por um lado, os arquitetos formados a partir de meados do século na Academia de Belas Artes e, por outro, os Engenheiros Militares. Dada à inexistência de um corpo de engenheiros civis, foram aqueles os representantes do novo saber técnico que o Estado requeria. Mas no interior dessa corporação não deixaram também de existir contradições e conflitos.

Em primeiro lugar, um conflito com os artilheiros, que desde o Renascimento haviam participado nas obras de fortificação como principais responsáveis pela conquista e pela defesa das praças fortes. As tensões chegaram a ser grandes durante a primeira metade do século, mas na segunda metade se resolveram com o triunfo total dos Engenheiros Militares, no que diz respeito ao controle das tarefas construtoras26

Em segundo lugar, o conflito com o novo corpo especializado, o dos Engenheiros da Marinha, criado em 1777. Sua fundação, como afirmamos, formou parte de um projeto da armada para assegurar sua auto-suficiência em todos os campos relacionados com a construção naval, com a realização de projetos hidráulicos e com a Engenharia Civil dos arsenais. Na verdade, esse projeto vinha sendo perseguido pela Marinha

.

25

Picon, 1989, p. 112 e seguintes. 26

Veja-se a respeito Capel, Sánchez e Moncada, 1988, Cap. VI. Na França existiu um conflito semelhante entre engenheiros militares e artilheiros. Cf. Picon, Genie Militaire, 1991.

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desde a década anterior quando alguns arquitetos formados na Academia de Belas Artes de Madri começaram a intervir nas obras dos arsenais, substituindo os Engenheiros Militares. À associação se incorporariam também oficiais de guerra com conhecimentos matemáticos e haveria segundo o projeto inicial, 37 vagas para a Europa e a América, com denominações iguais a dos Engenheiros Militares: 1 engenheiro geral, cargo para o qual foi nomeado Francisco Gautier; 4 engenheiros diretores; 4 engenheiros chefes; 4 engenheiros secundários; 5 engenheiros ordinários; 6 engenheiros extraordinários e 12 engenheiros ajudantes.

Para a formação destes Engenheiros de Marinha se planejou uma escola com 30 cadetes, entre 14 e 22 anos, os quais estudariam Aritmética, Geometria, Trigonometria, Mecânica, Álgebra aplicada, Ciência de engenheiros, Hidráulica e Desenho. Ainda que esta Academia não chegasse a funcionar efetivamente, a estrutura da corporação foi melhorada e completada pouco depois com os Regulamentos da S.M. para o serviço dos corpos de engenheiros de Marinha nos departamentos e a bordo dos navios de guerra (Madri, Pedro Marin, 1772) e com as ordens de S.M. para o governo militar e econômico de seus reais arsenais de marinha (Madri, Pedro Marin 1776), que elevaram o número de membros para 44 e definiram funções, desde a construção de maquinaria e engenharia naval à elaboração de projetos de quartéis, armazéns, arsenais, canais, diques e cais. A partir desse momento, os Engenheiros de Marinha passaram a controlar crescentemente as obras dos portos e arsenais, que a partir 1781 ficariam exclusivamente sob sua responsabilidade. Isto implicava uma limitação às funções que vinham desempenhando os Engenheiros Militares e uma crescente diferenciação técnica e corporativa, o que provocou conflitos de competências nos últimos anos do século XVIII, entre uns e outros.

A evolução nesta linha é clara, e vem precedida de uma série de conflitos entre os Engenheiros Militares, que dirigiam as obras e eram as autoridades da Marinha.

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Em Cartagena, esses conflitos são patentes, em 1730, e levaram à substituição de alguns arquitetos, como Sebastián Feringan e Jorge Bautista French27, e repetiram, novamente na década de 1750, e apresentam planos alternativos para o arsenal e para o cais de Sebastián Feringan e Eduardo Bryant28

No arsenal de El Ferrol, onde também a intervenção de Jorge Juan foi muito ativa, o arquiteto Julián Sánchez Bort, que havia estudado na Academia de Belas Artes de San Fernando, foi nomeado em 1754 ajudante do engenheiro diretor Francisco Llobet, substituindo-o em 1762 e, a partir desse momento, ele e seus dois ajudantes, Antonio Bada e Francisco Solines, alunos também daquele centro, adquiriram um prestígio crescente, que se estendeu a obras não exclusivamente relacionadas com a Marinha mas também com projetos de igrejas, quartéis e redes de esgoto

, conferindo um papel ativo a Antonio Ulloa e Jorge Juan, o que constitui uma prova clara do controle que as autoridades da Marinha desejavam ter no processo de construção.

29

A criação do Corpo de engenheiros de marinha em 1770 foi um avanço importante, e as obras de cais, arsenais, quartéis de marinha, fábrica de cordoalha, coberturas e outras construções relacionadas com a atividade naval passam a ser agora dirigidas por membros desse corpo.

.

27

Merino, 1981. Em 1737, o intendente Alejo Gutierrez de Ruvalcaba escreveu à Ensenada, reclamando de como o engenheiro que dirige este trabalho (de limpeza e habilitação do porto) não entende nada de navegação e não sabe qual pode ser a melhor saída dos barcos, bem como que direção devem ter para atracar segundo os tempos que correm. Como isto entendem melhor os oficiais de mar, parece-me conveniente que esta obra seja realizada de acordo com as instruções do capitão desse porto.

28 Veja-se Alvarez Terán, 1980.

29 Vigo Trasancos, 1985. Sanchez Bort ausentou-se de El Ferrol em 1771 e

trabalhou no Canal Imperial de Aragón.

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Em Cartagena, um engenheiro geral da marinha, Francisco Gautier, realizou desenhos de armazéns portuários e de edifícios próximos30 e adquiriu um destaque importante. Julián Sanchez Bort trabalhou também no porto de Cartagena, no de San Sebastian31 e no projeto de um caminho para abastecer de madeira este último. Joaquim Ibarguen, capitão de fragata e engenheiro secundário de marinha, desenvolve obras no porto de Cudillero, em 177732 e no de Santander, no ano seguinte33. Pedro Garcia de Aguilar, tenente de navio, dirigiu obras no porto de Málaga em 177134, onde anos mais tarde, 1780, atuou também o segundo piloto da armada Joaquim Camacho35

A nomeação de Julián Sanchez Bort, em 1775, como diretor do arsenal da Carraca de Cádiz é um sintoma significativo dessa evolução

e o capitão de fragata e engenheiro segundo Manuel Salomón.

36

Nesse arsenal e nas importantes instalações navais existentes em Cádiz, onde também havia atuado o inevitável Jorge Juan, realizaram um ativo trabalho a partir da década de 1770 os técnicos vinculados à marinha, tais como: Antonio Bada, Antonio Ansoategui, Manoel Salomão, Gregório Vidal e Joaquim Maria

.

30

Plano da darcena e parte dos seus edifícios por Francisco Gautier, 13 de fevereiro de 1776, arquivo geral de Simancas (AGS). GM leg.354 e MPD XV-172.

31 Agosto de 1774, AGS Marina leg. 389 e MPD XI-55 até 57 e 145.

32 AGS Marina, Leg. 378 e MPD IV-80.

33 AGS Marina, Leg. 390 e MPD IV-53,54.

34 AGS Marina, Leg. 386 e MPD XVIII-132.

35 Dezembro de 1780, AGS Marina, Leg. 386 e MPD XI-54.

36 Sanchez Bort morreu em 1785, com o grau de capitão de navio. Cf. Pavía,

1873.

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Pery37. Idêntica atividade desenvolveram a partir desses anos nas construções de praças portuárias da Espanha38 e ultramar39

Apesar disto, a participação dos Engenheiros Militares em obras da Marinha não desapareceu completamente, isto devido, por um lado, à capacidade destes, o que os tornava insubstituíveis em muitos casos, e, por outro, a dificuldade que existia para estruturar um corpo de Engenheiros de Marinha e a falta de um centro acadêmico para a formação de seus membros. Por isso, nos anos finais do século XVIII e no primeiro decênio do século XIX continuamos encontrando Engenheiros Militares nas obras mais significativas construídas nos grandes centros navais

.

40

37

Alguns exemplos de seu trabalho: Jorge Juan em 1764, AGS, GM Leg. 3505 e MPD XIII-59 e 70; Antonio Bada projeta o Hospital da Marinha, 1779, AGS Marina, Leg. 229 e MPD VI-64; Antonio Ansoategui, engenheiro de marinha, projeta o Parque de Artilheria em 1777 e um tablado junto às fábricas de cordões e lonas em 1779, cf. AGS Marina, Leg. 358 e 361 MPD XV-170 e V-158; Manuel Salomón, capitão de fragata e engenheiro de segunda, no Trocadero de Cádiz, 1792, plano em SGE, 716; cf. Gregorio Vidal tenente de fragata é agregado ao corpo de engenheiro da marinha em Villa de Rota, 1781, cf. Plano no Museu Naval, XXXVII-2; Joaquín Maria Pery, no canhão do Trocadero de Cádiz, 1790, cf. plano no Museu Naval LII-25.

.

38 Por exemplo, em Vigo o projeto do novo assentamento da cidade, uma

espécie de ampliação extra-muros, foi realizado em 1810 pelo engenheiro diretor de Marinha Jose Muller.

39 Veja-se Gutierrez, 1978.

40 Por exemplo, em Cádiz as obras do Novo Assentamento da Ilha de León,

concebida para capital administrativa da província marítima, foram encomendadas em 1775 a Sabatini, que nomeou como ajudante os engenheiros militares Gregorio Espinosa de los Monteros, Francisco Fernández Angulo e Joaquín Villanueva, substituído mais tarde por Ignacio Garcini. Em 1783 o projeto definitivo foi elaborado por Vicente Imperial Digueri. No Ferrol, Dionísio Sánchez Aguilera realizou, na década de 1780, diversas obras ( A Cadeia Nova, Capelas, Fortificações e outros).

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Em terceiro lugar, temos que lembrar também o conflito com o novo corpo de Engenheiros Cosmógrafos, criado em 1796 para os estudos da Astronomia e sua aplicação à Geografia. O novo corpo possuía como objetivo imediato o levantamento da carta geodésica da Espanha e se concebia como um corpo de estrutura militar, que teria sob sua responsabilidade o observatório de Madri e que daria lugar a uma carreira astronômico-castrense. Sua criação foi um passo significativo em direção à especialização no campo da Geodesia e à Cartografia do território, campo no qual os Engenheiros Militares haviam tido um papel destacado ao longo de todo o século, fato pelo qual não é de estranhar a reação contrária que provocou o novo corpo de engenheiros.

No entanto, mais importante e significativa foi a decisão do governo de apoiar a criação de estudos para a formação de Engenheiros Civis de pontes e estradas. O modelo era, com certeza, o da École de Ponts et Chaussées, que existia na França desde 1744 para a formação dos Engenieurs de Ponts et Chaussées e que adquiriu uma estrutura acadêmica, a partir do Regulamento aprovado por Turgot, em 1775.

Desde 1712 existia, na França, um corpo de engenheiros civis para a direção e a inspeção das obras de pontes e estradas. A partir de 1744 criou-se também, em Paris, uma sala especializada de desenhistas, onde se centralizavam os mapas das estradas que os Engenheiros de Província enviaram, e desde 1747, com a nomeação para chefe dessa sala de Jean-Rodolphe Perronet, existiu também nela uma espécie de oficina para a formação dos futuros engenheiros.

O número de alunos desta escola esteve entre 30 e 90, fixando-se em 60, a partir de 1775. A escola teve, durante muito tempo, somente um professor, e os alunos mais brilhantes ensinavam seus companheiros. Estudava-se nela Geometria, Álgebra, Secções cônicas, Mecânica, Hidráulica, Corte de pedras e Cálculo diferencial e integral. Durante algum tempo a formação

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recebida era mais empírica e de nível inferior à que se lecionava na École du Génier de Mezières, fundada em 1748 para os Engenheiros Militares41

A estadia de Agustín de Betancourt como aluno do centro em Paris, em 1788, e a proposta que realizou para a criação de um centro similar na Espanha, constituíram o momento para que se concretizasse o projeto de constituição de um corpo de Engenheiros Civis, cuja necessidade já se haviam manifestado anos antes.

, mas a estrutura dos estudos foi melhorando sensivelmente, em particular depois da aprovação por Turgot, em 1775, do novo Regulamento da École de Ponts et Chaussées.

Sem dúvida, as reformas de 1774 na organização do corpo de Engenheiros Militares com a criação da secção de Caminhos, pontes, edifícios de arquitetura civil e canais de irrigação e navegação obedeciam à necessidade de contar com técnicos especializados em obras civis, aproveitando a longa experiência que os Engenheiros Militares haviam adquirido. Mesmo sendo a capacitação de seus membros elevada, as exigências de suas funções militares específicas e as próprias necessidades da construção civil, por outro, unido aos conflitos que algumas vezes surgiam com os técnicos civis, aconselhavam a criação, na Espanha, de um corpo similar ao que existia na França. E isto foi o que aconteceu, em 1799, com a corporação da Inspeção Geral de Estradas e Canais, que passaria a ter a denominação de Engenheiros de Estradas e Canais.

Pouco depois se organizavam estudos específicos com a fundação, em Madri, de uma escola que abriu suas portas em 1802. Desde o princípio se concebe como um corpo técnico civil altamente capacitado para obras de engenharia hidráulica, construção de estradas e pontes e trabalhos geográfico-

41

Taton, 1986; Picon Génie Militaire, 1991.

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geodésicos, e assim aparece desenhado no quadro ideal proposto pelo seu principal fomentador, o engenheiro Agustín de Betancourt. Ele escreveu na Memória sobre os meios de facilitar o comércio interior (1791), dirigida ao conde de Floridablanca, que o engenheiro deveria reunir as seguintes condições:

Ter desenvolvido um sólido estudo da Geometria e Trigonometria, com suas aplicações na prática; saber o uso dos melhores instrumentos para levantar os planos; medir distâncias e alturas; nivelar um terreno; calcular com facilidade e exatidão os nivelamentos e terraplenagens; delinear e lavrar um plano, para poder representar um projeto com claridade; conhecer os materiais a que corresponde cada classe de obras, e a resistência das pedras por princípios certos; saber os vários métodos das fundações na água, num terreno de areia, de terra ou pedra, para aplicá-los segundo as circunstâncias, estar instruído quanto às diferentes espécies de pontes que se tenha imaginado, seja de madeira, de pedra ou de ferro, para realizá-la onde convenha; ter notícia das muitas máquinas que se têm inventado para trabalhar com economia nas pontes e estradas; saber combinar ou modificar segundo seja exigido nos vários casos em que devam ser empregadas; poder julgar com segurança, quando for preferível o trabalho dos homens ao dos animais ou destes àqueles; calcular as causas políticas que devem influir na direção que se pode dar a uma estrada.

Enfim, permita-se-nos dizer ter uma educação não vulgar, a qual não somente é recomendável aos homens no trato com os

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demais, senão também porque permite o discernimento e o tato fino que em certos momentos pode ser mais sutil que a ciência.

Tais são as qualidades que devem concorrer num diretor de estradas42

A nomeação de Agustín Betancourt como Inspetor Geral de Estradas e diretor da Escola de estudos dessa disciplina permitiu desenhar um corpo civil inspirado no modelo anterior e que, necessariamente, devia absorver funções que antes estavam encomendadas aos Engenheiros Militares.

.

Isto obrigava, sem dúvida, a redefinir as funções desses últimos em função da competência que introduzia, e o alto nível dos estudos civis implicava em modificar os conteúdos e os programas seguidos no centro de ensino da Engenharia militar. Os Engenheiros Militares se viram desde então reduzidos às funções exclusivamente castrenses. O processo seria lento e de fato não terminaria até meados do século XIX, mas provocou imediatamente uma reorganização do corpo de engenheiros, o que vinha sendo exigido por outra parte, pelas modificações introduzidas na tática e na estratégia das guerras napoleônicas: em 1800 se suprimem os três ramos e se volta ao mando único, e em 1803 se promulga um novo ordenamento e se juntam todas as Academias de Engenheiros na nova, de Alcalá de Henares.

Com esta última medida, por certo se eliminava uma tradição bissecular, que situava as Academias Militares como lugares de conflitos bélicos e se consolida outra, que tendia a situá-las perto da corte ou em cidades importantes.

O conflito entre Engenheiros Civis e Militares não é exclusivo do nosso país. Na França foi ainda mais profundo: os engenheiros das fortificações foram perdendo, a partir de 1761,

42 Apud Rumeu de Armas, 1980, p. 60-61.

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para os de pontes e estradas, portos, canais e os trabalhos de obras públicas municipais. Devido ao caráter nobre que foi adquirindo o corpo militar em 1793, o governo revolucionário o dissolveu e adjudicou suas funções aos engenheiros de pontes e estradas, os quais desde 1794 se formavam na nova École Centrale des Travaux Publics, germe da École Polytshnique fundada pouco depois. A. Picon43

Na Espanha a desorganização produzida com a guerra da independência e a posterior repressão fernandina afetariam gravemente o desenvolvimento da escola de estradas, que se viu obrigada a fechar suas portas em 1808, fez uma rápida reabertura no triênio liberal (1820-1823), mas somente em 1834, morto Fernando VI, poderia abrir definitivamente suas portas. No ano seguinte, com a constituição definitiva do corpo de Engenheiros Civis - que se integrava efetivamente aos Engenheiros de estradas, canais e portos e aos Engenheiros de Minas, e previam integrar no futuro os novos corpos que se criaram, de geógrafos e florestais - dava-se o passo decisivo para o desenvolvimento dessas novas corporações técnicas que a nova sociedade demandava.

escreveu a este respeito, afirmando que a Engenharia militar se converteu numa aplicação particular dos princípios físico-matemáticos ensinados na politécnica, e governam daí em diante os destinos da Engenharia civil.

Em uma sociedade que havia começado a experimentar, tanto na Espanha como no resto da Europa, assim como também na América, os efeitos da nova organização das forças produtivas, das novas relações sociais de produção e da nova divisão do trabalho material e intelectual. Os Engenheiros Civis seriam os responsáveis por resolver os problemas técnicos propostos no capitalismo industrial e pela procura de maiores rendimentos, que permitissem aumentar os benefícios econômicos, o que requeria técnicos com uma boa formação

43

Picon, Génie Militaire, p.17.

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científica, capacitados para realizarem novos e mais exatos cálculos. A formação matemática se confirma, então, como a base essencial para o ensino técnico e ainda também para as associações como as dos Engenheiros Florestais e Agrônomos, que pareciam não precisar de modo prioritário da Matemática44

O território e a ação do governo

.

Sem dúvida, a intervenção sobre o espaço é concomitante ao exercício do poder, desde o início das civilizações. É suficiente lembrar a fundação de cidades ou a organização de sistemas hidráulicos para a irrigação como traços característicos dos antigos impérios do Oriente Próximo. Através dessa ação organizada pode-se exercer de forma muito mais eficiente a ação humana sobre a superfície terrestre, intensificando-se o processo de criação do território como diferente do espaço geofísico45

O que é novidade no século XVIII é, certamente, o otimismo com que se dá esse processo de organização territorial. Jamais os homens se sentiram tão capazes de transformar o mundo natural, e nunca se haviam munido de conhecimentos e de instrumentos técnicos tão eficientes para concretizá-lo. E, junto

.

44

A respeito da formação científica dos membros desta corporação veja-se Casals, 1988. Para a organização dos engenheiros durante o século XIX e o conflito com os arquitetos é fundamental o livro de Bonet, Miranda e Lorenzo, 1985.

45 Alguns geógrafos atuais têm insistido na distinção entre espaço e

território, sendo que o homem é quem produz este último como espaço da ação humana, isto é, como um espaço humanizado de complexidade crescente. A territorialização é um processo gerador de complexidad, e escreveu A. Turco, 1988. E C. Raffestin (1984) considera que o processo de territorialização implica ter alcançado um conjunto codificado de relações, num equilíbrio instável que pode ser modificado por sucessivos processos de desterritorialização e reterritorialização.

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a isto, nunca o poder político havia chegado a aceitar tão explicitamente sua responsabilidade nessas tarefas, e a necessidade de desenvolver ações territoriais como parte das funções do Estado.

Em fins do século XVIII, Wilhelm von Humboldt, refletindo a respeito da necessidade e dos limites da ação do Estado afirmava que, sem dúvida, haviam sido os objetivos dos governos europeus do século XVIII, os que consideravam que a função do Estado podia ser dupla: podia-se propor por um lado - escrevia -, fomentar a felicidade, e por outro evitar o mal; este último, por sua vez, podia ser de dois tipos, o da natureza e o dos homens, o que dava lugar a dois tipos de ação de governo: a defesa contra os perigos naturais e a defesa contra os perigos humanos, aumentando a segurança, o que significava defesa contra os inimigos exteriores, e polícia, isto é, meios para assegurar a ordem interna e a paz social46

1 - Neste ponto, o otimismo ilustrado é verdadeiramente admirável. Os governantes estavam convencidos da sua obrigação e da sua capacidade de modificar os dados do meio natural. Uma clara e significativa declaração nesse sentido aparece, por exemplo, na representação que fez o Marquês da Enseada ao rei Fernando VI, em 1751:

. Aqui está uma clara formulação das tarefas do Estado moderno, e não há dúvida de que em todos esses objetivos existe uma clara dimensão territorial. Considerarei agora esta dimensão, destacando, em primeiro lugar, a que se refere às tarefas estatais que tendem a evitar o mal da natureza, seja este do tipo climático, fluvial ou de outro caráter.

Não há na Europa - escrevia - terreno mais seco que o da Espanha, e por conseqüência estão expostos seus habitantes a padecer fome pelas suas

46

Humboldt, 1792 ed. 1981, p.21; Fraile, 1989.

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más colheitas, como também não há um reino em que menos se tenha exercido a arte de socorrer de preferência umas províncias às outras, evitando-se a extração de dinheiro a domínios distantes, pois não se tem procurado que seus rios sejam navegáveis no possível, que existam canais para navegar e transportar, e que suas estradas sejam as que devem e podem ser. Reconheço que para tornar os rios navegáveis e as estradas transitáveis são necessários muitos anos e muitos recursos; mas, Senhor, o que não se inicia não se termina47

Na Espanha, esse otimismo dos governantes era fielmente compartilhado com os mais leais e eficientes agentes do poder para a atuação territorial: os Engenheiros Militares. Nas Academias Matemáticas exigia-se uma cuidadosa e rigorosa formação científica, através de um bem pensado programa de estudos no qual se transmitia uma visão otimista das suas funções e de suas possibilidade de atuação, a exemplo das ordens e instruções para o ensino das matemáticas na Real e Militar Academia, que se estabeleceu em Barcelona e as que em diante se formaram, publicada em 1739, que os obrigava a estudar, entre outras matérias, a arte de mover, levantar, conduzir e distribuir água, tornar os rios navegáveis, adaptar os portos de mar, consertando com a arte os defeitos da natureza.

.

A aspiração de consertar com a arte os defeitos da natureza constitui, sem dúvida, a mais impressionante declaração que

47

Apud Rodriguez Villa, 1878. De modo semelhante expressaram-se outros governantes espanhóis da época. Assim, o Conde de Floridablanca, no seu Memorial a Carlos III, escreveu: Espanha exposta sempre à falta de chuvas não pode ser uma terra agrícola se não substituir estas chuvas por irrigação na maior parte das províncias em que faltam, para que o agricultor obtenha o fruto de seu trabalho. E por isto prestigia a política das obras hidráulicas empreendidas na Espanha, que deixarão surpresa a posteridade mais remota. Floridablanca, 1982, p.346.

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pode ser encontrada no século XVIII sobre as possibilidade de intervenção humana na superfície terrestre.

De acordo com este princípio, o corpo de engenheiros numa tarefa coletiva, formulada e dirigida pelo poder político, dedicou-se, na metrópole e na América, a um amplo programa de realizações, que transformava de modo significativo o meio natural: regular as cheias dos rios mediante a construção de represas, superar os obstáculos naturais à comunicação por meio da construção de pontes e estradas, que facilitavam o trânsito pelas montanhas; iluminar e conduzir águas para longe das suas nascentes ou de seu percurso facilitando, com isto, a irrigação em regiões de baixa pluviosidade; construir canais, que modificavam o percurso dos rios e conectavam bacias fluviais, permitindo o transporte barato de mercadorias e de homens; melhorar os portos e enseadas naturais e construir outros, novos, para navegação marítima, criando praias artificiais que protegeriam os alicerces das fortificações litorais; criar saltos que permitissem aumentar a energia das águas e aproveitá-la para usos industriais; construir jardins que melhorassem a paisagem natural.

Nunca, até então, o homem, que na tradição cristã é o senhor do mundo e completa a obra da criação divina mediante o processo da humanização da Terra, se havia sentido até tal ponto o rei da criação, e nunca havia tomado tanta consciência do seu poder e da sua capacidade de pôr a natureza a seu serviço. Somente então puderam ter sentido as palavras do naturalista Buffon, segundo as quais a face da Terra tem a marca da potência do homem, o qual, por mais que esteja subordinado à potência da natureza, tem atuado de modo constante, mais que esta última48

48

Buffon, Les époques de la Nature, Paris, 1778, Sétima Época.

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Para valorizar o que esta nova atitude representa, há que compará-la com outras tendências dominantes no passado.

Na tradição cristã, a aceitação do plano divino da criação e da providência de Deus sobre o mundo implicava que este deveria ser perfeito e dotado de todos os atributos necessários à vida do homem. Nada precisava ser mudado, já que tudo obedecia à sabedoria do Criador e aos desígnios que em grande medida se ocultavam ao homem. Por isso, era impensável que a natureza tivesse defeitos, e o homem não precisava introduzir nenhuma mudança nela.

Um exemplo concreto ilustrará o que estamos dizendo. Quando na segunda metade do século XVI se propõe, pela primeira vez, a possibilidade de construir um canal inter-oceânico entre o Atlântico e o Pacífico, através do istmo da América Central, alguns ousados pensaram romper esse caminho de sete léguas (entre Nombre de Dios e Panamá) e juntar um mar com outro para tornar cômoda a passagem ao Peru. A este projeto foram feitas oposições importantes, em particular o perigo de inundar a Terra, devido a estarem as águas do Pacífico mais elevadas que as do Atlântico.

Mas, na verdade, os problemas essenciais eram outros, e o grande cientista que era o padre Acosta soube expô-lo com clareza. Um, a incapacidade do homem para desenvolver trabalhos tão gigantescos: porque nenhum poder humano será suficiente para derrubar a montanha fortíssima e impenetrável que Deus pôs entre os dois mares, de morros e montanhas duríssimas capazes de suportar a fúria de ambos os mares. Outro, ainda que fosse ao homem possível, seria muito justo temer o castigo do céu por querer emendar as obras que o Criador, com beneplácito e providência ordenou na criação deste universo49

49

Acosta, J. de. Historia Natural y Moral de las Indias, 1590, livro III, cap. X.

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É essa a atitude que, no século XVIII, se modificou radicalmente. Esse mesmo istmo, que antes era considerado intransponível, é examinado agora ativamente para se estudar a possibilidade de construir nele canais de navegação. Em Nova Espanha os vice-reis Bucareli e Revillagigedo encomendaram a dois Engenheiros Militares (Agustín Cramer e Miguel Corral) a realização dos trabalhos pertinentes para projetar um possível canal que, unindo as cabeceiras dos rios Coatzacoalcos e Chimalapa pusesse em comunicação os dois oceanos.

Ao mesmo tempo, consideravam-se velhos projetos para a construção desse canal desde o rio San Juan ao lago de Nicarágua, desde o Panamá a Nombre de Dios e em Nova Granada desde Atrato até a baía de Cupica50

Sem dúvida, através da construção de canais, de estradas, represas e portos, os governantes hispanos da ilustração intentaram efetivamente, tanto na metrópole como nas províncias ultramarinas, remediar aqueles defeitos da natureza que impediam de alcançar as condições de riqueza e bem-estar que desejavam para os seus súditos.

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2 - Além dos males naturais, o poder devia evitar, como foi visto, os males derivados dos homens. Isto implicava, antes de mais nada, tarefas de policiamento, no amplo sentido que o termo possuía no século XVIII, e que derivava da sua origem etimológica51

50

Veja-se sobre estes projetos Humboldt, 1808, livro I, cap. II e livro V, cap. XX, ed. 1978, p.7-18 e 467-471.

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51 Segundo o Diccionario de la Lengua Española da Real Academia da Lengua

entre as acepções da expressão policia encontram-se: boa ordem que se observa e se guarda nas cidades e repúblicas, cumprindo as leis e regulamentos estabelecidos para seu melhor governo (acepção 1); cortez, boa criança e urbanidade no trato e costumes (acepção 3); e a limpeza e asseio das cidades e dos cidadãos (acepção 4).

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Do ponto de vista espacial, isto implicava melhorar a comodidade e a higiene urbanas: construir sistema de esgoto, transformar as características medievais ainda presentes nos traçados de muitas cidades do século XVIII, construir cemitérios, sanatórios e hospitais, abrir novas ruas e projetar novos bairros; organizar redes de abastecimento de águas, melhorar e criar equipamentos.

Um Engenheiro Militar foi o encarregado por Carlos III de elaborar o plano de saneamento da capital do Império, Madri, e foram os engenheiros que em todos os territórios desenharam e dirigiram a maior parte dos trabalhos neste campo da política urbana. Nele há que se incluir também, como é lógico, tudo o que contribui para o exercício do poder e para o seu simbolismo, assim como para o controle dos cidadãos, e para a melhoraria da transparência e visibilidade do espaço, o que se traduzia na construção de quartéis, regularização da vida urbana, iluminação, cadeias etc.; tudo o que, desde a ilustração, tendia a - na expressão de P. Fraile - obter obediências automáticas52

3 - Junto a tudo isso, o trabalho do Estado deveria dirigir-se, como vimos, a evitar as ameaças do exterior. Isto supunha a preocupação com os sistemas defensivos e com a determinação clara dos limites estatais, objetivo conseguido através de complexas negociações diplomáticas, que necessariamente eram acompanhadas de longas tarefas de delimitação.

.

Desde o ponto de vista defensivo, as atuações dos engenheiros estiveram guiadas pelas características do Império hispano e pelas condições geoestratégicas do mesmo. Já que a Marinha assegurava a defesa naval, a relação das terras ultramarinas entre si e com a metrópole, os fluxos comerciais e a chegada dos metais das Índias, aos engenheiros foram dadas as

52

Fraile, 1988.

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tarefas de assegurar as fronteiras metropolitanas e os pontos vitais do Império.

No território metropolitano, sua atividade se centrou na fortificação e urbanização das praças portuárias e das zonas costeiras, em alguns pontos significativos da fronteira com a França (Pamplona, Jaca, Seu d’Urgell, Figueras etc.), e Portugal (Ciúdad Rodrigo, Fuerte de la Concepción, Badajoz etc.), e na sua participação para recuperar a praça de Gibraltar.

Nas Índias, os núcleos essenciais que precisavam ser assegurados eram as Antilhas, Nova Espanha e o Peru, mas as necessidades defensivas se apresentavam também e de forma crescente na fronteira norte, da Califórnia à Louisiana e Flórida; no rio da Prata, de importância comercial crescente e baluarte frente à expansão portuguesa no Brasil; na fronteira meridional das terras patagônicas, magalhânicas e chilenas, que garantiam a segurança da frente do Pacífico e, finalmente, no longínquo arquipélago filipino, ameaçado sempre por holandeses e ingleses.

Nesse vasto conjunto territorial sobressaem, em particular, alguns pontos estratégicos (como Cartagena de Índias, Vera Cruz, San Juán de Ulúa, Callao e Havana, entre outros muitos) em que se realizaram enormes fortificações, que absorveram grandes recursos e energia de numerosos engenheiros, durante todo o século.

4 - Finalmente, entre as tarefas do Estado emerge agora, de forma explícita, a procura positiva do bem-estar público e a adoção de medidas de incentivo e desenvolvimento econômico.

As correntes mercantilistas ainda dominantes na Espanha durante boa parte do século, postulavam a ação do Estado sobre alguns aspectos da política econômica (regulamentos comerciais, taxas para o comércio exterior, incentivo de manufaturas). A crítica a essas idéias, feitas tanto por fisiocratas como por livres

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cambistas, não significou eliminar essa intervenção. É verdade que questionaram todos os obstáculos ao comércio e à propriedade individual e postularam a liberdade econômica. Mas ao atribuir ao Estado o papel de assegurar as condições para a dita liberdade e para garantir o laissez faire lhe destinaram nada menos que: primeiro a adoção de medidas políticas tendentes a suprimir todos os obstáculos à liberdade de opção econômica; e segundo, a promoção daquelas condições necessárias para isso, ou seja, em definitivo, no estímulo de obras públicas para estabelecer uma rede e fluxos de comunicações e comércio (estradas, canais e portos) e a melhoria da produção agrícola (política hidráulica).

O intervencionismo do poder político nestes aspectos se fez crescente e de forma significativa conforme avançava o século XVIII, e os engenheiros - ainda que não somente estes - se converteram em fiéis executores das iniciativas que eram adotadas. Sua intervenção foi diversa e se estendeu a todo um amplo espectro das obras públicas e a atuações territoriais da Coroa.

Antes de mais nada se centraram na intervenção das que tendiam a assegurar a articulação do espaço e a existência de fluxos de comunicações, que facilitavam o comércio - ao mesmo tempo que a mobilidade dos exércitos.

Este objetivo se havia já definido claramente no Regulamento de Engenheiros de 1718, em que Felipe V afirmava que o conhecimento da situação das estradas e pontes:

é necessário para o cumprimento das resoluções do meu real serviço, e para a comodidade dos passageiros, carruagens e outros interessados; como pelo desejo que tenho de mandar fazer nas referidas estradas e nas pontes e outras paragens os reparos e obras que se considerem convenientes, fazendo construir também novas pontes e abrir

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outras estradas, se for necessário, evitando rodeios e maus passos a fim de facilitar a comodidade dos passageiros e comerciantes, e os menores custos de condução de frutas, gado e outros gêneros de uns povoados a outros, comerciando e comunicando-se mutuamente com recíproca conveniência.

Em relação a este objetivo, que aparece também formulado no Regulamento de Intendentes do ano de 1718, os Engenheiros Militares participaram ativamente do traçado do grande sistema concêntrico de estradas, que desde a Corte se dirigia até Galícia, Extremadura e Portugal, Andalucia, Valência e à fronteira francesa, através da Catalunha e do País Basco.

A construção desta rede viária estava já formalmente desenhada em meados do século na mente de Enseada e no projeto econômico de Bernado Ward, e se desenvolveria decididamente durante o reinado de Carlos III. Seu traçado e sua realização, bem como a construção das pontes recaiu essencialmente sobre os engenheiros militares, e em particular sobre figuras como Feringan, Cramer, Hermosilla, Espelius, Le Maur, Nangle, Escofet, os Martíns Cermeño e Sabatini.

Um grande número de pontes, num total de aproximadamente setecentas, somente na Espanha, durante a segunda metade do século XVIII53

Sem dúvida, estas funções atribuídas a engenheiros desde os Regulamentos de 1718 obrigava-os a pensar o espaço em termos de fluxos de circulação de homens e mercadorias, e a adotar uma

- entre elas a magnífica ponte sobre o Llobregat na estrada de Barcelona, torpemente destruída em 1974 - foi projetada e supervisionada por membros deste corpo de engenheiros.

53

Madrazo, 1984, p.165.

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visão dinâmica do espaço sobre o qual as construções e os equipamentos deviam situar-se.

Do Regulamento de 1718, da confiança sem limites que a coroa depositou nos engenheiros, e dos projetos grandiosos dos governantes ilustrados procedem certamente a força e a decisão com que estes realizaram as suas tarefas sobre o terreno. E o fizeram com uma ambição que possuía, sem dúvida, uma dimensão imperial e que refletia a segurança sem limites na sua capacidade de dominar a natureza. Isto é algo que os estrangeiros souberam observar muito bem, em especial os pragmáticos viajantes britânicos, que possuíam como marco de referência outros modelos de atuação espacial, com menor intervenção pública e maior realce da iniciativa estrangeira, ao mesmo tempo que num relevo menos acidentado e difícil.

Assim o percebeu J. Townsend, que algumas vezes se maravilhava frente às magnificas estradas e as impressionantes pontes construídas para superar profundas depressões de terreno e, por esse motivo destacou o gênio empreendedor, e a paciência e a perseverança do caráter espanhol. E ele exclama, finalmente, ao percorrer em 1787 a estrada de Almansa a Valência passando por Játiva:

Fazem ali agora uma nova estrada e parece que tomaram a resolução de mantê-la no mesmo nível, apesar da desigualdade do terreno sobre o qual esta deve passar, sem girar nem à direita nem à esquerda. Observei a obra no lugar, ou melhor, onde ao distanciar-se um pouco da linha reta cortavam um amplo passo numa longitude bastante considerável, através de uma rocha calcária de mais de cinqüenta pés. A ambição dos espanhóis não encontra, pois, limites, e parecem determinados, pelo vigor dos seus esforços, a dominar todos os obstáculos que pudessem impedi-

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los de alcançar a perfeição54

O que impressiona nestas observações, e mesmo no exame das obras e dos projetos realizados, não é somente a ambição e a decisão do esforço - somente limitado pela permanente penúria dos meios econômicos disponíveis - senão também a obsessão pela linha reta, sem voltar à direita ou à esquerda, como assinala Townsend. Sem dúvida, reflete uma idéia de ordem no território, que aparece algumas vezes na Cartografia dos engenheiros

.

55

Outro grande valor da intervenção se refere às obras hidráulicas. Sua importância havia sido igualmente reconhecida nos ordenamentos dos engenheiros de 1718, nos quais se manifestava:

, onde a regularidade e a simplicidade dominam de forma muito clara, o desenho.

que se reconheçam os rios que se pudessem tornar navegáveis, e paragens que podem ser adequadas para abrir canais e sulcos, descobrindo também as águas subterrâneas que não somente garantissem o aumento do comércio e o maior benefício dos povos pela facilidade e pequeno gasto com o qual se transportariam os frutos, gados e gêneros de uma província à outra, mas também que dessem disposição para moinhos e outros engenhos, e para a irrigação de diferentes campos e terras que não produzem por falta desse benefício.

54

Townsend, 1787, ed. 162, p. 1627 e 1650. A estrada de Madri a Valencia começou a ser projetada em 1752 pelo engenheiro Enrique Legallois de Grimarest; na década de 1770 trabalharam nele seu filho Valentín Legallois, Felipe Ramirez e Pedro de Ara, e outros engenheiros militares. Veja-se Capel, remediar con el arte los defectos de la naturaleza.

55 Como no magnífico mapa de Sevilla realizado por Tomáz López, em

1767.

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Desde 1721, quando o Engenheiro Geral Verboom reconheceu os pântanos de Alicante e os trabalhos para a construção do canal do Castril e do Guardal até Lorca, a intervenção dos Engenheiros Militares foi decisiva em todos os projetos elaborados. A chegada do francês Carlos Le Maur trouxe um importante reforço nesta linha de intervenções. Depois de realizar, em 1754, uma relação histórica dos projetos de canais de Castilla e de Campos, já em execução, iniciou, acompanhado logo por seus filhos, os trabalhos de reconhecimento e de desenho em diversos rios, que culminaram com seu Projeto de um canal navegável desde o rio Guadarrama até o Oceano, que passará por Madri e por Serra Morena (1785).

A construção do canal Imperial de Aragão e a navegabilidade do Ebro com o canal das Alfaques, o canal de Castilla, os trabalhos hidráulicos dos Reais Sítios, a navegabilidade do Guadalquivir, o projeto do canal interoceânico no istmo de Tehuantepec; os canais de Lorca e Cartagena, o dique em Cartagena de Índias; o de San Carlos, em Santiago do Chile, para unir as bacias do Maipo e do Mapocho; as obras de irrigação de Valência, Ampurdán, Granada e Aragão; os projetos do canal do Güines, desde Batabanó até Havana, em Cuba; a drenagem das lagoas litorâneas e áreas pantanosas, a regulação dos cursos fluviais afetados por avenidas catastróficas, e os projetos de abastecimento de água e esgoto, contaram essencialmente com os Engenheiros Militares para seu traçado e sua realização56

Junto com aquelas obras temos que citar suas intervenções nos projetos e portos em Barcelona, Cartagena, Cádiz, El Ferrol, Santo Domingo, Vera Cruz, e outras numerosas localidades; os planos de ampliação urbana (Barcelona, Santander, El Ferrol, Havana, Montevidéu...) e das novas populações (La Rápita, São Fernando da Ilha do Leão etc.); a construção de fábricas, aduanas

.

56

Alguns trabalhos recentes sobre o tema intervenção dos engenheiro militares em estradas e obras hidráulicas são os de Capel, 1988; Helguera, Garcia Tapia e Molinero, 1988, Muñoz Corbalán, 1994.

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e armazéns, e a intervenção urbanística nas obras de remodelação de grandes e pequenas cidades: hospitais, teatros, colégios, cemitérios, jardins, palácios de governo ou prefeituras.

Realmente, pode dizer-se que praticamente não existe ação urbanística ou de infra-estrutura de caráter estatal na qual não estivessem presentes, durante o século XVIII, os Engenheiros Militares. Sem estes a tarefa de incentivo econômico e remodelação territorial do Império hispano não teria sido possível, e não teria alcançado as dimensões que alcançou durante o século XVIII.

Conclusões

Através de todas estas intervenções se avança decididamente

na construção do Estado contemporâneo. Um Estado unificado, centralizado e submetido em tudo a regras uniformes bem explícitas, nas quais o território é concebido pelo poder de um modo integrado e totalizador, que exige uma base cartográfica rigorosa e uma intervenção estruturadora mediante a organização dos fluxos e dos nós da atividade econômica.

Na Espanha do século XVIII tomam parte desse projeto político unificador, integrador e racionalizador os diferentes decretos da Nova Planta, que suprimiram os foros e privilégios dos reinos e submeteram todos a um regime legislativo comum; as reformas da administração do Estado, com a criação de ministérios, capitanias gerais, departamentos, intendências e outros órgãos territoriais; os esforços para realizar o cadastro e unificar o sistema fiscal e para homogeneizar e modernizar o exército; a criação dos serviços postais e de correios, e tantos outros aspectos da política burbônica.

A preocupação em organizar o mercado nacional se reflete na política tendente a estimular os intercâmbios provinciais

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mediante a eliminação das aduanas interiores57

Em todo caso, o destacável neste projeto de comunicações é que possuem agora uma concepção global, com uma visão de conjunto que tende à articulação do território, tanto do âmbito metropolitano como na relação deste com as províncias ultramarinas.

e a organizar a rede de estradas e canais que facilitariam a mobilidade das pessoas e a circulação das mercadorias de umas regiões para outras.

Pode-se afirmar que uma boa parte das medidas administrativas tomadas foram medidas sobre o território. O Estado intensifica seus esforços para medir e delimitar, a si mesmo cuidadosamente, e intervém de forma crescente, através de atuações concretas: sistema defensivo, cadastro, estradas e canais, medidas sobre culturas e defesa da mata, estímulos às rotações e política agrícola, incentivo à imigração e criação de novas populações, criação de manufaturas, hospitais, portos etc. E através de tudo isto - tem-se dito com referência à França, e sem dúvida a afirmação é valida para a Espanha - o Estado se converte em território, quer dizer, num espaço conquistado pela administração estatal58

Algumas das questões propostas anteriormente não são novas, porém não há necessidade de se tomar como argumento as intervenções espaciais do Império Romano e de outros da Antigüidade, e, limitando-nos somente a nosso país, é indubitável que na Espanha de Felipe II existia também uma similar vontade unificadora e organizadora, e uma preocupação em conhecer o território e valorizar seus recursos.

.

57

Veja-se Muñoz Perez, 1955. 58

Alliés, 1980, p.23-25.

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O que muda agora é a escala e a intensidade das intervenções, favorecidas pelas possibilidades dadas não somente por uma ciência e uma técnica mais desenvolvida, mas também por saberes sociais e administrativos que facilitam, o que um autor denominou a arte do governo ou governabilidade, isto é:

o conjunto de instituições e reflexões, cálculos e táticas que permitiram exercer esta forma específica e muito complexa de poder que possui por alvo a população, como forma principal de conhecer a economia política e, por instrumentos técnicos essenciais, os dispositivos de segurança59

Também mudou a complexidade da vida econômica, que no século XVIII era muito maior que em tempos anteriores e exigia uma regulamentação mais ativa.

.

O Estado, a Igreja e a iniciativa privada intervieram ativamente sobre o território a partir de pressupostos claramente econômicos, que tendiam a promover a riqueza; também o fizeram com uma visão global das diversas variáveis econômicas, das que eram um bom reflexo dos quadros e das situações gerais e particulares que se elaboravam, bem como dos projetos de desenvolvimento regional que se abordavam.

Podem ser assinalados - para dar somente dois exemplos - a criação dos novos povoamentos de Serra Morena, Andaluzia e Estremadura, em que a implantação de núcleos de povoamento claramente hierarquizados se aliava à distribuição de terras, e incentiva a criação de normas colonizadoras e uma rede de estradas; e o projeto integrado da transformação do Campo de Lorca, onde a construção de represas e canais para a irrigação surgiu ao mesmo tempo que a melhoria do abastecimento de

59

Foucault, 1981, p.25-26.

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água potável, para assegurar o crescimento urbano, e a preocupação em fundar o núcleo portuário de Águilas para a saída de seus frutos e seu trânsito60

Toda uma longa experiência de atuação espacial - desde os repovoamentos medievais até a colonização da América - cristalizou-se no século XVIII, numa concepção de política territorial estruturante e integradora, que desenvolveria todas as suas potencialidades nos dois séculos seguintes.

.

No entanto, as dificuldades e os limites eram grandes, e não deixaram de afetar os projetos. Em todas as atuações espaciais do século XVIII a natureza aparece algumas vezes com obstáculos a vencer e transformar; a realização dos ambiciosos projetos apresenta todas as características de uma tenaz e dura luta entre esta e o homem, uma luta na qual nem sempre este último foi vitorioso.

A ambição excessiva de alguns projetos - como os que, sem ter em conta as condições físicas da Península, pretendiam interconectar o Atlântico ao Mediterrâneo - a insuficiência dos conhecimentos científicos e de instrumentos técnicos adequados; os conflitos entre instituições em âmbito estatal, regional e local, ou entre corpos militares e civis; ou simplesmente a escassez de recursos impediram, em alguns casos, a realização dos projetos, ou motivaram o fracasso de importantes esforços já realizados - como a regulamentação do Ter em Gerona61

60

Como escreveu o Conde de Floridablanca, no Memorial apresentado ao Rei Carlos III, e é repetido a Carlos IV, renunciando ao Ministério. Floridablanca, 1982, p.348.

, o canal de Huéscar em Granada, abandonado depois de ter sido escavada uma parte importante, destinada a interconectar as bacias do Guadalquivir e do Segura.

61 Muñoz Corbalán, 1988.

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A isso se juntaram as limitações do reformismo ilustrado frente às transformações decisivas que punham em questão a ordem social do Antigo Regime.

A estrutura da sociedade se refletia ainda na organização do espaço, numa heterogeneidade do território, com sobrevivência de estruturas feudais, autênticos Estados com atribuições jurisdicionais, que desapareceram, em 1812, com as Cortes de Cádiz. O emaranhado de divisões administrativas territoriais, originadas em boa parte durante a época medieval, dificultava a racionalização necessária.

Os interesses sociais impediam a realização efetiva do cadastro rural e urbano e, por conseguinte, a taxação de impostos para os proprietários, e afetava negativamente a vontade de realizar os levantamentos cartográficos, de que são uma boa prova as graves dificuldades que existiram para se realizar o mapa da Espanha numa escala grande, durante todo o século XVIII e ainda durante os dois séculos seguintes62

Sem aqueles instrumentos era realmente impossível controlar e dominar plenamente a dimensão territorial do Estado. Somente no século XIX, com o fim do Antigo Regime e a tomada do poder político pela burguesia, seria possível dar o passo decisivo em direção à nova estruturação do território.

.

62

O mapa topográfico Nacional, em escala 1:50.000 iniciou-se em 1878 e finalizou-se em 1968. A respeito das dificuldades no século XVIII veja-se Capel; e sobre os problemas para a realização do Cadastro, Tatjer, 1988 e outros trabalhos incluídos em Segura, 1988.

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A Geografia e as periferias urbanas: reflexões para arquitetos1

Permitam-me iniciar este trabalho expondo minha admiração pelo ajuste instantâneo e exato entre o pensamento urbanístico institucional - refletido, por exemplo, neste curso - e as mudanças na conjuntura econômica e social.

Na apresentação do programa do curso, os organizadores destacaram que, nos últimos anos, a atenção dada pelos arquitetos ao centro tradicional limitou a elaboração de propostas sobre outras áreas urbanas; e depois fazem uma crítica velada que, de fato, também se converte em uma interpretação das razões da referida situação: o esforço de arquitetos e urbanistas - escrevem - parece ter seguido muito de perto o interesse renovado de empresários e políticos para a recuperação das cidades centrais.

Certamente, é oportuna a crítica e talvez seja correta a interpretação.

Mas o observador leigo, sobretudo se é algo perspicaz, não pode deixar de se admirar com o repentino interesse que, de um momento para outro, voltam a ter os arquitetos e urbanistas para os espaços periféricos, e intranqüiliza-se ao indagar se esse inesperado redescobrimento não seguira igualmente o renovado interesse de empresários e políticos por outro setor do espaço urbano, a periferia, e pela expansão periférica da cidade.

1 Texto apresentado na Conferência Projetar a periferia, em maio de 1991, no Laboratório Europeu de Urbanismo, organizado pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura, de Barcelona.

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O curso Projetar a periferia parece situar-se, de fato, em uma nova fase do crescimento urbano, tanto econômico como demográfico, e intenta preparar adequadamente os técnicos que vão intervir no planejamento físico desse processo. Mas, situando-o numa perspectiva histórica mais ampla, proporciona uma constatação de como o trabalho dos técnicos e dos cientistas se vê afetado pelas conjunturas econômicas e sociais. Dedicarei uns momentos a esta questão, tomando como exemplo o caso espanhol, que é bem representativo da evolução geral.

A década de sessenta e a primeira metade da de setenta foram, na Espanha, anos de crescimento econômico e de grandes migrações campo-cidade que afetaram milhões de pessoas, o que exigiu a construção de um importante volume de moradias nas áreas urbanas.

A cifra de habitações construídas, anualmente, foi crescendo paulatinamente, até superar as 200.000 em 1963, e as 300.000 em 1970, com um crescimento histórico que superou as 400.000 em 1973.

As Leis do Solo, editadas em 1975 e elaboradas no otimista ambiente do crescimento econômico, preconizavam uma visão expansiva e consideravam o planejamento como a referência indispensável para preparar de modo antecipado e racional um assentamento social e economicamente adequado para as grandes massas de população que nos próximos anos vão incrementar os núcleos urbanos, da ordem de 22.000.000 ou mais de habitantes, do presente momento até o final do século.

Nessa situação expansiva se haviam desenvolvido, durante uma década e meia, os grandes bairros de moradias nas periferias urbanas, e se realizou o programa de Atuações Urbanísticas Urgentes de 1970, através do qual se previa a construção de quase uma dezena de cidades novas: uma superfície de mais de 11.000 hectares haveria de ser urbanizada na

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periferia de Madri, de Barcelona e de outras grandes cidades, para hospedar um milhão de pessoas em unidades urbanísticas integradas.

Logicamente, nessa conjuntura, os arquitetos seguiram as exigências do momento e dedicaram-se aplicada e frutiferamente - para a sociedade e para eles mesmos - ao desenho de novos espaços.

As revistas de arquitetura e urbanismo - por exemplo Cidade e Território - estavam cheias, nesses anos, de artigos e debates sobre o planejamento de grandes bairros residenciais e de avaliações sobre as novas cidades construídas em outros países europeus.

A crise econômica de 1973, como é conhecida na Espanha, foi percebida com certa demora em relação a outros países ocidentais, modificando, de forma dramática, as previsões. A taxa de desemprego passou de 4% em 1975 a 14,3% em 1981, e nos anos seguintes, com o aprofundamento da crise e os programas de reconversão industrial continuou aumentando, até alcançar 21% em 1986.

Os movimentos migratórios campo-cidade se detiveram e mudaram de direção. Unidos à diminuição da taxa de fecundidade, deram lugar a uma clara detenção do crescimento urbano. Nos cinco anos que se seguiram a 1981, a população dos municípios urbanos espanhóis aumentou somente em 740.000 pessoas, com uma média anual de crescimento mais de três vezes inferior à dos decênios anteriores; mas os efeitos da crise sobre o crescimento urbano foram ainda mais graves do que estes dados indicam: na realidade, os municípios de mais de 500.000 habitantes vieram a diminuir sua população, e as 50 cidades de 100.000 a 500.000 habitantes cresceram lentamente, aumentando somente uns 400.000 habitantes, entre todas elas.

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Naturalmente, isto foi acompanhado por um rápido ajuste no mercado de moradias e, em especial, pela paralisação dos grandes projetos urbanísticos. O descenso na construção de novas casas, iniciado lentamente em 1974, adquire um mínimo próximo às 200.000 casas anuais no começo dos anos oitenta. A opção fundamental é agora a manutenção, renovação e utilização das existentes. Trata-se de uma política de melhoria urbana, em especial dos centros históricos, afetados por um processo de despovoamento e deterioração. A isto se dedicam integralmente os arquitetos, seguindo de perto o interesse renovado de políticos e empresários pela recuperação das cidades centrais.

Impelidos pela conjuntura, os arquitetos abandonam momentaneamente os ambiciosos e criativos projetos de expansão periférica e se debruçam a desenhar operações mais limitadas no interior do centro urbano, resignando-se, mesmo lentamente a construir edifícios imponentes entre duas casas.

Sem dúvida, que isto conduziria necessariamente ao que no programa deste curso se denomina a visão objetiva do edifício arquitetônico como um objeto e se converteria no trunfo do chamado pensamento tipológico.

Desde meados dos anos oitenta, se fazem sentir claramente os sintomas da reativação econômica, refletidos na diminuição do número do desemprego. O Plano Quadrienal da Habitação para 1984-87 reavaliou as necessidades de moradia e impulsionou a reabilitação das existentes, ao mesmo tempo em que dinamizava a construção de novas casas.

A lei Boyer sobre contratos de aluguel estimulou a construção, conseguindo que os proprietários colocassem no mercado muitas moradias existentes no interior das cidades. A construção se reativa ao ritmo da conjuntura, mas segue existindo, como é conhecido, uma demanda elevada, constituída, em grande parte, pelo que se denominava demanda não solvente.

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A intervenção na rede urbana existente oferecia agora reduzidas oportunidades e escasso prestígio. Nossas cidades alcançaram, no geral, uma densidade elevada, das maiores da Europa.

Alguns anos de interesse pelo centro histórico permitiram descobrir as dificuldades da intervenção: edifícios deteriorados e com patologias complexas; rendas baixas da população moradora, o que a impede de iniciar obras de renovação, a não ser que se contasse com subvenções públicas a fundo perdido; escassa capacidade de iniciativa de muitos inquilinos e proprietários, constituídos em boa parte por grupos de idade avançada; elevada fragmentação da propriedade, etc.

Além do mais, as obras mais brilhantes e de maior dimensão, as que se pensam como prioritárias pelos seus possíveis efeitos dinamizadores, já teriam sido outorgadas, pelo que restavam somente migalhas. Junto a isto, o governo central e as comunidades autônomas, com atribuições urbanísticas, acordam de novo a construção de bairros de dimensões mais reduzidas que os anteriores e, por isso mesmo, oferecendo possibilidades a um número maior de arquitetos.

O banquete já está pronto e se deve celebrar precisamente na periferia. Somente falta servir aos convidados. Este curso nasce, sem dúvida, no momento apropriado.

II Olhemos agora em direção à periferia urbana redescoberta.

Antes de mais nada: de que periferia falamos? Que entendemos por urbano? Como se define a cidade? São perguntas difíceis de responder e que precisam de alguns esclarecimentos.

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De início, esclarecimentos sobre terminologias. Periferia (do latim peripheria, e este do grego, levar ao redor), é o contorno de um círculo, de uma circunferência.

Projetar a periferia, no sentido estrito, pode ser entendido como desenhar o contorno da cidade e produzir uma configuração urbana determinada: circular, concêntrico, linear, etc., o que permitiria uma distinção entre uma periferia interna - que está subjacente, quando se fala dos bairros periféricos - e uma periferia externa, à qual, sem dúvida, se refere este curso.

O termo pode remeter também ao desafortunado e, certamente, nefasto modelo econômico de centro-periferia, que não possui nenhuma utilidade ao ser aplicado à análise do espaço urbano, ainda que fosse amplamente empregado alguma vez.

Nas cidades ocidentais, o centro é, com freqüência, um lugar de população marginal, isto é, periférica, neste modelo, e a periferia tem tido tradicionalmente características muito diferentes nas cidades espanholas e anglo-saxônicas: é o lugar de residência das classes ricas, no suburb norte-americano, e o lugar dos bairros populares, e ainda das favelas e da autoconstrução nos subúrbios de nossas cidades. Esta última noção parece estar presente para os organizadores do curso, quando, tratando de dirigir a atenção na direção correta, advertem que a periferia não é um Território a dignificar .

O objetivo do curso era mais amplo, e isto se compreende imediatamente ao ler o programa. Os objetivos explicitam a discussão das características dos agrupamentos periféricos e o desenho de infra-estruturas criadoras das ordens suburbanas; trata-se também de propor alternativas à dispersão urbana. Vale dizer que se aborda, em certo sentido, o problema do planejamento de todo o espaço periurbano nessa nova forma de urbanização que se conhece como cidade difusa, expressão que também aparece no programa.

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Difusa até onde? A resposta é importante para se conhecer a dimensão da tarefa. Também nos obriga a explicitar a definição de cidade da qual se parte, o que, como é conhecido, significa alguns problemas.

As definições propostas para os fatos urbanos têm sido de dois tipos: umas essencialmente operacionais e, em boa parte, de caráter estatístico: municípios acima de determinado volume de população; outras, de caráter teórico, têm posto ênfase nos diferentes aspectos da urbanização: desde a morfologia, a densidade e a presença de atividades não-agrícolas na cultura urbana ou a existência de um alto potencial de informação e interação.

Cada uma dessas definições pode conduzir a delimitações muito diferentes do espaço urbano. Tudo isto tem sido afetado pela mesma evolução do fato urbano, que tem conduzido à aparição de áreas metropolitanas, geralmente delimitadas com critérios estatísticos, funcionais e administrativos.

Na realidade, o problema da melhor definição de cidade e da delimitação da área urbana é insolúvel se não advertirmos de que se trata, como na regionalização, de um problema de classificação. Como tal, não existe uma única solução, como também não há uma solução ótima no abstrato, mas há soluções diferentes segundo os objetivos visados: os mesmos espaços podem ser ou não incorporados num certo grupo (cidade ou região) segundo critérios que sejam definidos em função de uma finalidade.

O arquiteto Gabriel Alomar fez, há algum tempo, a acertada observação de que a palavra cidade engloba na realidade três diferentes sentidos clássicos: o de urbe, com um sentido material oposto ao rus; o de civitas, como uma comunidade humana, complexo de grupos sociais e instituições; e o de polis, no sentido político e administrativo. Cada um destes sentidos permite uma caracterização e uma delimitação diferentes do

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urbano, desde o mais reduzido ao caráter estritamente morfológico até o mais amplo, de caráter administrativo - desde o subúrbio medieval até as áreas metropolitanas de hoje - ou cultural.

A conexão entre os processos de industrialização e desenvolvimento econômico, por um lado, e o desenvolvimento da urbanização, por outro; o aumento da mobilidade e acessibilidade, assim como a difusão das normas culturais e de comportamentos urbanos a todo o espaço das regiões industrializadas têm permitido estabelecer o conceito de cidade-região.

A antiga dicotomia campo-cidade se dilui agora no contínuo, que integra e conduz por gradações - como uma espécie de uma grande cadeia do ser urbano- todos os elementos do sistema de povoamento, e ainda os espaços altamente urbanizados com os mais distantes lugares do denominado rural profundo, que nos países industrializados estão também integrados ao sistema econômico, desempenhando funções específicas e entregues à influência urbana.

É esse o contexto que permite falar da cidade difusa; de uma difusão que, no caso de Barcelona, certamente se estenderia desde o Ebro aos Pirineus e que, numa delimitação mais estrita, conduziria a distinguir entre um espaço mais integrado e um espaço de relação comum mais ou menos freqüente. Os vários trabalhos sobre o assunto e a multiplicação de expressões como banlieu ou área suburbana próxima e distante, urban-fringe (com qualificativos como interior e exterior), Umland, urban shadow e outros, permitem comprovar as dificuldades das delimitações.

Em todo caso, a cidade difusa, a cidade-região, estende-se por um espaço que, no caso do limite externo da cidade de Barcelona, não tem mais de uns trinta ou talvez cinqüenta quilômetros de raio, sendo que alguns aceitariam cem quilômetros ou mais.

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É todo esse o espaço a planejar, como objetivo do curso? Tarefa enorme e talvez desmedida para responsabilidade única do arquiteto. Porque o interessante é que neste curso - sejam quais forem os professores que dele participem - é sem dúvida o arquiteto quem assume essa responsabilidade. Isto se pode afirmar não somente porque o curso está organizado por arquitetos e destinado em grande parte a eles mas também porque no programa se explica que é na margem da cidade que uma série de autores, todos eles arquitetos, têm imaginado os novos territórios arquitetônicos.

Territórios arquitetônicos: curiosa e significativa expressão! Poder-se-ia talvez falar de territórios urbanísticos. Mas essas expressões e, em particular a segunda, oferecem muitos perigos, já que são territórios a serem ocupados corporativamente.

É uma situação surpreendente a que se dá hoje, na qual os engenheiros calculam as estruturas dos grandes edifícios e os arquitetos se preocupam com as infra-estruturas e o desenho do território e, ao mesmo tempo, disputam com os primeiros o campo do planejamento, como se procurassem destacar o valor que expressa um dos vocábulos que designa sua profissão: architéktón, o primeiro técnico.

Por meio da linguagem, através dessa inocente união de um substantivo e um adjetivo (territórios arquitetônicos ), intenta-se realizar uma apropriação do espaço de caráter corporativo e, em especial, desde logo, de uma forma inconsciente, converte-se numa tarefa controlada por arquitetos, o que teria que ser, e sem dúvida é, um empreendimento coletivo e pluridisciplinar.

O curso parece ter sido criado para o arquiteto urbanista, esquecendo o engenheiro urbanista e o sociólogo urbanista, por referir os que cita Van Eestern no número 8 de UR. Talvez se devesse procurar incorporar os outros especialistas, numa visão mais integradora.

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III Do espaço periférico das metrópoles, o que interessa neste

curso é o território, sobretudo o território vazio, no qual é possível deixar voar livremente a imaginação. São espaços, afirma-se no programa, sugestivos, sobretudo pelo que não se tem feito ainda. São interessantes por essa flexibilidade, o que faz destes o lugar da invenção de formas e tipos urbanos. São o território ativo do projeto da cidade contemporânea. A periferia é, assim, o lugar da indeterminação, como verbalmente se manifestaram os organizadores, no momento de fazer-me o convite para esta conferência.

A pergunta que podemos formular agora, e à qual dedicarei o restante da conferência é: trata-se realmente de um espaço de indeterminação?

Ninguém discutirá que se pode projetar muito mais facilmente num espaço periférico que no interior da cidade. Não parecem existir limitações à imaginação de novas formas e de novos agrupamentos urbanos.

No entanto, talvez fosse muito bom que o arquiteto aproximasse suas intervenções de uma visão clara das determinações ambientais que existem, para atuar num espaço no qual os dados naturais, a evolução histórica e as estruturas sociais têm construído um complexo sistema de articulações que, por um lado, vão influir de forma contundente ou não sobre seu trabalho e que, por outro, deveriam ser tidas sempre em consideração para conseguir obras mais condizentes com o meio no qual são produzidas.

As intervenções na periferia teriam que se realizar sempre tendo em conta estas idéias: primeiro, a área que rodeia as cidades é uma das mais críticas da Terra; segundo, é um espaço de conflitos no qual qualquer ação beneficiará uns ou outros

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agentes e poderia ter efeitos imprevisíveis e irreversíveis ou, em todo caso, de difícil correção.

III.1 É uma das áreas mais críticas do Globo porque em poucas

partes da superfície terrestre existem espaços que: 1) tenham conhecido uma tão longa e intensa evolução histórica; 2) possuam tal diversidade e combinação de uso do solo; 3) tenham o meio natural submetido à ação de tão intensas pressões.

Por definição, os espaços nos quais se assentam as cidades e suas áreas periféricas são os de mais antigo e intenso processo de humanização, isto é, de transformação de uma paisagem natural numa paisagem humanizada.

Nos países de culturas velhas, em todos os continentes, os assentamentos humanos a partir dos quais se têm desenvolvido as cidades remontam freqüentemente ao período neolítico e mais além. Nos casos de fundação urbana mais recente - digamos, na Idade Moderna e Contemporânea – as cidades têm sido, geralmente, os primeiros núcleos de assentamento e de irradiação colonizadora.

A partir das cidades se tem organizado antecipadamente o espaço agrícola circundante, tanto econômica quando social e politicamente. A instalação de cidadãos na periferia, seja como colonos agrícolas ou em casas de férias, não é um fato recente; é uma tradição antiga que já está presente nas cidades romanas e, mais tarde, nas renascentistas, o que deu lugar à construção de vilas e chácaras, que cedo estabeleceram uma marca do uso do solo urbano no meio agrário.

Mas as transformações da periferia urbana foram mais profundas a partir do século XIX, com a expansão das cidades, a acessibilidade gerada pelo trem e o automóvel, o estabelecimento do telégrafo e o telefone - que permitiram,

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desde os anos de 1860, a instalação de indústrias na periferia conectadas com suas centrais - e com o deslocamento de usos de solos urbanos fora das cidades.

Desde o século XIX, o espaço periférico tem sido crescentemente integrado à cidade, num processo que se tem intensificado durante o último meio século e que se reflete nas mudanças da terminologia utilizada.

Nos primeiros estudos realizados sobre o espaço periférico este era denominado com nomes jurídicos de ressonância medieval (banlieu, alfoz), com outros que expressavam inferioridade e submissão (suburb, suburbano, termos que remetem também aos medievais suburbia), que faziam referência a seu caráter intermediário entre o urbano e o rural (rur-urbano); mais tarde se passou a nomeações neutras, que se referiam simplesmente à localização próxima à cidade (urban-fringe, periurbano), até chegar finalmente a dispersed-city, ville éparpillée ou cidade difusa, e a cidade-região. A vida urbana se difunde na região por meio de processos de ex-urbanização e a antiga dicotomia cidade-campo se dilui num contínuo rural-urbano.

A longa evolução tem deixado sua marca na organização do espaço, na toponímia, na paisagem; as intervenções no território, uma vez realizadas, possuem efeitos duradouros.

No espaço periurbano, como na cidade de interior, o continente pode se manter apesar das mudanças de conteúdo. As medidas romanas (centúrias) refletem-se ainda nitidamente nos agrupamentos que rodeiam algumas cidades italianas ou espanholas (por exemplo, Elche).

A estrutura da propriedade atual deriva também de um passado que se viu afetado, no caso espanhol, pela reconquista medieval, que significou a expulsão dos muçulmanos e a repartição das suas terras, assim como, sucessivamente, pelos investimentos do patriciado urbano, pela criação de patrimônios

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eclesiásticos e nobiliários, pelos processos de subdivisão da propriedade privada, seguidos esporadicamente por novas concentrações, pelas sucessivas desamortizações do século XIX e pela aplicação de melhorias técnicas nos últimos séculos da revolução agrícola, além das mudanças na propriedade geradas pelas expectativas do crescimento urbano.

A subdivisão atual das terras é um palimpsesto no qual é possível reconhecer ainda as marcas do passado, às quais se deveria dar atenção.

As mesmas vias de comunicação e os modelos associados de acesso possuem suas raízes no passado - por exemplo, vias romanas refletidas em traçados atuais ou, mais próximo ainda, como a rede de estradas e pontes dos século XVIII e XIX, ou a rede ferroviária; e também se herda do passado - entre outros elementos condicionantes - a estrutura dos núcleos de povoamento nos quais, com freqüência, se terão que apoiar ao se desenhar o ordenamento geral do espaço.

O resultado da longa evolução histórica e das forças que têm atuado sobre a periferia urbana é a causa da sua complexidade. As classificações desse espaço nos estudos geográficos e urbanísticos tratam de dar uma idéia daquela complexidade. Os critérios utilizáveis são muitos, a morfologia e a densidade da ocupação, as funções e os usos do solo, a composição da população residente, a mobilidade e as direções de fluxos, a vida social, as estruturas administrativas e de planejamento, a dimensão dos valores culturais.

Um fato especialmente significativo é a heterogeneidade e a combinação de usos do solo. Usos muito diferentes coexistem junto aos outros. É desnecessário enumerá-los: desde o terreno construído com elevada densidade até os lotes industriais, lixões, áreas agrícolas e espaços naturais. Sem dúvida, a maior complexidade de usos combinados do solo que se pode observar na Terra.

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Aparentemente, a distribuição destes usos parece obedecer ao acaso, mas a análise histórica permite descobrir que não existe nada incoerente ou aleatório, mas sim uma lógica cujo descobrimento é uma das tarefas mais importantes do estudioso desses espaços, tanto no que se refere à estrutura da propriedade e às estratégias dos proprietários do solo quanto aos condicionantes físicos ao crescimento do espaço, passando pelos ciclos de expansão e estabilidade, ou pelas decisões administrativas.

O resultado tem sido, às vezes, a proximidade de usos pouco compatíveis ou incompatíveis, a presença de instalações dirigidas pela lógica do benefício a curto prazo e que produzem desaquecimentos na economia que afetam outros usuários ou a coletividade.

A existência de incompatibilidades e a má administração assinalam que os usos do solo não estão simplesmente justapostos, mas sim que são interativos. Um complexo sistema interativo dos usos do solo, entre si e com a parte central da cidade, condiciona a estrutura geral da metrópole e sua evolução futura.

O sistema interativo da periferia urbana possui diversas dimensões: natural, econômica, cultural, social, política, perceptiva. Como é impossível me referir a todas no limite desta conferência, centrar-me-ei em somente uma delas.

Dispensarei a atenção no que podemos denominar o meio natural. Convém advertir, primeiramente, que esse meio natural não existe na realidade. Todos os espaços naturais próximos à cidade - e, de fato, todo o espaço nos países industrializados - têm sido afetados pela atividade humana durante milênios. Existem espaços nos quais a atividade humana está menos presente (bosques, áreas pantanosas e lacustres, montanhas, etc.), os quais podemos considerar quase naturais.

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Esse meio natural é um ecossistema interativo, com suporte rochoso, água, clima, solo e organismos vivos (microorganismos, animais e plantas), afetado, outrossim, pela intervenção humana. A atuação sobre algum dos componentes afeta também os outros e, por cadeias de retroação, recai novamente sobre ele mesmo. As intervenções de agentes sociais com visões estreitas podem provocar mudanças importantes, e muitas delas imprevistas.

A enumeração das intervenções humanas que se realizam sobre o meio natural dos espaços periféricos, em alguns dos seus efeitos, dão lugar a uma numerosa lista: lixões e contaminação de lençóis freáticos; águas residuais com efeitos semelhantes; depuradoras e contaminação do litoral; extração de areias dos leitos fluviais com efeitos sobre os cursos dos rios; infra-estruturas de comunicações (estradas, por exemplo) que atuam como barreiras e modificam as drenagens; ocupação do leito principal e margens arenosas dos rios, afetando a drenagem das avenidas; desaparecimento ou retirada dos bosques por derrubadas ou por incêndios provocados; extração de águas e fenômenos de subsidência, com afundamentos de até oito a dez metros; extração de areias e formação de ribanceiras inundáveis, exploração de canteiro e mudanças morfológicas; aterramento de áreas pantanosas e lagoas litorâneas; envenenamento do solo pela atividade industrial; deterioração ambiental pela circulação de motos e Jeeps nos esportes de trail; aterros para construir casas ou indústrias e mudanças na circulação das águas; construção sobre terrenos pouco compactos e deslizamentos; modificação da flora e da fauna com o desaparecimento das espécies nativas e a introdução de outras, etc.

Tudo isto sem contar que as cidades e a atividade industrial associada a elas constituem a mais importante fonte de contaminação em escala mundial.

Ainda temos que incluir as atuações sobre o espaço agrícola, um elemento do ecossistema humano que é também essencial ao equilíbrio ecológico do planeta. A importância da

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preocupação com o desaparecimento do solo agrícola em torno da cidade deriva do fato de que, em geral, constitui o melhor solo cultivável da Terra.

As cidades, no passado, não podiam subsistir se não contassem com um cinturão agrícola que assegurasse a alimentação de uma população que - e isto é uma característica essencial do urbano - não produzisse os próprios alimentos. As cidades mais importantes e, em particular, as que se converteriam em capitais imperiais, asseguravam-se uma ampla área de produção, e todas contavam com um abastecimento próximo, isto pelas dificuldades de transporte. Em geral, as que cresciam dispunham de bons solos próximos na sua região, e viviam em simbiose com o meio agrícola. Por isso, podemos dizer que, por definição, são esses os bons solos e que têm sido, além disso, melhorados pela atividade humana secular.

É possível afirmar que o desaparecimento do solo agrícola nas periferias urbanas constitui uma catástrofe. Em especial, a urbanização e a criação de cidades-jardins nos férteis campos mediterrâneos, com seus bons solos aluviais e toda sua carga histórica, constituem um fato grave, que deveria ser evitado, se isto fosse possível ainda. É evidente que não se consegue manter o solo agrícola como algo residual e fossilizado entre os usos urbanos, pois o espaço agrícola perderia a continuidade e o valor ao ser fragmentado.

É imprescindível, portanto, uma adequada gestão ambiental, com uma visão global dos problemas. Não se trata somente de conservar ambientes agradáveis para utilização dos cidadãos. Os espaços naturais e agrícolas próximos às cidades são os mais acessíveis e, por isso, os mais necessitados de proteção. Há que considerá-los como um recurso ameaçado por transformações irreversíveis.

Desafortunadamente, as soluções nem sempre são fáceis no que se refere ao conflito com a atividade humana e à

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conservação da natureza, ou ao espaço agrícola periférico. Ainda, a forma de enfrentar estes problemas é afetada pela tomada de posições prévias, nas quais - para terminar de confundir as coisas - não é certo que sempre as atitudes conservacionistas sejam sempre as mais corretas, hoje inspiradas nos denominados movimentos ecologistas e, talvez, numa avaliação ideológica do campo e do espaço rural de caráter conservador.

Frente a isso existe outra questão relacionada, por fim, com o antropocentrismo crítico, que considera o homem como rei da criação, aperfeiçoando a obra do criador, uma atitude que historicamente tem muito a ver com a idéia de progresso e com a aceitação da possibilidade do progresso, idéia decisiva na história dos povos europeus.

Em Barcelona, na Real Academia Militar de Matemáticas realizou-se uma das mais contundentes e impressionantes formulações dessa atitude positiva e otimista, num dos momentos em que a confiança nas forças e na capacidade dos homens para atuarem sobre a natureza coincidia com a crítica ilustrada, que minava as bases do providencialismo cristão. Durante o século XVIII, nesse centro de engenheiros, aprendia-se, segundo estabelece o Regulamento de 1739, a transformar com a arte os defeitos da natureza.

Essa concepção, que fora naquele momento e durante o século XIX patrimônio de todos os engenheiros, aceita que o homem pode melhorar o meio atuando sobre a natureza, isto é, levantando pontes, construindo portos, abrindo canais, edificando represas, etc.

Também os arquitetos mostram, no nosso século, essa mesma atitude otimista, quando confiam - como o fez Cornelio Van Eestern - que o desenho poderia conseguir para o homem com ajuda dos meios modernos, um belo paraíso (UR, nº 7), ainda que a continuação dessa frase manifeste suas dúvidas, não a respeito da capacidade humana mas sobre o resultado da sua atuação:

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toda a Terra foi construída pelo homem. Também a Natureza. Para o bem ou para o mal?

O desenho adequado ao planejamento se converte na resposta-chave. A responsabilidade do arquiteto - como a do engenheiro, de outros técnicos e cientistas - passa a ser outra vez enorme. Em qualquer caso, o desenho é - para utilizar novamente palavras de Van Eestern - uma questão de ética e moralidade. Uma ética, na qual, sem dúvida, há que se incluir o respeito e a conservação da natureza, mas na qual também se devem considerar as profundas modificações que, através da biotecnologia e da engenheira genética, podemos introduzir na sua gestão, e há a possibilidade real de dispor de uma agricultura de alta produtividade, independentemente do clima, através do cultivo em estufas, utilizando solos pobres ou artificiais.

III.2

Poderíamos continuar referindo-nos a outras dimensões

citadas do sistema interativo, que atua no espaço periférico - além do natural, econômico, cultural, social, político ou perceptivo -; no entanto, é impossível fazê-lo no limite desta conferência. Em todas elas, esse espaço, pela heterogeneidade e diversidade de usos e de forças que pressionam, aparece sempre como um lugar de conflito, pelo fato de que, como escreveu o geógrafo Joan Eugeni Sánchez, o espaço tem polifuncionalidade potencial mas monofuncionalidade efetiva. Qualquer espaço pode converter-se em qualquer uso, mas, uma vez adquirido, ele não pode possuir, ao mesmo tempo, mais do que uma função, podendo ser remodelado para adquirir outra função.

Os conflitos mais importantes referem-se ao controle da propriedade, cuja estrutura e possessão determinam com

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freqüência os usos futuros do solo nas periferias urbanas. Disso vêm, certamente, as determinações mais significativas que afetam a geração dos territórios arquitetônicos.

O arquiteto intervém, com efeito, no momento do planejamento para pôr o produto (casa, infra-estrutura comercial, bairro industrial, etc.) à disposição do consumidor final. Mas, antes disto, que quantidade de agentes intervieram, quantas estratégias foram desenhadas, quantas decisões tomadas!

Quanto aos agentes, sem dúvida é desnecessário citar os arquitetos que participaram do processo de expansão urbana e da organização da periferia, porém é necessário lembrar, pelo menos, outros agentes: desde o proprietário inicial (grande ou pequeno, rural ou urbano, privado ou institucional, local ou forasteiro, especulador ou com objetivos de reutilização, etc.) até os agentes ativos nesse processo (empresários, políticos, banqueiros, especuladores, proprietários, advogados, planificadores, imobiliárias, corretores, etc.).

Os objetivos, a curto ou longo prazo, são também variados: não sabemos quantas instalações industriais, comerciais (hipermercados e estacionamentos associados) ou de lazer (campos de golfe, campings ou acampamentos de trailers) se têm instalado com vistas à sua transformação futura em usos mais rentáveis.

Também desconhecemos, com freqüência, que estratégias têm sido adotadas quanto à oferta do solo nos loteamentos, que interesses e que forças têm afetado o processo planificador.

A realidade é que o mercado do solo é pouco transparente e a oferta constitui somente uma parte do solo disponível, e a intervenção das instituições públicas se vê afetada também por interesses e estratégias contraditórios; por exemplo, entre os níveis municipal, regional, estadual e federal. Finalmente, o mesmo planejamento é influenciado por múltiplas

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determinações derivadas da estrutura da propriedade e das estratégias de diversos agentes. Estas últimas estão, por sua vez, influenciadas por determinações prévias referentes ao traçado, que resultam da evolução histórica, da localização da infra-estrutura, da proximidade ou distância, a respeito de usos pouco compatíveis ou desagradáveis (indústrias, lixões, bairros populares de autoconstrução, etc.) e, em geral, por uma percepção do espaço que lhe atribui valores.

É difícil desconhecer que são numerosas as determinações que afetam tanto o arquiteto quanto o engenheiro, quando se enfrentam no seu trabalho, e que este trabalho se vê, desde o início, seriamente influenciado por eles. Algumas são claras: forma e dimensão dos lotes que condicionam o desenho; características dos usuários a que se destina a obra, por exemplo, níveis de renda ou de cultura, acessibilidade; determinações administrativas (fiscalização municipal) ou de planejamento, com qualificações prévias, etc. Outras, no entanto, são mais sutis e invisíveis: trata-se das determinações intelectuais que dirigem o próprio processo de criação e que o condicionam, previamente, a uma ou outra direção.

Ao contrário do que gostam de pensar alguns cientistas e técnicos, entre os quais os arquitetos, decididos admiradores da obra individual - o trabalho intelectual está socialmente determinado. Já tive oportunidade de falar disto no início da conferência. A análise histórica das obras arquitetônicas e dos projetos urbanísticos permite mostrar o domínio sucessivo de ambientes intelectuais que influem na criação individual e que se refletem nos chamados estilos. Também isto se percebe nas mudanças das idéias urbanísticas.

Na recente evolução do urbanismo, por um lado, a crise do planejamento funcionalista, estruturalista e sistêmico, de clara vinculação neopositivista, que apresentara suas propostas com certezas inquestionáveis, as quais deviam ser inevitavelmente aceitas pelos políticos e pela sociedade em geral, deixou vestígio

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na segunda metade dos anos setenta e nos anos oitenta, e por outro, as novas tendências antipositivistas e historicistas conduziram a um urbanismo denominado pós-moderno, o qual levou muitos arquitetos a questionarem a antiga forma de planejamento e, ainda, sua necessidade e possibilidade.

Do mesmo modo, são mutantes as avaliações da paisagem, muito importantes desde o ponto de vista do planejamento. Para perceber uma paisagem é necessário construí-la, escreveu um filósofo, e essa construção mental da paisagem agrária ou natural destaca elementos diferentes ao longo do tempo ou, segundo tradições culturais, de acordo com os gostos estéticos, o ambiente intelectual e as condições sociais que permitem, por exemplo, transitar com ou sem segurança - e por isso com ou sem medo - por espaços montanhosos ou desabitados. Para se avaliar os espaços periféricos de forma positiva ou negativa, considera-se a carga de apreciação ou rejeição aos espaços naturais ou agrícolas que rodeiam as cidades.

IV

Chegamos ao fim desta conferência. Tenho procurado

mostrar que o arquiteto deve abordar seu trabalho não como se estivesse atuando num espaço indeterminado, mas, ao contrário, tendo plena consciência da existência de múltiplas determinações. Esse profissional deve descobri-las sozinho ou com ajuda de outros especialistas, para deixar-se levar ou adaptar-se a elas ou para tratar de contestá-las. Nisso, em definitivo, consiste o planejamento.

E, dito isso, talvez valha a pena, considerando o ambiente intelectual dominante nos últimos anos, terminar com argumentos favoráveis ao planejamento. Certamente foi útil a crítica feita no início dos anos oitenta contra os rígidos

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documentos de planejamento, nos quais tudo parecia estar previsto de antemão, onde a aparente complexidade dos estudos e propostas dos eruditos dissimulavam com freqüência opções previamente adotadas, nas quais não existiam mecanismos para resolver os conflitos não previstos pelo próprio planejamento e em que a burocracia administrativa parecia impedir, com seu estrito legalismo, um processo continuado de tomada de decisões urbanísticas.

Mas as oposições contra o plano e os chamados sistemas de planejamento cooperativo puderam terminar, algumas vezes, em negociações, conduzindo a um inaceitável desprezo da legalidade e das formalidades administrativas, além de produzir visões parciais e fragmentadas.

É necessário voltar, novamente, a uma visão global do planejamento integrado a longo prazo, que leve em conta a distribuição eqüitativa dos fatos externos negativos que geram certos usos, e as positivas, por outro; que prevejam os efeitos da aplicação de novas tecnologias, as quais vão produzir - ou estão produzindo - mudanças na localização dos usos agrários, industriais, comerciais, de serviços, residenciais e de lazer, tanto na escala internacional quanto na nacional ou local; que modere e mantenha dentro de certos limites a aplicação de técnicas agressivas que modifiquem o meio natural; que respeite o patrimônio histórico; que antecipe os efeitos da definição de usos realizados de forma individual; que seja uma garantia de proteção contra os mais fracos; que crie novas oportunidades de escolha entre estilos de vida diferentes; que, em definitivo, organize o espaço a serviço da comunidade, sem confiar que somente a mão invisível do mercado e das decisões individuais gerem uma organização correta.

Trata-se de uma tarefa coletiva e interdisciplinar, para a qual, sem dúvida, este curso está contribuindo, de certo modo.

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Em todo caso, no que diz respeito estritamente ao desenho urbanístico dos novos bairros a serem construídos nas periferias, estou convencido de que neste curso foi assinalado um caminho correto. Mesmo que eu não tenha assistido a todo ele, a leitura dos dois últimos números de UR (7 e 8), e a admiração que Manuel Solá-Morales e outros membros do LUB sentem por Cornelio Van Eestern e por Ludovico Quaroni, permitiram que eu aprendesse muito a respeito do que, avalio, foi o objetivo do curso e a tarefa a que se propõem os jovens arquitetos-urbanistas.

Penso terminar esta conferência destacando três idéias que encontrei na leitura dos dois últimos números de UR e que creio diretamente relacionadas a algumas das preocupações expressas aqui.

Em primeiro lugar, e acima de tudo, a dimensão ética do desenho, concretizada muito bem por Cornelio Van Eestern. Uma ética que não se pode entender de modo abstrato, como a procura de um bem universal, e sim como a procura do bem dos homens, como fim em si mesmo, perfeito e suficiente, do mesmo modo como fala Aristóteles em sua Ética Nicomáquea.

Em segundo lugar, uma atitude racional e científica, rigorosa mas também flexível e não dogmática. Um racionalismo com um elevado conceito da importância das nuances no desenho da rede urbana, e do respeito ao meio físico e histórico, quer dizer, plenamente consciente das determinações existentes. A atitude racional não pode estar travestida de cientificidade e objetividade para pretender impor suas propostas como indiscutíveis e, assim, poder ocultar os conflitos e os jogos de interesses. Deve-se estar disposto a elaborar alternativas diferentes e a discuti-las com os agentes e atores sociais, como o fez Ludovico Quaroni durante os dez anos que durou a elaboração do plano geral de Bari.

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Finalmente, penso que seja importante a crítica à monotonia e à rigidez do urbanismo racionalista, sem renunciar ao racionalismo, bem como à procura de novos desenhos que, sem abdicar do rigor, procurem integrar a repetição do tipo modular com as formas mais livres e expressivas, que se preocupam com a realização entre o projetado e o espontâneo, entre a multiplicidade e a individualidade, o que Ludovico Quaroni formula numa regra, a qual certamente é compartilhada por todos os organizadores deste curso: numa arquitetura não reduzida a um pequeno edifício é necessário um elemento ou um sistema unificante, combinado com outro elemento ou outro sistema diversificante. Neste sentido, a observação dos processos de crescimento na natureza, em especial os das estruturas repetitivas e diversificadas, poderiam constituir uma interessante via de reflexão.

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