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Artigo em elaboração. Favor não citar ou divulgar sem autorização da autora.
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A DIRETIVA DE RETORNO COMO UM REFLEXO DO ENDURECIMENTO DA POLÍTICA DE
IMIGRAÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA: UMA SOLUÇÃO À GÉOMÉTRIE VARIABLE1
Paula Wojcikiewicz Almeida2
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; I - Uma harmonização à géométrie variable das regras
preexistentes; A) A harmonização minimalista: uma tendência no direito comunitário
aplicável à diretiva; B) A harmonização de disposições comunitárias preexistentes: uma
inovação limitada da diretiva; 1) A existência prévia de regras comuns relativas à
imigração; 2) A tentativa de harmonização da obrigação de regresso; II - Uma
adequação à géométrie variable das novas regras aos direitos fundamentais; A) As
garantias processuais minimalistas; B) A grande elasticidade das medidas coercitivas; 1)
Os meios para promover o afastamento; 2) A detenção para efeitos de afastamento; 3)
A proibição de retorno ou nova entrada. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
A imigração aumenta progressivamente nos Estados-membros da União
Européia. Os nacionais de países terceiros são duas vezes mais numerosos do que
aqueles provenientes de outros Estados-membros3, o que demonstra que o bloco segue a
tendência que se consolidou no século XXI. Em 2005, existiam cento e noventa e um
milhões de imigrantes, o que representa quase duas vezes e meia a quantidade
observada em 19654. Cerca de um milhão e meio a dois milhões de imigrantes
atravessam legalmente as fronteiras da União Européia por ano5. Segundo a Comissão
1 Nos termos do dicionário Le Petit Robert, a expressão “à géométrie variable” significa algo que pode variar em suas dimensões, seu funcionamento, de acordo com as necessidades, in ROBERT (P.), Le nouveau Petit Robert, ed. Dictionnaires Le Robert, Paris, 1993, p. 1135. 2 Pesquisadora e professora de Direito Internacional Público da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV DIREITO RIO). Doutoranda na Universidade de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. 3 BLUMANN (C.), DUBOUIS (L.), Droit matériel de l’Union européenne, éd. Montchrestien, Paris, 5ème éd., 2009, p. 59. 4 World Migration Report 2008: Managing Labour Mobility in the Evolving Global Economy, International Organization for Migration ( IOM ), Genebra, 2009. Vide “Mundo tem mais de 200 milhões de imigrantes”, BBC Brasil, 2 de dezembro de 2008, disponível no site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u474352.shtml. 5 “Immigration: le Parlement européen adopte La directive retour”, Lemonde.fr, 18 de junho de 2008, disponível no site : http://www.lemonde.fr.
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Européia, o número de clandestinos teria sido estimado em cerca de 8 milhões6.
Conforme bem observado pela Organização Internacional para a Imigração (OIM) em
relatório recentemente publicado7, não se trata mais de avaliar a necessidade de acolher
imigrantes, mas sobretudo de coordenar o fluxo migratório de maneira eficiente, com
vistas a potencializar seus efeitos positivos e, conseqüentemente, reduzir os efeitos
negativos. Segundo Jemini Pandya, porta-voz da OIM, não deve haver um aumento na
quantidade de imigrantes em decorrência da crise econômica mundial, mas sim um
endurecimento nas leis dos países de destino, podendo gerar uma quantidade maior de
imigrantes ilegais8, tendência que se verifica no âmbito da União Européia.
Com efeito, enquanto o Ano Europeu do Diálogo Intercultural (AEDI),
inaugurado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Européia em 2008,
reconhece os benefícios da grande diversidade cultural da Europa com o lema “Juntos
na Diversidade”, a União Européia fecha, progressivamente, suas fronteiras externas.
Os Estados-membros endurecem suas legislações em matéria de imigração e a União
Européia segue unida no campo da repressão9. Com efeito, os imigrantes “sans papiers”
constituem, atualmente, o grande alvo da política de imigração comunitária, cujo
endurecimento constituiu prioridade para a presidência francesa do Conselho da União
Européia, exercida durante o segundo semestre de 2008. Dentre os temas prioritários
contidos no programa de campanha do presidente Sarkozy, figurava aquele relativo ao
controle dos fluxos migratórios10. O “Pacto europeu de imigração”, lançado como
sendo uma das prioridades da presidência francesa, foi devidamente adotado em outubro
de 2008. Pouco tempo depois, em dezembro de 2008, no afã das novas regras
preconizadas pela França11, foi aprovada pelo Parlamento europeu a denominada
“diretiva de retorno”12, que ilustra tal quadro crítico e expõe negativamente a União
6 Idem. O jornal, datado de junho de 2008, afirma que cerca de duzentos mil imigrantes ilegais foram presos na UE durante a primeira metade de 2007, sendo que menos de noventa mil haviam sido expulsos. 7 World Migration Report 2008: Managing Labour Mobility in the Evolving Global Economy, International Organization for Migration ( IOM ), Genebra, 2008. 8 “Mundo tem mais de 200 milhões de imigrantes”, BBC Brasil, 2 de dezembro de 2008, disponível no site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u474352.shtml. 9 KAUFF-GAZIN (F.), « Heurs et malheurs de la politique européenne d’asile et d’immigration », Europe n.º 7, julho 2008, alerte 36, ed. LexisNexis, p. 1. 10 Idem. 11 Segundo KAUFF-GAZIN (F.), «La France a œuvré de son mieux pour que la directive soit adoptée sous sa présidence et publié au Journal Officiel de l’Union avant fin décembre 2008 »., in KAUFF-GAZIN (F.), « La directive ‘retour’: une victoire du réalisme ou du tout-répressif ? », Europe n.º 2, fevereiro 2009, étude 2, ed. LexisNexis, p. 1. 12 Diretiva 2008/115/CE, 16 de Dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados-Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, publicada no JOUE L 348/98, de 24 de dezembro de 2008.
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Européia no cenário internacional. Batizada de diretiva da vergonha13, a norma recebeu
grande notoriedade, tendo sido alvo de duras críticas da comunidade internacional14,
inclusive do Brasil, que a condenou afirmando que o país acolheu milhões de imigrantes
e descendentes europeus, que foram harmoniosamente integrados na sociedade
brasileira e que a Europa estaria, lamentavelmente, promovendo uma percepção
negativa da imigração15.
A diretiva de retorno foi proposta pela Comissão na data de 1º de setembro de
200516, tendo sido modificada e acordada pelo Conselho em 5 de junho de 2008 por
voto em maioria qualificada17. Submetida ao processo de co-decisão18, a diretiva foi
encaminhada ao Parlamento. Esperava-se que tal instituição pudesse orientar a política
de imigração comunitária de maneira favorável aos direitos fundamentais19,
encontrando o equilíbrio necessário entre o controle migratório e o respeito dos direitos
fundamentais. Entretanto, o Parlamento preferiu facilitar a adoção da diretiva, por meio
de voto em sessão plenária em primeira leitura20, demonstrando ser uma instituição
“politiquement fréquentable”21. Os parlamentares teriam optado por uma postura
baseada na “realpolitik” em detrimento de uma iniciativa militante em favor da
promoção dos direitos fundamentais22. O texto introduzido, inicialmente, em 2005 foi
13 O presidente da Bolívia, Evo Morales, alcunhou a diretiva de retorno de “diretiva da vergonha”, expressão que foi empregada em diversos veículos de comunicação. Hugo Chavez, presidente da Venezuela, ameaçou não mais exportar petróleo à União Européia e cortar os investimentos europeus na região. Vide “La ‘directive retour’ européenne provoque l’indignation de l’Amérique latine”, Lemonde.fr, 20 de junho de 2008, disponível no site : http://www.lemonde.fr. 14 “Ato em Lisboa condena projeto sobre imigração da EU”, BBC Brasil, 14 de junho de 2008, disponível no site: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/06/080614_imigrantes_lisboa_dg.shtml; “Parlamento europeu aprova lei que facilita expulsão de imigrantes”, BBC Brasil, 18 de junho de 2008, disponível no site: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/06/080618_imgracaoleis_pu.shtml; “Itamaraty lamenta normas européias”, Gazeta Mercantil, 29 de setembro de 2008, disponível no site: http://www.mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/selecao_detalhe3.asp?ID_RESENHA=499327. Segundo KAUFF-GAZIN (F.), 44 países da África e da América do Sul fizeram reservas com relação ao texto. Vide nota 3, KAUFF-GAZIN (F.), « La directive ‘retour’… », op. cit., p. 6. 15 Segundo o Ministério das Relações Exteriores, “o Brasil, país que deu acolhida a milhões de imigrantes e descendentes hoje harmoniosamente integrados na sociedade brasileira, lamenta uma decisão que contribui para criar percepção negativa da migração e vai no sentido contrário ao de uma desejada redução de entraves à livre circulação de pessoas e de um mais amplo e pleno convívio entre os povos”, in “Diretiva da União Européia sobre imigração”, nota de imprensa n.º 314, de 18 de junho de 2008, disponível no site: http://www.mre.gov.br/portugues/imprensa/nota_detalhe3.asp?ID_RELEASE=5553. 16 COM (2005) 391 final. 17 KAUFF-GAZIN (F.), « Heurs et malheurs… », op. cit., p. 1-2. 18 O procedimento de co-decisão foi utilizado, pela primeira vez, em matéria de imigração clandestina. 19 KAUFF-GAZIN (F.), « Heurs et malheurs… », op. cit., p. 2. 20 Foram 369 votos favoráveis, sendo 197 contrários e 106 abstenções. 21 KAUFF-GAZIN (F.), « La directive ‘retour’… », op. cit., p. 1. 22 Ibid, p. 2.
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adotado três anos depois, sendo que as linhas gerais em matéria de organização de
regresso e de sanções decorrentes da imigração declarada irregular não sofreram
alterações substanciais23. A diretiva entrou em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua
publicação no Jornal Oficial da União Européia. Todavia, os Estados-membros24
deverão adotar as medidas de execução necessárias para dar cumprimento à mesma até
24 de dezembro de 201025.
A diretiva possui como objetivo principal o estabelecimento de regras conjuntas
na área da imigração e do asilo, bem como políticas de imigração legal e luta contra a
imigração clandestina. Este artigo busca avaliar, numa primeira parte, o cumprimento
do objetivo de harmonizar as legislações nacionais na área da imigração clandestina,
aplicável especificamente às diretivas comunitárias, bem como o respeito do princípio
da aplicação uniforme, exigência geral aplicável a todo o direito comunitário. Isso
porque, a diretiva confere larga margem de apreciação aos Estados-membros, limitando-
se a estabelecer, sobretudo, princípios gerais e reenvios à legislação nacional. Se a
harmonização ocorre à géométrie variable (I), o mesmo se pode afirmar com relação à
adequação aos direitos fundamentais (II), matéria que será avaliada na segunda parte
deste artigo. Com efeito, a diretiva decepciona na matéria, deixando prevalecer as
preocupações securitárias em detrimento da proteção dos direitos fundamentais,
atualmente considerados princípios gerais do direito comunitário.
I - Uma harmonização à géométrie variable das regras preexistentes
A diretiva comunitariza o afastamento de estrangeiros, matéria que até então era
regulada pelos Estados-membros, e estabelece penalidades questionáveis, como
interdições de entrada por longos períodos. A dificuldade de se encontrar um texto
comum entre os Estados-membros resultou na adoção de uma diretiva permeada por
23 As linhas gerais foram matidas, porém o texto sofreu mais de 73 emendas. 24 Atualmente, vinte e dois Estados-membros da União Européia fazem parte do espaço Schengen: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Polônia, Portugal, República Tcheca e Suécia. Três Estados associados também fazem parte do espaço, como a Noruega, Islândia e Suíça. A Bulgária, o Chipre e a Romênia ainda não se tornaram membros, sendo que o Reino-Unido e a Irlanda obtiveram um status particular, aplicando à la carte algumas disposições do acervo de Schengen. O presente artigo utilizará a denominação “Estados-membros” para referir-se aos Estados-membros do espaço Schengen, que diferem daqueles que fazem parte da União Européia. 25 Vide artigos 20 e 22 da diretiva de retorno. Causa surpresa notar que as disposições constantes do artigo 13, inciso 4, relativas à obrigação estatal de conceder assistência e/ou representação jurídica gratuita poderão ser transpostas um ano após o prazo de transposição aplicável às demais disposições, qual seja, até 24 de dezembro de 2011.
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exceções, termos imprecisos e flexíveis, bem como reenvios freqüentes à legislação
nacional. A harmonização das regras é mínima, seguindo a tendência do direito
comunitário (A), pois a diretiva quase não modifica o estado de direito, sendo que as
normas e procedimentos por ela previstos são comuns apenas na aparência26 (B).
A) A harmonização minimalista: uma tendência no direito comunitário aplicável à
diretiva
A diretiva de retorno foi adotada com base no artigo 63, alínea 1, 3 do Tratado
CE, que confere competência normativa às instituições comunitárias para a adoção de
medidas relativas à política de imigração, sobretudo no que tange à imigração
clandestina e permanência ilegal, bem como ao repatriamento de residentes em situação
ilegal. Entende-se que as “medidas” de competência comunitária previstas no referido
artigo deverão ser adotadas por via de diretivas, com a finalidade de harmonizar as
legislações nacionais na área27. Com efeito, a diretiva foi concebida como um
mecanismo de legislação indireta e mediata, ou seja, um meio de orientação
legislativa28. Somente podem ser adotadas diretivas em domínios expressamente
enumerados pelos tratados, nos quais os Estados-membros aceitaram transferir
competências à Comunidade29. As instituições comunitárias estão apenas autorizadas a
intervir na presença de um título jurídico capaz de fornecer uma “base jurídica” à ação
comunitária. Caso estejam autorizadas a intervir em domínio específico, o poder de
adotar diretivas deve vir expressamente reconhecido pelos tratados.
26 MARTUCCI (F.), «La directive ‘retour’ : la politique européenne d’immigration face à ses paradoxes », Revue trimestrielle de droit européen, janeiro-março 2009, n.º 1, ed. Dalloz, p. 49. 27 Ibid, p. 54 ; LABAYLE (H.), « Vers une politique commune de l’asile et de l’immigration dans l’Union européenne », in JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), LABAYE (H.), EDSTRÖM (O.), (org.), La politique européenne d’immigration et d’asile: bilan critique cinq ans après le Traité d’Amsterdam, ed. Bruylant, Bruxelas, 2005, p. 18-20 ; JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), « L’éloignement des ressortissants de pays tiers », in JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), LABAYE (H.), EDSTRÖM (O.), (org.), La politique européenne d’immigration et d’asile: bilan critique cinq ans après le Traité d’Amsterdam, ed. Bruylant, Bruxelas, 2005, p. 211. 28 PESCATORE (P.), « L’effet des directives communautaires, une tentative de démythification », in PICOD (F.), Études de droit communautaire européen 1962-2007, Bruylant, Bruxelles, 2008, p. 521. A diretiva consiste na técnica legislativa adequada para as situações nas quais os Estados membros permanecem os titulares da competência normativa, sendo que a Comunidade dispõe apenas de uma competência de harmonização das legislações e regulamentações nacionais. Vide SIMON (D.), Le système juridique communautaire, éd. PUF, Paris, 3ème éd., 2001, p. 323. 29 SIMON (D.), « Directive », Rép. Communautaire Dalloz, mai 1998, p. 3, par. 7.
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O “poder de diretiva”30 conferido às instituições comunitárias corresponde às
áreas de competências partilhadas, nas quais os Estados permanecem titulares do poder
normativo, sob reserva de uma limitação de seu exercício pelas exigências de
harmonização comunitária31. Assim, nas áreas nas quais a Comunidade não detém o
monopólio do poder legislativo, estará a mesma autorizada a legislar mediante diretivas
“se e na medida em que os objetivos da ação prevista não possam ser suficientemente
realizados pelos Estados-Membros, e possam pois, devido à dimensão ou aos efeitos da
ação prevista, ser melhor alcançados ao nível comunitário”32. Aplica-se, também, ao
“poder de diretiva” o princípio da proporcionalidade, segundo o qual “a ação da
Comunidade não deve exceder o necessário para atingir os objetivos do presente
Tratado”33. Nessa linha, as instituições comunitárias tomaram o cuidado de inserir, no
considerando n.º 20 da diretiva de retorno34, menção relativa ao respeito do princípio de
subsidiariedade e proporcionalidade, prescrevendo a necessidade da ação comunitária
na área em questão, na medida em que o objetivo da diretiva não poderia ser
suficientemente realizado pelos Estados-membros.
Uma vez adotada a diretiva de retorno, que trata de domínios até então
reservados à competência nacional, questiona-se acerca do grau de autonomia conferido
aos Estados-membros na implementação de suas disposições. Os Estados-membros
dispõem de autonomia institucional e procedimental para executar internamente a
diretiva comunitária, desde que cumpram a obrigação de resultado determinada por tal
30 Trata-se do “poder de diretiva” das instituições comunitárias. Tal poder é conferido às instituições comunitárias via tratado, que determina o instrumento adequado para cada caso concreto. Vide SIMON (D.), « Directive », Rép. Communautaire Dalloz, mai 1998, p. 4, par. 8. 31 Idem. 32 Trata-se do princípio de subsidiariedade, previsto no artigo 5º, alínea 2, do Tratado CE: “nos domínios que não sejam das suas atribuições exclusivas, a Comunidade intervém apenas, de acordo com o princípio da subsidiariedade, se e na medida em que os objectivos da acção prevista não possam ser suficientemente realizados pelos Estados-Membros, e possam pois, devido à dimensão ou aos efeitos da acção prevista, ser melhor alcançados ao nível comunitário”, União Européia, versões consolidadas do Tratado da União Européia e do Tratado que institui a Comunidade Européia (versão compilada), Jornal Oficial n.° C 321E, de 29 de Dezembro de 2006, versão portuguesa disponível no site: http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/index.htm.
33 Artigo 5º, alínea 3, do Tratado CE. 34 Nos termos do considerando n.º20 da diretiva: “atendendo a que o objectivo da presente directiva, a saber, estabelecer normas comuns em matéria de regresso, afastamento, recurso a medidas coercivas, detenção e proibições de entrada, não pode ser suficientemente realizado pelos Estados-Membros, e pode, pois, devido à sua dimensão e efeitos, ser melhor alcançado a nível comunitário, a Comunidade pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5.o do Tratado. Em conformidade com o princípio da proporcionalidade consagrado no mesmo artigo, a presente directiva não excede o necessário para atingir aquele objectivo”.
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instrumento legislativo35. Trata-se de um método legislativo que opera em dois níveis:
no âmbito comunitário, a diretiva atua para estabelecer a linha política e o modelo
legislativo que será traduzido, no nível estatal, pelas categorias nacionais36. É o que
determina o artigo 249, TCE, segundo o qual as diretivas vinculam os Estados-membros
destinatários quanto ao resultado a alcançar, mas deixa às instâncias nacionais a
competência quanto à forma e aos meios utilizados para atingir tal resultado. Ora, o grau
de autonomia estatal pode, portanto, variar em função do que se convencionou
denominar “intensidade normativa das diretivas”37. Assim, quanto mais preciso é o
texto de uma diretiva, menor é a margem de apreciação do Estado-membro na
implementação da mesma e vice-versa.
No início da construção comunitária, a Comissão e o Conselho, com o cuidado
de garantir a aplicação uniforme das normas comunitárias, optaram por redigir diretivas
precisas, que deixavam pequena margem de apreciação aos Estados no que tange à fase
de implementação38. Com efeito, a tendência era elaborar diretivas extremamente
precisas e detalhadas, cujo conteúdo ultrapassava a mera determinação de resultados ou
objetivos. Tal formulação detalhada relativa às obrigações impostas aos Estados-
membros foi considerada um desvio de procedimento pelo governo francês durante a
crise de 1965-196639, o que motivou uma mudança de orientação das autoridades
comunitárias. Passou-se a optar pela adoção de “diretivas-quadro”40, caracterizadas
pelo estabelecimento de “um mínimo de regras necessariamente uniformes”41 e de um
reenvio freqüente às legislações nacionais e aos princípios de equivalência e
reconhecimento mútuos42, o que conferia uma maior margem de manobra aos Estados-
membros. Entretanto, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (T.J.C.E.) foi
bastante claro ao determinar que a competência conferida às autoridades nacionais, no 35 LOUIS (J.-V.), RONSE (T.), L’ordre juridique de l’Union européenne, éd. Helbing, Bruylant-LGDJ, 2005, 399. 36 PESCATORE (P.), op. cit., p. 521. 37 KOVAR (R.), «Observations sur l’intensité normative des directives », in CAPOTORTI (F.), EHLERMANN (C.-D.), FROWEIN (J.), JACOBS (F.), JOLIET (R.), KOOPMANS (T.), KOVAR (R.) (dir.), Du droit international au droit de l’intégration, liber amicorum Pierre Pescatore, éd. Nomos Verlagsgesellschaft, 1987, p. 366. SIMON (D.), « Directive », op. cit., p. 11, par. 18. 38 SIMON (D.), « Directive », op. cit., p. 3, par. 4 ; SIMON (D.), Le système juridique communautaire, op. cit., p. 325. 39 Idem. 40 Segundo SIMON (D.), tal tendência foi iniciada com o Livro branco da Comissão sobre o mercado interno e pela entrada em vigor do Ato único europeu e, posteriormente, após a inserção dos princípios de subsidiariedade e proporcionalidade no Tratado sobre a União Européia, in Le système juridique communautaire, op. cit., p. 325. 41 No original: “un minimum de règles nécessairement unformes », in SIMON (D.) « Directive », op. cit., p. 3, par. 4. 42 SIMON (D.) « Directive », op. cit., p. 5, par. 15.
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que tange à forma e aos meios, é proporcionalmente equivalente ao resultado que o
Conselho ou a Comissão pretende que seja alcançado43.
É o caso da diretiva de retorno, que poderia ser classificada de “minimale”44.
Isso porque, a referida diretiva não é capaz de atingir o objetivo de tal instrumento
legislativo, qual seja, de realizar uma “interseção das legislações nacionais”45. Ora, o
resultado por ela prescrito confere larga margem de apreciação aos Estados-membros,
não cumprindo a função de harmonizar as legislações ou regulamentações nacionais46
para o bom funcionamento do mercado comum. Dispõe, portanto, de um baixo grau de
intensidade normativa, conferindo aos Estados-membros larga autonomia e
discricionariedade quanto à forma e aos meios. Limita-se a estabelecer princípios gerais,
conceitos juridicamente indeterminados ou standards, valores limites47, bem como
reenvios sistemáticos à legislação nacional. A harmonização das regras relativas ao
estatuto de nacionais de países terceiros em situação irregular no território da União
Européia é mínima48. Caberá ao juiz comunitário a tarefa de interpretar tais zonas
cinzentas e efetuar um amplo controle acerca da adequação das medidas de transposição
ao objetivo prescrito pela diretiva, seja no âmbito da ação de descumprimento perante
os tribunais comunitários, terreno privilegiado das diretivas, seja no âmbito das
jurisdições nacionais, competentes para aplicar as normas comunitárias em função do
princípio da primazia. Quanto mais aberta a diretiva, mais importante é a função
interpretativa dos juízes comunitários.
B) A harmonização das disposições comunitárias preexistentes: uma inovação
limitada da diretiva
A diretiva de retorno constitui uma tentativa de harmonizar as regras
comunitárias relativas ao tratamento de nacionais de países terceiros em situação
irregular na Europa de Schengen49. Em regra, a diretiva de retorno se aplica aos
43 CJCE, 23 de novembro de 1977, Enka, 38/77, Rec. 2212. 44 KOVAR (R.), op. cit., p. 366. 45 Ibid, p. 361. 46 SIMON (D.), « Directive », op. cit., p. 11, par. 18. 47 Ibid, p. 12, par. 39. 48 Segundo KAUFF-GAZIN (F.), « Il ne fait que rendre compte des difficultés d’être ‘euro-progressistes’ en la matière, le rapprochement ne pouvant se faire dans un domaine aussi sensible et dans une Europe à 27 où les lois nationales s’avèrent très disparates que sur le plus petit dénominateur commun », in « Heurs et malheurs… », alerte 36. 49 Para os Estados que fazem parte do espaço Schengen, vide nota 23 supra.
Artigo em elaboração. Favor não citar ou divulgar sem autorização da autora.
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nacionais de países terceiros em situação irregular no território de um Estado-membro.
A relativização dessa regra é prevista no inciso 2, de seu artigo 2º, ao afirmar que os
Estados podem decidir não aplicar a presente diretiva aos nacionais de países terceiros
que se encontrem nas situações determinadas em seu âmbito. Nota-se, desde os
primeiros artigos da diretiva, a intenção de promover larga autonomia aos Estados-
membros, frustrando, por diversas vezes, o objetivo de harmonização de uma diretiva
comunitária.
É importante frisar que antes da adoção da diretiva de retorno as grandes linhas
da política de imigração da União Européia já estavam estabelecidas por conta do
acordo e da convenção Schengen, das normas do Tratado de Amsterdã50, bem como do
Código de Fronteiras adotado em 2006 (1). Assim, a diretiva se inscreve na
continuidade dessa política que visa promover maior controle da imigração e
estabelecer uma barreira quase que intransponível das fronteiras externas51. Ela se insere
naturalmente no âmbito da luta contra a imigração irregular, que constitui um dos
pilares atuais da política européia de imigração52. De fato, o tratamento e a definição de
normas e procedimentos comuns aplicáveis ao retorno de nacionais de países terceiros
em situação irregular não são recentes no direito comunitário, a diretiva nada mais faz
do que tentar harmonizá-los (2).
1) A existência prévia de regras comuns relativas à imigração
O direito de circular e de permanecer, consagrado aos nacionais de países
terceiros em um Estado-membro da União Européia foi tardiamente reconhecido pelo
direito comunitário53. O acordo54 e a convenção55 de Schengen, que formam parte do
denominado “acervo de Schengen”, assinados em 1985 e 1990, estabelecem, por um
lado, a eliminação gradual de controles nas fronteiras internas e, por outro lado, a
harmonização da política comum de vistos e controle das fronteiras externas. Os
Estados-membros temiam que a eliminação dos controles nas fronteiras externas fosse
50 A diretiva foi adotada com base no artigo 63, alinea 1, ponto 3, b, do Tratado de Amsterdã. 51 in KAUFF-GAZIN (F.), « La directive ‘retour’… », op. cit., p. 1. 52 Idem. 53 A competência para permitir a entrada de estrangeiros era reservada aos Estados-membros. Vide BLUMANN (C.), DUBOUIS (L.), Droit matériel de l’Union européenne, ed. Montchrestien, Paris, 5ª ed., 2009, p. 59. 54 O acordo de Schengen foi assinado em 14 de junho de 1985 entre a Alemanha, a Bélgica, a França, o Luxemburgo e os Países Baixos. 55 A convenção de Schengen completa o acordo precedente, definindo as condições de aplicação e as garantias de realização da livre circulação de pessoas, tendo sido assinada em 19 de Junho de 1990 pelos referidos cinco Estados-Membros. A convenção entrou em vigor 1995.
Artigo em elaboração. Favor não citar ou divulgar sem autorização da autora.
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acompanhada de um “déficit de segurança”56. Nesse sentido, optaram por inserir uma
grande quantidade de medidas compensatórias com o objetivo de regular, ao mesmo
tempo, o controle migratório e a luta contra a criminalidade.
Trata-se de um espaço de segurança, que engloba a adoção de políticas comuns
em matéria de vistos57. De acordo com as normas aplicáveis ao controle das fronteiras
externas, os nacionais de países terceiros, caso não sejam titulares de um visto de longa
permanência, poderão somente circular durante três meses no interior do espaço
Schengen. Tal acervo, composto por convenções que decorrem do direito
internacional58, adotadas no âmbito intergovernamental, foi posteriormente
comunitarizado por ocasião da adoção do protocolo n.º 2, anexado ao Tratado de
Amsterdã59. Assim, desde 1999 o acervo de Schengen foi integrado no quadro
institucional e jurídico comunitário, passando a ser de competência comunitária a
matéria relativa ao asilo e à imigração60. A política de imigração comum se tornou
condição para a realização da livre circulação interna61.
Após uma intensa e esparsa produção legislativa atinente às matérias de asilo e
imigração, foi necessário remediar essa anomalia da qual padecia a ordem jurídica
comunitária62. Nessa linha, adotou-se o Código de Fronteiras Schengen63, que dispõe
acerca do estabelecimento de regras comuns atinentes ao regime de passagem de
pessoas nas fronteiras da União Européia. É importante destacar que o referido código
foi o primeiro instrumento na área no qual foi empregado o procedimento de co-decisão.
Seu objetivo é estabelecer regras relativas à passagem de fronteiras internas e externas,
sendo esse último ponto aquele que nos interessa para a presente análise. De acordo
56 CHETAIL (V.), « Le Code communautaire relatif au franchissement des frontières : une nouvelle étape dans la consolidation de l’acquis Schengen », Europe, ed. Lexisnexis, agosto-setembro 2006, p. 4. 57 Vide regulamentos n.º 1683/95, de 29 de maio de 1995 e n.º 2317/95. 58 O espaço Schengen agrupa hoje 22 Estados, sendo que alguns deles não fazem parte da União Européia. 59 O Tratado de Amsterdã fixou como objetivo da União, em seu artigo 1B, “a manutenção e o desenvolvimento da União enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controles na fronteira externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade” (grifamos ). 60 A política da União Européia em matéria de “vistos, asilo, imigração e outras políticas relativas à livre circulação de pessoas” encontra-se inserida no Tratado que institui a Comunidade Européia (TCE) pelo Tratado de Amsterdã, artigos 61 a 69. 61 CHETAIL (V.), op. cit., p. 4. 62 Idem. 63 Regulamento CE n.º 562/2006, “Código de Fronteiras Schengen”, de 15 de março de 2006, publicado no JOUE L 105, de 13 de abril de 2006. O Código entrou em vigor em 13 de outubro de 2006. Cabe destacar que o Reino Unido, a Dinamarca e a Irlanda não participaram de sua adoção.
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com suas regras, o controle das fronteiras externas64 se dá com a verificação da
identidade, da regularidade dos documentos de viagem65, da ausência de ameaça à
ordem pública, à segurança interna, à saúde pública, às relações internacionais de um
Estado-membro, bem como acerca dos meios de subsistência66. O Código estabelece,
ainda, que durante a realização dos controles os guardas de fronteiras deverão respeitar
a dignidade humana, o princípio da proporcionalidade e da não-discriminação67. O não
preenchimento das condições exigidas pelo Código de Fronteiras, salvo situações
excepcionais expressamente previstas68, enseja a recusa da entrada no território dos
Estados-membros, que deverá ser efetuada por meio de decisão fundamentada
indicando as razões da referida recusa69. Essa decisão é submetida a recurso, porém sem
efeito suspensivo na decisão de recusa de entrada70.
64 Entende-se por “fronteiras externas”, nos termos do artigo 2.2 do Código de Fronteiras Schengen: “as fronteiras terrestres, inclusive as fronteiras fluviais e as lacustres, as fronteiras marítimas, bem como os aeroportos, portos fluviais, portos marítimos e portos lacustres dos Estados-Membros, desde que não sejam fronteiras internas”. 65 O regulamento n.º 539/2001 de 15 de março de 2001, publicado no JOUE L 81, de 21 de março de 2001, modificado pelos regulamentos n.º 2414/2001, de 7 de dezembro de 2001 e 453/2003, de 6 de março de 2003, publicado no JOUE L 69, de 15 de março de 2003, determina a lista dos Estados terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de apresentação de vistos, assim como aqueles cujos nacionais não necessitam de visto sendo a estada inferior a 3 meses. 66 De acordo com o artigo 5 do Código de Fronteiras Schengen, “1. Para uma estada que não exceda três meses num período de seis meses, são as seguintes as condições de entrada para os nacionais de países terceiros: a) Estar na posse de um documento ou documentos de viagem válidos que permitam a passagem da fronteira; b) Estar na posse de um visto válido, se tal for exigido nos termos do Regulamento (CE) n.o 539/2001 do Conselho, de 15 de Março de 2001, que fixa a lista dos países terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de visto para transporem as fronteiras externas e a lista dos países terceiros cujos nacionais estão isentos dessa obrigação, excepto se for detentor de um título de residência válido; c) Justificar o objetivo e as condições da estada prevista e dispor de meios de subsistência suficientes, tanto para a duração dessa estada como para o regresso ao país de origem ou para o trânsito para um país terceiro em que a sua admissão esteja garantida, ou estar em condições de obter licitamente esses meios; d) Não estar indicado no SIS para efeitos de não admissão; e) Não ser considerado susceptível de perturbar a ordem pública, a segurança interna, a saúde pública ou as relações internacionais de qualquer Estado-Membro, e em especial não estar indicado para efeitos de não admissão, pelos mesmos motivos, nas bases de dados nacionais dos Estados-Membros”. Além disso, o inciso 2 afirma que o guarda de fronteira poderá solicitar ao nacional de país terceiro documentos elencados na lista constante do anexo I, com o objetivo de verificar o cumprimento das condições referidas na alínea c) do n.o 1. A verificação acerca dos meios de subsistência será feita em cumprimento ao inciso 3, do artigo 5, que dispõe que “a apreciação dos meios de subsistência será efetuada em função da duração e do objetivo da estada e com referência aos preços médios de alojamento e de alimentação, em condições económicas, no ou nos Estados-Membros em causa, multiplicados pelo número de dias de estada”. Tais montantes deverão ser estabelecidos pelos Estados-membros e notificados à Comissão. Cabe salientar que “a verificação da suficiência de meios de subsistência pode basear-se no dinheiro líquido, nos cheques de viagem e nos cartões de crédito na posse do nacional de país terceiro”. 67 A inserção dessas garantias ocorreu por iniciativa do Parlamento europeu. Vide art. 6, Código de Fronteiras Schengen. 68 Nesse sentido, vide art. 5, inciso 4 do Código de Fronteiras Schengen. 69 Art. 13, Código de Fronteiras Schengen. 70 O Parlamento introduziu o direito de recurso. Vide art. 13, Código de Fronteiras Schengen.
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Diversas iniciativas dos Estados-membros foram adotadas para cumprir as
determinações do referido Código de fronteiras, criando novas restrições à entrada de
nacionais de países terceiros na Europa de Schengen. É, portanto, considerado ilegal
todo nacional de país terceiro que não cumprir os requisitos estabelecidos no Código de
Fronteiras Schengen e que não obtiver, conseqüentemente, um carimbo de entrada das
autoridades comunitárias competentes. Ora, da ausência de carimbo decorre a presunção
de que o nacional de país terceiro não preenche ou deixou de preencher as condições de
duração da estada71. Assim sendo, a implementação da decisão de recusa de entrada é
acompanhada da obrigação imposta aos transportadores no sentido de reencaminhar o
estrangeiro ao país do qual partiu o mais rápido possível72. Embora o Código de
Fronteiras não mencione as conseqüências relativas à entrada ou permanência
considerada ilegal, matéria que foi, posteriormente, comunitarizada pela diretiva de
retorno, o direito francês permite que as autoridades competentes expulsem o nacional
de país terceiro73. Nessa linha, a Convenção de aplicação do acordo de Schengen de
1990 já previa que o estrangeiro em situação irregular deveria deixar, espontaneamente,
o território dos Estados-membros de Schengen, caso contrário os próprios Estados, de
forma coercitiva, seriam autorizados a expulsar74 o indivíduo, salvo se o direito nacional
não permitisse tal medida75.
Com vistas a viabilizar o retorno daqueles considerados imigrantes irregulares, o
Conselho aprovou a decisão “charter” que autoriza a organização de vôos comuns para
promover afastamentos coletivos76, expressamente proibidos pelo Protocolo n.º 4 da
Convenção européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades
71 Art. 11, Código de Fronteiras Schengen. 72 Tal obrigação reflete a privatização crescente dos controles migratórios. É prevista no artigo 26 da Convenção de Aplicação Schengen. Vide CHETAIL (V.), op. cit., p. 7. 73 No caso francês, o nacional de país terceiro que permanece no território francês após expirado o prazo autorizado pelo visto é punido com pena de prisão de um ano e multa de 3.750 euros. Vide Código da entrada da permanência de estrangeiros e do direito de asilo (“Code de l’entrée et séjour des étrangers et du droit d'asile”), em vigor no dia 7 de agosto de 2009, art. L. 621-1, disponível no site : http://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?cidTexte=LEGITEXT000006070158&dateTexte=2009080. 74 Trata-se do afastamento forçado. 75 Artigo 23, 23, parágrafo 3, Convenção de aplicação dos acordos de Schengen. Vide JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), « L’éloignement des ressortissants de pays tiers », in JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), LABAYE (H.), EDSTRÖM (O.), (org.), La politique européenne d’immigration et d’asile: bilan critique cinq ans après le Traité d’Amsterdam, ed. Bruylant, Bruxelas, 2005, p. 209. 76 Decisão 2004/573/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa à organização de vôos comuns para o afastamento do território de dois ou mais Estados- membros de nacionais de países terceiros que estejam sujeitos a decisões individuais de afastamento, JO L 261 de 6 de agosto de 2004, p. 28.
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Fundamentais77, conforme será analisado a seguir. De fato, o acervo de Schengen impõe
uma obrigação de resultado, que consiste em afastar os estrangeiros em situação
irregular, sendo que os Estados-membros permanecem livres para definir as condições
nas quais uma permanência poderá ser considerada irregular, bem como os
procedimentos para promover o afastamento78, sob reserva das regras comunitarizadas,
como é o caso daquelas estipuladas na diretiva de retorno.
2) A tentativa de harmonização da obrigação de regresso
Conforme verificado acima, o Código de Fronteiras Schengen já previa a adoção
de uma decisão de recusa de entrada no território dos Estados-membros, aplicável ao
nacional de país terceiro que não tivesse preenchido as condições exigidas no texto
comunitário. Tal decisão era acompanhada da obrigação dos transportadores de
reencaminhar o estrangeiro ao país de procedência. A diretiva de retorno não inova na
matéria e segue a mesma linha da política de imigração preexistente. Com efeito, nos
termos do artigo 6, da diretiva de retorno, os Estados-membros deverão “emitir uma
decisão de regresso79 relativamente a qualquer nacional de país terceiro que se
encontre em situação irregular no seu território”. Trata-se de uma obrigação atribuída
aos Estados-membros pelas regras de direito comunitário, cujo cumprimento somente
poderá ser excepcionado com base nas hipóteses previstas nos incisos 2 a 5 do
mencionado artigo80. Essas hipóteses autorizam uma aplicação à la carte das
77 O protocolo n.° 4, de 16.09.1963, anexado à Convenção européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, estabelece no artigo 4 que “são proibidas as expulsões coletivas de estrangeiros”. 78 JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), op. cit., p. 211. 79 Nos termos do artigo 3, alínea 4 da diretiva de retorno, a «decisão de regresso» consiste em “uma decisão ou ato administrativo ou judicial que estabeleça ou declare a situação irregular de um nacional de país terceiro e imponha ou declare o dever de regresso”. 80 Nos termos do artigo 5, inciso 2: “Os nacionais de países terceiros em situação irregular no território de um Estado-Membro, que sejam detentores de um título de residência válido ou de outro título, emitido por outro Estado-Membro e que lhes confira direito de permanência estão obrigados a dirigir-se imediatamente para esse Estado-Membro”. O inciso 3 prescreve que “os Estados-Membros podem abster-se de emitir a decisão de regresso em relação a nacionais de países terceiros que se encontrem em situação irregular no seu território e sejam aceites por outros Estados-Membros ao abrigo de acordos ou convenções bilaterais existentes à data da entrada em vigor da presente diretiva”. O inciso 4 autoriza os Estados-Membros “a qualquer momento, conceder autorizações de residência autônomas ou de outro tipo que, por razões compassivas, humanitárias ou outras, confiram o direito de permanência a nacionais de países terceiros em situação irregular no seu território. Neste caso, não pode ser emitida qualquer decisão de regresso”. Por fim, o inciso 5 dispõe que “sempre que estiver em curso o processo de renovação do título de residência ou de outra autorização que confira um direito de permanência a favor de nacionais de países terceiros em situação irregular no território de um Estado-Membro, este deve ponderar a hipótese de não emitir decisões de regresso até à conclusão do referido processo (...)”.
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disposições da diretiva. Assim, todo nacional de país terceiro81 em situação irregular no
território de um Estado membro deve ser impelido a regressar82 com vistas a retornar ao
país de origem, de trânsito ou terceiro, caso o indivíduo assim o deseje e por ele seja
aceite.
Com a finalidade de definir a “situação irregular”, a diretiva remete ao Código
de fronteiras, dispondo que tal situação é caracterizada pela presença de um “nacional
de país terceiro que não preencha ou tenha deixado de preencher as condições de
entrada previstas no artigo 5º do Código de Fronteiras Schengen” 83, conforme visto
acima. Ocorre que, além das condições comunitarizadas, o próprio código permite que o
Estado-membro estabeleça “outras condições aplicáveis à entrada, permanência ou
residência nesse Estado-membro”. Com exceção das regras comunitarizadas para
estadas de uma duração inferior a três meses, cada Estado-membro é competente para
determinar livremente as condições estabelecidas para a entrada e permanência de
estrangeiros em seu território84. Significa afirmar que os Estados-membros permanecem
livres para adotar regras e procedimentos particulares, o que impede uma harmonização.
A utilização do método do “espelho”, que consiste em efetuar múltiplos reenvios a
outras normas, sobretudo nacionais, faz com que o texto se torne quase ilegível85.
A decisão de regresso poderá ser adotada por ato administrativo ou judicial86,
respeitando-se as discutíveis “garantias processuais” previstas no capítulo III da
diretiva. Note-se que o Estado em questão dispõe de autonomia institucional e
procedimental quase ilimitada, pois designa livremente a autoridade competente para
adotar a decisão de regresso, seja ela judiciária ou administrativa87. Além disso, o
conteúdo da decisão de regresso é fixado pelo direito nacional. A única exigência
imposta pela diretiva consiste na regra de que a autoridade competente deverá prever, na
decisão de regresso, prazo para partida voluntária podendo variar de sete a trinta dias,
81 Entende-se por “nacional de país terceiro”, nos termos do artigo 3, alinea 1 da diretiva, “uma pessoa que não seja cidadão da União, na acepção do n.1 do artigo 17 do Tratado, e que não beneficie do direito comunitário à livre circulação nos termos do n.º5 do artigo 2 do Código de Fronteiras Schengen”. 82 “Regresso” significa “o processo de retorno de nacionais de países terceiros, a título de cumprimento voluntário de um dever de regresso ou a título coercitivo: ao país de origem, ou a um país de trânsito, ao abrigo de acordos de readmissão comunitários ou bilaterais ou de outras convenções ou a outro país terceiro, para o qual a pessoa em causa decida regressar voluntariamente e no qual seja aceite”, artigo 3, alinea 3, diretiva de retorno. 83 Artigo 3, alinea 2, diretiva de retorno. 84 MARTUCCI (F.), «La directive ‘retour’ : la politique européenne d’immigration face à ses paradoxes », Revue trimestrielle de droit européen, janeiro-março 2009, n.º 1, ed. Dalloz, p. 50. 85 KAUFF-GAZIN (F.), « La directive ‘retour’… », op. cit., p. 4, par. 15. 86 Art. 5, inciso 6, diretiva de retorno. 87 MARTUCCI (F.), op. cit., p. 56.
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ou seja, caberá ao Estado-membro determinar o prazo aplicável ao nacional de país
terceiro em situação irregular que se encontre em seu território. A larga margem de
manobra estatal é ainda mais flagrante na possibilidade que lhe foi conferida pela
diretiva no sentido de determinar que o referido prazo somente será concedido a pedido
do indivíduo interessado, que na maioria das vezes desconhece a legislação aplicável.
Nesse caso, o indivíduo somente gozará do “benefício”, qual seja, do prazo para partida
voluntária, se apresentar tal pedido às autoridades competentes do Estado em causa, o
que leva a crer que o papel das ONGs será de extrema relevância. A tentativa de
flexibilização do prazo para partida voluntária é prevista no inciso 2, do artigo 7, ao
estabelecer que “sempre que necessário, os Estados-Membros estendem o prazo
previsto para a partida voluntária por um período adequado, tendo em conta as
especificidades do caso concreto (...)”. Nota-se, de forma evidente, a manutenção da
autonomia estatal na implementação da presente diretiva, em violação ao objetivo
preconizado por esse instrumento legislativo.
A concessão de prazo para partida voluntária poderia revelar que deveria
“preferir-se o regresso voluntário em relação ao regresso forçado”88. Todavia, uma
análise das hipóteses nas quais essa regra sofre exceções leva a crer que a partida
voluntária dificilmente será concretizada. Isso porque os Estados estão autorizados a
não conceder prazo para a partida voluntária ou conceder prazo inferior a sete dias na
hipótese de risco de fuga, de indeferimento de pedido de permanência regular por ser
manifestamente infundado ou fraudulento, de risco para a ordem ou segurança pública
ou para a segurança nacional89. Significa dizer que as garantias mínimas se dissipam
caso o indivíduo represente perigo para a ordem ou segurança de um Estado-membro.
Tal dispositivo é redigido em termos imensamente vagos, cuja definição caberá às
autoridades nacionais de forma discricionária90.
Tendo em vista as considerações acima, é possível afirmar que a diretiva de
retorno promove uma harmonização minimalista e flexível, podendo ser modificada de
acordo com a orientação política do Estado-membro. A própria necessidade da
intervenção comunitária por meio da adoção da diretiva, em virtude dos princípios da
subsidiariedade e proporcionalidade, poderia ser questionada e devidamente avaliada
88 Considerando n.º 10, diretiva de retorno. Vide Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu relativa à uma política comunitária de regresso dos residentes em situação ilegal, COM (2002) 564 final, Bruxelas, 14 de outubro de 2002, disponível no site: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2002:0564:FIN:PT:PDF. 89 Artigo 7, inciso 4, diretiva de retorno. 90 MARTUCCI (F.), op. cit., p. 56.
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pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (T.J.C.E.), sendo esse último
provocado pelo juiz nacional através de reenvio prejudicial. De fato, a diretiva apenas
reitera a obrigação que possui todo Estado-membro do espaço Schengen de emitir uma
decisão de regresso ao nacional do país terceiro em situação irregular que se encontra
em seu território91. Conforme verificado no item 1 acima, tal obrigação já encontrava
previsão no acervo de Schengen na parte relativa às estadas de curta duração92, bem
como na diretiva referente ao reconhecimento mútuo de decisões de afastamento93. As
demais regras apenas operam reenvios ao direito nacional. Assim como a harmonização,
a diretiva de retorno prevê um respeito dos direitos fundamentais igualmente à
géométrie variable, o que se afigura ainda mais grave.
II - Uma adequação à géométrie variable das novas regras aos direitos
fundamentais
Além de estabelecer o resultado a ser atingido pelos Estados-membros do espaço
Schengen94 para dar cumprimento à ambição de lutar contra a imigração ilegal, o
Conselho pretendia enquadrar os meios empregados nacionalmente para alcançar esse
objetivo, harmonizando minimamente os procedimentos de afastamento e as condições
de detenção. A inovação da diretiva de retorno consiste na criação de novas regras
coercitivas que deverão reger o procedimento de regresso, matéria que até então não se
encontrava comunitarizada. Tais regras, permeadas por supostas garantias processuais
(A), afiguram-se potencialmente violadoras dos direitos fundamentais (B). Em
princípio, a diretiva de retorno busca estabelecer normas e procedimentos comuns para
o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, observando-se os
91 Ibid, p. 57; JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), op. cit., p. 209. 92 O artigo 23, parágrafo 3 da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen determina que “sempre que este estrangeiro não partir voluntariamente ou sempre que se puder presumir que não partirá ou caso a partida imediata do estrangeiro se imponha por motivos de segurança nacional ou de ordem pública, o estrangeiro deve ser expulso do território da Parte Contratante em que foi detido, nas condições previstas pelo direito nacional dessa Parte Contratante. Se a aplicação deste direito não permitir a expulsão, a Parte Contratante em causa pode autorizar a estada do interessado no seu território”. 93 Diretiva 2001/40/CE, de 28 de maio de 2001, relativa ao reconhecimento mútuo de decisões de afastamento de nacionais de países terceiros, JOCE n.º L 149/34, de 2 de junho de 2001, p. 34-36; decisão 2004/191/CE, de 23 de Fevereiro de 2004, que estabelece os critérios e as modalidades práticas da compensação dos desequilíbrios financeiros decorrentes da aplicação da Diretiva 2001/40/CE, relativa ao reconhecimento mútuo de decisões de afastamento de nacionais de países terceiros, JO L 60 de 27 de fevereiro de 2004, p. 55- 57. Para mais detalhes, vide JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), op. cit., p. 221-231. 94 Para os Estados que fazem parte do espaço Schengen, vide nota 23 supra.
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direitos fundamentais “enquanto princípios gerais do direito comunitário e do direito
internacional”, sobretudo “os deveres em matéria de proteção dos refugiados e de
direitos do homem”95. A preocupação com o respeito dos direitos fundamentais, na
qualidade de princípios gerais do direito comunitário96, é encontrada em diversas
disposições da diretiva, principalmente nos seus “considerandos”97. Resta saber se a
aparente formalização dos direitos fundamentais será acompanhada por uma promoção
real de seus preceitos.
A) As garantias processuais minimalistas
O capítulo III da diretiva de retorno dispõe acerca das supostas garantias
processuais conferidas ao nacional de país terceiro em situação irregular no
procedimento de regresso. Não restam dúvidas que o direito ao devido processo legal
deverá ser reconhecido como uma garantia mínima que deve dispor todo migrante98,
independentemente de seu status migratório99. Ora, a obrigação de respeitar e garantir os
direitos humanos é de cumprimento obrigatório para todos os Estados100, não cabendo
distinções acerca da regularidade ou não do migrante como justificativas para o
desrespeito dos direitos fundamentais101. Há um vínculo indissociável entre a obrigação
95 Artigo 1, diretiva de retorno. 96 CJCE, 17 de dezembro de 1970, Internationale Handelsgesellschaft, caso 11/70, Rec. 1125. 97 Nos termos da diretiva, “os nacionais de países terceiros detidos deverão ser tratados de forma humana e digna, no respeito pelos seus direitos fundamentais” (considerando n.º 17). Acrescenta, ainda, que os Estados-membros deverão aplicar a diretiva “sem qualquer discriminação em razão do sexo, raça, cor, etnia ou origem social, características genéticas, língua, religião ou crença, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual” (considerando n.º 21). Há menção acerca do respeito dos direitos da criança, conforme previstos na Convenção das Nações Unidas de 1989 (considerando n.º 22), bem como das obrigações decorrentes da Convenção de Genebra atinentes ao Estatuto dos refugiados, de 28 de julho de 1951 (considerando n.º 23). Ainda nos “considerandos”, a diretiva anuncia que “respeita os direitos fundamentais e princípios consagrados, em especial, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia”(considerando n.º 24). 98 Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), migrante é o “término genérico que abarca tanto el emigrante como al inmigrante”, sendo emigrante aquela “persona que llega a otro Estado com el propósito de trasladarse a otro y establecerse en él”, e inmigrante, uma “persona que llega a otro Estado con el propósito de residir en él”, in CIDH, Opinião consultiva OC-18/03, de 17 de setembro de 2003, solicitada pelos Estados Unidos Mexicanos, sobre “Condición jurídica y derechos de los migrantes indocumentados”, p. 105, disponível no site: http://www.corteidh.or.cr/opiniones.cfm. 99 CIDH, Opinião consultiva OC-18/03, de 17 de setembro de 2003, solicitada pelos Estados Unidos Mexicanos, sobre “Condición jurídica y derechos de los migrantes indocumentados”, disponível no site: http://www.corteidh.or.cr/opiniones.cfm. 100 Opinião consultiva OC-18/03, par. 173, 1. 101 CANÇADO TRINDADE (A. A.), “El desarraigo como problema humanitario y de derechos humanos frente a la conciencia jurídica universal”, Derecho internacional humanitario y temas de áreas vinculadas, Lecciones y Ensayos nro. 78, Gabriel Pablo Valladares (compilador), Lexis Nexis Abeledo Perrot, Buenos Aires, 2003, p. 24, versão eletrônica disponível no site:
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de respeitar e garantir os direitos fundamentais e o princípio da igualdade e não
discriminação102, cujo descumprimento, mediante qualquer tratamento discriminatório,
gera responsabilização internacional do Estado. O Estado que age em violação desses
princípios está cometendo violação de norma imperativa, que carrega em si mesma
obrigações erga omnes103 de proteção que vinculam todos os Estados, gerando efeitos
para particulares104. Isso porque o princípio fundamental da igualdade e não
discriminação ingressou no domínio do jus cogens105, vinculando todos os Estados,
independentemente do status migratório dos indivíduos106. Dentre as obrigações erga
omnes decorrentes do referido princípio de jus cogens, figuram aquelas atinentes às
garantias judiciais, preservando-se o acesso à justiça, ou seja, o direito à tutela
jurisdicional efetiva107.
Os Estados deverão assegurar, em seu ordenamento jurídico interno, que todo
indivíduo tenha acesso a um recurso efetivo que ampare seus direitos108. O devido
processo legal é, portanto, um direito que deve ser garantido a todos,
independentemente do status migratório109, pois refere-se às garantias mínimas
concedidas a todo e qualquer migrante, sem nenhuma discriminação110. Significa dizer
que qualquer atuação ou omissão dos órgãos estatais no âmbito de um processo, seja ele
administrativo ou judicial, deverá respeitar o devido processo legal111. O desrespeito
ocorre, por exemplo, quando o Estado denega a prestação de um serviço público
gratuito de defesa legal a seu favor112, conforme veremos na diretiva de retorno. Ora, o
acesso à justiça não deve ser apenas formal, como parece indicar a diretiva, mas
igualmente real113. É necessário, portanto, avaliar se a diretiva de retorno respeita os
http://cicr.org/web/spa/sitespa0.nsf/html/63RJ47/$File/03_cancado.pdf; CANÇADO TRINDADE (A. A.), Elementos para un Enfoque de Derechos Humanos del Fenómeno de los Flujos Migratoiros Forzados, Guatemala, OIM/IIDH (Cuadernos de Trabajo sobre Migración n. 5, 2001, pp. 13 e 18, disponível no site: http://www.oim.org.gt/documentos/Cuaderno%20de%20Trabajo%20No.%2005.pdf. 102 A Corte acrescenta, citando diversas decisões da Corte Européia de Direitos Humanos, que uma distinção somente é discriminatória e desigual na ausência de justificativa objetiva, razoável e proporcional. Vide opinião consultiva OC-18/03, par. 85, p. 111. 103 Sobre a “emergencia y alcance de las obligaciones erga omnes de protección”, vide voto concorrente do juiz A. A. Cançado Trindade, p. 28-32, disponível no site: http://www.corteidh.or.cr/opiniones.cfm. 104 Opinião consultiva OC-18/03, par. 173, 5. 105 Acerca da “emergencia, contenido y alcance del jus cogens”, vide voto concorrente do juiz A. A. Cançado Trindade, p. 24-28. 106 Opinião consultiva OC-18/03, par. 109 e 173, 4. 107 Opinião consultiva OC-18/03, par. 109. 108 Opinião consultiva OC-18/03, par. 107. 109 Opinião consultiva OC-18/03, par. 121 e 173, 7. 110 Opinião consultiva OC-18/03, par. 122. 111 Opinião consultiva OC-18/03, par. 123. 112 Opinião consultiva OC-18/03, par. 126. 113 Opinião consultiva OC-18/03, par. 126.
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direitos fundamentais, enquanto normas de jus cogens, bem como as obrigações erga
omnes que deles naturalmente decorrem.
Conforme será analisado a seguir, muitas das “garantias” indicadas no texto
afiguram-se insuficientes, resguardando inadequadamente o direito ao devido processo
legal dos imigrantes sujeitos à medidas de expulsão114 e submetendo-os ao livre arbítrio
dos Estados nos quais se encontram irregularmente. A larga margem de manobra estatal
pode ser identificada desde os primeiros artigos da diretiva, ao afirmar que os Estados-
membros deverão levar em conta na aplicação da diretiva e durante o processo de
regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, “o interesse superior da
criança”, “a vida familiar” e “o estado de saúde do nacional de país terceiro em
causa”, devendo “respeitar o princípio da não-repulsão”115. A escolha do termo “ter
em devida conta” reflete uma proteção à géométrie variable, deixando larga autonomia
ao Estado em sua tarefa de transposição. O Estado, assim como o juiz comunitário,
deverá conciliar a adoção de medidas para efetivar o regresso com o respeitos dos
direitos fundamentais116. Ademais, seria possível questionar acerca da obrigatoriedade
de respeitar os direitos fundamentais, já que o Estado pode apenas levar em conta tais
preceitos, dispondo de uma mera faculdade.
Em regra, as decisões de regresso e as decisões de afastamento serão emitidas
por escrito, devidamente justificadas pelas razões de fato e de direito. Tais decisões
devem trazer informações acerca das vias recursais disponíveis. Ocorre que as razões de
fato poderão “ser limitadas caso o direito interno permita uma restrição ao direito de
informação”, sobretudo com o objetivo de “salvaguardar a segurança nacional, a
defesa, a segurança pública e a prevenção, investigação, detecção e repressão de
infracções penais” 117. Assim como a maior parte das disposições constantes da diretiva,
a ameaça à ordem pública ou à segurança nacional tornam letra morta as denominadas
garantias processuais, bem como o necessário respeito dos direitos fundamentais.
114 Resolução 150, 73º Período Ordinário de Sessões, 8 de agosto de 2008, Opinión del Comité Jurídico Interamericano sobre la diretiva de retorno aprobada por el Parlamento de la Union Europea, CJI/RES. 150 (LXXIII-O/08), 3 p., disponível em : http://www.oas.org/cji/CJI-RES_150_LXXII-O-08_esp.pdf.CJI, ponto 1.1. 115 Artigo 5, diretiva de retorno. 116 CJCE, 12 de junho de 2003, Schmidberger, caso C-112/00, Rec. I-5659; 14 de outubro de 2004, Omega, caso C-36/02, Rec. I-9609. Para mais detalhes sobre os casos, vide MORIJN (J.), “Balancing Fundamental Rights and Common Market Freedoms in Union Law: Schmidberger and Omega in the Light of the European Constitution”, European Law Journal, Vol. 12, No. 1, janeiro 2006, pp. 15–40. 117 Artigo 12, inciso 1, diretiva de retorno.
Artigo em elaboração. Favor não citar ou divulgar sem autorização da autora.
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Além de não conhecer as razões de fato que motivaram as decisões de regresso
e/ou afastamento, o nacional de país terceiro em situação irregular poderá obter,
somente se requisitar, “uma tradução escrita ou oral dos principais elementos das
decisões relacionadas com o regresso”, sobretudo informações atinentes às vias
recursais disponíveis118. É possível prever que o papel das ONGs será fundamental, na
medida em que os indivíduos dificilmente conhecerão as disposições da presente
diretiva. Estabelece, ainda, que a tradução será feita “numa língua que o nacional de
país terceiro compreenda ou possa razoavelmente presumir-se que compreende”119.
Como determinar a existência de uma língua que se possa razoavelmente presumir que
o indivíduo compreende? Ora, não se pode qualificar tal disposição de garantia
processual porquanto viola, com toda a evidência, os direitos fundamentais garantidos
inclusive pela Convenção européia para a proteção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais120.
A violação dos direitos fundamentais não se exaure na inconsistência das
preconizadas garantias processuais asseguradas ao indivíduo, como a falta de acesso às
razões de fato que motivaram a decisão de regresso ou a ausência de tradução da mesma
em língua que efetivamente compreenda. O inciso 3, do artigo 12 da diretiva causa
assombro ao determinar que a exigência de tradução não se aplica “aos nacionais de
países terceiros que tenham entrado ilegalmente no território de um Estado-Membro e
que não tenham obtido, subseqüentemente, uma autorização ou o direito de
permanência nesse Estado-Membro”121. Significa constatar que o direito à tradução,
mesmo insuficiente, somente é aplicável ao nacional de país terceiro que entrar
regulamente no território do Estado-membro, tendo sua permanência sido
posteriormente considerada irregular, nos termos do Código de Fronteiras Schengen.
Como visto anteriormente, o devido processo legal é um direito, ou seja, uma garantia
mínima que deve ser assegurada a todos, independentemente do status migratório122. A
disposição da diretiva viola frontalmente as obrigações erga omnes decorrentes do
princípio da não-discriminação, norma de jus cogens.
118 Artigo 12, inciso 2, diretiva de retorno. 119 Artigo 12, inciso 2, diretiva de retorno. 120 Segundo o artigo 5, inciso 2, da Convenção: “qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela” (grifamos). O texto da convenção é bastante claro ao afirmar que a tradução deverá ser feita em língua que a pessoa compreenda e não aquela que se possa razoavelmente supor que compreenda. 121 Artigo 12, inciso 3, diretiva de retorno. 122 Opinião consultiva OC-18/03, par. 121 e 173, 7.
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Com vistas a exercer seus direitos, o indivíduo poderá obter, caso solicite,
assistência e/ou representação jurídica gratuita e, eventualmente, serviços
lingüísticos123. A questão referente ao auxílio gratuito às pessoas sem recursos
constituiu a principal dificuldade entre os Estados-membros124. Ocorre que a gratuidade
da assistência ou representação jurídica encontra-se “sujeita às condições previstas nos
n.os 3 a 6 do artigo 15.o da Directiva 2005/85/CE” 125, relativa às normas mínimas
aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos
Estados-Membros126. Uma análise das disposições do n.º 3 a 6 do referido artigo 15
coloca em dúvida a gratuidade da assistência ou representação, já que a mesma
poderá127 ser fornecida ao indivíduo que carecer “de meios suficientes” e/ou “para
processos instaurados junto de um órgão jurisdicional”, salvo para “eventuais recursos
ou revisões judiciais posteriores previstos na legislação nacional”128. Também poderá
ser fornecida assistência ou representação “se for provável obter ganho de causa no
recurso ou na revisão judicial”129, o que desnatura o objetivo de proteger os direitos
fundamentais. Interessante notar que a suposta gratuidade, nos termos da disposição n.º
5, poderá sofrer “limites monetários ou temporais”130, impostos discricionariamente
pelos Estados. Permite-se, ainda, que os Estados exijam o reembolso total ou parcial das
despesas incorridas, caso exista melhora considerável na situação financeira do
requerente131. Não restam dúvidas de que a gratuidade da assistência e/ou representação
jurídica consistem apenas em uma fachada, conferindo ao Estado total competência para
apreciar seu custo financeiro e, eventualmente, concedê-la ao nacional de país
terceiro132. Essa assistência poderá ser financiada pelo fundo comunitário para o
123 Artigo 13, inciso 3, diretiva de retorno. 124 KAUFF-GAZIN (F.), « La directive ‘retour’ », op. cit., , p. 2. 125 Artigo 13, inciso 4, diretiva de retorno. 126 Trata-se da diretiva 2005/85/CE do Conselho, de 1 de Dezembro de 2005 , relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados-Membros, JO L 326 de 13.12.2005, p. 13-34. 127 O artigo 15, inciso 3, da diretiva é claro no sentido de que os Estados-membros “podem prever na sua legislação nacional a concessão dessa assistência ou representação gratuitas” (grifo nosso). Trata-se de uma possibilidade e não de uma obrigação. 128 Artigo 15, n. 3, diretiva 2005/85/CE. 129 Artigo 15, n. 3, d, diretiva 2005/85/CE. 130 Artigo 15, n. 5, a, diretiva 2005/85/CE 131 Artigo 15, n. 6, diretiva 2005/85/CE. 132 Segundo MARTUCCI (F.), a redação de tal dispositivo, dotado de fórmulas ambiguas, foi produto de um compromisso entre os deputados europeus e os Estados-membros, op. cit., p. 66, nota 158.
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retorno133, que entrou em vigor para o período de 2008-2013, sendo dotado de 676
milhões de euros.
A diretiva garante o direito de recurso do indivíduo com vistas à questionar a
decisão de regresso, a decisão de proibição de entrada e a decisão de afastamento
perante uma autoridade judicial ou administrativa ou ainda um órgão competente134. O
referido recurso pode ter efeito suspensivo na decisão de regresso135, ou seja, a
autoridade ou órgão competente exercerão poder discricionário, estando autorizados
pela legislação comunitária a conceder ou não tal efeito. Ora, o direito a um recurso
efetivo é assegurado pela Convenção européia, devendo ser dirigido a um tribunal
competente136.
É importante precisar que a proteção jurisdicional não se restringe à ótica
nacional. Isso porque a partir do momento em que a diretiva comunitariza a decisão de
regresso e as demais medidas a serem adotadas para promover o afastamento, a
Comissão não mais poderá rejeitar uma reclamação sobre descumprimento do direito
comunitário com base no argumento de que tais medidas não se encontram no campo de
aplicação do referido direito. Ao comunitarizar práticas já adotadas sistematicamente
pelos Estados-membros, a diretiva acaba por permitir o questionamento do respeito de
tais práticas com relação aos direitos fundamentais perante o TJCE137. Cada Estado-
membro, que até então decidia livremente acerca das medidas coercitivas utilizadas para
impor o afastamento, a seguir analisadas, deverá atentar para o respeito dos direitos
fundamentais, cuja violação consiste em atentado ao próprio direito comunitário. O
TJCE poderá, ainda, ser provocado pelo juiz nacional, no âmbito de um pedido de
reenvio prejudicial a fim de decidir acerca da validade da diretiva ou de interpretá-la em
caso de dúvida da jurisdição nacional, desde que em última instância138. Além disso, a
133 Decisão n.º 575/2007/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de maio de 2007, que cria o Fundo Europeu de Regresso para o período de 2008 a 2013 no âmbito do programa geral Solidariedade e gestão dos fluxos migratórios, disponível no site: http://eur-lex.europa.eu/smartapi/cgi/sga_doc?smartapi!celexplus!prod!DocNumber&lg=pt&type_doc=Decision&an_doc=2007&nu_doc=575. 134 Artigo 13, inciso 1, diretiva de retorno. 135 Artigo 13, inciso 2, diretiva de retorno 136 Nos termos do artigo 5, inciso 4: “Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal”. 137 É importante destacar, de acordo com o inciso 2, do artigo 68, TCE, que “o Tribunal de Justiça não tem competência, em caso algum, para se pronunciar sobre medidas ou decisões tomadas em aplicação do ponto 1 do artigo 62.o relativas à manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna”. 138 O inciso 1 do artigo 68 dispõe que “1. o artigo 234.o é aplicável ao presente título, nas circunstâncias e condições a seguir enunciadas: sempre que uma questão sobre a interpretação do presente título ou sobre a validade ou interpretação dos actos adoptados pelas instituições da Comunidade com base no
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Corte européia de direitos humanos é igualmente competente para apreciar a
convencionalidade das medidas nacionais adotadas para aplicar a diretiva de retorno139.
B) A grande elasticidade das medidas coercitivas
Se todo Estado é competente para determinar as condições de entrada e
permanência de estrangeiros em seu território, essa regra é relativizada no caso dos
Estados-membros da União Européia, em função das comunitarização da política de
imigração pelo Tratado de Amsterdã. A inovação da diretiva de retorno consiste na
criação de regras coercitivas imensamente flexíveis que deverão reger o procedimento
de regresso e afastamento dos nacionais de países terceiros em situação irregular,
matéria que até então não se encontrava comunitarizada. A comunitarização não se
restringe aos meios para promover o afastamento (1), abarcando, ainda, a detenção para
efeitos de afastamento (2), bem como da proibição de retorno (3). Trata-se do “real
valor agregado”140 da diretiva, que instaura uma dimensão comunitária às
conseqüências das decisões de regresso. Tal comunitarização deverá respeitar o disposto
na Convenção européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais141.
1) Os meios para promover o afastamento
Caso não tenha sido cumprida a decisão de regresso que estabelecia prazo para a
partida voluntária ou caso tal prazo não tenha sido concedido com base nas hipóteses
mencionadas na primeira parte deste artigo, o Estado-membro deverá tomar as medidas
necessárias para afastar o indivíduo142, podendo emitir uma ordem de afastamento por
decisão ou ato administrativo ou judicial143. O regresso será financiado pelo Fundo
presente título seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, deve pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie” (grifo nosso). 139 É o que se pode inferir das decisões da Corte européia de direitos humanos: 18 de fevereiro de 1999, Matthews c/ Reino Unido, n.º 40302/98, p. 97-102; 30 de junho de 2005, Bosphorus, n.º 45036/98. Para mais detalhes sobre o caso, vide COSTELLO (C.), « The Bosphorus Ruling of the European Court of Human Rights: Fundamental Rights and Blurred Boundaries in Europe”, Human Rights Law Review 6:1, Oxford University Press, 2006, p. 87-130. 140 MARTUCCI (F.), op. cit., p. 58. 141 Nos termos do artigo 5, inciso 1, letra f, toda pessoa tem direito à liberdade e segurança, sendo que ninguém pode ser privado de sua liberdade salvo “se se tratar de prisão ou detenção legal de uma pessoa para lhe impedir a entrada ilegal no território (...)”. 142 Artigo 8, inciso 1, diretiva de retorno. 143 Artigo 8, inciso 3, diretiva de retorno.
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Europeu de Regresso144, criado para tornar efetivo o regresso voluntário ou forçado145.
A maior parte dos Estados-membros considera que o retorno voluntário é mais rentável
que o retorno forçado, tendo desenvolvido cooperações bilaterais com diferentes países
de trânsito ou de origem146. As referidas medidas necessárias poderão incluir, “como
último recurso”, o emprego de medidas coercivas, que deverão ser proporcionais e
razoáveis147, contrariando a prática atual nos Estados-membros148. Resta saber o que os
Estados-membros entenderão por uso da força proporcional e razoável, noções estas que
não foram comunitarizadas pela diretiva. O afastamento forçado deverá respeitar os
direitos fundamentais, a dignidade e integridade física dos nacionais de países terceiros
em causa, sendo tal controle realizado pelos juízes comunitários.
As modalidades de regresso são determinadas por um simples reenvio ao direito
nacional, o que nos conduz a questionar acerca da importância da diretiva para a
matéria149. Com efeito, a prática de expulsar nacionais de países terceiros em situação
irregular já era corrente nos Estados-membros do espaço Schengen, apesar da
diversidade de procedimentos empregados150. Caso o afastamento ou expulsão, termo
evitado pela diretiva, ocorrer por via aérea os Estados-membros deverão cumprir o
disposto nas normas comunitárias relativas às operações conjuntas de afastamento por
via aérea151. A organização de vôos comuns apresenta certamente vantagens financeiras,
constituindo, ainda, uma forma de sinalizar aos países terceiros a postura firme da
Europa de Schengen na luta contra a imigração clandestina152. Trata-se da única
144 Decisão n. 575/2007/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de maio de 2007 , que cria o Fundo Europeu de Regresso para o período de 2008 a 2013 no âmbito do programa geral Solidariedade e gestão dos fluxos migratórios. 145 Segundo o inciso 3, do artigo 3 da decisão que institui o fundo, “Os planos integrados de regresso visam especialmente assegurar o carácter efectivo e sustentável dos regressos, mediante acções tais como a divulgação de informações práticas antes da partida, e a organização da viagem e do trânsito no país de regresso, tanto para os regressos voluntários como para os forçados. Na medida do possível, a fim de promover o regresso voluntário, podem prever-se incentivos a favor de quem seja voluntário, tais como uma ajuda ao regresso”. 146 JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), op. cit., p. 215. 147 Artigo 8, inciso 4, diretiva de retorno. 148 JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), op. cit., p. 251. 149 MARTUCCI (F.), op. cit., p. 57. 150 “Return Migration: policies and practices in Europe 2004”, Genebra, IOM, 2004, p. 7, disponível no site: http://www.ch.iom.int/fileadmin/media/pdf/publikationen/return_migration.pdf. 151 Artigo 8, inciso 5, diretiva de retorno. Trata-se da decisão 2004/573/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa à organização de vôos comuns para o afastamento do território de dois ou mais Estados- membros de nacionais de países terceiros que estejam sujeitos a decisões individuais de afastamento, JO L 261 de 6.8.2004, p. 28. Tal decisão foi proposta por iniciativa da Itália: vide JO C 223/05, de 19.09.2003. 152 Comissão das Comunidades Européias, Livro verde relativo a uma política comunitária em matéria de regresso dos residentes em situação ilegal, COM(2002) 175 final, Bruxelas, de 10 de abril de 2002, p. 8, disponível no site: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/site/pt/com/2002/com2002_0175pt01.pdf.
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obrigação a ser respeitada pelos Estados-membros, sendo que as demais deverão ser
estabelecidas pela legislação nacional.
A possibilidade de promover afastamentos coletivos conferida pela decisão
“charter”153 poderá constituir violação ao artigo 4, do Protocolo n.º 4 da Convenção
européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais154,
segundo o qual “são proibidas as expulsões coletivas de estrangeiros”. Essa proibição
já era prevista desde 1986 pela Declaração de Princípios do Direito Internacional sobre
Expulsão massiva, adotada pela International Law Association, bem como
posteriormente, em 1990, pela Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos
de Todos os Trabalhadores Migratórios e de suas Famílias155. Como bem colocado por
JULIEN-LAFERRIÈRE (F.) e JOUANT (N.), a intenção de recorrer aos vôos comuns
de forma sistemática e numa ótica dissuasiva poderia gerar um contexto favorável à
violação do princípio segundo o qual as expulsões coletivas são proibidas156. O
Parlamento já havia sinalizado seu desacordo com relação à referida decisão que poderá
incentivar afastamentos coletivos, porém seu parecer157 foi desconsiderado pelo
Conselho, que se limitou a inserir, no considerando n.º 6 e 7 da diretiva, que “o
153 Decisão 2004/573/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa à organização de vôos comuns para o afastamento do território de dois ou mais Estados- membros de nacionais de países terceiros que estejam sujeitos a decisões individuais de afastamento, JO L 261 de 6.8.2004, p. 28. O primeiro vôo charter partiu em setembro de 2005, levando 125 romenos, presentes ilegalmente na Espanha, na França e na Itália. Vide “Immigration – Le 1er charter européen renvoie des Roumains”, TF1, 22 de setembro de 2005, disponível no site : http://tf1.lci.fr/infos/monde/2005/0,,3247591,00-1er-charter-europeen-renvoie-roumains-.html. Para informações sobre a decisão « charter », vide JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), op. cit., p. 232-235. De acordo com os autores, a decisão “charter” estabelece que a execução da referida decisão deverá ser garantida pelo Estado que adotou a decisão de afastamento se existir vôo direto partindo deste último e determina o procedimento a ser seguido no que tange à troca de informações acerca da oportunidade de organizar um vôo comum. 154 O protocolo n.° 4, de 16.09.1963, anexado à Convenção européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, disponível no site: http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/7510566B-AE54-44B9-A163-912EF12B8BA4/0/PortuguesePortugais.pdf. 155 Para uma análise dessas convenções, vide CIDH, Opinião consultiva OC-18/03, p. 8, par. 21; CANÇADO TRINDADE (A. A.), “El desarraigo como problema humanitario y de derechos humanos frente a la conciencia jurídica universal”, Derecho internacional humanitario y temas de áreas vinculadas, Lecciones y Ensayos nro. 78, Gabriel Pablo Valladares (compilador), Lexis Nexis Abeledo Perrot, Buenos Aires, 2003, p. 71-116, versão eletrônica disponível no site: http://cicr.org/web/spa/sitespa0.nsf/html/63RJ47/$File/03_cancado.pdf. 156 JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), op. cit., p. 249. 157 Parecer do Parlamento “sobre a Iniciativa da República Italiana tendo em vista a aprovação de uma decisão do Conselho relativa à organização de voos comuns para o afastamento do território de dois ou mais Estados--Membros de nacionais de países terceiros objecto de decisões individuais de afastamento”, elaborado pela relatora Adeline Hazan, no âmbito da Comissão das Liberdades e dos Direitos dos Cidadãos, da Justiça e dos Assuntos Internos, A5-0091/2004, 23 de fevereiro de 2004, disponível no site: http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+REPORT+A5-2004-0091+0+DOC+XML+V0//PT.
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Conselho esgotou todas as possibilidades de obter ‘atempadamente’158 o parecer do
Parlamento Europeu”. Por esse motivo, afirmou o Conselho que, excepcionalmente, a
decisão em questão “deverá ser aprovada sem o parecer do Parlamento Europeu”159.
Em seu parecer, o Parlamento havia rejeitado a iniciativa italiana expressa na proposta
de decisão, manifestando “sua decepção relativamente à forma que tomou a
cooperação com o Conselho num processo tão sensível e controverso”160, sobretudo por
ter sido preterido no processo decisório em detrimento de um acordo político no
Conselho. Tal postura leva a crer que o papel do Parlamento, no âmbito do
procedimento de consulta obrigatória instituído pelo artigo 67, do Tratado CE, tornou-se
“totalmente supérfluo” e não foi “levado a sério”, “o que permite antever dificuldades
em caso de passagem para a co-decisão”161.
No que tange ao conteúdo da proposta italiana, o Parlamento condenou
firmemente o reconhecimento da prática de vôos charters de expulsão através de decisão
específica, considerando que “a União Européia mancha perigosamente a sua imagem
e corre o risco de derivar para uma ‘Europa fortaleza’”162. O Parlamento conclui
afirmando que as “expulsões coletivas constituem uma prática deplorável”, que deveria
ser empregada “apenas em casos excepcionais”163. Se os Estados-membros pretendiam
privilegiar a partida voluntária, não seria esse o melhor caminho, já que a tendência será
no sentido de um aumento do número e da freqüência desses vôos, reduzindo as
“garantias oferecidas ao exame dos pedidos”164. Ao invés de privilegiar o viés
repressivo das políticas de asilo e imigração, o Parlamento considera que é “essencial
158 Atempadamente significa “dentro do prazo”. O advérbio de tempo decorre do verbo atempar, que expressa “marcar tempo determinado ou prazo a; aprazar, atermar”, in Dicionário Aurélio, século XXI, versão eletrônica, ed. Nova Fronteira. 159 Decisão 2004/573/CE, considerando n.º 6 e 7. 160 Parecer do Parlamento, p. 7. 161 Parecer do Parlamento, p. 8. 162 De acordo com o Parlamento, “o facto de serem organizados repatriamentos colectivos vai contribuir para banalizar o próprio princípio das expulsões: corre-se o risco de se verificar um recurso acrescido a procedimentos acelerados de exame dos pedidos de asilo e de prejudicar a qualidade do exame dos pedidos de recurso para rentabilizar a organização dos voos comuns. Neste contexto, cabe assinalar um paradoxo inerente à abordagem dos Estados-Membros: incapazes de se entender sobre as modalidades de obtenção do estatuto de refugiado, estes não têm, em contrapartida, qualquer dificuldade em chegar a acordo sobre as modalidades de expulsão dos residentes ilegais...”, p. 8-9. 163 Parecer do Parlamento, p. 9. 164 O Parlamento continua, declarando que “ao contrário da Comissão, para quem "a generalização desta prática não só teria vantagens financeiras, mas o sinal enviado seria igualmente mais forte", a relatora está convicta de que este "sinal" seria entendido como uma humilhação. Desejaria ver os Estados-Membros colocar a determinação e a capacidade de coesão que acabam de demonstrar ao serviço de projectos mais positivos. (...) Com efeito, enquanto se mantiver a considerável disparidade económica e o défice democrático entre o Norte e o Sul, nenhuma política repressiva conseguirá dissuadir os candidatos a exílio a procurarem encontrar noutro lugar, e nomeadamente na Europa, melhores condições de vida”, p. 9.
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proceder a uma análise exaustiva das causas do fenómeno da imigração ilegal e dos
meios da respectiva remediação”165.
Para fazer face à alegação de descumprimento dos direitos fundamentais, a
autoridade nacional deverá avaliar a situação pessoal do nacional do país terceiro em
causa e demonstrar a existência de garantias atestando uma análise real, razoável,
diferenciada e objetiva de cada um dos indivíduos que compõem o grupo condenado ao
afastamento166. Tal regra encontra previsão na Carta de direitos fundamentais da União
Européia, em seu artigo 19 relativo à “proteção em caso de afastamento, expulsão ou
extradição”, segundo o qual “são proibidas as expulsões coletivas”167. O inciso segundo
impede a expulsão do indivíduo “para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a
pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes”168,
nos termos da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos refugiados, de 28 de julho
de 1951169.
Ademais, o respeito dos direitos fundamentais deverá ser avaliado com relação
ao emprego das medidas coercitivas autorizadas pela decisão, em seu anexo referente às
“orientações comuns em matéria de disposições de segurança nas operações conjuntas
de afastamento por via aérea”170. Vale destacar o ponto 3.2, c) das mencionadas
orientações, que afirma que “em caso de utilização de força como meio de coerção,
deve–se assegurar que o tronco da pessoa se mantenha em posição vertical e que a sua
caixa torácica não seja comprimida, a fim de este manter as funções respiratórias
165 Parecer do Parlamento, p. 9. 166 CEDH, 5 de fevereiro de 2002, Conka c/Bélgica, n.º 51564/99, parágrafo 59, 62 e 63. 167 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Jornal Oficial C 303 de 14 de Dezembro de 2007, disponível no site: http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/dat/32007X1214/htm/C2007303PT.01000101.htm. É importante destacar que tal texto adapta a carta proclamada em 7 de dezembro de 2000, substituindo-a a partir da data de entrada em vigor do Tratado de Lisboa. 168 Trata-se da obrigação de respeitar o princípio da não-repulsão, reconhecida no artigo 4, inciso 4, b, da diretiva de retorno. 169 Considerando n.º 23, diretiva de retorno. 170 O Parlamento considera que as disposições incluídas no anexo intitulado “orientações comuns” são de importância crucial e não deveriam figurar num simples anexo sem qualquer carácter vinculativo. De acordo com o Parlamento: “estas abrangem, nomeadamente, o estado de saúde das pessoas expulsas, um código de conduta aplicável aos membros da escolta e a utilização de medidas coercivas”. Apesar das críticas no sentido de que o instrumento deveria ser dotado de caráter vinculante, o Parlamento afirma que “devemos congratular-nos por, num segundo momento, ter sido ponderada a incorporação no texto de regras destinadas, nomeadamente, a preservar a "dignidade e a integridade física" das pessoas expulsas: a Comissão tinha já anunciado numa comunicação de Junho de 2003 que preparava, "em estreita cooperação com os Estados-Membros, um projecto de orientações relativas a medidas de segurança aplicáveis aquando dos repatriamentos por via aérea, que deveriam contribuir igualmente de forma significativa para garantir que o regresso das pessoas se processasse sem problemas e com toda a segurança"”. Vide JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), op. cit., p. 233.
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normais”171. A disposição mais parece um manual sobre o uso da força, autorizando
toda sorte de medida coercitiva, desde que permita a respiração normal do indivíduo. O
controle de tais medidas será dificultado, já que não há disposição prevendo que as
operações serão controladas pela Cruz Vermelha, por exemplo. O Parlamento tece dura
crítica nesse sentido, ao considerar que “esta ausência de controle só pode ser
interpretada como uma vontade, por parte dos autores da iniciativa, de reduzirem o
impacto das operações de repatriamento a fim de evitar a eclosão de movimentos de
oposição”. O impacto das operações de expulsão não pode ser negligenciado, tendo em
vista a ocorrência de morte de alguns estrangeiros durante as referidas operações,
conforme identificado em relatório do Parlamento Europeu172. Assim sendo, não é
surpreendente que o Conselho tenha optado por obter um acordo político, não se
preocupando em democratizar sua decisão através do aval parlamentar.
2) A detenção para efeitos de afastamento
Além da previsão de afastamento por via aérea, a diretiva de retorno
comunitariza a noção de detenção para efeitos de afastamento como uma resposta à
incapacidade estatal de controlar, isoladamente, os fluxos migratórios e implementar de
forma efetiva as decisões de afastamento. Trata-se de uma regra acessória à obrigação
de retorno, não constituindo uma sanção com o objetivo de punir a entrada irregular.
Caso seja necessário e somente em último caso, o Estado-membro poderá deter o
nacional de país terceiro em situação irregular a fim de preparar seu regresso ou efetuar
seu afastamento. A situação de necessidade somente é justificada se houver risco de
fuga ou se o indivíduo evitar ou dificultar a preparação do regresso ou o procedimento
de afastamento. Com efeito, a razão de ser desse dispositivo consiste no risco de
desaparecimento dos imigrantes em situação irregular173. A previsão não é nova com
relação à prática em vigor nos Estados-membros, já que estes últimos recorrem,
freqüentemente, à prisão para efeitos de afastamento, a despeito de constituir, em regra,
uma medida excepcional174.
171 Decisão 2004/573/CE, p. 33. 172 Opinião minoritária de Ilka Schröder, adotada no Relatório sobre a Iniciativa da República Federal da Alemanha tendo em vista a adoção de uma diretiva do Conselho relativa ao apoio em caso de trânsito no âmbito de medidas de afastamento por via aérea,, de 26 de março de 2003, A5-0104/2003. 173 JULIEN-LAFERRIÈRE (F.) e JOUANT (N.) explicam que em razão da ausência ou irregularidade de documentos de identidade ou de viagem ou ausência de linhas aéreas diretas, as administrações nacionais encontram obstáculos práticos para efetivar o retorno, op. cit., p. 215. 174 Todos os Estados-membros da União Européia prevêem a possibilidade de deter um estrangeiro em situação irregular a fim de expulsá-lo do território nacional, porém a duração da detenção, as
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Esse dispositivo eminentemente contraditório promove, igualmente, uma
autonomia quase ilimitada ao Estado-membro. A escolha de termos permissivos,
flexíveis e abertos é testemunha da dificuldade de se estabelecer regras comuns aos
Estados-membros. Nessa linha, a diretiva menciona que a detenção terá a menor
duração “possível”, poderá ser ordenada por autoridades administrativas ou judiciais175.
No caso de ter sido ordenada por autoridades administrativas176, a legalidade da
detenção deverá sofrer controle jurisdicional de ofício ou a requerimento do interessado.
É interessante notar, nos termos da diretiva, que se a detenção for ilegal “o nacional de
país terceiro em causa é libertado imediatamente”. Caberá aos representantes ou
assistentes jurídicos intentar ação para fazer valer os direitos do indivíduo preso
ilegalmente. Não há qualquer menção acerca do direito à indenização conferido ao
indivíduo detido irregularmente, conforme reconhecido pela Convenção européia para a
proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais177.
A detenção, que durará apenas o tempo necessário para garantir a execução do
afastamento, deverá ser reapreciada em intervalos “razoáveis”178, que não foram
definidos pela diretiva. Há, ainda, a previsão de um prazo limite para a detenção, que
não pode ultrapassar seis meses, prorrogáveis por mais doze meses somente nas
hipóteses de falta de cooperação do indivíduo ou atrasos na obtenção da documentação
necessária junto de países terceiros179, o que poderá se tornar bastante freqüente. O
indivíduo poderá ser detido, portanto, durante dezoito meses, prazo que excede aquele
disposto na legislação interna de muitos Estados-membros. A duração da detenção foi
alvo de severas críticas de ONGs, como a Anistia Internacional180, a Fidh181 e a
possibilidades de prorrogação, as vias recursais disponíveis e as condições de detenção variam sensivelmente, Ibid, p. 251 e 212. 175 Artigo 15, inciso 1 e 2, diretiva de retorno. 176 Na França, a detenção é ordenada por autoridades administrativas, nos termos do artigo 551, do Código de entrada e permanência de estrangeiros e do direito de asilo. Vide Code de l'entrée et du séjour des étrangers et du droit d'asile, em vigor no dia 7 de agosto de 2009, disponível no site : http://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?cidTexte=LEGITEXT000006070158&dateTexte=2009080. Para mais detalhes, vide GACON (H.), « L’intervention du juge judiciaire dans la procédure de rétention administrative », Actualité juridique, Pénal, n.º1/2008, janeiro de 2008, ed. Dalloz, pp. 16. 177 Nos termos do artigo 5, inciso 5, da Convenção: “qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo tem direito à indenização”. O texto da Convenção poderá ser consultado no site: http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/7510566B-AE54-44B9-A163-912EF12B8BA4/0/PortuguesePortugais.pdf. 178 Artigo 15, inciso 3, diretiva de retorno. 179 Artigo 15, incisos 5 e 6, diretiva de retorno. 180 “EU Return directive affects dignity and security of irregular migrants”, Amnesty International, 4 de julho de 2008, disponível no site: http://www.amnesty.org/en/news-and-updates/EU-return-directive-affects-dignity-security-irregular-migrants-20080704. 181 FIDH position paper: « Returns » Directive: 10 recommendations for a protective harmonization in line with Human Rights, fevereiro de 2008, disponível no site: http://www.fidh.org/spip.php?article5486;
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Cimade182. A OEA também emitiu resolução em agosto de 2008183 condenando a
adoção da diretiva, que estabelece mecanismos de internação inconsistentes com os
princípios de direito internacional e as disposições contidas nos ordenamentos jurídicos
dos Estados-membros184. De acordo com a OEA, a diretiva fornece inadequada proteção
aos imigrantes em condições vulneráveis e envolve situações de detenção em centros
penais, afetando as garantias básicas dos imigrantes ao equipará-los com pessoas
acusadas ou condenadas por delitos comuns185. As medidas de internação previstas no
texto comunitário não são proporcionais à situação dos imigrantes, constituindo
violação aos instrumentos internacionais de direitos humanos sobre a matéria, conforme
sustenta a OEA186.
Ora, a diretiva faz menção acerca da possibilidade conferida a um Estado-
membro no sentido de aplicar disposições mais favoráveis constantes de acordos
bilaterais ou multilaterais, do acervo comunitário em matéria de imigração e do direito
interno dos Estados-membros, desde que compatíveis com o direito comunitário187.
Contrariamente ao permissivo comunitário, a Itália, cuja legislação interna autorizava
somente 40 dias de detenção administrativa, anunciou que pretendia aumentar tal
duração para os 18 meses. No que tange à França, o país dispunha do menor prazo de
detenção da Europa, qual seja, de no máximo 32 dias188, sendo a média de até 10 dias. A
tendência é que os referidos Estados, com base na diretiva comunitária, aproveitem a
oportunidade para aumentar legalmente o prazo inicialmente estipulado na legislação
interna relativo à detenção, mesmo sendo autorizados a manter disposições mais
favoráveis189. Com efeito, não há qualquer impedimento ao nivelamento por baixo dos
prazos de detenção, alterando-os de maneira menos favorável, desde que não
ultrapassem o limite imposto pela diretiva. Por outro lado, as legislações de cinco FIDH press release FIDH calls for the suspension of the text’s adoption until it conforms to Member States international human rights obligations, 6 de maio de 2008, disponível no site: http://www.fidh.org/spip.php?article5624. 182 Vide relatório da Cimade, “Centres et locaux de rétention administrative”, disponível no site: http://www.cimade.org/assets/0000/0645/Rapport_Cimade_retention.pdf. 183 Resolução 150, 73º Período Ordinário de Sessões, 8 de agosto de 2008, Opinión del Comité Jurídico Interamericano sobre la diretiva de retorno aprobada por el Parlamento de la Union Europea, CJI/RES. 150 (LXXIII-O/08), 3 p., disponível em : http://www.oas.org/cji/CJI-RES_150_LXXII-O-08_esp.pdf.CJI. 184 CJI/RES. 150 (LXXIII-O/08), ponto 1.2. 185 CJI/RES. 150 (LXXIII-O/08), ponto 1.3 e 1.4. 186 CJI/RES. 150 (LXXIII-O/08), ponto 1.6. 187 Artigo 4, diretiva de retorno. 188 GACON (H.), « L’intervention du juge judiciaire dans la procédure de rétention administrative », Actualité juridique, Pénal, n.º1/2008, janeiro de 2008, ed. Dalloz, pp. 16. 189 Segundo MARTUCCI (F.), a hipótese referida não é meramente teórica, tendo sido adotada na França durante a transposição da diretiva 2003/86 pela lei 2006-911 de 24 de julho de 2006, op. cit., p. 64, nota 147.
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Estados-membros que participaram da adoção da diretiva não estabelecem limites no
que tange à duração da detenção, como Estônia, Finlândia, Lituânia, Países-Baixos e
Suécia190. Neste caso, seria possível supor que a diretiva possui um efeito positivo,
limitando em até 18 meses o período de detenção. De qualquer forma, não se pode
negar que a harmonização que pretende realizar a referida disposição é mínima, fixando
apenas um limite máximo comum, dentro do qual os Estados-membros terão total
liberdade de operar.
Uma vez decretada a necessidade da detenção para fins de afastamento, o
nacional de país terceiro será encaminhado a um centro de detenção especializado ou,
caso não exista, a um estabelecimento prisional comum191. Só na França existem,
atualmente, mais de 24 centros de detenção administrativa192. Segundo o relatório da
Cimade193 produzido em 2007, mais de trinta e cinco mil estrangeiros foram colocados
em centros de detenção em 2007, dentre eles 242 crianças sendo que 80% delas
possuíam menos de dez anos194. É, de fato, autorizada a detenção de menores não
acompanhados, bem como de famílias com menores “por um prazo adequado que deve
ser o mais curto possível”195. Novamente verificamos o emprego de expressões que
buscam conferir autonomia ao Estado na definição de um prazo que seria adequado e
menor possível. A diretiva pretende, ainda, enquadrar a autonomia dos Estados-
membros no que tange às condições de detenção. O artigo 16 estabelece que uma 190 Na Grécia, a duração da detenção é de 3 meses, na Alemanha de 18 meses. A Dinamarca e o Reino Unido, que dispõem de duração ilimitada, não precisarão adaptar suas legislações visto que não fazem parte integralmente do espaço Schengen. Vide « Centres de rétention: le Conseil d’Etat valide le décret réformant l’assistance aux étrangers », Lemonde.fr, 3 de junho de 2009, disponível no site : http://www.lemonde.fr. 191 Artigo 16, inciso 1, diretiva de retorno. 192 Vide « arrêté du 21 mai 2008 pris en application de l'article R. 553-1 du code de l'entrée et du séjour des étrangers et du droit d'asile », disponível em : http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000018879646&dateTexte= 193 A Cimade (Comité Inter Mouvements Auprès Des Évacués) é uma associação sem fins lucrativos que foi autorizada, desde 1984, a controlar as condições de detenção e fornecer assistência jurídica aos indivíduos que se encontravam detidos em centros de detenção administrativa. Até a data de 2 de junho de 2009, a Cimade era a única ONG autorizada por lei a penetrar nos centros de detenção administrativa. O decreto n.º 2008-817, de 22 de agosto de 2008, retirou o monopólio da Cimade e abriu processo de seleção para novas ONGs. Em outubro de 2008, o Tribunal administrativo de Paris, provocado por cinco associações, decidiu anular o processo de seleção em virtude da insuficiência de competências jurídicas das candidatas. Logo após, o ministro abriu novo processo seletivo, sendo este último novamente questionado por dez associações que recorreram ao Conselho de Estado, em 23 de janeiro de 2009, objetivando a anulação do decreto de reforma de 2008. A decisão do Conselho foi adotada em 3 de junho de 2009, ocasião na qual determinou a rejeição do pedido de anulação do referido decreto. Desde 10 de abril de 2009, o ministro da imigração, Éric Besson, já havia anunciado a divisão geográfica das atribuições da Cimade com outras ONGs. Vide, para mais informações, « Centres de rétention: le Conseil d’Etat valide le décret réformant l’assistance aux étrangers », Lemonde.fr, 3 de junho de 2009. 194 Vide relatório da Cimade, “Centres et locaux de rétention administrative”, disponível no site: http://www.cimade.org/assets/0000/0645/Rapport_Cimade_retention.pdf. 195 Artigo 17, diretiva de retorno.
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atenção especial deverá ser atribuída às pessoas vulneráveis, sendo prestados cuidados
de saúde urgentes e tratamento básico de doenças, o que não impede o encaminhamento
dessas pessoas ao estabelecimento prisional. Assegura, ainda, às organizações, órgãos
nacionais e internacionais a possibilidade de visitar os centros de detenção196, sendo que
tais visitas podem estar sujeitas à autorização.
A diretiva comunitariza, portanto, a prisão administrativa e promove uma
generalização da prisão dos imigrantes, nas palavras da Cimade197. A doutrina critica a
medida, afirmando que a diretiva legitima, legaliza e banaliza o recurso à prisão
administrativa, que poderá se tornar um meio de gerir a imigração198. Com efeito, a
diretiva legaliza uma prática freqüentemente utilizada pelos Estados-membros,
harmonizando minimamente as regras relativas à prisão administrativa. Ora, além de
permitir que os Estados adotem critérios mais favoráveis, a diretiva deixa larga margem
de apreciação aos Estados ao não estabelecer um período fixo para a detenção. Seria
possível afirmar, nessa linha, que a diretiva flexibiliza as normas relativas à detenção
administrativa aplicáveis aos imigrantes irregulares, sobretudo no que tange à duração
máxima da prisão administrativa.
3) A proibição de retorno ou nova entrada
A proibição imposta a um estrangeiro de penetrar no território nacional por um
determinado período se encontra igualmente nas legislações dos Estados-membros199.
196 No caso da França, a partir de 2 de junho de 2009, seis associações estarão habilitadas a intervir nos centros de detenção: Cimade, Assfam, Forum réfugiés, France Terre d’asile, Ordre de Malte e Collectif Respect. Vide matéria publicada no Jornal Le Monde: « Six associations habilitées à intervenir dans les centres de rétention », Lemonde.fr, 10 de abril de 2009, , disponíveis no site : http://www.lemonde.fr. 197 Vide relatório da Cimade, nota 193 supra. 198 KAUFF-GAZIN (F.), op. cit., p. 2. 199 No direito francês, essa medida é denominada de “proibição do território” (interdiction du territoire), sendo adotada por jurisdições penais. A pena está prevista no artigo 130-30 do código penal francês, adotado em virtude da lei nº 2003-1119 de 26 de novembro de 2003, que dispõe o seguinte: « Lorsqu'elle est prévue par la loi, la peine d'interdiction du territoire français peut être prononcée, à titre définitif ou pour une durée de dix ans au plus, à l'encontre de tout étranger coupable d'un crime ou d'un délit», disponível no site : http://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?cidTexte=LEGITEXT000006070719&dateTexte=20090807. A “proibição do território é também uma medida administrativa de afastamento, prevista no Título IV do Livro V do Código de entrada e permanência de estrangeiros e do direito de asilo (“código de estrangeiros”), em seus artigos L. 541-1 a L. 541-4. Vide Code de l'entrée et du séjour des étrangers et du droit d'asile, em vigor no dia 7 de agosto de 2009, disponível no site : http://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?cidTexte=LEGITEXT000006070158&dateTexte=2009080. Assim, na França a “proibição do território” é pena no Código penal e medida de polícia administrativa no Código de estrangeiros. A maior parte dos Estados-membros prevê a adoção da medida por autoridades administrativas. Para mais detalhes sobre o procedimento de “proibição do território” na França, vide FOURMENT (F.), « L’interdiction du territoire français : peines perdues », Actualité juridique, Pénal, n.º1/2008, janeiro de 2008, ed. Dalloz, p. 12-15.
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O Estado-membro deverá emitir uma decisão de regresso, acompanhada de
proibição de entrada em duas situações: a primeira ocorre no caso de não ter sido
concedido prazo para a partida voluntária, sendo a segunda na hipótese de
descumprimento da obrigação de regresso200. Trata-se a priori de uma faculdade
conferida ao Estado, salvo nas hipóteses acima descritas. A redação desse dispositivo
causa perplexidade. Significa afirmar, no caso do indivíduo que descumpriu a obrigação
de regresso, que o Estado poderá exigir o retorno e, simultaneamente, proibir a nova
entrada em razão da ausência de retorno201.
Nos termos do inciso 2, do artigo 11, a duração da proibição de “nova” entrada
“é determinada tendo em devida consideração todas as circunstâncias relevantes do
caso concreto, não devendo em princípio exceder cinco anos”202. A apreciação das
circunstâncias do caso concreto confere novamente autonomia ao Estado-membro em
questão, que poderá discricionariamente avaliar tais circunstâncias a fim de determinar
o prazo de duração da proibição da entrada aplicável ao nacional de país terceiro em
situação irregular. A harmonização é prejudicada pela inserção da expressão “em
princípio”, termo aberto e impreciso que autoriza o livre arbítrio estatal. Em regra, o
Estado poderá determinar um prazo não específico de até cinco anos, tendo em conta as
circunstâncias do caso concreto, que também não foram individualizadas. Tal limitação
de prazo poderá ser dispensada se “o nacional de país terceiro constituir uma ameaça
grave para a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacional”203. Assim
como a maior parte das disposições da diretiva, a ameaça à ordem pública, à segurança
pública ou à segurança nacional autoriza qualquer tipo de derrogação, transformando os
direitos fundamentais, princípios gerais do direito comunitário, em letra morta.
Além da imprecisão dos termos do dispositivo, crítica já efetuada pela OEA204, é
importante destacar que a obrigação de acompanhar a decisão de regresso de proibição
de entrada somente é elidida se o indivíduo, vítima do tráfico de seres humanos, possuir
título de residência e cooperar com as autoridades competentes, com a ressalva de não
200 Artigo 11, inciso 1, a, b. 201 MARTUCCI (F.), op. cit., p. 58. 202 Artigo 11, inciso 2, diretiva de retorno. 203 Artigo 11, inciso 2, diretiva de retorno. 204 Segundo a OEA, “las normas relativas a la prohibición de entrada se prestan, por su amplitud, a una aplicación arbitraria e inflexible, lo que tiende a estigmatizar a las personas expulsadas equiparándolas a delincuentes y abriendo las puertas para negarles el ejercicio futuro de derechos esenciales, como el derecho de asilo o el de reagrupamiento familiar”, in CJI/RES. 150 (LXXIII-O/08), ponto 1.7.
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constituir uma ameaça à ordem pública, à segurança pública ou à segurança nacional205.
Como bem observado por MARTUCCI (F.), essa disposição é inútil já que as vítimas
do tráfico de seres humanos não se encontram no campo de aplicação da presente
diretiva206. Ademais, os Estados também estão autorizados a deixar de “emitir, revogar
ou suspender proibições de entrada em determinados casos concretos por razões
humanitárias”207. Resta saber como determinar a ocorrência do que a diretiva
denomina, de forma evasiva, razões humanitárias. Não restam dúvidas de que caberá ao
Estado-membro, no exercício de seu poder discricionário e na total ausência de critérios
comuns, avaliar o caso concreto de forma a não proibir a entrada do nacional de país
terceiro. Mesmo na ausência de razões humanitárias, o Estado-membro sempre poderá
revogar ou suspender as referidas proibições de entrada quando julgar necessário208. O
que poderia parecer um benefício a ser estendido ao nacional de país terceiro em
situação irregular se transforma numa total ausência de regras comuns, impedindo
flagrantemente qualquer tentativa de harmonização.
Como se não bastasse, o texto da diretiva permite que um Estado-membro
conceda direito de permanência a um nacional de país terceiro que foi objeto de
proibição de entrada emitida por outro Estado-membro, desde que haja mera consulta
prévia209. Ora, para que houvesse mínima harmonização, a proibição de entrada emitida
por um Estado deveria ser obrigatoriamente estendida aos demais Estados-membros da
zona de Schengen. Nesse sentido, a diretiva não comunitariza nem harmoniza a
proibição de entrada210.
205 O artigo 11, parágrafo 3, alínea 2, diretiva de retorno determina que “as vítimas do tráfico de seres humanos a quem tenha sido concedido título de residência, nos termos da Directiva 2004/81/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao título de residência concedido aos nacionais de países terceiros que sejam vítimas do tráfico de seres humanos ou objecto de uma acção de auxílio à imigração ilegal, e que cooperem com as autoridades competentes (1), não podem ser objecto de proibição de entrada, sem prejuízo da alínea b) do primeiro parágrafo do n.o 1 e desde que não constituam uma ameaça para a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacional”. 206 MARTUCCI (F.), op. cit., p. 59. 207 Artigo 11, parágrafo 3, alínea 3, diretiva de retorno. 208 Artigo 11, parágrafo 3, alínea 4, diretiva de retorno. Nos termos do inciso 5, do artigo 11, “o disposto nos n.os 1 a 4 é aplicável sem prejuízo do direito a proteção internacional nos Estados-Membros, na acepção da alínea a) do artigo 2.o da Directiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respectivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (3)”. 209 Artigo 11, parágrafo 4, diretiva de retorno. 210 MARTUCCI (F.), op. cit., p. 59.
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É certo que o artigo 64, do Tratado CE211 constituirá a base jurídica para que os
Estados-membros possam se eximir de respeitar os direitos fundamentais previstos, à
géométrie variable, na diretiva de retorno. É constante a inserção de derrogações
justificadas na ameaça à ordem pública, à segurança pública e nacional, tanto previstas
no texto da diretiva de retorno212, quanto autorizadas pelo direito primário. Ademais, o
respeito dos direitos fundamentais encontrará limites estabelecidos discricionariamente
pelos Estados-membros do espaço Schengen. Isso porque as autoridades nacionais
poderão adotar, caso a situação assim o exija, medidas provisórias para enfrentar
situações de emergência internas.
CONCLUSÃO
Da análise do texto da diretiva de retorno, é possível verificar que não há grande
inovação com relação aos direitos nacionais na área relativa ao combate da imigração
irregular. O mesmo se pode afirmar com relação ao direito comunitário, no qual a única
inovação consiste no reconhecimento mútuo das sanções213 aplicáveis aos indivíduos
submetidos a procedimento de regresso. Trata-se da criação de novas regras coercitivas
que deverão reger o regresso dos nacionais de países terceiros em situação irregular,
matéria que até então não se encontrava comunitarizada. As demais regras trazem
apenas princípios juridicamente abertos e flexíveis, bem como inúmeras derrogações e
reenvios sistemáticos à legislação nacional214, deixando larga margem de apreciação aos
Estados-membros. A autonomia estatal é reforçada com a existência de vazios,
imprecisões e ambigüidades que afetam a compreensão do texto da diretiva de retorno, 211 Nos termos do artigo 64: “O presente título não prejudica o exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados--Membros em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna. 2. No caso de um ou mais Estados-Membros serem confrontados com uma situação de emergência caracterizada por um súbito afluxo de nacionais de países terceiros, e sem prejuízo do disposto no n.o 1, o Conselho, deliberando por maioria qualificada, sob proposta da Comissão, pode adoptar medidas provisórias, de duração não superior a seis meses, a favor desse ou desses Estados-Membros”. 212 Vide artigos 6, par. 2; artigo 7, par. 4; artigo 11, par. 2; artigo 12, inciso 1, par. 2, da diretiva de retorno. 213 KAUFF-GAZIN (F.), op. cit., p. 5. 214 A diretiva de retorno parece seguir na linha da diretiva sobre agrupamento familiar. Segundo LABAYLE (H.), ao comentar acerca da diretiva sobre o agrupamento familiar, « sur une vingtaine d’articles à portée juridique, la directive n’ouvre pas moins de vingt possibilités de dérogations essentielles ( !) sans compter que ces dispositions sont rythmées par un renvoi systématique à la compétente discrétionnaire des Etats membres. Ambiguités et contradictions jalonnent donc le texte, véritable prix imposé par les négociateurs pour aboutir formellement », in « Le droit des étrangers au regroupement familial, regards croisés du droit interne et du droit européen », RFDA, 2007, p. 101.
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ampliando indevidamente sua margem de interpretação e aplicação215. Não restam
dúvidas de que a harmonização foi reduzida ao mínimo, como um resultado de
compromissos laboriosos entre as diplomacias nacionais.
A variabilidade da harmonização é acompanhada por uma proteção dos direitos
fundamentais também à géométrie variable. Se a União Européia crê no fechamento das
fronteiras externas como uma condição para uma melhor abertura interna216, não
surpreende o fato de que a matéria relativa à segurança tenha recebido maior atenção
dos legisladores do que o respeito dos direitos fundamentais dos imigrantes. Com efeito,
a diretiva decepciona com relação ao respeito dos direitos fundamentais217, previstos na
Convenção européia para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais. As cláusulas de proteção, inseridas no texto da diretiva de retorno,
tomaram a forma de disposições flexíveis, abertas e não vinculantes. O Estado-membro
do espaço Schengen possui total margem de apreciação para conciliar as duras regras
atinentes à imigração ilegal com os direitos fundamentais, atualmente considerados
princípios gerais de direito comunitário. Esse controle, conforme observado na parte II,
letra A do presente artigo, caberá tanto às jurisdições nacionais, quanto ao TJCE,
competente para apreciar pedidos de reenvio prejudicial e ações de descumprimento do
direito comunitário.
A comunitarização da decisão de regresso e das demais medidas a serem
adotadas para promover o afastamento faz com que a Comissão não mais possa rejeitar
uma reclamação sobre descumprimento do direito comunitário, argumentando que tais
medidas não se encontram no campo de aplicação do referido direito. Assim, a diretiva
permite o questionamento do respeito das práticas preconizadas em seu texto com
relação aos direitos fundamentais perante o tribunal comunitário, enquadrando a
margem de manobra dos Estados-membros, que até então dispunham de total autonomia
para decidir acerca das medidas coercitivas utilizadas para impor o afastamento. A
violação dos direitos fundamentais, além de constituir atentado ao próprio direito
comunitário, ensejará a responsabilização internacional do Estado em causa, por refletir
norma imperativa de jus cogens, ou seja, de cumprimento obrigatório para todos os
Estados.
215 CJI/RES. 150 (LXXIII-O/08), ponto 1.8. 216 CHETAIL (V.), op. cit., p. 8. 217 Esperava-se que o parlamento poderia orientar a política de imigração comunitária de maneira favorável aos direitos fundamentais, in KAUFF-GAZIN (F.), « Heurs et malheurs…”, op. cit., p. 2.
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As considerações acima conduzem ao questionamento atinente ao efeito útil da
diretiva de retorno, duplamente incapaz de harmonizar de maneira efetiva as legislações
nacionais e comunitárias na área da imigração irregular, bem como de promover uma
proteção satisfatória dos direitos fundamentais dos imigrantes “sans papiers”. Ora, a
referida incapacidade decorre da manutenção de uma autonomia estatal quase ilimitada,
condição imposta pelas autoridades nacionais para a adoção do texto da diretiva de
retorno. Se os Estados-membros consideram a diretiva um instrumento útil às políticas
nacionais relativas à imigração clandestina, verifica-se que os mesmos não estão prontos
para aceitar os sacrifícios que resultam necessariamente da defesa do interesse
comunitário218.
218 JULIEN-LAFERRIÈRE (F.), JOUANT (N.), op. cit., p. 217.
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