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Chapecó, v. 15, n. 1, p. 75-102, jan./jun. 2014 EJJL 75 TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO INTERNATIONAL TREATIES ON HUMAN RIGHTS AND THE CONVENTIONALITY CONTROL IN BRAZILIAN LAW Resumo: Os tratados de direitos humanos são um componente importante do ordenamento jurídico brasileiro, de modo que se buscou analisar como esses instrumentos internacionais se inserem no direito brasileiro, apresentando a tese aceita pelo órgão supremo do Poder Judiciário do país, o Su- premo Tribunal Federal, e também a tese diver- gente que tem se destacado na doutrina, haja vista sua convergência com a lógica internacionalista, representada pelo jurista Valerio de Oliveira Ma- zzuoli. Assim, a partir da apresentação das teses da supralegalidade e da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos e da avaliação da jurisprudência nacional e internacional é analisa- do como esses tratados influenciam a produção normativa do país enquanto paradigma de con- trole vertical material, que se denomina contro- le de convencionalidade, das leis. Da análise da jurisprudência nacional em casos emblemáticos que admitiam o controle de convencionalidade, observou-se que o Brasil ainda tem um caminho a trilhar no que se refere a desenvolver uma prática do controle de convencionalidade no país, prática essa necessária, uma vez que contribuirá para a efetivação da proteção aos direitos fundamentais prevista na ordem constitucional brasileira. Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Controle de convencionalidade. Dupla compatibi- lidade vertical. Tratados de direitos humanos. Abstract: The treaties of human rights are an im- portant component of the Brazilian legal system, so that it was sought to analyze how these internatio- nal instruments fall within the Brazilian law, pre- senting the thesis accepted by the supreme body of the country’s Judiciary, the Supreme Court, and also the divergent thesis that has excelled in the doctrine, given their convergence with internatio- nalist logic, represented by jurist Valerio de Olivei- ra Mazzuoli. Thereby, from the theses presentation of the “supra-legality” and of the constitutionality of the treaties on Human Rights and the assess- ment of national and international jurisprudence is analyzed how these treaties influence national normative production while paradigm of material vertical control, called conventionality control of laws. From the analysis of national jurisprudence in emblematic cases that allowed conventionality control, it was observed that Brazil still has a way to go to develop a practice of the conventionality control in the country; implementing this is ne- cessary, since it will contribute to the completion of the fundamental rights protection expected on Brazilian constitutional order. Keywords: Constitutionality Control. Conventio- nality Control. Double Vertical Compatibility. Hu- man rights treaties. Luiza Diamantino Moura * * Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Professora de Direito Internacional da Faculdade de Pará de Minas; Rua Ricardo Marinho, 110, São Geraldo, 35660-398, Pará de Minas, MG; [email protected]

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Artigo Controle de Convencionalidade - UNOESC.

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  • Chapec, v. 15, n. 1, p. 75-102, jan./jun. 2014EJJL 75

    TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO

    INTERNATIONAL TREATIES ON HUMAN RIGHTS AND THE CONVENTIONALITY CONTROL IN BRAZILIAN LAW

    Resumo: Os tratados de direitos humanos so um componente importante do ordenamento jurdico brasileiro, de modo que se buscou analisar como esses instrumentos internacionais se inserem no direito brasileiro, apresentando a tese aceita pelo rgo supremo do Poder Judicirio do pas, o Su-premo Tribunal Federal, e tambm a tese diver-gente que tem se destacado na doutrina, haja vista sua convergncia com a lgica internacionalista, representada pelo jurista Valerio de Oliveira Ma-zzuoli. Assim, a partir da apresentao das teses da supralegalidade e da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos e da avaliao da jurisprudncia nacional e internacional analisa-do como esses tratados influenciam a produo normativa do pas enquanto paradigma de con-trole vertical material, que se denomina contro-le de convencionalidade, das leis. Da anlise da jurisprudncia nacional em casos emblemticos que admitiam o controle de convencionalidade, observou-se que o Brasil ainda tem um caminho a trilhar no que se refere a desenvolver uma prtica do controle de convencionalidade no pas, prtica essa necessria, uma vez que contribuir para a efetivao da proteo aos direitos fundamentais prevista na ordem constitucional brasileira. Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Controle de convencionalidade. Dupla compatibi-lidade vertical. Tratados de direitos humanos.

    Abstract: The treaties of human rights are an im-portant component of the Brazilian legal system, so that it was sought to analyze how these internatio-nal instruments fall within the Brazilian law, pre-senting the thesis accepted by the supreme body of the countrys Judiciary, the Supreme Court, and also the divergent thesis that has excelled in the doctrine, given their convergence with internatio-nalist logic, represented by jurist Valerio de Olivei-ra Mazzuoli. Thereby, from the theses presentation of the supra-legality and of the constitutionality of the treaties on Human Rights and the assess-ment of national and international jurisprudence is analyzed how these treaties influence national normative production while paradigm of material vertical control, called conventionality control of laws. From the analysis of national jurisprudence in emblematic cases that allowed conventionality control, it was observed that Brazil still has a way to go to develop a practice of the conventionality control in the country; implementing this is ne-cessary, since it will contribute to the completion of the fundamental rights protection expected on Brazilian constitutional order.Keywords: Constitutionality Control. Conventio-nality Control. Double Vertical Compatibility. Hu-man rights treaties.

    Luiza Diamantino Moura*

    * Mestre em Direito Pblico pela Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Bacharel em Relaes Internacionais pela Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais; Professora de Direito Internacional da Faculdade de Par de Minas; Rua Ricardo Marinho, 110, So Geraldo, 35660-398, Par de Minas, MG; [email protected]

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    Introduo

    possvel perceber nas ltimas dcadas a emergncia de um sistema internacional de proteo aos direitos humanos. A este corresponde uma infinidade de instrumentos convencionais de ndole global e regional, aos quais se denomina tratados de direitos humanos.

    Os tratados de direitos humanos compreendem todos os instrumentos interna-cionais que de alguma maneira consagrem direitos s pessoas, protegendo-as de qual-quer ato que atente contra sua dignidade.

    Enquanto instrumentos caractersticos do Direito Internacional, mas que ga-nham destaque e notoriedade com o passar dos anos, mesmo quando o tema a poltica interna dos Estados, levantam-se questionamentos acerca de como ocorre a sua insero no Direito interno, ou seja, como esses instrumentos internacionais se relacionam com as normas domsticas do pas.

    Podem-se destacar duas teses principais em torno das quais gira a discusso atual sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos no direito brasileiro. A primei-ra delas a tese adotada pelo Supremo Tribunal Federal, que se posicionou no sentido de que os tratados de direitos humanos tm posio supralegal no ordenamento jurdi-co brasileiro, estando situados abaixo da Constituio Federal, mas acima da legislao ordinria. A segunda tese, apresentada pela doutrina, com destaque para o trabalho do jurista internacionalista Valrio de Oliveira Mazzuoli, diverge do posicionamento do rgo supremo do Judicirio nacional, defendendo a constitucionalidade desses instru-mentos em face de seu contedo protetivo do ser humano e da sua convergncia com a lgica prevalecente no direito internacional.

    O objetivo deste artigo justamente apreender, por meio de um estudo biblio-grfico e do exame de jurisprudncia nacional e internacional, bem como da anlise da legislao existente, como os tratados de direitos humanos se inserem no ordenamento jurdico brasileiro, apresentando, tambm, como esses instrumentos vo influenciar a produo normativa interna do pas, o que se denomina teoria do controle jurisdicional da convencionalidade das leis no Brasil. O estudo, portanto, vai suscitar alguns pontos inovadores referentes produo das leis, na tentativa de contribuir para discusses mais amplas sobre a questo da dupla compatibilidade vertical material das normas e o controle de convencionalidade dela decorrente.

    1 O status hierrquico dos tratados de direitos humanos no direito brasileiro

    Para entender como os tratados de direitos humanos se inserem no direito bra-sileiro preciso aferir sobre o status hierrquico desses instrumentos no ordenamento jurdico. Nesse sentido, cabe, inicialmente, uma anlise dos 2 e 3 do Artigo 5 da Constituio Federal.

    De fato, a Constituio deu um passo extraordinrio rumo abertura do siste-ma jurdico brasileiro ao sistema internacional de proteo dos direitos humanos, quan-

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    do no 2 do Artigo 5 estabeleceu que Os direitos e garantias expressos nesta Consti-tuio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.

    Com base nesse dispositivo do 2, possvel defender que os tratados inter-nacionais ratificados pelo Brasil tm ndole e nvel constitucionais, de modo que no podem ser revogados por lei ordinria posterior ou especial. Essa a posio que a doutrina mais abalizada sobre o tema tem defendido na qual se destaca o trabalho dos juristas Valerio de Oliveira Mazzuoli, Flvia Piovesan e Antnio Augusto Canado Trindade com base no argumento de que

    [...] se a Constituio estabelece que os direitos e garantias nela elencados no excluem outros provenientes dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte, porque ela prpria est a autorizar que esses direitos e garantias internacionais constantes dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil se incluem no nosso ordenamento jurdico interno, passando a ser considerados como se escritos na Constituio estivessem. dizer, se os direitos e garantias expressos no texto constitucional no excluem outros provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, porque, pela lgica, na medida em que tais instrumentos passam a assegurar outros direitos e garantias, a Constituio os inclui no seu catlogo de direi-tos protegidos, ampliando o seu bloco de constitucionalidade. (MAZZUOLI, 2011, p. 28-29).

    De acordo com Piovesan (2012), o Artigo 5, 2 da Constituio assegura, por si s, a hierarquia de norma constitucional a tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, de modo que, em decorrncia da natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais, os direitos internacionais passariam tambm a integrar o chama-do bloco de constitucionalidade. Nesse sentido, tambm o entendimento de Galindo (2002, p. 410), para quem [...] deve-se defender a posio de que os tratados possuem estrutura hierrquica constitucional.

    Trindade (1993), membro da Corte Internacional de Justia, tambm abaliza essa parte da doutrina, entendendo que no se pode legitimamente esperar que as dis-posies internacionais sejam subordinadas s solues do Direito Pblico Interno, atri-buindo a esses instrumentos hierarquia constitucional. Para ele,

    [...] a especificidade e o carter especial dos tratados de proteo internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituio Brasileira de 1988: se, para os tratados internacionais em ge-ral se tem exigido a intermediao pelo Poder Legislativo de ato com fora de lei de modo a outorgar as suas disposies vigncia ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurdico interno, distintamente no caso dos tratados de proteo internacional dos direitos humanos em que o Brasil Parte, os direitos fundamentais nele garantidos passam, consoante os artigos 5(2) e 5(1) da Cons-tituio Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigveis no plano do ordenamento jur-dico interno. (TRINDADE, 2003, p. 513).

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    Essa no , contudo, a posio adotada pela Corte Suprema do pas.1 Para o Supremo Tribunal Federal, o entendimento de que os tratados de direitos humanos no Brasil seriam superiores lei ordinria, mas inferiores Constituio, tendo, portanto, status de norma supralegal.

    Segundo esta corrente de pensamento, os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, apesar de no possurem hierarquia constitucional (ou seja, devem se subordinar Constituio, sendo passveis, portanto, de con-trole de constitucionalidade), possuem um status superior legislao infra-constitucional, que deve como ele se conformar. Dessa forma, o tratado, ao ser incorporado ao Direito brasileiro, revoga a legislao infraconstitucional que no seja com ele compatvel, mas no poder ser revogado por uma lei infra-constitucional posterior.Foi o Ministro Seplveda Pertence quem inaugurou esse raciocnio no Brasil, ao proferir o seu voto, em sesso plenria do Supremo Tribunal Federal, no jul-gamento do Recurso Ordinrio em Habeas Corpus n. 79.785/RJ [29/03/2000]. (PRADO, 2010, p. 229).

    A tese do Ministro no foi, contudo, acatada pelo Supremo nessa oportunidade, mas somente no Recurso Extraordinrio 466.343-1/SP, de 3 de dezembro de 2008. H de se destacar que nessa histrica deciso de 2008 estavam em pauta no Supremo Tribunal duas correntes. O Ministro Gilmar Mendes sustentava o valor supralegal dos tratados de direitos humanos, enquanto o Ministro Celso de Mello sustentava valor constitucional desses tratados,2 amparado substancialmente na doutrina dos j citados Antnio Augus-to Trindade, Flvia Piovesan e Valrio Mazzuoli. A tese do Ministro Gilmar Mendes da supralegalidade saiu vencedora do julgamento, de modo que se reconhece que os trata-dos de direitos humanos vigentes no Brasil e em vigor internacionalmente valem mais do que a lei e menos que a Constituio.

    Foram votos parcialmente vencidos, no tocante ao estatuto normativo dos tra-tados de Direitos Humanos, os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie, que sustentaram a hierarquia constitucional de todos os tra-tados sobre Direitos Humanos, aprovados ou no pelo rito especial do art. 5, 3. De fato, para Celso de Mello, trata-se de adaptar a CF/88, pela via interpre-tativa, ao novo contexto social de aceitao da internacionalizao dos Direitos Humanos. Assim, o Ministro Celso de Mello, revendo sua posio anterior, sustentou que os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil integram o ordenamento jurdico como norma de estatura constitucional. De acordo ainda com a posio do Ministro Celso de Mello, a CF/88 em sua redao original determina a prevalncia dos Direitos Humanos (art. 4, inc. II da CF/88) e reconhece o estatuto constitucional dos tratados internacionais de Direitos Humanos (art. 5, 2 da CF/88). Desta forma, os tratados de Direi-tos Humanos, mesmo que anteriores a EC 45/04, seriam normas consideradas constitucionais. (RAMOS, 2009, p. 244, grifo nosso).

    1 O entendimento de constitucionalidade dos tratados de direitos humanos, antes do advento da Emenda Constitucio-nal n. 45/2004, mencionada a seguir, somente foi professada no Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Carlos Velloso, em votos como o Habeas Corpus n. 73.131/RJ, Medida Cautelar na Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 1480/DF, e Recurso Extraordinrio n. 206.482/SP (PRADO, 2010). 2 Cabe destacar a radical mudana de entendimento por parte do Ministro Celso de Mello, que havia defendido nos julgamentos anteriores a posio de hierarquia infraconstitucional dos tratados de direitos humanos.

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    Dessa forma, tem-se que o entendimento jurisprudencial que prevaleceu no Su-premo Tribunal Federal no acompanhou a posio majoritria defendida pela doutrina especializada dos internacionalistas brasileiros, externada por autores como Mazzuoli (2011), Piovesan (2012), Galindo (2002) e Trindade (1993, 2001).

    Ressalte-se que esse entendimento , sim, considerado pela doutrina especia-lizada um avano da jurisprudncia brasileira, haja vista que antes da deciso do RE 466.343-1/SP, de 03 de dezembro de 2008, o STF considerava que os tratados de direitos humanos teriam to somente status de lei ordinria, o que implicava grande insegu-rana para qualquer pas que tratasse com o Brasil, pois uma lei ordinria posterior ou especial poderia derrogar um tratado internacional. Esse entendimento de que os trata-dos de direitos humanos possuam nvel infraconstitucional era balizado no somente pela jurisprudncia nacional em julgamentos como o Habeas Corpus n. 72.131/RJ (de 23/11/1995), Medida Cautelar na Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 1.480/DF (de 04/09/1997), Habeas Corpus n. 76.561/SP (de 27/05/1998), Recurso Extraordinrio n. 206.482/SP (de 27/05/1998), Recurso Ordinrio em Habeas Corpus n. 79.785/RJ (de 29/03/2000) e Habeas Corpus n. 81.319/GO (de 24/04/2002) mas tambm por parte da doutrina, a exemplo dos constitucionalistas Jos Levi Mello do Amaral Junior (2005), Manoel Gonalves Ferreira Filho (2008), Alexandre de Moraes (2009) e Maurcio An-dreiuolo Rodrigues (2001) (PRADO, 2010).

    No obstante o entendimento, hoje, majoritrio do Supremo Tribunal Federal de que os tratados de direitos humanos tm hierarquia supralegal, parece lgico que a clusula aberta do 2 do Artigo 5 da Constituio vem incluir os tratados de direitos humanos no mesmo grau hierrquico das normas constitucionais, o que equivale a di-zer que todos os tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro e que estejam em vigor tm ndole e nvel constitucional, ou seja, so materialmente constitu-cionais.

    Nesse sentido, Piovesan (2012) e Mazzuoli (2011) identificam que existiriam trs modalidades de direitos e garantias individuais:

    a) os direitos e garantias expressos na Constituio (como os elencados nos incisos do Artigo 5);

    b) os direitos e garantias implcitos, subentendidos nas regras de garantias e decorrentes dos princpios da Constituio;

    c) os direitos e garantias inscritos nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte.

    De forma expressa, a Carta de 1988 atribuiu aos tratados internacionais de proteo dos direitos humanos devidamente ratificados pelo Estado brasileiro a condio de fontes do sistema constitucional [...] de proteo de direitos no mesmo plano de eficcia e igualdade daqueles direitos, expressa ou implicita-mente, consagrados pelo texto constitucional, o que justifica o status de norma constitucional que detm tais instrumentos internacionais no ordenamento ju-rdico brasileiro. (MAZZUOLI, 2011, p. 30, grifo nosso).

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    Apesar de se admitir aqui que a clusula do 2 do Artigo 5 da Constituio sem-pre admitiu o ingresso dos tratados internacionais de proteo dos direitos humanos no mesmo grau hierrquico das normas constitucionais, os diferentes posicionamentos apre-sentados indicam como o tema nunca foi pacfico na doutrina ou na jurisprudncia, como se depreende das discusses de teses divergentes no mbito do Supremo Tribunal Federal.

    Assim, com o intuito de por fim s discusses doutrinrias e jurisprudenciais relativas hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento brasileiro, a Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, adicionou ao Ar-tigo 5 da Constituio o 3, pelo qual: Os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por trs quintos dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emen-das constitucionais.

    Esse dispositivo do Artigo 5, 3 da Constituio cuja redao semelhante do Artigo 60, 2, que trata das emendas Constituio estabelece uma nova for-ma de aprovao para os tratados de direitos humanos. Assim, se antes da entrada em vigor da Emenda 45/2004, os tratados internacionais de direitos humanos para serem ratificados pelo Presidente da Repblica, eram exclusivamente aprovados por meio de Decreto Legislativo, por maioria simples (nos termos do Artigo 49, inciso I, da Constitui-o), agora se tem a possibilidade desses tratados serem aprovados nas duas Casas do Congresso, em dois turnos, por trs quintos dos votos antes de serem ratificados, o que os torna equivalentes s emendas constitucionais.3 Ora, os tratados de direitos humanos continuam devendo ser aprovados por decreto legislativo, mas pode o Parlamento de-cidir se com o qurum para equivalncia de emenda constitucional ( 3 do Artigo 5 da Constituio) ou sem ele.

    Com efeito, apesar do propsito de colocar fim s controvrsias sobre o nvel hierrquico dos tratados de direitos humanos no Brasil, a Emenda 45/2004 no parece ter alcanado esse objetivo. Isso porque, ao invs de reafirmar o sentido do 2, acaba por trazer novas incongruncias ao induzir concluso de que apenas os tratados apro-vados por maioria qualificada pelas duas Casas do Congresso Nacional teriam valor hierrquico de norma constitucional; e os aprovados sem esse procedimento especfico teriam valor infraconstitucional. Mesmo quando o qurum para aprovao do decreto no for o do 3, ainda assim prevalece a lgica da constitucionalidade desses instru-mentos internacionais (ou da supralegalidade no caso do entendimento do Supremo Tribunal Federal), visto que decorrem do preceito do 2 do Artigo 5.4

    3 [...] pode o Congresso Nacional aprovar o tratado pela sistemtica do Artigo 5, 3, [...] mas tal aprovao no coloca o tratado em vigor no plano interno com equivalncia de emenda constitucional, o que somente ir ocorrer aps ser o tratado ratificado e desde que este j vigore no plano internacional. (MAZZUOLI, 2011, p. 49). 4 Alm disso, a Emenda n. 45/2004 cria categorias jurdicas diferentes para instrumentos internacionais de direitos hu-manos ratificados pelo Brasil, com ou sem o procedimento do 3, o que no faz o menor sentido e viola o princpio jurdico da isonomia quando trata diferentemente instrumentos que so iguais.

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    O qurum qualificado trazido pela EC n. 45 apenas refora a natureza consti-tucional dos instrumentos, [...] ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a constitucionalizao formal dos tratados de direitos humanos no mbito jurdico interno. (PIOVESAN, 2012, p. 128). O que se verifica, por-tanto, que [...] o qurum que o 3 do Art. 5 estabelece serve to somente para atri-buir eficcia formal a esses tratados no nosso ordenamento jurdico interno, e no para atribuir-lhes a ndole e o nvel materialmente constitucionais que eles j tm em virtude do 2 do Art. 5 da Constituio. (MAZZUOLI, 2011, p. 51).

    O 3 traz o procedimento especfico pelo qual um tratado de direitos huma-nos se torna equivalente a uma emenda constitucional, independentemente da determi-nao de seu contedo constitucional. De acordo com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, portanto, apenas os tratados de direitos humanos aprovados com o qurum qualificado do 3 teriam nvel constitucional, pois so equivalentes s emendas constitucionais.

    Falar que um tratado tem status de norma constitucional o mesmo que dizer que ele integra o bloco de constitucionalidade material (e no formal) de nossa Carta Magna, o que menos amplo que dizer que ele equivalente a uma emenda constitucional, o que significa que esse mesmo tratado j integra formalmente (alm de materialmente) o texto constitucional. Assim, o que se quer dizer que o regime material (menos amplo) dos tratados de direitos hu-manos no pode ser confundido com o regime formal (mais amplo) que esses mesmos tratados podem ter, se aprovados pela maioria qualificada ali estabe-lecida. (MAZZUOLI, 2011, p. 52).

    Assim, decorrem do 3 do Artigo 5 da Constituio efeitos mais amplos a serem atribudos aos tratados de direitos humanos que equivalem a emendas constitu-cionais. So trs esses efeitos:

    a) os tratados de direitos humanos equivalentes a emendas passam a reformar a Constituio, o que no possvel sendo apenas materialmente constitu-cionais;

    b) os tratados no podero ser denunciados, uma vez que equivalem s emen-das constitucionais que so, em matria de direitos humanos, clusulas p-treas do nosso ordenamento, podendo inclusive ensejar responsabilizao do Presidente da Repblica caso o faa;

    c) esses tratados de direitos humanos equivalentes a emendas sero paradig-mas do controle concentrado de convencionalidade, como se ver detalha-damente a seguir.

    3 O controle de convencionalidade das leis no Brasil

    De acordo com a posio adotada pelo Supremo Tribunal Federal, exposta an-teriormente, apenas os tratados de direitos humanos em vigor e ratificados pelo Brasil pelo qurum qualificado no 3 do Artigo 5 da Constituio teriam nvel constitucional,

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    sendo equivalentes s emendas constitucionais. Por outro lado, os demais tratados de direitos humanos que no cumpriram esse procedimento especfico teriam nvel supra-legal, localizando-se entre a Constituio e a legislao ordinria na pirmide normativa.

    Nesse sentido, em ambos os casos possvel aferir a possibilidade dos tratados de direitos humanos servirem de paradigma para o controle de convencionalidade no pas, que compreende a compatibilizao vertical das leis, tendo como parmetro de controle as convenes internacionais de direitos humanos ratificadas e em vigor no Brasil.

    Assim, se a compatibilidade das leis com a Constituio feita por meio do controle de constitucionalidade, e como os tratados de direitos humanos no Brasil so materialmente constitucionais, a compatibilidade das leis com esses tratados deve ser feita por meio de um controle de convencionalidade. Desse modo, o controle de conven-cionalidade no se confunde com o controle de constitucionalidade.

    3.1 A dupla compatibilidade vertical material

    Como visto, o Artigo 5 da Constituio, em seu 2, traz trs vertentes de direi-tos e garantias fundamentais: aqueles expressos no texto constitucional, os implcitos na Constituio e os provenientes de tratados internacionais que tratem de direitos huma-nos. Dessa forma, as normas infraconstitucionais que vierem a ser produzidas no Brasil, para serem compatveis com o atual Estado Democrtico de Direito brasileiro devem passar por dois nveis de aprovao.

    Em consonncia com o entendimento da Corte Suprema do pas, o primeiro n-vel seria o relativo Constituio e aos tratados de direitos humanos ratificados pelo go-verno e aprovados com o qurum que os torna equivalentes s emendas, ou seja, aqueles tratados de direitos humanos formalmente constitucionais. O segundo nvel seria o da aprovao quanto aos tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor, mas que no passaram pelo procedimento especfico de aprovao do 3 do Artigo 5 da Constituio, e que compreendem nvel supralegal de acordo com o STF.

    J pelo entendimento apresentado pela doutrina de juristas como Mazzuoli (2011) e Piovesan (2012), expostos anteriormente, como todos os tratados de direitos humanos so ao menos materialmente constitucionais, sendo material e formalmente constitucionais quando aprovados com o qurum qualificado, a lgica dos nveis de compatibilidade vertical das normas diferenciado.

    Em decorrncia desse entendimento, Mazzuoli (2011) coloca que o primeiro nvel de aprovao vertical das leis compreende a Constituio e todos os tratados de direitos humanos ratificados e em vigor, independentemente de terem sido ou no apro-vados pelo procedimento do 3 do Artigo 5; enquanto o segundo nvel compreende os tratados internacionais comuns tambm ratificados e em vigor no pas, os quais ele considera supralegais.5

    5 Para Mazzuoli (2011), os tratados internacionais comuns, ou seja, que no versam sobre direitos humanos, tambm tm status superior ao das leis ordinrias, mas no se equiparam s normas constitucionais. Assim, esses tratados internacio-

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    Dessa dupla compatibilidade vertical decorre que a validade das leis no direito interno no garantida apenas pela conformidade com o texto da Constituio, mas tambm pela conformidade com os tratados internacionais ratificados pelo pas e que estejam em vigor. O simples fato de a norma ser vigente no mais equivale a dizer que ela vlida, o que derruba as proposies da dogmtica positivista clssica que toma a norma vigente como vlida e a norma vlida como vigente.

    [...] Caso a norma esteja de acordo com a Constituio, mas no como eventual tratado j ratificado e em vigor no plano interno, poder ela ser at considerada vigente (pois, repita-se, est de acordo com o texto constitucional e no poderia ser de outra forma) e ainda continuar perambulando nos compndios legis-lativos publicados , mas no poder ser tida como vlida, por no ter passado imune a um dos limites verticais materiais agora existentes: os tratados inter-nacionais em vigor no plano interno. Ou seja, a incompatibilidade da produo normativa domstica com os tratados internacionais em vigor no plano interno (ainda que tudo seja compatvel com a Constituio) torna invlidas as normas jurdicas de direito interno. (MAZZUOLI, 2009, p. 108, grifo nosso).

    Assim, no existe equivalncia entre ser lei vigente e ser lei vlida. Lei vigente aquela que existe no plano legislativo, que est conforme as normas formais para a sua criao. Em contrapartida, lei vlida aquela coerente e compatvel com as normas substanciais que orientam a produo do direito interno a Constituio e os tratados internacionais em vigor ratificados pelo pas.

    Para ser eficaz, ou seja, para produzir efeitos na realidade social, a norma precisa ser vlida, e para ser vlida, dever ser tambm vigente, mas a recproca no verdadeira [...] trata-se de uma escala de valores onde, em primeiro lugar, encontra-se a vigncia, depois a validade e, por ltimo, a eficcia. (MAZZUOLI, 2009, p. 113, grifo nosso). Nesse sentido, no basta aferir que a norma vigente para que possa ser aplicada em determi-nada situao. Somente se a lei for vlida pode ser eficaz, e a lei somente ser vlida se compatvel com a Constituio e com os tratados internacionais (de direitos humanos ou no, respectivamente, se pela tese do STF ou pela do MAZZUOLI) ratificados e em vigor.

    Ante o exposto, a produo normativa no Brasil deve estar atenta a essa dupla compatibilidade vertical material, que compreende tanto o conhecido controle de cons-titucionalidade como o novo controle de convencionalidade.6

    3.2 O controle de constitucionalidade

    O controle de constitucionalidade compreende a compatibilidade com o texto constitucional para fins de vigncia e validade da produo normativa domstica. Para

    nais comuns tm status supralegal no Brasil, no podendo ser revogados por lei interna posterior, e corresponderia a eles um controle de supralegalidade das normas infraconstitucionais. 6 A teoria completa do controle jurisdicional de convencionalidade das leis apresentada por Mazzuoli era indita no Brasil quando foi apresentada em sua tese de doutoramento (2008). Alguns estudiosos utilizaram a expresso antes de Mazzuoli, como o Professor Andr de Carvalho Ramos, da USP, mas sem desenvolver uma teoria completa do controle da legislao interna para o Brasil.

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    Chapec, v. 15, n. 1, p. 75-102, jan./jun. 2014EJJL84

    o controle de constitucionalidade devem ser observados no somente os limites formais constantes da Constituio, mas tambm os limites materiais fornecidos por ela.

    De fato, De acordo com o novo paradigma do ECD [Estado Constitucional de Direito] a produo legislativa (agora) encontra limites formais e materiais, ou seja, no pode violar o ncleo essencial de cada direito, no pode fazer restries desarrazoadas aos direitos fundamentais etc. (GOMES apud MAZZUOLI, 2009, p. 121).

    Assim, em consonncia com o 2 do Artigo 5 da Constituio, tem-se que a constitucionalidade das leis deve ser aferida quanto a dois aspectos: quanto aos direitos expressos na Constituio e quanto aos direitos implcitos no texto constitucional.

    Tem-se, portanto, que para a norma ser vlida, e posteriormente eficaz, ne-cessrio que seja antes de tudo compatvel com os direitos expressos na Constituio. Alm disso, deve estar ainda de acordo com os direitos implcitos, ou seja, aqueles [...] que provm ou podem vir a provir do regime e dos princpios por ela [Constituio] adotados. (MAZZUOLI, 2009, p. 124).

    Nesse sentido, o controle de constitucionalidade o primeiro limite vertical ma-terial a ser considerado quando da produo normativa, e sua no observncia implica em vcio jurdico a ser sanado pelo operador do Direito.

    O vcio de inconstitucionalidade pode ser combatido tanto pela via difusa quan-to pela via concentrada. A via difusa pode ser utilizada por qualquer cidado quando a inconstitucionalidade estiver presente em um caso concreto, arguida, portanto, como via de exceo ou de defesa em qualquer juzo ou tribunal. J o controle pela via concentrada ocorre por meio das aes de controle abstrato, especialmente pela Ao Direta de In-constitucionalidade (Adin) perante o rgo supremo do Judicirio o Supremo Tribunal Federal e ajuizada por um dos legitimados do Artigo 103 da Constituio Federal.

    H de se destacar que

    [...] neste primeiro momento de compatibilidade das leis com o Texto Magno, a falta de validade normativa daquelas e sua expulso do ordenamento jurdi-co contribui para o dilogo das fontes, na medida em que se retira da conversa normativa a lei que no tem argumentos vlidos que a autorizem a continuar no dilogo (pois ela inconstitucional e, portanto, invlida). Assim, retira-se da lei a possibilidade de continuar conversando e dialogando com as outras fontes jurdicas, autorizando-se a participao nessa conversa apenas fontes vlidas e eficazes. (MAZZUOLI, 2009, p. 123, grifo nosso).

    De fato, no dilogo das fontes somente resistem as normas dotadas de validade, ou seja, aquelas que passaram pelo crivo do controle de constitucionalidade, tanto aos direitos expressos quanto aos implcitos no Texto Constitucional.

    Isso posto, passa-se ao segundo limite vertical material de produo normativa.

    3.3 O controle de convencionalidade das leis

    O segundo limite vertical material consiste no controle de convencionalidade das leis, que compreende a compatibilidade do direito interno com os tratados interna-

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    Chapec, v. 15, n. 1, p. 75-102, jan./jun. 2014EJJL 85

    cionais em vigor do pas (notadamente os de direitos humanos, mas no somente eles), e significa que a norma domstica deve tambm ser compatvel com a ordem jurdica internacional, ou seja, que no viole os preceitos de Direito Internacional que obrigam o pas. Tem-se, portanto, que o controle de convencionalidade complementar ao tradi-cional controle de constitucionalidade das leis.

    Sagus (2012) identifica trs fundamentos principais que envolvem o controle de convencionalidade:

    a) o princpio da boa-f no cumprimento das obrigaes internacionais por parte dos Estados, ou seja, a obrigao de cumprir com o que foi pactuado (pacta sunt servanda);

    b) o princpio do efeito til dos convnios, cuja eficcia no pode ser afastada por normas ou prticas dos Estados;

    c) a no alegao do direito interno para eximir-se dos deveres pactuados internacionalmente, constante da Conveno de Viena sobre o direito dos tratados.

    Apesar de ainda pouco difundida a expresso controle de convencionalidade no Brasil, o fato que a compatibilizao vertical das normas internas com os tratados de direitos humanos essencial para a validade das normas.

    Nesse sentido, entende-se que o controle de convencionalidade deve ser exerci-do pelos rgos da justia nacional relativamente aos tratados aos quais o pas se encontra vinculado. Trata-se de adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para este deveres no plano internacional com reflexos prticos no plano de seu direito interno. (MAZZUOLI, 2009, p. 129, grifo nosso).

    medida que o [...] fato de serem os tratados internacionais (notadamente os de direitos humanos) imediatamente aplicveis no mbito domstico garante a legitimi-dade dos controles de convencionalidade e de supralegalidade [...] (MAZZUOLI, 2009, p. 130), o controle de convencionalidade das normas infraconstitucionais pelos tribunais locais no requer qualquer autorizao especial.

    Na prtica, isso significa que o controle de convencionalidade das leis pode se dar mesmo em carter difuso (como o controle difuso de constitucionalidade), com qualquer juiz ou tribunal se manifestando sobre ele quando levantado como defesa ou exceo frente a um caso concreto. medida que os tratados forem sendo incorporados ao direito ptrio os tribunais locais [...] podem, desde j e independentemente de qual-quer condio ulterior, compatibilizar as leis domsticas com o contedo dos tratados (de direitos humanos ou comuns) vigentes no pas. (MAZZUOLI, 2009, p. 130-131).

    Ainda, existe tambm o controle de convencionalidade concentrado, que ocorre perante o Supremo Tribunal Federal. De fato, pelo controle de convencionalidade con-centrado, os legitimados do Artigo 103 da Constituio podem propor ao STF as aes de controle abstrato (ADIN, ADECON, ADPF, etc.) para compatibilizar a legislao infra-

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    constitucional com o disposto nos tratados internacionais de direitos humanos. Assim, se para o controle de constitucionalidade admite-se, por exemplo, a Ao Declaratria de Inconstitucionalidade ou a Ao Declaratria de Constitucionalidade, nos termos do controle de convencionalidade pode-se pensar em Ao Declaratria de Inconvenciona-lidade ou em Ao Declaratria de Convencionalidade.

    H de se destacar que para os tratados que cumpriram o rito do 3 do Artigo 5 da Constituio e que equivalem a emendas constitucionais admite-se o controle de convencionalidade difuso ou o controle de convencionalidade concentrado. J para os tratados de direitos humanos que no cumpriram o 3, enquanto instrumentos mate-rialmente constitucionais, seria possvel apenas o controle difuso de convencionalidade.

    Assim, bom deixar claro que o controle de convencionalidade difuso existe en-tre ns desde a promulgao da Constituio, em 05.10.1988, e desde a entrada em vigor dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil aps esse pe-rodo, no obstante jamais qualquer doutrina no Brasil ter feito referncia a esta terminologia. J o controle de convencionalidade concentrado, este sim, nascera apenas em 08.12.2004, com a promulgao da EC 45/2004. (MAZZUOLI, 2009, p. 131, grifo nosso).

    Ademais, a compatibilidade das normas infraconstitucionais com os tratados internacionais em vigor no pas, que caracteriza o controle de convencionalidade, deve acontecer, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, apenas quanto aos tratados de direitos humanos. Assim, os direitos expressos e implcitos nos tratados de direitos humanos devem ser paradigmas da produo das normas internas no pas, para que, assim, possam ser vigentes e vlidas em nossa ordem jurdica.

    Por outro lado, Mazzuoli (2011)7 considera que tambm o controle de conven-cionalidade deve ocorrer em dois mbitos. Assim, para alm do controle de convencio-nalidade relativamente aos direitos previstos nos tratados de direitos humanos, o reno-mado jurista considera que deve ser realizado um controle relativamente aos direitos previstos nos tratados comuns. A estes, que se encontram em nvel abaixo da Constitui-o, mas acima da legislao ordinria nvel supralegal corresponderia um controle de supralegalidade. Por no ser objeto deste estudo, no se deter mais sobre esse ponto (MAZZUOLI, 2011), mas o que interessa aqui perceber como a questo dos tratados internacionais no direito brasileiro ainda no pacfica em nosso pas.

    De qualquer forma,

    A falta de compatibilizao do direito infraconstitucional com os direitos pre-vistos nos tratados de que o Brasil parte [somente os tratados de direitos hu-manos na posio do STF] invalida a produo normativa domstica, fazendo-a cessar de operar no mundo jurdico. Frise-se que tais normas infraconstitucio-nais, que no passaram inclumes segunda etapa da primeira compatibiliza-o vertical material, deixam de ser vlidas no plano jurdico, mas ainda con-tinuam vigentes nesse mesmo plano, uma vez que sobreviveram ao primeiro momento da primeira compatibilidade vertical material (a compatibilidade

    7 Mazzuoli (2011) foi o primeiro na doutrina a falar em controle difuso e concentrado de convencionalidade.

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    com a Constituio). Por isso [...] dever-se- ter em conta que nem toda lei vi-gente uma lei vlida, e o juiz estar obrigado a deixar de aplicar a lei invlida (contrria a um direito previsto em tratado de direitos humanos em vigor no pas), no obstante ainda vigente (porque de acordo com a Constituio). (MA-ZZUOLI, 2009, p. 134, grifo nosso).

    Tambm Ramos (2009, p. 245) se posiciona a favor de um controle de conven-cionalidade de Direitos Humanos, entendido como [...] a anlise da compatibilidade das normas internas s normas de tratados internacionais de Direitos Humanos ratifi-cados pelo Brasil. Um dos primeiros autores a utilizar a expresso controle de con-vencionalidade e defender sua existncia no Brasil, ele aborda tal controle como uma tcnica legislativa em que se [...] deixa de adotar uma determinada lei que viole um Tratado Internacional de Direitos Humanos aderido pelo Estado, no intuito de afastar a responsabilidade internacional do Estado por ato do Poder Legislativo. (MAZZUOLI apud GONALVES, 2013, p. 403).

    Nas palavras de Ramos (2009, p. 258-259, grifo nosso):

    [...] o controle de convencionalidade analisa, sim, apenas se a norma internacional foi violada por meio da prpria aplicao da norma constitucional. Em 2001, em livro sobre a jurisprudncia da Corte Interamericana de Direitos Humanos [...] sus-tentei tambm que era possvel o controle de convencionalidade em abstrato, pugnando que houvesse o crivo das normas internas, mesmo sem qualquer aplicao concreta, com a Conveno Americana de Direitos Humanos.

    Percebe-se que Ramos (2009), contudo, no aprofunda a discusso dos contro-les concentrados e difusos desenvolvida por Mazzuoli (2011), a partir da qual inova na doutrina para alar o controle de convencionalidade a meio judicial de declarao de invalidade de leis incompatveis com tais tratados, tanto por via de exceo quanto por meio de ao direta; tampouco sustenta a possibilidade do controle de convenciona-lidade com relao aos tratados de direito comum, ao que Mazzuoli (2011) denomina controle de supralegalidade.

    Com efeito, a grande diferena entre os trabalhos desenvolvidos pelos dois au-tores acerca do controle de convencionalidade est em que para Mazzuoli (2011) no se trata de tcnica legislativa de compatibilizao dos trabalhos do Legislativo com os instrumentos de direitos humanos ratificados, nem de mecanismo internacional para apurar atos de descumprimento do Estado em relao s suas obrigaes internacionais, mas meio para declarar a validade ou invalidade de leis internas em relao aos compro-missos internacionais pactuados e em vigor no Estado.

    Dessa forma, enquanto Mazzuoli (2011) destaca que o controle de convenciona-lidade deve ser empreendido por qualquer juiz ou tribunal na modalidade difusa, e pelo Supremo nas modalidades difusa ou concentrada, Ramos (2009) coloca que o controle de convencionalidade deve ser feito no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal, vinculando sua tese ao [...] dever do Brasil de cumprir, in totum, as decises da Corte Interamerica-na de Direitos Humanos, ficando sempre tal obrigao acima de eventuais dificuldades

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    de ordem legal, uma vez que o Pacto de San Jos no mnimo ter natureza supralegal. (RAMOS, 2009, p. 259, grifo nosso). Ainda,

    [...] este controle de convencionalidade no pode se limitar a meramente citar o texto da conveno ou tratado de Direitos Humanos: urge que o Brasil, por meio do seu tribunal maior o Supremo Tribunal Federal, exercite um controle de convencionalidade aplicado, ou seja, que utilize a interpretao realizada pelos intrpretes finais destas normas de tratados de Direitos Humanos que so os rgos internacionais de Direitos Humanos institudos por estes citados trata-dos. (RAMOS, 2009, p. 245, grifo nosso).

    Nesse ponto, h de se ressaltar o destaque que tanto Ramos (2009) quanto Ma-zzuoli (2011) atribuem a que seja agregada ao debate da convencionalidade no pas a discusso sobre a interpretao dos tratados pelos rgos em relao aos quais o Brasil j reconheceu a jurisdio obrigatria. Assim, ao empreender o controle de convencio-nalidade, os juzes e os tribunais brasileiros devem estar atentos tambm interpretao que dada aos tratados de direitos humanos pelos tribunais internacionais competentes.

    Com efeito, h de se notar que o controle jurisdicional da convencionalidade das leis vem complementar o mecanismo internacional de apurao dos atos estatais quanto ao cumprimento de suas obrigaes internacionais, de modo que trabalhos como o de Ramos (2009) no devem ser desprezados, mas somados concepo de convencio-nalidade das leis.8

    interessante ainda observar que o controle de convencionalidade das leis tem um plus em relao ao seu controle de constitucionalidade. Isto porque enquan-to o controle de constitucionalidade s possvel de ser exercido por parte de tribunais internos, o de convencionalidade tem lugar tanto no plano interna-cional como no plano interno. Em outras palavras, o controle de constituciona-lidade das leis menos amplo que o seu controle de convencionalidade, o qual pode ser exercido tanto por parte de tribunais internacionais como por parte de tribunais internos. (MAZZUOLI, 2011, p. 137, grifo nosso).

    Assim, a expresso controle de convencionalidade tambm utilizada para se referir compatibilizao das normas locais com os tratados internacionais feita por meio de mecanismos internacionais unilaterais ou coletivos, como a Corte Interameri-cana de Direitos Humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos ou a Corte Interna-cional de Justia. Essa modalidade de controle , inclusive, fruto da criao jurispruden-cial, principalmente por meio dos tribunais protetores dos direitos humanos, ou seja, da Corte Europeia e da Corte Interamericana (SAGUS, 2012). Esses rgos internacionais sero, dessa forma, fonte importante para o desenvolvimento da doutrina do controle de convencionalidade nos pases, que vai sendo construda de fora para dentro nos

    8 Alm do trabalho Ramos (2009), pode-se localizar outros autores latino-americanos que seguem a mesma linha de pesquisa. Assim, por exemplo, o argentino Bazn (2001) trabalha o controle de convencionalidade em relao Corte In-teramericana e o dilogo com a Corte da Argentina, e Sagus (2014) faz uma sntese do sistema interamericano de direitos humanos, apresentando observaes sobre diferentes pases latino-americanos em relao ao controle de convencionali-dade, inclusive sobre o Brasil.

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    sistemas de proteo aos direitos humanos, com destaque para a Corte Interamericana no mbito da Amrica Latina. Tanto assim que

    importante frisar que esse controle de convencionalidade por parte dos tri-bunais internos, da maneira como estamos a defender neste estudo, tem sido ordenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos desde 2006, cujas decises o Brasil se comprometeu (desde 1998, pelo Decreto Legislativo 89) a respeitar e a fielmente cumprir.[...] Esta [a Corte Interamericana] (desde 2006) tem entendido que devam os juzes e tribunais internos proceder ao exame da compatibilidade das leis com a Conveno Americana, levando em conta no somente a Conveno, mas tambm a interpretao que dela faz a Corte Interamericana, intrprete ltima e mais autorizada do Pacto de San Jos. (MAZZUOLI, 2011, p. 84).

    Nesse sentido, pode-se identificar a posio da Corte Interamericana no so-mente em seu Relatrio Anual sobre Direitos Humanos referente ao Exerccio de 2006 (Wa-shington, D.C., 29 de maro de 2007), mas tambm em algumas decises paradigmticas.

    A ttulo de exemplo, pode-se destacar, primeiramente, sua deciso no Caso Al-monacid Arellano e outros Vs. Chile, julgado em 2006, na qual se ressaltou o dever dos Esta-dos-parte da Conveno Americana de velar pela observncia da Conveno, inclusive quanto aplicao interna de leis contrrias ao objeto e finalidade do Pacto de San Jos. De maneira explcita, os juzes se manifestaram quanto ao dever do Poder Judicirio [...] exercer uma espcie de controle de convencionalidade entre as normas jurdicas internas que aplicam nos casos concretos e a Conveno Americana sobre Direitos Humanos. (MAZZUOLI, 2011, p. 84).

    Pouco depois, a Corte voltou a tratar a questo, quando no Caso dos Trabalhadores Demitidos do Congresso Vs. Peru especifica como o controle de convencionalidade deve ser realizado, reforando sua posio anterior. Nessa oportunidade, os juzes julgaram que

    [...] os rgos do Poder Judicirio devem exercer no somente um controle de constitucionalidade, seno tambm de convencionalidade ex officio entre as normas internas e a Conveno Americana, evidentemente no mbito de suas respectivas competncias e dos regulamentos processuais correspondentes. (MAZZUOLI, 2011, p. 86, grifo nosso).

    No Caso Cabrera Garca e Montiel Flores Vs. Mxico, a Corte consolidou a doutrina sobre controle de convencionalidade em sua sentena de 2010, reafirmando a necessi-dade de se realizar esse controle, alm de citar decises de diferentes Cortes Supremas de pases da regio que incorporaram internamente a obrigatoriedade da interpretao da Corte Interamericana sobre a Conveno. Assim, pases como Costa Rica, Bolvia, Repblica Dominicana, Peru, Argentina e Colmbia reiteraram em decises internas a vinculao s interpretaes da Corte quanto aos direitos humanos e a obrigatoriedade de respeito aos tratados firmados.

    De fato, como coloca Mazzuoli (2011, p. 85-86), o julgamento do Caso Almonacid Arellano inaugura a doutrina do controle de convencionalidade no continente americano, indicando a inteno da Corte de tomar o controle de constitucionalidade como questo de ordre public internacional. Essa lgica vem se difundindo em alguns pases da Amrica

  • Luiza Diamantino Moura

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    Latina, demonstrando a existncia no subcontinente de uma [...] interao inter-cortes [...] para a promoo e proteo dos direitos humanos. (MAZZUOLI, 2011, p. 90-91).

    A afirmao da obrigatoriedade dessa interpretao da Corte Interamericana quanto ao controle de convencionalidade, contudo, ainda est longe de se concretizar no Brasil, como destaca Valerio Mazzuoli (2011, p. 88). De fato, no existem pronunciamen-tos explcitos no Brasil sobre a aceitao ou rechao do Supremo Tribunal Federal sobre o controle de convencionalidade, apenas pronunciamentos da doutrina, que acompanha a posio de Mazzuoli (2011), como demonstrado nos trabalhos de Bastos Junior e Cam-pos (2011), Teixeira (2012), Russowsky (2012) e Sagus (2014), por exemplo.

    Dessa forma, e ante a no manifestao expressa do prprio Supremo Tribunal Federal sobre o tema, interessante avaliar como tratada a questo do controle de con-vencionalidade no pas nos casos concretos. Assim, analisa-se a seguir trs situaes em que se delineiam a possibilidade/necessidade do controle de convencionalidade e como isso aconteceu (ou no) na prtica. 4 O controle de convencionalidade na prtica no direito brasileiro

    Como foi visto, o ordenamento jurdico brasileiro traz o controle de convencio-nalidade das leis enquanto limite vertical material para a produo normativa, ao lado do tradicional controle de constitucionalidade, quanto aos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil e em vigor internacionalmente.

    Admitindo a tese do Supremo Tribunal Federal de que, em regra, os tratados de direitos humanos contam com valor supralegal, eles servem apenas para o controle difuso de convencionalidade. J os tratados aprovados com a maioria qualificada do 3 do Artigo 5 da Constituio serviro de paradigma de controle difuso ou concentrado, pois so equivalentes s emendas constitucionais. Admitindo a tese de Mazzuoli (2011), como todos os tratados de direitos humanos tm nvel constitucional, preciso, ainda, acrescentar a existncia de um controle de supralegalidade no que se refere aos tratados comuns ratificados pelo Brasil e em vigor no pas.

    Percebe-se, assim, no somente que a questo da hierarquia dos tratados de direitos humanos no pacfica no pas, mas que o Brasil no tem acompanhado a tendncia de seus vizinhos latino-americanos referente ao controle de convencionali-dade e a necessidade de sua vinculao interpretao da Corte Interamericana. Desse modo, pode-se questionar como esse controle de convencionalidade pode ser operado no pas, o que leva anlise de trs casos emblemticos em que o controle de convencio-nalidade pode ser pensado no contexto brasileiro.

    4.1 A priso civil por dvida nos contratos de alienao fiduciria em garantia Recurso Extraordinrio (RE) n. 466.343-1/SP

    O RE n. 466.343-1/SP foi o julgamento pelo qual o Supremo Tribunal Federal definiu seu entendimento atual de que os tratados de direitos humanos ratificados pelo

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    Brasil e que estejam em vigor tm status supralegal em nosso ordenamento, estando hierarquicamente abaixo da Constituio, mas acima da legislao infraconstitucional.

    O Recurso Extraordinrio foi interposto pelo Banco Bradesco S.A. contra acr-do do Tribunal de Justia de So Paulo, que negou provimento ao recurso de apelao, entendendo pela inconstitucionalidade da priso civil do devedor fiduciante em con-trato de alienao fiduciria em garantia, em face do disposto no Artigo 5, LXVII, da Constituio.9

    O Supremo negou provimentos ao Recurso,10 entendendo que

    [...] desde a ratificao, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacio-nal dos Direitos Civis e Polticos (Art. 11) e da Conveno Americana sobre Direitos Humanos Pacto de San Jos da Costa Rica (Art. 7, 7), ambos no ano de 1992, no h mais base legal para priso civil do depositrio infiel, pois o carter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar especfico no ordenamento jurdico, estando abaixo da Consti-tuio, porm, acima da legislao interna. O status normativo supralegal dos tratados interacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicvel a legislao infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificao. Assim, ocorreu com o Art. 1.287 do Cdigo Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n. 911/69, assim como em relao ao Art. 652 do Novo Cdigo Civil (Lei n. 10.406/2002). (SO PAULO, 2008, p. 60).

    Tem-se que o Supremo realiza um verdadeiro controle de compatibilidade de norma domstica quanto a normas internacionais constantes de tratados de direitos hu-manos Artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos11 e Artigo 7, 7, da Conveno Americana.12 Assim, por mais que o STF no utilize a expresso contro-le de convencionalidade, de fato realizou um controle de convencionalidade (difuso) quando afirmou a incompatibilidade da priso civil por dvida com as obrigaes sobre direitos humanos pactuadas pelo Brasil por meio de tratados e, portanto, com o prprio ordenamento jurdico brasileiro.

    Em outros termos, a previso da priso civil por dvida do depositrio infiel, apesar de ainda vigente (pois permanece compatvel com a Constituio), invlida no direito brasileiro em face dos tratados internacionais de direitos humanos, deixando de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados.

    Tanto assim que o Supremo conclui que a priso civil por dvida no com-patvel com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que [...] compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e suprana-cionais, o dever de efetiva proteo dos direitos humanos. (SO PAULO, 2008, p. 61). Reconhece-se, desse modo, que o Brasil parte de um sistema internacional de proteo

    9 Art. 5, LXVII. No haver priso civil por dvida, salvo a do responsvel pelo inadimplemento voluntrio e inescus-vel de obrigao alimentcia e a do depositrio infiel (BRASIL, 1988). 10 Alm dos tratados internacionais de direitos humanos tambm foram analisadas as questes do princpio da propor-cionalidade e do princpio da reserva legal proporcional. 11 Art. 11. Ningum poder ser preso apenas por no poder cumprir com uma obrigao contratual (PACTO, 1966). 12 Art. 7, 7. Ningum deve ser detido por dvidas. Este princpio no limita os mandados de autoridade judiciria com-petente expedidos em virtude de obrigao alimentar (CONVENO, 1969).

  • Luiza Diamantino Moura

    Chapec, v. 15, n. 1, p. 75-102, jan./jun. 2014EJJL92

    de direitos humanos, e que seu ordenamento interno deve adaptar-se aos compromissos internacionais assumidos pelo pas.

    nesse sentido que reconhecida a necessidade de reformar o entendimento anterior sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos no pas pelo qual eram equiparados legislao ordinria. Com efeito, o STF assumiu nessa oportunidade uma postura jurisdicional mais adequada ao quadro internacional de proteo ao ser huma-no, configurando uma verdadeira evoluo jurisprudencial.

    4.2 A Lei Maria da Penha

    A Lei de Violncia Domstica e Familiar contra a Mulher (Lei n. 11.340, de 07 de agosto de 2006) foi resultado de recomendao da Comisso Interamericana de Direitos Humanos em face denncia contra o Brasil em caso relativo violncia domstica pra-ticada contra a Sra. Maria da Penha Maia Fernandes, pelo seu ento marido.

    Entendeu a Comisso que a delonga do Estado do Cear na persecuo penal contra o criminoso deveria ser atribuda ao Estado brasileiro, por ter permitido (com a sua inrcia) a instalao de um ambiente propcio violncia doms-tica, uma vez que no houve evidncia socialmente percebida da vontade e efetividade do Estado, como representante da sociedade, em punir esses atos. (BIANCHINI; MAZZUOLI, 2009, p. 365).

    Com efeito, a omisso do Estado por mais de 17 anos na prestao da justia e punio do responsvel pela violncia praticada durante o convvio matrimonial foi considerada violao Conveno Americana de Direitos Humanos, o que levou a Co-misso a recomendar ao Brasil diferentes medidas, entre as quais se destaca:

    (a) medidas de capacitao e sensibilizao dos funcionrios judiciais e policiais especializados para que compreendam a importncia de no tolerar a violncia domstica; (b) simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo; (c) estabelecimento de formas alternativas s judiciais, rpidas e efe-tivas de soluo de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilizao com respeito sua gravidade e s consequncias penais que gera; (d) multiplicar o nmero de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dot-las dos recursos necessrios efetiva tramitao e investigao de todas as denncias de violncia domstica, bem como prestar apoio ao Ministrio Pblico na preparao de seus informes judiciais; e (e) incluir em seus planos pedaggicos unidades curriculares destinadas compreenso da importncia do respeito mulher e a seus direitos reconhecidos na Conveno de Belm do Par de 1994, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares. (BIANCHINI; MAZZUOLI, 2009, p. 365).

    Diante dessas recomendaes, foi editada a Lei Maria da Penha como ficou conhecida preconizando uma atuao preventiva, psicossocial e punitiva. O objetivo justamente pr fim a um complexo quadro que envolve a vulnerabilidade da mulher quando da agresso, tanto fsica quanto psicolgica, e uma cultura patriarcal ainda ar-raigada, compreendendo uma violncia cruel e perversa, que tende a afligir todos os membros da famlia.

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    A validade da Lei Maria da Penha depende, como exposto, do duplo exame hie-rrquico, ou seja, dos controles de constitucionalidade e convencionalidade. No que diz respeito ao controle de constitucionalidade, o Artigo 226 da Constituio Federal traz que Os direitos e deveres referentes sociedade conjugal so exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. ( 5 do Artigo 226 da Constituio) e que O Estado assegurar a assistncia famlia na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violncia no mbito de suas relaes. ( 8 do Artigo 226 da Constituio). (BRASIL, 1988).

    Assim, medida que a Lei Maria da Penha reconhece o ciclo de violncia do-mstica e seu potencial para criar danos irreversveis, apreende a complexidade do pro-blema e concretiza o mandamento da Constituio de criar mecanismos para conter a violncia nas relaes domsticas.

    Em outras palavras, a Lei Maria da Penha preenche o comando constitucional que atribui ao Estado o dever de coibir a violncia no contexto familiar, da advindo sua plena e irrestrita constitucionalidade. Pode-se ento dizer que o art. 226, 8, da CF/1988 norma-suporte que legitima a interveno do legis-lador ordinrio no sentido de erradicar toda e qualquer violncia no mbito das relaes domsticas (em geral) e a envolver a figura da mulher (em especial). (BIANCHINI; MAZZUOLI, 2009, p. 374).

    De fato, a violncia praticada no foro ntimo das relaes domsticas no pode mais ser vista como assunto meramente privado. Enquanto problema social de natureza grave, dever do Estado trat-lo e erradic-lo, o que tem buscado fazer por meio da Lei n. 11.304/2006.

    Foi bastante discutida a questo da inconstitucionalidade da Lei Maria da Pe-nha, tendo inclusive a 2 Turma Criminal do TJMS declarado a Lei inconstitucional com o argumento de que ela teria tratado to somente da problemtica da mulher, no abran-gendo o marido que for agredido pela esposa seria, nesse sentido, discriminatria. Tal justificativa, contudo, no procede. Tanto que o rgo Especial do TJMS, em 07 de janeiro de 2009, acolheu o parecer do Ministrio Pblico Estadual e julgou improcedente a Arguio de Inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha.

    ARGUIO DE INCONSTITUCIONALIDADE LEI MARIA DA PE-NHA OBEDINCIA ISONOMIA REAL AUSNCIA DE VCIOS FORMAIS OU MATERIAS VALIDADE DO DIPLOMA PERANTE A CARTA POLTICA CONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA.No prospera a imputao de inconstitucionalidade Lei Maria da Pe-nha, pois do seu exame tem-se que: desequipara todo um grupo de pessoas; tal grupo estremado em razo de caractersticas especiais; existe uma correlao lgica entre as diferenas e a diversidade do re-gime jurdico e a distino decorre de diretriz firmada em comando constitucional. Foi editada pelo organismo competente e em sua subs-tncia trata os desiguais de maneira diferenciada, na medida de suas desigualdades, dando amparo igualdade real, justificada em razo do alarmante aumento da violncia contra as mulheres, ponderada a facilidade do cometimento e a fragilidade psicolgica das vtimas se-

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    viciadas, que no encontravam um remdio especfico apto a tutelar e coibir eficazmente as particularidades da situao delituosa. (MATO GROSSO DO SUL, 2009, grifo nosso).

    Na oportunidade dessa Arguio de Inconstitucionalidade, nenhuma meno foi feita convencionalidade da Lei, indicando como essa questo ainda no muito conhecida e difundida no pas. Apesar disso, quanto ao controle de convencionalidade da Lei Maria da Penha, j em seu prembulo, dois importantes instrumentos internacio-nais de proteo mulher so mencionados. Trata-se da Conveno sobre a Eliminao de todas as Formas de Discriminao contra a Mulher e a Conveno de Belm do Par, ambas ratificadas pelo Brasil.

    Pela Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao con-tra a Mulher, ratificada mediante o Decreto n. 4.377/2002, tem-se o compromisso do Bra-sil de adotar as medidas necessrias para suprimir essa discriminao em todas as suas formas e manifestaes. J pela Conveno de Belm do Par, promulgada no Decreto n. 1.979/1996, o Brasil se comprometeu a [...] incluir em sua legislao interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessrias para prevenir, punir e erradicar a violncia contra a mulher, e adotar medidas adminis-trativas apropriadas que venham ao caso. (Art. 7, c, Conveno de Belm do Par).

    A questo da constitucionalidade da Lei Maria da Penha seria, contudo, resolvi-da de forma definitiva com o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal em feverei-ro de 2012. Em votao unnime o Plenrio do Supremo declarou a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, dando procedncia Ao Declaratria de Constitucionalidade (ADC) n. 19, ajuizada pela Presidncia da Repblica com o objetivo de propiciar uma interpretao uniforme dos dispositivos da Lei pelo Judicirio nacional (BRASIL, 2012).

    Especificamente, os dispositivos que se pretendia ver declarados harmnicos com a Constituio Federal eram os Artigos 1, 33 e 41 da Lei, todos os quais considera-dos constitucionais, como se depreende da ementa do julgado:

    VIOLNCIA DOMSTICA LEI N. 11.340/06 GNEROS MASCULI-NO E FEMININO TRATAMENTO DIFERENCIADO. O artigo 1 da Lei n. 11.340/06 surge, sob o ngulo do tratamento diferenciado entre os gneros mulher e homem , harmnica com a Constituio Federal, no que necessria proteo ante as peculiaridades fsica e moral da mulher e cultura brasileira. COMPETNCIA VIOLNCIA DOMSTICA LEI N. 11.340/06 JUIZADOS DE VIOLNCIA DOMSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. O artigo 33 da Lei n. 11.340/06, no que revela a convenincia de criao dos juizados de violncia domstica e familiar contra a mulher, no implica usurpao da competncia normativa dos estados quanto prpria organizao judiciria. VIOLNCIA DOMSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER REGNCIA LEI N. 9.099/95 AFASTAMENTO. O artigo 41 da Lei n. 11.340/06, a afastar, nos crimes de violncia domstica contra a mulher, a Lei n. 9.099/95, mostra-se em consonncia com o disposto no 8 do artigo 226 da Carta da Repblica, a prever a obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que cobam a violn-cia no mbito das relaes familiares. (BRASIL, 2012, p. 1-2).

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    Em relao a um controle de convencionalidade da Lei Maria da Penha, perce-be-se que foi feita uma anlise de forma tmida pelo Supremo na ADC n. 19, sem consi-derar a jurisprudncia da Corte Interamericana e apesar de no haver-se utilizado tal denominao quando da anlise dos artigos da Lei Maria da Penha, que fazem refe-rncia s Convenes sobre a Eliminao de todas as Formas de Discriminao contra a Mulher e de Belm do Par. o que se depreende do voto do Relator, Ministro Marco Aurlio, quando coloca que

    Na seara internacional, a Lei Maria da Penha est em harmonia com a obri-gao, assumida pelo Estado brasileiro, de incorporar, na legislao interna, as normas penais, civis e administrativas necessrias para prevenir, punir e erradicar a violncia contra a mulher, tal como previsto no artigo 7, item c, da Conveno de Belm do Par e em outros tratados internacionais ratificados pelo pas. (BRASIL, 2012, p. 15).

    Tambm o Ministro Luiz Fux tratou da conformidade da Lei Maria da Penha com os instrumentos internacionais assumidos pelo Brasil:

    [...] no possvel sustentar, in casu, que o legislador escolheu errado ou que no adotou a melhor poltica para combater a endmica situao de maus tra-tos domsticos contra a mulher. Vale lembrar que a Lei Maria da Penha fruto da Conveno de Belm do Par, por meio da qual o Brasil se comprometeu a adotar instrumentos para punir e erradicar a violncia contra a mulher. Inme-ros outros compromissos internacionais foram assumidos pelo Estado brasilei-ro nesse sentido, a saber, a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra a Mulher (CEDAW), o Plano de Ao da IV Confern-cia Mundial sobre a Mulher (1995), o Protocolo Facultativo Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra a Mulher, dentre outros. (BRASIL, 2012, p. 41, grifo nosso).

    Por sua vez, o Ministro Celso de Mello no somente lembra a afronta que a au-sncia da Lei Maria da Penha representava aos compromissos internacionais que o Brasil pactuou, mas destaca como essa ausncia colocava o pas na contramo da tendncia de proteo mulher observada na Amrica Latina (BRASIL, 2012).

    Assim, existe nos votos dos Ministros uma preocupao de ressaltar as conven-es internacionais assumidas pelo Brasil referentes proteo da mulher e comentar a conformidade da Lei Maria da Penha com esses compromissos, de modo que se tem um controle, ainda que embrionrio, da convencionalidade de tal Lei, haja vista que a in-terpretao dada pelo sistema interamericano de direitos humanos no foi nem mesmo mencionada.

    Ressalte-se que, na oportunidade, o Ministro Celso de Mello aproveitou para destacar em seu voto que a Comisso Interamericana de Direitos Humanos teve uma importante participao no surgimento da Lei Maria da Penha, tendo a Comisso se manifestado na poca em que Maria da Penha Maia Fernandes sofreu a violncia por parte do ento marido, no sentido de que o crime deveria ser visto sob a tica de crime de gnero e, ainda, que esse tipo de violncia era reflexo da ineficcia do Judicirio, re-comendando Comisso uma investigao sria, a responsabilizao penal do autor, a

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    reparao da vtima e a adoo de medidas nacionais pelo Brasil para coibir a violncia contra a mulher (BRASIL, 2012).

    Alm disso, mencionando importantes declaraes internacionais que trataram a temtica feminina, o decano Celso de Mello coloca que [...] o processo de afirmao da condio feminina h de ter, no Direito, no um instrumento de opresso, mas uma frmula de libertao. (BRASIL, 2012, p. 66).

    Vale destacar que alm das convenes sobre discriminao e a de Belm do Par, como decorre de recomendao da Comisso Interamericana, a Lei Maria da Pe-nha tambm se encontra em acordo com os preceitos da Conveno Americana de Direi-tos Humanos, notadamente com o previsto em seu Artigo 2, pelo qual os Estados-parte se comprometem a adotar disposies de direito interno para tornar efetivos os direitos e liberdades previstos na Conveno. Inclusive, em seu Artigo 17, a Conveno traz a pro-teo da famlia como um desses direitos a serem garantidos, prevendo que os Estados [...] devem tomar medidas apropriadas no sentido se assegurar a igualdade de direitos e a adequada equivalncia de responsabilidade dos cnjuges. (Artigo17, 4) (CONVEN-O AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS, 1969).

    Diante do exposto, a Lei Maria da Penha no contraria os documentos inter-nacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, ao contrrio, vem concretiz-los, sendo, portanto, tambm convencional.

    Nesse sentido, com a Lei Maria da Penha, o Brasil vem cumprir sua respon-sabilidade internacional no que se refere violncia domstica contra a mulher, j que pelo princpio da boa-f quando um Estado ratifica um tratado internacional ele aceita as consequncias que adviro dele, como adaptar sua legislao interna que ainda obrigao especfica constante do Artigo 2 da Conveno Americana. Assim, a falta de aplicao da Lei Maria da Penha ou sua invalidao pelo Judicirio seriam causa para responsabilizao internacional do pas por violao de seus compromissos.

    4.3 O Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil

    Em 26 de maro de 2009, o Brasil foi demandado pela Comisso Interamericana de Direitos Humanos perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em nome das vtimas e de seus familiares da Guerrilha do Araguaia, em virtude da execuo ex-trajudicial de Maria Lcia Petit da Silva e da responsabilidade brasileira pela deteno arbitrria, tortura e desaparecimento forado de 70 pessoas, no contexto das operaes do Exrcito Brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975, com o objetivo de erradicar a Guerrilha durante a Ditadura Militar no pas.

    O Brasil foi demandado perante a Corte porque, em virtude da Lei de Anistia, no foi realizada uma investigao penal com o objetivo de julgar e punir os responsveis pelo desaparecimento forado das vtimas e pela execuo extrajudicial de Maria Lcia Petit da Silva; porque os recursos judiciais de natureza civil disponveis para a obteno de dados a respeito da Guerrilha do Araguaia no foram efetivos para assegurar informa-es aos familiares das vtimas; porque medidas administrativas e legislativas adotadas

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    pelo Estado Brasileiro acabaram por restringir de forma indevida o direito de acesso informao pelos familiares; e porque o desaparecimento das vtimas, a execuo de Maria Lcia Petit da Silva, a impunidade dos responsveis e a falta de acesso justia, verdade e informao tiveram efeitos negativos sobre a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada. Nesse sentido, tambm os familiares das vtimas so considerados vtimas pela Comisso Interamericana de Direitos Humanos.

    A sentena da Corte (24 de novembro de 2010) concluiu pela responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento forado de 62 vtimas e, consequentemente, pela violao dos direitos aos reconhecimentos da personalidade jurdica, vida, inte-gridade pessoal e liberdade pessoal (estabelecidos nos Artigos 3, 4, 5 e 7 da Conven-o Americana), em relao obrigao do Estado de respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na Conveno (Artigo 1.1).

    Nesse sentido, parte importante do julgamento foi a discusso de se a Lei de Anistia brasileira (Lei n. 6.683/1979), referente ao Caso Gomes Lund e Outros, seria compa-tvel com os direitos consagrados na Conveno Americana apesar das graves violaes aos direitos humanos perpetradas pela Ditadura Militar no Brasil.

    Com efeito, leis de anistia que incluam graves violaes de direitos humanos so contrrias s obrigaes pactuadas na Conveno e jurisprudncia da Corte Intera-mericana, de modo que so desprovidas de qualquer efeito jurdico como reiterado no Caso Barrios Altos Vs. Peru, sentena em 14 de maro de 2001, no Caso Almonacid y Outros Vs. Chile, sentena em 26 de setembro de 2006, e no Caso La Cantuta Vs. Peru, sentena em 29 de novembro de 2006.

    Desse modo, a Corte Interamericana, ao julgar o caso, teve de se pronunciar so-bre a deciso do Supremo Tribunal Federal quanto ADPF n. 153, de 29 de abril de 2010, que manteve a interpretao de que a Lei de Anistia teria sido ampla, geral e irrestrita, estando integralmente amparada pela Constituio brasileira.

    A Corte Interamericana considera que a forma na qual foi interpretada e apli-cada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil [...] afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violaes de direitos humanos, ao impe-dir que os familiares das vtimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Conveno Americana, e violou o direito proteo judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamen-te pela falta de investigao, persecuo, captura, julgamento e punio dos responsveis pelos fatos, descumprindo tambm o artigo 1.1 da Conveno. Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigao dos fatos e a identificao, julgamento e eventual sano dos possveis responsveis por violaes continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forados, o Estado descumpriu sua obrigao de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Conveno Americana. (CORTE INTERAMERICANA DE DI-REITOS HUMANOS, 2010, p. 64).

    O que se percebe desse julgamento que o Supremo no exerceu o controle de convencionalidade quando decidiu sobre a ADPF 153, no considerando as obrigaes in-ternacionais assumidas pelo Brasil, notadamente aquelas constantes da Conveno Ame-ricana sobre Direitos Humanos (Artigos 8 e 25 em relao aos Artigos 1.1 e 2 da Conven-

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    o). Nessa oportunidade, o STF desconsiderou o dever contrado pelo Estado brasileiro de garantir o cumprimento das disposies do tratado no mbito domstico, ensejando inclusive sua responsabilizao internacional caso continue o no cumprimento.

    O controle de convencionalidade em relao Lei de Anistia brasileira teria concludo pela sua vigncia, visto que de acordo com a Constituio, mas pela sua no validade no ordenamento, visto que claramente inconvencional. Infelizmente, aqui o Supremo deixou de realizar o controle de convencionalidade da Lei, contribuindo para que as vtimas da Ditadura Militar no consigam concretizar seu acesso justia.

    Essa foi tambm a concluso da Corte Interamericana, que mais uma vez reite-rou a necessidade de se realizar o controle de convencionalidade entre as normas inter-nas e a Conveno Americana.

    No presente caso, o Tribunal observa que no foi exercido o controle de con-vencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contr-rio, a deciso do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpre-tao da Lei de Anistia, sem considerar as obrigaes internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Conveno Americana, em relao com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigao de cumprir as obrigaes internacionais voluntariamente contradas corresponde a um princpio bsico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Es-tados, respaldado pela jurisprudncia internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigaes convencionais internacionais de boa-f (pacta sunt servanda). Como j salientou esta Corte e conforme dispe o artigo 27 da Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados no podem, por razes de ordem interna, descumprir obrigaes internacionais. As obrigaes convencionais dos Estados Parte vinculam todos seus poderes e rgos, os quais devem garantir o cumprimento das disposies convencionais e seus efeitos prprios (effet utile) no plano de seu direito interno. (CORTE IN-TERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010, p. 66).

    Fica patente mais uma vez, nesse caso, que o Brasil ainda tem um caminho a percorrer no que se refere ao desenvolvimento da prtica do controle de convenciona-lidade. No caso Gomes Lund, particularmente, ficou evidenciada inclusive a violao do pas quanto ao sistema interamericano de direitos humanos, o que ainda pode trazer consequncias negativas para o pas.

    Concluso

    Em relao ao tema dos tratados internacionais no Brasil, existem duas gran-des discusses: a do posicionamento hierrquico destes, e a decorrente possibilidade do controle de convencionalidade. Quanto ao nvel hierrquico dos tratados de direitos hu-manos, podem ser identificadas as teses da infraconstitucionalidade, da supralegalidade e da constitucionalidade desses instrumentos. A esse respeito, divergncias existem na doutrina e na jurisprudncia; atualmente o entendimento majoritrio do Supremo Tri-bunal Federal situou os tratados de direitos humanos em nvel supralegal, contrariando

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    a posio majoritria da doutrina especializada que os considera tendo status constitu-cional e superando o entendimento anterior de que seriam infraconstitucionais.

    A tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro, encabeada por juristas como Mazzuoli (2009, 2011), Piovesan (2012) e Trindade (1993), pela qual todos esses tratados tm ndole e nvel constitucional quer sejam somente materialmente constitucionais, quer sejam material e formalmente constitucionais, no caso da equivalncia s emendas ( 3 do Artigo 5 da Constituio) parece estar um tom acima da tese da supralegalidade aceita pelo Supremo Tribunal Federal, mas j representa um avano importante se comparada posio anterior.

    Apesar das divergncias sobre o seu nvel hierrquico, sendo considerados no mnimo supralegais, possvel afirmar que os tratados internacionais de Direitos Huma-nos ratificados e em vigor no Brasil so paradigma de controle da produo normativa domstica, o que se denomina controle de convencionalidade das leis e ser empreendi-do paralelamente ao tradicional controle de constitucionalidade.

    O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, com a possibilidade dos tratados de Direitos Humanos serem paradigma dos controles na modalidade difusa e concentrada (para os aprovados no qurum do 3 do Artigo 5 da Constituio), uma perspectiva inovadora do direito brasileiro justamente por se tratar da possibilidade de compatibilizao das normas locais quanto s normas internacionais pela via judiciria interna, inserindo o Brasil na perspectiva internacionalista do sistema de Estados.

    Em sentido prtico, a Constituio e os tratados de Direitos Humanos ratifica-dos pelo Brasil se unem para a construo de um direito que seja compatvel tanto com a ordem interna quanto com a ordem internacional com a qual o Estado se comprometeu. Em caso de incompatibilidade com um ou com os outros, tem-se a invalidade do direito infraconstitucional e o respeito a uma ordem jurdica construda com base no respeito aos Direitos Humanos.

    Com efeito, a promulgao da Constituio brasileira de 1988 foi um marco para o processo de redemocratizao do pas e tambm para o processo de institucionali-zao dos Direitos Humanos, permitindo a abertura para a nova ordem internacional de proteo do ser humano. Tanto assim que, paralelamente a essa abertura, foi ocorrendo a ratificao crescente pelo Brasil de diferentes tratados internacionais protetivos dos direitos humanos, em mbito regional e global.

    Esses tratados vm agregar novos direitos e garantias ao ser humano, ao ordena-mento jurdico brasileiro e representam um arsenal enorme do direito ptrio para invalidar normas que venham a violar os direitos humanos. Com efeito, o jurista brasileiro, atual-mente, no pode deixar de reconhecer a existncia desses novos controles e buscar utiliz-los na defesa dos direitos e garantias do indivduo, mas ainda h um longo caminho a ser percorrido em se tratando da observncia desses tratados no pas. preciso mais vontade e interesse em efetivar esses tratados no Brasil, inclusive por parte do Judicirio ptrio, no sentido de incorporar de fato o controle de convencionalidade na prtica jurisdicional do pas, necessidade que decorre da prpria ordem constitucional de 1988.

  • Luiza Diamantino Moura

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    Data da submisso: 27 de novembro de 2012Avaliado em: 25 de abril de 2013 (Avaliador A)Avaliado em: 22 de maio de 2014 (Avaliador B)

    Aceito em: 28 de maio de 2014