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A dinâmica da agressividade em sala de aula : umaleitura possível e necessáriaArchangelo, Ana; Luz, Tagiane Maria da Rocha
Veröffentlichungsversion / Published VersionZeitschriftenartikel / journal article
Empfohlene Zitierung / Suggested Citation:Archangelo, Ana ; Luz, Tagiane Maria da Rocha: A dinâmica da agressividade em sala de aula : uma leiturapossível e necessária. In: ETD - Educação Temática Digital 13 (2011), 1, pp. 258-268. URN: http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0168-ssoar-286277
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© ETD – Educ. Tem. Dig., Campinas, v.13, n.1, p.258-268, jul./dez. 2011 – ISSN 1676-2592.
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CDD: 150.195
A DINÂMICA DA AGRESSIVIDADE EM SALA DE AULA:
UMA LEITURA POSSÍVEL E NECESSÁRIA1
THE DYNAMICS OF AGGRESSIVENESS IN THE CLASSROOM:
A POSSIBLE AND NECESSARY ANALYTICAL APPROACH
Ana Archangelo2
Tagiane Maria da Rocha Luz3
Resumo
Este artigo aborda a agressividade em sala de aula. É resultado de uma pesquisa realizada com um
aluno de segunda série (atual terceiro ano) de uma escola pública localizada em um bairro vulnerável à
exclusão social, em uma cidade do interior do estado de São Paulo. A investigação foi realizada
mediante observação em sala de aula, visita domiciliar, entrevista com familiares e encontros com a
criança. Nesses encontros, a criança podia brincar, ler, desenhar, pintar ou simplesmente falar e
conversar com o pesquisador. Foi possível perceber que a agressividade estava relacionada à não
superação de mecanismos mentais primitivos, próprios da posição esquizo-paranoide, descrita por
Klein. O artigo ressalta a necessidade de analisar tal quadro em função dos processos de exclusão
social vividos pela criança e por sua família. Ressalta ainda algumas dificuldades enfrentadas pela
escola e possíveis intervenções da instituição com a criança.
Palavras-chave: Psicanálise em educação. Agressividade. Sala de aula. Exclusão social.
Abstract The article addresses aggressiveness in the classroom and examines a case of a boy in his third school
year (former 2nd grade) in a state school in a neighborhood vulnerable to social exclusion in a city in
the interior of São Paulo. The investigation comprised direct observation in classroom, visits to his
home, interview with family members and individual meetings with the child. During the meetings the
child was free to play, read, draw, paint, or simply talk and chat with the researcher. A connection
between aggressiveness and a failure to overcome primitive mental mechanisms typical of the
schizoid-paranoid condition described by Klein was perceptible. The article underscores: the need to
analyze that condition in the light of the processes of social exclusion experienced by the child and its
family. It also highlights difficulties faced by the school itself and possible interventions on the part of
the institution in the child’s situation.
Keywords: Psychoanalysis in education. Aggressiveness. Classroom. Social exclusion.
1A primeira versão deste artigo está nos Anais do Fórum de Extensão da Faculdade de Ciências e Tecnologia da
Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente, 2003, com o título “Aspectos mobilizadores da
agressividade em sala de aula”. Alguns trechos foram suprimidos e outros acrescentados na presente versão. 2 Professora Doutora do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas. E-mail: [email protected] – Campinas, São Paulo, Brasil. 3 Doutoranda em Educação na Faculdade de Educação/Unicamp. E-mail: [email protected] –
Campinas, São Paulo, Brasil.
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INTRODUÇÃO
A capacidade de ler a realidade depende de diversos fatores. No meio educacional,
um dos mais valorizados diz respeito ao domínio de certo corpo de conhecimento, capaz de
iluminar o entendimento de determinados processos, em especial aqueles considerados
diretamente relacionados ao desenvolvimento e à aprendizagem.
Este artigo não nega a relevância de tal instrumental, mas propõe uma perspectiva
distinta. De um lado, sugere a necessidade de um corpo teórico adicional, que redimensione a
dinâmica cognitiva e a dinâmica de sala de aula à luz da dinâmica afetiva à qual as primeiras
se relacionam. De outro, aponta para a urgência da elaboração de um instrumental interno por
parte daqueles diretamente ligados à tarefa de ensinar e/ou de entender os obstáculos
subjacentes a ela.
Sabe-se que, atualmente, o ambiente escolar comporta crianças com diferentes
experiências culturais, educacionais e afetivas. As recentes políticas de inclusão têm
aumentado a expectativa de permanência de crianças antes excluídas muito precocemente e,
assim, têm contribuído com um sensível aprofundamento da heterogeneidade nas salas de
aula.
Longe de condenar as iniciativas inclusivas, é fundamental, contudo, que se discuta
essa nova organização escolar e que se indague a respeito das demandas surgidas a partir dela.
Além disso, é preciso saber até que ponto os sujeitos envolvidos na educação escolar estão
habilitados a compreendê-las e atendê-las. Em outras palavras: a instituição escolar tem sido
capaz de ler sua nova realidade?
Este artigo é resultado de um esforço dessa natureza. Esforço de entendimento da
dinâmica de uma criança cuja agressividade consiste no aspecto desestabilizador de sua
relação com a instituição. Ela também apresenta dificuldades de aprendizagem e é, portanto,
considerada vulnerável à exclusão escolar. O texto discorre sobre como pode ser explicado, a
partir da contribuição da psicanálise, o comportamento agressivo desse aluno e sobre a
possibilidade de intervenção.
UMA BREVE APRESENTAÇÃO DA CRIANÇA
O trabalho foi desenvolvido em 2003, em uma escola pública municipal de
Presidente Prudente, no estado de São Paulo. A criança (L) foi observada tanto em suas
atividades em sala quanto em situações de encontro individual com a pesquisadora e uma
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estagiária. Algumas visitas domiciliares e entrevistas com a mãe e com a bisavó de L também
foram feitas, além de entrevista com a professora.
L estava na segunda série, tinha oito anos, vivia com sua mãe e seus quatro irmãos na
casa de sua bisavó, em condições extremamente precárias, juntamente com seu avô, alguns
primos e outros agregados. Durante o desenvolvimento do trabalho, foi retirado da companhia
da mãe em virtude de denúncia aparentemente feita por um médico ao Conselho Tutelar, e
justificada pelos riscos de vida que a irmã menor corria. Sua guarda foi transferida para um
abrigo, onde passou a viver com uma “mãe social” e com algumas outras crianças, separado
de três de seus quatro irmãos. Mais tarde, em virtude da dificuldade de relacionamento entre
ele e a mãe social, foi transferido para outro abrigo, sob a responsabilidade de outra pessoa,
longe também da irmã com quem ainda mantinha algum contato. Desse momento em diante,
foi transferido de escola, sendo interrompida sua participação na pesquisa. Para que esse
afastamento não fosse confundido com os processos recorrentes de ruptura pelos quais passou
em diversas situações, L foi visitado pela pesquisadora em sua nova escola.
Na escola em que o trabalho foi desenvolvido, L era conhecido por sua dificuldade
de aprendizagem, mas, principalmente, por sua fama de “briguento”. Apesar de frequentar a
segunda série, não dominava letras nem números. Costumava recusar atividades relacionadas
à alfabetização, situação que a professora tentava contornar oferecendo-lhe jogos ou desenhos
para colorir. Alguns alunos conversavam e brincavam com ele, mas afastavam-se, com
frequência, após apenas alguns minutos, pois eram alvo de suas agressões físicas.
O empenho da professora em entendê-lo era visível. Esforçava-se ao máximo para
atender às necessidades particulares de L. Procurava ajudá-lo em algumas tarefas, conversava
com ele, liberava-o de algumas atividades quando percebia seu esgotamento. No início da
pesquisa, tinha um laço afetivo evidente com L, e dizia perceber algumas mudanças positivas
em suas atitudes. Tal laço foi pouco a pouco se desfazendo, coincidentemente a partir do
período em que a guarda de L passou para o primeiro abrigo.
Alguns aspectos da dinâmica de L ultrapassavam a capacidade de compreensão da
professora e, em muitos casos, sua capacidade de tolerância. Um desses aspectos era a
agressividade. Sempre repetia que “não sabia mais o que fazer”.
L era, realmente, agitado e agressivo. Costumava derrubar carteiras e colegas, dando
rasteiras em crianças que se aproximavam dele. Tais reações não eram necessariamente
motivadas pelas atitudes dos colegas: também agredia quem estivesse quieto, dando bofetões
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e proferindo insultos verbais. Depois de transferido para o primeiro abrigo, passou a carregar
pedras nos bolsos e a ameaçar colegas e professoras com elas. Costumava dizer que as
crianças implicavam com ele, mesmo que estivessem envolvidas em atividades
completamente alheias a ele.
Apesar de tudo, L não despertava apenas terror, mas também fascínio. Mantinha
também um relacionamento estável com uma colega de sala e estabeleceu um vínculo
positivo com os pesquisadores, ainda que tumultuado no início. Tinha sorriso franco e olhar
terno, capazes de provocar profunda empatia em frações de segundo, tempo também
suficiente para desaparecerem sob a sombra de palavrões, movimentos bruscos e olhares
hostis e fugidios.
ALGUNS FUNDAMENTOS NECESSÁRIOS
A lógica que rege tais oscilações de atitudes, aparentemente sem sentido, comporta
uma dinâmica que envolve mecanismos internos, em grande parte inconscientes, que
precisam ser desvelados, sob pena de fazer-se impossível qualquer ajuda que se queira dar ao
sujeito e da qual este, evidentemente, necessita.
Embora preocupados com o que ocorre no “aqui e agora” da experiência de cada
sujeito, bem como com as possibilidades de intervenção educativa, alguns fundamentos sobre
a constituição do psiquismo humano podem vir em nosso auxílio. Sem dúvida, todos somos
seres dotados de agressividade. Tal característica nos torna aptos a lutar por alguma
necessidade e a proteger alguém ou a nós mesmos do perigo. Mas também nos torna seres
temíveis. Tememos a capacidade agressiva do outro e a nossa própria – essa, talvez ainda
mais.
Ao procurarmos entender a agressividade, deparamo-nos com indagações relativas a
sua origem e natureza. De onde vem? Como interage com as condições ambientais? É
passível de educação?
Para Klein (1991), o ser humano é tomado por ansiedade desde o nascimento, e a
tarefa de todo o processo de desenvolvimento é a de criar condições suficientes para que o
psiquismo as acolha e elabore. Segundo a autora, a ansiedade predominante no início da vida
já nos remete à capacidade agressiva que nos ronda, externa e internamente, e está relacionada
ao medo inconsciente de ser destruído. Nessa fase inicial da vida, segundo Klein (1991), o
bebê interage com os objetos (internos e externos) a partir do que ela chama de posição
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esquizo-paranoide. Nesta, o objeto com o qual o bebê se relaciona é cindido, ou seja, dividido
entre objeto bom e objeto mau. O mesmo objeto, partido em dois, mantém o objeto amado
(personificado na mãe gratificadora ou no seio que alimenta) separado do objeto perigoso e
odiado (personificado na mãe que frustra e no seio ausente).
A mãe ausente significa para o bebê uma recusa de gratificação, ou seja, um ataque.
Por isso, o bebê experimenta o ódio e o ressentimento. Tais sentimentos atuam internamente,
levando o bebê a desejar estragar e envenenar o objeto frustrador. E, de certa forma, é isso
que ele faz. Em fantasia, o bebê destrói o objeto de seu ódio, ainda sem saber que este é o
mesmo de seu amor. Contudo, tais fantasias de destruição mobilizam também fantasias de
perseguição, ou seja, o bebê sente medo de ser perseguido por aquele objeto que atacou. Teme
sofrer um ataque retaliador e, nesta posição, para se defender, ataca novamente. A cada
projeção de sua agressão sobre o objeto, a fantasia de perseguição aumenta, potencializando o
temor em ver destruído o próprio self. A esse temor, Klein (1991) dá o nome de ansiedade
persecutória.
Se esse processo não contasse com outros aspectos determinantes, todos nós
sucumbiríamos diante das fantasias ameaçadoras e teríamos apenas atitudes hostis e
agressivas frente ao mundo. O fato é que, ao mesmo tempo que o bebê se relaciona com esse
objeto mau, está em cena a outra parte do objeto cindido, que aglutina aspectos bons e
gratificadores. A mãe que nutre, acolhe, acalenta e aquece é responsável pelo contraponto
àquele objeto ameaçador e destruidor. Ou seja, ainda que sua fantasia seja a de receber de
volta todo o ódio projetado sobre o objeto, este, de fato, pode oferecer algo menos ameaçador,
e vir em sua direção como um tranquilizador.
Isso reassegura que, apesar de seus ataques, o bebê continuará sendo cuidado e
amado. Ou seja, reassegura que a projeção dos ataques agressivos do bebê sobre o objeto não
tem, necessariamente, como consequência, um contra-ataque. Dessa forma, a ansiedade
persecutória tende a diminuir. É fundamental, portanto, que o aspecto amoroso da mãe esteja
presente e seja predominante nesse momento, pois só confiando nele é que uma equação
positiva entre o objeto bom e o objeto mau será estabelecida. É preciso ressaltar, portanto, a
relevância das relações e das condições ambientais para o desenvolvimento do psiquismo
humano.
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UMA LEITURA POSSÍVEL À LUZ DE TAIS FUNDAMENTOS
Todos nascemos com capacidade para amar e odiar, e esta varia, num primeiro
momento, apenas em virtude de aspectos constitutivos. Porém, condições ambientais,
traduzidas pelo psiquismo dos adultos que nos cercam, podem enriquecer ou diminuir suas
intensidades, amplificando sentimentos mais hostis e ameaçadores ou fazendo prevalecer um
vínculo de maior confiança nos aspectos relacionados ao objeto bom.
Quando consideradas as condições de vida de L, percebe-se que a precariedade não
diz respeito apenas às condições socioeconômicas, ainda que estas possam estar na origem de
circunstâncias familiares e de relacionamento que tiveram e têm impacto profundo sobre seu
psiquismo. A família vive em situação extremamente precária de habitação, em um dos
bairros mais violentos da cidade, sem qualquer rendimento fixo. Depende da pensão da avó e
da doação de uma cesta básica. A mãe nunca teve trabalho remunerado.
A precariedade, entretanto, se estende também a outros domínios. A passividade da
mãe é surpreendente. Suas condições de manejo da própria sobrevivência parecem reduzidas.
Em visita domiciliar, em entrevista, não foi capaz de fornecer informações básicas sobre seus
filhos, como, por exemplo, a idade de cada um deles. Não sabia sequer quem era o mais
velho. Também não foi capaz de descrever minimamente as condições de gestação e parto de
nenhum dos filhos. No dia anterior à visita, havia perdido uma consulta médica, por achar que
esta fosse para a filha. Não soube informar em que médico deveria ter ido, nem por que razão.
Disse apenas que estava tentando conseguir um dinheiro, mas não soube dizer por que, ou de
onde. Não fosse sua avó, não teríamos descoberto que a consulta era para perícia, com a
finalidade de obtenção de aposentadoria por invalidez. Outras informações importantes
também não teriam sido obtidas sem a presença da bisavó de L.
Ainda segundo esta última, a mãe de L sofreu toda sorte de agressão física durante as
gestações. Chegou a ter uma delas interrompida por esse motivo. O marido, alcoólatra,
frequentemente suspeitava que o filho não fosse dele, justificando assim sua agressão. L
nasceu de um parto difícil, em que foi usado fórceps. Teve crises convulsivas, atualmente
controladas por medicamento. A família estabelece relação entre o início das convulsões, por
volta dos dois anos, com uma queda de L de uma janela (pelo relato, fica a dúvida sobre o que
teria sido responsável pelo quê). Por ser o mais velho, L presenciou as agressões contra a mãe
até que o pai deixou de viver com eles.
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Além da precariedade de repertório e informação, a mãe apresenta outras
dificuldades. Apesar de aparentemente tranquila com as crianças, não consegue fixar o olhar
nas pessoas com quem interage. Não apenas mantém a cabeça baixa enquanto escuta, mas
foca o olhar sempre ao lado da pessoa com quem fala, como se houvesse uma terceira pessoa
acompanhando a situação. Quando da perda da guarda dos filhos, apesar de entristecida,
deixou de visitá-los nos dias e nos horários permitidos.
Para que a agressividade possa ser compreendida em sua dinâmica, é fundamental
que esta seja analisada à luz do que afirma Klein (1991): “A agressividade inata está destinada
a ser incrementada por circunstâncias externas desfavoráveis e, de modo inverso, é mitigada
pelo amor e pela compreensão que a criança pequena recebe.” (KLEIN, 1991, p. 283).
Consideradas as condições acima descritas, pode-se afirmar que L teve e tem que
enfrentar circunstâncias bastante desestabilizadoras, ou, usando as palavras de Klein (1991),
ameaçadoras. Sua própria sobrevivência (e, ao que tudo indica, a de seus irmãos) parece ter
estado sob risco em diversos momentos. Do ponto de vista psíquico, não parece ter havido
muita oportunidade de contato com aspectos mais amorosos. O único vínculo aparentemente
não caracterizado pela agressão era com sua mãe. Contudo, tal vínculo carregava tamanha
fragilidade, que facilmente poderia ser interpretado como destrutivo. Negava aspectos
primários, tais como o olhar, os cuidados básicos (o que motivou a perda da guarda) e a
própria presença física (se considerada a ausência de visitas após a transferência das crianças
para os abrigos). Não por acaso a bisavó de L fez menção a vários acessos de raiva e agressão
de L contra a mãe, sem razão aparente. Tudo conspirou na direção de uma potencialização da
ansiedade persecutória e da propensão ao desenvolvimento de sentimentos como o ódio e o
ressentimento.
Não à toa, situações aparentemente desprovidas de qualquer intuito destrutivo são
identificadas por L como uma ameaça real. A ameaça, a agressão e o ódio estão
intrinsecamente vinculados a vivências muito familiares e corriqueiras em sua vida. Ou seja,
até as relações mais próximas a sentimentos de amor, como a relação mãe-filho, estão
identificadas com aspectos ameaçadores.
Conforme Bollas (1992), alguns indivíduos, cuja primeira relação com a mãe é de
um tipo específico, constroem uma crença de que seu amor é destrutivo. Por essa razão,
desenvolvem defesas esquizoides que os impedem de amar e ser amados. Ou seja, o autor
propõe que o ódio pode estar associado ao amor, ao invés de encontrar-se “diametralmente
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oposto a ele” (BOLLAS, 1992, p. 151). Citando Fairbairn (1940), Bollas (1992) afirma que,
nesses casos, há um motivo moral na atitude de fazer-se odiar, pois “se amar envolve destruir,
é melhor destruir pelo ódio que é declaradamente destrutivo e mau que destruir pelo amor que
é, por direito, criativo e bom” (BOLLAS, 1992, p. 151).
Considerando tais aspectos, os comportamentos agressivos de L podem ser
ressignificados, perdendo, em algum grau, a conotação estritamente destrutiva, ou
moralmente negativa, a qual é atribuída por aqueles com os quais convive, em especial no
ambiente escolar.
Em certo sentido, há um impulso de proteção, se assim se pode chamar, nesses
comportamentos. Proteção contra a possibilidade de entrega a um impulso aparentemente
bom (o amor) que, em fantasia, pode converter-se em destruição. Em resumo, L protege a si
próprio e ao outro a quem nega seu amor.
Klein e Rivière (1975) afirma que, nos momentos em que o ódio está guiando as
ações do bebê, é importante que a mãe se relacione com a criança de maneira amorosa,
projetando nele aspectos afetivos. Isso é fundamental, tendo em vista que são os aspectos
projetados e internalizados que serão a base para a criança – e, posteriormente, o adulto – ter
relações sociais pautadas em sentimentos construtivos e reparadores, os quais estão ligados ao
amor.
À medida que o bebê se sente frustrado, chora e não recebe gratificação, o ódio pelos
objetos exteriores e interiores é intensificado e cada vez mais internalizado. Nesse contexto, a
ansiedade persecutória, descrita anteriormente, é despertada com intensidade. Se a mãe se faz
presente, satisfazendo-o, ele sente que o objeto atacado e mau não é totalmente mau. Emerge,
então, a culpa por ter tentado destruí-lo e, a partir dela, surge o desejo de reparar o que foi, em
fantasia, estragado.
Essas são características da ansiedade depressiva descrita por Klein (1991), a qual se
manifesta no temor de perda do objeto, e não mais do self, como na ansiedade persecutória. A
ansiedade depressiva tende a ocorrer na medida em que o bebê deixa de cindir a mãe em um
objeto bom e outro mau e passa a se relacionar com um objeto total que pode ser bom e mau.
Nota-se que aqueles que se encontram em uma situação externa e interna de grande
privação são mais propensos a mobilizar a ansiedade persecutória, uma vez que estão, interna
e externamente, na realidade ou em fantasia, sob ameaça. A violência de L diante de situações
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aparentemente banais demonstra, por um lado, o grau de cisão de seus objetos internos e, por
outro, a profundidade da ansiedade com a qual convive.
L é temido por professores e colegas. É tido como alguém incontrolável. Por outro
lado, por não solicitar nem aceitar ajuda, é considerado independente e muito forte, o que
desperta nos outros certo fascínio, ainda que inconsciente. Aparentemente, L se encontra em
situação de independência emocional em relação às pessoas que o cercam. Essa
independência estaria assegurada, em princípio, pela sua capacidade de agredir e de se
defender. Para Bick (2000), contudo, indivíduos que apresentam tais características são, na
verdade, pseudoindependentes. Sofrem de uma dependência bastante primitiva, ligada à
necessidade de delimitação de um corpo que define as fronteiras entre o eu e o outro. E isso
mobiliza permanentemente uma ansiedade muito poderosa.
Isso se evidencia, por exemplo, quando L desencadeia confusões em sala de aula.
Tais confusões podem ser provocadas tanto quando se sente privado da atenção da professora
como quando se vê predominantemente atendido por ela. No primeiro caso, é capaz de
desenvolver alguma atividade por conta própria por um curto período. Aos poucos, parece
haver uma desintegração de seu eu, o que o faz demandar a presença da professora. Ao
agredi-la, L reassegura sua integridade como um corpo. No segundo caso, consegue conversar
e tenta se entender com a professora, também por pouco tempo. Rejeita a iniciativa de
aproximação, por ver-se ameaçado de uma invasão, de uma sobreposição de um corpo sobre
outro, ou seja, por ver-se ameaçado de aniquilamento. Como se pode perceber, em ambas as
situações, L sucumbe a uma intensa ansiedade persecutória. A professora é o objeto de que
depende para estabelecer as fronteiras entre o seu próprio corpo e o de outro, ou melhor, entre
seu próprio eu e o outro. Um processo bastante primitivo que deveria ter sido desenvolvido
em relações de objeto anteriores.
Através de uma leitura convencional, tal tipo de reação jamais seria interpretada
como dependência extrema. A professora de L, por exemplo, que sempre esteve preocupada
em compreender as dificuldades de seu aluno, dizia não entender por que L mantinha a atitude
de desestabilizar a estrutura das aulas tanto em uma situação quanto em outra, deixando-a ora
irritada, ora frustrada, e gerando um clima muito tenso.
Essa dificuldade em aceitar o que a professora tem a oferecer tem repercussões sérias
no processo de aprendizagem de L. Pela incapacidade de fazer predominar os aspectos bons
do objeto e por promover ataques violentos, seu sentimento de culpa é intenso e insuportável.
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Não sendo capaz de tolerá-lo, torna-se incapaz, também, de reparar os danos que provoca ao
objeto (no caso, a professora e/ou os colegas).
O contato com a culpa e a capacidade de reparação são aspectos centrais para o
desenvolvimento da criatividade. É tal contato que estimula a capacidade reparatória, e esta,
por sua vez, permite ao sujeito a construção de estratégias psíquicas novas. Para restaurar um
objeto danificado, o sujeito vai em busca de alternativas, e isso, em última instância, é a
característica básica do processo criativo. Como L sente uma culpa excessiva, não suporta
entrar em contato com ela. Ao negá-la, nega a si próprio a possibilidade de envolver-se com
atividades produtivas que ofereceriam a ele oportunidades de reparação. Mais um aspecto
potencializador de sua dificuldade em aprender.
No ambiente escolar, uma das formas de o adulto contribuir para diminuir a
agressividade do aluno e, portanto, permitir um contato maior com a culpa deste e a
capacidade de reparação é suportando a carga de sentimentos hostis que recebe e devolvendo-
os de forma mais palatável para ele. É preciso lembrar que a criança que faz uso de projeção
maciça está, via de regra, em condições desfavoráveis de compreensão dos afetos aos quais
está submetida. Do contrário, não precisaria do mecanismo projetivo. Daí a importância de
um adulto capaz de receber e reprocessar as projeções, vinculando a elas sentimentos mais
positivos. Esta é a experiência cognitiva mais primitiva. Uma atividade mental capaz de
recuperar, de forma criativa, as características gratificadoras e integradoras do objeto.
Clarke (2002), citando Ogden (1990), afirma que: “[...] sob condições otimizadas, o
recipiente da projeção pode reprocessar o sentimento evocado e então retorná-lo para aquele
que projeta numa forma manejável por este, uma forma comunicativa.” (CLARKE, 2002, p.
21).
O árduo trabalho é o de deixar claro para o aluno que, ainda que sua hostilidade
tenha repercussões indesejáveis, ela não será suficiente para malograr os sentimentos bons
que se tem por ele. Em outras palavras, a atitude do adulto deve ser integradora, isto é, deve
permitir à criança dar-se conta de que o objeto mau ameaçador é também o objeto bom
gratificador. Além disso, é fundamental que seja comunicado a ela que os aspectos positivos
do objeto permitem a reconstrução daquilo que o objeto mau desestrutura. “[...] o
estabelecimento de sólidos vínculos com a escola proporciona apoio capaz de amenizar
condições hostis que a criança enfrenta em casa ou em outros ambientes fora da escola.”
(HUTZ; KOLLER; BANDEIRA, 1996, p.3).
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Tarefa difícil e lenta, mas fundamental. Cabe, portanto, ao professor, ser um
recipiente e um reprocessador das angústias de alunos como L. Ser um facilitador da
integração do objeto e, consequentemente, facilitador do contato com uma culpa suportável
para a criança e com mecanismos de reparação. Só assim poderá entrar em contato com
aspectos fundamentais para a aprendizagem. Culpar a criança, puni-la ou rejeitá-la, em
represália ao que tem feito, é, nesses casos, potencializador dos problemas que se quer
solucionar.
REFERÊNCIAS
BICK, E. The experience of the skin in early object-relations. In: BOTT-SPILLIUS,
Elizabeth. Melanie Klein today: developments in theory and practice: mainly theory. 5. ed.
London: Routledge, 2000. p. 187-191.
BOLLAS, C. A sombra do objeto: psicanálise do conhecido não-pensado. Rio de Janeiro,
RJ: Imago, 1992.
CLARKE, S. Identificação projetiva: do ataque à empatia? Nuances: Estudos Sobre
Educação, Presidente Prudente, n. 8, p. 11-31, set. 2002.
HUTZ, C. S.; KOLLER, S. H.; BANDEIRA, D. R. Resiliência e vulnerabilidade em
crianças em situação de risco. Coletâneas da ANPEPP, n. 12, p. 79-86, 1996.
KLEIN, M. Nosso mundo adulto e suas raízes na infância. In: ______. Inveja e gratidão: e
outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 280-297.
KLEIN, M.; RIVIERE, J. Amor, ódio e reparação. 2. ed. São Paulo, SP: Imago, 1975. 162p.
OGDEN, T.H. The matrix of the mind: object relations and the psychoanalytic dialogue.
London: KarnacBooks, 1990.
Recebido em: 30/03/2011
Publicado em: 13/01/2012