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Arte Degenerada A crítica de arte científica de Max Nordau DANIEL RINCON CAIRES * Considerações iniciais 2 A trajetória de Lasar Segall permite que se acompanhe a disseminação de um tipo muito específico de repúdio ao modernismo, que se manifestou na Europa e na América de maneira persistente e generalizada. A recepção à obra de Segall acabou sendo influenciada por esse sentimento. Se, durante o período da República de Weimar, Segall teve quadros incorporados a coleções particulares e públicas, com a ascensão do nazismo sua arte foi banida dos museus estatais alemães, confiscada e exibida, junto com muitas outras obras de arte moderna, nas Exposições de Arte Degenerada, que percorreram a Alemanha com propósitos difamatórios. No Brasil, apesar da recepção calorosa dos modernistas, Segall reencontrou as críticas que o acusavam de realizar uma arte degenerada, dita oriunda de distúrbios psíquicos. A esse argumento, da mesma forma que na Alemanha, os críticos brasileiros muitas vezes juntavam invectivas chauvinistas e xenófobas, antissemitas e anticomunistas. Em diversos momentos nas décadas de 1920 a 1940 Segall viu-se confrontado com ataques desse tipo no Brasil; o ápice veio em 1943, com uma série de violentos artigos publicados por ocasião de sua grande exposição retrospectiva. No ano seguinte, numa exposição em Belo Horizonte, uma de suas pinturas foi mutilada por algum anônimo, decerto inconformado com as propostas expostas na tela. A trajetória de Segall sinaliza o alcance e a persistência da mentalidade antimoderna e suas reaparições no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo, impede que se responsabilize exclusivamente os alemães pela incursão nesse tipo de pensamento. Nas palavras de Fritz Stern, [o] sucesso do nacional socialismo na Alemanha não deve elidir o fato de que o ataque nacionalista à cultura moderna é um fenômeno geral no Ocidente, que precedeu e sobreviveu ao nacional socialismo” (STERN, 1974: XV). Nesse espírito, persiste o cacoete de se apontar Max Nordau como o responsável isolado pelo cultivo do ideário antimoderno na estética. É o que acontece, por exemplo, no texto que abre o catálogo da mais recente exposição sobre o tema da Arte Degenerada, realizada pela * Setor de Pesquisa em História da Arte (SPHA) Museu Lasar Segall. 2 Gostaria de registrar o reconhecimento a pessoas que tiveram papel importante na confecção desse estudo: ao Professor Joseph D. Masheck e a Lisa Landau, da Universidade de Hofstra, pelo envio de material bibliográfico; ao Professor Nachman Falbel, pela indicação e empréstimo de documentos; à Dra. Vera d’Horta, pela leitura atenciosa da versão preliminar desse texto e pelas valiosas sugestões.

Arte Degenerada A crítica de arte científica de Max Nordau · Os fundamentos da crítica de arte científica A loucura, para Morel e muitos de seus colegas, podia não ser vista

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Arte Degenerada – A crítica de arte científica de Max Nordau

DANIEL RINCON CAIRES*

Considerações iniciais2

A trajetória de Lasar Segall permite que se acompanhe a disseminação de um tipo muito

específico de repúdio ao modernismo, que se manifestou na Europa e na América de maneira

persistente e generalizada. A recepção à obra de Segall acabou sendo influenciada por esse

sentimento. Se, durante o período da República de Weimar, Segall teve quadros incorporados

a coleções particulares e públicas, com a ascensão do nazismo sua arte foi banida dos museus

estatais alemães, confiscada e exibida, junto com muitas outras obras de arte moderna, nas

Exposições de Arte Degenerada, que percorreram a Alemanha com propósitos difamatórios.

No Brasil, apesar da recepção calorosa dos modernistas, Segall reencontrou as críticas que o

acusavam de realizar uma arte degenerada, dita oriunda de distúrbios psíquicos. A esse

argumento, da mesma forma que na Alemanha, os críticos brasileiros muitas vezes juntavam

invectivas chauvinistas e xenófobas, antissemitas e anticomunistas. Em diversos momentos nas

décadas de 1920 a 1940 Segall viu-se confrontado com ataques desse tipo no Brasil; o ápice

veio em 1943, com uma série de violentos artigos publicados por ocasião de sua grande

exposição retrospectiva. No ano seguinte, numa exposição em Belo Horizonte, uma de suas

pinturas foi mutilada por algum anônimo, decerto inconformado com as propostas expostas na

tela.

A trajetória de Segall sinaliza o alcance e a persistência da mentalidade antimoderna e

suas reaparições no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo, impede que se responsabilize

exclusivamente os alemães pela incursão nesse tipo de pensamento. Nas palavras de Fritz Stern,

“[o] sucesso do nacional socialismo na Alemanha não deve elidir o fato de que o ataque

nacionalista à cultura moderna é um fenômeno geral no Ocidente, que precedeu e sobreviveu

ao nacional socialismo” (STERN, 1974: XV).

Nesse espírito, persiste o cacoete de se apontar Max Nordau como o responsável isolado

pelo cultivo do ideário antimoderno na estética. É o que acontece, por exemplo, no texto que

abre o catálogo da mais recente exposição sobre o tema da Arte Degenerada, realizada pela

* Setor de Pesquisa em História da Arte (SPHA) – Museu Lasar Segall. 2 Gostaria de registrar o reconhecimento a pessoas que tiveram papel importante na confecção desse estudo: ao

Professor Joseph D. Masheck e a Lisa Landau, da Universidade de Hofstra, pelo envio de material bibliográfico;

ao Professor Nachman Falbel, pela indicação e empréstimo de documentos; à Dra. Vera d’Horta, pela leitura

atenciosa da versão preliminar desse texto e pelas valiosas sugestões.

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Neue Galerie de Nova Iorque em 2014. Desde o título – “De Nordau a Hitler” – Olaf Peters

procura associar as ideias de Nordau à sanha nazista que varreu os museus e as coleções

particulares da Alemanha e territórios ocupados (PETERS, 2014: 16 e ss.). Nesta apresentação

procura-se compreender o pensamento de Nordau evitando a teleologia que o associa à política

cultural nazista e que, ao fazê-lo, perde de vista suas ligações mais consistentes com as

preocupações e tensões de seu próprio tempo.

Os fundamentos da crítica de arte científica

A loucura, para Morel e muitos de seus colegas, podia não ser vista ou ouvida, mas emboscava-se no

corpo, incubada pelos pais, e acometia os filhos. Ela não tinha limites precisos, mas acarretava uma

progressiva e cada vez mais intensa tirania do corpo sobre o espírito. A autonomia da vontade era

gradualmente perdida para o corpo (PICK, 1989: 51).

Com essas palavras, Daniel Pick descrevia o conceito de loucura desenvolvido pelo

médico francês Bénédict Augustin Morel, em meados do século XIX, que a associava à

degeneração adquirida pela via da hereditariedade. O trecho poderia ser empregado, sem muitas

alterações, para descrever o conceito de degeneração cultural conforme formulado pelo médico

húngaro Max Simon Nordau, na polêmica obra “Degeneração”, publicada pela primeira vez

em alemão, em 1892, e logo traduzida para quase todas as línguas da Europa. Está tudo ali: a

loucura que espreita em silêncio, dos recônditos mais profundos, invisível aos olhos dos leigos,

traindo-se apenas indiretamente, através de estigmas que exigem o olhar do especialista para se

deixar interpretar; a loucura que inverte a “ordem natural”, aquela que fora vagarosamente

construída através de milhares de gerações, a que determina que deve haver controle da mente

sobre o corpo, da vontade sobre os impulsos, do consciente sobre o inconsciente. O degenerado

torna-se escravo de seus órgãos, dos instintos bestiais, dos centros mais baixos da intelecção.

Sua consciência é inundada por imagens místicas, eróticas, por delírios e ilusões; ele se torna

mera marionete a serviço de suas pulsões animais, e nada resta senão dar vazão a todas as

vontades impostas por esse corpo subvertido. De alguns a força descomunal do impulso exige

a incursão no crime, na dipsomania, na prostituição, no assassinato, na vagabundagem. Em

outros, o desvio se manifesta na forma de uma inevitável tendência à dissensão: são os

anarquistas, socialistas e extremistas políticos de todas as orientações, que recusam o mundo

como ele é e vivem em função de uma utopia etérea e incorpórea, pobremente esboçada, mas

ardentemente buscada. Para alguns, enfim, aqueles em que o impulso aparece de maneira mais

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débil, ou entre aqueles que não possuem a compleição necessária para empreendimentos mais

concretos, bastam os sons, as cores e linhas, as palavras. São os poetas e pintores, músicos e

filósofos que locupletam sua insanidade no mundo abstrato da arte. Presas incuráveis da “tirania

do corpo sobre o espírito”, destilam sua loucura em telas e poemas, livros e sinfonias. É desses

que Nordau trata minuciosamente em “Degeneração”.

A crítica de arte científica pode ser vista como um prolongamento da antropologia

criminal para o campo da produção cultural. O próprio Lombroso, em 1888, abriu as primeiras

sendas em direção a este encontro, com a publicação de “O Homem de Gênio”. Ali defendia a

polêmica ideia de que “gênio [...] é uma condição mórbida especial”, uma “anormalidade

mental congênita” (LOMBROSO, 1891: V). Para sustentar este argumento, ampliou a categoria

de estigma para além dos aspectos físicos - superficiais e visíveis - postulando a existência de

estigmas morais. Além das assimetrias corporais, formas conspícuas de narizes e orelhas,

crânios e olhos, que haviam permitido a ele encontrar os sinais do “criminoso nato”, Lombroso

sugeriu que se observasse sinais indicadores de morbidade também nos produtos intelectuais.

O médico italiano encontrou características similares entre as produções culturais de loucos e

de gênios, e sugeriu que se fizessem novas investigações a respeito da ligação entre arte, loucura

e degeneração:

Talvez o estudo dessas peculiaridade da arte no insano, além de nos indicar uma nova fase dessa

misteriosa doença, possa ser útil em estética, ou de alguma forma, à crítica de arte, por demonstrar que

uma predileção exagerada por símbolos, por minúcias nos detalhes [...], as intrincadas inscrições, a

excessiva proeminência dada a alguma cor (e é bem sabido que alguns de nossos mais destacados

pintores incorrem neste pecado), a escolha de temas licenciosos, e mesmo um grau exagerado de

originalidade sejam pontos que pertençam à patologia da arte (LOMBROSO, 1891: 208).

Essa exortação parece ter soado como um convite para Max Nordau: pouco mais de

quatro anos depois ele publica o seu “Degeneração”, dedicado a Lombroso. A metodologia

sugerida pelo italiano fora seguida à risca, e assim as obras de arte são convertidas em vestígios

do estado mental dos seus criadores. Através dessa análise, Nordau vai afirmar que muitos dos

responsáveis pelos movimentos artísticos modernos podiam ser classificados como

degenerados, não só pela observação de seus estigmas físicos e progênie, mas especialmente

pela forma de funcionamento de suas mentes, acometidas de uma maneira tão peculiar que se

poderia detectar a existência de estigmas mentais: “não é necessário medir o crânio de um autor,

nem observar o lóbulo da orelha de um pintor, para reconhecer o fato de que ele pertence à

classe dos degenerados” (NORDAU, 1895: 17).

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Impossível compreender o pensamento de Nordau, afirmam suas biógrafas, sem levar-

se em conta sua prolongada prática médica. Sua lógica treinada para o ofício o levava a buscar

relações de causa e efeito e auscultar o mundo como um médico ausculta o seu paciente.

“Nordau assumiu em vida a função de médico tanto dos corpos quanto das almas” (NORDAU

et NORDAU, 1943: 309). Para Max Nordau, o artista cria por um impulso fisiológico, “para

livrar seu sistema nervoso de uma tensão” (NORDAU, 1895: 324). Ele explica que todo

organismo evoluído responde a um estímulo externo com um movimento interno, uma imitação

daquilo que o impressionou. As artes plásticas são, em última análise, um resíduo desses

movimentos imitativos, têm um objetivo orgânico, qual seja, o de “livrar o sistema nervoso de

uma excitação causada por um evento visual” (NORDAU, 1895: 324). Mesmo que a excitação

tenha origem interna (erotismo, alegria, pesar etc.), ainda assim ela se manifesta por impulsos

motores – dança, canção, música, declamação, etc. Nessa concepção, a atividade artística tem

um funcionamento similar ao de outros processos orgânicos: arte é resultado necessário da

digestão dos estímulos que chegam ao cérebro.

Estabelecem-se assim os procedimentos da crítica de arte científica: ao transformar arte

em uma função fisiológica, submetida aos imperativos do corpo e da natureza, torna-se possível

colocá-la sob a tutela da ciência, e mais especificamente, da psiquiatria. Desvendam-se seus

mecanismos, institui-se um critério do que seja um funcionamento sadio desses processos e, em

contrapartida, demarcam-se os padrões que sinalizam anormalidades.

É o que acontece, por exemplo, quando Nordau trata da poesia. Admite que é da natureza

dessa linguagem a tendência a jogar com palavras, sons e ideias. Mas a poesia saudável deve

ter, subjacente a isso, um eixo lógico que permita que esses jogos evoquem ideias harmônicas

e coerentes. Feita dessa forma, ela proporciona ao espírito são uma decifração cristalina e

unívoca: porta um sentido claro, encrustado nos enigmas, sons e associações entre imagens,

sensações e ideias. A poesia mórbida, por outro lado, cria um lodaçal de imagens indefinidas e

incoerentes entre si, e impede que se vislumbre um eixo lógico de sentidos. Há um

descompasso, ou completo desligamento, entre as palavras e um sentido qualquer inteligível. A

poesia degenerada permite evocar emoções e sensações abertas, instaurando uma liberdade para

interpretar que, segundo Nordau, significa de fato um vazio absoluto. Tal poesia é comparada

ao discurso dos idiotas, “que inserem palavras que não têm absolutamente nenhuma conexão

com o objeto de que tratam” (NORDAU, 1895: 93). Esse critério férreo que exige uma

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comunicação unívoca entre o artista e o público e uma ligação inquebrável entre palavra e

objeto, supostamente embasado em princípios fisiológicos, permite a Nordau decretar a

insanidade de Dante Gabriel Rosseti, Paul Verlaine, Charles Baudelaire, Teóphile Gautier e

outros.

Moralidade e senso estético são igualmente compreendidos em termos fisiológicos3.

Moralidade é a “experiência racial hereditária organizada” (NORDAU, 1895: 282) que alerta

os humanos saudáveis para a presença de uma influência nociva. Esse senso natural de certo e

errado deveria determinar o que é vantajoso não somente em termos individuais, mas,

sobretudo, em termos coletivos:

Náusea diante de gostos intoleráveis, repugnância a cheiros desagradáveis, medo de animais perigosos

e fenômenos naturais ameaçadores, etc. se tornaram instintos aos quais o organismo se abandona sem

reflexão, isto é, sem a intervenção da consciência. Mas o organismo humano aprende a distinguir e evitar

não apenas tudo o que é prejudicial a si mesmo; ele age da mesma forma com relação àquilo que o

ameaça não apenas como indivíduo, mas como membro de uma raça, partícipe de uma sociedade

organizada; a antipatia às influências injuriosas à manutenção da prosperidade da sociedade se torna

nele um instinto (NORDAU, 1895: 282).

A beleza também ganha contornos fisiológicos. Amparando-se nos estudos de

Helmholtz e Blaserna sobre o som, e estendendo suas conclusões para cheiros e sabores, Nordau

explica que causam prazer aqueles que se manifestam em acordo com a “estrutura dos nervos”,

isto é, que são fáceis e confortáveis para eles, e os deixam “em ordem”. Os desagradáveis, ao

contrário, “incomodam o arranjo das partículas dos nervos”, exigindo esforços extremos e até

mesmo ameaçando sua existência (NORDAU, 1895: 327-328). Unindo moralidade e beleza,

Nordau apresenta uma “fisiologia da beleza moral”, que é superior à sensorial, e é formada por

representações, conceitos e julgamentos. Nesse caso, será considerado moralmente belo aquilo

que for favorável à existência do indivíduo e da espécie.

Ao naturalizar a moralidade e o senso estético, Nordau consegue diagnosticar outros

tipos de desvios mórbidos. A insanidade moral, de fato, era uma condição presente nos manuais

de psiquiatria, e Nordau arrola uma longa lista de artistas, filósofos e literatos que apresentavam

desprezo, indiferença ou aversão aos padrões morais e estéticos em vigor. O caso de Baudelaire

foi longamente discutido, ressaltando-se sua predileção pelo crime, pela corrupção e pela

doença. Sua declarada atração pelos odores fortes e, para indivíduos “normais”, desagradáveis,

3 Nordau dedicaria uma de suas últimas obras à ampliação dessa ideia: em 1920 publicou “A Moral e a evolução

do homem”, cujo título original é mais sugestivo: “A Biologia da Ética” [no original, Biologie der Ethik].

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foi apontada por Nordau como sintoma inequívoco de insanidade. Nietzsche, que mereceu um

longo capítulo na obra de Nordau, foi atacado exatamente por sua ideia de que a moralidade era

um entrave ao pleno desenvolvimento humano. Ambos foram classificados como egomaníacos,

condição de quem é incapaz de romper o isolamento do mundo interior e se relacionar

plenamente com a realidade externa.

As realizações recentes da pintura eram explicadas por Nordau em termos similares.

“Impressionistas, pontilhistas, papilloteurs, coloristas espalhafatosos” são classificados, com

amparo nos estudos de Charcot, como portadores de lesões ópticas causadas pela degeneração

e/ou histeria. Seus artífices afirmam que é assim que veem o mundo, e deve-se acreditar neles.

Eles sofrem de disfunções nas retinas, ou de nistagmo, que é um palpitar incontrolável e

interminável do globo ocular, e é assim que veem a natureza: “trêmula, inquieta, carente de

linhas firmes” (NORDAU, 1895: 27); são incapazes de se igualar ao pintor de “visão normal”.

A retina dos histéricos é sempre acometida por algum grau de insensibilidade, e nesse caso a

morbidade se manifesta de duas formas: ou ela promove a formação de uma imagem repleta de

falhas, fragmentada, ou provoca a perda da capacidade de ver as cores; no primeiro caso,

resultam obras do que se chama pontilhismo, no segundo, explica a estranha paleta de alguns

pintores, que preferem tons esmaecidos ou aparentados do cinza. É assim que se explica, por

exemplo, o estilo de Puvis de Chavannes e Besnard: resultado da disfunção do aparelho visual,

por sua vez derivado de degeneração mental ou histeria. Amparando-se em estudo de Alfred

Binet, Nordau explica a predileção natural dos degenerados e histéricos – tanto pintores quanto

consumidores - pela cor vermelha: tal tonalidade produz uma sensação de prazer. Da mesma

forma, o violeta provoca o efeito contrário, depressivo, e por isso é preferido, entre muitos

povos, como cor dos ornamentos fúnebres. É por esse motivo, explica, que os histéricos e

neurastênicos acometidos de melancolia tendem a recobrir suas telas com esse tom. Exemplo é

Manet e sua escola: suas pinturas “não se originam de algum aspecto observável da natureza,

mas de uma visão subjetiva devida à condição nervosa do pintor” (NORDAU, 1895: 29).

Degeneração e hereditariedade

As ideias de Nordau e Lombroso não devem ser vistas como dissonantes: na verdade,

elas estavam bastante afinadas com o panorama geral de seu tempo. Se, como afirmou Martin,

o “progresso era a religião do século XIX, da mesma forma que o catolicismo fora a religião da

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Idade Média” (MARTIN, 1963: 299), poder-se-ia dizer que ao demônio medieval correspondia

a degeneração no século XIX como o contraponto nefasto ao ideal positivo. Umbilicalmente

ligada ao discurso das ciências naturais e, particularmente, à teoria evolucionária, junto à ideia

de degeneração alinhavam-se “as concepções de atavismo, regressão, reincidência, transgressão

e declínio no seio de um contexto europeu tão frequentemente identificado como a era de

evolução, progresso, otimismo, reforma e melhoria” (PICK, 1989: 2). Uma ideia que se tornou

parte do “estoque de hipóteses” inquestionáveis da cultura ocidental, e reapareceu

intermitentemente em discursos emitidos por sujeitos de todos os espectros políticos e sociais.

Seus usuários frequentemente esqueceram-se de perceber o seu caráter construído, tomando-a

como dado básico e natural, o que os fazia igualmente deixar de perceber o potencial político

ominoso subjacente a ela. Numerosos estudos deixaram claro que as metáforas e padrões

narrativos de Darwin sobre a natureza e os seres vivos ecoavam “medos e preocupações sociais

vitorianas mais amplas” (PICK, 1989: 6). Para Pick no tema da degeneração também estão

incrustados os medos e intepretações sobre o tempo, disfarçados de ciência (PICK, 1989: 6). O

conceito de degeneração jamais foi contido numa teoria ou axioma, jamais foi definitivamente

descrito e delimitado. Cada uso, em cada tempo, dotou-o de formas e conteúdos diferentes, ao

sabor das necessidades e das inclinações de seus usuários. A observação das modificações que

o conceito sofreu em cada tempo, lugar e a forma como cada um de seus usuários o definiu e

empregou podem indicar configurações específicas e mudanças nas percepções sociais.

Uma etapa importante na trajetória do uso e difusão do conceito de degeneração ocorre

em 1847, quando Prosper Lucas publica o “Tratado filosófico e fisiológico da hereditariedade

natural nos estados de saúde e de doença do sistema nervoso”. No geral, dedicava-se a estudar

a “força maravilhosa” da hereditariedade, que podia frutificar em vantagens, mas também

desvantagens. Lucas enfatizava “a reprodução de caracteres constantes através das gerações”

(LUCAS apud PICK, 1989: 49). Dez anos depois, Bénédict Augustin Morel publicou o

“Tratado de hereditariedade natural”, onde a ênfase se voltava para a dinâmica da modificação

negativa, a cadeia de patologias transmitidas entre as gerações em direção ao degenerado,

indivíduo acumulador dessa herança maldita, fadado a tornar-se estéril e incapaz, finalmente

desaparecendo. O conceito de Morel “[...] tinha um desenvolvimento narrativo oculto – uma

gênese, uma lei de progresso e um desenlace. Idiotia absoluta, esterilidade e morte eram os

pontos finais da lenta acumulação de morbidades através das gerações” (PICK, 1989: 51). Na

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proposta de Morel, a degeneração era deflagrada por causas ambientais (entre as quais a

pobreza, hábitos imorais, trabalho insalubre e outros) e logo penetrava no ciclo hereditário,

tornando-se autossuficiente. Muitas vezes essa morbidade latente não se deixava ver por traços

externos, o que inutilizava a frenologia. Já em Morel havia a ideia, central na obra de Nordau,

de que a degeneração se manifestava de maneira insidiosa, em indivíduos que não apresentavam

nenhum dos sinais externos reconhecidos: os estigmas psíquicos deveriam ser buscados nos

“padrões da patologia moral” (PICK, 1989: 52).

A partir de 1870, o tema da degeneração ganharia uma posição de protagonismo na

mentalidade ocidental, transbordando de seu âmbito original para a historiografia, para o

diagnóstico social e para a crítica cultural. Foi Valentin Magnan o responsável por catalisar esta

confluência entre um novo discurso psiquiátrico muito específico e sofisticado com uma noção

generalizada e difusa de que as patologias eram um “fenômeno da época”; a psiquiatria

alcançou então uma “proeminência cultural sem precedentes” (PICK, 1989: 99).

“Considerações gerais sobre a loucura dos hereditários ou degenerados” (1887), de Magnan,

foi um marco nessa nova configuração do degeneracionismo. Ao padrão anterior, marcado pela

reconfortante ideia de que o degenerado poderia ser facilmente individualizado e segregado, e

de que estava fadado ao desaparecimento pela própria degradação de suas funções, sobrepôs-

se uma noção de degeneração difusa, profunda e ubíqua, emanando especialmente a partir das

“classes perigosas da cidade”, e que ameaçava atingir a sociedade como um todo. Dessa forma,

o assunto ganhou duas linhas aparentemente contraditórias e simultâneas: o “outro” ameaçador

era “percebido como visivelmente diferente, anômalo e racialmente ‘estranho’”, mas agora

tinha-se o problema adicional, e ainda mais ameaçador, de sua “aparente invisibilidade no fluxo

da grande cidade” (PICK, 1989: 52).

As transformações sofridas pelo conceito de degeneração na segunda metade do século

XIX parecem se articular com percepções mais gerais sobre fenômenos sociais e políticos. As

configurações que a ideia assume em cada lugar também podem estar ligadas a situações

específicas. Na França, a instabilidade política crônica gerou uma ansiedade social que tingiu

as interpretações sobre a Revolução. As Revoluções, primeiro a de 1789 e depois as de 1830 e

1848, provocaram a sensação de “ruptura histórica e historiográfica” (PICK, 1989: 56). Mas

foram lidas de maneiras distintas, e a última, de uma forma que, argumenta Pick, tingiu todo o

pensamento social posterior, e determinou a ideia de degeneração conforme manifestada por

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Morel: “1848 foi entendida em relação a 1789 e 1830 mas ao mesmo tempo ela parecia mostrar

a radical imprevisibilidade da mudança, a irredutibilidade de novos fenômenos sociais a

modelos prévios”. Essa ideia de “reprodução patológica” da Revolução teria sido convertida

por Morel numa nova ideia de degeneração, uma que fosse “um processo de diferenciação

patológica ao longo das gerações” (PICK, 1989: 56). Dessa maneira, entende-se que o novo

conceito de degeneração e hereditariedade patológica que provocava mudanças imprevisíveis,

mas quase sempre desastrosas, era uma projeção de uma leitura da situação social circundante

na teoria científica. Isso acompanhava uma mudança de leitura sobre a própria Revolução e

suas consequências. Nas últimas décadas do século XIX, o fenômeno das grandes cidades e a

crescente pressão por parte das classes marginalizadas por maior participação política

provocaram reflexos na cultura. Raças e classes perigosas começaram a aparecer com

insistência na literatura; o imaginário povoou-se com os misteriosos personagens oriundos do

submundo do crime oculto nos substratos obscuros das grandes cidades. Nesse pensamento,

“crime, decadência moral e poluição racial” se emaranhavam como causas intervenientes

(PICK, 1989: 21).

Na Itália, as autoridades governantes da nação recém-unificada viram-se obrigadas a

lidar com a fragmentação social, cultural e econômica real à sua frente. Nisso serviu o ideário

de Lombroso: ele criava uma aparente unicidade, juntava todo aquele caos aparentemente

irreconciliável da realidade italiana num discurso unívoco. Nesse processo distribuía-se sinais

aos elementos, polarizando-os: negativos ou positivos, atrasados ou evoluídos, selvagens ou

civilizados etc. Toda uma miríade de elementos presentes nesse contexto era captada pelo

discurso, e a cada um se reservava um lugar especial na cadeia narrativa, nessa intriga

organizada e regida pela objetividade científica. “Crime, histeria, superstição, parasitismo,

insanidade, atavismo, prostituição, massas, campesinato e bandoleiros se tornaram as figuras

de desordem [...]” (PICK, 1989: 115). Nenhuma dessas coisas era objeto imediato: todas eram

metáforas, mas era recurso do discurso de Lombroso tomá-las como objeto, negar-lhes o

estatuto de construção discursiva, um exorcismo linguístico ou enjaulamento taxonômico que

permitia sua imediata denúncia. O dissidente político, especialmente os anarquistas, e os

habitantes das regiões ao sul da Península, eram os alvos preferenciais dos discursos

degeneracionistas:

Nem todas as partes que compõe o organismo múltiplo e diferenciado da Itália progrediram igualmente

no curso da civilização; algumas ficaram para trás, por conta de governo ineptos ou como infeliz

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resultado de outros fatores e são incapazes de avançar exceto com grande esforço, enquanto que outras

progrediram dinamicamente. O Mezzogiorno e as Ilhas encontram-se na infeliz condição de ainda

possuírem os sentimentos e os costumes, a substância, senão a forma – dos séculos passados. Eles são

menos evoluídos, menos civilizados do que as... sociedades encontradas na Itália do Norte” (NICEFORO

apud PICK, 1989: 114-115).

Peculiaridades da Inglaterra dificultaram a penetração do degeneracionismo. Havia ali

um forte apego aos princípios liberais e a um código de leis embasado numa forte crença no

livre-arbítrio. A influência dos teóricos da degeneração foi assim consideravelmente reduzida,

quando comparada com o que ocorria no Continente. A própria ausência de ameaças políticas

internas – sedições, revoltas e sublevações – tornava o discurso da degeneração menos

necessário na Inglaterra que na França e na Itália, onde governos centrais fragilizados e sitiados

por incessantes ondas revoltosas agarraram-se firmemente às teorias degeneracionistas como

forma de enquadrar os opositores em categorias passíveis de serem combatidas: criminosos

natos, loucos, doentes etc.). A Irlanda era uma fonte de problemas políticos, mas era tratada

como ameaça externa; a integridade da Inglaterra era discursivamente possível de uma maneira

impensável para França e Itália.

Fin-de-siècle: doença da modernidade

Ao condenar as correntes estéticas mais recentes de seu tempo, Max Nordau incorria

numa longa e disseminada tradição. Cientistas evolucionistas, antropólogos criminais e

psiquiatras concluíam que, paradoxalmente, o progresso – a ciência, a civilização e o

crescimento econômico - podia ser um catalisador de patologias físicas e sociais. Nas palavras

de Griesinger, “[...] a presente condição da sociedade na Europa e América mantém um semi-

intoxicante estado de irritação cerebral que está muito afastado da condição natural e saudável,

e predispõe à desordem mental” (GRIESINGER apud PICK, 1989: 11). A discussão sobre esse

assunto servia-se de estatísticas, para buscar amparar a afirmação de que aumentavam as

ocorrências de crimes e a incidência de patologias mentais. As transformações advindas da

modernização que incidiam na vida cotidiana da população da Europa vão servir de causa

primordial à degeneração, no esquema de Max Nordau. Vivia-se, ele afirmava, numa

civilização em estado terminal, cujo fim iminente coincidiria com o fim do século XIX. O

período que seria visto retrospectivamente como Belle Epoque era por Nordau caracterizado

negativamente como fin-de-siècle.

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Ele se serviu de estatísticas para comprovar a influência perniciosa da modernidade

sobre a saúde das pessoas. Comparando números de 1840 com os de 1890, apontou um

crescimento exponencial na quantidade de cartas trocadas, no número de jornais e livros

publicados, na extensão em quilômetros das ferrovias, no número e frequência de viagens

realizadas. Toda essa atividade expandida, afirmava, exigiria um sobre-esforço do sistema

nervoso de cada indivíduo. Ainda que fosse adaptável, o corpo humano não podia lidar com

transformações tão repentinas. O resultado era uma profunda exaustão, que condenaria os

menos vigorosos à queda nas valas laterais da “estrada para o progresso” (NORDAU, 1895:

40): nervos exaustos eram suscetíveis à histeria, adquirida na primeira geração, hereditária nas

seguintes4. A arte e a cultura modernas seriam resultado dessa grande fadiga histérica, mas não

suas únicas consequências. Nos últimos anos tratados de alienistas vinham descobrindo,

descrevendo e nomeando um enorme conjunto de moléstias; para Nordau, essas descobertas

recentes provavam a sua tese: os acontecimentos dos últimos 50 anos incidiam morbidamente

na saúde mental das pessoas.

Nordau apontava o abandono dos cânones antigos - seguros, saudáveis, confiáveis como

sintomas dessa condição mórbida. Em seu lugar, adotavam-se novos padrões, doentios e

perniciosos. O fin-de-siècle era marcado por “um desprezo pelas visões tradicionais de costume

e moralidade”, uma “emancipação da disciplina tradicional” (NORDAU, 1895: 5), o que abriria

as portas para a liberação de desejos, tendências e impulsos até então suprimidos. No campo

específico da arte, o clima fin-de-siècle significava o abandono da ordem estabelecida “que por

milênios satisfez a lógica, estorvou a depravação e produziu em todas as artes algo de belo”

(NORDAU, 1895: 5). Nesse cenário, emergia uma grande ansiedade sobre o futuro. Sem o

lastro da tradição, as esperanças se voltavam para o porvir. Comemorava-se tudo o que fosse

novo, mesmo sem saber em que direção ele se desenvolveria. Nessa nova relação com o futuro,

a arte ganhava papel proeminente. Procurava-se na arte a capacidade de prever o futuro: “o

poeta, o músico, deve anunciar, ou adivinhar – ou ao menos sugerir – em que formas a

civilização irá evoluir” (NORDAU, 1895: 6). “Todas as certezas estão destruídas e qualquer

palpite parece plausível” (NORDAU, 1895: 6).

4 Max Nordau partilhava do conceito de hereditariedade francês, que se manteve fiel às concepções lamarckianas. Nessa vertente, aceitava-se a possibilidade de que características adquiridas no contato com o ambiente pudessem ser incorporadas definitivamente aos organismos e legadas às gerações subsequentes (cfe. PICK, 1989: 100).

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Algumas características do pensamento de Nordau, no entanto, o afastam de outros

degeneracionistas. Em primeiro lugar, ele inverte o esquema de responsabilização pela

degradação moral e estética: onde outros buscavam nas classes inferiores os culpados pela

degeneração da raça5, para Nordau eram os afortunados - os “10 mil mais ricos” (NORDAU,

1895: 2) da França, a alta burguesia alemã e inglesa - que estariam no estágio fin-de-siècle. Na

sua argumentação, a grande maioria da população, as classes médias e baixas, ainda não sentiam

os efeitos perniciosos da modernidade. O filisteu e o proletário ainda se satisfaziam com as

antigas formas de arte e literatura, desde que não estivessem submetidos ao olhar desdenhoso

dos partidários da modernidade; nesse caso, o pudor os obrigava a disfarçar o gosto pelo velho.

Apenas uma minoria, em sua opinião, saudava a modernidade, mas por formarem um grupo

influente, criavam a sensação de que o novo era unanimemente aceito. Muito do entusiasmo

pelas novidades, segundo Nordau, devia-se à ânsia por emular os ricos e ao magnetismo

exercido pelos fanáticos, que arrastava os esnobes, os tolos, os nervosos, os fracos e

dependentes, fazendo supor que toda a civilização se houvesse convertido à “estética do

crepúsculo das nações” (NORDAU, 1895: 7).

Em segundo lugar, Nordau enfatizava a ação ambiental como causa primordial da

degeneração, onde outros procuraram explicações em termos raciais. Dessa forma, ele não

subscrevia a ideia de que havia uma mácula inevitável atrelada a algum grupo específico. A

degeneração, na concepção de Max Nordau, era um mal endêmico que não mostrava

predileções raciais.

Terapia

A tese central de Lombroso a respeito do gênio não poderia de forma alguma ser aceita

por Nordau (e ele a refuta nominalmente nas páginas 22 e 23 de “Degeneração”). A

argumentação de Lombroso solicita uma suspensão de julgamento com relação às ações e

5 O principal crítico de Nordau na Inglaterra, Alfred Egmont Hake, escreveu em sua reposta à “Degeneração” que

era a “espantosa, desmoralizante, embrutecedora pobreza nas grandes cidades modernas, - esse fungo surgido por ação do governo moderno e da corrupção política” que explicava a degradação dos costumes, o vício e, em consequência, o surgimento de novos padrões culturais tingidos pela imoralidade e pelo culto ao crime. Não era a primeira vez na história, afirmava, em que “massas de pessoas destituídas exercitam todo o seu engenho na tarefa de corromper os cidadãos ricos na esperança de apanhar algumas migalhas” (HAKE, 1895: 33).

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produções culturais do homem de gênio. Dotados da capacidade extraordinária de enxergar o

que é novo, os gênios lombrosianos trazem à luz elementos estranhos e recebem em troca a

incompreensão, a marginalização, o ostracismo, o escárnio. Com o tempo, vê-se que estavam

corretos (Colombo, Giordano Bruno, Copérnico, a lista de gênios incompreendidos que mais

tarde seriam redimidos é enorme e Lombroso se serve dela para marcar sua posição). Aceitar

isso levaria à absolvição imediata dos degenerados de Nordau: eles deveriam receber um voto

de confiança. A dúvida recairia sobre o julgamento dos observadores: não será resultado da

incapacidade de compreender por parte dos homens comuns que este livro, esta peça, esta

doutrina filosófica, parecem erradas?

Nordau acredita que a sociedade deve se defender da influência perniciosa do

degenerado. O degenerado é um caso perdido: imune a qualquer tratamento, surdo para

qualquer argumentação lógica, ele jamais será capaz de se livrar da sua doença. “Os

degenerados assim tão profundamente atingidos pela loucura devem ser abandonados ao seu

destino inexorável. Este livro não é escrito para eles” (NORDAU, 1895: 551).

Como morcegos alojados em velhas torres, eles estão abrigados no orgulhoso monumento da civilização,

que eles encontraram pronto, mas ao qual não podem acrescentar mais nada, nem defender da

deterioração. Eles vivem como parasitas, alimentando-se do resultado do trabalho acumulado pelas

gerações anteriores; e quando a herança estiver afinal consumida, eles estão condenados a morrer de

fome” (NORDAU, 1895: 540).

Conter a “doença do tempo” exige outra medida: obstar a contaminação. O primeiro

passo consiste em desmascarar os degenerados que secretam seu veneno sob o pretexto de arte,

literatura ou filosofia. Esse é, afinal, o objetivo declarado de “Degeneração”: não apenas

identificar os degenerados escondidos entre literatos e artistas, mas oferecer as ferramentas

conceituais para que qualquer um possa fazê-lo. A sociedade deve se defender de seus inimigos,

mas não pela força: a experiência mostra que qualquer obra de arte que venha a ser perseguida

pelo estado torna-se imediatamente célebre. Eis a terapia adequada, afinal: a formação de

conselhos de cidadãos esclarecidos que decidissem quais obras proscrever. Um subsequente

boicote acabaria arrancando o mal pela raiz (NORDAU, 1895: 560).

Considerações finais

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As ideias recolhidas por Nordau em “Degeneração” circulavam amplamente na

sociedade de seu tempo. Os próprios artistas as aceitavam e produziam a partir delas. Emile

Zola, mais um entre os que mereceram um capítulo exclusivo na obra de Nordau, não só se

submeteu voluntariamente a uma longa e minuciosa série de exames para determinar o tipo e o

grau de sua degeneração, como produziu um conjunto inteiro de romances dedicados a

descrever e analisar a incidência de degeneração entre as sucessivas gerações de uma família6.

Vincent van Gogh partilhava do conceito lombrosiano e acreditava que os artistas em geral

possuíam cérebros maculados por lesões hereditárias que os tornavam simultaneamente mais

propensos à produção artística e a desordens nervosas; ele interpretou suas próprias

enfermidades como sendo oriundas do processo de degeneração, e em sua correspondência

demonstrou muitas vezes concordar com a ideia de que a vida nos grandes centros urbanos

incidia negativamente sobre os cérebros (SHEON, 1996: passim). A obra de Ibsen, também

agraciado com um capítulo próprio em “Degeneração”, é profundamente marcada pela

referência às consequências negativas da hereditariedade. Uma das críticas mais reincidentes

sobre as peças de Ibsen refere-se justamente ao fato de que nelas um evento irreversível

ocorrido nalgum ponto do passado governa implacavelmente as ações que se desenrolam diante

dos olhos dos espectadores, nada restando a fazer senão observar o cumprimento total e

inevitável dessa espécie de maldição biológica (CARPEAUX, 1960).

Se fôssemos julgar as ideias de Nordau, concluiríamos que seu erro essencial – que ele

compartilha com grande parte dos pensadores de seu tempo - foi o de apagar as fronteiras entre

o universo natural e o humano. Segundo Gould, o universo humano é artificialmente construído,

separado da lógica da natureza, afastado dela por um distanciamento crítico: não se deve,

portanto, aceitar passivamente as leis naturais quando se trata de coisas humanas. A moral e a

ética humanas são distintas da ética da natureza, que é essencialmente amoral (GOULD, 2003:

359).

O pensamento de Nordau pode ser melhor compreendido no cenário cientificista que se

avoluma no final do século XIX. Havia uma forte tendência – alimentada pela sucessão de

6 Zola se submeteu voluntariamente a um extenso exame que incluía investigação genealógica, estudo

antropométrico e craniométrico e análise de seu histórico médico. Concluiu-se que ele era um neuropata, neurótico

e achacado de moléstias, e que se tratava de um degenerado possuidor de capacidades extraordinárias (PICK, 1989,

p.76-78). O escritor submeteu-se diligentemente às fotografias antropométricas e respondeu a todos os

questionamentos feitos por uma junta de 15 doutores; ele tratou da degeneração hereditária principalmente no ciclo

de novelas que acompanhava “o destino mórbido de uma família através dos anos do Segundo Império” (PICK,

1989: 73), a família Rougon-Macquart.

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“descobertas” científicas que se acumulavam e que alteravam a vida cotidiana e os panoramas

mentais do homem - de encarar o universo como um mecanismo operado por forças essenciais

e inevitáveis. O avanço das explicações da ciência sobre terrenos antes pertencentes a outras

esferas provocava uma rápida laicização da visão de mundo. Em decorrência, um ressecamento

da visão de mundo que instaura um deserto moral. A constatação que parece querer se impor,

de que não há nada que transcenda a matéria, faz surgir uma aridez materialista e, concomitante

e paradoxalmente, um pujante renascimento da crença na transcendência, em formas novas e

às vezes esdrúxulas, contra as quais Nordau se bate veementemente. Às vezes é no mesmo

indivíduo que esse vazio metodicamente construído cede lugar à explosão mística: Comte

chegou assim à sua Religião da Humanidade e Lombroso dedicou seus últimos anos – mesmo

diante das fortes tentativas de dissuasão por parte de seguidores e amigos - a estudos sobre a

comunicação mediúnica (de fato, o italiano ligou-se a uma conhecida médium que lhe facultava

contatos com sua falecida mãe). O próprio Nordau, ainda que de maneira “laica”, abandonou o

posto de “Sentinela da Civilização” para voltar-se à defesa dos direitos territoriais dos judeus.

A manifestação de Nordau em “Degeneração” será melhor compreendida se observada no

interior desse grande panorama dos “naturalismos”, quando a ciência penetra profundamente

na vida cotidiana. É a tentativa de enquadrar as manifestações do espírito em categorias

taxonômicas e desvendar-lhes os mecanismos. Procura sujeitar a arte às mesmas forças

biológicas que presidem o funcionamento dos organismos naturais. É a busca por uma leitura

do universo artístico pela ótica das ciências naturais, visando encontrar as leis universais que

regem a criação e o consumo de poesias e quadros, romances e sistemas filosóficos. Melhor

seria dizer “que devem reger”, já que ele toma como missão não só “descobrir” tais leis e

mecanismos, mas acusar aqueles que as transgridam e que assim tornam-se anormais. É nesse

cenário que Nordau afia sua espada e procura decepar as cabeças dos inimigos, que identifica

justamente entre manifestações que são, por sua vez, também consequências culturais do

naturalismo.

Quando a extrema direita alemã e, mais tarde, os nacional-socialistas, se apropriam das

ideias de Nordau, já é outra a arte que se rotula de moderna, e outras as motivações e panoramas

intelectuais que presidem esse processo.

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Referências Bibliográficas

CARPEAUX, Otto Maria. Ensaio sobre Henrik Ibsen. In: IBSEN, Henrik. Seis dramas. Rio de

Janeiro: Ed. Globo, 1960.

GOULD, Stephen Jay. A ameixa sem caroço instrui o caniço pensante? In: Dinossauro no

Palheiro – Reflexões sobre história natural. Trad. Carlos Afonso Malferrari. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003.

HAKE, Alfred Egmont. Regeneration: A Reply to Max Nordau. Westminster: Archibald

Constable & Co., 1895.

LOMBROSO, Cesare. The Man of Genius. London: Walter Scott, 1891.

MARTIN, Kingsley. French liberal thought in the Eighteenth Century – A Study in political

ideas from Bayle to Condorcet. New York: First Harper Torchbook, 1963.

NORDAU, Anna; NORDAU, Maxa. Max Nordau – A Biography. New York: Nordau

Committee, 1943.

NORDAU, Max Simon. Degeneration. London: William Heinemann Publisher, 1895.

PETERS, Olaf. From Nordau to Hitler. In: PETERS, Olaf (org.). Degenerate Art – The Attack

on Modern Art in Nazy Germany, 1937. New York: Neue Galerie, 2014.

PICK, Daniel. Faces of Degeneration: a European disorder, c. 1848 - c. 1918. Cambridge:

Cambridge University Press, 1989.

SHEON, Aaron. Van Gogh’s Understanding of Theories of Neurosis, Neurasthenia and

Degeneration in the 1880s. In: MASHECK, Joseph D (org.). Van Gogh 100. Westport: Hofstra

University, 1996. p. 173-191.

STERN, Fritz. The Politics of Cultural Despair: a study in the Rise of the Germanic Ideology.

Berkeley: University of California Press, 1974.