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Thiago Pelúcio Moreira
ASSOCIAÇÃO ENTRE AS NARRATIVAS EM SAÚDE BUCAL E CONDIÇÕES
SOCIOECONÔMICO-CULTURAIS: a dentição como reflexo da desigualdade
social.
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Saúde da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
para obtenção do título de Doutor em Ciências
da Saúde.
Natal
2007
Thiago Pelúcio Moreira
ASSOCIAÇÃO ENTRE AS NARRATIVAS EM SAÚDE BUCAL E CONDIÇÕES
SOCIOECONÔMICO-CULTURAIS: a dentição como reflexo da desigualdade
social.
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Saúde da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
para obtenção do título de Doutor em Ciências da
Saúde.
Orientadora: Maria do Socorro Costa Feitosa Alves
Co-orientadora: Marilyn Kay Nations
Natal
2007
Moreira, Thiago Pelúcio
Associação entre as narrativas em saúde bucal e condições socioeconômico-culturais: a dentição como reflexo da desigualdade social. / Thiago Pelúcio Moreira. -- Natal, 2007.
viii, 85f.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Programa de
Pós-graduação em Ciências da Saúde.
Título em inglês: The association between oral health narratives and
socioeconomic and cultural conditions: the dentition as a reflection of social inequality
1. Saúde bucal – Condições sócio-econômicas. 2. Antropologia cultural. 3.
Serviços de saúde. I. Título.
CDU 616.314-084:316.323
Thiago Pelúcio Moreira
ASSOCIAÇÃO ENTRE AS NARRATIVAS EM SAÚDE BUCAL E CONDIÇÕES
SOCIOECONÔMICO-CULTURAIS: a dentição como reflexo da desigualdade
social.
Presidente da banca:
Prof. Dra. Maria do Socorro Costa Feitosa Alves - UFRN
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Jorge Correia Jesuíno – ISCTE – Universidade de Lisboa - Portugal
Prof. Dra. Antônia Oliveira Silva - UFPB
Prof. Dra. Elizabethe Cristina Fagundes de Souza - UFRN
Prof. Dra. Aurigena Antunes Araújo Ferreira - UFRN
Aprovada em: 07 / 05 / 2007
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE
Prof. Dr. Aldo da Cunha Medeiros
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde:
Dedicatória
À Pessoa Suprema, Krishna, verdade amorosa que ilumina minha vida, mesmo
eu tendo vidraças tão empoeiradas. Ajude-me a fazer do seu nome a razão integral da
minha vida. Senhor Nityananda, por favor, marque as pedras nas quais devo pisar.
Ao meu Mestre Espiritual e Guru iniciador, Swami Dhanvantari, por ser o
caminho que me faz alcançar a meta, o exemplo que revela o quanto a filosofia da
Consciência de Krishna pode dar sabedoria para interpretarmos tanto conhecimento
científico em benefício profundo de toda a humanidade. Muito obrigado por me inspirar
a seguir Swami Prabhupada.
Ao meu pai e à minha queridíssima mãe, por me terem feito encarnar nesse
mundo para aprender tantas coisas, muitas através dela. Exemplo de muitas entregas,
de idas e vindas para sempre crescer.
iv
Agradecimentos
À profa. Dra. Maria do Socorro Costa Feitosa Alves, pela paciência e
acompanhamento sempre que precisei, mesmo na dura luta das responsabilidades
docentes. Sem você, nada disso seria possível. Exemplo de cuidado e interesse
genuíno pelo educando e pela educação além dos aspectos formais.
À profa. Dra. Marilyn Kay Nations, por uma co-orientação muito dedicada.
Mesmo sendo também da Unifor, nossos horários eram sempre difíceis de conciliar,
mas seu imenso compromisso de pesquisadora deixou sua marca nas publicações.
Ao PPGCSA – Ufrn, pela oportunidade de um programa de doutorado avançado,
contribuindo para aproximar mais a produção acadêmica da realidade social e a
integração docente-serviço.
À Universidade de Fortaleza – Unifor, pelas facilidades de permitir cursar o
doutorado e permitir-me exercer a educação para auxiliar na formação dos alunos.
Lembrança especial aos meus colegas professores da área de Saúde Bucal Coletiva.
À comunidade do Dendê, especialmente suas micro-áreas mais recônditas e
fragilizadas, como a Baixada. Muito obrigado pela receptividade e amizade verdadeira
travada há quase uma década. Espero que este trabalho possa ajudar a minorar, pelo
pouco que seja, os grande infortúnios a que são submetidos.
v
Resumo
Esse estudo antropológico investiga a experiência vivida das doenças bucais no
contexto da pobreza do Nordeste brasileiro, com ênfase nas desigualdades e exclusão
social. Foram realizadas entrevistas etnográficas, narrativas e observação participante
com 31 moradores do Dendê, comunidade de baixa renda em Fortaleza, Ceará,
analisadas pelo método hermenêutico-dialético. Resultados indicam que as precárias
condições de vida e suporte social dificultam priorizar o cuidado em saúde. Os
informantes percebem as doenças bucais especialmente no caso de dor, indicando a
extração como mais resolutiva e principal demanda no difícil acesso aos serviços. A
deterioração da saúde bucal é lamentada, revelando marcas desiguais que impactam
na auto-estima e no acesso às oportunidades de ascensão social. A análise aponta que
os fatores sócio-econômico-culturais potencializadores da pobreza têm relação com a
experiência em saúde e doença e as formas de acesso aos serviços. É necessário
intensificar a equidade melhorando as habilidades de comunicação dos profissionais
com o saber popular, através da redução das barreiras de acesso e aumento do poder
de vocalização da comunidade, criando redes de apoio ao processo decisório na busca
por serviços de qualidade.
vi
Sumário
Dedicatória ....................................................................................................................... iv
Agradecimentos ................................................................................................................ v
Resumo ............................................................................................................................ vi Abstract ............................................................................................................................ vii
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 1
2 REVISÃO DA LITERATURA ........................................................................................ 4
2.1 Desigualdades sociais e saúde bucal ........................................................................4
2.2 Exclusão social e a culpabilização pelas doenças bucais ......................................... 5
2.3 Caminhos para superação: poder de vocalização do sofrimento .............................. 6
3 ANEXAÇÃO DE ARTIGOS PUBLICADOS .................................................................. 9
3.1 Artigo aceito para publicação .................................................................................. 10
3.2. Capítulo de livro publicado ..................................................................................... 31
3.3 Artigo submetido ...................................................................................................... 53
4 COMENTÁRIOS, CRÍTICAS E CONCLUSÕES ........................................................ 75
4.1 Produtos gerados pela Tese ................................................................................... 75
4.2 Críticas à Metodologia ............................................................................................. 76
4.3 Mérito e contribuições da publicação ...................................................................... 77
4.4 Metas atingidas ....................................................................................................... 78
4.5 Metas futuras ........................................................................................................... 80
5 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 82
vii
1 INTRODUÇÃO
As desigualdades e exclusão social guardam forte relação com a experiência das
doenças bucais. Desemprego, pobreza, má distribuição de renda, baixa escolaridade
etc são catalisadores determinantes na etiologia microbiana da cárie dentária1-2. Além
dessa desvantagem na produção social da doença, seu tratamento inexiste para os
mais de 30 milhões de brasileiros que o IBGE estima nunca terem visitado um dentista3.
Mesmo no panorama de desigualdades cada vez maiores, é curioso que o crescimento
do ataque de cárie arrefeceu em vários países e regiões brasileiras4-6, revertendo os
desafios globais de combate à doença para estudos que investiguem onde a cárie está
mais polarizada, uma vez que seu declínio não foi homogêneo7. Os grupos mais
submetidos à privação8 e exclusão social continuam a manter elevados níveis da
doença, crescente vulnerabilidade e contraditoriamente são aqueles com maiores
dificuldades de acesso aos serviços de saúde bucal.
Esse quadro de iniqüidade reflete na precarizada condição de saúde bucal dos
desfavorecidos, que carregam marcas do sofrimento cotidiano na sua dentição ―
tatuagens da pobreza9 ―, como cáries generalizadas, edentulismo, fístulas extra-orais
e próteses de baixa qualidade. Como agravante, essa população é geralmente
culpabilizada pelos problemas bucais que a vida pobre imputou, o que subliminarmente
tira o seu merecimento de um tratamento de qualidade. Essa realidade que mistura
pobreza, doença e desqualificação do sujeito promove redução nas oportunidades da
vida e julgamentos morais, reduzindo caminhos de coesão (inclusão) social e luta pelos
seus direitos, situação que potencializa ciclicamente mais desigualdades e exclusão
social. É importante investigar o modelo explicativo popular de adoecimento bucal e
busca de tratamento dentário para observar também como sua cultura mostra os
caminhos de superação desses desafios.
O estudo apresenta as seguintes perguntas de partida:
• Quais são os modelos explicativos culturais do processo saúde-doença bucal na
população estudada ?
• Qual a relação entre a experiência das doenças e tratamentos dentários e as
desigualdades / exclusão social ?
• Como a condição bucal interfere no acesso a melhores condições
socioeconômicas?
Tendo este referencial como hipótese da pesquisa, o objetivo deste trabalho é
compreender a relação entre as experiências no processo saúde-doença bucal, acesso
aos serviços e condições socioconômico-culturais., sinalizando interfaces com as
desigualdades e exclusão social. Espera-se através do estudo da autopercepção em
saúde bucal identificar necessidades além do ponto de vista normativo, uma vez que
permite expressar um valor para a condição bucal permeado por condições objetivas,
subjetivas e expectativas culturais10.
Esta pesquisa é especialmente relevante em Fortaleza por ser uma das capitais
mais desiguais do país11, com a distância entre ricos e pobres aumentando há mais de
20 anos, no já sofrido Nordeste brasileiro. Na região metropolitana da capital, os 40%
mais pobres têm apenas 3,2% das riquezas, enquanto os 10% mais abastados
apropriam-se de 51,8%12. Essa realidade é clara no local do estudo, a comunidade do
Dendê, que será melhor descrita na metodologia do artigo “Dentes da desigualdade”.
Os principais achados da Tese serão discutidos nas três produções anexadas.
Será apresentado na seção “Revisão da Literatura” os referenciais que embasaram a
pesquisa, quais sejam, desigualdades sociais, exclusão social, experiências no adoecer
e suas interfaces com a saúde bucal. Finalmente, os comentários, críticas e conclusões
descreverão o próprio caminhar da pesquisa, incorporando temáticas pouco abordadas
nas publicações.
2 REVISÃO DA LITERATURA
2.1 Desigualdades sociais e saúde bucal
Têm-se observado na literatura que as iniqüidades em saúde afetam diretamente
a qualidade de vida da população, sendo considerada a doença mais grave no Brasil13.
Na saúde bucal, dados do Projeto SB Brasil 200314 confirmam esse achado pois as
condições de saúde bucal da população brasileira evidenciam que menos de 6% dos
adolescentes do Sul nunca foram ao dentista, enquanto chega até 22% no Nordeste,
além de diferenças no CPO-D entre as macro-regiões para todas as faixas etárias.
Essas discrepâncias ocorrem pois a condição de saúde-doença bucal é reflexo da
renda familiar15-16, renda individual17, acesso aos serviços de saúde e redes de
comunicação social18. Também é observada relação da cárie com fatores como a
origem étnica19, ocupação da mãe20, local de moradia21, presença de água encanada22-
23 , inclusão no sistema educacional24 e grau instrucional dos pais25-26.
Comunidades com grande desigualdade apresentam mais problemas de saúde
bucal, independentemente da sua riqueza como um todo. Ou seja, a desigualdade não
afeta somente o indivíduo ou família que está em privação e não é superada pela
simples melhoria do nível de pobreza8. De acordo com Matos et al (2002), indivíduos
com baixa renda possuem mais problemas de saúde bucal e usam menos os serviços
odontológicos quando comparados a indivíduos com maior renda, resultando em uma
relação desproporcional de doenças bucais não tratadas e tipo de tratamento
recebido16. Até o perfil do tratamento muda entre os estratos econômicos, como mostra
um estudo realizado com adolescentes no Chile27 onde os indivíduos de menor renda
perdiam os dentes por lesões avançadas de cárie e os de alta renda perdiam os dentes
por indicação estética ortodôntica.
2.2 Exclusão social e a culpabilização pelas doenças bucais
A condição bucal não permite apenas um registro quantitativo, mas possui
também uma história vivida. Pessoas pobres, com baixa escolaridade e menor inserção
no mercado de trabalho carregam marcas dentárias que exprimem uma realidade
objetiva, e outra subjetiva, velada, pouco estudada nos aspectos fundantes. Essa
condição bucal desfavorável reforça o estigma do portador e amplifica sua exclusão28.
Ao olhar para alguém e perceber dentes cariados, prótese desgastada ou fístula
externa de abscesso pode-se já identificar concepções que norteiam a forma pejorativa
de se relacionar com esse indivíduo29.
Travassos & Martins30 confirmam que, numa população carente, ter mais
escolaridade ou carteira assinada aumentam a probabilidade de procurar serviços de
saúde e obter o sucesso no tratamento31. É um auxílio para superar as enormes
barreiras, desde a privação sócio-econômica e corrupção política até a falta de
humanização dos serviços.
A condição de vida precária e o difícil acesso ao atendimento de qualidade são
vivências que deixam sua marca, sua tatuagem da pobreza29 impressa na dentição da
população, já estigmatizada por sua condição social e desmoralizada no seu mundo
local32. Uma situação essencialmente gerada por não se conhecer na aproximação
necessária a real condição socioeconômica que as pessoas vivem no seu cotidiano, o
que contribui para fazer crer que as falhas da assistência e de melhores condições de
saúde bucal são por falta de cooperação da população, eximindo os profissionais de
saúde e toda a sociedade de sua responsabilidade na geração das doenças bucais.
Esses dentes da desigualdade são uma marca da injustiça (inequity) impressa na
dentição. Ser pobre e ter aparência bucal precária amplifica as desigualdades
existentes, pois contribui para a continuação do vicioso e subliminar ciclo do estigma,
discriminação e exclusão social. A perda dentária promove profundo desgaste na auto-
estima e insegurança nas relações pessoais e de trabalho33, resultando em isolamento,
rejeição e na perda de oportunidades.
2.3 Caminhos para superação: poder de vocalização do sofrimento
Ao contrário do que os profissionais de saúde possam acreditar, a procura por
atendimento não pode ser reduzida à vontade individual, mas, de acordo com Farmer34,
só seria espontaneamente motivada com a eliminação da discriminação a pessoas
sofridas e distribuição eqüitativa das oportunidades de acesso e das riquezas na
sociedade35. Além disso, a falta de fácil acesso a serviços aprofunda o
desconhecimento do seu verdadeiro estado de saúde31. O reconhecimento da cárie nos
casos de intensa dor encontra acesso precarizado e de baixa resolutividade. Assim,
não é surpreendente que a população prefira extrair o dente doloroso, ao invés de
acatar procedimentos mais conservadores.
Para Flores & Drehmer36, a sensação de dor e a decisão de tratar ou não, estão
condicionadas pela experiência de vida, fatores culturais e expectativas de
resolutividade dos serviços. Para aqueles que bravamente conseguem acesso ao
sistema público, encontram um modelo de atenção com pouca ênfase em práticas
preventivas35,37, no qual as restaurações dentárias são realizadas com precariedade
técnica, ocasionando menor durabilidade.
No presente estudo, era comum encontrar entrevistados com vários dentes
cariados, mas diziam estar satisfeitos com a saúde bucal, só atentando para o corpo
quando suas atividades essenciais, como o trabalho para se sustentar, não podem ser
continuadas38. Ao contrário, segundo Gadamer39, quando não há ruptura no fluxo da
vida, o corpo fica silencioso mesmo na doença. O entendimento do saber popular é
mais amplo que uma mera patologia (disease), como percebe o profissional de
saúde32,40. O modelo popular fala da inata vivência do sofrimento, ou enfermidade
(illness), que conjuga valores e expectativas individuais e coletivas de pensar e agir32,41.
Quando a vivência do adoecimento40 é tomada na dimensão social, é então
experienciada como sickness42 reflexo da desigualdade social e privação econômica
que formam a dureza da vida, uma violência ao seu modo de (sobre)viver34.
Trata-se de um processo que considera a enfermidade uma dimensão que não
consiste apenas na interpretação e julgamentos individuais, mas que “dota-se
subjetivamente de sentido à proporção que se afirma como real para os membros da
sociedade”; daí sobrevir sua particularidade de permitir ser instrumento de
transformação social34.
Dessa forma, por partir da experiência individual, das sensações de
desigualdade social e das formas de compreensão do adoecer de acordo com os traços
culturais dos grupos em estudo é importante preencher uma lacuna que existe na
comparação qualitativa e subjetiva da percepção da condição bucal entre indivíduos de
diferentes condições sócio-econômicas e condições de oportunidade na escalada
social. Este enfoque acadêmico contribuirá para importante avanço no conhecimento
desta área pouco abordada, que segundo alguns pesquisadores43-45 será o paradigma
dominante nas pesquisas sobre desigualdades em saúde.
Procura-se enfatizar o estudo das desigualdades em saúde sob o enfoque das
desigualdades e exclusão social, o que sugere a adoção de referenciais mais subjetivos
que os tradicionais macro-indicadores pouco sensíveis para se aproximar dos
problemas em si, que serão mais integralmente compreendidos a partir da aproximação
da vivência cotidiana.
3 ANEXAÇÃO DE ARTIGOS PUBLICADOS
3.1 Artigo aceito para publicação – Cadernos de Saúde Pública.
3.2 Capítulo de livro publicado – Saúde Bucal Coletiva: metodologia de trabalho e
práticas. Ed. Santos, 2006.
3.3 Artigo submetido – História, Ciências e Saúde (Manguinhos).
3.1 Artigo aceito para publicação – Cadernos de Saúde Pública
Dentes da desigualdade: marcas bucais da experiência vivida na pobreza pela comunidade do Dendê. Teeth of inequality: oral scars of lived-experience of poverty in the Dendê community Thiago Pelúcio Moreira Marilyn K. Nations Maria do Socorro Costa Feitosa Alves
Resumo Esse estudo antropológico relaciona condições de vida e a experiência das doenças bucais no acesso aos serviços em situação de baixa renda. De março à agosto, 2006, 31 moradores da comunidade do Dendê, em Fortaleza, Ceará compartilharam sua vivência através de entrevistas etnográficas, narrativas de problemas dentários e observação participante. Seu conteúdo foi analisado pelo método hermenêutico-dialético. Resultados indicam que as precárias condições de vida e suporte social dificultam priorizar o cuidado em saúde. Os informantes percebem as doenças bucais especialmente no caso de dor, indicando a extração como mais resolutiva e principal demanda no difícil acesso aos serviços. A deterioração da saúde bucal é lamentada, revelando marcas desiguais que impactam na auto-estima e no acesso às oportunidades de ascensão social. A análise aponta que os fatores sócio-econômico-culturais potencializadores da pobreza têm relação com a experiência em saúde e doença e as formas de acesso aos serviços. É necessário intensificar a equidade melhorando as habilidades de comunicação dos profissionais com o saber popular, através da redução das barreiras de acesso e aumento do poder de vocalização da comunidade, criando redes de apoio ao processo decisório na busca por serviços de qualidade.
Palavras-chave: Saúde Bucal; Condições Sociais; Antropologia Cultural; Acesso aos
Serviços de Saúde.
Introdução
A apropriação desigual das riquezas tem reflexos importantes no setor saúde. A
Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS) recentemente
declarou que as iniqüidades em saúde são a doença mais grave no Brasil, pois a má
distribuição de renda desgasta o capital social, ou seja, as relações de solidariedade e
confiança entre pessoas e grupos1. Modificações de indicadores da população brasileira
nas últimas décadas expressam, por exemplo, aumento na expectativa de vida e
redução acentuada nas taxas de mortalidade infantil e mortalidade por doenças
infecciosas. Tal transição sugere melhoria eqüitativa, porém deu-se de forma desigual
na população2. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada3 o decil das
famílias de maior renda per capta chega a 43 vezes mais que o decil daquelas de mais
baixa renda. Ou seja, de acordo com Greco4 apenas o 1% mais rico detém riqueza
superior à 50% da população brasileira.
O Unicef5 mapeou focos de desigualdades nas regiões brasileiras e alguns
dados impressionam: as crianças do Norte e Nordeste têm 4 vezes mais risco de morrer
antes do primeiro ano; jovens entre 12 e 17 anos têm 16 vezes mais chances de não se
alfabetizarem. Apesar de pouco estudada nos países em desenvolvimento, a influência
da desigualdade sócio-econômica na saúde bucal é semelhante à dos países
desenvolvidos. Comunidades com grande desigualdade apresentam mais problemas de
saúde bucal, independentemente da sua riqueza como um todo. Ou seja, a
desigualdade não afeta somente o indivíduo ou família que está em privação e não é
superada pela simples melhoria do nível de pobreza6. Como agravante, a falta da viva
voz da comunidade frente às instituições do Estado gera grande vulnerabilidade, uma
“pobreza” além da ausência de bens materiais1.
A condição bucal não permite apenas um registro quantitativo, mas possui
também uma história vivida. Pessoas pobres, com baixa escolaridade e menor inserção
no mercado de trabalho carregam marcas dentárias que exprimem uma realidade
objetiva, e outra subjetiva, velada, pouco estudada nos aspectos fundantes. Essa
condição bucal desfavorável reforça o estigma do portador e amplifica sua exclusão7.
Ao olhar para alguém e perceber dentes cariados, prótese desgastada ou fístula
externa de abscesso pode-se já identificar concepções que norteiam a forma pejorativa
de se relacionar com esse indivíduo8.
Este artigo objetiva estudar a relação entre condição de vida e saúde bucal a
partir das narrativas dos moradores de uma comunidade pobre no nordeste brasileiro.
Procura-se identificar interfaces entre as desigualdades e a experiência vivida pela
população na sua história do processo saúde-doença bucal e acesso aos serviços.
A dimensão da experiência empregada foi baseada em Kleinman9 e Alves &
Rabelo10, que enfatizam uma interpretação fenomenológica. Busca-se, ao privilegiar o
estudo da experiência, superar dicotomias de compreensão da realidade social e de
saúde da população, recuperando a dimensão vivida da cultura.
Desigualdades sociais e saúde bucal
O Projeto SB Brasil analisou as condições de saúde bucal da população
brasileira: o CPO-D (índice de dentes cariados, perdidos ou obturados) médio nas
idades de 12 e 15 a 19 anos foram respectivamente 2,8 e 6,2. Os valores foram
menores para o Sudeste e Sul e maiores para Nordeste e Centro-Oeste; estas regiões
mais carentes apresentam uma maior taxa de dentes cariados e perdidos. O Norte e
Nordeste possuem maior necessidade de prótese dentária11. Moysés12 comparou o
CPO-D aos 12 anos com o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano entre estados
brasileiros em 1996, estabelecendo uma correlação entre a prevalência de cárie e
qualidade de vida.
Pesquisas demonstram que a condição de saúde-doença bucal é reflexo da
renda familiar13,14, renda individual15, acesso aos serviços de saúde e redes de
comunicação social16. Também é observada relação da cárie com fatores como a
origem étnica17, ocupação da mãe18, local de moradia19, presença de água
encanada20,21, inclusão no sistema educacional22 e grau instrucional dos pais23,24.
Essa desigualdade gera uma demanda no acesso aos serviços de saúde bucal
além do tratamento clínico, pois, segundo Mandú25, enunciam processos mais
abrangentes, como condições sociais vividas e aspectos da intersubjetividade (conflitos,
sofrimentos, questões psico-afetivas etc) não traduzidos primariamente para cuidados
específicos.
Com relação ao acesso aos serviços Gilbert17 relata que crianças de famílias com
baixa renda sofrem mais cáries, têm doenças mais extensas e utilizam mais os
serviços para alívio da dor. Contraditoriamente, visitam o dentista menos vezes14 que
as crianças cujas famílias têm maior renda. Estas, vão regularmente à procura do
atendimento para prevenção26. É somente nos grupos de alta renda que aqueles com
história de cárie visitam o dentista 67% mais que os livres de cárie27.
Percurso metodológico
Contexto: a vida “dura” na comunidade do Dendê
A comunidade do Dendê é um contexto “privilegiado” para investigar a
desigualdade social. Mais de 9.503 moradores28 são compactados numa área de quatro
quilômetros quadrados, invadida há 35 anos por migrantes fugindo da seca e miséria do
interior do Ceará, buscando uma vida melhor. Embora com muita luta, confronto com
policias e expulsões forçadas, conseguiram eletricidade finalmente em 1986. Aparenta
certa civilidade nas ruas principais, bastante movimentadas com lojinhas, bares,
creches, farmácias, rádio comunitária, cabeleireiras, igrejas e delegacia, mas camuflam
um labirinto de becos sem saída. Aqui sobrevive a maioria dos moradores em pequenos
casebres. Mais afastada, em área de manguezal, situa-se a “baixada”, onde as famílias
mais pobres moram na absoluta miséria em casas de taipa na margem do poluído rio
Cocó, que inunda a região durante a época das chuvas.
A falta de oportunidade é palpável: 27% das mães são analfabetas, em apenas
32% das famílias algum membro possuía carteira assinada, e em 10,3% nenhuma
pessoa trabalhava28. De acordo com Pordeus28, os problemas que mais preocupam os
moradores são a falta de saneamento básico, violência e o uso de drogas entre os
jovens. As guerras entre gangues rivais e o apenamento dos moradores vítimas de
retaliações por parte da intensa violência são divulgadas com freqüência nos jornais da
cidade 29. O acesso ao único Posto de Saúde da Prefeitura de Fortaleza é
bombardeado com demanda; a espera para atendimento faz muitos desistirem.
A miséria na vida dura do Dendê amplifica-se com o contraste desigual da
opulência de um dos mais ricos e promissores bairros de Fortaleza, capital do Ceará de
2.332.657 habitantes30. Aqui o lixo e luxo se misturam. Há poucos quarteirões do
manguezal da “baixada” se encontra uma das principais avenidas com grandes
shoppings, revendedoras de carros importados, apartamentos de luxo, lojas de design,
restaurantes chiques e uma universidade privada, onde moradores do Dendê
cadastrados são atendidos por universitários gratuitamente no curso de Odontologia.
Coleta, análise e intepretação de dados
Dentre os métodos qualitativos31, os dados foram coletados através de
entrevistas etnográficas abertas com informantes-chaves, narrativas de experiências
vividas com problemas dentários e observação participante32. Durante março a agosto
de 2003, 31 informantes-chaves foram identificados e visitados em múltiplas ocasiões
nas suas residências. A visita inicial objetivou estabelecer elos de confiança e explicar o
motivo da investigação. É típico da região o medo de receber “estranhos” para dar
depoimentos e gravar entrevistas, pois pode gerar alguma retaliação violenta das
gangues locais. Dos 31 informantes que concordaram em participar, 20 permitiram a
gravação completa da entrevista; os demais consentiram que os dois pesquisadores
realizassem anotação detalhada da conversa no diário de campo. O número de
entrevistas foi definido através da saturação teórica das categorias, ao estudar
diferentes grupos sociais que compõem o Dendê, como trabalhadores, donas de casa,
estudantes, idosos etc, perfazendo entrevistados dos 27 aos 61 anos 31,33.
A entrevista etnográfica aberta não requer31,34 a elaboração de um roteiro, pois a
investigação narrativa partiu de uma pergunta geradora do tópico central da pesquisa,
que conforme outros autores pode ser: “como começou este problema?”35 ou “que
aconteceu?”32. Neste estudo foi utilizada a pergunta “como você cuida dos seus
dentes?”, para aprofundar o objetivo proposto. Em momento oportuno, os informantes
foram incentivados a narrar sua experiência vivida. A narrativa é uma técnica utilizada
na Antropologia Médica como meio de acesso à reconstrução da experiência da
doença. Segundo Lira, Catrib e Nations34:
“Quando as pessoas narram suas experiências, podem não só relatar e recontar essas experiências e os eventos, sob um olhar do presente. Elas podem também projetar atividades e experiências para o futuro (...) Através da narrativa as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma seqüência, encontram possíveis
explicações para isso, e jogam a cadeia de acontecimentos que constroem a vida individual e social” 34. (p. 62)
Constata-se que a investigação narrativa permite um entendimento maior da
realidade estudada, resultando na avaliação completa dos problemas como vivenciados
no real36. Jovchelovitch & Bauer37 estabelecem critérios metodológicos para obter
narrativas a partir da explicitação do tópico central da pesquisa, que deve fazer parte da
experiência do informante, com significância pessoal e comunitária; Enfatizam que o
tópico central deve ser amplo, permitindo ao informante desenvolver uma história longa,
que seja objetiva mas com liberdade para mencionar detalhes de acordo com sua
experiência pessoal35.
A observação participante foi do tipo livre e registrada em diário de campo. Com
abordagem antropológica, permitiu acumular informação para contextualizar o
comportamento da população estudada38, captando da realidade as áreas da ação só
conhecidas ao serem observadas no decorrer de uma atividade.
As entrevistas etnográficas e narrativas foram transcritas, categorizadas,
codificadas e juntamente ao conteúdo das observações participantes, analisadas pelo
método hermenêutico-dialético31. Emergiram na análise 108 categorias empíricas, que
foram agrupadas em quatro categorias analíticas estruturantes dos resultados
(condições de vida, saúde bucal e saber popular, acesso aos serviços de saúde bucal
e, marcas bucais das desigualdades sociais). Para construir o Quadro 1, um resumo
dos achados foram comparados em quatro aspectos ― problemas comuns sofridos,
estratégias para aliviar a dor de dente, tratamento utilizado e métodos de prevenção de
caries dentárias ― com o padrão de tratamento odontológico descrito na literatura
biomédica39.
Aos participantes foi garantido anonimato utilizado nomes fictícios e proposto
termo de consentimento conforme o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Estadual do Ceará, aprovado em 09/07/2002.
Resultados e discussão
Condição de vida precária e saúde bucal
A população do Dendê enfrenta dificuldades no árduo cotidiano que influenciam
seus cuidados dentários: longa jornada de trabalho em sub-empregos, falta de dinheiro,
baixa escolaridade, violência etc. A líder comunitária Fátima, 45 anos, explica que
muitas mulheres sustentam suas famílias como diaristas para ir “batalhar na rua o pão
de cada dia”. Fátima simpatiza com essas guerreiras: “Tem várias mães-de-família aqui
que sai, vai trabalhar e as crianças ficam em casa sozinhas. A diarista não tem como
pagar uma pessoa para ficar com os filhos”. Mais difícil é ter energia depois dessa luta
diária para supervisionar a escovação do filho ou perder o dia de trabalho para ir ao
dentista. Sem dinheiro, o cuidado dentário complica. De acordo como o SB Brasil11,
40% dos brasileiros não possuem uma escova ou creme dental. Uma senhora idosa,
com um doloroso abscesso, chora na fila do Posto de Saúde: “só tem amparo pra
quem tem dinheiro na hora... o pior é que não tenho. Ah! Meu Deus, coisa para sofrer é
pobre!”.
A violência nesse bairro urbano — ameaça de gangues, medo de bala perdida e
estupro — inibe o movimento livre na comunidade, principalmente daqueles percebidos
como mais vulneráveis: criança, moça, mulher e idoso. Para alguns serviços de saúde,
tem de sair cedo, ainda escuro, passando por pontos perigosos para conseguir a
consulta. Faz tempo que Graça, 12 anos, não vai ao dentista, apesar da forte dor de
dente. Seu pai está doente e não pode acompanhá-la até o Posto de Saúde. Ele tem
medo que um vagabundo mexa com sua filha, se for sozinha. Melhor, pensa ele, que a
filha fique guardada em casa com um dente estragado do que ficar desonerada sem
dor.
Convivendo nesse entorno, a maioria dos informantes concebe a doença não
pela conseqüência física, mas pelos determinantes sociais. Francisco, 76 anos,
rezador, aponta a precária condição de moradia como fonte do problema de saúde da
vizinha idosa: “A doença dela é nervo, tá com medo que a casa caia por cima dela.
Chamei o presidente da comunidade e disse: olhe vamo ajudar essa pobre que ela tá
morrendo não é de gastrite, mas do nervoso”. A vivência do adoecimento40 nessa
condição é experienciada como sickness41 reflexo da desigualdade social e privação
econômica que formam a dureza da vida, uma violência ao seu modo de (sobre)viver42.
Apesar da baixa escolaridade formal, para os moradores do Dendê, o termo
adoecer envereda para a subjetividade do sujeito, entendimento do saber popular mais
amplo que uma mera patologia (disease), como percebe o profissional de saúde9,40. O
rezador Francisco fala acima da inata vivência do sofrimento, ou enfermidade (illness),
que conjuga valores e expectativas individuais e coletivas de pensar e agir9,43. Nas
falas, a dor é vista como uma interrupção do decurso natural da vida44, e não somente
no aspecto fisiológico: “A pessoa que cuida dos dentes desde criança é difícil adoecer
de dor de dente, quando tá sentindo faz o tratamento”.
Dessa forma, a auto-proclamação de saúde pode existir junto da doença
(disease) diagnosticada pelo dentista, a depender das formas particulares de percepção
da realidade45. Era comum encontrar entrevistados com vários dentes cariados, mas
diziam estar satisfeitos com a saúde bucal, só atentando para o corpo quando suas
atividades essenciais, como o trabalho para se sustentar, não podem ser continuadas46.
Ao contrário, segundo Gadamer47, quando não há ruptura no fluxo da vida, o corpo fica
silencioso mesmo na doença. É o caso de Lucilene, 28 anos, que lamenta: “só deixo
de trabalhar para levar no médico em caso de doença grave. Dor de dente não mata”!
Devido às múltiplas demandas da vida, só é possível lembrar do corpo junto de
sintomas aflitivos. Francisca, 57 anos, vendedora de verduras, explica: “na luta, eu nem
vi o dente estragando, só quando tava doendo...ai, fui logo cuidando”.
Por conta desse “silêncio” dos sintomas, dados do IBGE (Programa Nacional de
Amostras de Domicílios — PNAD) de 199830 alegam que os pobres tendem a adoecer
menos que os ricos, um resultado difícil de acreditar no Nordeste. Entretanto, esse
levantamento utilizou indicador de saúde auto-relatada, e não uma avaliação clínica, o
que levou à subestimação de doenças entre a população mais pobre e vulnerável. Além
disso, a falta de fácil acesso a serviços aprofunda o desconhecimento do seu
verdadeiro estado de saúde48. O reconhecimento da cárie nos casos de intensa dor
encontra acesso precarizado e de baixa resolutividade. Assim, não é surpreendente
que a população prefira extrair o dente doloroso, ao invés de acatar procedimentos
mais conservadores, como ressalta essa dona-de-casa, 33 anos: “Eu tava sentindo dor
nos meus dentes tudinho, não tava agüentando mais não... queria arrancar logo meu
dente, queria ver logo livre...até mesmo você se obriga a tirar um dente que pode ser
tratado!”.
Acesso desigual: o itinerário da cura na pobreza
Os moradores encontram enormes barreiras, desde a privação sócio-econômica
e corrupção política até a falta de humanização dos serviços. O prático José, 32 anos,
aponta a injustiça que o pobre sofre para ser atendido:
“Pra visitar o dentista precisa uma ficha... se for de graça a gente vai, mas tem que esperar. Acha que o rico fica na fila? Só se for fila de banco... e se o funcionário do banco conhece, pronto, passa logo na frente”!
Ir ao dentista tratar o dente — em vez de arrancá-lo — é percebido como um
luxo, uma ação supérflua, não um direito do cidadão. Diante de problemas graves
como fome, alcoolismo, nervos, diabetes etc, o dente estragado, nesse momento, é
relegado para segundo plano. Talvez não seja que o dente não é importante como
Ronaldo, professor, inicia falando, mas extrair se torna a maneira de fácil acesso para
aliviar a dor, como sugere na sua última frase:
“Eu vejo que o dentista ainda é um luxo, que o dente não é importante. É uma coisa que eu vou sentir uma dor... aí, vou perder o meu dente. Pobre não pode ir ao dentista para tratar, mas pra arrancar”!
Para Flores & Drehmer49, a sensação de dor e a decisão de tratar ou não, estão
condicionadas pela experiência de vida, fatores culturais e expectativas de
resolutividade dos serviços. Para aqueles que bravamente conseguem acesso ao
sistema público, encontram um modelo de atenção com pouca ênfase em práticas
preventivas50,51, no qual as restaurações dentárias são realizadas com precariedade
técnica, ocasionando menor durabilidade. Logo, o resultado para a população é que os
dentes restaurados voltam a desenvolver cárie, ratificando na extirpação do dente
furado a melhor solução, como enfatizam dois informantes:
“Muitas vezes a pessoa obtura ou faz o tratamento e depois volta a adoecer, e tirando... pronto, fica logo livre”.
“O dente tava bonzinho... aí, foi se furando. Eu não tinha ido cuidar pra obturar, aí, foi ficando com a dor. Quando fui não tinha mais jeito...tinha que arrancar mesmo”! Contraditoriamente à experiência popular, o modelo atual de tratamento
odontológico prioriza evitar ao máximo a extração, e a população que arranca o dente é
inculpada por desleixo com sua saúde bucal, eximindo a responsabilidade dos
determinantes sociais e dificuldade de acesso. Apesar da extração dentária ser
considerada perigosa e evitada nas sociedades da Antigüidade Clássica, na Idade
Média tornou-se o principal procedimento viável para aplacar a dor definitivamente7.
Não é por acaso que a extração, em vez da bituração, continua tão presente na voz da
Rita, 67 anos, aposentada:
R: “É melhor tirar o dente! P: E obturar? R: Mas, depois que a bituração cai... a dor ainda é maior! P: E por que cai? R: Ás vez é coisa mal-feita!
Com a dificuldade de acesso até mesmo para esses procedimentos mutiladores,
alguns moradores optam por clínicas de preços populares, em locais e horários mais
convenientes: “por causa de tanta burocracia preferi procurar na Paróquia da Paz. Tem
um dentista que atende e você paga uma taxa de cinco, dez reais, dependendo do que
vai fazer”. Alguns esperam a época da eleição, quando candidatos oferecem extração
em troca de votos: Quando tinha 15 anos arranquei meu primeiro dente. Tava bom,
mas como era tempo da política, eles arrancam de graça na hora.
Outros cuidam do problema com uma variedade de curandeiros populares:
rezadeira, raizeiro. umbandista, espírita e pastor evangélico. Na zona rural8 ou na
urbana7, a rezadeira é procurada pois sua oração poderosa para Santa Apolônia
acalma a largatinha comendo o dente e pára a dor latejante. Essa busca em diversos
recursos sociais demonstra que a resposta aos problemas bucais depende da
capacidade de enfrentamento e do apoio na sua rede de confiança45.
Travassos & Martins52 confirmam que, numa população carente, ter mais
escolaridade ou carteira assinada aumentam a probabilidade de procurar serviços de
saúde e obter o sucesso no tratamento48. Entretanto, observou-se no Dendê que a
parcela da população com a melhor inserção sócio-econômica — comerciante,
professor e empregado de empresa —, que poderia aumentar a vocalização pela
qualidade nos serviços públicos, não tem paciência para enfrentar a burocracia,
preferindo pagar para atendimento de melhor acesso e resolutividade, um atendimento
de gente!
O acesso já seria importante fator de redução das desigualdades sociais na
condição bucal, independente das condições de vida53. A comunidade do Dendê deseja
e luta por ele, mesmo à frente da intensa violência estrutural54 que frustra o desejo dos
moradores de se tratar, restringe sua busca por prevenção e oprime suas
oportunidades sociais. Ao contrário do que os profissionais de saúde possam acreditar,
essa procura não pode ser reduzida à vontade individual, mas, de acordo com
Farmer42, só seria espontaneamente motivada com a eliminação da discriminação a
pessoas sofridas e distribuição eqüitativa das oportunidades de acesso e das riquezas
na sociedade 51.
Dente “de pobre”: marcas bucais da exclusão social
A condição de vida precária e o difícil acesso ao atendimento de qualidade são
vivências que deixam sua marca, sua tatuagem da pobreza8 impressa na dentição da
população, já estigmatizada por sua condição social e desmoralizada no seu mundo
local9. Pobreza e riqueza, fracasso e sucesso, desesperança e perspectivas são fatos
na vida que marcam, acontecimentos que o organismo responde de forma física e
psicológica, onde a dentição reflete a capacidade / oportunidade que a pessoa tem ou
não em superar suas dificuldades sociais. A relação entre desigualdades sociais e
saúde bucal fica evidente na fala do prático, José:
“Pobre nasceu pra levar fumo. A ruma de pobre com dente inchado e inflamado é inacreditável. Você não vê isso na alta sociedade...os dentes estragam porque não tem dinheiro para comer... uma coisa ruim atrai outra... nutrição ruim junto com higiene ruim...e, pronto”!
Embora sem formação em Odontologia, esse prático sabe que a experiência de
adoecer e o agir terapêutico mudam de acordo com a inserção social. O Quadro 1
compara o discurso dos moradores do Dendê, sobre o dente de pobre e seu
tratamento, com o padrão de cuidado odontológico do dente de rico, descrito na
literatura39. Os moradores queixam-se do dente estragado ou pôdi originado da cárie
ou da estrelinha que caiu. Falam da idosa com piorréia que amolece os dente que,
apesar de tudo tentar, acabam caindo, deixando-a bangela e envergonhada com sua
boca véia murcha. Reclamam da perereca solta (prótese de baixa qualidade em dentes
anteriores) que maltrata a gengiva e o estigmatizante queixo estourado (cicatriz de
fístula extra-oral). Enquanto o dente de rico apresenta problemas menos intensos e
mais relacionados ao desejo de estética que privação. Alivia a dor do dente de pobre
com reza para Santa Apolônia e pinga substâncias corrosivas ― solução de bateria,
cachaça etc ―. Utiliza ainda remédios caseiros e medicamentos populares. O dente de
rico, quando precisa, é anestesiado com pomada antes da injeção e o dinheiro pode
comprar os medicamentos mais modernos. Na população pobre o dente é tampado
com massinha (restauração provisória), arranca ou substitui com uma chapa de dentes
(tão branquinha e perfeita que parece coisa de rico!) e até amarra os dentes frouxos
com fio de aço. O dente de rico é alinhado com aparelho ortodôntico transparente,
substituído por implantes ou próteses fixas. Para evitar a cárie, moradores falam da
raspa de juá e escovação com carvão e sal, enquanto a placa dentária do rico é
removida com ultra-som e tratada com aplicação de flúor e selante.
Esses dentes da desigualdade são uma marca da injustiça impressa na dentição.
Ser pobre e ter aparência bucal precária amplifica as desigualdades existentes, pois
contribui para a continuação do vicioso e subliminar ciclo do estigma, discriminação e
exclusão social. A perda dentária promove profundo desgaste na auto-estima e
insegurança nas relações pessoais e de trabalho55, resultando em isolamento, rejeição
e na perda de oportunidades. A filha de Dona Ismar relata: “Minha filha ficava muito
triste com aquela boca faltando o dente. Ela não queria nem ir pra aula porque têm
vergonha de rir, até prende o sorriso para não mostrar”.
Foi constatado, como em Abreu51 que a perda dentária é um mutilação que
causa profundo arrependimento nas vítimas que sofrem as conseqüências no seu dia-
a-dia, como lamenta Carmem, 42 anos: “hoje eu tô arrependida, né?... porque eu não
tenho mais meus dente... Eu sei que usar prótese não é que nem o dente da gente,
né?” Uma jovem vaidosa de 22 anos ficou triste com o final do namoro com um rapaz
rico: a coloração da sua prótese combinou com a cor da gengiva, chamando atenção ao
seu perfil de menina pobre que só serve para brincar...não para casar! Com ou sem
arrependimento, os moradores apresentam os reflexos dentários da experiência vivida
na pobreza. Com a intensa valorização da aparência na sociedade atual, aqueles que
não se adequam aos padrões físicos ideais são julgados e estigmatizados, com suas
chances de inclusão social duramente suprimidas55,56,57. A partir dessa realidade, a
dentição pode ser uma expressão de caminhos de vida desiguais.
Considerações finais
As desigualdades sociais manifestam-se diretamente na percepção dos
problemas odontológicos e nos tratamentos solicitados aos serviços, levando ao
incremento das doenças bucais nos grupos de baixa renda. Tal concentração é
inversamente proporcional ao acesso aos serviços de saúde bucal e nas oportunidades
de superação das iniqüidades sociais, necessitando desenvolver políticas que
reorganizem a assistência e as ações preventivas do setor. As políticas setoriais de
saúde bucal não precisam esperar por melhorias macro-econômicas para diminuição
indireta dos problemas odontológicos.
A experiência da população reforça o desafio do acesso adequado e humanizado
aos serviços de saúde bucal, que envolve a dimensão elitista do tratamento
odontológico. A associação entre pobreza, má condição bucal e dificuldade de acesso
ao serviço leva a população à uma condição penalizante que potencializa as
desigualdades sociais a partir da redução das oportunidades de ascensão na vida, pelo
desgaste do capital social da comunidade.
Nesse sentido, a atenção à saúde deve estimular a geração de ações que
valorizem a intersubjetividade, aproximando as pessoas das suas reais necessidades,
como caminho para redução das drásticas iniqüidades sociais. Os serviços de saúde
podem refinar sua equidade através do aumento da qualidade dos tratamentos
conservadores e da redução das barreiras de acesso aos setores, como acolhimento e
ouvidoria. Para reduzir a discriminação deve ser estimulada a atualização dos
profissionais em habilidades de comunicação clinica, permitindo negociação efetiva
entre os modelos explicativos conflitantes. Por fim, fortificar as instâncias de
vocalização das lideranças populares, como os Conselhos de Saúde, favorecendo a
construção de redes de apoio para reconhecimento de problemas locais e globais,
criando atores sociais ativos nas decisões da vida coletiva. Somente, assim será
possível “tratar” a iniqüidade em saúde no Brasil, nossa mais grave doença.
Colaboradores
TPM e MKN participaram da elaboração do projeto, coleta de dados, análise dos
resultados e redação do artigo. MSCFA participou de todas as fases acima, à exceção
da coleta de dados.
Quadro 1: Problemas dentários e ações terapêuticas relatadas por moradores da comunidade do Dendê (“dente de pobre”), comparado ao padrão de cuidado odontológico oferecido aos pacientes de elevado padrão sócio-econômico (“dente de rico”), em Fortaleza, Ceará, 2006.
“Dente de pobre” “Dente de rico”
Problemas comuns
Dente fraco de nascença Dente estragado / Dente pôdi Queixo estourado Estrelinha caída Piorréia / Dente mole Banguela / Boca véia murcha Perereca solta / maltrata a gengiva Ferida na boca
Sensibilidade dentinária Manchas e descolorações Apinhamento dentário Dente incluso
Aliviar a dor de dente
Rezar no dente para Santa Apolônia Remédios caseiros (óleo da quenga do coco, chá da casca do cajueiro azedo etc) Corrosivos (Solução de bateria, cachaça, perfume etc) Medicamentos populares (Um minuto,
Anestesia tópica Prescrição de medicamento Tratamento de canal
Passa Já, Pedra-umes)
Tratamento Arrancar o dente estragado Amarrar o dente mole com fio de aço Tampar buraco com a massinha Colocar chapa
Extração de dentes inclusos Aparelho ortodôntico Clareamento dental Prótese e implantes dentários
Prevenção Limpeza com raspa de juá Escovar com carvão e sal
Limpeza com ultra-som Aplicação de flúor Aplicação de selante
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SAÚDE BUCAL E DESIGUALDADES: DOS NÚMEROS À EXPERIÊNCIA DAS DOENÇAS NO COTIDIANO. Thiago Pelúcio Moreira Marilyn Kay Nations Maria do Socorro Costa Feitosa Alves
Ainda que a situação de saúde bucal no Brasil tenha passado por relativa
melhora em alguns dos seus principais indicadores, o país precisa de grandes avanços
no reconhecimento da dimensão deste problema para desenvolver políticas que
reorganizem a assistência e as ações preventivas do setor.
Para tanto, é necessário saber que os problemas na boca das pessoas não
ocorrem isolados no tempo e no espaço, mas que apresentam uma determinação
causal direta e implacável a depender das formas de inserção do homem na sociedade.
Um país que carrega uma dívida social histórica com boa parte da sua população
oprimida e sem acesso eqüitativo às oportunidades naturalmente apresenta na saúde
bucal um reflexo potencializado de tais desigualdades.
No presente ensaio, algumas destas questões serão discutidas, em três seções.
Na primeira será apresentada uma visão panorâmica sobre a situação das
desigualdades sociais com enfoque no Brasil, contextualizando com a condição de
saúde e saúde bucal presente, e finalizando com comentários sobre o modelo
tradicional de enfrentamento dos problemas de saúde bucal.
Na segunda parte são apresentadas algumas noções hoje correntes no estudo
sobre desigualdades em saúde e exclusão social enfatizando aspectos pouco
estudados e relacionados com a saúde bucal, no sentido de abrir novas frentes de
reconhecimento dos problemas que são objeto da Odontologia para um nível mais
coletivo. Procura-se enfatizar o estudo das desigualdades em saúde sob o enfoque da
exclusão social, o que sugere a adoção de referenciais mais subjetivos que os
tradicionais macro-indicadores pouco sensíveis para se aproximar dos problemas em si,
que serão mais integralmente compreendidos a partir da aproximação da vivência
cotidiana.
Finalmente, no terceiro momento são apresentadas referências de autores que
aproximam a análise das desigualdades para o aspecto mais descritivo e qualitativo do
universo popular, contribuindo para identificar a experiência do sofrimento como mais
um instrumento para consolidar a gradual conquista da equidade. Não se pretende
esgotar aqui a construção de um novo paradigma, mas oferecer elementos que
enriqueçam a análise de situação e as práticas em saúde bucal coletiva que objetivem
consubstanciar os princípios do SUS – Sistema Único de Saúde.
Indicativos da situação e inter-relação das desigualdades, saúde e saúde bucal
A lacuna que separa atualmente ricos e pobres vem se distendendo, uma vez
que em 1960 os ricos ganhavam trinta vezes mais do que os pobres, enquanto, em
1994, esse ganho diferenciado mais que duplicou, pois os 20% mais ricos se
apropriaram de 86% de tudo o que foi produzido globalmente, obtendo uma renda 78
vezes superior a dos 20% mais pobres (Toledo, 1997).
No caso do Brasil, o país chegou ao século XXI com a subsistência de
problemas sociais graves, com reflexos diretos sobre a saúde pública, entre estes, a
migração da zona rural para as cidades, a crise de empregos e a vergonhosa
concentração de renda. Como ilustração, apenas 1% da população detém riqueza
superior a dos 50% dos brasileiros mais pobres, ou seja, menos de 2 milhões de
pessoas possuem mais que a soma dos bens de 83 milhões (Greco, 1999). O Brasil
está entre os países que apresentam crescente desigualdade. Em 1992, apresentava
um coeficiente de Gini1 igual a 0,57, e, em 1996, esse coeficiente foi igual a 0,59, o que
coloca o Brasil entre os países com maiores desigualdades no mundo, superado
apenas pela Nicarágua (0,60) (Matos et al, 2002).
As desigualdades socioeconômicas promovem intercorrências observadas na
saúde geral, e existem evidências de que conseqüentemente, estas diferenças nas
condições de vida interfiram na saúde bucal. Apesar de pouco estudada nos países em
desenvolvimento, sua influência na saúde bucal tem sido descrita como semelhante às
relatadas nos países desenvolvidos. Em um estudo realizado em Brasília, Patussi et al
(2001) concluíram que comunidades identificadas por grande desigualdade social
apresentam mais problemas de saúde bucal que aquelas nas quais a desigualdade é
1 O coeficiente de Gini é um indicador para avaliar a desigualdade social. Os valores mais próximos de zero aproximam-se da igualdade total, enquanto mais próximos de um, beiram a completa desigualdade.
menor, independentemente da riqueza da comunidade como um todo. Ou seja, a
desigualdade não afeta somente o indivíduo ou família que está em privação, além do
que, como reforçado pelo autor abaixo, não é superada pela simples melhoria do nível
de pobreza:
Desigualdade e pobreza são processos dependentes porque interagem; o comportamento de uma reforça o desempenho da outra. Um aumento de desigualdade, na maioria das vezes, implica aumento da pobreza. Mas a diminuição da desigualdade não garante uma melhora nos indicadores de pobreza, podendo ocorrer uma redistribuição de renda entre os setores mais ricos (Prates, 1990:36).
Por terem um poder degenerador da saúde intrínseco à sua natureza, o estudo
das desigualdades socioeconômicas com relação à saúde bucal é relevante como porta
de superação dos graves problemas bucais que existem ainda no país. Apesar de os
índices sugerirem redução das doenças bucais na população, as desigualdades sociais
na saúde bucal estão se ampliando, o que indica polarização nos extratos menos
favorecidos. De acordo com Matos et al (2002), indivíduos com baixa renda possuem
mais problemas de saúde bucal e usam menos os serviços odontológicos quando
comparados a indivíduos com maior renda, resultando em uma relação desproporcional
de doenças bucais não tratadas e tipo de tratamento recebido. Para tanto, é necessário
sabe a magnitude com que esses fatores interferem. Não basta apenas melhorar as
condições de saúde e saúde bucal, mas tais ganhos têm de vir acompanhados de
melhorias eqüitativas nas condições de vida da população.
A condição de saúde / doença bucal é reflexo da renda (Salako, 1985), acesso
aos serviços de saúde e redes de comunicação social que o indivíduo dispõe (Silva &
Duran, 1990), o que pode ser exemplificado pela gradual queda dos índices de cárie
dentária com manutenção de altos níveis polarizados nos extratos inferiores da
sociedade, evidenciando esta doença como reflexo e expressão objetiva e subjetiva das
contradições existentes nas sociedades (Marcos, 1984; Fehr & Schwarz, 1995). Outros
autores também observam a relação da cárie com fatores como a origem étnica
(Enwonwu, 1974), ocupação da mãe (Vasconcellos et al, 1993), local de moradia
(Nörmark, 1993), presença de água encanada (Kran & Cleaton-Jones, 1998; Luz &
Campos, 2003) e grau instrucional dos pais (Al-Hosani & Rugg-Gunn, 1998; Patussi,
1999).
Outros autores dissertam sobre a relação das desigualdades com a saúde bucal.
Segundo Thomson (2000), a influência das desigualdades econômicas na perda dos
dentes aparenta iniciar cedo no decorrer da vida, e pode ser modificada pela condição
socioeconômica individual e pelos padrões de visita ao dentista. Para Gilbert (2003),
raça e condição socioeconômica são fortes determinantes da perda de dentes. No
geral, crianças com famílias de baixa renda sofrem o maior número das cáries
dentárias, têm as doenças mais extensas, e são as que mais freqüentam os serviços
odontológicos para alívio da dor, mas contraditoriamente estas representam o menor
percentual de visitas, pois as crianças cujas famílias têm maior renda vão à procura do
atendimento preferencialmente para prevenção (Edelstein, 2002). E isso acontece
mesmo nos Estados Unidos da América, país com um sistema de assistência à saúde
bucal extremamente oneroso, o que Gillcrist (2001) ratifica pois, embora tenha havido
um substancial declínio da cárie dental entre as crianças norte-americanas, nem todas
foram beneficiadas eqüitativamente.
Os negros norte-americanos, mulheres, moradores da zona rural, pessoas que
não têm curso superior e pessoas de recursos financeiros limitados têm
significativamente maiores ocorrências de problemas bucais. As disparidades da saúde
bucal decorrentes da raça e do sexo podem ser explicadas claramente por diferenças
no acesso ao cuidado odontológico e a recursos financeiros (Chavers, 2002).
No caso do Brasil, através do Projeto SB Brasil 2003 (Ministério da Saúde, 2004)
foi possível analisar as condições de saúde bucal da população brasileira, evidenciando
um quadro desigual: O índice CPO-D (produto da soma dos dentes cariados, perdidos e
obturados dividida pelo número da população examinada) médio aos 12 e 15 a 19 anos
foram respectivamente 2,8 e 6,2, com menores valores para o Sudeste e Sul e maiores
para Nordeste e Centro-Oeste, com estas regiões mais carentes apresentando os
maiores componentes cariado e perdido; as regiões Norte e Nordeste possuem maior
necessidade de algum tipo de prótese dentária. Esses dados evidenciam a condição
bucal como problema de saúde pública e as nítidas desigualdades expressas nas
macrorregiões também existem polarizadas em contextos sociais menores.
Moysés (2003) relacionou em 1996 o CPO-D aos 12 anos com o IDH – Índice de
Desenvolvimento Humano nos estados brasileiros. Os resultados obtidos apontam para
uma correlação estatística entre prevalência de cárie dentária e fatores determinantes
da qualidade de vida. Utilizando como parâmetro os trabalhos acima pesquisados, as
desigualdades em saúde bucal não precisam ser estudadas no sentido de se formar
mais um indicador, mas sim no sentido de evidenciar claramente os fatores de risco
permeados desniveladamente na sociedade.
Mesmo com a pequena utilização de dados sobre desigualdades em saúde para
estabelecer o rumo das políticas e ações em saúde bucal, a prevalência dos principais
problemas dentários diminuiu nos últimos anos, como pode ser enfatizado pela
melhoria nos indicadores do último levantamento epidemiológico em comparação ao de
1996. Não obstante, como causas prováveis para este declínio, alguns autores citam a
adição de flúor à água de abastecimento público, os dentifrícios distribuídos em larga
escala e o início da reorganização dos serviços de saúde, que acompanham a
implantação do Sistema Único de Saúde (Baldani, 1996).
Porém, tais mudanças não se deveram essencialmente à ação direta da
Odontologia no tocante à organização das ações e serviços de saúde bucal, que ainda
hoje se envolvem hegemonicamente na prática de assistência curativa e prevenção
prioritária (quase exclusiva) aos escolares. Na tentativa de oferecer maiores condições
de saúde à população, a Odontologia tem esbarrado no seu próprio modelo de
formação biomédico (Capra, 1986) e análise do processo saúde-doença de forma
biologicista (Costa, 2000) orientada para a cura ou alívio de doenças ou para a
restauração de lesões. Essa prática odontológica é caracterizada pela ineficácia,
ineficiência, descoordenação, má distribuição, baixa cobertura, alta complexidade,
enfoque curativo, caráter mercantilista e monopolista e inadequação no preparo de
recursos humanos (Narvai, 1994: 42). É necessária a reorganização dos serviços no
sentido de superar a polarização dos indicadores da cárie e outras doenças bucais,
acompanhando especialmente uma mudança na estratégia de cuidado à saúde bucal
das populações e se aproximando daqueles que ainda não têm acesso à água
fluoretada ou renda suficiente para adquirir creme dental. Se a melhoria do quadro hoje
deveu-se especialmente a fatores extra-odontológicos, os avanços a partir daqui
carecerão de profunda estruturação em prática de atenção e assistência voltada pra o
modelo da saúde bucal coletiva.
Hoje em dia, quase sempre a aproximação à população que se encontra no pólo
inferior das desigualdades acontece no sentido de culpabilizá-los, por não procurarem
tratamento bucal com antecipação ou não se responsabilizarem por medidas relativas
ao seu autocuidado, uma situação essencialmente gerada por não se conhecer na
aproximação necessária a real condição socioeconômica que as pessoas vivem no seu
cotidiano, o que contribui para fazer crer que as falhas da assistência e de melhores
condições de saúde bucal são por falta de cooperação da população, eximindo os
profissionais de saúde e toda a sociedade de sua responsabilidade na geração das
doenças bucais.
Mesmo problemas de alta prevalência como cárie e doenças periodontais, têm
boas chances de controle pelo cidadão que possui condições básicas de subsistência e
que esteja sensibilizado a adotar ritualisticamente os procedimentos preventivos
adequadas. Porém esta população deve ter tido acesso concomitante àqueles
elementos básicos para sua subsistência e ter participado de sessões motivacionais
culturalmente adequadas. Para alcançar esse objetivo, a formação do profissional de
saúde deveria passar necessariamente por um processo que possibilitasse o
desenvolvimento de seu espírito crítico em conjunto com a conscientização de toda a
coletividade, reconhecendo os problemas de saúde bucal não somente na origem
dentária, mas como o fruto maduro (ou estragado!) das desigualdades sociais.
É necessário escoltar a base do planejamento em saúde bucal centrado
essencialmente nos poderosos instrumentos epidemiológicos, de modo que as políticas
e ações decorrentes desenvolvam-se a partir do norte do diagnosticar, executar,
monitorar e avaliar, pressupondo não apenas indicadores quantitativos, mas
qualitativos. É necessário permear os aspectos de natureza cultural e antropológica que
determinam as atitudes com relação à saúde bucal
A partir de agora, neste ensaio, serão enfatizados aspectos referentes a um
extrato do referencial teórico hoje produzido no campo das desigualdades em saúde e
exclusão social que sinalizam novos referenciais de abordagem dos problemas acima
colocados. O objetivo será de clarear veredas conceituais na saúde bucal coletiva, não
de propor taxonomias ou indicadores que possam instrumentalizar as políticas de
saúde bucal a partir daqui.
Marcos conceituais sobre desigualdades em saúde e exclusão social
O estudo das desigualdades em saúde, principalmente nas regiões de grande
disparidade social, impõe-se enquanto as estatísticas oficiais continuarem sendo
produzidas globalmente para uma população hipoteticamente homogênea. São
utilizados ampalmente para verificação do grau de pobreza e indigência elementos tais
como: tamanho médio do domicílio, a concentração de crianças entre zero e três anos,
a etnia e o sexo do chefe de família, o número de dependentes por pessoa ocupada, as
características físicas do domicílio, o nível educacional do chefe de família etc (Escorel,
1999: 96), que são informações essenciais para comparação estatística com as
condições de saúde, procurando mostrar a inter-relação entre ambos.
Outra visão mais técnica do termo é endossada por muitos críticos que crêem
que as iniqüidades em saúde nascem apenas das desigualdades da assistência à
saúde, acreditando que a garantia do acesso já seria o referencial necessário para a
consecução de melhores condições de vida (Marmot, 1999). Ou seja, apenas com a
garantia de maiores aportes econômicos para o setor saúde seria possível melhoria da
condição social.
É sabido que aqueles que vivem em piores condições de pobreza e privação têm
saúde mais deficiente. Algumas explicações são sugeridas para esta relação, incluindo
condições de vida e trabalho, limitações nos recursos, e o subseqüente efeito nas
relações sociais, enfim, que as condições materiais são as raízes do processo saúde-
doença, o qual inclui a existência de fatores determinantes para comportamentos de
saúde relatados (Shaw, Darling & Smith, 1999). Acrescente-se, também, ainda segundo
os autores, o efeito que tem a distribuição desigual de renda sobre a percepção das
pessoas do seu meio-ambiente social, pois resulta em menor coesão social,
desigualdades na influência social e política e menor boa vontade para participar das
atividades comunitárias, o que produz um impacto diferenciado e desigual na saúde da
população.
Na concepção de determinação social do processo saúde-doença, o estado de
não-saúde é decorrente de fatores resultantes da inserção histórica do homem na
sociedade e as possibilidades dele de se apropriar dos meios de produção de riquezas.
Dessa forma, a condição de pobreza é fator determinante do estado de saúde. Porém,
essa associação entre pobreza e doença carece da dimensão explicativa da exclusão
social, uma vez que a privação de outros sistemas de inclusão, além do econômico,
possui potencial não apenas na gênese da doença, mas também na utilização desta
como elemento diferenciador do estatuto social entre ricos e pobres, e de segregação
espacial e relacional entre grupos.
A exclusão social pode ser dividida, de maneira esquemática, para facilitar a
compreensão, em quatro tipos básicos (Costa, 1998). O primeiro e fundamental é o
econômico, referendado usualmente através da noção de pobreza, compreendida como
modalidade de privação múltipla, caracterizada por diferentes aspectos que tornam
precária a condição de vida do homem, tanto no seu aspecto orgânico quanto
psicológico, comportamental e social; o segundo é a exclusão social, oriunda
principalmente pela perda dos laços relacionais e autonomia pessoal, que produz o
isolamento, e é o tipo mais difundido, mas representa apenas uma das suas
dimensões, como é o caso do idoso que vegeta nos asilos; o tipo cultural é
caracterizado pela intolerância e hostilidade, principalmente quanto à etnia,
especialmente no racismo contra negros e xenofobia contra judeus; o último tipo é
aquele de origem patológica, oriunda de processos mentais que podem originar
rupturas empregatícias e afetivas.
Discorrer sobre a inclusão refere também sobre a exclusão, pois ensaia o
caminho através do qual podemos sair desta última. A inclusão pode ser associada
como condição de exercício da cidadania, e Costa (1998) apresenta cinco sistemas
sociais básicos que representam as modalidades de acesso à inclusão, que pode ser
observado no Quadro 1.
Quadro 1: Cinco sistemas de inclusão social (Costa, 1998) 1.Sistema social: A área social é caracterizada pelo conjunto de sistemas (grupos, comunidades e redes sociais) em que uma pessoa se encontra inserida, desde os mais imediatos e restritos – tais como a família, ou a vizinhança – passando pelas intermédias – de que são exemplo a pequena empresa, a associação desportiva e cultural, o grupo de amigos, ou a comunidade cultural – , até as mais amplas – como a comunidade local, o mercado de trabalho, ou a comunidade política. É sobretudo nesta área que reside a maior parte dos laços sociais analisados pela escola francesa. Note-se que o mercado de trabalho aparece não enquanto fonte de rendimentos (domínio econômico) mas na sua qualidade de local e fator de socialização e integração social. 2. Sistema econômico: Os três principais tipos de sistemas no domínio econômico são os mecanismos geradores de recursos, o mercado de bens e serviços (incluindo os financeiros, como os respeitantes ao crédito) e o sistema de poupanças. 3. Sistema institucional: O domínio institucional abrange dois tipos de sistemas. Por um lado, inclui os sistemas prestadores de serviços que, mesmo nas economias de mercado, as sociedades mantêm parcial ou totalmente protegidos em relação aos mecanismos do mercado, com vista a que o acesso a esses serviços não esteja dependente dos meios de que as pessoas e as famílias dispõem. É o caso dos sistemas educativo, de saúde, de justiça e, nalguns casos, de habitação. Por outro lado, abarca instituições mais diretamente relacionadas com direitos cívicos e políticos, tais como o sistema burocrático e as diversas instituições ligadas à participação política. 4. Sistema territorial: O reconhecimento da relevância do domínio territorial no estudo da exclusão social, é recente, e tem a ver com o fato de existirem certas situações em que a exclusão diz respeito não apenas à pessoas e famílias, mas a todo um território. É este o caso dos bairros degradados, favelas e de certos povoados rurais, em que as condições de vida das famílias dificilmente podem melhorar se não se tomarem medidas que promovam o progresso de todo o espaço, nos domínios da habitação, dos equipamentos sociais, das
acessibilidades, e até as atividades econômicas. É uma situação em que todo o território está excluído da cidade (no caso de um bairro) ou do país. 5. Sistema das referências simbólicas: Finalmente, o domínio das referências simbólicas, também muito valorizadas pela escola francesa, tem a ver fundamentalmente com uma dimensão subjetiva da exclusão. Respeita a todo um conjunto de ‘perdas’ que o excluído sofre, e que se agravam com a permanência na situação de exclusão, no campo das referências: perda de identidade social, de auto-estima, de auto-confiança, de perspectivas de futuro, de capacidade de iniciativa, de motivações, do sentido de pertença à sociedade etc.
Para reconhecer esta dimensão multifatorial da exclusão sobrevém a
necessidade de se perceber esse fato como dinâmico, onde dois grupos podem estar
incluídos em dois ou três dos sistemas, e outro bem assemelhado não, se excluírem de
outros. Voltando à noção de exclusão social, deve-se percebê-la em seus graus, níveis,
e também inventariadas numa possibilidade de consecução, onde uma forma de
exclusão pode levar a outras.
Portanto, exclusão social representa a inabilidade da nossa sociedade de manter
todos os grupos e indivíduos dentro do alcance do que esperamos como sociedade e a
tendência a impelir vulnerabilidade e dificuldade aos indivíduos segregados (Social,
2001). Nesse sentido está ligada ao desenvolvimento histórico, relacionando-o à
desigualdade e a fatores socioeconômicos e culturais próprios da civilização atual
(Santos, 1995). Desta forma, desigualdades em saúde procuram oferecer uma
dimensão macro e exclusão social a dimensão micro, que tem maior capacidade
instrumental de se aproximar de pessoas ou grupos segregados.
No caso do Brasil, aparece com destacada relevância a sombria constatação de
historicamente caber aos oprimidos / excluídos a tarefa de elaborar, de acordo com
suas limitadas disponibilidades, sua maneira de utilização dos serviços de saúde,
reforçando secularmente sua condição de desigualdade (Cohn et al, 1991). A tentativa
de perceber como esse processo perpassa no interior da cultura local é passo
importante no caminhar que possibilite uma aproximação da compreensão das
diferentes percepções dessa realidade.
A condição bucal, seja boa ou má, não permite apenas um registro quantitativo,
mas possui também uma história. Pessoas mais pobres, com grau instrucional inferior e
menores possibilidades de inserção vantajosa no mercado formal carregam consigo
marcas dentárias que exprimem uma realidade social objetiva já clara, e outra subjetiva,
velada, pouco estudada nos seus aspectos fundantes. Parte-se do pressuposto de que
essa condição bucal desfavorável, com problemas dentários generalizados, é reflexo e
coadjuvante de carências profundas nas oportunidades de inclusão real no mundo e,
como se não bastasse, sua manutenção contribui como reforço da estigmatização do
portador e amplificação ainda maior da sua exclusão (Nuto, 1999; Moreira, Nuto e
Nations, 2004). Por exemplo, ao olhar para uma pessoa e perceber dentes estragados,
uma prótese desgastada e descolorida ou uma fístula de drenagem externa de
abscesso pode-se já depreender algumas concepções e modelos que norteiam a forma
de se relacionar com esse indivíduo, e não apenas somente a identificação do seu
posicionamento no extrato socioeconômico.
Essas situações diárias experienciadas pelo indivíduo em relação à condição
bucal são grandezas objetivas e simbólicas que carregam marcas particulares,
momento em que a dentição pode ser uma expressão de caminhos de vida desigual.
Pobreza e riqueza, fracasso e sucesso, desesperança e perspectivas são fatos na vida
das pessoas que marcam, acontecimentos que o organismo precisa responder de
forma física e psicológica, onde a dentição pode refletir a capacidade / oportunidade
que a pessoa tem ou não em superar suas dificuldades.
Nova frente de compreensão: a dimensão da experiência / sofrimento
Propor estratégias que viabilizem mudanças objetivas, capazes de diminuir a
exclusão, deve requerer inicialmente uma preocupação no sentido de garantir não
apenas acesso direto à assistência em saúde bucal, mas a foros de discussão que
permitam o reconhecimento da exclusão (Miranda & Farmer, 2001). Embora os
profissionais de saúde tendam muito amplamente a ver a patologia da população
marginal como produto de sua pobreza, ela pode igualmente ser considerada como um
produto do seu isolamento estrutural e psicológico da sociedade (Morrell, 2001).
Essa exclusão materializa-se para a população segregada como problemas de
saúde bucal que vivenciam uma experiência individual, única. A cárie de uma pessoa é
completamente diferente daquela do seu vizinho, contextualizada pelo seu luto
particular. Essa noção de experiência toma parte não apenas do conceito de doença
(disease) como aporte do modelo biomédico, mas sim da dimensão da enfermidade
(illness), pois representa a “experiência dos sintomas e do sofrimento”, a experiência
vivida do monitoramento dos processos corporais. Outra noção que interessa, colocada
por Lira, Catrib & Nations (2003:62), é a de que a enfermidade (illness) representa o
julgamento do paciente sobre como ele pode lidar com a angústia e com os problemas
práticos em sua vida diária que ela cria. Portanto, a experiência é muito mais complexa
do que os significados formulados para explicá-la, pois estes oferecem sempre quadros
parciais e inacabados de uma realidade sempre dinâmica, uma vez que a experiência
vivenciada é reveladora não apenas de um sofrimento que inferioriza, pois é alicerce
para construção ou reconstrução da identidade social (Alves & Rabelo, 1998; Rodrigues
& Caroso, 1998) a partir dos comportamentos culturais específicos de cada pessoa ou
grupo (Mendonça, 1999).
A condição bucal encontrada a partir deste referencial vai valorizar os aspectos
qualitativos da experiência pessoal. Esta vereda da subjetividade encontra respaldo na
produção sobre saúde e doença de pesquisadores da linha de antropologia da saúde
(Canguilhem, 1995; Helman, 1994), na qual os autores diferenciam saúde,
anormalidade e patologia. Para eles, a auto-proclamação de saúde pode existir junto da
presença da patologia diagnosticada pelo modelo biomédico, a depender das formas
particulares de percepção da realidade (Jacques, 2003). O outro foco que se abre aqui
na análise do processo saúde-doença preocupa-se em como as patologias bucais são
determinadas em função da forma de inserção do indivíduo no mundo(Margis et al,
2003) e sua relação com a saúde bucal, como evidenciado pelo autor abaixo:
Com a vivência da doença, as pessoas passam a ter uma história para contar. Essas histórias não são histórias separadas do processo de viver, mas são convergentes à maneira de ver o mundo e de viver nele, passando a integrar-se a esse mundo. Elas relatam várias situações vividas, que, no seu conjunto, têm um sentido maior, o que as transforma em histórias acessíveis aos outros (Lira, Catrib & Nations, 2003: 61).
Essa experiência da doença é fonte de sofrimento, outro conceito amplamente
estudado na literatura. Mas, além da necessidade do sofrimento ser percebido para
além de uma representação padronizada e reducionista, na direção de um problema
experienciado individualmente, deve ter aclarada sua relação com os problemas
sociais, quando passa a representar uma dimensão socializada e construída por um
grupo, socialmente edificada, alargando a estreita relação individual e local para o
terreno coletivo e global. Passa-se a existir não o sofrimento da dor de dente da dona
Francisca, mas de todas as dores de dentes e dores gerais, aproveitando o espaço
cada vez mais claro para a interdisciplinaridade. Essas formas coletivas de experiência
do sofrimento, segundo Kleinman & Kleinman (1997), modelam as percepções e
expressões individuais, que são ensinadas e aprendidas, tanto direta como
indiretamente.
Trata-se de um processo que considera a enfermidade, de acordo com Alves &
Rabelo (1999), dimensão que não consiste apenas na interpretação e julgamentos
individuais, mas que “dota-se subjetivamente de sentido à proporção que se afirma
como real para os membros da sociedade”; daí sobrevir sua particularidade de permitir
ser instrumento de transformação social, mas que também pode ser utilizada
negativamente para segregar e desqualificar um indivíduo ou grupo perante a
sociedade, iniciando o processo de exclusão social a partir da perda das vinculações
econômicas e afetivas.
Dessa forma, por partir da experiência individual, das sensações de
desigualdade social e das formas de compreensão do adoecer de acordo com os traços
culturais dos grupos em estudo é importante preencher uma lacuna que existe na
comparação qualitativa e subjetiva da percepção da condição bucal entre indivíduos de
distintas condições sócio-econômicas e condições de oportunidade na escalada social.
Este enfoque acadêmico contribuirá para importante avanço no conhecimento desta
área pouco abordada, que segundo alguns pesquisadores (Elstad, 1998; Evans, 1994;
Wilkinson, 1996b) será o paradigma dominante nas pesquisas sobre desigualdades em
saúde.
O sofrimento é enfocado aqui como capaz de reaver o processo histórico em
sociedade, não apenas na manifestação da resignação e do conformismo, mas também
da resistência. Sob esta óptica, de acordo com Rodrigues & Caroso (1998), o
sofrimento, ao mesmo tempo que representa a experiência de fragmentação e caráter
negativo, é também o alicerce para a (re)construção da identidade social, sugerindo
uma nova reflexão sobre as propostas de reorganização das políticas públicas no
Brasil, tendo como base novos mecanismos que estimulem a participação popular.
Em nenhum momento se pretende aqui rechaçar ou minorar a importância de
uma visão global sobre os indicadores, mas observar outros aspectos que enriqueçam
a dimensão explicativa da distribuição e enfrentamento dos problemas de saúde bucal a
partir de uma maior aproximação do cotidiano da população, ponto de partida e retorno
de todas as políticas, porto seguro que dá sentido para a prática sanitarista.
De acordo com Unfer (2000), muito embora os fatores biológicos sejam
preponderantes para o aparecimento de grande número de doenças na população,
constata-se que existem outros fatores capazes de influenciar o surgimento e sua
expansão, como por exemplo, alguns já citados neste texto: o desenvolvimento
econômico, social e educacional da população, os padrões de cultura e de tradição
popular que estruturam os hábitos e as condutas pessoais e coletivas. Mesmo a análise
da cultura deve prever a aproximação radical das desigualdades e prever estratégias
reais para seu enfrentamento contínuo, ainda que os resultados só possam ser aferidos
a longo prazo.
O acesso à escola é um melhor indicador de diferenciação social do que
ocupação e renda (Duncan et al, 1993), visto que presumivelmente permite acesso
eqüitativo a ambos os gêneros, possibilita comparação internacional mais padronizada,
além de possuir relação direta com a saúde, pois amplia as aspirações na vida,
influenciando a auto-estima e o desejo de adquirir novos conhecimentos para atitudes
saudáveis (Murphy et al, 1991).
Parece ser muito importante para o avanço dos cuidados em saúde bucal,
relacionar os achados epidemiológicos com as condições de desigualdade
socioeconômica da população, tanto no aspecto comparativo entre diferentes grandes
grupos populacionais, como no âmbito familiar e individual. De acordo com Thomson
(2004) um acompanhamento das pessoas ao longo da vida sugere ser um paradigma
útil para compreensão e enfrentamento destes problemas, sugerindo maior
especificação das ações de vigilância à saúde na área de saúde bucal.
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3.3 Artigo submetido – História Ciências e Saúde, Manguinhos.
Desigualdades e Exclusão Social: indicativos de relevância para a saúde bucal. Thiago Pelúcio Moreira Marilyn Kay Nations Maria do Socorro Costa Feitosa Alves RESUMO O adoecer bucal atualmente concentra-se com maior gravidade nas minorias desprivilegiadas, potencializado pela sinergia com as desigualdades e exclusão social. O objetivo desta pesquisa foi buscar na literatura uma descrição sobre as desigualdades e exclusão social, evidenciando indiretamente com a saúde bucal. Observou-se que as desigualdades sociais impactam na dentição e podem ser avaliadas pelos conceitos de iniqüidade, inequality e inequity, cuja gênese tem relação com o acesso aos serviços, atuando nas oportunidades e grau de coesão social. Já a exclusão social é um conceito mais elástico, visto propiciar carência, vulnerabilidade e ruptura de vínculos consoante as limitações de famílias e grupos para desfrutar dos sistemas de inclusão, que são subliminarmente rechaçados nos excluídos de saúde bucal precarizada. É necessário ampliar as pesquisas e espaços de discussão sobre o tema, permitindo que o sofrimento social atue como alicerce para reconstrução do direito à saúde bucal a partir da realidade cultural local. Palavras-chave: Desigualdades sociais; Exclusão social; Processo saúde-doença; Acesso aos serviços de saúde.
Introdução
Saúde, doença, pobreza, riqueza e seus significados na vida social são
dimensões que acompanham a história da humanidade. A consciência dos seus
múltiplos aspectos varia ao longo do tempo e da cultura onde se manifestam.
Independente da época, saúde e doença sempre tiveram grande interpenetração com
as condições sociais, seja no campo da produção do viver saudável, onde se inclui uma
adequada saúde bucal, seja nas oportunidades de acesso aos serviços de assistência.
Com a queda de importantes indicadores de saúde na população geral até
mesmo nos países em desenvolvimento, diagnosticado recentemente pela Comissão
Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS, 2006), os agravos sociais e o
adoecimento de problemas bucais como a cárie polarizam-se nos grupos mais pobres
e submetidos a algum tipo de exclusão. Desencadeia-se nessa sofrida minoria um ciclo
sinérgico entre doença, desigualdades e exclusão social, tendo como agravante a
dificuldade de acesso eqüitativo nos quase inexistentes serviços de saúde.
Essas desigualdades também se manifestam intensamente no campo da saúde
bucal, pois é estimado que mais de 30 milhões de brasileiros não visitaram o dentista
uma vez sequer (IBGE, 1998), apesar do país apresentar um dos maiores exércitos de
profissionais do mundo (Lacerda et al., 2004). Como agravante, no tocante à qualidade
do acesso aos serviços, historicamente as condições de saúde bucal são mensuradas
por parâmetros meramente clínicos e curativistas, sem considerar o real impacto
desses problemas na qualidade de vida dos indivíduos (Peres et al., 2003).
Contraditoriamente, a população vitimizada com o maior manancial de cáries é a
mesma que detém as menores oportunidades e qualidade no acesso aos serviços de
saúde bucal.
Autores desse trabalho já possuem considerável produção nesse campo
(Nations e Nuto, 2002; Moreira, Nuto e Nations, 2004), permitindo a construção de um
referencial teórico que precisa ser partilhado. Em artigo recente (Moreira, Nations e
Alves, 2007), foram investigadas as desigualdades sociais e saúde bucal no campo da
experiência popular, enfatizando a condição bucal na pobreza, o acesso aos serviços e
as implicações da má condição bucal na amplificação da exclusão social.
Dessa forma, conhecer a dinâmica das desigualdades e exclusão social é
fundamental para identificar referenciais que possibilitem desenvolver políticas de
justiça social, ao lado de garantir a saúde bucal como direito de todos. Baseado em
revisão de literatura, o objetivo desse artigo é se apropriar de análises explicativas
sobre o tema desigualdades e exclusão social, iluminando uma interpretação preliminar
dentro do setor saúde bucal, procurando clarear veredas para uma nova compreensão
do processo saúde-doença que instrumentalize benefícios reais para os
desfavorecidos.
Desigualdades: panorama, conceito e especificidades relativas à saúde bucal.
As desigualdades sociais crescem cada vez mais no mundo inteiro. A lacuna que
separa atualmente ricos e pobres vem se distendendo, uma vez que em 1960 os ricos
ganhavam 30 vezes mais do que os pobres e, em 1994, esse ganho mais que duplicou,
pois os 20% mais ricos se apropriaram de 86% de tudo o que foi produzido
globalmente, obtendo uma renda 78 vezes superior a dos 20% mais pobres (Toledo,
1997).
O Brasil anda em ritmo similar, com a subsistência de problemas sociais graves e
reflexos diretos sobre a saúde pública, entre estes, a migração da zona rural para as
cidades, a crise de empregos e a vergonhosa concentração de renda. Como ilustração,
apenas 1% da população detém riqueza superior a dos 50% dos brasileiros mais
pobres, ou seja, menos de 2 milhões de pessoas possuem mais que a soma dos bens
de 83 milhões. (Greco, 1999). Segundo informe do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada, o decil de renda mais elevado chega a ser de 43 vezes a renda per capita das
famílias pertencentes ao decil de mais baixa renda (Morris, 1997; Ipea, 1996). Apesar
do rápido crescimento econômico ter provocado marcante diminuição da proporção de
brasileiros na pobreza � de 32% em 1992/3 para 23% em 1996 (Ipea, 1997) � a
parcela de renda dos 50% mais pobres ainda não passa de 12% da renda total.
Apesar deste precário panorama social, presencia-se nas últimas décadas a
queda da mortalidade geral, e em particular da mortalidade infantil. Essa redução,
associada à diminuição do coeficiente de natalidade, resultou no aumento da
expectativa de vida ao nascer e no envelhecimento da população brasileira (Cordeiro e
Silva, 2001). Esse processo, há muito iniciado nos países industrializados, ocorre aqui
de forma bastante heterogênea, refletindo as enormes desigualdades existentes no
país.
Na saúde bucal, a maioria dos países desenvolvidos reduziu a prevalência e
severidade da cárie dentária com eqüidade, através da contribuição de fatores diretos
como o aumento da exposição ao flúor, mas especialmente por conta da melhoria nas
condições de vida e ampliação das ações de promoção em saúde, o que não ocorreu
nos países em desenvolvimento, especialmente na África e Ásia (Freire et al., 1999). No
Brasil, dados do mais recente levantamento epidemiológico em saúde bucal (Ministério
da Saúde, 2004) evidenciaram um quadro desigual: o índice CPO-D (produto da soma
dos dentes cariados, perdidos e obturados dividido pelo número da população
examinada) médio aos 12 e 15 a 19 anos foram respectivamente 2,8 e 6,2, com
menores valores para o Sudeste e Sul e maiores para Nordeste e Centro-Oeste, com
estas regiões mais carentes apresentando os maiores componentes cariado e perdido.
Como agravante, Cerca de 45% da população brasileira não tem acesso à escova de
dente (Alves, 2004; Carvalho, 2004).
Para entender essas desigualdades, sua relevância para os serviços de saúde e
como afeta a vida das pessoas, é importante investigar as teorias que a embasam. O
estudo dos conceitos sobre desigualdades em saúde tem sido enfatizado
principalmente na compreensão do processo de determinação das doenças e na
possibilidade de utilização das informações como subsídios para estratégias de
ampliação da eqüidade em saúde (Silva, Paim e Costa, 1999). Sua utilização,
principalmente nas regiões de grande disparidade social, impõe-se enquanto as
estatísticas oficiais continuarem sendo produzidas globalmente para uma população
hipoteticamente homogênea. Pesquisadores reportam que estágios de desigualdade
elevada têm sido associados com uma variedade de problemas sociais, principalmente
em áreas que têm alta concentração de minorias desprivilegiadas, em particular negros,
índios e favelados (McLaughlin e Stokes, 2002). Esses grupos desfavorecidos são os
mesmos que concentram as maiores taxas de problemas bucais. No estudo de Patussi
et al., (2001), realizado em Brasília, identificou-se que comunidades caracterizadas por
grande desigualdade social apresentam mais problemas de saúde bucal que aquelas
nas quais a desigualdade é menor, independentemente da riqueza da comunidade
como um todo. Ou seja, a desigualdade não afeta somente o indivíduo ou família que
está em privação, e não é superada pela melhoria familiar da pobreza.
A tentativa de apreender as desigualdades sociais deve ser realizada em
profundidade, uma vez que falsas homogeneidades dos grupos pesquisados só serão
superadas caso a pobreza seja identificada nos seus aspectos mais variados. Com
esse objetivo, é utilizada uma série de taxas que avaliam as formas de acesso a
estruturas essenciais para uma boa qualidade de vida (Troyano, Hoffmann e Ferreira,
1990). Tradicionalmente as iniqüidades têm sido descritas através de uma
caracterização obtida pela classificação das ocupações do indivíduo ou família, de
acordo com seu estamento ou prestígio social, o que aponta historicamente a ocupação
como principal indicador, ainda que uma variedade de outros fatores interrelacionados
possa ser enumerada para fazer parte nos determinantes de desigualdades em saúde,
tais como renda, riqueza, tipo de habitação, educação, consumo de bens, modo de
comportamento, origens sociais e familiares e contatos locais. Os grupos populacionais
que sustentam altas taxas de cárie dentária possuem vulnerabilidade para a maioria
desses indicadores, uma vez que os expõem aos fatores de risco a partir da privação
social. Alguns pesquisadores observaram que a prevalência de cárie diminui na
proporção em que há aumento do nível socioeconômico (Baldani, Narvai e Antunes
2002; Thompson et al., 2004). Essa diferença na participação das riquezas é coroada
por fatores agravantes como desemprego, atraso tecnológico e elevados índices de
analfabetismo.
Essa distribuição de saúde e doença entre as populações tem por muitos anos
sido expressa mais poderosamente em termos de iniqüidade (Townsend e Davidson,
1980). Alguns autores carregam o conceito de iniqüidade com um reforço moral, como
um fato que é indesejável ou evitável. Para outros, o aspecto moral é relativamente
inconseqüente, pois a diferença nas condições de riqueza ou trabalho é um resultado
inevitável e fato natural na história de tentativas do homem para construir a sociedade,
o que tornaria a moral um ponto de pouca relevância. Essa duplicidade na interpretação
das iniqüidades pode ser melhor explicitada comentando autores que diferenciam as
construções inglesas de inequality e inequity. Os dois conceitos são distintos, e um
pesquisador utiliza um exemplo de fácil compreensão para propor esse discernimento:
“Se você tem mais e eu tenho menos, isso é inequality.
Se você tem mais porque eu tenho menos, ou eu tenho menos porque você tem mais, isso é inequity” (Streeten, 1997).
Inequality refere-se a uma ampla classe de diferenças na experiência e estado
de saúde que se processa entre países, regiões e grupos socioeconômicos. Já inequity
são aquelas desigualdades evitáveis, que por isso são eminentemente injustas (Leon,
Walt e Gilson, 2001; Feachem, 2000). O termo é algumas vezes aplicado
inapropriadamente às diferenças no acesso aos serviços de saúde entre regiões e
subgrupos populacionais em um país. Esta visão mais técnica do termo é endossada
por muitos críticos que crêem que as iniqüidades em saúde nascem apenas das
desigualdades da assistência à saúde, acreditando que a garantia do acesso já seria o
referencial necessário para a consecução de melhores condições de vida (Marmot,
1999). Ou seja, apenas com a garantia de maiores aportes econômicos para o setor
saúde seria possível melhoria da condição social.
Porém, a dimensão do acesso ao setor saúde não é a única importante. Nos
últimos anos, tem recebido bastante atenção as desigualdades no estado de saúde de
homens e mulheres (Gwatkin, 2000; Matthews, Manor e Power, 1999), as
desigualdades étnicas nas prestações de serviços de saúde (Jackson et al., 2000;
Smith, 2000), dentre outros aspectos que abordem a dimensão antropológica das
relações entre as pessoas. Por exemplo, o estudo de Frazão, Antunes e Narvai, (2003)
revelou que homens adultos possuíam uma média de dentes cariados superior às
mulheres da mesma faixa etária, contrariamente ao componente restaurado, que foi
maior entre as mulheres.
É sabido que aqueles que vivem em piores condições de pobreza e privação têm
saúde mais deficiente. Algumas explicações são sugeridas para esta relação, incluindo
condições de vida e trabalho, limitações nos recursos, e o subseqüente efeito nas
relações sociais, enfim, que as condições materiais são as raízes do processo saúde-
doença, que inclui a existência de fatores determinantes para comportamentos de
saúde relatados (Shaw, Dorling e Smith, 1999). Na determinação do processo saúde-
doença, desigualdade e pobreza são grandezas que muitas vezes caminham juntas,
mas que podem diferir em algumas particularidades, conforme acentua o autor:
“Desigualdade e pobreza são processos dependentes porque interagem; o comportamento de uma reforça o desempenho da outra. Um aumento de desigualdade, na maioria das vezes, implica aumento da pobreza. Mas a diminuição da desigualdade não garante uma melhora nos indicadores de pobreza, podendo ocorrer uma redistribuição de renda entre os setores mais ricos” (Prates, 1990).
Existem alguns mecanismos que ligam distribuição de renda à saúde, dentre os
quais sobressaem as variações no acesso individual a oportunidades de vida e
recursos materiais e o grau de coesão social da população (Blakely, Kennedy e
Kawachi, 2001). A desigualdade nos seus mais diversos conceitos manifesta-se como
uma força imperceptível que influencia a configuração socioeconômica e a relação dos
indivíduos (Le Clere e Soobader, 2000). Suas conseqüências principais são o
isolamento do pobre e o seletivo abandono da sua vizinhança de minorias raciais /
étnicas. Esse quadro consubstancia-se em uma prevalência diferencial das doenças
para subpopulações segregadas que refletem não apenas discriminação, mas também
menores interações com oportunidades socioeconômicas.
Acrescente-se também que o efeito da desigualdade sobre a percepção das
pessoas do seu meio-ambiente social resulta em menor coesão social, desigualdades
na influência social e política e menor boa vontade para participar das atividades
comunitárias, o que produz um impacto diferenciado e desigual na saúde da população
(McLaughlin e Stokes, 2002). Porém, enquanto a desigualdade de renda, manifesta no
termo pobreza, enfatiza a perda de recursos econômicos, a denominação exclusão
social refere-se não apenas à privação econômica, mas também incorpora a noção do
processo de marginalização, ou seja, como os indivíduos são excluídos de vários
aspectos da vida social.
Exclusão social: segregação potencializada pela saúde bucal desigual.
A noção de exclusão social tem sido caracterizada ultimamente como importante
categoria para análise das relações entre os homens na sociedade, uma vez que inclui
aspectos diferenciados de análise e não se limita apenas à questão econômica
enfatizada pelo conceito de pobreza, nem em uma proposição relativa como sugerida
pela noção de desigualdade social. Ainda que pobreza e desigualdade se cristalizem no
decorrer da história da humanidade, o conceito de exclusão social é relativamente
novo, sugerindo novos referenciais de análise para compreensão. Representa um
fenômeno grupal, social, em decorrência das contradições de uma sociedade de
classes e das incoerências de poder que têm assento nos micro-espaços, como na
família, que origina o abandono e expulsão da inserção no mundo de um conjunto
significativo da população. Sarah Escorel sugere duas tentativas de definições
assemelhadas para o conceito de exclusão social:
“Exclusão social ... pode designar toda situação ou condição social de carência, dificuldade de acesso, segregação, discriminação, vulnerabilidade e precariedade em qualquer âmbito” (Escorel, 1999).
“Exclusão é então definida como ruptura dos vínculos sociais, em diversas dimensões: dos vínculos que unem os indivíduos entre si e fixam os atores sociais ao modelo de sociedade, dos vínculos sociais (materializados) e dos vínculos simbólicos, das representações que conferem a identidade social” (Escorel, 1999).
A exclusão acontece como um processo que pode ser local e global, em diversas
modalidades e grupos populacionais, como resultante de conflitos valorativos ou
idealistas, donde a diferença comparada é a peça-chave inicial para caracterizar a
segregação, por meio da discriminação (Xiberras, 1993). É um conceito estudado
principalmente através das tradições inglesa e francesa. Desta última, emerge dentre os
autores-chave, Robert Castel, que associa a exclusão social com o progresso da
marginalização, através de conseqüentes rupturas nos vínculos das pessoas,
especialmente do mundo do trabalho, elemento essencial para a identificação do
homem na sociedade, que mais adiante pode se agravar com a perda dos referenciais
da família, amigos e outros laços afetivos (Castel, 1998).
O Quadro 1 apresenta os axiomas propostos por Didier (Escorel, 1999) para
caracterizar a exclusão social, e através dele é possível fazer um paralelo com as
realidades dicotômicas da saúde bucal encontradas entre pessoas ricas e pobres, pois
a dentição revela, em muitos aspectos, o cotidiano de vida das pessoas. Pessoas
desprivilegiadas, com pouca escolaridade e de inserção precarizada no mercado formal
carregam consigo marcas dentárias ― tatuagens da pobreza (Moreira, Nations e Alves,
2007) ― que exprimem uma realidade social evidente, e outra subliminar, pouco
estudada na sua essência. Parte-se do pressuposto de que essa condição bucal
desfavorável, com problemas dentários generalizados, é reflexo e coadjuvante de
carências profundas nas oportunidades de inclusão real no mundo e, como se não
bastasse, sua manutenção contribui como reforço da estigmatização do portador e
amplificação ainda maior da sua exclusão, perpetrando o ciclo sinérgico entre doenças
bucais, desigualdades e exclusão social (Nations e Nuto, 1999; Moreira, Nuto e
Nations, 2004). Além de possuírem as moléstias bucais em maior nível de gravidade,
fortemente influenciadas pelos fatores das desigualdades sociais, a população pobre
encontra serviços de saúde historicamente organizados em uma lógica reativa aos
problemas bucais (Narvai, 1994), possuindo profissionais de formação elitista e com
dificuldades de comunicação na cultura dos excluídos.
Quadro 1: Axiomas da exclusão social propostos por Didier (Escorel, 1999).
“A exclusão supõe que um ‘mundo comum’ está partido em dois. Indicar a existência de um mundo partido não significa que existam dois mundos. (...) ‘O mundo dos excluídos não é um mundo: é aquilo que sobra na comunidade mais vasta depois que dela se retirou o mundo desejável’. A exclusão parte essa comunidade em dois grupos diferentes mas ligados por um elo muito frágil. (...) O vocabulário da exclusão só pode falar desse estado (de infelicidade ou de desgraça) comparando-o ao outro, aquele que é o desejável. Daí o caráter processual da exclusão. O corte em dois mundos é feito pelo locutor da exclusão. Qualificados em oposição, esses mundos são ao mesmo tempo uma descrição e um julgamento realizado pelo locutor da exclusão, que é quem confere às palavras seus valores sobre o que é desejável e o que é desgraça. (...) A exclusão condena o estado do mundo que permite pronunciar seu nome. Na medida em que dizemos que há exclusão, dizemos também que o lugar da desgraça é inadmissível, que não deveria existir. Assim, a exclusão não se contenta em descrever o vínculo que ela aponta, ela o julga também, e de maneira negativa. O discurso da exclusão não designa atores responsáveis pela situação. Exclusão indica menos a ação de excluir e mais o fato de ser excluído, o agente é mais difícil de ser nomeado que o objeto da exclusão.(...)”
A exclusão social pode ainda ser dividida, de maneira esquemática, para facilitar
a compreensão, em quatro tipos básicos (Costa, 1998). O primeiro e fundamental é o
econômico, referendado usualmente através da noção de pobreza, compreendida como
modalidade de privação múltipla, caracterizada por diferentes aspectos que tornam
precária a condição de vida do homem, tanto no seu aspecto orgânico quanto
psicológico, comportamental e social; o segundo é a exclusão social, oriunda
principalmente pela perda dos laços relacionais e autonomia pessoal, que produz o
isolamento, como é o caso do idoso que vegeta nos asilos; o tipo cultural é
caracterizado pela intolerância e hostilidade, principalmente quanto à etnia,
especialmente no racismo contra negros e xenofobia contra judeus; o último tipo é
aquele de origem patológica, oriunda de processos mentais que podem originar
rupturas empregatícias e afetivas.
Mas não se pode discutir exclusão, procurando medidas para dirimi-la, caso não
sejam referendadas quais as modalidades de inclusão de que a população pode dispor
para (re)estabelecer seu lugar na sociedade. Essa é uma armadilha do próprio conceito
de exclusão, conforme apontou Didier anteriormente, uma vez que não se põem em
pauta as formas de inclusão, as modalidades possíveis de redimensionamento social
(Martins, 1997). Discorrer sobre a inclusão refere também sobre a exclusão, pois ensaia
o caminho através do qual podemos sair desta última. A inclusão pode ser associada
como condição de exercício da cidadania, e o Quadro 2 apresenta os cinco sistemas
sociais básicos propostos por Costa, 1998 que representam as modalidades de acesso
à inclusão:
Quadro 2: Sistemas sociais básicos para inclusão social (Costa, 1998).
1. Sistema social: A área social é caracterizada pelo conjunto de sistemas (grupos, comunidades e redes sociais) em que uma pessoa se insere, desde os mais imediatos – tais como a família – passando pelos intermediários – como a pequena empresa, a associação desportiva, o grupo de amigos – , até as mais amplas – como o mercado de trabalho, que aparece não enquanto fonte de rendimentos (domínio econômico) mas na sua qualidade de local e fator de socialização e integração social. 2. Sistema econômico: Os três principais sistemas no domínio econômico são os mecanismos geradores de recursos, o mercado de bens e serviços e o sistema de poupanças. 3. Sistema institucional: Abrange dois tipos de sistemas. Por um lado, inclui os prestadores de serviços que, mesmo nas economias de mercado, as sociedades mantêm protegidos em relação aos mecanismos do mercado, com vista a que o acesso a esses serviços não esteja dependente dos meios de que as pessoas e
as famílias dispõem. É o caso dos sistemas educativo, de saúde, de justiça e de habitação. Por outro lado, abarca instituições mais diretamente relacionadas com direitos cívicos e políticos, tais como o sistema burocrático e as diversas instituições ligadas à participação política. 4. Sistema territorial: A relevância do domínio territorial no estudo da exclusão social, é recente, e tem a ver com o fato de existirem certas situações em que a exclusão diz respeito não apenas à pessoas e famílias, mas a todo um território. É este o caso dos bairros degradados e áreas rurais, em que as condições de vida das famílias dificilmente podem melhorar se não se tomarem medidas que promovam o progresso de todo o espaço, nos domínios da habitação, dos equipamentos sociais, das acessibilidades, e até as atividades econômicas. 5. Sistema das referências simbólicas: Tem a ver fundamentalmente com uma dimensão subjetiva da exclusão. Remete a todo um conjunto de ‘perdas’ que o excluído sofre, e que se agravam com a permanência na situação de exclusão, no campo das referências: perda de identidade social, de auto-estima, de auto-confiança, de perspectivas de futuro, de capacidade de iniciativa, de motivações, do sentido de pertença à sociedade etc.
Esses sistemas são dinâmicos. Pessoas podem estar socialmente incluídas
através de dois ou três sistemas e excluídas dos demais. Pela possibilidade de
ocorrerem consecutivamente, uma forma de inclusão / exclusão em um sistema
também pode potencializar o desfecho de outros. Atualmente, o conceito de exclusão
social necessita ser usado em um senso global e ser ligado com um alcance nos
direitos humanos (Miranda, 2001), uma vez que, é um conceito político e extremamente
dinâmico, pois as pessoas estão se movendo constantemente acima e abaixo das
linhas de exclusão (Oyen, 1997). A maioria das pessoas se encontra em uma zona
intermediária entre exclusão social e inclusão social, mudando as posições em relação
a esses dois pontos extremos (Rodgers, 1995). Em outras palavras, indivíduos e grupos
podem ser excluídos em alguns aspectos e não em outros.
Pensar em exclusão pressupõe conhecer a inclusão, elemento basilar de
reconhecimento das possibilidades éticas e políticas de suplantar a desigualdade. O
movimento nesse sentido só é realmente efetivo caso se compreenda a noção de que
essas diferenças na dentição e no acesso aos serviços não são casuais, mas injustas e
exploratórias, especialmente se nos reportamos como pano de fundo da sociedade
democrática brasileira, cuja Carta Magna e princípios supraconstitucionais ratificam a
condição de direitos iguais à vida. Essa noção de igualdade eqüitativa, essencial para a
existência de uma nova ética inclusivista, é requisito histórico fundamental para
reconhecimento do outro como portador dos mesmos direitos e, portanto, de diferenças
que o personalizam mas que não o segregam.
Porém, exclusão, inclusão e igualdade não podem ser concebidas como objeto-
fim, mas como processo, como possibilidade crítica e prática para uma nova realidade.
Não se pode pairar no conceito e esperar os frutos, mas ter atitude crítica frente ao
mundo, de perceber a dialética da contradição social que suplanta o fatalismo histórico
da ideologia hegemônica, criando uma nova vereda que clareia o caminho da
integração. No Brasil, marcas profundas foram impressas por processos de exclusão,
como a escravidão, a personificação da hostilidade e exploração em último grau, lugar
em que a coerência tangenciou longe a realidade, crime hediondo que deixou marcas
profundas no etnocídio e brutalização do negro, e que até hoje inculca na
representação popular, nas possibilidades sociais e na rentabilidade financeira, a
inferioridade das pessoas “de cor”. Trata-se de uma realidade que se fazia presente
não apenas na relação colonizador – explorado, mas também entre os explorados, uma
vez que os próprios negros do quilombo de Palmares escravizavam seus pares que
relutavam em somar forças para aumentar a tropa e os índios de tribos rivais caçavam
uns aos outros para vender aos portugueses (Martins, 1997).
Hoje a exclusão no Brasil se edifica nos indicadores desiguais entre as grandes
regiões, na longínqua distância de oportunidades entre aqueles do meio urbano e rural,
na discriminação ao colorido e pobre, na segregação do diferente. Uma nova
roupagem, agora mais visível com as aberrantes contradições da realidade, cria a
necessidade de procurar outros conceitos e vias possíveis para o resgate desses
valores no país. Como produção própria do brasileiro, surge o conceito de apartação,
corruptela do termo de origem africâner apartheid (Buarque, 1993), que defende a
principal razão da segregação no racismo, com desenvolvimentos diferenciados na
história para brancos e negros; uma relação que se baseia na desigualdade e que
ultrapassa a noção étnica, modernizando-se para amparar todas as possibilidades de
negação humana do oprimido que contribui para alargar a “fratura social” das relações
entre semelhantes.
Essa história de segregação propicia marcas bucais evidentes na maior
quantidade de cáries e mutilações pelas perdas dentárias, que simbolizam uma gradual
morte da importância do desdentado para a sociedade. São perdas que não ocorrem
isolados no tempo e no espaço, mas que dependem da implacável forma de inserção
do homem na sociedade. Um país que carrega uma dívida social histórica com boa
parte da sua população oprimida e sem acesso eqüitativo às oportunidades
naturalmente apresenta na saúde bucal um reflexo potencializado das desigualdades.
Mesmo nas populações fragilizadas, essa distribuição de sofrimento social
potencializado pela história do processo saúde-doença bucal ocorre de forma desigual,
pois os negros, mulheres, moradores da zona rural etc têm maiores ocorrências de
problemas bucais. (Chavers, Gilbert e Shelton, 2002). Porém, pela polarização dos
problemas bucais nesses subgrupos populacionais eles invariavelmente são
culpabilizados por serem os portadores das doenças, por descaso com sua própria
saúde, por não procurarem tratamento bucal com antecipação ou não se
responsabilizarem por medidas relativas ao seu autocuidado. Essa falsa percepção
ocorre por não se conhecer as enormes dificuldades na vida cotidiana desses
excluídos, que são obrigados a deixar a saúde bucal para o final da fila de prioridades.
Esse repasse de responsabilidade é decorrente do julgamento leviano de acreditar que
essas populações não cuidam dos seus dentes por desinteresse, contribuindo para
eximir a responsabilidade dos profissionais dentistas e de toda a sociedade. Para Bosi
e Affonso, “a chamada consciência preventiva não deveria ser tão esperada pelos
profissionais já que esta postura é fruto de uma experiência mediatizada pela teoria o
que não corresponde à experiência existencial da maioria da nossa população”.
Reforçam também o fato da população não ter acesso ao que se passa na organização
interna do serviço, e mais ainda ao conhecimento médico apontado como base para os
critérios técnicos (Bosi e Affonso, 1998; Alves, 2004).
Pensar a exclusão social requer atualização constante dos referenciais,
conceitos e visão crítica diuturna frente à realidade, procurando meandros, saídas,
possibilidades práticas e viáveis para realizar padrões de relacionamento social que
propiciem diferentes caminhos de materialização de um novo tempo. Portanto, exclusão
social representa a inabilidade da nossa sociedade de manter todos os grupos e
indivíduos dentro do alcance do que esperamos como sociedade e a tendência a
impelir vulnerabilidade e dificuldade aos indivíduos segregados (Social, 2001). Está
ligada ao desenvolvimento histórico, relacionando-o à desigualdade e a fatores
socioeconomicos e culturais próprios da civilização atual (Santos, 1995). Propor
estratégias que viabilizem mudanças objetivas, capazes de diminuir a exclusão, deve
requerer inicialmente uma preocupação no sentido de garantir não apenas acesso à
saúde, mas a foros de discussão que permitam o reconhecimento da exclusão (Miranda
e Farmer, 2001). Embora os profissionais de saúde tendam muito amplamente a ver a
patologia da população marginal como produto de sua pobreza, ela pode igualmente
ser considerada como um produto do seu isolamento social e psicológico da sociedade
(Morrell, 2001).
Como caminho de superação dessa realidade, o sofrimento social, (Rodrigues e
Caroso, 1998) ao mesmo tempo que representa a experiência de fragmentação e
caráter negativo, é também o alicerce para a (re)construção da identidade social,
sugerindo uma nova reflexão sobre as propostas de reorganização das políticas
públicas de saúde no Brasil, tendo como base novos mecanismos que estimulem a
participação popular. Para as delicadas condições de vida com as quais se depara a
população brasileira, tem especial relevância aqui o caráter socioeconômico como
aspecto fundante das quebras de relações, associado ao descaso do poder público no
cumprimento das garantias sociais conquistadas no decorrer da história, quando o
direito de cidadania veio a reboque de medidas legislativas, e não da maturidade
objetiva da população para resguardar isso como direito, como é o caso das conquistas
históricas no campo da saúde com o movimento da reforma sanitária, que cria o
Sistema Único de Saúde – SUS e os Conselhos de Saúde, mas sem legitimidade social
para que tais instâncias pudessem engendrar mudanças significativas no seu campo de
atuação.
Frente à essa enorme dificuldade de vocalização dos direitos dos excluídos,
ressalte-se a injustiça de caber, a estas populações fragilizadas de poder e coesão
social, a elaboração do seu modelo autógeno e peculiar de utilização dos serviços de
saúde e saúde bucal, reforçando secularmente sua condição de desigualdade (Cohn et
al., 1991). A tentativa de perceber como esse processo perpassa no interior da cultura
local é passo importante no caminhar que possibilite uma aproximação da
compreensão das diferentes percepções dessa realidade.
Considerações finais
Ficou evidente a magnitude com que as desigualdades sociais crescem na
atualidade, levando à disponibilidade injusta (inequity) dos equipamentos sociais,
estratégias de promoção de saúde e serviços de assistência bucal oferecidos às
populações mais fragilizadas. Como agravante, a precariedade na vida dos excluídos
gera marcas bucais comuns nessa população, que é geralmente culpabilizada pelo seu
estado de saúde e segregada subliminarmente de novas possibilidades de ascensão
social.
Compreender as teorias sobre as desigualdades e exclusão social é importante
pois permite entender como as interpretações adequadas dos seus conceitos
possibilitam um entendimento maior da realidade dos excluídos pelo ponto de vista
deles, propiciando serviços de saúde bucal e políticas intersetoriais mais adequadas
para a realidade cultural e estrutural desses sub-grupos desprivilegiados.
Referências
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4 COMENTÁRIOS, CRÍTICAS E CONCLUSÕES.
A pesquisa contribuiu na academia com novos conceitos sobre a experiência
desigual no processo saúde-doença bucal e um novo âmbito de práticas de
enfrentamento das questões sobre desigualdades e exclusão social, permitindo elencar
referenciais essenciais para a formação generalista, crítica e humanista do cirurgião-
dentista. A saúde vive no Brasil um momento político peculiar que merece várias
produções que contribuam para alcançar as máximas do Sistema Único de Saúde –
SUS como direito de todos. Adiante nesta seção ficarão evidentes outros méritos e
metas atingidas e futuras deste trabalho.
4.1 Produtos gerados pela Tese
A pesquisa gerou três tipos de subprodutos acadêmicos, assinados pelo
doutorando e orientadoras: 4 trabalhos apresentados em congressos da área, produção
conjunta de alunos da graduação e pós graduação; 1 capítulo de livro pela editora
Santos, de circulação nacional; 1 artigo já aceito pelo periódico Cadernos de Saúde
Pública. Ressalte-se ainda outro artigo pronto, objeto da qualificação, que será enviado
para a revista História, Ciências e Saúde – Manguinhos, e mais um terceiro artigo, com
análise estatística já concluída e em fase final de elaboração da redação, que também
será enviado para o periódico Cadernos de Saúde Pública.
Essas produções são a culminância de estudo constante sobre o tema há pelo
menos oito anos por parte do pesquisador. Na graduação, foi por duas vezes bolsista
de iniciação científica do CNPq, com pesquisas intituladas: “Comunidade do Dendê: um
diagnóstico de suas famílias”, sob orientação da profa. Dra. Augediva Maria Jucá
Pordeus; e “Qualidade dos serviços odontológicos: confrontação cultural entre
cirurgiões-dentistas e a experiência de usuários de baixa renda em Fortaleza – CE”,
orientado pela profa. Dra. Marilyn Kay Nations. No mestrado, decidiu aprofundar o
referencial sobre desigualdades e exclusão social na área da saúde em geral, com a
dissertação “Quem não mora no enxuto fica lombrando lama: desigualdade, sofrimento
e exclusão social na saúde”, sob tutela do prof. Dr. João Bosco Feitosa dos Santos. E
no doutorado, procurou acumular esses saberes aplicados à área da saúde bucal,
permitindo desenvolver a produção acima descrita.
4.2 Críticas à Metodologia
Cabem algumas considerações sobre o artigo principal produzido pela Tese.
Primeiro que o objetivo proposto no projeto de pesquisa do doutorado seria comparar
as categorias que foram discutidas nos achados na comunidade do Dendê com a
Aldeota, um bairro rico e elitizado de Fortaleza. Resolveu-se ao longo da pesquisa
concentrar o estudo apenas na favela pois o Dendê já é um vasto campo de
investigação para os significados culturais pesquisados. No próprio estudo na
comunidade pobre, para quem lê o artigo, já percebe a contradição com a população de
alto poder aquisitivo. Seguindo também o caminho de pensamento de alguns
pesquisadores da área de desigualdades e exclusão social46, o mundo dos
desfavorecidos já é um espaço cujas relações de poder devem ser investigadas em
profundidade.
Também na metodologia do projeto de pesquisa, a investigação narrativa
aparece como uma opção de método qualitativo, como um guia das técnicas de coleta
de dados na pesquisa. Na verdade, como pode ser observado no artigo publicado, a
narrativa aparece como um caminho de orientação para a técnica da entrevista aberta,
com uma responsabilidade bem menor sobre o método qualitativo adotado.
Alguns trabalhos da literatura foram relevantes para orientar o caminho da
pesquisa. Eles não necessariamente foram citados nos subprodutos publicados mas
foram pelo menos guia no pensamento. Destaque para o livro Vidas ao Léu, sobre
desigualdades e exclusão social, de Sarah Escorel, 1999, da Fiocruz, sobre moradores
de rua no Rio de Janeiro; A pesquisa Os estabelecidos e os outisiders, de Elias e
Scotson, 2000, no Reino Unido, enfatizando as diferenças no padrão de vida e
equipamentos sociais entre dois bairros de um país desenvolvido; O artigo de Macek e
colaboradores, 2004, nos EUA, sobre polarização da cárie dentária; E o livro Infections
and Inequalities, de Paul Farmer, 2001, EUA, escrito sobre suas experiências no Haiti.
Destaque para outros trabalhos da produção local do grupo de pesquisa: Nations e
Nuto, 2002; Moreira, Nuto e Nations, 2004; Moreira, Nations e Alves, 2007.
4.3 Mérito e contribuições da publicação
Um dos principais méritos gerados pela publicação é porque se trata de um
assunto novo na Odontologia, abordado de uma forma peculiar. A maioria dos artigos
publicados sobre esse tema procura aprofundar os conceitos da Medicina Social,
juntamente com novos referenciais da Antropologia e Sociologia, mas a investigação é
conduzida em escolas, asilos, corporações ou na zona rural, ambientes que não
retratam a dinâmica social natural de uma comunidade, utilizando-se ainda, de
mensuração objetiva sobre a realidade. O artigo publicado traz novidades sobre o tema
em uma favela da região metropolitana de uma capital e procura dar seguimento a
produções que partem do ponto de vista popular, captando o entendimento dos
excluídos para gerar as categorias que servem como molde do artigo.
Mandatório ressaltar também o mérito que o próprio Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Saúde da UFRN (PPGCSA-UFRN) teve, pois esse modelo
de solicitar o artigo como requisito para a defesa estimula a aprender uma escrita
objetiva e clara, necessária para um artigo. O doutorando ressalta que isso foi para ele
desafiador, pois seu grande interesse por poesia e filosofia védica indiana naturalmente
mostram o caráter retórico do pensar e escrever pouco pragmático. Além disso, o
enriquecimento intelectual foi óbvio, por se apropriar de um referencial pouco enfatizado
na formação dominantemente tecnicista da Odontologia.
4.4 Metas atingidas
No aspecto intelectual, esses referenciais, partilhados com outros professores do
curso de Odontologia da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, permitiram estimular a
fixação e desenvolvimento de outras disciplinas no novo fluxograma do curso,
remodelando a área de Saúde Bucal Coletiva para 11 disciplinas do curso, entre as
quais incluem-se as de Ciências Sociais e Saúde I e II, e Psicologia do Relacionamento
I e II. Ainda é necessário sensibilizar bastante professores e alunos do curso, mas
essas produções auxiliam na percepção da importância de tais conceitos para a
formação de cirurgiões-dentistas reflexivos, éticos e comprometidos com a realidade.
Todos estão cada vez mais conscientes de que colocar o “pé na favela” é importante
para a construção de valores, atitudes e práticas adequadas. Outra dimensão do ponto
de vista intelectual é que as publicações geradas por essa tese auxiliam na
consolidação de grupo de pesquisa cada vez mais forte na UNIFOR, que já possui
vários trabalhos de orientandos na graduação e pós-graduação, muitos deles citados
nas referências dos artigos oriundos deste projeto, outros, apresentados com destaque
nos congressos da área. Cumpre destacar os esforços, em especial, das professoras
Marilyn Kay Nations e Sharmênia de Araújo Soares Nuto, participantes também do
grupo de pesquisa da UNIFOR, registrado no CNPq, Cultura e humanização do
cuidado, com a linha Humanização do cuidado em populações fragilizadas, que estas
produções agora vem fortalecer. Através da Profa. Dra. Maria do Socorro C. F. Alves,
inicia-se uma parceria com a UFRN e PPGCSA que sinaliza inclusive oportunidades de
cooperação internacional.
Outros avanços foram conquistados também no aspecto social, pois pela
reclamação da comunidade de suas necessidades em saúde bucal não serem
atingidas, foi proposto no curso de Odontologia da UNIFOR um sistema de atendimento
de adequação do meio bucal, permitindo cobrir a demanda direta dos moradores da
casa visitada pelo aluno, que agora são tratados diretamente por ele na clínica,
aumentando a resolutividade e rapidez no atendimento, bem como reforçando vínculos
tão fundamentais para uma formação humanizada.
Do ponto de vista pessoal, considera-se uma importante meta atingida alcançar a
defesa com cerca de 30 meses de curso, discorridos a preparação do projeto até a
redação da tese e dos artigos. Deve ser aqui novamente ressaltada a contribuição
interdisciplinar gerada pela organização e flexibilidade multicêntrica do PPGCSA-UFRN,
permitindo o acúmulo de uma visão mais integral dos achados e possibilitando novos
olhares para aplicação prática dos resultados.
4.5 Metas futuras
Dentro do aspecto intelectual, é um dos objetivos poder complementar os
desdobramentos propostos no projeto de pesquisa, comparando os achados com a
população de alta renda da Aldeota. Também se percebeu a necessidade de realizar
um estudo epidemiológico quantitativo para levantar a prevalência e severidade da
cárie dentária na população do Dendê, relacionando-a com o perfil socioeconômico,
padrões de acesso aos serviços de saúde e autopercepção em saúde bucal, que se
encontra inclusive em fase de redação final de encaminhamento para publicação. É
também meta do grupo de pesquisa da UNIFOR escrever um livro dessa temática, em
parceria com a Fiocruz, para divulgar ainda mais as informações gerados nesses temas
correlatos, já muito divulgados através das pesquisas da profa. Marilyn K. Nations, com
produção consolidada no campo da Antropologia Médica.
No aspecto social, será intensificada a aproximação com os setores do poder
público, especialmente gestores das Unidades de Saúde e das células regionais da
Secretaria Municipal de Saúde. Nossa parceria já é frutífera, mas os dados encontrados
poderão certamente auxiliar na revisão das estratégias de acesso ao serviço e de
acolhimento das populações segregadas. Os gestores dos serviços de saúde bucal
precisam perceber que a população anseia por tratamentos de qualidade pois deseja a
preservação dos seus dentes. Muito embora possam ter comportamentos que
aparentemente mostrem ao contrário, são formas subliminares de evidenciar sua
revolta silenciosa para a sociedade. Também é muito importante estimular na
comunidade do Dendê maior comprometimento das lideranças comunitárias ― que
atualmente desviam seus objetivos para interesses partidários pessoais ― contribuindo
para vocalizar com maior poder os anseios da população e materializar os princípios de
participação popular previstos na Constituição Federal, tão necessários para construção
de uma sociedade com maior eqüidade no SUS.
Como meta pessoal, o pesquisador deseja contribuir com outras formas de
refinamento do modelo biomédico47, prevendo na universidade a oferta de disciplinas
como Saúde e Espiritualidade. Também é objetivo, aproveitando o título de Doutor,
contribuir para formalização do Instituto Bhaktivedanta, faculdade que se comprometerá
com formas alternativas de pensar a resolução das questões sociais a partir das
estratégias de autoconhecimento.
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