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Artigos São Paulo / OUTUBRO 2002 1 Texto para o 11º Simpósio IOB de Direito Tributário. Autor: Ricardo Mariz de Oliveira QUESTÕES RELEVANTES, ATUALIDADES E PLANEJAMENTO COM IMPOSTO SOBRE A RENDA. SUMÁRIO. I - Introdução. II - Planejamento tributário com imposto sobre a renda antes da Medida Provisória n. 66/02, incluindo o tempo posterior à Lei Complementar n. 104. III - Planejamento tributário com imposto sobre a renda depois da Medida Provisória n. 66/02. IV - Conclusões. *********************** *********************** I - INTRODUÇÃO Quando me foi pedido que escrevesse sobre o tema que tem o título acima, destinado ao 11º Simpósio IOB de Direito Tributário, e depois falar sobre o mesmo perante esse encontro, imediatamente veio à minha mente que as questões mais relevantes e mais atuais relativas ao mesmo emanam diretamente dos art. 13 a 19 da Medida Provisória n. 66, de 29.8.2002. É claro que existem outras questões atuais e relevantes sobre o imposto de renda, mas neste momento nenhuma delas se ombreia em

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Texto para o 11º Simpósio IOB de Direito Tributário.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira QUESTÕES RELEVANTES, ATUALIDADES E PLANEJAMENTO COM IMPOSTO SOBRE A RENDA.

SUMÁRIO. I - Introdução. II - Planejamento tributário com imposto sobre a renda antes da Medida Provisória n. 66/02, incluindo o tempo posterior à Lei Complementar n. 104. III - Planejamento tributário com imposto sobre a renda depois da Medida Provisória n. 66/02. IV - Conclusões. *********************** ***********************

I - INTRODUÇÃO Quando me foi pedido que escrevesse sobre o tema que tem o título

acima, destinado ao 11º Simpósio IOB de Direito Tributário, e depois falar sobre o mesmo perante esse encontro, imediatamente veio à minha mente que as questões mais relevantes e mais atuais relativas ao mesmo emanam diretamente dos art. 13 a 19 da Medida Provisória n. 66, de 29.8.2002.

É claro que existem outras questões atuais e relevantes sobre o

imposto de renda, mas neste momento nenhuma delas se ombreia em

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importância com a questão do planejamento tributário relativo a esse imposto à luz dos referidos dispositivos.

Um outro aspecto importante para justificar esta colocação reside

em que a medida provisória citada tem alcance restrito apenas aos tributos federais, e, dentre estes, o imposto de renda e a contribuição social sobre o lucro são aqueles que mais podem ser alcançados pelos art. 13 a 19, tal como postos.

Destarte, proponho-me a fazer uma análise preliminar do assunto,

dando a ela um caráter de ensaio não conclusivo em virtude de dois fatores: (1) há ainda muito que ponderar sobre os art. 13 a 19 da Medida Provisória n. 66 para que se possa fazer afirmações mais seguras e definitivas, e (2), na data em que estou escrevendo, essa medida provisória ainda está em tramitação no Congresso Nacional, o que significa haver a possibilidade de que alterações venham a ser nela introduzidas.

Portanto, minha intenção é contribuir para o debate dos art. 13 a 19

tal como constam do texto original da Medida Provisória n. 66/02. Pois bem, para a boa apresentação e compreensão do tema faz-se

necessária uma abordagem inicial que explique o planejamento tributário em geral, e em particular quando relativo ao imposto de renda, antes da referida medida provisória, podendo esse período temporal ser estendido até após a Lei Complementar n. 104, que introduziu o parágrafo único no art. 116 do Código Tributário Nacional - CTN, após o que passarei à análise da medida provisória.

II - PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO COM IMPOSTO SOBRE A RENDA ANTES DA MEDIDA PROVISÓRIA N. 66/02, INCLUINDO O TEMPO POSTERIOR À LEI COMPLEMENTAR N. 104 Não é este o espaço para uma ampla abordagem do assunto, não

apenas pela limitação quanto também pela destinação do presente ensaio, motivo pelo qual apresentarei resumidamente o que tiver que expor. 1 1 Para leitura mais detalhada, reporto-me aos seguintes trabalhos de minha autoria, dando especial ênfase ao que está grifado: “Fundamentos do Imposto de Renda”, Editora Revista dos Tribunais, 1977, capítulo XIII; “Cadernos de Pesquisa Tributária - Volume 13”, coedição do Centro de Estudos de Extensão Universitária e da Editora

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O planejamento tributário que busca a elisão fiscal lícita é direito da

pessoa (que ainda não é contribuinte) de índole e fundamento constitucional, pois está fundado no direito de propriedade, juntamente com o princípio da legalidade e com o seu desdobramento no princípio da tipicidade.

É importante não perder de vista que o direito de propriedade

outorga ao proprietário atributos de uso, gozo e disposição dos respectivos bens, vale dizer, o dono do patrimônio particular pode optar por dar aos seus bens a destinação que melhor lhe aprouver. Dentro deste contexto, o proprietário também tem direito de proteção (medidas de defesa, seja contra perda, seja contra diminuição) e direito de valorização da coisa objeto do seu direito (medidas de multiplicação).

Exatamente por isso, o direito de propriedade exclui o confisco pelo

Poder Público, assim como o esbulho ou qualquer outra turbação por outros indivíduos, pois ele se manifesta “erga omnes”, isto é perante qualquer pessoa de direito público ou privado. Sendo a garantia contra a turbação e a apropriação por terceiros imanente ao direito de propriedade, o confisco se apresenta como seu contraponto, antítese e negação, daí sendo vedado mesmo quando ausente qualquer disposição expressa que manifeste a sua proibição.

Resenha Tributária, 1988 (p. 147 e seg.); “Planejamento Fiscal - Teoria e Prática – 2º Volume”, Editora Dialética, 1998 (p. 107 e seg.); “Direitos Fundamentais do Contribuinte - Pesquisas Tributárias - Nova Série - 6”, coedição do Centro de Extensão Universitária e da Editora Revista dos Tribunais, 2000 (p. 226 e seg.); “Curso de Direito Tributário”, Editora Saraiva, 8ª ed., 2001 (p. 319 e seg.); “O Planejamento Tributário e a Lei Complementar n. 104”, Editora Dialética, 2001 (p. 245 e seg.); “Reinterpretando a Norma Antievasão do Parágrafo Único do Art. 116 do Código Tributário Nacional”, in “Revista Dialética de Direito Tributário” n. 76, p. 81. De outros autores, recomendo: “Estudos sobre Imposto de Renda (Em Memória de Henry Tilbery)”, Editora Resenha Tributária, 1994, capítulo de Marco Aurélio Greco sobre teoria do abuso de direito (p. 91 e seg.); “Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva”, Editora Dialética, 2001, Alberto Xavier. Também recomendo outros trabalhos publicados nos referidos “Cadernos de Pesquisa Tributária – Volume 13”, coedição do Centro de Estudos de Extensão Universitária e da Editora Resenha Tributária, e “Planejamento Fiscal – Teoria e Prática – 2º Volume”, da Editora Dialética.

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Na órbita do direito tributário, o planejamento da elisão fiscal deriva desse direito, e, por conseguinte, carrega consigo todos os referidos atributos da propriedade, dos quais promana, ou melhor, pode ser praticado dentro da amplidão desses atributos. Isto, significa que o planejamento tributário é exercido dentro da ampla possibilidade de uso, gozo e disposição dos elementos patrimoniais e sob o amparo da liberdade das ações ou omissões da pessoa do proprietário, tudo como melhor lhe aprouver, desde que observadas as prescrições das leis a eles aplicáveis dentro da ordem constitucional.

Pela mesma razão, o planejamento da elisão fiscal traduz e

manifesta o exercício do direito de proteção contra a subtração tributária até onde for possível ao proprietário, seja total (através da elisão de um fato gerador) seja parcial (através da redução do ônus decorrente de um fato gerador não evitado), igualmente observadas as prescrições legais cabíveis.

Ademais, e ainda pela mesma razão, o planejamento da elisão fiscal

deriva do direito de valorização do patrimônio através do seu emprego com a maior economia fiscal possível.

Por fim, como manifestação de ato ínsito ao direito de propriedade,

o planejamento da elisão fiscal contrapõe-se ao confisco de bens patrimoniais por via de tributação confiscatória.

Neste ponto, é conveniente observar que confisco é a subtração

patrimonial praticada inconstitucionalmente pelo Poder Público, ao passo que a tributação é uma das espécies de subtração patrimonial constitucionalmente admitidas, o que coloca inevitavelmente a necessidade de distinguir uma coisa de outra e levanta a seguinte indagação: o que constitucionaliza a tributação e a distingue do confisco?

No meu modo de ver, confisco tributário - e veja-se que o legislador

constituinte de 1988 teve o cuidado de vedar expressamente o tributo com efeito confiscatório (art. 150, inciso IV) - fica caracterizado se a lei estabelecer a obrigação de a pessoa adentrar na situação definida como fato gerador, ou de incidir em maior base de cálculo, ou se a lei inibir a adoção de medidas de uso, defesa e valorização do patrimônio através da elisão fiscal.

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Sabe-se que o confisco tributário de maneira geral é encarado como sendo o efeito decorrente de exagerado valor da tributação (sem deixar recursos para sobrevivência, ou com outras adjetivações), critério este, entretanto, que me parece totalmente inadequado e não objetivo, salvo quando o “quantum debeatur” de uma determinada obrigação tributária for mais elevado do que a própria materialidade tributável, porque, neste caso, o tributo será subtraído de parcelas do patrimônio não envolvidas com o elemento quantitativo da obrigação tributária, cujo elemento representa o limite da respectiva capacidade contributiva.

Observe-se que a obrigação tributária é “ex lege”, não no sentido de

ser obrigatória como a lei quiser de maneira ilimitada, sem possibilidade de a pessoa não contribuinte esquivar-se da mesma, mas no sentido de derivar da lei e não do contrato.

Entretanto, “a obrigação tributária surge com a ocorrência do fato

gerador” (CTN, art. 113, parágrafo 1º), sendo que “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” (art. 114).

Por isso, a incidência infalível da norma ocorre apenas com, e após, a

existência do fato gerador, cuja existência, contudo, é falível, e daí mesmo tratar-se de “hipótese de incidência” e serem vedadas as ficções e presunções absolutas quanto à sua ocorrência.

Neste sentido, elidir a obrigação tributária é evitar a situação

necessária e suficiente ao nascimento da mesma, sendo que, antes da ocorrência do fato gerador, isto é, antes da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, a pessoa é livre para adentrar ou não nessa situação, fazendo ou não fazendo o que quiser com as suas coisas.

Destarte, a pessoa não nasce contribuinte, um escravo do fisco, uma

presa indefesa que possa ser tangida para dentro dos fatos geradores, um autômato programado para praticar fatos geradores, mas, sim, nasce e é um ser ou cidadão livre.

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Se não fosse assim, haveria rigorosa identidade entre o confisco, disfarçado na ocorrência obrigatória do fato gerador, e a obrigação tributária, cuja hipótese de incidência seria desnecessária e deixaria de ser hipótese para ser fato criado pela lei.

Neste diapasão, o que distingue tributo de confisco é exatamente a

motivação constitucional da subtração de parte do patrimônio particular em virtude da ocorrência do fato gerador, sendo esta decorrente da livre escolha da pessoa quanto aos seus atos ou omissões de atos.

Um exemplo simples revela a procedência destas afirmações: - uma pessoa tem patrimônio de R$ 10.000.000,00 em dinheiro ou

em caderneta de poupança, estando em situação estática e livre de tributação: se pelo Poder Público lhe forem subtraídos R$ 100.000,00, haverá confisco, ainda que tenha atingido apenas um por cento do seu patrimônio, portanto, valor porcentual reduzido e que ainda lhe deixa bens suficientes para uma existência digna;

- a mesma pessoa aplica a mesma importância em cem imóveis de

R$ 100.000,00 cada um; se lhe for subtraído apenas um deles haverá confisco, apesar de lhe restarem noventa e nove e o suficiente para uma existência digna;

- não obstante, o mesmo valor de R$ 100.000,00 cobrado a título de

imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU não representa confisco, porque decorreu da livre decisão da pessoa movimentar o seu patrimônio no sentido do fato gerador desse imposto;

- da mesma maneira, ela era livre para ter dado outra destinação ao

seu patrimônio, que evitasse o IPTU mas a submetesse à outras incidências tributárias, ou que a deixasse na situação estática inicialmente referida, de não-incidência e/ou isenção total.

Em suma, por decorrência do seu direito de propriedade a pessoa:

pode procurar os espaços vazios de tributação ou com menor tributação; pode optar por um caminho livre de algum tributo, mas sujeito a outro; pode preferir aplicar o seu patrimônio em imóveis, pagando o imposto sobre a propriedade

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territorial ou predial urbana e o imposto sobre a transmissão onerosa “inter vivos” de bens imóveis, com menores incidências do imposto do renda e da contribuição provisória sobre movimentação financeira, e não incidências da contribuição social sobre o lucro e do imposto sobre operações financeiras; pode preferir atuar em município com menor alíquota do imposto sobre serviços; pode preferir doar em vida com isenção do imposto sobre doações ou com sua menor incidência em relação ao imposto sobre transmissão “causa mortis” de bens; pode preferir deixar a sua poupança em caderneta de poupança, com isenções totais; pode preferir deixar o seu patrimônio em imóveis improdutivos, sem pagar o imposto de rendas e outros tributos, salvo o imposto sobre a propriedade territorial e predial urbana; etc.

Por isso mesmo, a pessoa não pode ser forçada a praticar qualquer

fato gerador de qualquer obrigação tributária, ou ser limitada nas suas escolhas e nas suas atitudes. Enquanto ela aja dentro da lei, tem ampla liberdade para tudo isso.

É claro que a propriedade privada não é absoluta, como não é

qualquer outro direito, ainda que emanado da própria Constituição Federal, assim como, no entrechoque de princípios constitucionais, nenhum deles é absoluto, todos se aplicando na medida do possível e do razoável, o mesmo acontecendo com as normas constitucionais.

Ora, o direito de propriedade é ressalvado expressamente apenas

pelo uso social da propriedade, o que, entretanto, não significa haver a obrigação de incorrer na tributação, assim como não significa que possa haver a obrigação jurídica do proprietário de uma casa ceder um cômodo vago para acolhimento de pessoas “sem-teto”, ou a fazer assistência social com o dinheiro do seu patrimônio.

Da mesma forma, a solidariedade social, a isonomia e a capacidade

contributiva não são apanágios que obriguem a pessoa a ser contribuinte, ou maior contribuinte, até porque somente é possível haver qualquer pretensão estatal, e somente é possível aferir capacidade contributiva - e também falar em tratamento isonômico - após a ocorrência do fato gerador de alguma obrigação tributária.

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Por oportuno, registre-se que capacidade contributiva não é um atributo intrínseco, originário ou hereditário da pessoa ou do simples fato de ter patrimônio ou riqueza, mas atributo que lhe advém do fato gerador de alguma obrigação tributária e da densidade econômica do mesmo, porque a grandeza econômica da matéria que se constitui no fato gerador é a própria dimensão quantitativa ou valorativa da respectiva capacidade contributiva.

Desse modo, antes da ocorrência do fato gerador não há essa

capacidade, mas simples expectativa da mesma, ou potencial capacidade contributiva. Nesse tempo anterior ao fato gerador, o fisco nada pode exigir, é mero expectador, cumprindo-lhe aguardar as ações da pessoa para, depois delas e em consequência delas, reclamar o que passar a lhe ser devido.

Realmente, há um momento a partir do qual se manifesta a

capacidade contributiva da pessoa e se impõe a isonomia: é o momento da ocorrência do fato gerador, não antes, e tal manifestação opera-se exclusivamente em relação à respectiva e específica obrigação tributária.

Daí não haver uma capacidade contributiva atrelada ao poder

econômico intrínseco no patrimônio ou atrelada à riqueza da pessoa, salvo quanto ao imposto sobre grandes fortunas ou sobre o patrimônio, assim mesmo nos limites da lei. Daí também não haver uma capacidade contributiva herdada hereditariamente, a não ser quanto ao imposto sobre a transmissão “causa mortis” de bens, e nos respectivos limites legais.

Aliás, se pudesse haver cobrança de qualquer outro tributo que não

os incidentes sobre o patrimônio ou a grande fortuna, pela simples existência da fortuna ou riqueza da pessoa, estaria estabelecida uma enorme confusão derivada de pretensões fiscais conflitantes, e instalada a total insegurança jurídica, pois qual ente público cobraria tributo sobre a pessoa e sua fortuna ou riqueza (a União, o Estado ou Distrito Federal, o Município, ou todos eles ?), que tributo cobraria (todos os da sua competência ou apenas algum e qual ?), sobre que valor e por qual alíquota ?

A perplexidade gerada por tais indagações demonstra claramente

que não se pode falar em capacidade contributiva sem a ocorrência de um fato

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gerador de uma determinada obrigação tributária, e sem a estrita observância do que a lei dispuser para o respectivo caso.

É por isso que, antes da ocorrência do fato gerador, somente se pode

prever em tese uma possível obrigação tributária baseada numa possível capacidade contributiva a ser manifestada concretamente pela ocorrência atual do fato gerador que até então fora objeto de definição hipotética na lei. O mesmo vale para o princípio da isonomia.

Assim, mesmo após a ocorrência de um fato gerador, somente se

pode proclamar a existência de capacidade contributiva nos estritos termos em que a lei descrever e quantificar a respectiva obrigação tributária, porque a capacidade contributiva é índice presuntivo contido na hipótese de incidência prevista na lei, e é limitada por esta.

Por isso, se duas pessoas praticarem iguais fatos geradores, com

iguais base de cálculo, não é possível exigir mais tributo de uma delas ao argumento de que é mais rica do que a outra, o que lhe daria maior capacidade contributiva e exigiria tratamento mais oneroso para ela, em nome da isonomia.

Verifica-se que, mesmo nesta circunstância, a capacidade

contributiva é aquela que decorre da descrição legal da hipótese de incidência e da sua base de cálculo, e da subsunção dos fatos reais a ela, e não de outros elementos externos ao fato gerador. Muito menos de elementos anteriores ao fato gerador. Também assim com a isonomia, pois somente se pode comparar pessoas em razão dos fatos geradores já ocorridos, e de cujas obrigações tributárias elas sejam contribuintes.

Quando adiante analisarmos o negócio jurídico indireto sob a

Medida Provisória n. 66/02, veremos outros interessantes aspectos relacionados à respectiva capacidade contributiva, que confirmam tudo quanto está dito até aqui.

Ora, como a elisão se processa necessariamente antes da ocorrência

do fato gerador, todos os princípios acima referidos ainda não atuam quando da prática elisiva, e não podem ser opostos ao direito de efetivá-la.

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Aliás, os limites ao poder de tributar, assim como os direitos e garantias individuais, são defesas do contribuinte e da pessoa contra o Poder Público, e não armas deste contra aqueles, segundo já decidiu o Supremo Tribunal Federal 2.

Pelas mesmas razões, a lei não pode obrigar a pessoa a praticar o

fato gerador sob os auspícios do art. 5º, inciso II, da Constituição Federal - que estatui que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa senão em virtude de lei - porque se trata de direito e garantia individual, proteção contra Poder Público, e aplica-se em sintonia com os demais princípios e preceitos constitucionais.

Estas ponderações não se escudam em mero formalismo ou

exagerado positivismo, mas são manifestações que refletem estrita submissão ao ordenamento jurídico (direito positivo em vigor), tal como ele é e tal como deve ser compreendido e aplicado, especialmente com a observância dos princípios constitucionais, das garantias individuais e dos limites ao poder de tributar, todos devidamente sopesados e aplicados na sua interação necessária à segurança jurídica.

Como dito, nenhum princípio é absoluto, mas todos se aplicam

harmonicamente sob o influxo e a prevalência dos mais específicos e mais relevantes em cada caso: no caso da obrigação tributária, é inafastável a garantia do direito individual da propriedade privada, juntamente com o princípio da legalidade/tipicidade, que é limite ao poder de tributar e fornece os índices constitucionais de capacidade contributiva em cada situação, e a partir da qual se aufere a isonomia de tratamento.

Aliás, no sentido contrário, também não se pode defender a

supremacia absoluta de princípios tais como o da capacidade contributiva e da isonomia, colocando-os sobre o princípio da estrita legalidade/tipicidade e o direito individual de propriedade, para justificar a exigência de que a pessoa se torne contribuinte ou maior contribuinte.

2 Por exemplo, Plenário, ação direta de inconstitucionalidade n. 712-2-DF (ML), em 9.7.1992.

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Em virtude desse arcabouço jurídico derivado da Constituição, a eliminação ou redução do direito à elisão fiscal depende de norma constitucional que se acrescente ao poder de tributar e reduza as limitações a esse poder, tão minuciosamente elencadas na Carta de 1988. 3

Neste aspecto, é inegável que a nossa atual Constituição prestigia

valores éticos de alta significação, como a justiça, o desenvolvimento, a igualdade, a sociedade fraterna e sem preconceitos, livre, justa e solidária, mas ela igualmente assegura o exercício dos direitos individuais, a liberdade, a segurança, a livre iniciativa, como também é inegável que ela consagrou, com maior vigor do que as suas antecessoras, a proteção do contribuinte contra o fisco, e, com muito mais razão, da pessoa não contribuinte.

Em suma, não se pode impedir a pessoa de não querer pagar tributo

e de não pagá-lo licitamente, ou de licitamente se organizar para pagar o menos possível.

Tudo quanto está dito acima evidentemente não exclui do direito e o

dever do Poder Público defender-se contra a evasão fiscal com todos os elementos que a ordem jurídica lhe outorga, e com a criação de novos e mais eficazes instrumentos de defesa da arrecadação tributária que lhe for devida, tudo em conformidade com a ordem constitucional.

Daí haver uma diferença fundamental entre norma antielisão e

norma antievasão, que se fundamenta exatamente na diferença fundamental entre as duas entidades distintas e inigualáveis, uma lícita e outra ilícita.

Cumpre mesmo notar que, se se admite a existência de direito à

elisão fiscal lícita, até se apresenta uma contradição e um contrasenso falar em norma antielisão ou antielisiva 4, ou seja, uma norma contra o lícito. 3 Ante o disposto no parágrafo 4º do art. 60 da Constituição Federal, estando aqui envolvidas as chamadas “cláusulas pétreas”, mesmo uma reforma constitucional pelo legislador constituinte derivado teria que ser devidamente considerada tendo em vista a extensão que tivesse. 4 “Norma antielisiva” é expressão que a mim parece mais inadequada ainda, pois elisivo é o ato, e não a norma que se refira a ele. Seria como falar em “norma tributada”, ao invés de “norma tributária”.

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A elisão fiscal lícita, buscada pelo planejamento tributário,

diferencia-se da evasão fiscal ilícita por três - e apenas três - elementos: (1) decorrer de atos ou omissões da pessoa (que não é contribuinte) anteriores à ocorrência do fato gerador da obrigação que ela quer elidir, (2) decorrer de atos ou omissões conformes à lei, e (3) decorrer de atos ou omissões reais e não simulados 5. A doutrina e a jurisprudência são tão pacíficas quanto a este conceito que dispensam citações neste resumo.

A pessoa que assim agir para elidir uma obrigação tributária ainda

inexistente estará no legítimo exercício dos atributos do direito de propriedade, e não estará praticando ato ilícito, até porque o regular exercício de direito não é ato ilícito (Código Civil, art. 160, inciso I; novo Código Civil, art. 188, inciso I).

Nem se pense que estas colocações possam ser alteradas pelo art.

187 do novo Código Civil, segundo o qual comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Realmente, se o ato for praticado nestas circunstâncias será ilícito e

não poderá produzir elisão fiscal, mas não é o objetivo de economizar tributo que o caracteriza e o torna ilícito. O que faz o ato incidir nesse tipo de ilicitude é o manifesto excesso dos limites impostos pelo fim econômico ou social do ato, pela boa-fé ou pelos bons costumes, nada disso havendo nos regulares atos de elisão fiscal.

Também não há fraude à lei ou abuso de direito na prática regular

de atos elisivos 6, inclusive porque a ordem constitucional não obriga a pessoa a

5 O terceiro elemento a rigor já está compreendido no segundo, mas é destacado porque, na observação prática, representa o maior vício dos planejamentos defeituosos, tanto que acabou por ser objeto da norma específica baixada pela Lei Complementar n. 104. No segundo elemento estão incluídos o abuso de direito, o dolo e a fraude à lei. 6 O que pode ocorrer é a existência de fraude à lei ou abuso de direito no ato praticado, caso em que ele não tem validade, mas não há fraude à lei ou abuso de direito pela simples intenção de elidir obrigação tributária inexistente, fazendo-o pelos meios lícitos. O art. 188 do novo Código Civil, afinal, exprime exatamente isto.

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incorrer em qualquer fato gerador e não prevê qualquer abuso neste sentido, como faz com relação ao abuso do poder econômico e outros.

Por isso, a rigor e na prática, a aplicação da teoria do abuso de

direito, como vem sendo profligada por parte da doutrina, acaba por negar a elisão fiscal em todo e qualquer caso, mediante a proclamação teórica de princípios constitucionais e em nome de uma ideologia de justiça social, com o afastamento do direito de propriedade e do princípio da estrita legalidade/tipicidade, e instaurando a insegurança e a indeterminação jurídicas.

Muito menos há abuso de forma jurídica, que é visão deturpada do

direito brasileiro, em que forma é meio de expressão ou manifestação da vontade, tal como a forma verbal ou a forma escrita, inscrita em instrumento público (quando da essência do ato) ou instrumento particular (Código Civil, art. 129 e seguintes). Ademais, o novo Código Civil, que nos art. 107 e seguintes demonstra o que se entende por forma, tal como ocorria com o anterior código, exprime categoricamente no art. 167 a distinção entre a forma e a substância do ato jurídico.

Mais importante do que o aspecto semântico da expressão, para

determinar a inadequação dessa teoria é suficiente verificar que a discriminação constitucional de competências tributárias situa algumas delas em estruturas ou categorias jurídicas e outras em fatos meramente econômicos, em consequência do que o CTN reflete a inafastável importância das categorias ou estruturas jurídicas (art. 109, 110, 116, 117 e outros).

Não é à toa que se diz que o direito tributário é “direito de

superposição”, pois a norma tributária muitas vezes incide sobre fatos, atos ou seus efeitos como já juridicizados por outras normas jurídicas.

Por isso tudo, a doutrina e a jurisprudência vêm repetindo à

exaustão que no Brasil não existe o abuso de forma tal como entendido no direito alienígena, e que descabe a interpretação dita pelos efeitos econômicos dos fatos. 7

7 Neste sentido, por exemplo, os acórdãos n. CSRF/01-0892, de 28.6.1989, e CSRF/01-01874, de 15.5.1995, da Câmara Superior de Recursos Fiscais, e os acórdãos n. 103-

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Pela mesma razão, não há necessidade de outra causa econômica

nos atos praticados com vistas à elisão fiscal, ou de “desculpa ou história oficial” para o planejamento tributário, que pode ser promovido com o específico intuito de economizar tributos, podendo-se adotar atitude ou mudar de atitude somente com esse objetivo.

Quanto a isto, é preciso reconhecer sem qualquer hipocrisia que a

elisão sequer moralmente pode ser condenada 8, e que ela não é produto do acaso, mas atitude sempre intencional e planejada, desenvolvida dentro da Constituição e da lei, levando em conta a relação custo/benefício, ou seja a relação entre os ônus incorridos pela estruturação das atividades econômicas e o benefício da economia tributária.

Disso tudo deu exemplo riquíssimo o Parecer Normativo PN-CST

145/75, emitido pelo órgão normativo da Secretaria da Receita Federal, o qual

11865, de 5.12.1991, 103-14432, de 14.12.1993, e 103-17579, de 10.7.1996, da 3a Câmara do 1o Conselho de Contribuintes. Em doutrina, entre outros autores, Brandão Machado, prefaciando “Interpretação da Lei Tributária”, de Wilhelm Hartz, Editora Resenha Tributária, 1993; Gilberto de Ulhôa Canto, in “Caderno de Pesquisas Tributárias - Vol. 15”, coedição da Editora Resenha Tributária e do Centro de Extensão Universitária, 1988, p. 16; Sacha Calmon Navarro Coêlho, in “Revista de Direito Tributário” n. 44, p. 172; Alberto Pinheiro Xavier, in “Revista de Direito Público” n. 23, p. 236. 8 Segundo Hugo de Brito Machado, in “Elisão e Evasão Fiscal - Caderno de Pesquisas Tributárias - Vol. 13”, 1988, coedição da Editora Resenha Tributária e do Centro de Estudos de Extensão Universitária, p. 449, não se pode sequer considerar moralmente reprovável a conduta elisiva. Esse autor fez a seguinte citação de Alfredo Augusto Becker: “É aspiração naturalíssima e intimamente ligada à vida econômica, a de se procurar determinado resultado econômico com a maior economia, isto é, com a menor despesa (e os tributos que incidirão sobre os atos e fatos necessários à obtenção daquele resultado econômico, são parcelas que integrarão a despesa). Ora, todo o indivíduo, desde que não viole regra jurídica, tem a indiscutível liberdade de ordenar seus negócios de modo menos oneroso, inclusive tributariamente. Aliás, seria absurdo que o contribuinte, encontrando vários caminhos legais (portanto, lícitos) para chegar ao mesmo resultado, fosse escolher justamente aquele meio que determinasse o pagamento de tributo mais elevado. (ALFREDO AUGUSTO BECKER, Teoria Geral do Direito Tributário, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 122).”

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recomendou ao contribuinte do imposto de renda uma reestruturação societária com vistas a reduzir o montante que seria devido sem tal providência.

Algumas observações complementares são necessárias. A simulação, que vicia o ato jurídico e invalida a economia tributária

pretendida, está regida pelo art. 102 do Código Civil (novo Código Civil, parágrafo 1º do art. 167), e se prova pela densidade de indícios e circunstâncias, que a jurisprudência administrativa vem aplicando com bastante sabedoria, tais como: a proximidade temporal de atos; a disparidade infundada de valores entre eles; o desfazimento dos efeitos do ato simulado; a prática de certos atos entre partes ligadas, por exemplo, ao final do período-base de apuração do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro, com a transferência incabível e inexplicável de lucro de uma pessoa jurídica lucrativa para outra deficitária; a existência ou inexistência de outra causa econômica além da economia fiscal 9; a exagerada arrumação dos fatos.

Também não há que se confundir simulação com negócio jurídico

indireto. Em síntese, pode-se dizer que há negócio indireto quando, para atingir determinado objetivo, a pessoa não se utiliza do ato jurídico (ou da estruturação jurídica) que diretamente se aplicaria à situação e permitiria a realização daquele objetivo desejado, mas, sim, se vale de um outro ato jurídico (ou de uma outra estrutura jurídica) que não é típico e específico àquele objetivo, mas que acarreta resultado igual ou semelhante sob o ponto de vista econômico ou negocial.

O negócio jurídico indireto é válido na medida em que não viole

disposição de lei, inclusive e se não for adotado para violar proibição legal, sendo absolutamente necessário que seja praticado para atingir algum fim de direito privado que não seria vedado pela lei se tivesse sido praticado o negócio direto. 10 9 Atenção para que aqui a existência ou não de outros motivos econômicos ou negociais é considerada como um dos indícios de haver ou não evasão, mas não como elemento indispensável à elisão, ou seja, não é um quarto requisito necessário à elisão, em adição aos três já citados. 10 Neste sentido, o voto do Ministro Moreira Alves no recurso extraordinário n. 82447-SP, decidido em 8.6.1976 pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, fornece

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É essencial compreender que o negócio indireto diferencia-se da

simulação porque nesta há desconformidade entre o desejado e o praticado, o que obriga as partes a realizar atos paralelos ocultos de desfazimento ou neutralização dos efeitos do praticado ostensivamente, ao passo que no negócio indireto as partes desejam e mantêm o ato praticado e se submetem por inteiro ao seu regime jurídico e a todas as suas consequências.

Também não se pode confundir simulação, abuso de direito ou

negócio indireto com a inexistência de outras causas econômicas (ausência de “business purpose”), pois o objetivo das partes não qualifica o ato jurídico, cuja qualificação é dada pela sua disciplina jurídica e pela sua conformidade com o que foi efetivamente praticado. A simulação pode representar ausência de negócio (ausência de “business”), ou ocultação de negócio real (ocultação de “business”), assim como o abuso de direito pode ocorrer na prática de um ato jurídico não simulado.

preciosos elementos de compreensão da distinção entre simulação, fraude à lei e negócio indireto (“Revista dos Tribunais” n. 518, p. 244). Doutrina e jurisprudência vêm se pondo de acordo sobre todos estes aspectos do negócio jurídico indireto, como se vê, além do próprio José Carlos Moreira Alves (“A Retrovenda”, Editor Borsoi, 1967, p. 12 e seg.; “Da Alienação Fiduciária em Garantia”, Editora Saraiva, 1973, p. 133 e seg; “Da Alienação Fiduciária em Garantia”, Editora Forense, 2ª ed., p. 1 e seg.) em: Edgard L. de Proença Rosa, “O Negócio Jurídico Indireto e suas Repercussões no Direito Tributário”, in “Revista de Direito Tributário” n. 15/16, p. 135 e seg.; José Abreu Filho, “O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral”, Editora Saraiva, 3ª ed., p.160 e seg.; Francesco Ferrara, “A Simulação dos Negócios Jurídicos”, tradução de A. Bossa, Editores Livraria Acadêmica – Saraiva e Cia., 1939, p.76 e seg.; Homero Prates, “Atos Simulados e Atos em Fraude da Lei”, Livraria Freitas Bastos, 1958, p. 72 e seg.; Otto de Sousa Lima, “Negócio Fiduciário”, Editora Revista dos Tribunais, p. 157 e seg.; Custódio da Piedade Ubaldino Miranda, “Teoria Geral do Negócio Jurídico”, Editora Atlas, 1991, p. 162 e seg.; Guilherme Guimarães Feliciano, “Tratado de Alienação Fiduciária em Garantia”, Editora LTr, p. 183 e seg.; Álvaro Villaça Azevedo, “Contratos Inominados ou Atípicos”, Edições CEJUP, p. 129 e seg.; Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, recurso extraordinário n. 71616-SP, em 11.12.1973; Superior Tribunal de Justiça, 2ª Turma, recurso especial n. 56201-BA, em 13.6.1996; Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, recurso especial n. 28598-BA, em 5.11.1996. Registre-se que tal doutrina tem se fundado nas lições de Domenico Rubino, Tullio Ascarelli e outros autores estrangeiros.

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Pois nada disso ocorre no negócio indireto não viciado por simulação e que não almeja um resultado vedado pelo ordenamento jurídico.

Em matéria de tributação, em que, para nascer, a obrigação

tributária depende do ato praticado, se for adotado negócio indireto válido perante o ordenamento jurídico a obrigação tributária que dele decorrer será a que for tipificada para o mesmo, e não aquela prevista para o ato não praticado.

É que os tributos somente incidem sobre o patrimônio (no caso dos

impostos sobre o patrimônio) ou quando haja alguma mudança no estado patrimonial (nos casos de impostos sobre circulação, consumo, alienação imobiliária, etc.).

Sendo assim, quando há um negócio jurídico indireto, é ele que

produz a mudança patrimonial, e não o ato que ele substitui, e isto é da essência do negócio indireto, diferentemente da simulação, em que não há mudança no estado patrimonial (simulação absoluta), ou a efetiva mudança é diferente daquela que o ato dissimulatório aparenta produzir (simulação relativa).

Por isso, na dissimulação se desconsidera o ato externo e se tributa

o ato verdadeiro que ficou encoberto, ou os seus efeitos, ao passo que no negócio indireto tributa-se ele próprio ou os seus efeitos, até porque, em virtude de as partes do negócio indireto se submeterem à sua disciplina e aos seus efeitos, são estes que podem ser apanhados pela norma de incidência tributária, diferentemente dos atos simulados.

Para se certificar sem preconceitos a verdade destas afirmações,

veja-se que elas se aplicam quer o negócio indireto tenha aproveitado fiscalmente ao particular, quer ao fisco. Realmente, no caso do recurso extraordinário n. 82447-SP, acima citado, um empréstimo foi garantido através de uma venda de imóvel com a obrigação do adquirente, após o resultado pretendido, revendê-lo ao alienante. Neste caso, sendo válido o negócio indireto praticado, e tendo produzido o efeito de mudança patrimonial quanto à propriedade do imóvel, as partes ficaram sujeitas inevitavelmente ao imposto sobre a transmissão imobiliária (inclusive incidente duas vezes), não podendo deixar de pagá-lo sob a alegação de que o negócio direto seria de mera garantia e, como tal, não incidiria no referido imposto.

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Da mesma maneira ocorre quando o negócio indireto não se insere

na hipótese de incidência de um tributo ou se insere em norma de menor tributação, caso em que o fisco não pode querer tributar o negócio que seria direto mas que não foi realizado, ficando adstrito a aplicar a norma jurídica prevista para o negócio indireto praticado efetiva e validamente.

Sendo este o quadro prevalecente na doutrina e na jurisprudência

até o advento da Lei Complementar n. 104, de 10.1.2001, necessário agora verificar o conteúdo desta.

Essa lei complementar incluiu um parágrafo único no art. 116 do

CTN, devendo-se dizer desde logo que ela não contrariou o regime constitucional vigente. Reza o dispositivo:

“Parágrafo único - A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”

De pronto nota-se que se trata de norma antievasão, sendo ineficaz

a “intentio legislatoris”, a qual se pode extrair de sucessivas manifestações do mentor dessa alteração legislativa no sentido de que se trataria de norma antielisão.

Realmente, o parágrafo transcrito visa permitir desconsiderar os

atos dissimulatórios da ocorrência do fato gerador (o “an debeatur”) ou dos elementos constitutivos da respectiva obrigação tributária (o “quantum debeatur”). Todavia, a ocorrência do fato gerador não foi afetada pelo novo dispositivo, tendo continuado a ser regrada pelos art. 109, 110, 113, 114, 116, 117, 118 e outros do mesmo CTN, assim como o fato gerador e a base de cálculo de cada imposto são disciplinadas em vários outros artigos do mesmo código.

Isto deflui cristalinamente quando o parágrafo único do art. 116

refere-se a desconsiderar atos ou negócios jurídicos que tenham tido a

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finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da respectiva obrigação tributária, valendo dizer que:

- o que se desconsidera é o ato que dissimula o ato real; - esse ato real tem que ser identificado por sua verdade material e

subsumido à norma que o qualifica como gerador de determinada obrigação tributária e define a sua base de cálculo.

Em outras palavras, levanta-se o véu dissimulatório da realidade,

para que esta prevaleça na constituição do respectivo crédito tributário. “Dissimulação” corresponde à simulação relativa, seja no sentido

léxico, seja no sentido técnico-jurídico 11. Realmente, simular tem um componente ou efeito positivo de criar

aparência, ao passo que dissimular tem um componente ou efeito negativo de esconder a realidade. Simula-se para fingir algo que não existe (realidade inexistente), e se dissimula para fingir que não existe (realidade aparentemente inexistente) algo que efetivamente existe (realidade existente).

A simulação visa o ato a ser apresentado (objeto da simulação),

enquanto que a dissimulação visa o ato a ser escondido (objeto da dissimulação). Na imagem de Ferrara, a simulação é igual ao fantasma (realidade inexistente) e a dissimulação é igual à máscara (realidade existente disfarçada ou ocultada por outra realidade falsa) 12.

11 Quanto ao sentido técnico-jurídico, dissimulação é simulação relativa, segundo Pontes de Miranda, em seu “Tratado de Direito Privado”, Editora Borsol, tomo IV, pág. 375, citado nos acórdãos n. 101-88316 e CSRF/01-01874, respectivamente da 1a Câmara do 1o Conselho de Contribuintes e da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, e Caio Mário da Silva Pereira, in “Instituições de Direito Civil”, Editora Forense, vol. I, 9ª ed., pág. 367. 12 In “A Simulação dos Negócios Jurídicos”, R.E.D. Livros, 1999, pág. 50, conforme citação de Miguel Delgado Gutierrez, em estudo sobre o parágrafo único do art. 116 do CTN, publicado na “Revista Dialética de Direito Tributário” n. 66, p. 88 e seg.

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Portanto, dissimulação é uma espécie de simulação, porque pela simulação de uma situação dissimula-se outra.

Para espancar definitivamente qualquer dúvida sobre o significado

do verbo “dissimular”, adotado pela Lei Complementar n. 104 ao introduzir o parágrafo único do art. 116 do CTN, veja-se que o novo Código Civil, no “caput” do art. 167, diz textualmente: “É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”.

Portanto, a norma do parágrafo único do art. 116 do CTN somente

trata de simulação relativa – ato simulado que dissimula o ato real -, não consagrando a interpretação econômica, a teoria do abuso de forma, a teoria do abuso de direito, e nem invalidando negócios jurídicos indiretos.

E trata apenas de simulação relativa, porque está sempre

correlacionada ao fato gerador efetivo, ainda que na órbita privada possa ser simulação absoluta, isto é, tanto se pode praticar um ato simulado que encobre outro real (simulação relativa na órbita privada), quando está sendo dissimulada a efetiva ocorrência do fato gerador e/ou os elementos constitutivos da obrigação tributária, quanto se pode praticar um ato simulado que não encobre qualquer outro (simulação absoluta na órbita privada), mas que dissimula os elementos constitutivos de uma determinada obrigação tributária. Portanto, nos dois casos, estando a obrigação tributária afetada pela dissimulação da realidade, trata-se de simulação relativa na órbita do direito tributário. 13

É importante destacar que essa norma tem estatura constitucional

de norma de lei complementar “ratione materiae”, face ao art. 146, inciso III, letra “b”, da Constituição, regrando concreta e especificamente o que antes se hauria de normas esparsas no ordenamento jurídico e prescrevendo a necessidade de um procedimento específico para ser declarada a desconsideração dos efeitos tributários do ato dissimulatório.

13 Tratei exaustivamente deste aspecto no já citado trabalho “Reinterpretando a Norma Antievasão do Parágrafo Único do Art. 116 do Código Tributário Nacional”, in “Revista Dialética de Direito Tributário” n. 76, p. 81.

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Ora, isto não significa, em hipótese alguma, haver proibição ou o cerceamento do planejamento tributário que vise a elisão lícita, mas apenas a proteção da arrecadação contra a evasão derivada da dissimulação.

Neste sentido, a norma representa legítima ação estatal no combate

à evasão, sendo exercício do direito/dever de proteger a arrecadação devida. Para concluir esta parte do presente estudo, inclusive tendo em

vista o seu título, façamos algumas observações específicas sobre o planejamento relativo ao imposto de renda, ao qual se aplica tudo quanto foi dito anteriormente, como de resto ocorre com todo e qualquer outro tributo.

Não obstante, o imposto de renda tem uma peculiaridade que

precisa ser destacada e observada quando se aquilata a validade ou não de um determinado planejamento tributário que o tenha como objeto.

O fato gerador desse imposto é do tipo funcional, e não estrutural,

pois é o efeito de acréscimo patrimonial produzido por situações jurídicas e/ou por situações de fato meramente econômicas, e não a prática de um ato jurídico especificamente considerado.

Por outro lado, o princípio da universalidade, que necessariamente

informa o imposto de renda (Constituição, art. 153, parágrafo 2º, inciso I), apanha a multidão de todos os fatores positivos e negativos que afetam o patrimônio no período de apuração da obrigação tributária.

Dentre tais fatores estão principalmente (quase sempre) fatos ou

atos jurídicos, sem cuja ocorrência não há o efeito de acréscimo ou redução patrimonial. Assim, na compra e venda mercantil, é a aquisição do direito ao preço, de acordo com a norma de direito aplicável, que produz o acréscimo patrimonial correspondente ao lucro nele embutido. Na subscrição de capital com ágio, é da respectiva disciplina jurídica que surgem os respectivos efeitos patrimoniais.

Ou seja, sem esses atos jurídicos completos de acordo com o direito

a eles aplicável não há os efeitos deles decorrentes, perseguidos pela incidência do imposto de renda sobre a universalidade da alteração patrimonial.

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Aliás, o patrimônio é coisa universal, ou universalidade jurídica

(Código Civil, art. 57), composto apenas por direitos e obrigações jurídicas com expressão econômica, conforme expuseram com clareza Silvio Rodrigues 14, Washington de Barros Monteiro 15, Caio Mário da Silva Pereira 16, e, entre os tributaristas, Brandão Machado, citando Pontes de Miranda. 17

No novo Código Civil não há mudança deste conceito, pois, pelo

contrário, o art. 91 alude à universalidade de direito como sendo o complexo de relações jurídicas de uma pessoa, dotadas de valor econômico.

Destarte, as mutações no patrimônio – e o fato gerador do imposto

de renda é o aumento patrimonial - envolvem sempre, apenas e necessariamente, mudanças de direitos e obrigações, na seguinte equação: mais direitos menos obrigações é igual a aumento patrimonial, assim como menos direitos mais obrigações é igual a redução patrimonial.

Sendo assim, a elisão em matéria de imposto de renda tem a ver com

um ou alguns desses fatores, buscando estruturas jurídicas mais vantajosas quanto aos respectivos créditos (menos créditos) ou débitos (mais débitos) à respectiva base de cálculo, o que se pode fazer pela adoção de negócios diretos ou indiretos, pela escolha de um dentre mais de um ato alternativo produtor do resultado que se quer, pela reestruturação societária ou empresarial, e por uma série de medidas que observem os três requisitos acima citados para se construir a elisão válida, mas certamente não pela simples arrumação aparente de uma realidade inexistente.

Na observação das práticas das pessoas físicas e jurídicas nota-se

que muitas vezes há um “encaixe ilegal” num tratamento a que a pessoa envolvida não faz jus pela realidade em que está inserida, muitas vezes inexistindo “business”. Ou seja, não existindo o fato propiciador de alguma vantagem fiscal, ele é criado artificialmente para permitir o encaixe na norma 14 “Direito Civil – Parte Geral”, Editora Max Limonad, 2ª ed., vol. 1, p. 121. 15 “Curso de Direito Civil – Parte Geral”, Editora Saraiva, 25ª ed., p. 147. 16 “Instituições de Direito Civil”, Editora Forense, vol. I, 9ª ed., p. 295. 17 “Estudos sobre Imposto de Renda (Em Homenagem a Henry Tilbery)”, Editora Resenha Tributária, 1994, p. 114.

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vantajosa, notando-se que muitas vezes há um “business” ou um “business purpose”, mas cria-se uma situação desnecessária e fictícia no contexto negocial, apenas com vistas à economia fiscal. É isto que a Lei Complementar n. 104 combate.

Mas há situações de “encaixe legal”, quando a pessoa física ou

jurídica amolda-se previamente, sem violar a lei e com atos reais, a uma situação que lhe é mais interessante, como é o exemplo do já citado Parecer Normativo CST n. 145/75. Isto a Lei Complementar n. 104 não proíbe nem combate.

Em suma, quando o fato ou ato jurídico real contribuir com

determinado elemento positivo ou negativo para a constituição da obrigação tributária cujo objeto seja o imposto de renda, ainda que por exercício de consciente e intencional direito de elisão fiscal, não há o que se desconsiderar, seja à luz dos ensinamentos doutrinários e da experiência jurisprudencial anteriores à Lei Complementar n. 104, seja ante os termos desta, pois não há ato jurídico praticado com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador desse imposto ou a natureza dos elementos constitutivos da respectiva obrigação tributária.

III – PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO COM IMPOSTO SOBRE A RENDA APÓS A MEDIDA PROVISÓRIA N. 66/02 Os art. 13 a 19 da Medida Provisória n. 66/02 representam as

normas de procedimento para desconsideração dos atos dissimulatórios, requeridas pelo parágrafo único do art. 116 do CTN, acrescentado pela Lei Complementar n. 104. Não há menor possibilidade de dúvida quanto a isto, eis que a redação do “caput” do art. 13 é praticamente a mesma do referido parágrafo, apenas tendo ficado explícito o que neste está implícito, ou seja, que a desconsideração é para fins tributários.

Os art. 15 a 19 são os dispositivos que efetivamente baixam as

normas de procedimento para a desconsideração dos atos, e são suficientemente explícitos para serem compreendidos sem necessidade de qualquer comentário ou explicação, ao menos nesta oportunidade.

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Fossem apenas eles os dispositivos dessa medida provisória, não haveria qualquer incompatibilidade com a Lei Complementar n. 104, e nenhuma irregularidade jurídica poderia ser encontrada nos mesmos.

Entretanto, o parágrafo único do art. 13 e os três parágrafos do art.

14 introduzem disposições espúrias, conflitantes com a lei complementar, além de haver conflito interno na Medida Provisória n. 66, entre o parágrafo único do art. 13 e o art. 14 considerado em sua integralidade.

Para maior clareza, transcrevo-os “in verbis”:

“Art. 13 – Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos de obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nos arts. 14 a 19 subseqüentes. Parágrafo único – O disposto neste artigo não inclui atos e negócios jurídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. Art. 14 – São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Parágrafo 1º - Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de: I – falta de propósito negocial; ou II – abuso de forma. Parágrafo 2º - Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato.

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Parágrafo 3º - Para o efeito do disposto no inciso II do parágrafo 1º, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado.”

Uma primeira consideração a fazer é que, em virtude do disposto no

parágrafo único do art. 13, é claro que o legislador da medida provisória pretendeu determinar a desconsideração de atos para efeitos tributários ainda que os mesmos sejam válidos perante o direito privado, porque, se forem dolosos, fraudulentos ou simulados, não terão validade perante o direito privado e qualquer prejudicado, inclusive o fisco, poderá demandar a sua nulidade, sendo que, no caso do fisco, tal possibilidade exsurge independentemente da declaração judicial dos citados defeitos dos atos.

Entretanto, se justamente os atos invalidados por motivo de dolo,

fraude ou simulação estão excluídos dos procedimentos de desconsideração baixados pela medida provisória, resulta que esta pretende se aplicar somente a atos juridicamente válidos, especialmente a atos não invalidados por dolo, fraude ou simulação.

Uma segunda consideração, ainda decorrente desse parágrafo é que

ele não se coaduna com o disposto na lei complementar, eis que esta alude à dissimulação, a qual, como vimos, corresponde a ato simulado que dissimula ato verdadeiro, e se constitui na única hipótese fática em que a norma pode ser aplicada.

Logo, se a norma da lei complementar refere-se a uma espécie de

simulação e a medida provisória declara expressamente que as suas normas de procedimento não se aplicam no caso de simulação, neste ponto está estabelecido um descompasso insuperável entre elas, o qual se resolve pela invalidade parcial do parágrafo único do art. 13 da medida provisória, quando alude a “simulação”, por ser contrário à norma da lei complementar que lhe deveria dar suporte 18. Veremos mais adiante que também por outras razões esse parágrafo é inválido neste ponto. 18 Pode-se cogitar que o parágrafo único do art. 13 estaria aludindo apenas à simulação absoluta, enquanto que o “caput” do mesmo artigo e os demais dispositivos estariam aludindo apenas à simulação relativa, na linha da Lei Complementar n. 104. Contudo,

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Mas deste descompasso também deflui uma terceira observação,

qual seja, tudo o que antes era caracterizado como evasão fiscal continua a sê-lo, não por força da medida provisória, mas por força da totalidade do ordenamento jurídico da qual se extraía e continua a se extrair os conceitos jurídicos de elisão lícita e evasão ilícita.

Aliás, a Lei Complementar n. 104 também não alterou o “status quo”

anterior quanto à definição de elisão e evasão, tendo apenas consagrado, em nível de norma complementar, a possibilidade da desconsideração dos atos dissimulatórios e prescrito a regulação, por lei ordinária, do procedimento para tanto.

Todavia, como o parágrafo único do art. 13 exclui dos

procedimentos de desconsideração atos que carregam dolo, fraude ou simulação, isto é, atos que, ao invés de produzir elisão, produzem evasão fiscal, estes casos, na estrita ótica da medida provisória, devem continuar sujeitos à invalidação dos seus efeitos fiscais através do processo normal, sem passar pelos procedimentos de desconsideração que ela estabelece.

Por conseguinte, nesta terceira observação fica principalmente

estabelecido que o legislador da medida provisória quis efetivamente acrescentar algo novo no ordenamento jurídico, inclusive indo além do disposto na lei complementar, e isto ele o proclama ao atribuir aos art. 13 a 19, no título que os encima, a condição de “procedimentos relativos à norma anti-elisão”.

Em suma, a contrariedade não é apenas de natureza substancial,

mas também de ordem intencional, ou seja, a medida provisória contraria a substância da norma da lei complementar, afastando do seu âmbito a hipótese de simulação, justamente alcançada por esta, e quer estabelecer uma norma antielisão quando a lei complementar exprime uma norma antievasão.

não é assim, não tanto e apenas porque o parágrafo refere-se ao gênero simulação, de maneira a abranger tanto a absoluta quanto a relativa, mas principalmente porque, como explicado no capítulo II deste estudo, a simulação evasiva é sempre relativa, dado que é referida à efetiva e verdadeira ocorrência do fato gerador ou aos efetivos e verdadeiros elementos constitutivos da respectiva obrigação tributária.

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Por tudo o que já foi exposto no capítulo II, tal norma dependeria de alteração constitucional nos limites possíveis 19, de tal maneira que não poderia sequer ter sido estabelecida por lei complementar, e com mais razão por lei ordinária. Seja como for, a medida provisória contradiz a lei complementar, e isso já é suficiente para ser inválida. Pela sequência dos presentes comentários ver-se-á que outros obstáculos jurídicos interpõem-se na aplicação dessa medida provisória, se nela for mantido o parágrafo único do art. 13, tal como se apresenta no seu texto original.

Já o art. 14 suscita uma enorme série de dúvidas e, juntamente com

os seus três parágrafos, se não interpretado adequadamente, acaba por também se revelar contrário ao que dispõe o CTN, inclusive no parágrafo único do seu art. 116, acrescentado pela Lei Complementar n. 104.

A cabeça do art. 14, devidamente interpretada, não padece de

qualquer vício, porquanto está em conformidade com o parágrafo único do art. 116 do CTN, mas também, e principalmente, por revelar expressamente que a ocorrência do fato gerador deve ser detectada em vista dos seus “verdadeiros aspectos” e da “real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”.

Outrossim, quando a parte inicial do “caput” do art. 14 alude à

desconsideração de atos ou negócios jurídicos que visem reduzir o valor de tributo, ou evitar ou postergar o seu pagamento, revela a aversão preconceituosa do seu mentor pela elisão lícita, mas essa parte não pode ser isolada do “caput” do art. 13 nem da Lei Complementar n. 104, ou seja, somente devem ser desconsiderados os atos ou negócios que acarretem os referidos resultados quando forem dissimulatórios da realidade, como está expresso na parte final do mesmo dispositivo.

Assim, quando o art. 14 alude a “verdadeiros” e a “real”, está

efetivamente confirmando que o fato gerador e os elementos que o compõem são aqueles emanados da realidade fenomênica e da respectiva norma legal específica que os disciplina. Em outras palavras, o “caput” do art. 14 demonstra que se deve desconsiderar os atos que dissimulam essa verdadeira realidade da qual nasce a obrigação tributária e pela qual ela é quantificada, portanto,

19 Vide a nota (3).

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correlacionando-se sistematicamente com o “caput” do art. 13 e com a lei complementar.

Dispondo assim, verifica-se que ao menos esse dispositivo não

desrespeita o princípio da estrita legalidade, com o seu desdobramento da tipicidade. Isto é, considerada a dicção do “caput” do art. 14, o que temos em última análise é a confirmação da submissão do art. 14 a esse princípio constitucional fundamental, que representa direito e garantia individual e que se manifesta como limite ao poder de tributar.

Ora, isto está em consonância com a Lei Complementar n. 104 e com

todo o ordenamento jurídico que existia antes dela e que continua a existir depois dela, ou seja, o fato gerador continua a ser regido, interpretado e aplicado segundo as normas legais a ele pertinentes, e com observância dos art. 109, 110, 113, 114, 116, 117 e todos os demais do CTN, inclusive o art. 108 e o art. 118.

Obviamente que, se assim é, o “caput” do art. 14 da medida

provisória está se referindo à simulação relativa, e nisto está se contrapondo ao que consta do parágrafo único do art. 13 do mesmo dispositivo legal, mas justapondo-se à cabeça do art. 13, que alude expressamente à dissimulação

Isto é, são conflitantes, de um lado, o parágrafo único do art. 13, e de

outro lado, o “caput” do art. 14 e o “caput” do próprio art. 13. A solução para tal antinomia pode resolver-se por duas maneiras

recomendadas pela boa hermenêutica jurídica. Como se sabe, a doutrina e a jurisprudência reconhecem que não

existem antinomias no ordenamento jurídico válido e em vigor, sendo todas elas apenas aparentes, pois o conflito de normas se resolve por critérios que variam de caso para caso, sendo ora o da sucessividade temporal, pelo qual a norma posterior aplica-se e revoga a anterior 20, ora o da hierarquia, pelo qual a norma

20 Critério este atualmente passível de revisão quanto à sua subsistência, perante as maneiras de alteração da lei, presentemente regidas pelos art. 9º e 12 da Lei Complementar n. 95, de 26.2.1998.

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superior afasta e torna inaplicável a norma inferior, e ora o da especialidade, pelo qual a norma mais específica se aplica em detrimento da norma mais geral.

Entretanto, é reconhecido que pode ocorrer antinomia insanável por

qualquer destes critérios, ou seja, pode haver antinomia real e não apenas aparente quando num mesmo diploma legal, portanto sem possibilidade de aplicação do critério temporal e do critério hierárquico, duas normas disponham em sentido contrário, sendo ambas de caráter geral ou de caráter especial.

Neste caso, a solução jurídica é a total invalidade de ambas. 21

21 Carlos Maximiliano, in “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Livraria Freitas Bastos, 3ª ed., p. 170. Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, habeas-corpus n. 68793-8-RJ, em 10.3.1992, em cujo julgamento o voto do Ministro Moreira Alves contém excelentes lições extraídas da doutrina de Norberto Bobbio, Savigny, Gavazzi e outros que cita (DJU-I de 27.6.1997, p. 30287). Na ementa desse julgado, lê-se: “Quando há choque entre dois dispositivos de uma mesma lei, a antinomia não pode ser resolvida pelos critérios da hierarquia ou da sucessividade no tempo, porque esses critérios pressupõem a existência de duas leis diversas, uma hierarquicamente superior à outra, ou esta posterior à primeira. Nesse caso, que é o de mais difícil solução, o que é preciso verificar é se a antinomia entre os dois textos da mesma hierarquia e vigentes ao mesmo tempo é uma antinomia aparente, e, portanto, solúvel, ou se é uma antinomia real, e, conseqüentemente, insolúvel. A antinomia aparente é aquela que permite a conciliação entre os dispositivos antinômicos, ainda que pelo que se denomina “interpretação corretiva”, ao passo que a antinomia real é aquela que, de forma alguma, permite essa conciliação, daí decorrendo a necessidade de se adotar a chamada “interpretação abrogante”, pela qual ou o intérprete elimina uma das normas contraditórias (abrogação simples) ou elimina as duas normas contrárias (abrogação dupla). Dessas três soluções, a que deve ser preferida - só sendo afastável quando de forma alguma possa ser utilizada - é a interpretação corretiva, que conserva ambas as normas incompatíveis por meio de interpretação que se ajuste ao espírito da lei e que corrija a incompatibilidade, eliminando-a pela introdução de leve ou de parcial modificação no texto da lei”. Por outro lado, a solução de antinomias meramente aparentes, pelos critérios doutrinários, tem sido aplicada pelo Supremo Tribunal Federal em inúmeros casos, como no despacho do Ministro Celso de Mello de não conhecimento do recurso extraordinário n. 178861-5-SC, de 29.11.1995 (“Revista Dialética de Direito Tributário” n. 5, p. 148), no seu despacho de indeferimento do agravo de instrumento n. 189974-5-AL, de 13.12.1997 (DJU-I de 28.2.1997, p. 4102), e no seu despacho de conhecimento e provimento do recurso extraordinário n. 153366-8-SP, de 22.5.2002 (DJU-I de 5.8.2002, p. 74).

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A justeza desta última solução é de evidência lógica, pois, num exemplo simples, se um dispositivo de uma lei proibir fumar em elevador e outro dispositivo da mesma lei permitir fumar em elevador, nenhuma das disposições tem prevalência sobre a outra, ou seja, não há norma em virtude de que a lei ao mesmo tempo proibiu e permitiu um mesmo ato.

Mais proximamente da situação aqui em cogitação, se a lei tornar

inválida a simulação e também disser que a simulação não invalida o ato jurídico, nenhuma ordem ou norma defluirá dessa lei contraditória consigo mesma.

Pois bem, no caso da Medida Provisória n. 66 o que temos é

exatamente esse tipo de antinomia real, pois o parágrafo único do art. 13 diz que os atos a serem desconsiderados não são os atos simulados, mas o “caput” do art. 14 o contradiz, pois afirma que devem ser desconsiderados os atos que ocultem os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, vale dizer, os atos simulados que dissimulam a verdadeira realidade. É também evidente a antinomia entre o parágrafo único do art. 13, quando alude à “simulação”, e a própria cabeça do art. 13, que expressamente se refere a “dissimular”.

Contudo, nesta situação concreta é possível afastar a antinomia, não

pela declaração de invalidade dos dispositivos conflitantes ou pela conclusão da inexistência de norma, mas mediante a declaração de invalidade parcial do parágrafo único do art. 13, mantendo-se incólume o “caput” do art. 14 e o próprio “caput” do art. 13. A tal solução pode-se chegar pela aplicação do segundo dos três citados critérios, conjuntamente com a aplicação da totalidade do ordenamento jurídico.

Realmente, não houvesse a Lei Complementar n. 104, e se no

ordenamento jurídico houvesse apenas os referidos dispositivos da Medida Provisória n. 66 trazidos pelo mesmo diploma legal, e se não houvesse outras normas no ordenamento que pudessem afastar um deles, a única solução seria declarar a inexistência de norma em virtude da invalidade deles, derivada da sua total e insanável antinomia.

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Contudo, havendo no ordenamento jurídico uma norma hierarquicamente superior que invalide um dos dispositivos antinômicos, e o outro sendo válido perante essa mesma norma e a totalidade do ordenamento jurídico, aquele perde eficácia por sua invalidade, e, por consequência, desaparece a antinomia, ficando incólume este último.

É isto que resulta da confrontação do parágrafo único do art. 13 com

a Lei Complementar n. 104. Além disso, remansado entendimento doutrinário e jurisprudencial

sempre prelecionou que os parágrafos de um artigo são subordinados ao respectivo “caput”, como normas complementares à norma deste, ou como exceções à mesma. 22

Esse entendimento hoje está transformado em lei, pois a Lei

Complementar n. 95, de 26.2.1998, editada para dar atendimento ao parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e que disciplina a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, dispõe no seu art. 11, inciso III, letra “c”, que “para obtenção de ordem lógica”, o legislador deve “expressar por meio de 22 Assim, por exemplo, o Parecer n. SR-70, de 6.10.1988, do Consultor Geral da República (DOU-I de 7.10.1988, p. 19675 e seg.), com fulcro da doutrina de Vicente Ráo, afirmou: “Sabemos que o parágrafo é, tecnicamente, o desdobramento do enunciado principal, com a finalidade de ordená-lo inteligentemente ou excepcionar a disposição principal. Ordenando ou excepcionando, sempre se refere ao ‘caput’: ‘... em sentido técnico-legislativo indica a disposição secundária de um artigo, ou texto de lei, que, de qualquer modo,, completa ou altera a disposição principal, a que se subordina. Comumente, o conteúdo do parágrafo deve ligar-se e sujeitar-se à prescrição contida na disposição principal, como o particular ao geral. Também usa o legislador, com freqüência, dispor a matéria em sucessão lógica, unindo o sentido de cada parágrafo ao do parágrafo anterior e o de todos os parágrafos ao do texto principal do artigo.’ (Vicente Ráo, ‘O Direito e a Vida dos Direitos’, vol. I, p. 326)’”. O Supremo Tribunal Federal, Pleno, no mandado de injunção n. 60-3 (AgRg) , decidido em 12.9.1990, considerou caso concreto afirmando “o parágrafo estar jungido ao regime jurídico único de que cogita o ‘caput’” (DJU-I de 28.9.1990, p. 10222). O Ministro Moreira Alves, votando no recurso extraordinário n. 146615-4-PE, julgado em 6.4.1995 pelo Plenário do Supremo Tribunal, afirmou “que é princípio de hermenêutica jurídica que, quando os parágrafos, no tocante a hipóteses determinadas, as disciplinam diferentemente da regra geral contida no ‘caput’ do mesmo dispositivo, aqueles devem ser interpretados, sempre que possível, como exceções a este”.

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parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no ‘caput’ do artigo e as exceções à regra por este estabelecida”.

Ora, no caso do parágrafo único do art. 13 da Medida Provisória n.

66, é possível que exprima complemento ou exceções à regra do “caput”, como ele efetivamente o faz, apenas com relação a dolo e fraude. Mas não é possível que o faça com relação à simulação, porque, quanto a este defeito do ato jurídico, o parágrafo está contrariando o que dispõe o “caput”, e não o complementando ou excepcionando.

Por conseguinte, havendo efetiva contradição interna na medida

provisória, através da aplicação sistemática da legislação e especialmente considerada a Lei Complementar n. 104 resulta a invalidade do parágrafo único do art. 13, quando alude à “simulação”, e a validade do “caput” do art. 14, assim como, é claro, permanecendo válido o “caput” do art. 13 por sua adequação total ao que dispõe a lei complementar.

Em conclusão, afastada do parágrafo único do art. 13 a palavra

“simulação”, teremos o seguinte: - os procedimentos para desconsideração dos efeitos tributários dos

atos dissimulatórios da realidade serão os constantes da Medida Provisória n. 66, no que esta estará, quanto a este aspecto, inteiramente de acordo com a Lei Complementar n. 104;

- os atos dolosos ou em fraude à lei não serão submetidos aos

procedimentos dessa lei complementar, mas a evasão construída por eles será combatida pelas anteriores normas do ordenamento jurídico, assim como a evasão decorrente de outras ilegalidades praticadas.

Ou seja, neste passo estarão inteiramente protegidos os direitos do

fisco e, havendo dolo, fraude ou outra ilegalidade, o contribuinte estará afastado da vantagem que o parágrafo 2º do art. 17 lhe atribui nos casos de desconsideração por dissimulação, ou seja, a de poder se conformar com a

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desconsideração dos atos dissimulatórios e pagar o tributo apenas com os acréscimos moratórios. 23

Os parágrafos 1º a 3º do art. 14 já exigem considerações de outra

ordem. E são várias as considerações que eles suscitam. A principal delas é que esses dispositivos avançam além do que a Lei

Complementar n. 104 veio dispor, e representam, realmente, o cerne da norma antielisão, como veremos adiante, depois de bem entender o conteúdo dos mesmos.

Quando do advento da Lei Complementar n. 104, a quase totalidade

dos autores que se manifestaram sobre ela disse que a norma de lei ordinária por ela exigida seria simples norma de procedimento, isto é, norma adjetiva e não substantiva, ficando o direito substantivo regrado pelas demais disposições do CTN e pelas disposições legais de cunho ordinário baixadas conforme a Constituição pelos entes detentores do poder de tributar.

De minha parte, também entendi que a lei ordinária preconizada

pela referida lei complementar teria caráter adjetivo, disciplinando procedimentos, mas entendi que seria razoável, e até necessário, que ela estabelecesse parâmetros para a afirmação da possível existência de dissimulação e, consequentemente, para desencadear os procedimentos de desconsideração.

Na verdade, entendi que a lei deveria estabelecer critérios objetivos,

para que a existência de dissimulação não ficasse sujeita ao arbítrio e aos critérios subjetivos da autoridade fiscal, ou seja, a lei deveria estabelecer circunstâncias a partir das quais se poderia desencadear os procedimentos para a investigação dos fatos dissimulados, num processo lógico e jurídico semelhante ao das simulações relativas. Em outras palavras, a partir de fatos ou 23 Não me perguntem se há lógica na distinção de tratamento entre as hipóteses de dolo, fraude ou outra ilegalidade e a de simulação, porque acho que não deveria haver distinção. Contudo, ela decorre exclusivamente do fato de que a Lei Complementar n. 104 trata apenas da dissimulação. Logo, somente se houver dolo, fraude ou outra ilegalidade, e concomitantemente dissimulação, será possível a aplicação dessa normatização.

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circunstâncias elencados na lei ordinária como indicativos da possível existência de dissimulação, e devidamente comprovados, abrir-se-ia ampla defesa e contraditório para o final julgamento da efetiva existência ou inexistência de dissimulação e declaração da desconsideração ou não dos atos praticados. 24

Se esta fosse a intenção do legislador da medida provisória, nada

haveria a objetar, quer perante a Lei Complementar n. 104, quer perante o restante do CTN, quer perante o ordenamento jurídico total. Aliás, esta seria uma interpretação para os referidos parágrafos do art. 14 da medida provisória que poderia garantir a sua validade, por ser uma interpretação conforme ao ordenamento jurídico, inclusive conforme à Constituição.

Acontece que não parece ter sido esta a intenção do legislador, e se

apresenta difícil tal solução se não for afastada a palavra “simulação” do parágrafo único do art. 13.

Antes de prosseguir nesta investigação sobre a validade ou não dos

parágrafos em comento, ou sobre a interpretação que se lhe possa dar para conformá-los com a ordem jurídica, é necessário avaliar alguns dos seus detalhes e pormenores.

Primeiramente, é de se constatar que o parágrafo 1º manda

imperativamente – “dever-se-á” – levar em conta, para a desconsideração de ato ou negócio jurídico, entre outras ocorrências não referidas, a falta de propósito negocial ou o negócio jurídico indireto.

Portanto, o parágrafo 1º coloca essas duas circunstâncias - falta de

propósito negocial e negócio jurídico indireto - como desencadeadoras obrigatórias do procedimento de desconsideração, além de quaisquer outras circunstâncias que possam ser encontradas pela fiscalização e que, ao ver desta, possam indicar a prática de atos que tenham visado reduzir o valor de tributo, evitar ou postergar o seu pagamento, ou ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

24 Manifestei esta posição no já referido trabalho publicado in “O Planejamento Tributário e a Lei Complementar n. 104”, Editora Dialética, 2001. p. 245 e seg.

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Além da injuridicidade e do inconveniente, para a segurança jurídica, representado pela grande liberdade deixada aos auditores do fisco quanto à adoção de outros indicadores 25 não expressos na medida provisória, os dois por ela citados merecem várias considerações críticas.

Quanto aos outros indicadores que o auditor fiscal use ao seu livre

critério, há duas considerações a serem feitas. A primeira é que a sua admissão, combinada com o parágrafo único

do art. 13, põe à calva a vontade do idealizador da medida provisória de coibir a prática da elisão por qualquer método válido, em total afronta e desrespeito ao ordenamento jurídico e à própria Lei Complementar n. 104.

Realmente, o que ele visa é a proibição da economia fiscal obtida por

quaisquer meios não referidos expressamente, ainda que sejam legais, para isto baixando norma em branco, a ser preenchida discricionariamente pelos agentes do fisco.

A segunda consideração é que, ao menos aparentemente, há o

conforto de saber que os outros indicadores que o auditor fiscal tenha adotado passarão primeiramente pelo crivo do seu superior imediato, o qual detém a competência para declarar a desconsideração após os procedimentos dos art. 15 a 17, e depois serão submetidos a julgamento nas várias instâncias do processo administrativo, nas quais haverá a mais ampla liberdade para a formação do convencimento dos respectivos julgadores.

O problema, entretanto, é que a norma em branco, representada

pela inexistência de quaisquer critérios objetivos, deixa a autoridade competente para desconsiderar o ato, assim como os órgãos julgadores, sem qualquer parâmetro certo e seguro para concordar com o auditor fiscal ou dele discordar.

25 Adotarei aqui a palavra “indicadores” à míngua de outra mais específica e mais precisa para referir-me aos mencionados fatos, principalmente ante as incertezas que os cercam no estágio atual de compreensão da nova norma. Contudo, conforme a conclusão a que se chegar, aquela palavra poderá ser substituída por, ou compreendida como, indícios ou presunções.

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Quer dizer, o particular fica ao sabor de apreciações inteiramente subjetivas de todas essas pessoas, em total insegurança jurídica, e o princípio da legalidade que deve presidir todos os atos da Administração Pública fica relegado ao abandono.

Já com relação aos outros dois indicadores mencionados

expressamente no parágrafo 1º do art. 14 – falta de propósito negocial e negócio jurídico indireto -, uma dúvida que se coloca é se, havendo a ocorrência de qualquer deles, a desconsideração será mandatória ou poderá ser ou não ser declarada pela autoridade competente e apreciada pelas instâncias julgadoras ao seu livre convencimento.

Quanto a isto, apresentam-se duas ordens de raciocínio possíveis. A primeira delas é no sentido de que, não havendo propósito

negocial ou havendo negócio jurídico indireto, os atos praticados, ainda que verdadeiros e legítimos perante o direito privado, seriam obrigatoriamente desconsiderados para efeitos fiscais.

Neste caso, a autoridade competente para declarar a

desconsideração e as instâncias julgadoras teriam o seu papel limitado a confirmar ou infirmar esses pressupostos, isto é, elas poderiam apenas concordar com o auditor fiscal ou discordar dele quanto a não haver propósito negocial ou a haver negócio indireto. Mas, se confirmassem um desses pressupostos, estaria cessada a sua jurisdição, ficando necessariamente declarada a desconsideração.

Todavia, ainda neste caso, o ato real e válido para efeitos privados

não valeria para efeitos fiscais, o que instalaria uma consequência inusitada e francamente contrária ao ordenamento jurídico, inclusive ao sistema tributário constitucional. Aliás, neste aspecto, o mesmo ocorreria com outros indicadores adotados pelo auditor fiscal.

Em geral, os tributaristas estão entendendo que, nestas

circunstâncias, haveria tributação por analogia, isto é, tomar-se-ia de empréstimo a norma aplicável à situação análoga, e não a norma tributária especificamente prevista para a situação real do ato praticado validamente. E

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estão afirmando que isto contraria o art. 108 do CTN, residindo aí a invalidade dos parágrafos da medida provisória.

Penso diferente, embora reconheça que de certa forma haja um

elemento comum com a analogia, portanto, por este prisma contrariando o citado dispositivo do CTN, o qual tem existência inafastável do ordenamento jurídico por não passar de norma de explicitação do sistema tributário constitucional.

Mas na minha opinião existe algo muito mais grave do que a

aplicação analógica pura e simples, porque, na sua essência, a analogia é um processo de integração da lei, ou seja, um processo de preenchimento de lacuna para, em situação na qual não haja norma, se aplicar uma norma prevista para situação análoga.

Exatamente porque a obrigação tributária está submetida ao

princípio da legalidade, e porque este impõe a descrição hipotética do fato-tipo que enseja o seu nascimento, a ausência de disposição tipificando esta ou aquela situação como hipótese de incidência não significa que não haja norma, mas, sim, que a norma é de não-incidência ou de não aproveitamento total ou parcial da competência para tributar. Podemos dizer que a ausência de disposição tipificando um fato representa silêncio eloquente de norma não impositiva sobre esse fato 26. 26 Sobre silêncio eloqüente, Marco Aurélio Greco escreveu o seguinte in “Revista Dialética de Direito Tributário n. 51, p. 128:“O mesmo fenômeno ocorre e a mesma dificuldade se apresenta ao intérprete do Direito. Diante de uma previsão legal cujas palavras, não alcancem determinadas hipóteses, cumpre verificar se estamos perante uma “insuficiência” do texto, ou “lacuna” que admitiria integração, de modo a assegurar seu real alcance; ou se a não previsão corresponde ao que o Supremo Tribunal Federal examina sob a denominação de ‘silêncio eloqüente’, assim entendida a não-previsão voluntariamente feita e que corresponde a uma norma de não incidir. O silêncio eloqüente vem referido expressamente no RE nº 135.637 e no RE nº 130.552, onde se afirma que ‘... só se aplica a analogia quando, na lei, haja lacuna, e não o que os alemães denominam ‘silêncio eloqüente’ (beredtes Schweigen), que é o silêncio que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se aplica o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia’”. O Supremo Tribunal Federal, no recurso extraordinário n. 131013-8-SP, decidido em 4.6.1991 pela 1a Turma, também abordou o silêncio eloqüente como sendo diferente de lacuna da lei (DJU-I de 28.6.1991, p. 8908).

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Não é por outra razão que o art. 108 veda o emprego da analogia

para a exigência de tributo onde a lei não o exija. Ora, no caso dos parágrafos do art. 14 o que temos é pretensão mais

grave e mais conflitante com o ordenamento jurídico, pois o ato praticado, ainda que sem propósito negocial ou que seja negócio indireto, com certeza tem específica norma jurídica tributária a ele aplicável, seja ela norma de incidência mais branda ou norma de não-incidência – exatamente a norma mais benéfica buscada pelo procedimento de elisão -, o que, portanto, afasta a possibilidade de integração, seja por analogia, seja por qualquer outro método.

Destarte, neste caso na verdade temos o afastamento da norma

especificamente existente para o fato-tipo, para ser aplicada uma outra norma prevista para outro fato diferente. Em outras palavras, tributa-se não o ato acontecido, mas, sim, um outro ato não acontecido. E nisto reside a gravidade até maior do que a aplicação analógica onde não exista norma, esgotando-se a similitude com a analogia apenas por ser aplicada uma norma destinada a outra situação fática diversa da efetivamente existente.

Há alguma maneira de afastar este entendimento para os parágrafos

do art. 14, que, se assim forem compreendidos, incorrem em invalidade insanável? A resposta a esta pergunta é a segunda ordem de raciocínio referente aos dois indicadores expressos no parágrafo 1º do art. 14.

Penso que existe uma possibilidade de afastar o referido

entendimento do art. 14, embora dificultada pela existência do parágrafo único do art. 13.

Realmente, se o ato não for simulado, embora não tenha propósito

negocial ou seja negócio jurídico indireto, e se também não for viciado por dolo, fraude ou outra ilegalidade, ele terá validade perante o ordenamento jurídico e produzirá os seus efeitos patrimoniais, e é esse ato ou são esses efeitos que representam a materialidade submetida à tributação conforme a norma jurídica própria que os tipifique. Nestas circunstâncias, não haveria como validamente desconsiderar o ato ou os seus efeitos para fins tributários, porque exatamente

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eles são objetivados e determinados pela específica norma de incidência ou não-incidência.

Destarte, apenas se os referidos atos estiverem viciados por dolo,

fraude ou simulação (ou mesmo outras ilegalidades) é que seus efeitos fiscais poderão ser neutralizados a partir da inexistência de propósito negocial ou de serem negócios jurídicos indiretos, ou ainda por outros indicadores.

Mas, exatamente nestes casos o parágrafo único do art. 13 afasta o

art. 14 e os demais aqui analisados, porque declara que os mesmos não se aplicam nas circunstâncias de simulação, dolo ou fraude.

Não obstante esta dificuldade, ou até por força dela, entendo que a

maneira de salvar os parágrafos do art. 14 envolve duas exigências concomitantes.

A primeira delas é admitir que falta de propósito negocial e o

negócio jurídico indireto não invalidam necessariamente a elisão fiscal produzida, servindo apenas de parâmetros (indícios ou presunções) para o início da investigação sobre a possível existência de dissimulação.

A segunda é a alteração integral do parágrafo único do art. 13, sendo

ele substituído por outro dispositivo que diga que os atos jurídicos inválidos por qualquer motivo que não a dissimulação, inclusive por dolo, fraude ou outra ilegalidade, não produzem efeitos fiscais e serão objeto de lançamento e de eventual impugnação pelo sujeito passivo segundo as disposições legais de caráter geral, ficando apenas os atos dissimulatórios sujeitos aos procedimentos da medida provisória 27.

27 Não se argumente ser inconveniente ou inexplicável esta distinção de procedimento, porque, como já observado na nota (23), ela decorre da Lei Complementar n. 104, que requereu procedimentos de desconsideração apenas para os atos que dissimulam a realidade. Não obstante essa lei complementar, nada impede o legislador ordinário, se quiser, de disciplinar o combate a todos os tipos de evasão pelos mesmos procedimentos. Realmente, embora esse legislador não esteja obrigado pela lei complementar a disciplinar procedimentos que não sejam relativos à dissimulação, ele pode perfeitamente faze-lo em igualdade com os procedimentos relativos a esse tipo de evasão.

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Outra alteração possível, esta parcial, é simplesmente retirar do

parágrafo a palavra “simulação”. Ou seja, se o parágrafo único do art. 13 receber esta alteração, será

possível impedir efeitos fiscais decorrentes de ato jurídico que não tenha validade jurídica, portanto de ato que não tenha habilidade para produzir efeitos jurídicos, caso em que ele também não poderá produzir efeitos tributários, quer o fato gerador, cuja norma lhe seria aplicável se ele fosse válido, seja do tipo estrutural ou do tipo funcional.

E, nesta circunstância, se o ato inválido encobrir - dissimular - o real

fato gerador ou os verdadeiros elementos constitutivos da obrigação tributária, estes serão considerados após a desconsideração do ato inválido, segundo os procedimentos da medida provisória.

Veja-se que, neste caso, a inexistência de propósito negocial ou a

existência de negócio indireto será mera indicação (indício ou presunção) de uma possível dissimulação, mas serão livres a ampla defesa jurídica e a contraprova pelo acusado, cabendo à autoridade competente para declarar a desconsideração do ato e às instâncias julgadoras a mais ampla função de:

- primeiramente, examinar se, efetivamente, não existe propósito

negocial ou existe negócio indireto, porque estes pressupostos podem não se confirmar, ou seja, o auditor fiscal pode entender não ter havido propósito negocial mas este pode vir a ser provado no curso do procedimento de desconsideração, ou o auditor fiscal pode entender ter havido negócio indireto mas afinal pode ser provado ou julgado que o negócio praticado não era indireto, mas direto ou alternativo; e

- depois, examinar se, ainda que confirmada a inexistência de

propósito negocial ou a existência de negócio indireto, o ato praticado representa ou não dissimulação de outro ato real.

Quanto a este último ponto é bom não esquecer três aspectos

básicos.

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O primeiro deles é que a inexistência de propósito negocial não significa necessariamente que o ato não exista e seja dissimulador de outro, pois muitas vezes a prática de uma reorganização na estrutura empresarial ou negocial, ou a prática de um determinado ato, tem como única razão a economia fiscal que possa produzir. Como já observado anteriormente, o que acarreta evasão fiscal é a inexistência de ato ou negócio real, mas não a efetiva existência de ato ou negócio praticado sob a inspiração da economia tributária.

O segundo deles é que o negócio indireto não é sempre e

necessariamente válido, pois, para ser válido, ele pressupõe que o negócio direto pudesse ser praticado validamente e que todos os demais requisitos legais tenham sido atendidos na prática do ato indireto. Destarte, se houver simulação, ou se houver dolo, ou se for em fraude à lei, ou ainda se incorrer em outra ilegalidade, o negócio indireto não tem validade, e é isto que cabe ser examinado pela autoridade fiscal competente para declarar a desconsideração do ato e pelas instâncias administrativas de julgamento, em procedimento segundo a medida provisória se se tratar de dissimulação, ou segundo o processo comum se se tratar de dolo, fraude ou outra ilegalidade.

O terceiro é que não se pode argumentar com capacidade

contributiva, alegando que as capacidades contributivas do ato jurídico direto e do negócio jurídico indireto seriam idênticas ou iguais, justificando-se, apenas por isso, a tomada daquele como passível de tributação.

Não pode ser assim porque, como vimos no capítulo II, a capacidade

contributiva deriva do ato efetivo e válido, e cada um deles tem o seu próprio índice de capacidade contributiva, isto é, aquilo que Alfredo Augusto Becker com propriedade chamou de “signo presuntivo de capacidade contributiva” derivada da norma de incidência.

Assim sendo, se a lei tributária trata distintamente dois atos ou seus

efeitos, ainda que um possa ser considerado direto e outro indireto, não é dado ao intérprete substituir o ato real e válido pelo outro que foi substituído e não praticado, apenas afirmando que economicamente ambos revelam idênticas capacidades para contribuir ao erário. O intérprete não tem esse poder, pois somente a lei pode dizer sobre isto, e deve fazê-lo expressamente em virtude do princípio da estrita legalidade/tipicidade, sob pena de este deixar de existir ou

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de ter valor real. Em outras palavras, é somente a lei, ao determinar este ou aquele fato como gerador de obrigação tributária, que reconhece, proclama e delimita a existência de capacidade para contribuir, dele derivada.

Ademais, não é sempre que o negócio indireto não é tributado ou é

menos tributado, de modo que, quando ele acarretar maior incidência do que o ato jurídico direto teria acarretado, o contribuinte também não pode pleitear a incidência da norma mais branda que teria aplicação se tivesse praticado o ato direto. Vimos isto quando comentamos exatamente a situação julgada no recurso extraordinário n. 82447-SP.

Portanto, reunidos os dois citados requisitos – alteração do

parágrafo único do art. 13 e tomada dos elementos do parágrafo 1º do art. 14 como simples indicadores (indícios ou presunções) passíveis de contradição pelos seus aspectos de fato e de direito - os parágrafos do art. 14 estarão consonantes com a Lei Complementar n. 104 e com o restante do ordenamento jurídico, inclusive com a Constituição.

Todavia, faltando um destes requisitos não haverá como considerar

válidos os parágrafos do art. 14, quer porque eles, neste caso, não são conciliáveis com situações de validade jurídica dos atos praticados sem propósito negocial ou dos negócios jurídicos indiretos, ou seja, quando estes atos não envolvam dolo, fraude ou simulação, quer porque, se esses elementos obrigatoriamente acarretarem a desconsideração do próprio ato válido, não se estará tributando o ato real e os seus reais efeitos, mas, sim, ato e efeitos inexistentes.

Acresce que, em tais circunstâncias, também não se estaria

desconsiderando atos dissimulatórios da realidade, mas a própria realidade, o que seria frontalmente contrário ao parágrafo único do art. 116 do CTN, acrescentado pela Lei Complementar n. 104, ou seja, contrário ao próprio fundamento de validade da norma da medida provisória.

A este propósito, quero acrescentar mais uma observação que

demonstra a absoluta invalidade dos indigitados parágrafos do art. 14, se interpretados de forma diferente da que acima expus.

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Trata-se de que, se os fatos aludidos nesses parágrafos não forem simples indicadores de dissimulação, passíveis de ampla defesa, do contraditório e de decisão em contrário, mas forem mandatoriamente deformadores do fato real válido, a medida provisória estará redefinindo o fato gerador ou a sua base de cálculo, que deixará de ser o fato estrutural ou funcional efetivo e validamente existente, ou o seu efeito, para ser um ato efetivamente não praticado ou os efeitos que existiriam se este outro ato tivesse sido efetivamente praticado.

Ora, uma tal redefinição estaria fora da competência da lei ordinária,

não apenas porque poderia restar violada diretamente a competência tributária constitucional do poder cuja autoridade fiscal tivesse declarado a desconsideração 28, como também porque a definição do fato gerador dos impostos discriminados e das respectivas bases de cálculo é matéria reservada à lei complementar (Constituição, art. 146, inciso III, letra “a”). Sem falar na possível e provável contrariedade com os dispositivos do próprio CTN que definem os fatos geradores e as bases de cálculo dos impostos, ou ainda, tendo em vista que a Medida Provisória n. 66 somente atinge tributos federais, sem falar que Estados, Distrito Federal ou Municípios podem vir a ter leis diferentes e, pela aplicação das mesmas, haver conflito com a medida provisória, uma validando atos e outras não, uma puxando para si a competência tributária de outro poder, e outra também querendo a mesma competência.

Destarte, no fundo, o que se verifica é que o mentor da alteração

legislativa não fez incluir na Lei Complementar n. 104 o mínimo que teria que existir nesse patamar hierárquico da legislação para poder atingir o seu desiderato, se é que pudesse fazê-lo sem reforma constitucional. 29

28 Embora a Medida Provisória n. 66 valha apenas no âmbito federal, a desconsideração poderia trazer para dentro da competência federal atos ou efeitos de atos que se encontram no âmbito de competência dos Estados, do Distrito Federal ou Municípios. 29 Aliás, esta foi realmente a prática utilizada, como se vê com o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35, de 24.8.2001, que também pretende ter fundamento de validade na Lei Complementar n. 104, mas que extravasou de muito o que esta dispõe (a este respeito, vide meu trabalho publicado em “Grandes Questões Atuais do Direito Tributário – 6º Volume”, Editora Dialética, 2002, p. 391 e seg.). Assim, passaram pelo parlamento alterações menos complicadas de ser aprovadas em ampla discussão sobre projeto de lei complementar, deixando para o ambiente restrito dos gabinetes do Poder

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Da minha parte, penso que a interpretação acima dada para os

parágrafos do art. 14, que os coloca em conformidade com o ordenamento jurídico, inclusive com a Lei Complementar n. 104 (interpretação, contudo, que somente é possível se alterado o parágrafo único do art. 13), encontra fundamento no próprio art. 14, por mais paradoxal que isto possa parecer à primeira vista.

Realmente, como já apontado antes, o “caput” do art. 14 não define

nem redefine fato gerador ou base de cálculo. Muito pelo contrário, ele se mantém atento e fiel no respeito aos verdadeiros aspectos do fato gerador e à real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, o que significa buscar esses dados na realidade fenomênica para subsumi-los à respectiva norma de incidência. Nas palavras do art. 114 do CTN, tal atividade pressupõe encontrar e tributar aquela situação prevista em lei como necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária.

Ora, como já vimos anteriormente, os parágrafos de um artigo de lei

representam normas subordinadas ao “caput” desse artigo, meramente complementares da norma deste ou exceções a ela.

No caso, os parágrafos do art. 14 da Medida Provisória n. 66 não

representam exceção alguma ao que dispõe o seu “caput”, mesmo porque este deve ser interpretado em consonância com a totalidade do diploma legal e do ordenamento jurídico, o que significa correlacioná-lo com o “caput” do art. 13 da própria medida provisória e com a Lei Complementar n. 104, os quais não provêm razões para os referidos parágrafos poderem ser interpretados como exceção ao “caput” do seu artigo.

Executivo as alterações mais complicadas de serem aprovadas em ampla discussão, mas também, pelas circunstâncias e pelo momento, mais difíceis de serem rejeitadas no processo de aprovação das medidas provisórias.

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Sendo assim, os referidos parágrafos somente podem ser entendidos como complementos da norma que busca a verdade material e a norma jurídica que se lhe aplica. 30

Portanto, a única inteligência razoável para eles é a de que não

impõem uma redefinição de fato gerador ou de base de cálculo em relação à norma aplicável à situação realmente acontecida, ou de aplicação de um norma diferente desta e que seria aplicável a uma outra situação diferente da realmente acontecida, ou ainda a desconsideração do ato realmente acontecido para ser tributado outro ato não acontecido.

Também não se trata de caso de analogia, mas, sim, de aplicar

exatamente a norma prevista em lei para a situação concretamente ocorrida, no que os elementos dos parágrafos do art. 14 funcionam apenas como indicadores (indícios ou presunções) da possível existência de dissimulação, admitindo prova em contrária e ampla defesa também quanto aos aspectos jurídicos envolvidos.

Em suma, o parágrafo único do art. 13 é o ponto nodal a ser

considerado para se interpretar as regras da medida provisória e para se aquilatar a sua validade ou não.

Se mantido integralmente o parágrafo único, e se considerado

válido, estaremos realmente frente a uma norma antielisão, abrindo largo espaço para a validade dos parágrafos do art. 14 na sua interpretação mais rígida pela qual a inexistência de propósito negocial ou a existência de negócio jurídico indireto acarreta, por si só e sem mais nem menos, evasão e não elisão, com pouquíssimo espaço para defesa e julgamento.

Outra consequência é que qualquer procedimento considerado pela

fiscalização como elisivo, mesmo através de atos juridicamente válidos, será declarado evasão fiscal, ou seja, os contrários – lícito e ilícito - serão equiparados, pois não mais haverá economia fiscal lícita, sendo todas ilícitas.

30 Não se incorra no engano de dizer que a verdade material é o substrato econômico do ato, independente da sua estrutura jurídica, pois, ante o que já foi dito, verdade material é o fato exatamente como descrito na hipótese de incidência legal.

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Entretanto, considerando que, para tal hipótese, ter-se-ia que

ignorar o real sentido do parágrafo único do art. 116 do CTN, isto é, dizer que dissimulação não é simulação, e considerando que tal afirmação seria afrontosa ao sentido léxico e jurídico da palavra, e ainda considerando todos os aspectos constitucionais e do CTN expostos no capítulo II deste estudo, tal solução a meu ver somente poderá subsistir se os tribunais forem extraordinariamente lenientes na apreciação do assunto.

Admitindo-se, até por coerência, que isto não venha a ocorrer, ou,

por outras palavras, fazendo-se uma análise conscienciosa e uma interpretação correta das disposições da medida provisória à luz da lei complementar e do ordenamento jurídico, a conclusão que se chega é que o parágrafo único do art. 13 requer alteração, ou, se esta não for introduzida pelo legislador, requer declaração de sua invalidade quanto à palavra “simulação”. 31

Por qualquer destes caminhos o resultado será o mesmo, ou seja,

ficará aberta a porta para uma interpretação das demais disposições dos art. 13 e 14 que seja conforme à Constituição, à Lei Complementar n. 104 e a todo o ordenamento jurídico, inclusive ao CTN em sua integralidade.

Determinada a natureza funcional dos indicadores aludidos nos

parágrafos do art. 14, resta analisar, ainda que rapidamente, como cada um deles deve ser compreendido.

O indicador falta de propósito negocial precisa ser analisado com

cuidado e sob três perspectivas. Uma delas corresponde à inexistência de negócio, ou seja, não há

qualquer negócio e apenas se simula existir um para que produza algum efeito de economia tributária. Esta visão somente é possível se for afastado o parágrafo único do art. 13, porque aparentar haver negócio onde não existe negócio é simulação.

31 Note-se que tal discussão pode travar-se em nível constitucional e infraconstitucional, portanto, alcançando não apenas o Superior Tribunal de Justiça mas também o Supremo Tribunal Federal.

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A segunda visão é a de que corresponde a haver efetivamente um

negócio, mas sem propósito, o que representa uma contradição em termos, pois se há um negócio evidentemente há um propósito para o mesmo. Logo, esta visão não se sustenta.

A terceira visão é a de que corresponde a uma situação não tão

extremada quanto a anterior, e que sob certo aspecto também não corresponde à primeira, mas dela se aproxima. Nesta visão, a falta de propósito negocial significa que há um negócio efetivamente, mas que foi adotada alguma providência ou estruturação que é dispensável para a concretização do mesmo, e que nele é inserida apenas com vistas a produzir algum benefício fiscal.

Esta terceira visão é a que se coaduna com a própria definição de

falta de propósito negocial dada pelo parágrafo 2º, isto é, ela se caracteriza pela opção por uma forma mais complexa ou mais onerosa para os envolvidos, dentre duas ou mais formas para a prática do negócio.

Ou seja, para a Medida Provisória n. 66/02, a falta de propósito

negocial pressupõe haver um ato ou negócio efetivo, mas praticado por caminho mais complexo ou mais oneroso porque propicia não apenas o resultado negocial pretendido, que poderia ser obtido de maneira mais simples e menos custosa, mas, também, propicia a obtenção da economia fiscal.

Claro está que esta última visão importa em reconhecer caráter de

norma antielisão e pressupõe que tal norma seja constitucionalmente válida. Mas ela também se adapta à norma antievasão, caso afastado do parágrafo único do art. 13 a palavra “simulação” e esse indicador seja adotado como parâmetro que admite prova em contrário.

Ainda mais três observações têm que ser feitas sobre o parágrafo 2º

do art. 14, sendo a primeira que a opção pelo caminho mais oneroso ou mais complexo não é, de per si, suficiente para a desconsideração do ato ao qual não se atribua propósito negocial, porque o próprio parágrafo a coloca como elemento “indicativo”, o que significa poder haver um ato extremamente complexo e custoso sem que tal circunstância seja suficiente para se dizer que não há propósito negocial.

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Note-se que este detalhe presta-se a confirmar a natureza de

simples indício ou presunção relativa. A segunda observação é que a falta de propósito negocial pode ser

provada por outras razões que não a complexidade ou o custo do ato, exatamente porque tais elementos são meramente indicativos e não participantes necessários deste indicador de desconsideração do ato. Assim, um ato simples e barato também pode ser desprovido de propósito negocial.

A terceira observação é que o parágrafo 2º usa o termo “forma” para

aludir à complexidade ou custo do ato, enquanto que o parágrafo 3º alude a abuso de forma jurídica. Não obstante esta distinção de redação, e não obstante a crítica já apresentada quanto à impropriedade da expressão “abuso de forma”, porque forma é o meio de instrumentalização do ato jurídico, e não a sua essência ou estrutura, parece que a medida provisória adotou a palavra no sentido de estruturação jurídica mais complexa ou mais onerosa.

Quanto ao indicador abuso de forma, efetivamente está aludindo a

uma estrutura jurídica, o que fica claríssimo no parágrafo 3º, quando diz que se considera “abuso de forma jurídica” a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado.

Esse dispositivo comporta algumas observações. Assim, veja-se que, ao contrário do parágrafo anterior, o parágrafo

3º não coloca o ato ou negócio jurídico indireto como mero indicativo de abuso de forma, mas como a própria essência e substância desse abuso.

Portanto, para a Medida Provisória n. 66 abuso de forma é tão-

somente a prática de negócio jurídico indireto, e não qualquer outra prática, no que, portanto, a medida provisória distancia-se do conceito de abuso de forma do direito comparado, ou ao menos reduz o seu alcance a esta circunstância.

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Além disso, o parágrafo 3º alude expressamente a que o negócio indireto é o que dissimula um outro negócio, produzindo o mesmo resultado econômico deste.

Portanto, apesar do possível equívoco de pressupor que o negócio

jurídico indireto necessariamente seja dissimulação de outro, esse parágrafo também se choca com o parágrafo único do art. 13, a exigir, para o bem da consistência sistemática da lei, a alteração ou o afastamento deste.

Note-se que, com o afastamento ou a alteração do parágrafo único

do art. 13, passa a ser possível considerar o negócio jurídico indireto como simples indício ou presunção relativa, eliminando mais esta contradição em relação ao indicador do parágrafo 2º e também eliminando todas as consequências juridicamente impossíveis derivadas da tributação obrigatória de ato que existiria e seria direto se tivesse sido praticado, mas que efetivamente não o foi.

IV - CONCLUSÕES Em face de todo o exposto, resta a seguinte indagação: como fica o

planejamento tributário em geral, e em particular quanto ao imposto de renda, após a Medida Provisória n. 66/02?

A resposta depende de um pressuposto: a alteração ou declaração

de invalidade, ou a manutenção declarada válida, do parágrafo único do art. 13, quanto à palavra “simulação”.

No estado em que está esse parágrafo, ou seja, tal como consta da

redação original da medida provisória, para ser considerado válido terá que ser admitido que “dissimulação” não é “simulação”. A decisão no sentido de distinguir estes dois termos terá necessariamente que ser tomada para que haja compatibilização entre a medida provisória, tal como hoje redigida, e a Lei Complementar n. 104, além de ser necessária para compatibilizar o parágrafo único do art. 13 com a própria cabeça desse artigo e com a cabeça do art. 14.

Reafirmo que me parece absolutamente inviável, e mesmo absurda,

tal possibilidade, porque ela pressupõe o completo abandono da sentido léxico e

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do sentido técnico-jurídico do verbo “dissimular”, ao passo que a doutrina e a jurisprudência já fixaram pacificamente que os termos técnicos utilizados pela lei devem ser entendidos com o sentido estrito e apropriado que possuem no campo de conhecimento em que são empregados. 32

Ademais, esta exegese da lei hoje é norma legal obrigatória, prevista

no art. 11, inciso I, letra “a”, da Lei Complementar n. 95, onde se lê que, para “obtenção de clareza”, a lei deve “usar as palavras e expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando”.

Logo, “dissimular” é verbo que somente pode ser entendido no

sentido comum que tem na língua portuguesa, e também no sentido técnico-jurídico adotado na disciplina dos atos jurídicos. Qualquer outro significado dependeria de a Lei Complementar n. 104 ter definido o alcance da palavra para os respectivos fins, o que, entretanto, não ocorreu.

Quer dizer, a lei complementar poderia ter previsto a

desconsideração de atos jurídicos em virtude da ocorrência de várias circunstâncias que mencionasse taxativamente, ou em virtude de dissimulação, acrescentando que por dissimulação se deveria entender tais e tais fatos ou circunstâncias. Todavia, ao se referir singelamente à dissimulação, a lei complementar restringiu a sua norma ao que esta palavra significa na língua portuguesa e no direito brasileiro.

32 Neste sentido, Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 140. Outrossim, sentenciou o Supremo Tribunal Federal, Pleno, no recurso extraordinário n. 166772-9-RS, decidido em 12.5.1994: “CONSTITUIÇÃO - ALCANCE POLÍTICO - SENTIDO DOS VOCÁBULOS - INTERPRETAÇÃO. O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos acadêmicos, quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios” (“Repertório IOB de Jurisprudência” n. 11/94, p. 213). Essa decisão vem sendo repetida em inúmeros outros precedentes do Pretório Excelso, como no recurso extraordinário n. 153777-9-MG, julgado em 30.6.1994, da 2a Turma (DJU-I de 2.12.1994).

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Não bastasse isso, o art. 167 do novo Código Civil – prescrevendo que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma” - exprime além de qualquer dúvida que o verbo “dissimular” refere-se ao ato verdadeiro que se escondeu (foi dissimulado) por simulação.

Portanto, neste particular é preciso não olvidar que, para se

compatibilizar a Medida Provisória n. 66 com a Lei Complementar n. 104, seria necessário algo até mais abrangente do que o simples alargamento do sentido do termo “dissimular”, pois seria necessário negar o seu sentido léxico e o seu técnico-jurídico, para dizer que ele não significa simular.

Com efeito, na interpretação da palavra “dissimular” há três

posturas possíveis, com as seguintes consequências: - concluir que ela significa o que efetivamente significa, ou seja, ato

aparente e não verdadeiro que encobre outro ato verdadeiro, isto é, simulação relativa: neste caso, a Medida Provisória n. 66, tal como hoje se apresenta com o parágrafo único do seu art. 13, está em franca colidência com a Lei Complementar n. 104;

- concluir que ela significa simulação relativa, mas também algo

mais, tendo elastério suficiente para alcançar outras situações que necessariamente não sejam simulação, tais como as arroladas no parágrafo 1º do art. 14 da medida provisória (falta de propósito negocial e negócio indireto): neste caso, a Medida Provisória n. 66 ainda está colidindo com a Lei Complementar n. 104, porque no parágrafo único do seu art. 13 exclui do seu âmbito algo - simulação - que deveria incluir;

- concluir que “dissimular” refere-se apenas à situações que não

sejam de simulação, do que seriam exemplo as referidas no parágrafo 1º do art. 14: neste caso – e somente neste -, haveria compatibilidade entre a Medida Provisória n. 66 e a Lei Complementar n. 104.

Daí a afirmação da total impossibilidade de manter o parágrafo

único do art. 13, na sua redação original, porque exige que “dissimular” seja entendida não apenas como palavra que significa algo muito mais abrangente do

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que simulação relativa, mas também que não englobe qualquer tipo de simulação. Isto é, “dissimular” seria tudo menos “simular”!

É uma tarefa muito árdua, que a mim parece impossível, justificar

gramatical e juridicamente, com fundamentos lógicos e sistêmicos, tal conclusão, a única que poderia manter intacta a medida provisória.

Há mais. Se o desafio for superado e for tolerada para a palavra

“dissimular” outra significação que não a de simulação - repito, algo não apenas mais abrangente do que simulação, mas excludente de simulação -, a consequência será a de que atos jurídicos válidos e seus efeitos jurídicos válidos deixarão de produzir efeitos fiscais, ou melhor, deixarão de produzir elisão fiscal, gerando na prática situações de constrangimento do direito ao livre uso e à proteção da propriedade, além da quebra do princípio da estrita legalidade, com a sua exigência da tipicidade. Em última análise, haverá colidência com o sistema tributário constitucional.

Vale dizer: para a decisão de validade do parágrafo único do art. 13

da Medida Provisória n. 66 haveria que se superar dois conflitos, um de natureza infra-constitucional - a contrariedade entre a medida provisória e a Lei Complementar n. 104 -, e outro de natureza constitucional - a contrariedade entre a medida provisória, ainda que compatibilizada com a Lei Complementar n. 104, e a Constituição Federal -, sendo que, em ambos os conflitos, haveria necessidade de superar outros conflitos com outras normas expressas no CTN, algumas que são explicitadoras de princípios constitucionais (por exemplo, art. 108, 109, 110 e 116) e outras que são decorrentes de normas constitucionais (por exemplo, as que definem os fatos geradores e as bases de cálculo dos impostos).

Se assim fosse - e admitamos que assim pudesse ser por mera

hipótese -, o resultado seria o seguinte: - atos viciados por dolo, fraude ou simulação produziriam evasão

fiscal, mas seriam atacados pelo processo comum, sem passar pelos procedimentos de desconsideração da Medida Provisória n. 66;

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- atos não viciados por dolo, fraude ou simulação, ainda que juridicamente válidos por também não violarem qualquer outra disposição legal, poderiam ser desconsiderados para efeitos tributários, representando evasão fiscal e não elisão fiscal, simplesmente por serem atos sem propósito negocial ou atos ou negócios jurídicos indiretos; outras ocorrências elisivas ao critério dos auditores fiscais, além destas duas hipóteses, também poderiam ser motivadoras de igual tratamento;

- em quaisquer dos casos do item anterior, os tributos que seriam

exigidos não seriam aqueles previstos para os atos realmente praticados ou os efeitos deles decorrentes, mas os legalmente estabelecidos para outros atos cuja especificação ou determinação é impossível de ser prevista em tese ou em caráter geral, pois dependeria das circunstâncias de cada caso e do enquadramento que os auditores fiscais lhes dessem;

- ainda nestes casos, a autoridade fiscal competente para declarar a

desconsideração dos atos e os órgãos de julgamento administrativo ficariam adstritos a confirmar ou infirmar a inexistência de propósito negocial ou a existência de ato ou negócio jurídico indireto, sendo que, quanto à outras ocorrências que não estas duas, teriam a liberdade para decidir se seriam ou não suficientes e hábeis para a decretação da desconsideração dos atos, embora a medida provisória não lhes fornecesse critérios objetivos para concordar com o auditor fiscal ou dele discordar.

Ao contrário, se a palavra “simulação” for retirada no parágrafo

único do art. 13, como deve ser por alteração em processo legislativo ou por declaração de invalidade jurídica, o resultado será o seguinte:

- os atos viciados por dolo, fraude ou outra ilegalidade produzirão

evasão fiscal, mas serão atacados pelo processo comum, sem passar pelos procedimentos de desconsideração da Medida Provisória n. 66;

- os atos viciados por simulação – que, por sua correlação com a

hipótese fática tipificada na lei, sempre será dissimulação desta, isto é, simulação relativa - produzirão evasão fiscal e serão atacados pelos procedimentos de desconsideração previstos na Medida Provisória n. 66;

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- os atos praticados sem propósito negocial ou atos ou negócios jurídicos indiretos poderão produzir elisão fiscal, desde que não dissimulem a verdadeira ocorrência do fato gerador ou os reais elementos constitutivos da obrigação tributária, motivo pelo qual terão que passar pelos procedimentos de desconsideração previstos na medida provisória para ficar comprovado que, a despeito de uma destas duas circunstâncias, eles não representam aquela dissimulação;

- outras ocorrências ao critério dos auditores fiscais, além destas

duas referidas no item precedente, também poderão ser motivadoras de igual tratamento;

- em todas estas situações haverá ampla defesa e contraditório

quanto aos fatos e ao direito, com decisão segundo o livre convencimento da autoridade fiscal detentora da competência para desconsiderar os atos dissimulatórios e dos órgãos administrativos de julgamento, naturalmente sem exclusão do direito da pessoa recorrer ao Poder Judiciário.

No tocante ao imposto de renda, cujo fato gerador é o acréscimo

patrimonial formado pela universalidade dos fatores positivos e negativos que afetam o patrimônio do contribuinte durante o período-base de apuração da respectiva obrigação tributária, as considerações acima devem ser aplicadas a todos os atos jurídicos que produzam créditos ou débitos à respectiva base de cálculo.

São Paulo, 28 de outubro de 2002.