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AS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E A RESERVA LEGAL COMO INSTRUMENTOS DE CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SÓCIO- AMBIENTAL DA PROPRIEDADE THE AREAS OF PERMANENT PRESERVATION AND THE LEGAL RESERVATION AS INSTRUMENTS OF MATERIALIZATION OF THE PARTNER-ENVIRONMENTAL FUNCTION OF THE PROPERTY Alessandro Marcos Kobayashi RESUMO A proteção ambiental, considerada de per se não representa preocupação recente nos ordenamentos jurídicos. No início a proteção ambiental era realizada apenas de forma indireta, tendo em vista a proteção de determinados recursos naturais ou até mesmo a saúde pública. Depois, ordenamentos de alguns países, inclusive o Brasil, passaram a prever a proteção ambiental de forma específica, mas ainda no âmbito da legislação ordinária. Foi somente com a consagração constitucional da proteção ambiental que ela tornou-se mais efetiva. Dentre nós, com o advento da Constituição Federal de 1988, a proteção ao meio ambiente ganhou capítulo próprio no Texto Constitucional, sendo considerada, inclusive, como um dos princípios da Ordem Econômica e Financeira. O cotejo entre os dispositivos constitucionais que tratam do meio ambiente e o direito de propriedade revela que houve uma alteração do conteúdo deste último, uma vez que o direito de propriedade somente é reconhecido pela ordem jurídica quando cumprir sua função social, onde está inserida também a função ambiental da propriedade. Os limites ao direito de propriedade, assim, vêm delimitados inicialmente na Constituição, cabendo à legislação ordinária sua complementação, sendo possível citar o Código Florestal que, embora tenha sido editado antes da vigência da atual Constituição está em plena consonância com os princípios e valores por ela elencados. Desta forma, as restrições ambientais previstas por este estatuto, em especial, a necessidade de implementação de áreas de preservação permanente e de reserva legal, não afetam em nada o direito de propriedade de seu titular, uma vez que sua implementação faz parte do cumprimento da função social da propriedade, não havendo que se falar em qualquer direito de indenização para o proprietário. PALAVRAS-CHAVES: FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL. INDENIZAÇÃO. RESTRIÇÕES AMBIENTAIS. ABSTRACT The environmental protection, considered of per recent concern is not represented in the juridical laws. In the beginning the environmental protection was just accomplished in an indirect way, tends in view the protection certain natural resources or even the public health. Then, the law of some countries, besides Brazil, they started to foresee the 2196

AS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E A RESERVA … · Porém, com o desenvolvimento do comércio, a conquista de novas terras durante o período das grandes navegações e, principalmente,

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AS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E A RESERVA LEGAL COMO INSTRUMENTOS DE CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SÓCIO-

AMBIENTAL DA PROPRIEDADE

THE AREAS OF PERMANENT PRESERVATION AND THE LEGAL RESERVATION AS INSTRUMENTS OF MATERIALIZATION OF THE

PARTNER-ENVIRONMENTAL FUNCTION OF THE PROPERTY

Alessandro Marcos Kobayashi

RESUMO

A proteção ambiental, considerada de per se não representa preocupação recente nos ordenamentos jurídicos. No início a proteção ambiental era realizada apenas de forma indireta, tendo em vista a proteção de determinados recursos naturais ou até mesmo a saúde pública. Depois, ordenamentos de alguns países, inclusive o Brasil, passaram a prever a proteção ambiental de forma específica, mas ainda no âmbito da legislação ordinária. Foi somente com a consagração constitucional da proteção ambiental que ela tornou-se mais efetiva. Dentre nós, com o advento da Constituição Federal de 1988, a proteção ao meio ambiente ganhou capítulo próprio no Texto Constitucional, sendo considerada, inclusive, como um dos princípios da Ordem Econômica e Financeira. O cotejo entre os dispositivos constitucionais que tratam do meio ambiente e o direito de propriedade revela que houve uma alteração do conteúdo deste último, uma vez que o direito de propriedade somente é reconhecido pela ordem jurídica quando cumprir sua função social, onde está inserida também a função ambiental da propriedade. Os limites ao direito de propriedade, assim, vêm delimitados inicialmente na Constituição, cabendo à legislação ordinária sua complementação, sendo possível citar o Código Florestal que, embora tenha sido editado antes da vigência da atual Constituição está em plena consonância com os princípios e valores por ela elencados. Desta forma, as restrições ambientais previstas por este estatuto, em especial, a necessidade de implementação de áreas de preservação permanente e de reserva legal, não afetam em nada o direito de propriedade de seu titular, uma vez que sua implementação faz parte do cumprimento da função social da propriedade, não havendo que se falar em qualquer direito de indenização para o proprietário.

PALAVRAS-CHAVES: FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL. INDENIZAÇÃO. RESTRIÇÕES AMBIENTAIS.

ABSTRACT

The environmental protection, considered of per recent concern is not represented in the juridical laws. In the beginning the environmental protection was just accomplished in an indirect way, tends in view the protection certain natural resources or even the public health. Then, the law of some countries, besides Brazil, they started to foresee the

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environmental protection in a specific way, but still in the extent of the ordinary legislation. It was only with the constitutional consecration of the environmental protection that she became more it executes. Among us, with the coming of the Federal Constitution of 1988, the protection to the environment won own chapter in the Constitutional Text, being considered, besides, as one of the beginnings of the Economical and Financial Order. The comparison among the constitutional devices that you/they treat of the environment and the property right reveals that there was an alteration of the content of this last one, once the property right is only recognized by the juridical order when it accomplishes his/her social function, where it is also inserted the environmental function of the property. The limits to the property right, like this, come delimited initially in the Constitution, falling to the ordinary legislation his/her complementation, being possible to mention the Forest Code that, although it has been edited before the validity of the current Constitution is in the middle of the consonance with her beginnings and values. This way, the environmental restrictions foreseen by this statute, especially, the need of implementation of areas of permanent preservation and of legal reservation, they don't affect in anything the right of his/her title-holder's property, once his/her implementation is part of the execution of the social function of the property, not having to speak in any compensation right for the proprietor.

KEYWORDS: PARTNER-ENVIRONMENTAL FUNCTION. COMPENSATION. ENVIRONMENTAL RESTRICTIONS.

INTRODUÇÃO

O homem, desde o momento em que deixou de ser gregário e passou a se fixar em determinadas localidades, começou a explorar e a modificar o meio ambiente, seja em função da derrubada de vegetação nativa para a construção de vilarejos, aldeias ou vilas, seja para extração de recursos minerais e vegetais para sua subsistência.

Entretanto, devido à pequena população mundial do início dos tempos, tal ocupação não afetava de modo significativo o meio ambiente, pois ainda existiam muitas áreas intocadas que, de alguma forma, asseguravam o equilíbrio ambiental do planeta.

Porém, com o desenvolvimento do comércio, a conquista de novas terras durante o período das grandes navegações e, principalmente, após o advento da Revolução Industrial, este cenário começou a se alterar, pois o incremento da indústria fez com que a poluição aumentasse de modo substancial, bem como a extração dos recursos minerais e vegetais, além da necessidade do aumento da produção de alimentos, provocando o desaparecimento das florestas para a implementação da agricultura e da pecuária em larga escala.

Nesse período, predominava a concepção de que os recursos naturais poderiam ser utilizados à exaustão, não havendo nenhuma preocupação com a tutela ambiental, pois se defendia a idéia de que era necessário crescer a qualquer custo e a pessoa individualmente considerada era o centro de todas as preocupações.

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Contudo, com o advento das concepções sociais, o aumento da população mundial e suas consequentes demandas, aliado à constatação de que as interferências humanas sobre o meio ambiente estavam causando desequilíbrios em todo o planeta, citando como exemplo, os fenômenos “El niño” e “El niña”, os ordenamentos jurídicos de diversos países passaram a tratar da tutela ambiental de modo específico, reconhecendo sua importância para a manutenção da vida na terra.

Levando-se em consideração a importância da tutela ambiental em nossos dias, o presente estudo tem por escopo a análise de seus reflexos em nosso país, principalmente após o advento da Constituição Federal de 1988 e sua influência na moderna concepção do direito de propriedade, haja vista a necessidade de que esta cumpra sua função social e ambiental, além da análise dos instrumentos colocados pelo nosso ordenamento para a consecução deste mister, destacadamente, as áreas de preservação permanente e a reserva legal.

O estudo iniciar-se-á com a apresentação da evolução histórica da tutela ambiental, demonstrando-se que esta tutela ganhou mais força a partir de sua inserção no ordenamento constitucional de diversos países, traçando-se um panorama exemplificativo de algumas constituições e culminando com a Constituição Federal de 1988, que prescreveu de forma contundente a tutela ambiental, provocando alterações na concepção tradicional do direito de propriedade.

Ao analisarem-se os dispositivos constitucionais que tratam do meio ambiente em cotejo com aqueles que tratam do direito de propriedade, constatar-se-á que a função social e um de seus aspectos, a função ambiental da propriedade, alterou a própria estrutura deste direito, que somente passa ser reconhecida quando cumprir esta função sócio-ambiental.

O cumprimento da função sócio-ambiental justifica, assim, a possibilidade do estabelecimento de limites ao direito de propriedade, os quais vêm prescritos inicialmente na própria Constituição Federal, sendo complementada pela legislação ordinária.

Nesse ponto destacar-se-á o Código Florestal, legislação que, embora anterior à Constituição Federal, encontra-se em perfeita sintonia com os comandos constitucionais. Referido estatuto prevê, dentre os instrumentos de proteção ambiental, a possibilidade de serem impostas aos proprietários de imóveis determinadas restrições ambientais, destacando-se neste estudo, as áreas de preservação permanente e as reservas legais.

Será demonstrado que as mencionadas restrições em nada alteram o direito de propriedade do titular do domínio, uma vez que representam apenas uma das facetas para o cumprimento da função social da propriedade, que faz parte da própria estrutura desse direito, ou seja, a Constituição somente reconhece o direito de propriedade quando ela cumpre sua função sócio-ambiental.

Assim, como não representam intervenções indevidas do direito de propriedade, não constituem espécie de desapropriação, não havendo que se falar em direito de indenização pela implementação dessas restrições na propriedade e qualquer

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entendimento nesse sentido seria uma subversão do instituto da função social, levando a não efetividade da proteção ambiental consagrada na Constituição Federal.

1 EVOLUÇÃO DA HISTÓRICA DA TUTELA AMBIENTAL

Apesar de sua inquestionável importância para o desenvolvimento e existência da humanidade, a preocupação com a proteção ambiental, considerada de per se, é algo recente na história nacional. Analisando-se, em apertada síntese, sua evolução, é possível distinguir três momentos básicos porque passou a tutela ambiental em nosso país: a fase da exploração desregrada ou do laissez-faire ambiental, a fase fragmentária e a fase holística. [1]

Durante a primeira fase, iniciada desde o descobrimento do Brasil até aproximadamente a década de 60 do século XX, ou seja, desde o período colonial, passando pelo Império e pela República, não existiam normas tratando especificamente da questão ambiental, ressalvando-se algumas legislações esparsas, que visavam assegurar a sobrevivência de alguns recursos naturais preciosos ou resguardar a saúde.[2]

Nesta fase, que tinha na omissão legislativa sua principal característica, “[...] a conquista de novas fronteiras (agrícolas, pecuárias e minerais), era tudo o que importava na relação homem-natureza”[3] e os eventuais conflitos de cunho ambiental eram resolvidos com fundamento nos direitos de vizinhança, haja vista o predomínio da concepção privatística do direito vigente à época.

“Por muito tempo predominou a desproteção total, de sorte que norma alguma coibia a devastação das florestas, o esgotamento das terras, pela ameaça do desequilíbrio ecológico. A concepção privatista do direito de propriedade constituía forte barreira à atuação do Poder Público na proteção do meio ambiente, que necessariamente haveria e haverá de importar em limitar aquele direito e a iniciativa privada”.[4]

Na segunda fase, denominada de fragmentária, havia uma preocupação do legislador com a questão do meio ambiente, porém não o considerava um objeto de proteção por si mesmo, mas em decorrência da proteção de determinadas categorias de recursos naturais, impondo controles legais às atividades exploratórias.[5]

Traço marcante desta fase, no plano ético, consubstanciava-se no fato de que a proteção ambiental se fundamentava no utilitarismo, ou seja, devia ser tutelado apenas aquilo que possuía interesse econômico. No plano formal, caracterizava-se pela fragmentação do objeto tutelado e, conseqüentemente, pela edição de diversas leis para tratar desses temas, ou seja, os diplomas legais tratavam circunstancialmente da tutela do meio ambiente, não se considerando a relação de interdependência em matéria ambiental.[6]

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A terceira fase, denominada de holística, tem seu início com a edição da Lei n. 9.938/81, que estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente, onde “[...] o meio ambiente passa a ser protegido como um sistema ecológico integral (resguardam-se as partes a partir do todo) e com autonomia valorativa (é, em si mesmo, um bem jurídico)”.[7]

O próprio significado semântico da palavra holístico, já demonstra o seu alcance, pois, de acordo com os léxicos, significa: “[...] que dá preferência ao todo ou a um sistema completo e, não à análise, à separação das respectivas partes componentes.”[8]

Assim, o legislador ao invés de procurar tutelar o meio ambiente de forma dispersa, passa a estabelecer um microssistema normativo para sua tutela, composto de princípios, regras, objetivos e instrumentos que lhe são próprios, com a finalidade promover a efetiva tutela ambiental.

Entretanto, embora se reconheça a importância da evolução legislativa na proteção do meio ambiente e a desnecessidade de uma tutela por meio de norma superior, para sua efetivação no plano infraconstitucional, é forçoso reconhecer que ela ganha mais força, a partir do momento que a proteção ambiental passa a ser prevista nos textos constitucionais, impondo aos julgadores e uma revisão acerca do entendimento de institutos tradicionais do direito, dentre eles a propriedade.

2 PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE

Como alhures mencionado, a proteção ambiental ganhou relevo a partir do momento em que os ordenamentos jurídicos constitucionais, em épocas mais recentes, passaram a inseri-la em seus textos, revelando sua importância, não como simples aspecto de proteção de determinados recursos naturais ou minerais individualmente considerados, mas como objeto da proteção em si.

Assim, a título meramente enunciativo, mencionam-se textos constitucionais de alguns países que trataram da questão ambiental[9], iniciando-se com a Constituição da República Federal Alemã de 1949, que apresenta um pequeno sinal de preocupação com o combate às formas de degradação, estabelecendo as competências de seus entes federados para a matéria.

Prosseguindo, a Suíça em 1957, por meio de uma emenda constitucional, passa a tratar deliberadamente da proteção dos recursos ambientais. Porém, foi a Constituição da Bulgária em 1971 a primeira a trazer em seu texto, aspectos ambientalistas de forma específica, creditando-se, contudo, à Constituição Portuguesa de 1976, maior destaque na matéria, uma vez que, de forma moderna, apresentou uma correlação entre a questão ambiental e o direito à vida.

No Brasil, as constituições que antecederam a de 1988, não trataram especificamente da questão ambiental, fundamentando a proteção ao meio ambiente a partir da interpretação de preceitos outros como, por exemplo, a proteção da saúde.

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Assim, foi a Constituição de 1988 que tratou da matéria ambiental de forma específica em seu texto, ao inserir no Título da Ordem Social, um capítulo próprio sobre o meio ambiente, sendo considerada uma constituição eminentemente ambientalista, uma vez que a questão ambiental vem permeando todo seu Texto, razão pela qual se costuma dizer que traz referências expressas e implícitas sobre o meio ambiente. [10]

Com relação às implícitas, é possível constatar que, em diversos dispositivos da Constituição existem referências indiretas em relação à tutela ambiental[11], dispersas por todo corpo constitucional. Com relação a elas apenas se apresentará um elenco exemplificativo, mencionando-se o Art. 21 incisos XIX, XX, XXIII, XXIV e XXV; Art. 22, incisos IV, XII e XXVI; Art. 23 incisos II, III e IV; Art. 24, VII, Art. 20 dentre outros.

Dentre as referências expressas, é possível mencionar o Art. 5o LXXIII, que confere a possibilidade de propositura de ação popular para a defesa do meio ambiente; o Art. 20, II, estabelecendo ser bem da União as terras devolutas indispensáveis à defesa do meio ambiente; o Art. 23, que estabelece a competência comum dos entes federativos para proteção do meio ambiente; o Art. 24 VI, VII, VIII, que estabelece competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, para legislar, dentre outros, sobre florestas, proteção do meio ambiente, proteção ao patrimônio histórico e paisagístico e sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente.

É possível mencionar, ainda, o Art. 129, III, que prescreve dentre as funções do Ministério Público, a promoção de inquérito civil público e ação civil pública para a defesa do meio ambiente.

Dentro do Titulo VII, da Ordem Econômica e Financeira, o Art. 170, VI, estabelece que a proteção ao meio ambiente é um dos princípios da ordem econômica, preceito complementado pelo Art. 173, §5o e Art. 174, §3o. Ainda no mesmo título, tem-se o Art. 186, II, que prescreve dentre os requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural, a preservação do meio ambiente.

Na seqüência, o Art. 200, VIII, estabelece que o sistema único de saúde possui entre suas atribuições a colaboração na proteção do meio ambiente do trabalho. O Art. 216, V, refere-se aos conjuntos urbanos e sítios arqueológicos, como pertencentes ao patrimônio cultural brasileiro e o Art. 220, §3o, II, que estabelece competir à lei federal estabelecer os meios legais para a proteção contra propaganda que, dentre outros, possa ser nociva ao meio ambiente.

Por fim, menciona-se o Art. 225, o mais importante dentre os dispositivos mencionados, pois é a norma básica, de caráter fundamental, para a defesa do meio ambiente, prescrevendo que “[...] Todos todo têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a toda coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”[12]

Analisando a norma em epígrafe, denota-se que ela confere a todas as pessoas o dever, o ônus de defender e preservar o meio ambiente, uma vez que se trata de bem comum do povo, das presentes e futuras gerações.

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3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE

Conforme demonstrado, a evolução da tutela jurídica do meio ambiente, não obstante a existência de legislação infraconstitucional anterior versando sobre a matéria, foi definitivamente concretizada com o advento da Constituição Federal de 1988.

Cotejando-se os dispositivos constitucionais que conferem a tutela do meio ambiente, denota-se que tal conscientização somente foi possível devido à alteração do conteúdo do direito de propriedade que vigia até então, ou seja, a concepção clássica do direito de propriedade, inspirada nos ideais liberais dos séculos XVIII e XIX e sedimentada pelo Código Civil de 1916, não é mais compatível com os ditames constitucionais, que prescrevem que a propriedade deve cumprir sua função social.

Diante da preocupação de se garantir a proteção do meio ambiente, a propriedade é um dos institutos jurídicos que mais claramente é afetado pela legislação ambiental, estando seu conceito clássico em condição de sofrer alterações para que o exercício deste direito seja compatível com a proteção ambiental.[13]

Realmente, é preciso compreender o alcance dos dispositivos constitucionais que tratam da propriedade, para compreensão sua relação com a proteção do meio ambiente, ambos assegurados pelo Texto Constitucional.

Analisando-se os dispositivos constitucionais, vê-se que o Art. 5o, XXII, da Constituição, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, assegura o direito de propriedade, mas no inciso seguinte (XXIII), também prescreve que a propriedade deverá atender a sua função social.

Com base nestes dispositivos resta forçoso reconhecer que a propriedade privada sofre uma profunda alteração, não podendo mais ser considerada como um direito puramente individual, nem como instituição de Direito Privado, como conceituado outrora, havendo uma relativização do seu conceito e significado.

A Constituição garante do direito de propriedade, mas deste que ela cumpra sua função social, ou seja, a Constituição estabelece o regime jurídico da propriedade, cabendo à legislação infraconstitucional regular o seu exercício e definir o conteúdo e limites desse direito.[14]

Com o advento da Constituição de 1988 o direito de propriedade deixa de ter sua regulamentação exclusivamente privatista, baseada no Código Civil, e passar a ser um direito privado de interesse público, sendo as regras para seu exercício determinadas

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pelo Direito Público e pelo Direito Privado. Este processo de publicização do direito de propriedade é fundamental para a implementação da legislação referente à proteção do meio ambiente, que impõe limites ao exercício daquele direito.[15]

Assim, conclui-se que o respeito à função social da propriedade faz parte da própria estrutura desse direito, ou seja, constitui o fundamento do regime jurídico da propriedade que somente será assegurado quando ela cumprir sua função social. É possível dizer ainda que a função social “[...] introduziu, na esfera interna do direito de propriedade, um interesse que pode não coincidir com o do proprietário e que, em todo caso, é estranho ao mesmo [...]”[16] (grifos do autor).

A circunstância de a propriedade apresentar caráter dúplice, servindo ao individualismo e às necessidades sociais, impõe, pois, a necessidade de uma compatibilização de conteúdos os diversos mandamentos constitucionais. Enquanto direito individual (art. 5o, especificamente), o instituto da propriedade como categoria genérica, é garantido, e não pode ser suprimido da atual ordem constitucional. Contudo, seu conteúdo já vem parcialmente delimitado pela sua função social, assegurando-se a todos uma existência digna nos ditames da justiça social.[17] (grifos do autor)

A Constituição Federal, ao tratar da Ordem Econômica e Financeira, dá importante contribuição para o entendimento do conteúdo constitucional do direito de propriedade, ao estabelecer no Art. 170 que a ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social, estabelecendo entre seus princípios norteadores a propriedade privada (inciso II), a função social da propriedade (inciso III) e a defesa do meio ambiente (inciso VI).

Da maneira como se encontra inserida na Constituição, denota-se que o exercício econômico da propriedade não pode mais ser realizado tendo em vista apenas os interesses individuais de seu proprietário, mas deve buscar agregar algo para sociedade, ajustando-se à nova tábua de valores estabelecida pela Constituição Federal, na busca de uma existência mais digna, que nada mais é do que o respeito ao fundamento principal de respeito à dignidade da pessoa humana.

A compreensão deste dispositivo revela-se de suma importância para o entendimento do direito de propriedade nos dias atuais, uma vez que, somente será assegurado este direito quando cumprir sua função social, inserindo-se nesse campo a proteção do meio ambiente, podendo-se até mesmo dizer que, a Constituição estabelece a função social como gênero, fazendo parte de seu conteúdo a função ambiental da propriedade[18] que, pela sua importância, será objeto de tópico à parte.

4 A FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE

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A propriedade, como já mencionado, não desfruta mais do caráter absoluto de outrora, não podendo mais ser considerada como um instituto puramente de Direito Privado, haja vista que a Constituição operou uma publicização deste direito, impondo ao proprietário o dever de utilizá-la de acordo com a tábua axiológica por ela estabelecida, não podendo mais ser visualizada apenas como um direito subjetivo de seu proprietário, pois também impõe a ele o dever de utilizá-la de molde a satisfazer os interesses da coletividade e não apenas seus interesses individuais.

Nesse contexto, exsurge a necessidade da propriedade ser utilizada de modo racional e sustentável, pois, como já mencionado, a Constituição ao mesmo tempo em que confere o direito de propriedade, acrescenta que ela deve cumprir sua função social e, além disso, deve respeito ao meio ambiente, razão pela qual se entende que a propriedade deve cumprir uma função ambiental, que está inserida dentro do conceito de função social.

Corrobora tal entendimento o preceito contido no Art. 186 da Constituição, ao estabelecer que a propriedade rural cumpre sua função social quando, dentre outros requisitos concomitantes, realize a utilização adequada dos recursos naturais e preserve o meio ambiente. Referido dispositivo representa, assim “[...] a base constitucional de onde extraímos o reconhecimento da função socioambiental da propriedade”.[19]

Roxana Borges leciona no mesmo sentido:

A função ambiental da propriedade é, assim, uma atividade do proprietário e do Poder Público, exercida como poder-dever em favor da sociedade, titular do direito difuso ao meio ambiente. O Direito subjetivo, desta forma, deve conciliar-se com a função da propriedade. É a função administrativa que obriga o Estado a intervir em situações jurídicas individuais, e a função ambiental está aí incluída.[20]

A Constituição Federal possui Capítulo exclusivo para a tutela do meio ambiente, prescrevendo em seu Art. 225, ser direito de todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas que é um dever do Poder Público e da coletividade sua defesa e conservação. Este artigo corrobora que a propriedade não pode mais ser utilizada ao bel prazer de seu proprietário, devendo respeito ao meio ambiente e aos recursos naturais disponíveis.

A função seria esta relação de poder-dever, ou seja, a atribuição de um dever atrelado a um poder, necessário ao cumprimento do primeiro. Gera, portanto, direito e dever vinculados ao alcance de um determinado fim. A atribuição desse direito está vinculada ao cumprimento do dever que lhe é inerente.[21]

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Portanto, conclui-se que o Art. 225 realiza uma repartição de responsabilidades, não configurando função exclusiva do Estado proporcionar a preservação do meio ambiente, pois o cumprimento da função ambiental deve ser efetuado tanto pelos entes públicos como pelos entes privados.

Referido preceito opera, ainda, outra alteração no conteúdo do direito de propriedade, impondo ao proprietário, para o cumprimento da função ambiental da propriedade, não apenas a adoção de condutas negativas, mas também a adoção de condutas positivas.

Entende-se, assim, o direito de propriedade como sendo um poder-dever, ou poder-função, que não se constitui apenas por meras limitações, como os direitos de vizinhança, ou mero dever de abstenção do proprietário, mas implica, sobretudo deveres positivos do proprietário, em obrigações de fazer (que não é a mesma coisas do Direito Civil) que o proprietário deve à sociedade, para a satisfação de interesses difusos.[22]

Para a delimitação da abrangência da função ambiental da propriedade, entretanto, não basta apenas a análise dos dispositivos constitucionais, mas faz-se necessária a análise da legislação ambiental infraconstitucional, para constatação de quais os instrumentos disponibilizados pelo legislador para a limitação do direito de propriedade.

Aqui, é possível mencionar as disposições do Código Florestal que tratam, dentre outros instrumentos de preservação ambiental, das áreas de preservação permanente e da reserva legal, típicas restrições ambientais ao uso da propriedade que visam ao cumprimento da função ambiental da propriedade e que tanta controvérsia tem causado no âmbito jurídico, em especial quanto ao direito do proprietário em ser indenizado pela implementação de tais áreas em sua propriedade.

5 LIMITES AO DIREITO DE PROPRIEDADE

A Constituição Federal, conforme se defere pelo até aqui exposto, assegura de maneira de maneira genérica e abstrata do direito de propriedade, conferindo basicamente ao seu titular o poder de exclusão, sendo que, o seu conteúdo final, ou seja, sua plena caracterização, será definida pela legislação infraconstitucional, especialmente pelo Código Civil e pela legislação extravagante.[23]

No próprio Texto Constitucional já se inicia a restrição ao conteúdo do direito de propriedade, ao prescrever que deverá cumprir a sua função social, função que, no tange a propriedade rural, já vem predefinido no Art. 186, preceito legal que serve de fundamento para a concepção da função ambiental da propriedade.

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[...] uma textura central da propriedade, como direito em si, que se encontra, no entanto, cercada de balizas que o legislador, constitucional ou ordinário, lhe antepõe na defesa de interesses coletivos, considerados inarredáveis pela experiência prática e ante aos quais cedem os meramente individuais.[24]

O Código Civil de 2002, livre das amarras liberais do Código Napoleônico, já estabelece que a propriedade deve cumprir sua função social, reconhecendo também, o aspecto da função ambiental, nos seguintes termos:

Art. 1228 [...]

§1.º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.[25] (grifo nosso).

O Código Civil, assim, além de corroborar a questão da função sócio-ambiental da propriedade, confere legitimidade para que a legislação especial trace limites ao conteúdo do direito de propriedade, espancando qualquer dúvida acerca do alcance estabelecido pelo legislador constitucional, não restando dúvida que o atual direito de propriedade está sujeito a limites, os quais podem ser classificados em internos ou externos.

Os primeiros, também chamados de intrínsecos, são considerados indissociáveis do próprio direito de propriedade, uma vez que contemporâneos à formação do vínculo de domínio, ou seja, na ausência deles o direito de propriedade não se consolida em sua plenitude, não merecendo, em razão disso, completa tutela pela ordem jurídica.[26]

Os limites externos, por seu turno, pressupõem a existência de uma relação de domínio definitivamente consolidada, ou seja, são subseqüentes à relação de domínio, devendo respeito aos seus limites primordiais.[27]

Desta forma, reconhece-se que a função sócio-ambiental da propriedade se enquadra na primeira categoria, pois, como já enunciado alhures, faz parte do próprio conteúdo do direito de propriedade, devendo-se reconhecer que os deveres conexos dela decorrentes devem ser considerados “[...] como encargos ínsitos ao próprio direito, orientando e determinando seu exercício de modo positivo”.[28] (grifos do autor)

Nesse passo, importante destacar que o cumprimento dessa função social, não mais se reveste, como apregoado pelos defensores da concepção individualista do direito de propriedade, no cumprimento de imposições negativas ao proprietário, mas também impõem a realização de condutas positivas. Ao Poder Público, sempre que necessário,

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será imposto o dever de promulgação de regras impositivas, que estabeleçam obrigações de agir ao proprietário, com vistas a atender as finalidades sociais e ambientais.[29]

No plano jurídico, a admissão do princípio da função social (e ambiental) da propriedade tem como conseqüência básica fazer com que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente (aspecto positivo), não bastando apenas que não seja exercida em prejuízo de terceiros ou da qualidade ambiental (aspecto negativo). Por outras palavras, a função social e ambiental não constitui simples limitação ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício de seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício do seu direito, para que a sua propriedade concretamente se adeque à preservação do meio ambiente.[30] (grifo nosso)

Desta forma, em perfeita consonância com a Constituição Federal e os valores por ela elencados, os preceitos do Código Florestal que estabelecem, dentre os instrumentos de preservação ambiental, ao que ora nos interessa, o dever do proprietário de instituir em sua propriedade áreas de preservação permanente e a reserva legal, como forma de cumprir a função sócio-ambiental de sua propriedade.

6 ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E RESERVA LEGAL: DEVER DE INDENIZAÇÃO

A Constituição ao delinear de forma genérica e abstrata do direito de propriedade, deixou para a legislação infraconstitucional a delimitação do conteúdo desse direito, o que foi feito pelo novo Código Civil em seu Art. 1228, §1º e pela legislação extravagante.

O Código Florestal (Lei n. 4.171/65), apesar de editado antes do advento da Constituição Federal de 1988, ao prever instrumentos para a proteção ambiental, está em perfeita consonância com ela, especialmente após as modificações efetuadas por meio da Medida Provisória n. 2.166-67 de 2001, no tocante as áreas de preservação permanente e de reserva legal.

A área de reserva legal vem definida no Art. 1º, §2º, III, como “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas.”[31]

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Ela é característica dos imóveis rurais, não sendo exigida nas áreas urbanas. Corresponde à obrigação compulsória do proprietário de reservar intocada uma fração de seu imóvel rural, cuja extensão poderá variar conforme sua localização geográfica, nos termos do que dispõe o Art. 16, I a IV do Código Florestal.

No cômputo da área de reserva legal será excluída a área de preservação permanente do imóvel, caracterizando-se como uma área necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos e à conservação da biodiversidade (Art. 1°, §2°, III).

A área de reserva legal é de domínio privado não constituindo servidão administrativa, mas simples restrição ao direito de propriedade e, por tal razão, não é indenizável[32]. Não se confunde com o regime instituído pelo Sistema Nacional das Unidades de Conservação (SNUC, Lei 9.985/2000), pois parques e reservas são constituídos por áreas de domínio público[33].

Ainda, uma vez averbada à margem de sua matrícula no Cartório de Registro de Imóveis competente, não poderá ser modificada sua destinação (Art. 16, §8°), respondendo o proprietário pela sua conservação, podendo, entretanto, ser requerida sua exploração econômica por meio de plano de manejo sustentado (Art. 16, §2°).

O Código Florestal, em seu Art. 44, prevê e disciplina ainda as diversas hipóteses de recomposição, compensação e regeneração da reserva legal do imóvel rural. Além disso, o Art. 16, §11, estabelece a possibilidade de que um grupo de propriedades possa vir a ter suas reservas em regime de condomínio. Tais alternativas foram criadas pelo legislador para direcionar o proprietário que não possua uma formação florestal suficiente em seu imóvel para fazer jus à exigência legal dos incisos I a IV do Art. 16.

A área de preservação permanente, por seu turno, encontra previsão normativa no Art. 1º, II do Código florestal, compreendendo aquela “área protegida nos termos do arts. 2o e 3o desta lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem estar das populações humanas”.[34]

As áreas de preservação permanente podem ser constituídas de duas formas: por efeito da lei (ex vi legis) ou por ato declaratório.[35] As primeiras são assim consideradas por definição do próprio Código Florestal, nos termos do estabelecidos no Art. 2º, sendo assim consideradas, por força do §2º do Art. 3º, as florestas que fazem parte do patrimônio indígena.

As segundas encontram-se previstas no Art. 2º do Código, como aquelas assim declaradas por ato do Poder Público. Neste caso, por Poder Público, deve-se entender tanto a esfera federal, estadual e municipal, pois a Constituição Federal confere competência comum a todas as unidades da federação para cuidar da proteção das florestas.[36]

A natureza jurídica das áreas de preservação permanente não é simples restrição de uso de solo imposta pelo poder público, decorrendo de sua própria condição natural.

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Constitui “uma interdição natural do solo” e, conseqüentemente, não há que se falar em indenização ou desapropriação[37].

A área de preservação permanente constitui um instrumento de conservação, enquanto que a reserva legal possui um caráter preservacionista. A distinção é relevante para assinalar que as áreas protegidas pelo regime de preservação permanente não podem sofrer intervenção nem ser exploradas economicamente, enquanto que as áreas sob o regime da conservação (reserva legal) pressupõem utilização racional, ou seja, manejo florestal sustentável dos recursos florestais, vedado o corte raso das espécies vegetais exploradas mediante prévia licença[38].

A supressão de vegetação em áreas de preservação permanente, nos termos do Art. 4o do Código Florestal, somente poderá ser autorizada “[...] em caso de utilidade pública ou interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto.”[39] Frise-se que a autorização está restrita à remoção da vegetação existente na área, vedado o corte raso, mas não à supressão total da APP.

Com relação às áreas de conservação permanente ex vi legis, alteração legislativa ocorrida em 1989 as equiparou a reservas ou estações ecológicas. As primeiras, obrigatoriamente, são titularidade dos entes públicos e, se no momento de sua constituição estiverem sob o domínio particular deverão ser desapropriadas. As segundas permitem que o domínio continue privado, apenas sendo submetidas a controle ambiental do órgão federal.[40]

Desta forma, constata-se que a necessidade de implementação tanto das áreas de preservação permanente como de reserva legal, não altera em nada o direito de propriedade de seu titular, uma vez que o cumprimento da função sócio-ambiental da propriedade faz parte do próprio conteúdo desse direito. Essas restrições ambientais, na verdade, se aproximam muito do conceito moderno de propriedade restrita, ou seja, é restrita não deixando de ser propriedade.[41]

Entretanto, muitos juízes e doutrinadores, apegados ao conceito clássico de propriedade, que a consideram como um direito absoluto, enxergam essas restrições como hipóteses de desapropriação indireta, entendendo que o proprietário faz jus a uma indenização pela implementação dessas áreas em sua propriedade.

Os cerceamentos implementados pelos arts. 16 e 44 do Código Florestal são, em realidade, distorções profundas no regime do direito de propriedade, que não podem ser admitidas no sistema jurígeno pátrio. Há um nítido e incontestável sacrifício do direito de propriedade. Como já estudado anteriormente, o Poder Público está autorizado, sempre que o interesse público o exija, a tomar dos particulares sua propriedade, incluindo-se aí as terras, mas por institutos constitucionais próprios, como a desapropriação, que demanda o ressarcimento do particular prejudicado em benefício da sociedade.[42]

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Ora, desapropriar é retirar de seu proprietário a titularidade do bem, retirar o seu poder de exclusão, o que não ocorre na implementação das mencionadas restrições ambientais. O proprietário continua com o domínio de seu imóvel, com todos os caracteres que lhe são inerentes. As restrições ambientais representam apenas regramentos legais em face do uso da propriedade, que se encontram em conformidade com a nova concepção de propriedade proposta pela Constituição Federal de 1988. Ademais, a própria Constituição ao prescrever a proteção ambiental no Art. 225, dividiu a responsabilidade de preservação ambiental com a coletividade.

Se ‘desapropriar é retirar a titularidade de alguém’, não se pode falar, como regra, em conduta desapropriante na proteção do meio ambiente (do qual fazem parte as florestas nativas) pela via da Reserva legal e das APPs, que do dominus nada retiram, só acrescentam, ao assegurarem que os recursos naturais – mantidos em poder do titular do direito de propriedade – serão resguardados, no seu próprio interesse (=de sua propriedade) e das gerações futuras, agrupamento que inclui, é bom lembrar, seus descendentes. A regulamentação estatal, em questão, orienta-se pela gestão racional dos recursos ambientais, procurando assegurar sua ‘fruição futura’, sem que isso implique, necessariamente, alteração do núcleo da dominialidade.[43]

As restrições ambientais são instrumentos legais para a concretização da função sócio-ambiental da propriedade. O proprietário, ao implementá-las, não está fazendo nada além de promover a função que a constituição impôs à propriedade rural e qualquer tentativa de entendimento diverso é ato atentatório aos ditames constitucionais, tendentes a desvirtuar os institutos da desapropriação e da propriedade em sua nova concepção sócio-ambiental.

CONCLUSÕES

A evolução da tutela ambiental teve início com um período de desproteção total, consubstanciada num laissez-faire ambiental, onde a conquista de novas fronteiras era tudo o que importava na relação homem-natureza. Seguiu-se a fase fragmentária, onde a tutela do meio ambiente se operava apenas de maneira indireta, por meio da edição de diversas leis que tratavam da proteção de alguns recursos naturais, não sendo objeto da proteção em si mesmo. Por fim, a fase holística onde a tutela do meio ambiente é realizada por meio de um microssistema normativo, composto de princípios, regras e instrumentos que lhe são próprios.

Embora a evolução legislativa tenha sido importante para o desenvolvimento da tutela ambiental, esta foi realmente concretizada quando inserida nos ordenamentos constitucionais, dentre nós com o advento da Constituição de 1988, que trata da tutela

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ambiental de forma especifica, conferindo-lhe, inclusive um Capítulo próprio, além de consagrá-la como um dos princípios da Ordem Econômica e Financeira, ao lado da propriedade privada e da função social da propriedade.

Ao analisarem-se os dispositivos constitucionais que tratam da tutela do meio ambiente e da propriedade, constata-se a existência de uma nova concepção deste último, mais restrita, uma vez que a ordem jurídica apenas assegura o direito de propriedade quando ela cumpre sua função social, onde está inserida também a função sócio-ambiental da propriedade.

Tendo em vista que a propriedade deve cumprir sua função social, a própria Constituição Federal estabelece as limitações deste direito, as quais vêm complementadas pela legislação ordinária.

O Código Florestal, embora editado antes do advento da Constituição Federal, está em plena consonância com os princípios e valores por ela elencados, sendo, assim, perfeitamente aplicáveis as restrições ambientais que enumera, destacando-se, a necessidade de implementação de áreas de preservação permanente e reservas legais.

A implementação destas restrições ambientais não gera ao proprietário do imóvel rural o direito de ser indenizado, uma vez que não se trata de espécie de desapropriação, haja vista que em nada alteram o direito de propriedade de seu titular, pois a ordem jurídica apenas assegura o direito de propriedade em sua plenitude, quando ela cumpre sua função social e a implementação dessas áreas nada mais é do o cumprimento da função social da propriedade.

REFERÊNCIAS

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TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2.ed. São Paulo: Método, 2006.

[1] BENJAMIM. Antônio Herman V. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, abr/jun, 1999, n. 14, p. 50-52.

[2] Op.cit, p. 51.

[3] Op.cit, p. 51.

[4] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 35-36.

[5] BENJAMIM. Antônio Herman V. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, abr/jun, 1999, n. 14, p. 51.

[6] Op.cit, p. 51.

[7] Op.cit, p. 52.

[8] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 288.

[9] SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 43-46.

[10] Op.cit, p. 47-48.

[11] Op.cit, 49.

[12] BRASIL. Vademecum. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 67.

[13] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental da Propriedade. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, jan/mar, 1998, n. 09, p. 68.

[14] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13.ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 262-263.

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[15] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental da Propriedade. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, jan/mar, 1998, n. 09, p. 69.

[16] COLLADO, Pedro Escribano. La propriedad privada urbana: encuadramiento y régimen. Madrid: Montecorvo, 1973, p. 118-123 apud SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13.ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 274.

[17] TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2.ed. São Paulo: Método, 2006, p. 154.

[18] BENJAMIM. Antônio Herman V. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, abr/jun, 1999, n. 14, p. 54.

[19] BENJAMIM. Antônio Herman V. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, abr/jun, 1999, n. 14, p. 54.

[20] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental da Propriedade. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, jan/mar, 1998, n. 09, p. 69.

[21] CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Visualbooks, 2003, p. 83 apud MASCARENHAS, LUCIANE Martins de Araújo. A função sócio-ambiental da propriedade. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7567>. Acesso em 23mar.09.

[22] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental da Propriedade. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, jan/mar, 1998, n. 09, p. 72.

[23] BENJAMIM. Antônio Herman V. Reflexões Sobre a Hipertrofia do Direito de Propriedade na Tutela da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, out/dez, 1996, n. 04, p. 47.

[24] BITTAR, Carlos Alberto. O Direito Civil na Constituição de 1988. São Paulo: RT, 1991, p. 153 apud BENJAMIM. Antônio Herman V. Reflexões Sobre a Hipertrofia do Direito de Propriedade na Tutela da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, out/dez, 1996, n. 04, p. 48.

[25] BRASIL. Vademecum. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 260.

[26] BENJAMIM. Antônio Herman V. Op.cit, p. 49.

[27] BENJAMIM. Antônio Herman V. Reflexões Sobre a Hipertrofia do Direito de Propriedade na Tutela da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, out/dez, 1996, n. 04, p. 50.

[28] RIOS, Roger Raup. Função social da propriedade, in Lex: Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e Tribunais Regionais Federais, v. 6 (55), mar, 1994, p. 20 apud BENJAMIM. Antônio Herman V. Op.cit, p. 51.

[29] BENJAMIM. Antônio Herman V. Op.cit, p. 51.

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[30] GRAU, Eros Roberto. Princípios fundamentais do direito ambiental. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, n. 02, p. 50.

[31] BRASIL. Vademecum. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, CDRoom.

[32] SILVA, José Afonso da Silva. Direito ambiental constitucional. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.182.

[33] Op.cit, p. 174.

[34] BRASIL. Vademecum. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, CDRoom.

[35] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6.ed. São Paulo:Malheiros, 2007, p. 170.

[36] Op.cit, p. 171-172.

[37] Op.cit, p. 174-175.

[38] COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro. Proteção jurídica do meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey. 2003, p. 202-20.

[39] BRASIL. Vademecum. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, CDRoom.

[40] BENJAMIM. Antônio Herman V. Reflexões Sobre a Hipertrofia do Direito de Propriedade na Tutela da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, out/dez, 1996, n. 04, p. 55-56.

[41] Op.cit, p. 56.

[42] TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2.ed. São Paulo: Método, 2006, p. 197.

[43] BENJAMIM. Antônio Herman V. Reflexões Sobre a Hipertrofia do Direito de Propriedade na Tutela da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, out/dez, 1996, n. 04, p. 57.

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